O
Direito Achado no Ver-o-Peso: a luta das erveiras-do-ver-o-peso e a proteção de
seus conhecimentos tradicionais[1].
Renata
Carolina Corrêa Vieira[2]
Na célebre obra “O que é Direito” (LYRA FILHO,
1982), Roberto Lyra Filho problematiza o conceito do que é o Direito. Para uma
concepção monista, o Direito se traduz ao que é lei, ou seja, aquilo que é
produzido pelo Estado. Para os positivistas, apenas a norma produzida a partir
do aparato estatal é que possui validade, reconhecendo este ente como o único
legítimo a enunciar o que é direito. Segundo Lyra Filho, “a lei sempre emana do
Estado e permanece, em última análise, ligada à classe dominante, pois o
Estado, como sistema de órgãos que regem a sociedade politicamente organizada,
fica sob controle daqueles que comandam o processo econômico, na qualidade de
proprietários dos meios de produção” (LYRA FILHO, 1982, p. 3).
Assim, a lei não escapa de apresentar contradições.
Muitas das vezes representa, a partir de um repertório ideológico do Estado, um
antidireito, desprovido de qualquer validação social. Para o citado autor, o
verdadeiro direito seria aquele que não se aprisiona ao conjunto de normas
estatais, mas emerge a partir da sociedade civil, dos sujeitos coletivos de
direito.
É nesse contexto, que o trabalho político e teórico
de O Direito Achado na Rua consiste em “compreender e refletir sobre a atuação
jurídica dos novos movimentos sociais e, com base na análise das experiências
populares de criação do direito: 1. Determinar o espaço político no qual se desenvolvem
as práticas sociais que anunciam direitos, a partir mesmo de sua constituição
extralegal, como por exemplo, os direitos humanos; 2. Definir a natureza
jurídica do sujeito coletivo capaz de elaborar um projeto político de
transformação social e elaborar a sua representação teórica como sujeito
coletivo de direito; 3. Enquadrar os dados derivados destas práticas sociais
criadoras de direitos e estabelecer novas categorias jurídicas para estruturar
as relações solidárias de uma sociedade alternativa em que sejam superadas as
condições de espoliação e de opressão entre as pessoas e na qual o direito
possa realizar-se como um projeto de legítima organização social da liberdade”
(SOUSA JUNIOR, 2017, p. 147).
Para o direito Achado na Rua, partimos da clareza
política de que o direito para ser emancipatório passa, antes, por uma disputa
pela sua apropriação e pela sua realização. A conjuntura atual nos oferece
elementos que demonstram claramente que o próprio projeto de cidadania e
democracia, inaugurado a partir da promulgação da Constituição de 1988,
continua inacabado e interrompido.
Nesse sentido, José Geraldo de Sousa Junior
justifica a militância ativa de O Direito Achado na Rua, ao afirmar que:
A luta agora é
em favor da instauração plena da legalidade, sem, porém, que nos deixemos levar
por um formalismo inócuo, que resulte da perda de direitos fundamentais a tão
duras penas conquistados através de décadas. A atuação dos movimentos sociais e
outros sujeitos coletivos de direitos, neste momento, continua a mostrar-se
essencial para que a aplicação da Constituição não se volte contra o humanismo
pretendido no momento revolucionário de redemocratização no Brasil” (SOUSA
JUNIOR, 2017, p. 148).
O humanismo de O Direito Achado na Rua proposto por
Roberto Lyra Filho devolve ao direito, pela mediação dos direitos humanos, a
(re) construção de um espaço político que visa à formulação de um projeto de
sociedade recriado pelas lutas sociais por dignidade. (SOUSA JUNIOR, 2017). O
direito passa a ser, então, a partir de uma perspectiva emancipatória, como a
"enunciação dos princípios de uma legítima organização social da
liberdade” (SOUSA JUNIOR, 2017, p. 156).
A partir de um caso concreto, analisaremos as
categorias de O direito achado na rua, identificando o espaço político no qual se desenvolvem as práticas sociais que
enunciam direitos, delimitando o sujeito
coletivo capaz de elaborar um projeto político de transformação social e
elaborar a sua representação teórica como sujeito coletivo de direito, e, por fim,
enquadrando os dados derivados destas
práticas sociais criadoras de direitos e estabelecer novas categorias jurídicas
para estruturar as relações solidárias de uma sociedade alternativa em que
sejam superadas as condições de espoliação e de opressão vivenciadas.
