Escrevo no último dia de 2021. Com o horizonte aberto para as mobilizações do ano novo: bicentenário da independência enquanto ruptura com a metrópole; centenário da Semana de Arte Moderna; centenário de Darcy Ribeiro; 90 anos do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova e ainda vibrando o centenário de Paulo Freire, para os augúrios das eleições que fecharão 2022. Mas o ano começa como diz o samba “com um gosto mau de cabo velho de colher de pau” (Samba de Fato, de Pixinguinha/Baiano). Como é que num país com tanto para celebrar, 2021 entra em 2022, com resíduos do esgarçamento democrático, com contas velhas a pagar.
O gosto ruim e o odor, aliás recentemente mal citado, vem principalmente da estrutura do sistema de justiça. Ali onde são muitas as expressões de juízes íntegros, mas onde se projeta com má fama, internacionalmente, maus juízes.
Por isso o título acima que devo-o, em parte, a Anatole France, prêmio Nobel de literatura de 1921, um dos fundadores da Liga dos Direitos do Homem, notável escritor que tratou frequentemente o tema da Justiça e da condição do jurista.
Num texto com o mesmo título ele traduz a impressão retida da observação de um quadro de Mabuse (Jan Gossaert), talvez a mesma que se possa perceber na pintura de van Eyck (o Políptico de Gantes), em que são figurados também os juízes íntegros, tal como são conhecidos. De sua observação, diz Anatole, pode-se concluir ter o mestre dado aos dois juízes o mesmo ar grave de doçura e de serenidade. Mas, vistos os detalhes que caracterizam um e outro, pode-se ver que eles, no entanto, são diferentes, na índole e na doutrina. Um traz na mão um papel e aponta o texto com o dedo; o outro ergue a mão com mais benevolência do que autoridade, como que a liberar um pensamento prudente e sutil. São íntegros os dois, conclui o escritor, mas é visível que o primeiro se apega à letra, o segundo ao espírito.
Em outro texto sobre esse tema (A Lei é Morta, o Juiz é Vivo), alinha parêmias do célebre magistrado Magnaud, erigido, na doutrina e na literatura (Victor Hugo, em Os Miseráveis), em expressão de aplicação equitativa do Direito, com a fórmula “decidir como o bom juiz Magnaud”, conforme ensina Carlos Maximiliano.
O chamamento que faz Anatole France ao juiz vivo, para se posicionar ativamente em face da lei morta: “A bem dizer, eu não teria muito receio das más leis, se elas fossem aplicadas por bons juízes. Dizem que a lei é inflexível. Não creio. Não há texto que não se deixe solicitar. A lei é morta. O magistrado é vivo; é uma grande vantagem que leva sobre ela. Infelizmente não faz uso disso com frequência. Via de regra, faz-se mais morto, mais frio, mais insensível do que o próprio texto que aplica. Não é humano: é implacável. O espírito de casta sufoca nele toda simpatia humana. E vejam que só estou falando dos magistrados honestos.”
Dos bons juízes se espera como adverte Jean Cruet, no livrinho paradigmático publicado em 1908 (A Vida do Direito e a Inutilidade da Lei), que ousem “sair fora dos textos, para compreender o mundo social em toda a sua extensão, em toda a sua complexidade e em todo o seu movimento”.
Não se trata de desconsiderar os textos legislativos, mas de compreender que a rigidez das fórmulas em que se expressam não dispensa uma mediação que recupere “o aspecto verdadeiro das coisas”, de modo a desvendar o direito que se revela “na sociedade organizando-se por si própria”.
Trata-se de confrontar a injustiça que gera desigualdade e indignidade, pois como indica o Papa Francisco, saudação aos juízes que participam do Primeiro Encontro virtual dos Comitês para os Direitos Sociais da África e da América: “quando a justiça é verdadeiramente justa, aquela justiça torna os países felizes e seus povos dignos. Nenhuma sentença pode ser justa, nenhuma lei é legítima se o que geram é mais desigualdade, se o que geram é mais perda de direitos, indignidade ou violência” (https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2020-11/papa-francisco-juizes-africa-america-sentencas.html).
Em muito importante designar a estirpe de juízes que, na sua judicatura provincial – Floriano Cavalcanti de Albuquerque; ou no Supremo Tribunal Federal – Victor Nunes Leal e Evandro Lins e Silva, entre eles – souberam exercitar a compreensão plena do ato de julgar, rejeitando a falsa oposição entre o político e o jurídico, ao entendimento de que, para se realizar, “a justiça não deve encontrar o empecilho da lei”. Provedores de uma justiça poética é esta estirpe de juízes que, lembra Josaphat Marinho em discurso de homenagem a Víctor Nunes Leal na UnB, citando Aliomar Baleeiro, leva a jurisprudência do Supremo a andar pelas ruas porque, “quando anda pelas ruas, colhe melhor a vida nos seus contrastes e se prolonga pela clarividência da observação reduzida a aresto” (http://estadodedireito.com.br/desembargador-floriano-cavalcanti-de-albuquerque-e-sua-brilhante-trajetoria-de-vida/).
Essa estirpe, que olha para a Justiça sem se descolar arbitrariamente dos parâmetros do Direito, é tão necessária quanto mais para acentuar os maus juízes. Aquela espécie que Lutero caracterizava como “triste e pobre coisa”. Que deixam de ser agentes da cidadania e da justiça e se tornam justiceiros. Não seguem o Direito, querem fazer justiça pelas próprias mãos. Não promovem a dignidade garantista do devido processo legal, lincham. E vão amealhando moedas com isso (cf. o meu artigo Entre Os Maus, Quando Se Juntam, Há Uma Conspiração. Não São Amigos, Mas Cúmplices, in Relações Indecentes [recurso eletrônico] / organização Camila Milek, Ana Júlia Ribeiro; coordenação Mírian Gonçalves, Wilson Ramos Filho, Maria Inês Nassif, Hugo Melo Filho; 1ª edição – São Paulo: Tirant Lo Blanch /Instituto Defesa da Classe Trabalhadora, 2020, 190 p. Links para acesso gratuito: https://editorial.tirant.com/br/libro/relacoes-indecentes-E000020005394;https://bit.ly/DownloadRelacoesIndecentes).
Agora ao final de 2021, a pedido do Ministério Público junto ao TCU, o Tribunal de Contas da União investiga conflito de interesses do ex-juiz Sergio Moro, que se tornou sócio-diretor da Alvarez & Marsal, empresa que faz a administração da recuperação judicial da Odebrecht. O requerimento foi feito pelo subprocurador-Geral Lucas Rocha Furtado, meu estimado e íntegro colega de Congregação na Faculdade de Direito da UnB. Outro pedido que está sendo analisado pelo tribunal é a suspensão de pagamentos da construtora à consultoria, até que o mérito da questão seja avaliado (https://www.conjur.com.br/2021-fev-26/tcu-investiga-moro-socio-administradora-judicial-odebrecht). Também como noticia o Jornal Folha de São Paulo, ex-juiz diz que “a lava a jato combateu o PT de forma eficaz” (https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/12/moro-diz-que-lava-jato-combateu-pt-de-forma-eficaz-mas-recua.shtml).
Como o mau juiz deixa ranço, aquele gosto amargo de cabo velho de colher de pau, muito antes da decepção geral que seu mister provocou, principalmente depois das revelações do Intercept Brasil, desde 2019, quando a mitificação disfarçava o mal odor, Boaventura de Sousa Santos predizia: “A credibilidade do Sistema Judiciário não se recupera enquanto Sergio Moro e Deltan Dallagnol não forem punidos exemplarmente” (Da Expansão Judicial à Decadência de um Modelo de Justiça. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al, Orgs. O Direito Achado na Rua volume 10: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade. Brasília: Editora da UnB/Editora da OAB Nacional, 2021).
