A ROUPA DO ADVOGADO*
-CARLOS FREDERICO MARÉS DE SOUZA FILHO-
Está acontecendo de juízes, advogados e promotores serem flagrados em situação pouco ortodoxa em suas vestimentas, mas é tempo de pandemia em que audiências se fazem de casa. É um desembargador que aparece sem camisa, advogado sustentando da rede ou dirigindo, promotor dormindo ou soltando flatulências, e até um ministro do STJ que apareceu sem calças, solene e soberbo expondo suas pernas nuas e brancas. O que faz um profissional, ainda que de casa, participar com tanto relaxo de uma reunião formal, aberta, em geral com a possibilidade de ser muito mais observado do que nas realizadas no Fórum? Provavelmente para eles só a aparência interessa. Deve ser isso. Mas na verdade quando se está em vídeo os detalhes são mais perceptíveis, ao vivo é mais fácil dar uma cochilada, soltar um pum, estar com a calça rasgada, cutucar o nariz, sem ser notado. No filme tem que se comportar, mesmo porque pereniza. Há quem ainda não se deu conta disso.
Mas a história que segue não é de agora, já lá se vão quarenta anos, a ditadura ainda estava tendo sua casca quebrada e alguns avanços eram conquistados, como a anistia e a volta dos exilados. Naquele tempo tudo era ao vivo, de comunicação rápida havia só telégrafo e telex.
Pois bem, foi nesse tempo que um retornado das peripécias do exílio iniciou sua carreira como advogado público e foi incumbido de defender uma terra estadual que estava sendo grilada no litoral do Paraná, em Antonina. A questão era simples, mas de grande dificuldade. É que a maior parte das terras do Município eram griladas com documentos falsos, imprecisos, rudimentares, mas com a anuência ou inoperância do Estado iam ganhando legitimidade, com uma decisão administrativa ali, uma sentença acolá, uma escritura não sei onde. A causa estava na fase do recurso contra a sentença acolá que tinha reconhecido o direito de propriedade de uma grande extensão da Serra do Mar. Estava tudo preparado para o grilo ser perpetrado. Bastava o desembargador confirmar a sentença do juiz. Simples! A advocacia pública, porém, estava empenhada. Junto com engenheiros e agrimensores já tinham demonstrado a inconsistência dos documentos e argumentos dos grileiros, mas a esperança era pouca, bastava ver a terra, argumentava a petição do Estado, mas, afinal, quem se disporia a ir lá ver no meio do mato que os documentos e alegações não poderiam ser verdadeiros? O desembargador se dispôs.
Tinha fama de sério, juiz de carreira lenta e bom cristão. Leu as alegações do Estado e, como não havia drones, nem helicópteros à disposição, resolveu fazer a inspeção judicial requerida, in loco. Decidido a fazer visita à gleba, marcou audiência para o Fórum de Antonina, uma quarta feira às nove horas da manhã. Apesar das alegações, recursos, choros e quem sabe mais que providências pouco recomendáveis dos grileiros, a visita foi mantida. Na manhã daquela quarta feira, muito cedo, quatro funcionários públicos embarcaram num desconfortável Toyota 4x4, um engenheiro, funcionário antigo que conhecia bem a região e talvez fosse o único a saber onde era a gleba a ser vistoriada, um jovem agrimensor, acostumado a essas andanças no mato, o advogado público chegante e um motorista bom, escolhido por sua experiência off road.
Um pouco antes das nove horas os quatro homens e sua viatura estacionaram na porta do Fórum. Como se podia esperar, o desembargador sentou-se na cabeceira da mesa pontualmente, em posição mais elevada, com um quase imperceptível aceno de cabeça e um mudo mover de lábios deu todos por cumprimentados, o juiz da Comarca em pé ao seu lado, o escrivão para as notas, o advogado dos grileiros, sisudo, cara fechada, provavelmente incomodado com aquele percalço, não estava acostumado com juízes assim, o procurador de justiça que chegou um pouco atrasado desculpando-se porque o motorista era inexperiente, o pessoal do Estado.
Antonina é uma cidade abafada em qualquer estação do ano, mas aquele era um dia ensolarado de verão, não tinha brisa. O ventilador fazia um ruído mais desagradável que o vento quente que soprava. Na sala só tinha homens, todos de terno e gravata, até o engenheiro, o agrimensor era a única exceção. Da janela se podia ver o motorista refastelado na sombra de um grande flamboyant florido, mais adiante a baía refletindo o sol. Muito solenemente o desembargador deu por aberta a inspeção judicial, todos esperaram que um mapa de um dos volumes de processo que o escrivão carregava fosse aberto, mas não. Para surpresa geral suspendeu a audiência e anunciou que a reiniciaria na gleba em causa, para onde todos estavam intimados a seguir. Dispensou o juiz da Comarca, pediu licença por 5 minutos enquanto trocava de roupa e sumiu por uma porta da sala de audiências.
Ninguém sabia o que fazer. "E agora?" perguntaram. "E agora vamos para a gleba", respondeu o advogado público, animado com a decisão. "De terno?" perguntou o advogado do grileiro com os olhos tão arregalados que parecia sair da órbita. Completou a pergunta de forma inusitada, mas reveladora: "alguém sabe onde fica isso?" Não houve tempo para as respostas porque o desembargador entrou na sala com uma impecável calça jeans azul e uma camisa xadrez de mangas compridas que não combinaria com nenhuma gravata. De boné. Quem teria escolhido aquela fantasia para inspeções judiciais?