A Feira do Ver-o-Peso, situada na cidade de
Belém/PA, é famosa por ser um reduto de encontro de saberes, ingredientes,
especiarias, mercadorias, frutos, peixes, músicas, cheiros dos mais diversos
povos tradicionais que habitam a região amazônica, especificamente, o estado do
Pará. Neste local etnodiverso, encontra-se viva a cultura local a partir das
trocas de experiências de feirantes, erveiras, pescadores, ribeirinhos,
indígenas, que intercambeiam seus saberes e promovem a cultura e a cena local
com visitantes que diariamente circulam por esse espaço.
Por volta de 2005, algumas feirantes do Ver-o-Peso relataram
à Comissão de Biodireito da OAB/PA que foram procuradas por uma equipe da empresa Natura, em 2003, para obter informações a respeito
de algumas ervas – breu-branco, cumaru e priprioca – utilizadas para a
fabricação de produtos de cheiro, vendidas no Mercado do Ver-o-Peso pelas
mesmas. Na ocasião em que foram abordadas, foi realizado um vídeo promocional
do Projeto Tamanduá que visava colher informações a respeito de cheiros e
fragrâncias que seria utilizado para o lançamento de um novo perfume da linha
de produtos Ekos (CORRÊA VIEIRA,
2008).
O vídeo, além de apresentar o Mercado do Ver-o-Peso
como um local que reunia toda a essência que eles buscavam (cheiros), demonstrava
que ali também estavam presentes os conhecimentos em volta desses recursos
naturais (cascas, raízes, folhas), enquanto o vídeo era gravado, as mulheres
falavam para o que cada parte da planta servia. Foram gravadas entrevistas, em
que as mulheres demonstravam as formas de manipulação das ervas que continham
as fragrâncias, que seriam mais tarde utilizadas na fabricação de perfumes. Na
ocasião, foi realizado apenas um contrato de voz e imagem com as erveiras, recebendo
cada uma o valor de R$ 500,00 (quinhentos reais) pelas entrevistas feitas[3].
Após o lançamento do vídeo, algumas feirantes
começaram a perceber que o valor da priprioca, matéria prima para elaboração de
seus produtos, encareceu e rareou no mercado, afetando diretamente a economia
local, o que depois foi identificado com
o fato de que a empresa passou a comprar tal produto direto da fonte produtora
local.
Diante de tal contexto de espoliação, as erveiras do
ver-o-peso passaram a reivindicar seus direitos de proteção ao seu conhecimento
tradicional. A disputa travada passou não apenas pela proteção de seus saberes,
mas também (e, principalmente) do próprio reconhecimento como sujeito coletivo
de direito, uma vez que dentro da categoria “povos tradicionais” sua condição
de feirantes situadas em feiras urbanas não se encaixariam dentro dos conceitos
clássicos do campesinato e de povos tradicionais, utilizados pelas ciências
sociais.
A existência de instrumentos internacionais que
protegem o conhecimento tradicional, como a Convenção 169 da OIT e a Convenção
de Diversidade Biológica, bem como a Medida Provisória Medida n.º
2.186-16/2001, vigente à época, asseguram uma mínima proteção ao detentor do
conhecimento tradicional, determinando que o acesso ao conhecimento tradicional
deve-se dar por meio de consentimento prévio livre e informado e mediante a repartição
de benefícios com os lucros gerados a partir do acesso ao conhecimento.
Porém, no caso das erveiras do ver-o-peso, a disputa
estava no próprio reconhecimento de sujeitos detentores do conhecimento
acessado, uma vez que a sua natureza urbana e difusa seriam óbices para o
reconhecimento da sua condição de povos tradicionais. A problemática em torno da definição do que
vem a constituir “povos tradicionais” é matéria amplamente debatida na
antropologia social, não havendo sequer uma definição da terminologia, que
varia desde “comunidades locais”, “populações tradicionais”, “povos
tradicionais”, etc. (MOREIRA, 2017).
