Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
Marina Jucá Maciel. Direito ao Sonho e à Emoção de (Ser) Tão Artista: luta pela efetivação dos direitos humanos nas veredas da arte. Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Brasília, 2024, 222 fls. mais anexos
Perante a Banca Examinadora, formada pelas professoras Talita Rampin – FD/UnB, Orientadora e Presidenta; Cinara Barbosa de Sousa – IDA/ UnB, Membra interna suplente arguidora; pelo professor Marcelo Campos, Departamento de Teoria e História da Arte do Instituto de Artes, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), membro externo; e por mim, na condição de membro interno, da Faculdade de Direito da UnB, foi defendida e aprovada a Dissertação de Mestrado tema desta Coluna Lido para Você.
Do que trata o trabalho diz o seu resumo:
O Direito ao Sonho e à Emoção de (Ser) Tão Artista: luta pela efetivação dos direitos humanos nas veredas da arte. Por meio da metodologia de Estudo de Caso, entrevistamos 21(vinte e uma) artistas, participantes do movimento social Paramar. Refletimos sobre as suas práxis de lutas pela efetivação dos direitos humanos na superação das múltiplas opressões coloniais vividas no “Grande Sertão: Veredas” (ROSA, 2001) que, de forma metafórica, idealizamos, inicialmente, como local onde vivem pessoas inviabilizadas, socialmente marginalizadas, “zona de não ser” (FANON, 2008). Pelas veredas da arte, sonhos e emoções, é redesenhado como Zona de Ser, local de resistência, (re) existência, luta pelo acesso aos direitos humanos. Logo, o sertão transformando-se em (Ser) Tão, ou seja, “Ser” no sentido de ser humano e “Tão”, em sua plenitude de potencialidades, criatividades e fruição de direitos humanos. Por meio de lentes decoloniais, desaprendemos o que a colonialidade nos ensinou, reaprendemos, pintamos, desenhamos, bordamos, fotografamos, costuramos, reconstruímos, sonhamos, nos emocionamos com as artistas participantes. E, ao longo dessas veredas artística, encontramos os Direitos Humanos Achados na Arte. Após este emocionante encontro, conscientes de que os espaços de poder são ocupados, em regra, pela população hegemônica do norte global, avançamos para reassumir nosso legítimo lugar, que nos foi tomando pela colonização, para construirmos coletivamente um direito autêntico, achado na rua, na arte, no clamor das vozes das artistas, são os Direitos Humanos Achados na Arte. Nessas veredas, enfrentamos secas nos sertões e tempestades no Atlântico Vermelho, superamos os obstáculos, quebramos represas e barreiras, guiadas por nossos sonhos e emoções. Com muita coragem, chegamos na sede da ONU, em Genebra, onde tomamos nosso legítimo espaço e, assim, palestramos, refletimos, gritamos, lutamos, cantamos, nos manifestamos por meio da arte. Ao final, construímos coletivamente uma recomendação internacional de direitos humanos entregue à direção desse organismo internacional. Nas veredas de retorno ao Brasil, fortalecidos com os progressos atingidos, elaboramos a minuta do Projeto de Lei de Regulamentação da Profissão de Artistas Visuais (PL1928/24), em tramitação no Congresso Nacional. Logo, não obstante os avanços alcançados com muitas emoções vividas e sonhos realizados, temos consciência de que a luta está apenas no começo por mais um sonho impossível, transformar-se em possível, até o “mundo ver uma flor brotar do impossível chão” dos grandes sertões nas veredas da arte.
Desde o resumo e na tessitura do todo o trabalho, a língua explicativa da ciência se entrecruza e se implica com a língua sensível da arte, poética, imagética, num contexto desafiador à instalação no real que convoca. São poemas, marcadores linguísticos que, desde o título e na ancoragem dos capítulos e da armação dissertativa busca repercutir, o que Eduardo Lourenço, sobre a literatura, recusava o seu aparente delírio para assinalar que o que ela expressa é essa tentativa desesperada de se instalar no real (in Mitologia da Saudade).
A Dedicatória não é, pois um adereço, mas uma tomada de posição nesse sentido: às artistas participantes, coautoras da presente pesquisa, por me desconstruírem, reconstruírem e, nas veredas decoloniais da arte, me ensinarem a enxergar um novo mundo colorido pelos sonhos e emoções, desenhados, pintados, fotografados, bordados, costurados, escritos, falados, aclamados, lutados como um manifesto dos Direitos Humanos Achados na Arte de (Ser) Tão Artistas!. Ah, como evoco Manoel de Barros (O Livro das Ignorãças e nele Uma didática da Invenção: “desaprender 8 horas por dia ensina os princípios). Veja-se os meus grifos e demore-se sobre as 107 imagens que também narram e revelam o tema escolhido para estudo e pesquisa.
A propósito da legitimidade desse enquadramento, muito em geral o valida a boa bibliografia revisada, mas o abona o acervo epistemológico do sensível (Maffesoli, A razão sensível; De Mais, A Emoção e a regra; Martha Nussbaum, Justicia Poética; o próprio Eduardo Lourenço já mencionado) e, em sede decolonial (Fals Borda, sentipensar; Patricio Guerrero Arias, Corazonar : una antropología comprometida con la vida). Claro que entre todos Roberto Lyra Filho, não fosse O Direito Achado na Rua uma paráfrase poética (Marx, Cassiano Ricardo, em A Concepção de mundo na obra de Castro Alves ou Filosofia Geral e Filosofia Jurídica em Perspectiva Dialética. Eu próprio, seguindo as veredas desses autores e autoras, pude me situar nas múltiplas possibilidades de conhecer, entre si implicadas, não se reduzindo à sua mirada exclusiva. Do explicar científico, do fundamentar filosófico, do intuir artístico, do lúdico brincante, do revelar místico.
Alguns desses ensaios, por iniciativa da editora do jornal onde são publicados, compondo uma Coluna Lido para Você, formaram uma edição antológica José Geraldo de Sousa Junior. Lido para Você: Direito, Cinema e Literatura – São Paulo: Editora Dialética, 2023. 168 p., que reúne os textos com essa disposição de articular razão e sensibilidade: https://estadodedireito.com.br/lido-para-voce-direito-cinema-e-literatura/.
O desafio a que se impôs o Autor na obra: pensar o decolonial aplicado ao Direito, desde as v(e)ias abertas pelo “Romance d’A Pedra do Reino”, tendo como centralidade os influxos proporcionados pelos modos de ser e de viver, pela cultura, pelas vivências e pela luta do povo sertanejo, marcada pela miséria e pela fome, mas também pela garra e pelo sonho.