2022 está aí para purgar esse resíduo prorrogado de 2021.
(*) Por José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)
José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.
Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.
Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).
quarta-feira, 29 de dezembro de 2021
Rondas Campesinas. Principios de Organización y Trabajo.
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Rondas Campesinas. Principios de Organización y Trabajo. Oscar Sanchez Ruiz. Chiclayo, Peru: Ediciones e Impressiones Frías/Grupo Cultural Wayrak/Colección Bicentenario, 2021, 64 p.
Pelas mãos de Andréa Brasil e de Shyrley Aymara, ao regresso de visita técnica a Puno, às margens do Titicaca, em intercâmbio com o Instituto de Interculturalidad de Puno (https://www.youtube.com/watch?v=1qA-Q4_UEN0), recebi o livro objeto deste Lido para Você, com uma dedicatória amigável de Santos Saavedra Vasquez, Presidente da CUNARC (Central Única Nacional de Rondas Campesinas y Urbanas) del Perú: “Hermano professor Jose Geraldo lo saluda la Central Única Nacional de Rondas Campesinas del Perú, asismismo felicitar su aporte de la defensa de los derechos de los pueblos indígenas. Muchos êxitos em la lucha. Perú, 20 noviembre del 2021. Atentatemente”.
Eu conheci Santos, em Lima, numa de minhas participações, desde 1990, em Programas concebidos e desenvolvidos pelo Instituto Internacional Derecho y Sociedad, de Lima, dirigido pela professora Raquel Yrigoyen Fajardo, voltados para a formação em direito internacional interdisciplinar e intercultural, proteção internacional dos direitos de povos indígenas e litígio estratégico.
Também, mais recentemente, dezembro de 2021, a edição concluída, da segunda versão, com o tema geral Monitoreo Internacional de los Derechos Humanos de los Pueblos Indígenas: Derechos Territoriales y Consulta Previa em Tiempos de Pandemia, no qual, ainda com o objetivo de contribuir para a formação de uma rede de monitoramento regional (sistema OEA – Comissão Interamericana de Direitos Humanos), me incumbi, por designação de Raquel e de Soraya Yrigoyen Fajardo, de oferecer a fala de clausura (https://www.youtube.com/watch?v=rAV0LdyeCR8).
Uma nota designativa desses cursos e da concepção que os organiza, está a diretriz conceitual elaborada por Raquel Yrigoyen Fajardo, no sentido de que o Curso se desdobre do mandato de capacitação e de assessoria jurídica, em sede de litígio estratégico em direitos humanos e em direitos indígenas, em apoio aos povos tradicionais originários indígenas do Peru, e aos camponeses, principalmente das Rondas Campesinas titulares da construção político-jurídica de autonomia na gestão administrativa e de acesso à justiça, partir de seus territórios de produção e de existência.
E que, na “linha desse acumulado se ponha em relevo a série de Cursos (plataforma digital) ‘Sistemas Jurídicos Indígenas, Pluralismo Jurídico Igualitário e Descolonização’, cujos objetivos têm sido promover o respeito efetivo aos direitos humanos dos povos indígenas a seus sistemas jurídicos próprios (instituições, normas e funções jurisdicionais) e promover um diálogo intercultural e relações de coordenação igualitária entre sistemas jurídicos, desde um enfoque descolonizador e despatriarcalizador. O fundamento que orienta os respectivos programas é o de que os povos originários têm ancestralmente seus próprios sistemas jurídicos” (http://estadodedireito.com.br/memoria-del-i-curso-internacional-interdisciplinario-e-intercultural-proteccion-internacional-de-los-derechos-humanos-de-pueblos-indigenas/).
Conforme expõe Raquel Yrigoyen Fajardo, diretora do IIDS, que concebe e projeta esses cursos, “desde a invasão, os colonizadores buscam anular, reduzir ou subordinar a autoridade indígena, para facilitar a expropriação de seus recursos e impor-lhes o seus valores. Não obstante isso, os sistemas jurídicos indígenas têm resistido e se recriado para enfrentar problemas contemporâneos. Desde há uma três décadas, o direito internacional e o constitucionalismo pluralista reconhecem os direitos dos povos indígenas a sua identidade, territórios, ao controle de suas instituições, formas de vida e a seus sistemas jurídicos, incluindo funções jurisdicionais. Isso tem permitido passar do paradigma do monismo jurídico ao do pluralismo jurídico igualitário”. (sobre esses fundamentos cf. YRIGOYEN FAJARDO, Raquel. Qué es el Pluralismo Jurídico Igualitário?;. Revista Alertanet 2017 Em Litígio Estratégico y Formatión em Derechos Indígenas. IIDS – Instituto Internacional Derecho y Sociedad. Lima: IIDS/IILS, año 2, nº 1. 140, marzo 2017, p. 10-17).
Para ela, “Apesar dos avanços referidos, na região, segue-se desconhecendo efeitos jurídicos às decisões indígenas e continua-se a criminalizar as práticas consentidas dos sistemas jurídicos indígenas, seus usos culturais e o exercício de sua autoridade em seus territórios, especialmente quando a justiça indígena intervêm em casos graves ou relacionados a terceiros e a corporações. Daí a necessidade de um Curso que promova a troca de saberes; que difunda os avanços normativos e anime uma reflexão sobre como encarar os possíveis conflitos entre o direito indígena e os direitos humanos, desde uma perspectiva intercultural e descolonizadora”.
Raquel Yrigoyen, que já inscrevera em sua concepção a tese de um constitucionalismo plurinacional, tem avançado fortemente, desde seu diálogo com as cosmogonias e cosmovisões dos povos ancestrais, em direção a um constitucionalismo ecológico ou eco-constitucionalismo (cf. O Direito à Alimentação como um Direito Humano Coletivo dos Povos Indígenas. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al, organizadores. O Direito Achado na Rua – volume 10. Introdução Crítica ao Direito como Liberdade. Brasília: Editora OAB/Editora UnB, 2021), sem contudo abdicar de suas teses originais sobre o pluralismo jurídico.
Ainda que nessa passagem o foco da leitura do pluralismo jurídico, desde a leitura de Raquel Yrigoyen, compreendido propriamente como pluralismo jurídico igualitário (consulte-se entre outros estudos, os escritos fundamentais com aberturas inéditas para a aplicação dessa categoria, de Boaventura de Sousa Santos – sempre presente nas atividades do IIDS -, até o mais recente de Antonio Carlos Wolkmer e de Maria de Fatima S. Wolkmer, Horizontes Contemporâneos do Direito na América Latina. Pluralismo, Buen Vivir, Bens Comuns e Princípio do ‘Comum’. Criciúma, SC: UNESC, 2020), se dirija aos povos indígenas e originários, essa acepção, orientada “por uma racionalidade jurídica diferente”, alcança também os ronderos campesinos, em enfoque autoral bem conhecido:
Outro claro ejemplo de racionalidade jurídica diferente, resulta em palavras de Raquel Yrigoyen, la de las Rondas Campesinas, que si bien nacen em uma primera etapa, como respuesta a uma demanda de seguridade, frente al robô y el abigeato se traduce finalmente, em prácticas sociales de auto administración de justicia (SONZA, Bettina. El outro Derecho ‘Rondas Campesinas’ em la Selva y Sierra Peruana. In ETHOS. Boletin de Antropologia Juridica, ano 2 – número 4. Lima: Universidad de Lima/Facultad de Ciencias Humanas/Facultad de Drecho y Ciencias Políticas/Centro de Investigación Jurídica, 1993).