O caso das erveiras-do-ver-o-peso é um claro exemplo
em que podemos situar as categorias do Direito Achado na Rua. Temos como espaço político, no qual se desenvolvem
as práticas sociais que enunciam direitos, a própria feira do Ver-o-Peso,
espaço este público (a rua), em que os sujeitos sociais interagem, a partir de
suas práticas e vivências sociais, enunciam seus direitos – tanto o de serem
reconhecidos como sujeitos coletivos de direitos, como o de proteção aos
conhecimentos tradicionais que transitam diariamente neste local. A
institucionalidade também se demonstra como um espaço político de enunciação
dos direitos dessa comunidade local. Foi após a representação à Comissão de
Biodireito da OAB/PA, que o caso chegou ao Ministério Público Federal, quando
houve a celebração de um termo de Ajustamento de Conduta entre a Natura e a
Associação VER-AS-ERVAS, que passou a representar o coletivo das erveiras do
ver-o-peso, garantindo o pagamento de multa pelo acesso indevido, bem como
repartição dos lucros auferidos a partir dos produtos lançados à base de
priprioca.
O sujeito coletivo capaz de elaborar um projeto
político de transformação social e elaborar a sua representação teórica como sujeito coletivo de direito se constata
a partir do coletivo de mulheres detentoras dos conhecimentos tradicionais que
se encontram no Mercado do Ver-o-Peso – denominadas erveiras-do-ver-o-peso -, considerada atualmente como sujeito detentor
de conhecimento tradicional. Diante de tal condição, a partir de suas práticas sociais criadoras de direitos, estabelecem
novas categorias jurídicas capazes de estruturar relações solidárias de uma
sociedade alternativa em que sejam superadas as condições de espoliação e de
opressão entre as pessoas e na qual o direito possa realizar-se como um projeto
de legítima organização social da liberdade.
Assim, concluímos a partir da análise deste caso que
as categorias jurídicas de O Direito Achado na Rua se revelam atuais e
paradigmáticas para a enunciação de um direito emancipatório. Nas palavras de
Roberto Lyra Filho, "o Direito não é; ele se faz nesse processo histórico
de libertação enquanto desvenda progressivamente os impedimentos da liberdade
não lesiva aos demais. Nasce na rua, no clamor dos espoliados e
oprimidos", até se consumar, vale repetir, pela mediação dos direitos
humanos, na “enunciação dos princípios de uma legítima organização social da
liberdade”. (SOUSA JUNIOR, 2017).
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
LYRA FILHO, Roberto. O
que é Direito. 11 ed. São Paulo: Brasiliense, 1982.
MOREIRA, Eliane
Cristina Pinto. A Proteção jurídica dos
conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade: entre a garantia do
direito e a efetividade das políticas públicas. Tese (Doutorado) –
Universidade Federal do Pará, Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, Programa de
Pós-Graduação em
Desenvolvimento
Sustentável do Trópico Úmido. Belém, 2006. 246 f.
CORREA VIEIRA, Renata
Carolina. Amazônia e o conhecimento
tradicional associado à biodiversidade: da ameaça ao reconhecimento do direito.
Principais entraves e avanços para a construção de um sistema jurídico de
proteção eficaz. 2008. Trabalho de
Conclusão de Curso (Monografia) – Curso de Direito, Universidade Federal do
Pará, PA, 2008.
SOUSA JUNIOR, José
Geraldo de. Concepção e Prática de O
Direito Achado na Rua: plataforma para um Direito Emancipatório. In:
Cadernos Ibero-Americanos. Direito Sanitário, Brasília, pgs. 145-158, abr./jun,
2017.
[1]Ensaio apresentado como requisito
avaliativo para o Módulo I “El Pluralismo
Juridico hallado em la calle”, ofertado pelo Professor José Geraldo de
Sousa Júnior, no curso “Pluralismo
Jurídico Igualitário e Descolonización”, do Instituto Internacional de
Derecho y Sociedad – IIDS.
[2] Mestranda em Direitos Humanos do
Programa de Pós Graduação em Direitos Humanos e Cidadania (PPGDH/UNB). Especialista
em Direito Ambiental (UNAMA) e Relações internacionais (Unb). Assessora
Jurídica no Tribunal Regional Federal da Primeira Região. Membro do grupo de pesquisa
O Direito Achado na Rua.
[3] Dados retirados do processo
administrativo 1.23.000.001252/2006-08 (MPF/PA) e no site do Ministério do Meio
Ambiente: www.mma.gov.br.