Nesse itinerário de inquietações e total ausência de certezas, são delineados diversos deslocamentos, territórios que tão logo emprenhados são desfeitos, dando lugar a outras paisagens, sintetizados nos diversos movimentos presentes no sumário. Assim é que, no primeiro movimento “Prelúdio – Direito & Literatura” o Autor nos convida a refletir sobre as possiblidades guardadas pela aproximação entre o Direito e a Literatura, promovendo um rico diálogo entre os diversos autores e autoras que, contemporaneamente, tem enfrentado o desafio de conjecturar a esse respeito, para, então, afirmar waratianamente que a “a aproximação entre Direito e Literatura, não só é possível, como também é fundamental, uma vez que proporciona a formação de ‘territórios ambíguos’, pelos quais se é possível escapar as deformações regradas da semântica cientificista e fundar ‘um saber sobre o Direito que reconcilie o homem com suas paixões, tenha respostas de acordo com o mundo e transforme a estagnação de suas verdades em desejos vivos’ (WARAT)”.
Posteriormente, enuncia sua formulação mais do que original, a emergência de um “Direito Achado no Sertão”, um “Direito de Canudos”, d’A Pedra do Reino, um Direito que seja expressão legítima das lutas e vivências do nosso povo pobre, negro, índio, mestiço, espoliado e oprimido, silenciado pelos ecos cosmopolitas da modernidade/colonialidade.
É por essa fenda que a imersão na obra de Ariano Suassuna anuncia uma ruptura com a epistemologia jurídica moderna. Em primeiro plano, permite-nos uma conexão com as nossas raízes culturais e, também, com o nosso povo, de onde se é possível readequar através do saber local as categorias jurídicas vigentes. Mais profundamente, inaugura uma nova sensibilidade, que nos possibilita também reimaginar poeticamente a nossa imagem de mundo a partir do Sertão.
Logo, o “direito castanho”, enquanto inscrição decolonial do Direito na cultura nordestina, nasce como um conceito eminentemente subalterno, no sentido de oferecer uma nova interpretação do Direito a partir do imaginário sertanejo. Na acepção incorporada pelo Autor, isto é, “[…] como síntese ‘quadernesca’, o ‘direito castanho’ poderia ser percebido como uma matização entre, de um lado, o espírito mágico professado pelo ‘surrealismo jurídico’ de Luis Alberto Warat e, de outro, a matriz dialética adotada pela práxis de ‘O Direito Achado na Rua’”.
Assim é que o Autor se desincumbe da sua tarefa de pensar uma epistemologia jurídica decolonial a partir do Romance d’A Pedra do Reino e nos brinda, ao tempo que nos interpela, com os intrigantes conceitos de “Direito Achado no Sertão”, “Direito Castanho”, “Sertanismo Jurídico”. Conceitos cujos sentidos intencionalmente foram deixados em aberto, como algo sempre por fazer, sempre por alcançar; convocando à experimentação do chão pedregoso do Sertão, da quentura escaldante do sol, da secura da sua terra, da bravura e beleza da sua gente. Numa narrativa que coexiste com todas as outras possíveis, ela mesma um infinito de possibilidades” – há uma tomada de posição político-epistemológica, tanto referida ao filosófico no que tange à perspectiva decolonial, como por extensão, uma perspectiva crítico-emancipatória do direito – O Direito Achado na Rua – que vão se fundir nos elementos interpretativos do mundo e da sociedade.
Seguindo o exposto da própria Marina, para sumariar o trabalho, anota-se, no primeiro capítulo, a explicação de como, dentre as quase 200 (duzentas) artistas participantes dos eventos culturais da Paramar, escolheu 21 (vinte e uma) expoentes dos seus Grandes Sertões do Brasil para ensinar por meio de suas práxis de lutas pela efetivação dos direitos humanos. O recorte acadêmico inicial traçado para investigação foi a obra de Rosa (2001) “Grande Sertão: Veredas”, que, metaforicamente, representa resistência, lutas contra o sistema colonial e opressor dos diferentes sertões. Por sua vez, as veredas , nesta pesquisa, representam caminhos alternativos, construídos pela e com arte, nesta luta decolonial pelos direitos humanos.
Nas veredas do primeiro capítulo, a Autora busca esclarecer a ideia metafórica de “Grande Sertão: Veredas” (ROSA, 2001), no qual, no primeiro momento, o sentido de sertão será vinculado à sua aridez, opressões contra sociedade invisibilizadas, onde há pessoas marginalizadas, especialmente por precariedade de políticas públicas e acesso a direitos humanos. Logo, associamos essas veredas de sofrimento com o conceito de “zona de não-ser” criado por Frantz Fanon , sendo ampliado de forma geográfica, social, política e cultural para outros espaços onde há pessoas nessas condições. Por isso, utilizamos a ideia de amplitude do sertão afirmada pelo próprio autor do livro de que: “O sertão está em toda a parte” (ROSA, 2021, p.8, grifo nosso).
Em um segundo momento, passa a analisar o sertão, como o local de resistência, (re) existência pelas pessoas socialmente invisibilizadas pela estrutura colonial, representadas pelos grupos minorizados, rompendo com as cadeias de opressão social, econômica, cultural, por meio de lutas pela efetivação dos direitos humanos de diferentes formas, sendo a arte uma dessas veredas potentes que analisaremos nesta pesquisa.
Por meio desta potência artística, o sertão, como “zona de não ser”, redesenha-se, por meio das emoções, dos sonhos, do acesso aos direitos humanos, em Zona de Ser , transformando-se em (Ser) Tão! Ou seja, o “ser”, no sentido de ser humano, o “tão”, no sentido de amplo, irrestrito, de potência de emoções e criatividades em sua plenitude.
Vale registrar que a reflexão sobre termo “(Ser) Tão”, inicialmente, surgiu em diálogo com Cinara Barbosa, curadora, pesquisadora e professora do Departamento de Artes da UnB, no qual idealizamos um projeto de impacto sociocultural por meio de parceria do movimento social Paramar e do Plano das Artes . Posteriormente, por meio das reflexões da presente pesquisa, ampliamos para: (Ser) Tão Artista .
Uma vez que o Direito Achado na Rua valoriza as construções jurídicas oriundas das experiências cotidianas, o trabalho desenvolvido pelo movimento social Paramar junto com artistas atravessadas por diferentes interseccionalidades pode corroborar com as suas narrativas e expressões para reflexões profundas pela arte que oportunize emancipações diversas, do direito ao sonho, à emoção (MATOS, 2024; ANEXO B) e de transformação de realidades socioculturais.
Neste contexto, após a escolha das 21 (vinte e uma artistas), por serem expoentes de resistências, (re) existências e de verdadeiras lutadoras por meio da arte na efetivação dos direitos humanos, em seus grandes sertões de diferentes espaços geográficos do país , submetemos ao Instituto de Ciências Humanas e Sociais da UnB, recolhemos as assinaturas dos Termos de Consentimentos Livres e Esclarecidos (TCLE) e Termos de Autorizações de Uso de Imagens, sendo aprovado por este comitê de ética da UnB .
Durante as escutas sensíveis que realizamos durante as entrevistas das participantes, todas elas, sem exceção, acreditam que, por meio de suas práxis da arte, lutam pela efetivação dos direitos humanos a fim de superarem as múltiplas opressões interseccionais vividas nos seus grandes sertões. Logo, aceitamos o convite do Direito Achado na Rua e propomos: Direitos Humanos Achados na Arte!