Até porque, no Perú, notadamente, a força protagonista das Rondas Campesinas logrou configurar em formato de proposta constitucional, o reconhecimento da capacidade das comunidades campesinas, nativas y rondas campesinas para ejercer jurisdicción de acuerdo a suscostumbres.
O livro Rondas Capesinas trata de todos esses temas relevantes, desde seu prólogo e introducción, histórico-político, até formar um arco altamente informativo para ativistas e pesquisadores: I. Transcendencia histórica de las Rondas; II. Benefícios de las Rondas; III. Nuevo modelo de organización; IV. Cómo surgió la Ronda?; V. Por qué surgieron las Rondas?; VI. Qué son las Rondas?; VII. Fines y objetivos; VIII. Princípios de organización; IX. Carácter de las Rondas; X. Mandamientos del rondero; XI. Cualidades del buen dirigente; XII. Justicia rondera; XIII. Fundamentos legales; XIV. Programa Reivindicativo; XV. Tareas de las Rondas; XVI. Slogans y símbolos.
Shyrley Tatiana Peña Aymara que com Andréa Brasil me regalou com o livro, está cumprindo um programa doutoral aqui na Universidade de Brasília, na Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, sob minha orientação, no marco da concepção pluralista de O Direito Achado na Rua.
Há poucos meses, sendo como é, da base política do recém presidente eleito, “rondero, campesino y maestro, Pedro Castillo Terrones”. Presente na cerimônia da posse, na popular Juramentación Simbólica en la Pampa de la Quinua en Ayacucho, região andina ao sul do Perú profundo, enviou um despacho para seus colegas de grupo de Pesquisa (http://odireitoachadonarua.blogspot.com/search?q=shyrley): CARTA DESDE LA PAMPA DE LA QUINUA PARA MIS COMPAÑERXS DEL “DERECHO HALLADO EN LA CALLE”.
Na Carta ela relata a emoção: “Dentro de la muchedumbre el pueblo gritaba: ‘Al fin tenemos presidente’ y: “por fin alguien que nos representa ha vencido al monstruo que quería que asumamos que esta victoria había sido producto de un fraude”, e constata:
Por ello y más, las rondas campesinas, líderes y lideresas de organizaciones populares, pueblos indígenas, mujeres, trabajadores, jóvenes, afrodescendientes, sindicatos, gremios, partidos políticos, etc. tuvieron que llegar hasta Lima para defender su voto y no permitir que las atrocidades disfrazadas en “legalidad” puedan vencer la voluntad popular. El día 19 de julio, nos congregamos con esos grupos que hace semanas estaban acampando frente al JNE. Estaban poniendo el cuerpo y el alma de manera autogestionada para rescatar la pobre y enclenque democracia que aún nos queda.
Al son de huaynos peruanos, zapateos democráticos, música en quechua, música rebelde y nuestros temas más originarios, celebrábamos esa noche en un lugar abierto al aire libre. Por un momento, olvidamos que vivíamos en una pandemia que había causado tanta desolación y desigualdad, principalmente para los más desposeídos históricamente. Este escenario se vestía de esperanza, pero también de muchos desafíos, pues tener nuestro primer gobierno de izquierda democráticamente elegido se mostraba como un gran hecho histórico y solo la historia, y nada más que ella nos demostrará el camino de sostenerlo.
Em artigo para o Portal da Universidade de Brasília (https://noticias.unb.br/artigos-main/5138-memorias-do-bicentenario-peruano-no-juramento-simbolico-do-presidente-pedro-castillo-terrones-em-ayacucho) – Memórias do Bicentenário peruano no Juramento Simbólico do Presidente Pedro Castillo Terrones em Ayacucho, a mesma Shyrley, mesmo considerando todas as dificuldades que o novo governo vai enfrentar, não deixa de esboçar uma esperança legítima que vem com a tremenda mobilização de todo o Perú profundo, território das Rondas Campesinas: “Diante disso, um homem como Pedro Castilho, que usa um chapéu da sua cultura originária, marca um precedente que leva muitas expectativas de mudança. Porém, a construção de um Peru sem desigualdade, racismo, homofobia e misoginia vai ser um projeto que deverá ser defendido por aqueles que acreditam em mudanças reais com projeção ao futuro. Sabemos que temos que aproveitar esse momento histórico e nos fortalecer com as energias de tantos peruanos patriotas que morreram em Pampa da Quinua por causa de uma pauta poderosíssima: emancipação e não só independência”.
De toda forma, no plano investigativo, todo esse percurso alimenta o interesse e a disponibilidade de Shyrley Aymara para acrescentar aos estudos sobre os protagonismos que se dão hoje na América ao sul do Rio Grande, e a avaliar sua pertinência política nos processos de transformação em curso nos países em luta por descolonização. Seu projeto de tese: AS FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DAS RONDAS CAMPESINAS EM CAJAMARCA (PERU) E AS RONDAS COMUNITARIAS EM CHERÁN (MÉXICO): CAMINHOS PARA DESCOLONIZAÇÃO DO DIREITO NA AMÉRICA LATINA, abre perspectivas para essa disposição.
A viagem de Shyrley a Puno e o seu encontro com os ronderos, constatam a força desse movimento emancipatório, tal como está no livro de Oscar Sanchez Ruiz – Rondas Campesinas. Principios de Organización y Trabajo. Um tanto ao estilo de manual de uso, a sua dupla condição de intelectual e de antigo presidente da Federação Departamental de Rondas Campesinas de Cajamarca, história e processo político são estudados enquanto um fenômeno singular, importante para os estudos sobre esse tema, mas há destaque para “um aspecto que muy pocos investigadores han advertido y estudiado: los princípios de organización estabelecidos em la primeira reunión histórica de las rondas de Cuyumalca (29 de enero de 1977) assumidos comio las líneas matrices del acionar ronderil, cuyo desarrollo práctico permitió la fortaleza de las rondas campesinas, su autonomia e independencia respecto de organismos estatales, a pesar de que los sucessivos governos primero pretendieron desconocerlas y perseguir a sus dirigentes, luego crear organizaciones paralelas, someterlas a control policial y militar, o convertirlas em apêndices del gobierno”, sem que esse cerco tenha logrado desviá-las de seus princípios de fundação.
Responsável direto pela aproximação não só minha mas de minhas queridas colegas de coletivo de pesquisa Andréa Brasil e Shyrley Aymara, meu dileto amigo Hernan Layme Yepez, juiz de direito em Puno no altiplano andino peruano e que conheci em Lima nas Jornadas do I Curso Internacional, Interdisciplinario e Intercultural – Protección Internacional de los Derechos Humanos de los Pueblos Indígenas Derechos Territoriales y Consulta Previa, organizado por IIDS-Instituto Internacional Derecho y Sociedad (Raquel Yrigoyen), nos havia convidado para participar da grande assembleia das rondas campesinas do altiplano, e da cerimônia de consulta a pachamama para a realização dos eventos, afinal adiado por conta da pandemia.
Hernan Layme Yepez, fiel a sua ancestralidade indígena, é um ativista na objeção à visão eurocentrada, pós-colonial do direito internacional e constitucional, repercutindo a mesma unidade de vida, (diz Hernan:
“La muerte no existe en nuestra cultura. Nuestros seres queridos viven con nosotros en cada instante. La cosmovisión andina ha generado saberes de derrotabilidad de la muerte, una cultura de respeto a la vida, armonía del cosmos. Vida-muerte-vida, una unidad dialéctica. ‘Así nomás nos iremos, así nomás volveremos’”).