O barulhento Toyota do Estado tomou a dianteira, não poderia ter sido diferente, era o único que sabia o caminho. Em seguida o luxuoso carro preto do Tribunal, com o motorista e o escrivão de paletó e gravata, o desembargador tinha esquecido de avisá-los para levar uma muda de roupa. Mais dois carros de luxo compunham a estranha caravana, o carro dos grileiros e o do Ministério Público.
Os pouco mais de trinta quilômetros de planície correram tranquilos, mas lentos, os carros de luxo, bem vedados e com ar condicionado não sofriam muito com a poeira levantada, mas não estavam feitos para aquela estrada. Quando começou a subida da serra os carros diminuíram ainda mais a marcha desviando de pedras e buracos. O sol já estava alto e a exuberância da floresta atlântica se apresentava em todo seu verde esplendor. Mais outros trinta quilômetros e a estrada que já vinha piorando praticamente terminou. Uma precária ponte atravessava um pequeno rio de águas cristalinas que formava duas pequenas cachoeiras e um remanso entre elas. À esquerda montanhas, à direita abismo. A vegetação beijava a água e, atravessada a ponte, a estrada se tornava uma picada. A caravana parou e todos desceram para confabular. O experiente motorista do Estado garantiu que o Toyota atravessaria a ponte e andaria pela trilha sem problemas, "é 4x4", disse orgulhoso. Era o único veículo que poderia continuar, nele iriam quatro passageiros aterrorizados, suados e apertados e um motorista feliz.
Ficou decidido, iriam o desembargador, o advogado dos grileiros, o representante do MP e, por parte do Estado, o engenheiro que, afinal, era o único que conhecia o lugar. O desembargador garantiu que não encerraria a inspeção sem a palavra do advogado público, pediu que todos esperassem. Pedido inútil, porque não havia alternativa. O advogado dos grileiros apertou um pouco mais o nó da gravata, a expressão de seu rosto era de derrota e cansaço, se pudesse desistir da causa teria desistido ali mesmo. O desembargador, seguramente arrependido da aventura, perguntou em quanto tempo chegariam à gleba, "pelas condições do caminho, meia hora, quarenta e cinco minutos" foi a resposta que ouviu do engenheiro que, na realidade, tampouco sabia muito bem onde era a gleba.
Dirigindo-se ao advogado público e ao escrivão, o desembargador alertou que em uma hora, hora e meia, mais ou menos, retomariam a audiência de inspeção naquele lugar. O grupo esperaria, claro que esperaria. Ninguém tinha trazido sequer um lanche, uma banana que fosse. Água tinha abundante, pura, fresca, cristalina. O advogado tinha um livro, mas não se animou a ler, foi o primeiro a tirar a roupa e testar a profundidade do remanso. A água, fria, descia diretamente da serra, borbulhante, era agradável e contrastava com o calor do sol. Um a um, como crianças, foram perdendo o medo e mergulhando, saltando, rindo, espantando o calor, o sufoco da gravata, o inusitado de uma quarta-feira de audiências judiciais. Era o paraíso. Flores, pássaros, água límpida, seixos rolados, vegetação, cheiro de floresta, de vida. Rindo alto e fazendo piadas os homens foram esquecendo o calor, a tarefa, a gleba. Ali estavam, na face leste da Serra do Mar, sob o sol e a floresta. E o mar, a distância, podia ser visto por entre árvores.
O representante do MP, sempre de gravata, olhava de lado como para conferir se realmente o advogado estava de cueca.
Todos tão absortos na água que não notaram que o Toyota voltou em menos tempo do que o aprazado. Ainda não tinham saído totalmente da água quando o desembargador, solene, reiniciou a audiência de inspeção, não olhava para o advogado público que, às pressas, subira para o seu lado, em cuecas, inteiramente molhado. Cada movimento que o advogado fazia respingava água no grande mapa, folhas 725 do grosso processo, aberto sobre o capô do carro oficial. O engenheiro várias vezes teve que se esconder para rir. O representante do MP, sempre de gravata, olhava de lado como para conferir se realmente o advogado estava de cueca. O advogado dos grileiros estava com uma cara mais alegre, pensava que afinal deveria ter algum artigo no regulamento que proibisse a participação de um advogado de cueca em audiência tão importante, era a chance de anular tudo isso e, quem sabe, ter uma sorte melhor com um novo desembargador. Alegaria a nudez do advogado público.
O desembargador foi rápido. Em cinco minutos, antes que o mapa se descompusesse pelos grossos pingos d'água, decidiu que a inspeção estava realizada e que cada parte ficava intimada a apresentar suas razões em quinze dias. Os motoristas dos três carros de luxo foram rápidos e, mesmo molhados, se enfiaram dentro das calças, camisas e paletós e deixaram o local com seus importantes passageiros. O Toyota do Estado demorou a sair não porque os funcionários quisessem esperar estar bem secos para se vestir, mas porque resolveram dar mais um mergulho. O engenheiro os acompanhou.
O estado ganhou a causa, a terra era pública. Tratava-se de uma evidente tentativa de grilo. O que prova que não é a vestimenta que faz o direito, mas o conteúdo e a retidão. Não importa que o Ministro julgue sem calças, desde que julgue bem!
Carlos Frederico Marés de Souza Filho, professor de Direito da PUC-PR, é escritor e associado da APRODAB e do IBAP.
* Publicado originalmente na Revista PUB - Diálogos Interdisciplinares (https://www.revista-pub.org/post/01112020)
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