Nessas veredas, no segundo capítulo, por meio de lentes decoloniais, a Autora analisa alguns tópicos para somar forças com a ideia de ampliar o nosso viés não colonizado, ou seja, articularemos o pensamento orgânico com o acadêmico, com a militância, com as críticas individuais, com as emoções e os sonhos para formar uma grande emancipação da opressão colonial que aprisiona boa parte da nossa sociedade.
Nessas veredas decoloniais, a Autora assenta que a cultura é alvo do colonizador com objetivo de tentar destruir os dominados nas suas subjetividades, nas suas raízes culturais, nas emoções e sonhos expressados pela arte, tentando transformar a sua visão da realidade e impondo uma pretensiosa superioridade do invasor. Exsurge a importância da interculturalidade crítica no combate a esta forma de estratégia que permanece até os dias atuais (WALSH, 2009).
Neste capítulo, ainda, a Autora reflete sobre a importância das Teorias Críticas dos Direitos Humanos, defendidas por Herrera Flores (2009), em que sustenta que os direitos humanos não são apenas a sua previsão formal em ordenamentos jurídicos, sem aplicabilidade real, isto é, direitos humanos considerado “gourmet” (KRENAK, 2021). É imprescindível a sua concretização dos direitos humanos, especialmente em favor dos grupos historicamente minorizados.
Após escutar as artistas por meio de oitiva sensível e decolonial e, em virtude dos Direitos Humanos Achados na Arte, acessarem campos subjetivos do ser humano, a reflexão se debruça sobre a importância dos sonhos e das emoções , como sendo possíveis direitos subjetivos do (Ser) Tão artistas.
Nos recortes das entrevistas, têm-se que os Direito Humanos Achados na Arte versam sobre direito ao sonho, à emoção, à liberdade, à dignidade, à equidade, à inclusão, ao respeito. Isto é, a arte recriando novos repertórios decoloniais, possibilitando novas trajetórias de vida digna, por meio da “restituição do sensível” (MATOS, 2024; ANEXO B), superando as múltiplas opressões em seus grandes sertões.
Por sua vez, no terceiro capítulo, a Autora analisa as experiências do Projeto Atlântico Vermelho, realizado na sede da ONU, em Genebra, como uma intervenção artística, e a construção do Projeto de Lei de Artistas Visuais (PL 1928/2024), em trâmite no Congresso Nacional. Apesar das barreiras enfrentadas para que o sonho impossível, fosse transformado em possível, explicamos os aprendizados vividos por meio dessas veredas, especialmente a importância desses grupos minorizados ocuparem espaços de poder, dos quais, em regra são restritos à população dos países do norte global (WALSH, 2012), em um manifesto pela exigência da efetivação dos direitos humanos, políticas públicas, direito ao sonho e à emoção de (ser) tão artistas.
Nessas veredas do Atlântico Vermelho, o achado é a potência do Projeto Atlântico Vermelho, constituído por uma exposição de arte com 66 (sessenta seis) obras de 22 (vinte e dois) artistas participantes, além de ciclos de palestras, dos quais geraram reflexões para a construção de recomendações que foram inseridas na Declaração Universal de Direitos Humanos dos Afrodescendentes.
Após a entrega da referida recomendação e retorno ao Brasil, a missão continuou com a formação de grupo de estudos, concebido por artistas, pesquisadores, curadores e demais pessoas que trabalham na área de cultura com o escopo de elaborar um Projeto de Lei de Regulamentação da Profissão de Artistas Visuais, o qual ensejou a articulação com alguns parlamentares e, sem nenhuma mudança substancial no texto sugerido, deu início ao Projeto de Lei 1928/2024.
Para a Autora, nas conclusões, “apesar de termos avançado muito, tanto com o Projeto Atlântico Vermelho, quanto com o Projeto de Lei, acreditamos que estamos ainda no início da caminhada nessas veredas sertanejas, então, não propomos uma conclusão nesta pesquisa, mas a proposta de “estórias sem final” (ROSA, 2001)”. Por isso que o trabalho é também um convite para um aprendizado conjunto “com as práxis das artistas participantes a refletir sobre suas lutas pela efetivação dos direitos humanos, desenhando, redesenhando, resistindo, (re) existindo, criando, (re) criando as suas poéticas decoloniais na superação das múltiplas opressões vividas em seus grandes sertões, sendo esses transformados de “zona de não ser” em “zona de ser”, nas veredas da arte, especialmente por meio dos Direitos Humanos Achados na arte, no Direito ao Sonho e à Emoção de Ser Tão Artistas”.
Considerando a adesão da Autora às veredas do Direito Achado na Rua, acolho como pertinentes a sua contribuição que transita dessas veredas até os Direitos Humanos Achados na Arte, que vem se agregar à fortuna crítica de O Direito Achado na Rua. Com efeito, com essa designação, o seu desiderato acadêmico imprime uma caracterização a um processo em movimento que vai discriminando aproximações teórico-políticas (cf. na Dissertação página 94, principalmente) como contribuição para a teoria crítica do direito e dos direitos humanos (https://estadodedireito.com.br/o-direito-achado-na-rua-contribuicoes-para-a-teoria-critica-do-direito/). É um movimento que opera no protagonismo de sua ação política, formas emancipatórias na perspectiva dos direitos humanos – germinais – já caracterizadas até aqui, por seus protagonistas intelectuais, associados à Nova Escola Jurídica Brasileira – NAIR, como sindicalismo achado na rua, ítem anterior acrescido ao catálogo de ricos achados que formam a fortuna crítica de O Direito Achado na Rua: a Aldeia, o Quilombo, a Rede, os Lares, a Noite, o Manicômio, o Cárcere, a Encruzilhada, as Águas, Campos e Florestas Amapaenses, o Constitucionalismo Achado na Rua, o Sertão; há pouco o (Eco) Constitucionalismo Achado na Rua (Victor Nunes Leal e JJ Gomes Canotilho), a Rua em seu sentido amplo de espaço de cidadania (Milton Santos, Paulo e Nita Freire, Roberto Lyra Filho).
Nessas veredas, constituímos um grupo de estudos, formado por artistas, pesquisadores, curadores e demais pessoas que trabalham na área de cultura. Estudamos outras profissões regulamentadas, no Brasil, como artesão, músico e, no plano internacional, em que há profissão de artista visual regulamentadas. Após, redigimos uma minuta do projeto de lei, articulamos com alguns parlamentares e foi dada entrada no formato que enviamos, sem nenhuma mudança substancial, sendo a PL 1928/2024 em tramite no Congresso Nacional, desde maio de 2024.
Respondemos à pergunta da pesquisa: Como as artistas participantes da presente pesquisa, pelas veredas da arte, dos sonhos e das emoções, lutam pela efetivação dos direitos humanos a fim de superar as múltiplas opressões coloniais vividas em seus grandes sertões? Indicando que as artistas participantes lutam pela efetivação dos direitos humanos, com suas especificidades individuais, desenhando, redesenhando, resistindo, (re)existindo as suas histórias decoloniais na superação das múltiplas opressões vividas em seus grandes sertões, sendo esses transformados de “zona de não ser” em Zona de Ser, pela e com arte, especialmente por meio do Direito Achado na Arte, Direitos Humanos Achados na arte, no Direito ao Sonho e na Emoção de Ser Tão Artistas.