Hernan aponta, pois, para um outro humanismo:
“Hasta cuándo TC, TC, TC… debemos soportarte?. Cómo puede impartirse justicia sin conocer el Perú profundo?. Deben viajar, sesionar en una comunidad campesina, nativa, ronda. La corrida de toros y la pelea de gallos son imposiciones culturales crueles de occidente y Asia, asimilados por los criollos peruanos; primero fueron explotados, torturados y asesinados nuestros ancestros; y, luego siguieron los animales inocentes. En nuestra cultura, en nuestros pueblos, no existe más que amor en la crianza de los animales, por eso le ponen sus nombres “Pepito”, “Panchito”, “Marianito”; son un integrante más de la familia y si los van a vender, le piden que los cuiden; y si les van a sacrificar le piden permiso con una quintuska (hojas de coca y vino), saben quiénes son los padres, pueden adivinar en sus rostros de que padecen. Los hacen “casar” a los ovinos para mayor reproduccion. Y aun, al zorro le tienen respeto, y le dicen: “Tiula” (de tío), le designan al mejor animalito para que se vaya a otro lugar y el zorro entiende y se va -vivencias contadas de los ronderos, el Arariwa; dicen: “ellos también tienen hambre, frío, tienen crías que alimentar, hay que hablarles, ellos entienden, si le odias es peor”-. Qué hermosa es nuestra cultura, no de fiesta de la sangre, de la crueldad, no de una cultura de la muerte. Se debe ir a las instancias internacionales”.
Sobre a possibilidade desse encontro com ronderos, Hernan justifica as suas razões que fazemos nossas: “Me siento inmerecidamente mencionado, solo soy un juez que vivo de cerca de los comuneros, ronderos. Sin escucharlos no podría saber qué pasa en sus mundos. He querido escribir sobre ellos, pero tengo temor de traicionar su confianza”.
Por isso é tão importante oferecer o livro nesse momento. Com o Autor Oscar Sanchez Ruiz, nos damos conta de que a obra “sintetiza históricas reivindicaciónes andinas: es uma original experiência y contribución a la edificación de um estado plurinacional, democrático, representativo, de todas las voces y todas las sangres”.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
sexta-feira, 24 de dezembro de 2021
Honestino Guimarães: Reparação de Projeto de Vida
por José Geraldo de Sousa Juniorem
Acaba de vencer as eleições presidenciais no Chile Gabriel Boric, com uma plataforma antineoliberal construída no diálogo com os movimentos sociais, sua origem, forjada no movimento estudantil. Seu discurso de vitória é um chamado para um programa concertado até com adversários, em torno de núcleo irredutível de compromisso com o atendimento às necessidades do povo.
Nesse chamamento, destaca-se o limite ético de eventual arco de aliança. Nas palavras do novo presidente, conforme a advertência de “que desestabilizar as instituições democráticas conduz diretamente ao reino do abuso, à lei da selva, e ao sofrimento e desamparo dos mais vulneráveis. Vamos cuidar da democracia, cada dia, todos os dias. Que os avanços, para ser sólidos, requerem ser frutos de acordos amplos. E que para durar, devem ser sempre degrau a degrau, gradualmente, para não desmoronar nem arriscar o que cada família tenha alcançado com seu esforço. Que o respeito aos direitos humanos, sempre e em todo lugar deve ser um compromisso que não claudique nunca e por nenhum motivo, um presidente deve declarar guerra a seu próprio povo. Verdade, justiça e não repetição…”.
Ponho em relevo esse trecho do discurso, não só porque ele é a síntese de uma manifestação que faz prosseguir no contexto da América Latina, a viragem da redemocratização, como ele é pedagógico, no sentido de acentuar os requisitos que na luta por valores que elevam a democracia de forma de governo a modo de projeto de sociedade, conforme a lição da Professora Marilena Chauí (https://www.youtube.com/watch?v=GJE8TZEkns8).
Afirmo esses princípios há muito tempo. Em artigo (Revista do Sindjus Agosto/Setembro de 2007 • Nº 42: Memória e Verdade como Direitos Humanos), escrito em seguida a um seminário nacional “Pela memória e verdade como Direitos Humanos”, realizado em Brasília, na UnB, afirmei, a partir de mesa na qual fui expositor – “Direito à Memória e à Verdade” que esta consigna não é uma novidade na luta pela inserção da verdade na política e traduz um consenso axiológico transformado em princípio para orientar a ação dos povos que formam o continente americano.
Lembrei, com efeito, resultado de debates no âmbito do Mercosul, o tema memória e verdade levou a OEA (Organização dos Estados Americanos) a adotar resolução (2006) que reconhece a importância de respeitar e garantir o direito à verdade para contribuir com o fim da impunidade e proteger os Direitos Humanos. Ela indica que os Estados devem, em “seus sistemas jurídicos internos, preservar os arquivos e outras provas relativas a violações”.
Todas essas referências trazem luz para a importância de decisão adotada pela Câmara Legislativa do Distrito Federal que aprovou, recentemente, um projeto que faz justiça histórica: a ponte Costa e Silva se torna ponte Honestino Guimarães. Iniciativa dos deputados Ricardo Vale e Leandro Grass, impulsionada por fortes manifestações de segmentos sempre mobilizados da Sociedade Civil, a aprovação da lei representa, nas palavras do Deputado Distrital Fábio Félix, que foi coordenador do Diretório Central de Estudantes Honestino Guimarães da UnB a “vitória da verdade, do direito à memória, da justiça e da luta da família do Honestino e de tantas outras que nunca puderam enterrar seus entes queridos, executados pela Ditadura”.
Agora, na contracorrente das mobilizações inscritas nos fundamentos da justiça de transição e de iniciativas que buscam atender aos princípios cogentes do direito internacional dos direitos humanos (o Conselho Universitário da UFRJ acaba da anular a concessão de título de doutor honoris causa a um fautor da ditadura), mesmo cumpridos todos os requisitos indicados pelos órgãos de instrução do processo legislativo, o Governador do Distrito Federal entendeu por VETAR o projeto de lei alegando na mensagem enviada à CLDF que o projeto “não reflete a formalidade que se espera da norma”, dizendo ainda, que o “momento histórico não pode ser esquecido“.
O “não esquecimento” é o pressuposto para o “nunca mais”. Uma lição que a ausência às classes de estudos políticos sobre conceitos de democracia e de teoria do Direito, sobre concepção de direitos fundamentais convencionais e também constitucionais, pode não ter sido aprendida. Mas é igualmente uma demonstração de rendição apequenadora (a estilo de guarda de quarteirão, conforme a advertência de Pedro Aleixo quando o texto do AI-5 foi colocado à assinatura dos ministros, entre eles aquele que “mandou às favas os escrúpulos”), aos autoritarismos renitentes naquilo que Umberto Eco denominou de fascismo eterno”.
Agora é com o social. Como está acontecendo na América Latina e nesta semana, no Chile. Mobilizar-se democraticamente para que o veto seja derrubado pela Casa Legislativa e que o direito à verdade e à memória sejam restituídos, conforme já decidido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, decidindo pela restauração da dignidade inscrita em projetos de vida.
(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)
José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.
Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.
Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
O Direito de Escuta das Partes Processuais. Gabriela Jardon Guimarães de Faria. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, do CEAM – Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares. Brasília: Universidade de Brasília, 2021, 218 p.
Chegamos ao final do ano de 2021 e no meu ofício de orientador pude colocar em debate, para defesa, essa bela dissertação desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, da Universidade de Brasília.
A autora, Gabriela Jardon, é uma destacada magistrada do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, mas traz o lastro de excelente percurso acadêmico, no Reino Unido, onde obteve seu primeiro Master in Law (LLM) em International Human Rights Law, na Universidade de Essex, Inglaterra, mergulhando no mundo da teoria tradicional dos Direitos Humanos, com sua visão norte-global de tratados e convenções internacionais.
Por conta desse primeiro mestrado, e com os acréscimos de sua consistente formação, ela já foi admitida para o doutoramento no CES – Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, em programa fundado por Boaventura de Sousa Santos, diretor emérito do Centro.
No PPGDH, pela configuração da linha de pesquisa a que se vincula, a compreensão dos direitos humanos, de resto, assumida na tese, está mais carregada de historicidade, no sentido da materialidade que os constitui, ou antes, que os institui, conforme os fundamentos e fontes que adota para os designar.
Assim, conforme antecipa o resumo:
“estudo busca arregimentar uma base teórica para o que nomeia de direito da escuta das partes processuais, isto é, o direito das partes processuais de serem escutadas, antes dos julgamentos, pelos juízes e juízas responsáveis por suas ações judiciais. Inicia expondo e debatendo o que pesquisas empíricas sobre a satisfação do jurisdicionado com os serviços judiciários. Assumindo, no entanto, pela experiência pessoal da autora, que juízes e juízas tendem a não escutar as partes processuais ao longo das tramitações processuais, a não ser que o depoimento das mesmas tenha carga probatória, debate os Direitos Humanos, o Acesso à Justiça e o Direito Achado na Rua como possíveis molduras teóricas que alicerçariam o propugnado direito de escutas das partes processuais. Prossegue abordando o incremento em termos de democracia, humanismo e justiça que a escuta das partes processuais poderia aportar aos processos e à jurisdição como um todo. Traz, por fim, a importância da escuta para o humano, as aberturas processuais que permitem o reconhecimento e prática do direito de escuta das partes, esmiuçando de que escuta se está falando e como ela se viabilizaria na prática”.
Nesses termos se travou o diálogo com Banca Examinadora, que presidi, na qualidade de orientador, embora destituído, na forma regulamentar, da capacidade da competência de julgar, tarefa que foi atribuída aos membros, Professora Daniela Marques de Moraes, da Faculdade de Direito da UnB, Professora Bistra Stefanova Apostolova, também da Faculdade de Direito da UnB e Professor Antonio Sergio Escrivão Filho, membro externo (IESB/DF), no momento da constituição da banca, mas antes que instalada a banca, docente nomeado para ter exercício igualmente na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. A defesa, na sua integralidade e riqueza de interlocução, pode ser conferida no Canal YouTube de O Direito Achado na Rua (https://www.youtube.com/watch?v=RTz7NpTo9UA):
Mas a moldura do debate pode ser logo depreendida do sugestivo Sumário que organiza o roteiro da Dissertação. Abrindo com uma Introdução, na verdade, uma afirmação de pontos de partida, a Mestranda assinala os termos do trabalho:
De onde falo; De que falo; Quando falo; Como pretendo falar; mediante Notas e ressalvas.
Segue-se:
O Embarque: A (In)satisfação da população com o poder judiciário.
1.1 ICJBRASIL/FGV (2021;
1.2 ESTUDO DA IMAGEM DO JUDICIÁRIO BRASILEIRO AMB/FGV/IPESPE
(2019;
1.3 JUSBARÔMETRO DE SÃO PAULO – APAMAGIS/IPESPE (2021)
1.4 O JUDICIÁRIO SEGUNDO OS BRASILEIROS/FGV (2009)
1.5 CONCLUSÃO
2 OS TRILHOS: OS DIREITOS HUMANOS, O ACESSO À JUSTIÇA E O DIREITO ACHADO NA RUA
2.1 OS DIREITOS HUMANOS
2.2 O ACESSO À JUSTIÇA
2.3 O DIREITO ACHADO NA RUA
2.3.1 “O direito achado na sala de audiência” – o direito de escuta das partes
na moldura do Direito Achado na Rua
2.4 CONCLUSÃO
3 OS DESEMBARQUES: A DEMOCRACIA, O HUMANISMO, A
JUSTIÇA
3.1 A DEMOCRACIA
3.2 O HUMANISMO
3.3 A JUSTIÇA
3.3.1 O direito de escuta das partes como uma exigência de justiça
4 O PERCURSO: O DIREITO DE ESCUTA DAS PARTES PROCESSUAIS
4.1 PELA FORÇA-MOTRIZ DA ESCUTA
4.1.1 Por que os juízes e as juízas tendem a não escutar?
4.1.2 O novo juiz e a nova juíza
4.1.3 O direito de escuta das partes – manual de uso
4.2 PELA FORÇA-MOTRIZ PROCESSO
4.2.1 O princípio da colaboração/cooperação
4.2.2 E a imparcialidade, como fica?
4.2.3 Oralidade e escritalidade
4.2.4 É possível mas agora não
Seguem-se a Conclusão e as Referências Bibliográficas.
É um forte conteúdo, entretanto, embalado com a sutileza, a elegância e o ritmo que a escrita marcantemente literária da Mestranda permite, atributos logo distinguidos pelos examinadores e muito especialmente pela Professora Bistra Apostova, indicando, a seu gosto, a disponibilidade da cognição para se deixar enredar no arranjo argumentativo e convincente da Autora, desde uma condução, de saída, em primeira pessoa.
Claro que para mim, não havia surpresa. A experiência de orientação descortinara esse talento e seu estilo, o que levara a exibi-lo, bem antes, em seu estrito sentido literário ao ler trabalho de crônica da Autora. Assim, nesta Coluna Lido para Você – http://estadodedireito.com.br/retratofalado/ – quando trouxe para os leitores a obra Retratofalado. Ensaios em Estado de Imagem. Textos Danielle Martins, Gabriela Jardon, Mariana Carvalho. Fotografias Wanessa Montoril. Brasília: Edição das Autoras/Athalai Gráfica e Editora, 2019, dizendo com ênfase:
“Com Gabriela Jardon – GJ, não há surpresa. Eu já suspeitava que por trás ou por dentro da Juíza togada, ardia a quentura de um vulcão prestes lançar larvas incandescentes. Antes de acolhê-la como colega pesquisadora nos grupos de pesquisa da UnB (Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania), já tinha divisado as frestas de uma vivacidade literária, na leitura de sua Coluna Enquanto Isso na Sala de Justiça, publicada no Jornal Metrópoles. Ali, na crônica Reflexões sobre uma inspeção judicial: “A lei é morta, o juiz é vivo”, ela se indaga: “A cruzada judicial contra a corrupção vem sendo feita por um juiz vivo? Será que as ruas, o povo, o passado, a história vêm sendo devidamente inspecionados tanto por este juiz quanto pelos que o criticam? A decisão do HC foi uma vitória de juízes vivos sobre uma lei morta? Ou ali, ao contrário, na intenção de se vivificar uma lei, a realidade foi apagada, ninguém se lembrando de “inspecionar” o que de fato ocorreu travestido de processo?”.
No trabalho, são fortes as intersecções intercapitulares, em epígrafes, as aberturas literárias, com referências sobretudo a autores que compartilham suas referências (Rubem Alves, com a sua crônica Escutatória; Cervantes, com o Quixote; colegas magistrados da Autora e ela própria, valendo-se de seu acervo literário publicado).
Muito pertinente a apropriação da frase que corre solta e é distribuída em afiches e postares “Mudar o mundo, meu amigo Sancho, não é loucura, não é utopia, é justiça.” (Dom Quixote em diálogo com Sancho Pança, El ingenioso Hidalgo Don Quixote de La Mancha, 1605, Miguel de Cervantes), ainda que eu tenha lembrando no diálogo que essa frase, quem bem poderia ser do Quixote, não está na obra de Cervantes, que também não usa a expressão utopia.