Ao ler o trabalho de Marina Maciel logo me acudiu a experiência vivenciada em Brasília, num sábado ensolarado quando me encontrei, numa feira solidária organizada por produtores assentados e cooperativados no conceito de agricultura familiar, com um grupo de pessoas, em sua maioria mulheres, que se reúnem para uma convivência cotidiana de reflexão-ação traduzidas em afeto e reconhecimento político.: o Coletivo Linhas de Resistência (https://www.ihu.unisinos.br/630447-linhas-da-resistencia-bordar-coletivamente-e-um-ato-emancipatorio-artigo-de-jose-geraldo-de-sousa-junior).
Me aproprio de nota postada por uma delas (Letícia) no Instagram do Coletivo, que assina como mulher bordadeira, escritora amadora e advogada. Diz ela:
Paulo Freire escreveu: “Não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão”.
Uma de nós disse dias desses que “coletivo” é constituído para ser mais potente e mais forte do que as individualidades. Se assim não se configura, limita-se a ser uma mera agremiação.
Bordar parece um gesto singelo. Mais do que uma ação-reflexão, é sentir. Pulsar. Quando a linha abraça a agulha, uma dança inesperada tem início. Na medida em que linha e agulha atravessam o algodão cru, é como se os pés saíssem do chão e tecessem no céu sonhos e coragens. Um gesto de amor que, de tão grande, é indizível.
Bordar apequena as inseguranças. Faz brotar um jardim de flores na secura da terra que já não mais se reconhece como nascente de sonhos e criações e, mesmo assim, acolhe e nutre o que é vida. Bordar é alento para o futuro.
Nosso coletivo borda sonhos, uma de nós assim reconheceu essa potência criativa que nos habita. Pelo bordado, despertamos sorrisos onde há desamparo. Enfeitamos o olhar com a delicadeza de uma criança que descobre algo inusitado e fica estonteada com uma nova descoberta.
Bordar coletivamente é um ato emancipatório. É que nenhum indivíduo é capaz de emancipar-se em solidão. A emancipação acontece no compasso da dança da linha com a agulha, da boca que se dispõe a falar com ouvido atento a escutar. Bordar é partilha.
Nosso coletivo teve a honra e a alegria de receber no primeiro sábado solar de julho o professor José Geraldo de Sousa Junior, ex-reitor da UnB (Universidade de Brasília) e que dedica-se ao movimento em curso nomeado “O Direito Achado na Rua”, consistente em compreender e refletir sobre a atuação jurídica dos novos movimentos sociais e, com base na análise das experiências populares de criação do direito”.
É possível dizer que, a partir das reflexões e compreensões sobre a realidade diante dos nosso olhos, o Direito Achado na Rua é vocacionado à construção emancipatória do direito. Nosso coletivo borda, mesmo que em rotas paralelas com o professor José Geraldo Sousa Junior, o sonho da emancipação-afeto nesses pontos comuns.
Tomo a postagem de Letícia, feliz por constatar que ela captou o que mais fortemente propõe O Direito Achado na Rua em sua perspectiva de que quando falamos em Direito falamos em emancipação, processo que só o social no seu agir coletivo pode legitimamente realizar. O Coletivo Linhas da Resistência, tece o amanhã. Como outros coletivos – estou pensando o Projeto Mulheres Coralinas, aqui pertinho na Cidade de Goiás (a nossa “Goiás Velho”) que apoia mulheres nas áreas da Gastronomia, Artesanato (cerâmica, bonecas, fibras naturais e bordado) e Educação, com participação de mulheres garis. Como dizem Ebe Maria de Lima Siqueira e Goiandira Ortiz de Camargo (organizadoras) de Mulheres Coralinas. Goiânia: Cânone Editorial, 2016, “é o resultado de esforço de pessoas, instituições e poder público de trabalhar a favor da cidadania, da igualdade de gêneros e da autonomia financeira das mulheres”.
Ebe Siqueira, em coautoria com Nair Heloisa Bicalho de Sousa e Adriana Andrade Miranda, explicam, a partir desse coletivo, o significado do conviver para viver, tal como está no texto Conviver para viver: formação e atuação das Mulheres Coralinas no enfrentamento aos efeitos perversos da pandemia do coronavírus (que está em livro que organizei com Talita Tatiana Dias Rampin e Alberto Carvalho Amaral. Direitos Humanos e Covid-19. Volume 2. Respostas Sociais à Pandemia. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2022). Um belo registro que Adriana Andrade Miranda está transformando em tese de doutorado na UnB (Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania – CEAM): Literatura e Direitos Humanos: o projeto de formação das Mulheres Coralinas na cidade de Goiás, de 2014 a 2023.
São formas de resistência mas também protagonismo emancipatório para bordar e tecer o amanhã.
Mas é também, como diz Letícia, a melhor expressão dessa intersubjetividade emancipatória que designa o sentido pulsante do sentipensar (usando mais uma vez o conceito emprestado do sociólogo colombiano Fals Borda) do Coletivo Linhas da Resistência: “Todo sábado a gente cuida do jardim-composição Linhas da Resistência. É o tempo comum que criamos, pro riso, pro afago, pras fagulhas. Cada uma de nós tem afeto à sua maneira. A intensidade? É forte….Bordamos sonhos. É aos sábados que também estendemos nossos sonhos no varal. Oferecemos esses sonhos ao vento, deixamos o sonhar quarar no sol. Sonho também pede afago e delicadeza…. No cotidiano, a gente veste cada sonho. Além da pele que se vê. Pro sonhar crescer e brotar”.
É esse o mesmo sonho emancipatório que que fala Marina, em seu trabalho? É desse modo libertário que podemos apreender o sentido de uma história sem fim quando conclui que “apesar de sabermos que ainda há longas veredas dos Grandes Sertões a serem percorridas, tempestades neste Atlântico Vermelho a serem enfrentadas, o nosso navio negreiro guerreiro seguirá firme por “mais um sonho impossível” até o “mundo ver uma flor brotar do impossível chão” (CHICO BUARQUE, 1972). Isso porque não nos falta coragem para transformar os sonhos impossíveis em possíveis, em nossas veias pulsa vermelho sangue de vida, da resistência e (re)existência nesta luta decolonial de (Ser) Tão Artistas?
Qual, para Marina, a materialidade epistemológica do sonho para interpelar o real? Constato que ela se aproxima de Luis Alberto Warat, na linha que ele de modo instigante lança em seus dois manifestos – Por uma Ecologia dos Desejos e, muito originalmente, no Manifesto do Surrealismo Jurídico. Gosto de pensar que meu estimado orientador de tese logrou formular uma função emancipatória da pedagogia, ao estabelecer a relação sonho-práxis, condição para imaginar o novo (Manifesto do Surrealismo Jurídico).