“Quase poderia dizer que uma boa síntese dessas recomendações se encontra num enunciado com inusitada circulação, atribuída ao Quixote: “Cambiar el mundo, amigo Sancho, no es locura ni utopía. Sino justicia.”, não fosse a consideração de que em geral transcrita sem localização, por mais que procurasse, tanto eu quanto algumas outras indagações, não foi dado encontrá-la na obra de Cervantes, tanto quanto a palavra utopia que também se diz entre estudiosos, não aparece em seus escritos”.
Penso que um pressuposto forte que orienta o trabalho de Gabriela Jardon, movido pelos chamados de sua atuação profissional e de seu ofício, mas orientado teórica e metodologicamente para buscar respostas discerníveis e operativas tanto do ponto de vista funcional quanto discerníveis racionalmente, em que pese os cuidados a que a Banca (professor Escrivão e professora Daniela) indicaram em ambos os aspectos, está em que, segundo ela – p. 16 – “como não é reconhecido no campo do Direito o direito de escuta das partes, a escavação de uma base teórica argumentativa que sustente a sua existência persistiria atraente mesmo se chegando à conclusão, com a pesquisa de campo, de que, sim, a escuta das partes, ao contrário do suposto, costuma acontecer de modo satisfatório pelas e pelos juízes/as. Nesse hipotético caso, seria evidente que essa escuta não estaria se dando pelo reconhecimento de um direito, mas, quando muito, por iniciativa ética/humana individual do/a magistrado/a, pois a inexistência do direito de escuta das partes, do ponto de vista formal-positivo, é um dado posto. Logo, o trabalho dirigido a erigir o reconhecimento desse direito por meio da articulação teórica de razões, causas e condições, ainda assim, de toda forma, seguiria motivado e motivando”.
A Autora reuniu e interpretou, na primeiro capítulo da obra (veja-se o Sumário), as mais qualificadas pesquisas disponíveis para sustentar a importância do questionamento (existente ou inexistente; ausente ou emergente, sugeriu o professor Escrivão) do tema que responde a sua principal hipótese de trabalho:
A pesquisa de campo, por despicienda, foi, então, abandonada. De toda sorte, interessa a este estudo a revisão bibliográfica de pesquisas empíricas já realizadas, algumas muito recentemente, não sobre a escuta de partes processuais em específico, não tendo sido encontrado nada com essa minúcia, mas sobre a percepção da Justiça brasileira pela população, em termos de confiança e satisfação. Isso porque um dos pressupostos do qual o direito de escuta das partes parte é uma notória e sabida, e já antiga, insatisfação generalizada da sociedade em relação ao Judiciário. Essa insatisfação realmente existe? É atual? Quais seus elementos característicos, seus pormenores? Arrancar com este trabalho daí me pareceu um começo necessário.
Dito isso, passo a apresentar os principais achados das pesquisas existentes nessa temática e suas conclusões, discutindo-as. Apesar de ter dividido o capítulo em tópicos, cada um se referindo a uma das pesquisas principais examinadas, isso não se deu de forma estanque mas móvel, no sentido de que em todos os tópicos as pesquisas se interpenetram, de modo a trazer à baila os diferentes ou semelhantes dados encontrados para reforços, contradições e comparações.
Tudo com a expectativa de que (p. 32), “a escuta das partes seria, em essência, um admirável movimento de comunicação entre o Judiciário e suas e seus usuários/as, que se encontra à disposição da Justiça, com potencial de a conectar dialógica e diretamente a seu público, localizando-o no universo jurisdicional e o informando de maneira tão próxima que mais profunda e indelével”, um esforço para recuperar a humanização exaurida que possa se encarnar um sistema fundamental para qualquer projeto de sociedade:
Apesar de a Justiça ser comumente representada pela deusa grega Thêmis, que tem os olhos vendados, sustento nesta pesquisa que o verdadeiro sentido embotado do Judiciário é a audição, não a visão. Desumanizado, o Judiciário não escuta; ao não escutar, desumaniza-se ainda mais, objetificando as pessoas a quem se dirige. Com isso, além de estreitar as fronteiras do acesso à justiça, faz-se antidemocrático, negando aos envolvidos e envolvidas em conflitos judiciais o que provavelmente seria a maior chance de influência que poderiam ter em seus julgamentos: sua palavra viva. Sem a devida escuta, uma Justiça satisfatória, humana, acessível e democrática torna-se terra distante.
Com o uso franco de metáforas a Autora esquematiza o plano da Dissertação, com uma inversão narrativa quanto à descrição dos capítulos, que melhor que a metáfora do comboio (evocativa do fecho da escrita no percurso cotidiano entre o Porto e Coimbra, bem poderia ter tomado a outra metáfora, essa a do paradoxo do navio de Teseu, na sua versão original em Plutarco para os mais eruditos ou na versão juvenil dos gibis citada em WandaVision, em qualquer caso expondo a indagação sobre qual o navio real, o que partiu do ponto A, inteiramente reconstruído no itinerário, considerando o que chegou no ponto B:
O primeiro capítulo é por onde se embarca: o estado da arte do que se sabe sobre a satisfação ou insatisfação da população brasileira com o trabalho do Poder Judiciário. Na sensação da maioria dos usuários e usuárias, o Judiciário simplesmente não lhes entrega providências, modificações no estado das coisas e consequências que sejam percebidas como satisfatórias. Lentidão, custos e a complexidade de sua utilização são os fatores mais citados.
Para este estudo, no entanto, existe um fator crucial ainda bastante invisibilizado que contribui consideravelmente para o descontentamento: as pessoas deixam de ser devidamente escutadas. Veremos o que o exame das principais pesquisas de opinião da área tem a dizer.
Depois de embarcados, a ver por quais trilhos andar de forma a acomodar o percurso pretendido. O segundo capítulo refere-se à base teórica escolhida para alicerçar o direito de escuta das partes, que pertence ao campo dos Direitos Humanos, isto pela porta do Acesso à Justiça e sob a ótica do Direito Achado na Rua. Esses são os andaimes teóricos em que o direito de escuta das partes se escora na sua construção e soerguimento, explorados neste capítulo.
O quarto capítulo é o percurso imaginado. O caminhar, o fazer, o realizar – e aqui chamado de percurso para que fique clara a ideia de continuidade, constante aperfeiçoamento e devir, e não algo acabado, fixo. Será o local para se apresentar em detalhes como se pensou e se arquitetou o direito de escuta das partes, com enfoque na importância da escuta e no modo como a mesma deve acontecer, isso tanto do ponto de vista da escuta em si, como do ponto de vista processual.
E então é chegada a hora de desembarcar. Para onde, acredita-se, a escuta das partes pode levar um processo? Há mais de um portão nessa estação de desembarque. O desembarque, pela lógica de uma viagem, vem depois de feito o percurso, mas optei por inverter as ordens e só falar do percurso depois de ter já exposto sobre o desembarque, pois, como a maioria esmagadora dos percursos, esse daqui só existe com o fim específico de conduzir aonde se quer chegar. Então, me pareceu mais apropriado, antes de abordar o percurso, abordar o que o justifica. Por isso então, aqui no nosso trajeto, vamos espiar o desembarque antes mesmo de iniciar o percurso. O terceiro capítulo vai falar do que pode decorrer a partir do reconhecimento e da prática do direito de escuta das partes em termos de justiça, democracia e humanismo, correlacionando a implementação daquele com incrementos substanciais desses.