Cito Warat – p. 18 – do Manifesto do Surrealismo: “a imaginação e o sonho guardam estreita relação com a democracia, pois nos interpelam e nos provocam em torno do novo, nos propõem a possibilidade de pensar e sentir sem censuras, nos revelam os segredos da singularidade, o ponto neurológico da diferença: o homem novo, aquele que não tem seus sonhos, seu imaginário censurado pela instituição e que organiza seus afetos sem desejos alugados. A democracia é o direito de sonhar o que se quer”.
E nem se cuida já de imaginar o caráter onírico das teorias (Warat, Manifesto do Surrealismo Jurídico), mas de compulsar outros modos de consideração do Direito, tal como o vem fazendo a Corte Interamericana de Direitos Humanos, ao admitir, para efeito de reparação, inclusive histórica, mas também civil, no âmbito da justiça de transição, com a restauração da dignidade afrontada, do dano aoprojeto de vida, quando se impede que o fluxo de escolhas e de aspirações da pessoa, seus sonhos sejam realizados Entre outros casos Benavides versus Peru (2001),Villagrán Morales y otros vs. Guatemala (2001) – (Indemnización de perjuicios, caso los “Niños de la calle” e Atala Riffo y Niñas vs. Chille (2012).
Deixe um co
João Goulart. Mensagem ao Congresso Nacional remetida pelo presidente da república na abertura da sessão legislativa de 1964. Documento histórico que delineou as reformas de base é compilado pelo CMT e disponibilizado virtualmente
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
JOÃO GOULART. MENSAGEM AO CONGRESSO NACIONAL. REMETIDA PELO PRESIDENTE DA REPÚBLICA NA ABERTURA DA SESSÃO LEGISLATIVA DE 1964. Documento histórico que delineou as reformas de base é compilado pelo CMT e disponibilizado virtualmente. A publicação está em https://pdt.org.br/index.php/sessenta-anos-da-mensagem-de-jango-ao-congresso-nacional/. : file:///C:/Users/HP/Downloads/12M12D-Jango-Mens-Congresso-_ml-E04-%E2%80%94CMT%20(1).pdf.
A edição comemorativa, presta tributo a um Presidente que primeiro formulou um programa de metas orientado por grandes reformas para inserir o Brasil no contemporâneo e criar condições de desenvolvimento com justiça social.
Vê-se isso na apresentação do documento publicado:
Há exatos 60 anos, a mensagem presidencial emblemática de João Goulart ao Congresso Nacional representava a derradeira tentativa, à época, de um Brasil mais equitativo, delineando um caminho de reformas profundas que nunca chegariam a se concretizar. Este documento, repleto de esperança e visão trabalhista, está sendo lançado – e eternizado – pelo Centro de Memória Trabalhista (CMT) do PDT como publicação digital.
Quando de novo um governo assentado numa visão democrático-popular se faz escolha democrática para vencer o negacionismo anti-povo que infectou o país com virulência necropolítica, é saudável pensar que não pode haver vazio conceitual na política e projetos radicais são necessários para concretizar democraticamente a justiça social. Esse é o sentido da Mensagem. Nas palavras de Jango, recortadas do preâmbulo:
Senhores Membros do Congresso Nacional:
Aceitando o desafio que lhe propõe a realidade brasileira, tem o meu Governo procurado orientar a sua ação por meio de programas objetivos, cuidadosamente planejados, que visam, a par da estabilidade econômica e financeira, à ampliação do mercado do trabalho capaz de assegurar ao País os níveis de vida mais altos a que todos aspiramos. Sem preconceitos ou discriminações, tenho convocado, para colaborarem em todos os setores da administração, técnicos e especialistas de competência e espírito público acima de qualquer dúvida. A introdução do planejamento, como norma de ação governamental, que permite a distribuição de esforços e meios, segundo a magnitude dos problemas, e a fixação de critérios racionais na disciplina da ação administrativa, demonstram a previdência e a exação com que tem procedido o Poder Executivo. Na busca de soluções convenientes para esses problemas, anima-me o propósito de consolidar as conquistas já alcançadas no processo do nosso desenvolvimento e, ao mesmo tempo, abrir frentes de trabalho e produtivo que se constituam em novas fontes de progresso e de riqueza. Entretanto, a nossa atual estrutura econômica e política reduz, quando não anula, a eficácia das providências, pois o anacronismo dos padrões que a sustentam e a constelação de poderes em que ela se apoia, perpetua nas crises e agravam os problemas, eliminando as possibilidades de sua solução.
Convicção orgulho, marcam uma promessa, que o golpismo neocolonial arraigado num liberalismo excludente e elitista debelou com despudor e violência. Dizia Jango, a propósito da educação:
Orgulha-se este Governo, Senhores Congressistas, de haver desencadeado, com o propósito de integrar na comunidade brasileira largas faixas marginais da nossa população, um movimento, hoje irreversível, no sentido da democratização do ensino e da adequação de nosso sistema educacional às exigências do desenvolvimento do País. Impressiona saber que somente 46% das crianças brasileiras frequentam escolas e que menos de dois milhões de adolescentes, ou seja, apenas 10% dos maiores de 12 anos, conseguem ingressar nas escolas de grau médio. A ação do Governo, para a mudança desse quadro aviltante, exerce-se, fundamentalmente, para efeito de tornar o ensino primário efetivamente obrigatório e universal e abrir a um número sempre crescente de jovens o acesso à escola média, que deve transformar-se em centro de educação para o trabalho.
Com tal propósito, vem a União atribuindo aos Estados e aos Municípios somas sempre maiores de recursos para que se possa proporcionar o ensino primário, de 4 anos, a toda a população em idade escolar. Por intermédio de convênios com os Estados e os Municípios, o Ministério da Educação está executando um programa de construção de 5.800 salas de aula e reequipamento de mais de 10.000 e de suplementação dos salários da professora primária.
Espera o Governo, com essas e outras providências, assegurar, este ano, um incremento de mais de dois milhões de vagas, em nossa rede de escolas primárias. Simultaneamente, promove-se com amplitude jamais atingida, intensa campanha de alfabetização de adultos, à qual estão sendo convocados professores, estudantes, todas as pessoas, entidades e instituições que possam contribuir com uma parcela de seu esforço, para a erradicação do analfabetismo.
Extenso programa para a democratização da escola de grau médio e sua adaptação às necessidades de habilitação da juventude para as tarefas do desenvolvimento, foi elaborado pelo Ministério da Educação e encontra-se em fase executiva. Seu objetivo inicial é possibilitar a instalação, em todos os municípios brasileiros, de escolas de ensino de grau médio, voltadas todas no sentido da educação para o trabalho.
Quanto ao ensino superior, o esforço governamental destina-se a transformá-lo, efetivamente, em meio para a formação de técnicos de alto nível e que atendam às necessidades do progresso industrial. Mediante reformulação dos currículos universitários e pela duplicação de matrículas no primeiro ano dos cursos de nível superior, estamos dando os primeiros passos para, efetivamente, integrar a Universidade no processo nacional de emancipação econômica e cultural e para abrir-lhe mais largamente as portas ao maior número de jovens aptos a receber preparo científico e treinamento técnico moderno.
É justo pôr em relevo o papel pioneiro da Universidade de Brasília, novo modelo de universidade, inspirado, não só na experiência das mais avançadas organizações mundiais de ensino superior, como também nos reclamos da sociedade brasileira nessa fase decisiva de transformação sociocultural.
Ah! se tivessem sido implementadas as Reformas de Base. Outro seria o Brasil e mais alicerçado o patamar para alavancar outras transformações. Na altura das celebrações promovidas pelo PDT e pela Biblioteca Virtual da Fundação Leonel Brizola – Alberto Pasqualini (FLB-AP), nesse sentido, houve uma iniciativa para reunir uma série de comentários acerca desse documento histórico. Os organizadores me pediram uma manifestação que tivesse como foco as Reformas de Base da Educação, que me levou a um registro com o acréscimo Para um Projeto de País.
Com um texto mais extenso e contextualizado localizei no comentário um aspecto específico, referido ao ensino superior, até porque, na Mensagem, o Presidente deu relevo a Universidade de Brasília, a instituição que me acolheu como professor e da qual fui Reitor, entre 2008 e 2012.
Sobre esse recorte, lembrei 1964, a quadra de um movimento de ascensão popular por meio de um projeto de desenvolvimento que pudesse vencer o espoliativo de um capitalismo ainda colonial, numa pré-globalização em sua modelagem imperialista. Trata-se do avançado programa de reformas de base, o mais completo documento econômico, político-filosófico e constitucional elaborado depois do Plano de Metas de 1956 proposto pelo Presidente Juscelino Kubitschek, visto como um vendedor de esperanças por Lilia M. Schwarcz e Heloisa M. Starling (Brasil: uma Biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015), e por elas designado como “o primeiro e o mais ambicioso programa de modernização já apresentado ao país” (p. 415).
Consultando o Atlas Histórico do Brasil – FGV CPDOC (https://atlas.fgv.br/verbete/6355), observa-se as ações que confinaram a crise desencadeada com a renúncia do presidente Jânio Quadros (agosto de 1961) e a superação do impasse instalado pela objeção burguês-militar à posse do vice João Goulart. Superado o impasse com a aprovação pelo Congresso da Emenda Constitucional nº 4 que instituiu no país o sistema parlamentarista de governo, a instalação do novo regime político com o presidente destituído de parte de suas atribuições, isso não impediu a adoção de uma retomada do regime presidencialista apoiado por um programa de reformas de base, desencadeado pelo slogan de um congresso camponês instalado sob a consigna “Reforma agrária na lei ou na marra”.
Conforme o verbete do Atlas,
No decorrer de 1962, tomou vulto a pressão de setores nacionalistas e de esquerda identificados com as reformas de base. Nesse ano surgiu a Frente de Mobilização Popular (FMP), movimento liderado por Leonel Brizola, que congregava diversos parlamentares, líderes sindicais e representantes de organizações camponesas e de entidades como a União Nacional dos Estudantes (UNE), o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) e o Pacto de Unidade e Ação (PUA). Brizola e outras lideranças chegaram a pedir o fechamento do Congresso, instando Goulart a atuar à margem da Constituição para efetuar as reformas. No interior do Congresso, a Frente Parlamentar Nacionalista (FPN) — bloco suprapartidário contrário às concessões ao capital estrangeiro e às remessas de lucro e favorável ao monopólio estatal na exploração do petróleo e dos minérios brasileiros — incluía entre suas principais teses a defesa das reformas de base.
Reformas de base, eis o conteúdo da Mensagem ao Congresso Nacional enviada pelo Presidente João Goulart na abertura da Sessão Legislativa de 1964. Um conjunto articulado de “propostas de mudanças consideradas necessárias à renovação das instituições socioeconômicas e político-jurídicas brasileiras que tinham como objetivo remover os obstáculos à marcha do processo de desenvolvimento do país”. Essas propostas foram a base do programa de governo do presidente João Goulart (1961-1964), assumindo o caráter de bandeira política durante a fase presidencialista daquela gestão. As reformas consideradas prioritárias eram a agrária, a administrativa, a constitucional, a eleitoral, a bancária, a tributária (ou fiscal) e a universitária (ou educacional)”.
Volto ao Atlas:
A expressão “reformas de base” foi empregada formalmente pela primeira vez em março de 1958, no governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961), quando o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) apresentou um documento que discutia as reformas — incluindo a agrária, a urbana e a constitucional — e destacava também a disciplina do capital estrangeiro no país, o que implicava uma nova Lei de Remessa de Lucros. O documento, que viria a constituir o programa do partido, serviu de base à pregação de João Goulart, vice-presidente da República e presidente nacional do PTB, em sua campanha para a reeleição à vice-presidência em 1960.
Na Mensagem, distingue-se a proposta de reforma educacional ou reforma universitária. Para a consecução dessa reforma, era necessária a modificação dos “dispositivos constitucionais disciplinadores da educação nacional, a fim de ampliarem-se as garantias de liberdade do docente e redefinir-se o instituto da cátedra”. Nesse desiderato, a Mensagem indicava a conveniência de serem integrados ao texto constitucional os seguintes princípios: “É assegurada ao professor de qualquer dos níveis de ensino plena liberdade docente no exercício do magistério; é abolida a vitaliciedade de cátedra, assegurada aos seus titulares a estabilidade na forma da lei; a lei ordinária regulamentará a carreira do magistério, estabelecendo os processos de seleção e provimento do pessoal docente de todas as categorias, e organizará a docência, subordinando os professores aos respectivos departamentos; às universidades, no exercício de sua autonomia, caberá regulamentar os processos de seleção, provimento e acesso de seu pessoal docente, bem como o sistema departamental, ad referendum do Conselho Federal de Educação.”
Curioso que o tópico IV Progresso Social, relevo para o ítem A) Desenvolvimento Cultural, o sub-ítem 1, trata da Educação, desdobrado em Considerações Gerais, Educação Elementar e Cultura Popular, Educação Média, Nível Superior, fechando com Universidade de Brasília (p. 171).
Sobre a Universidade de Brasília, o enunciado:
Enquanto se cuida de democratizar o sistema escolar de todos os níveis e de colocá-lo a serviço do esforço nacional para o desenvolvimento, no Distrito Federal, por intermédio do Projeto-Piloto da Universidade de Brasília, implanta-se novo modelo de universidade, semelhante às mais avançadas organizações internacionais. A Universidade de Brasília destina-se, sobretudo, a assessorar tecnicamente o Governo brasileiro e tem por objetivos a formação científica de alto nível e o estudo dos problemas nacionais, no propósito de contribuir para a formação de soluções compatíveis com a realidade do País. Em todos os Estados estão sendo recrutados aqueles que desejam dedicar-se à cultura e à pesquisa, de modo que essa Universidade já começa a constituir-se em núcleo de uma autêntica elite intelectual empenhada no estudo e na solução dos múltiplos problemas nacionais no campo da cultura.