Propõe-se aqui, portanto, uma pesquisa de abordagem qualitativa que use como método a revisão bibliográfica, a qual terá por objeto revisões teóricas. No bojo dessas revisões, o que se tentará é a articulação de campos e saberes, alguns de ligações óbvias, como o Acesso à Justiça e o Direitos Humanos, outros menos óbvias, mas nem por isso menos afins, como a escuta e o exercício da magistratura, passando por lugares como O Direito Achado na Rua, as pesquisas de satisfação da população com o sistema de justiça, o direito processual, as teorias da justiça, a democratização da Justiça e o humanismo, para citar os principais.
Instiga-me, não poderia ser diferente, a leitura que a Autora faz, no capítulo segundo, a sua base teórica estruturante, notadamente, a que busca os pressupostos político-epistemológicos de O Direito Achado na Rua, deles extraindo, sem derrapar em tipos ideias (como notou na arguição o professor Escrivão), num intuito de esquematização e de categorização que não fosse tão arbitrária e conjectural para lembrar Jorge Luís Borges, no seu O Idioma Analítico de John Wilkins, já que propriamente nenhuma classificação no universo pode deixar de sê-lo, apenas para fazer caber no esquema os seus achados de pesquisa.
A Dissertação, não só nesse âmbito, é um diálogo altivo com todos os autores e autoras escolhidos para interlocução, a partir dos campos de motivação da Autora, desde o seu interesse psicoanalítico ao filosófico. Fico enormemente satisfeito em encontrar em boa articulação os autores e autoras que formam a fortuna crítica de O Direito Achado na Rua. Notável recensão, felizmente, carregada de lealdade aos enunciados e de livre identificação. Remeto às pp. 88-89:
A judicialização de direitos não é, pois, ponto forte dos esforços do DAR que, se não a descarta, enxerga-a como um caminho a mais, e a depender. A razão de vida e trabalho do DAR é, na verdade, o reconhecimento e a legitimação de direitos que se observam e se extraem de práticas sociais, performadas por sujeitos coletivos, em espaços que se caracterizam pela presença de projetos políticos de transformação social. Nas palavras de seu principal expoente hoje vivo, professor José Geraldo de Sousa Júnior:
Naquela apresentação de 1993, a montante de um percurso ainda apenas projetado, destaquei que a concepção de O Direito Achado na Rua era fruto da reflexão e da prática de um grupo de intelectuais reunido num movimento denominado Nova Escola Jurídica Brasileira, cujo principal exponente era o professor Roberto Lyra Filho que lhe indicou o nome e traçou os contornos de seus fundamentos. Então, tomei como elementos norteadores para a localização paradigmática desses fundamentos e o significado de sua contribuição, alguns textos de referência, naquela altura com razoável circulação, para concluir, propondo, pela primeira vez, para que objetivo se voltava o projeto: orientar o trabalho político e teórico de O Direito Achado na Rua, que consiste em compreender e refletir sobre a atuação jurídica dos novos movimentos sociais e, com base na análise das experiências populares de criação do direito: 1. Determinar o espaço político no qual se desenvolvem as práticas sociais que enunciam direitos, a partir mesmo de sua constituição extralegal, como por exemplo, os direitos humanos; 2. Definir a natureza jurídica do sujeito coletivo de direito; 3. Enquadrar os dados derivados destas práticas sociais criadoras de direitos e estabelecer novas categorias jurídicas para estruturar as relações solidárias de uma sociedade alternativa em que sejam superadas as condições de espoliação e de opressão entre as pessoas e na qual o direito possa realizar-se como um projeto de legítima organização social da liberdade. (SOUSA JÚNIOR [Org.], 2015, pp. 2-3, grifo meu).
Se esse reconhecimento e essa legitimação de direitos se dá no campo político, e aí permanecem firme, ou se vêm a trilhar um caminho judicial, anterior, concomitante ou posterior ao reconhecimento político, é questão que, se não passa despercebida pelo DAR, lhe interessa lateralmente. Até mesmo a positivação desses direitos pelos quais o DAR acompanha a luta ou luta junto – isto é, o tornarem-se leis produzidas pelo Estado – não é o ponto de chegada do DAR e muito menos o de partida. O interesse maior do Direito Achado na Rua é com o surgimento e impregnação de novos direitos em dado contexto histórico-social; com a preocupação de que sejam afirmados e reconhecidos no campo social e político como fenômeno jurídico legítimo, independentemente do reconhecimento que possa também advir, em reforço, da esfera estatal legislativa e/ou judiciária. O DAR corre por fora desses campos ou, melhor, plaina por cima, com aterrisagens possíveis, mas não imprescindíveis. A fonte do direito formal estatal (Poder Legislativo) e sua interpretação a ser conferida (Poder Judiciário) podem fazer as vezes de players estratégicos no endossamento dos direitos pluralísticos, seus sujeitos e espaços políticos, mas todo o núcleo ontológico do Direito Achado na Rua tem por espírito, na verdade, declarar-se independente dessas instâncias.
Contudo, ao entender o direito como irredutível expressão histórica do justo (SOUSA JÚNIOR, 2015, p. 25), O Direito Achado na Rua, imbuído do seu insuprível “compromisso de superação das injustiças” (Idem, p. 94), vai se voltar inevitavelmente a caçar a justiça, inclusive, na Justiça, ou seja, escrutinar o sistema de justiça para o questioná-lo sobre qual tipo e qualidade de justiça que tem distribuído. E isso vai se traduzir necessariamente na observação do que acontece nas judicializações de direitos. Por isso, não obstante não seja o seu foco principal, em relação aos processos judiciais do sistema de justiça, é possível dizer que o DAR se debruça para perguntar sobre justiça: a que justiça se quer ter acesso?
A Autora ensaia um manual de uso atenta a não permanecer no plano abstrato do desejo, mas a formular desenhos operativos que institucionalizem a escuta. Ela projeta procedimentos e diretrizes de formação. Tem educação esmerada para conhecer os entraves funcionais, burocráticos, regulamentares e até subjetivos. Leu Anatole France, leu Tolstoi, lei Proust, leu Balzac. Transcreveu páginas dramáticas dos três primeiros. Pensa como Balzac:
“Quando um homem cai nas mãos da Justiça, deixa de ser um ser moral, mas apenas uma questão de direito ou de fato, como aos olhos dos estatísticos se transforma um número” (BALZAC, Honoré de. O Coronel Chabert, Otto Pierre, Anatole France, pensou no juiz. Poderia também fazê-lo quando o grande escritor olha com os olhos do jurisdicionado (Da Submissão de Crainquebille às Leis da República. Crainquebille in FRANCE, Anatole. A Justiça dos Homens, Rio de Janeiro: Editora Civilização brasileira, 1978): “Crainquebille sentou-se na sua banqueta acorrentada, cheio de espanto e admiração. Ele mesmo não estava bem certo de que os juízes se houvessem enganado. O tribunal escondera-lhe as suas íntimas fraquezas sob a majestade das formas. Ele não podia acreditar que pudesse ter razão contra magistrados cujas razões não compreendera: era-lhe impossível conceber que alguma coisa claudicasse numa tão bela cerimônia”.
Tudo para vencer o obstáculo de um sistema e de um agente (o juiz), inaptos para o escutar: “provas de fatos, seguidas da subsunção silogística fato-norma-jurisprudência, são, pois, o centro insistente das práticas de trabalho da magistratura – e não deixa de ser curioso como, assim, vão se derretendo os sentidos originários da audiência e da sentença, etimologicamente, “atenção dada a quem fala” e “ato de sentir”, respectivamente. O juiz e a juíza brasileiros/as do século XXI, realizam centenas de audiências e exaram milhares de sentenças ao ano, mas, na maioria das vezes, fazem audiências sem ouvir e, por isso, acabam emitindo sentenças sem sentir” (p. 178).