Para mim, docente da UnB, seu ex-Reitor (2008-2012), soa como um registro fundacional encontrar a minha instituição com seu projeto esboçado na Mensagem do Presidente João Goulart, como uma meta-síntese da proposta de educação superior no conjunto de enunciados para a Reforma Educacional e da Universidade.
Desde o início do governo autoritário recém contido no país em eleições dramáticas, depois de instalado por um mecanismo golpista que interrompeu a continuidade de uma governança de alta intensidade democrática, o programa neoliberal a que ele serviu, no aspecto econômico e também no aspecto ideológico, é emblemático que a cultura e a educação e, neste caso, o segmento universitário que anima o ensino, a pesquisa e a inovação tecnológica, se constituiram um alvo preferencial de toda a sua hostilidade e com estratégia de captura de sua infraestrutura e sua autonomia de produção crítica de conhecimento.
Mostrei isso em meu texto “Fature-se”: Ataque Privatizante à Universidade Pública, publicado em https://www.ihu.unisinos.br/categorias/591360-fature-se-ataque-privatizante-a-universidade-publica e também em Future-se valoriza o privado e não acena para o ethos acadêmico, integrante do número especial IHU On-Line – Revista do Instituto HumanitasUnisinos, nº 539 – I Ano XIX, 2019 (https://www.ihuonline.unisinos.br/edicao/539), reunindo importantes depoimentos.
Na esfera ideológica o que se viu foi o intuito de vencer o pensamento crítico, desmistificador da astúcia predadora da governança miliciana e entreguista, que se manifestou seguidamente em ações diretas agressivas (há professoras e professores em programas de proteção no Brasil e no exterior) e em subterfúgios administrativos com o objetivo de criminalizar a liberdade de cátedra e a própria autonomia.
Anota o filósofo católico tomista Jacques Maritain, tão influente na elaboração dos artigos da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, para cujo texto conduziu algumas de suas ideias de seu livro Os direitos do homem (1943), que aquele processo obscurantista do nazi-fascismo, no pensamento e na ação (causou-lhe muita impressão o ensaio genocida da guerra civil espanhola), empurrava as opções para as posições cada vez mais à direita dos conservadores autoritários, extremados no reacionarismo e à esquerda, dos liberais e socialistas, ao extremo da revolução.
Em Lettre sur l’independence, mostra o notável crítico literário e também filosofo da política Álvaro Lins (Cristianismo Político e a Questão-Maritain ante o Fascismo Espanhol, in A Glória de César e o Punhal de Brutus. Ensaios e Estudos. 2ª edição: Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1963), o perigo que a inteligência e a educação afrontam, uma vez que o intelectual, o pensador, o universitário (aqui Lins associa Maritain a outro pensador católico e humanista Bernanos, e poderíamos associar também a Unamuno), longe de delirar na contemplação, devem passar à ação, porque “a vida cotidiana deve estar a seu serviço”, do modo que só possam “ser acusados de traição aqueles que têm capacidade para a ação, numa causa justa, e se afastam dela por medo ou conveniência”.
É para preservar esse espaço de serviço e de compromisso da universidade com causas justas, que se construiu civilizatoriamente, referindo-me somente ao Ocidente, os princípios da autonomia (auto-governo) e de liberdade de ensino, que legaram à modernidade esse espaço irredutível de intangibilidade da instituição universitária.
No Brasil, ainda que a instituição seja retardatária (Século XX) quando já se instalara na América espanhola desde o século XVI, nem por isso foi menos radical a assimilação desses princípios, alcançando com a concepção de universidade necessária, leal à sociedade mais que ao estado, aquele ethos que Darcy Ribeiro canalizou para o projeto da UnB.
Em Universidade de Brasília: projeto de organização, pronunciamento de educadores e cientistas e Lei nº 3.998, de 15 de dezembro de 1961 / Darcy Ribeiro (org), – Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2011, o nosso primeiro Reitor, em seguida à edição da Lei n. 3998, de 15 de dezembro de 1961, que autorizou o Poder Executivo a instituir a Fundação Universidade de Brasília, fez publicar em 1962 o seu texto, numa edição especial patrocinada pelo Ministério da Educação e Cultura, contendo pronunciamentos de educadores e cientistas sobre o texto da lei e o projeto de organização da nova universidade.
Lembrei em prefácio a essa edição, que para Darcy Ribeiro, não tinha o Brasil uma verdadeira tradição universitária a defender e preservar, porque a universidade brasileira, a rigor, diferentemente do que ocorrera em outros países das Américas nos quais elas foram criadas desde o século XVI, somente em 1920, já no século XX, será instituída.
Com a UnB, segundo ele, é que se dará mais propriamente, a instauração do que se poderia designar de universitário para conferir tal estatuto ao nosso ensino superior. Criar, pois, uma universidade em Brasília, constituiu-se numa dupla oportunidade. Primeiro, por reconhecer que, sendo Brasília uma cidade instalada no centro do país e nela implantado o governo da República, se tornaria inevitável instituir um núcleo cultural a que não poderia faltar uma universidade. Depois, para atender à urgência de dotar o país, na etapa de desenvolvimento em que se lançava, de uma universidade que tivesse “o inteiro domínio do saber humano e que o cultive não como um ato de fruição ou de vaidade acadêmica, mas com o objetivo de, montada nesse saber, pensar o Brasil como problema”.
Por isso que, no prefácio que fiz à reedição comemorativa (jubileu da UnB), afirmei que, certamente, muito terá se perdido a partir das sucessivas interrupções e retomadas desse belo e generoso projeto, que nunca se deixou descolar de seu impulso utópico originário. Quando se examina o texto da lei que autoriza a instituição da fundação, incumbida de criar e de manter a Universidade de Brasília, melhor se afere esse movimento. Criado para ser autônomo, sustentável, público mas não estatal, o novo ente recebe a atribuição de inovar, no mais profundo sentido experencial, a ponto de poder organizar seu regime didático, inclusive de currículo de seus cursos sem restar adstrito às exigências da legislação geral do ensino superior (art. 14).
Necessidades que estão postas quando se discute, nesse momento, a reforma do ensino médio (Lei nº 13.415/2017, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), com nova organização curricular aferida desde a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). A implementação da lei, até em razão da nova governança, vem encontrando ampla expectativa de que se prorrogue o debate até para distinguir se a proposta, inserida no contexto da conjuntura agudamente neoliberal (2017), não estaria contaminada por elementos fortemente empresariais que conduzem a uma mercadorização do ensino (na contramão da promessa constitucional de conferir função social e pública à educação), com ênfase numa funcionalização empreendedorista de itinerários formativos, em detrimento de expectativas alternativas para o ensino médio conforme defendem os setores progressistas ligados à educação. Procurei expor os termos dessa discussão em Instituto dos Advogados Brasileiros | I Simpósio da Comissão de Direito Constitucional do IAB, no ensejo das celebrações de seus 180 anos: Novo Ensino Médio: Desafios Estruturantes ao Federalismo Cooperado -https://www.youtube.com/watch?v=ukHP2dKAaig).