Assim, freireanamente, abre a perspectiva do esperançar (p. 181-183), para ativar no sistema e despertar no agente, novidades que os mobilizem:
Esperançando aqui, se existir um novo juiz/uma nova juíza a nascer, de quem uma igualmente nova Justiça estivesse grávida, como seriam eles/elas? Dessa vez, calo-me para dar voz apenas a alguns dos/as autores/as citados/as no decorrer desta dissertação as inspirações, sem nenhuma pretensão de ser a relação completa, mas apenas para pincelar algumas das principais ideias que surgiram da bibliografia consultada. Podemos dizer que o/a novo/a juiz/íza da nova Justiça é:
participativo/a:
O novo juiz é partícipe da relação processual, ocupando posição central de órgão público interessado a fornecer justiça de modo melhor e mais rápido. (GOUVEA, 2009, p. 38)
tem por pauta a juridicidade e não a legalidade:
Não se pode mais sustentar que o juiz, diante do direito material e do direito processual, encontrasse atado a uma pauta de legalidade. A pauta do direito contemporâneo é a juridicidade, que aponta automaticamente à ideia de justiça, a qual forma o substrato material ao lado da constitucionalidade e dos direitos fundamentais do Estado constitucional. (MITIDIERO, 2019, p. 39)
é informal:
Taylor relata que na Austrália geralmente as partes e o magistrado sentam-se em torno de uma mesa de café e, muitas vezes, o próprio juiz telefona a alguém que possa confirmar a versão de uma das partes. O juiz ativo e menos formal tornou-se uma característica básica dos tribunais de pequenas causas. (CAPPELLETTI, 1988, p. 103)
4) é dialogador/a:
Superando mitos e barreiras fundadas em tradições corporativas e normatividades anacrônicas, é possível, talvez necessário, que se explore o potencial de novas fórmulas institucionais de justiça, menos técnicas e mais afeitas ao diálogo social e institucional, o que deve ser disputado e conquistado, certamente, na medida da práxis da sociedade civil organizada em torno de uma concepção que Boaventura de Sousa Santos chamou de acesso que vise à transformação da justiça acessada. (SOUSA JÚNIOR; ESCRIVÃO FILHO, 2016, p. 186)
Constata-se que a abertura institucional do poder judiciário para o diálogo deliberativo com os atores sociais envolvidos e instituições públicas implicadas apresenta-se como a essência de um procedimento apto a produzir soluções adequadas, alternativas e pacíficas par ao conflito (SOUSA JÚNIOR; ESCRIVÃO FILHO, 2016, p. 185)
Isso significa que é preciso, em primeiro lugar, abrir espaço na formação dos profissionais para aprenderem o respeito pelo outro como algo inafastável das profissões jurídicas. Um respeito que vai além dos discursos de dignidade e igualdade da Constituição e que se incorpora nas práticas cotidianas do profissional. Respeitar o outro é ouvi-lo, é colocar-se em seu lugar, é abrir-se para um real diálogo, para a relação de troca. Infelizmente, muitos profissionais recebem em sua formação a falsa noção de que o direito é um remédio para todos os males, de que o direito é a voz. E, com isso, assumem postura de antidiálogo, pois acreditam firmemente que só o direito tem a solução. Ao ‘ouvir’ o outro, tratam de imediatamente ir reduzindo sua fala ao que pode ser enquadrado, tipificado, normatizado. No fim do ‘diálogo’, o que fica é unicamente a voz do direito conforme as convicções profissionais. O outro importa apenas para trazer a causa, que passa a ser propriedade do profissional. (MARILLAC, 2009, p. 89)
é democrático/a:
De fato, uma concepção e abertura participativa da justiça também pode encontrar mecanismos e perspectivas orientadas para um aprofundamento democrático da via jurisdicional, sobretudo em casos envolvendo sujeitos coletivos de direitos implicados na luta pela defesa ou acesso a direitos humanos econômicos, sociais e culturais – sejam eles já traduzidos em direitos fundamentais, ou não. (SOUSA JÚNIOR; ESCRIVÃO FILHO, 2016, p. 182)
é envolvido/a:
Assim é que se requer do juiz, hoje, envolvimento, atuação e escolha. Decisão, portanto, proferida num procedimento em contraditório, respeitada a igualdade substancial e com total observância do devido processo legal na sua vertente processual e material. (CEREZZO, 2006, pp. 14-15)
é comunicativo/a:
Era comum, há algumas décadas, afirmar que o juiz só fala nos autos. Mas o mundo hoje é outro. O STF assimilou uma prática recorrente nos demais poderes, ao menos a partir da Constituição Cidadã de 1988. São as audiências públicas. Em hard cases, com implicações ideológicas, morais, éticas e religiosas, a estratégia mostra funcionar a contento. Em 2007, quando do processo a envolver pesquisa com células-tronco, o Ministro Ayres Britto ouviu 17 médicos, biólogos, pesquisadores, religiosos e representantes da sociedade civil. Em 2008, duas novas audiências públicas: a discussão a respeito de importação de pneus usados e a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos. Em 2009, a Corte convocou 50 especialistas para debater as liminares concedidas pelas instâncias inferiores da magistratura e que obrigam o Poder Público a fornecer gratuitamente tratamentos, próteses e remédios não garantidos pelo SUS. Em março de 2011, em audiência pública se debateu a política de cotas sociais e raciais para ingresso nas universidades. Essa prática sinaliza a todo o Judiciário o advento de novos tempos: ele não pode se manter alheio, mas tem de ouvir a comunidade a que serve. (NALINI, 2011, p. 82)
7) é inovador/a:
O Judiciário tem urgência de adotar novos paradigmas. E paradigma naquela visão de Thomas Kuhn, de um design novo, adequado a novas exigências, impostas pelo natural progresso da humanidade. (…) Por que não procurar fazer as coisas de um modo novo? Por que não incorporar novidades que tendam a aperfeiçoar uma prestação que se desenvolve da mesma forma há séculos? (NALINI, 2011, p. 22)
Um caminho sinuoso, tortuoso, acidentado. Pesquisa que coordenei respondendo a edital do Ministério da Justiça sobre modos de observar a Justiça e o Judiciário (Observatório do Judiciário, Série Pensando o Direito, UnB/UFRJ, PNUD/Secretaria de Assuntos Legislativos/Ministério da Justiça, Brasília, nº 15/2009. Coordenação Acadêmica: José Geraldo de Sousa Junior, Fábio de Sá e Silva, Cristiano Paixão e Adriana Andrade Miranda (http://pensando.mj.gov.br/wpcontent/uploads/2015/07/15Pensando_Direito3.pdf)), foi possível estabelecer junto a assessorias jurídicas de movimentos sociais e extrair de suas observações, a visão negativa dos modelos adjudicatórios do sistema legal e judiciário, presos às normas constituídas como unidade de análise das relações de conflito e incapazes de realizar até mesmo as promessas constitucionais de realização da Justiça, entre outros fatores, pela “resistência a trabalhar com o direito da rua”, pela “baixa sensibilidade para as demandas da comunidade”, pelos “limites culturais para a percepção de sujeitos e demandas inscritas nos conflitos sociais”, pela manutenção de “corpo com formação técnica desvinculada das experiências do mundo da vida”, pela “postura institucional burocrática” e pela “pouca permeabilidade ao controle social”.
A Autora encerra a sua Dissertação à moda utópica, quase como o Barão aventureiro do livro de Rudolf Erich Raspe, puxando-se pelos cabelos
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.