Do mesmo modo, na educação superior e na organização universitária, a mobilização corrente é no sentido de recuperar a gestão democrática enquanto processo que possibilita a participação e a responsabilização de todos que se envolvem com a atividade acadêmica, a representação nos processos de tomada de decisão e de avaliação e fiscalização das funções e da autonomia universitária.
É minha convicção que a explicitação de procedimentos e a garantia da participação da comunidade acadêmica na gestão das instituições de educação superior virá a contribuir, efetivamente, para o seu melhor funcionamento, para uma gestão mais eficiente e para a concretização de seus compromissos com a melhoria da qualidade e o cumprimento de sua função social, conforme tenho sustentado (Violação da Autonomia Universitária: Punição ao Abuso de Poder, 14 de janeiro de 2022: https://www.brasilpopular.com/violacao-da-autonomia-universitaria-punicao-ao-abuso-de-poder/).
Nessa intervenção, trago o tema muito sensível que já ativou a atuação preocupada da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (confira em https://www.brasilpopular.com/principios-interamericanos-sobre-a-liberdade-academica/), que aprovou Princípios Interamericanos sobre a Liberdade Acadêmica, para prevenir “a constatação da ameaça crescente, no continente, de agressões, mobilizações e atitudes contra a autonomia universitária e a liberdade de ensino, sobre a desinstitucionalização e a desconstitucionalização desses fundamentos, caros aos enunciados dos direitos convencionais internacionais, assim como da própria ONU”(https://www.oas.org/es/cidh/informes/pdfs/Principios_Libertad_Academica.pdf).
De resto, essas diretrizes estão afinadas com o Comentário Geral 13 do Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (ONU), que deixou bem assentado o reconhecimento da liberdade acadêmica, cuja satisfação, assegurada em geral pelas constituições dos países: “é imprescindível à autonomia das instituições de ensino superior. A autonomia é o grau de auto governo necessário para que sejam eficazes as decisões adotadas pelas instituições de ensino superior no que respeita o seu trabalho acadêmico, normas, gestão e atividades relacionadas”.
Salvaguardar o espaço crítico autônomo da Universidade é dar concretude a uma categoria constitutiva dos direitos fundamentais, a liberdade de consciência e de expressão, de comunicação, sem falar daquelas ligadas ao sistema de proteção à educação, que estão tanto na Declaração Universal dos Direitos Humanos quanto na Convenção Interamericana de Direitos, quanto nos protocolos derivados dela, como de São Salvador.
Esses princípios asseguram o fundamento convencional e a diretriz constitucional de autonomia universitária e de liberdade de ensino e não podem servir ao escrutínio censor, mesmo do Presidente da República, para acobertar numa elasticidade imprópria de que lhe cabe a direção geral da administração (ar. 84 da CF), para assim, transformar supervisão em subordinação, desconstitucionalizando o princípio da autonomia universitária, e na voragem autoritária, sufocar a crítica acadêmica e até, no limite, a dignidade e a vida, como agora vai se revelando no evento policial-judicial que sacrificou o Reitor Cancellier (MARKUN, Paulo. Recurso Final. A Investigação da Polícia Federal que Levou ao Suicídio um Reitor em Santa Catarina. São Paulo: Cia das Letras, 2021; cf. também meu artigo https://www.brasilpopular.com/o-reitor-cancellier-o-absurdo-e-o-suicido-reparar-a-injustica/) e tem forçado já verdadeiros exílios de professores em nossas universidades e o próprio atual Presidente, num desvio de lawfare, impedido – o que o social mobilizado não permitiu – de retornar à Presidência da República, como agora, para um raro e inédito terceiro mandato.
Rever a Mensagem ao Congresso Nacional enviada pelo Presidente João Goulart ao Congresso Nacional na abertura da Sessão Legislativa de 1964, guarda uma nostalgia repristinatória, no sentido de imaginar o que poderiam ter representado para o país, não fosse a ruptura que frustrou a implementação daquele conjunto articulado de propostas de reformas de base para operar as mudanças necessárias à renovação das instituições socioeconômicas e político-jurídicas brasileiras.
Mas então, tal como agora, pensar reformas alternativas para um projeto de sociedade e de país, significa como dizia Darcy Ribeiro, colocar o Brasil como problema, ou como diz o Presidente Lula, ter o Brasil como causa. Nos desafiarmos ainda com Darcy, a encontrar caminhos de superação do subdesenvolvimento autoperpetuante em que fomos metidos pela política econômica das potências vitoriosas no após-guerra; porque não há, em nenhum lugar da Terra, um modelo comprovadamente eficaz de ação contra a crise político-econômica em que estamos afundados (RIBEIRO, Darcy. O Brasil como Problema. Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro; Brasília: Editora UnB. Coleção Darcy no Bolso vol. 2, 2010).
Tanto mais que agora, é forte a mobilização de retomada democrática em curso no Brasil desde o início deste ano de 2023, com a eleição de um projeto de sociedade democrático e popular, colocar na agenda o tema das reformas para resgatar esse sentido de alternativa e inaugurar uma nova etapa, voltando a Álvaro Lins, que leve a valorizar “a necessidade de um novo mundo político”, para além da angústia alienadora do neoliberalismo.
(Eco) Constitucionalismo Achado na Rua como Chave para um Direito Emancipatório: lições quilombolas de Procópia Kalunga
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
Marconi Moura de Lima Burum. (Eco) Constitucionalismo Achado na Rua como Chave para um Direito Emancipatório: lições quilombolas de Procópia Kalunga. Dissertação apresentada e defendida no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (CEAM). Brasília: UnB, 2024, 232 fls.
Banca Examinadora que presidi na qualidade de Orientador da Dissertação, formada pelo professor Gladstone Leonel da Silva Júnior, da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pela professora Walkyria Chagas da Silva Santos Guimarães, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), membros externos e pelo professor Antônio Sérgio Escrivão Filho, da Universidade de Brasília (UnB), membro interno. Presente na sessão Dona Procópia Kalunga (Procópia dos Santos Rosa), usou a palavra e fez comentários sobre o trabalho.
Do que trata a dissertação, diz o seu resumo:
A pesquisa que neste se apresenta vem trazer inquietações filosófico-teoréticas ao estado da arte dos estudos para um (Eco)constitucionalismo – Achado na Rua. Buscando sua fundamentação nas concepções da Teoria Crítica do Direito, neste quadrante, do Direito Achado na Rua, propõe-se no excerto monográfico em comento, problematizar o discurso dos domínios da colonialidade, ou de uma cognição colonial que se espraia pela cultura latinoamericana, neste particular, nosso estudo ao conteúdo brasileiro. Como rio que corre para o mar, é nascente para este percurso os postulados teóricos de Roberto Lyra Filho. No fundamento, duas questões são condições sine qua non em sua sociologia jurídica: a primeira é que o direito está para a liberdade; e a segunda é que a liberdade se dá na história. Logo, a cadeia semiológica da presente dissertação, como uma espiral em que se galga o horizonte da utopia, contudo, sem perder de vista em qualquer instante a certeza de que é na luta que se rompe com os fatores histórico-culturais de opressão e vulnerabilização dos sujeitos, a emancipação é a práxis. Destarte, o trabalho, ao lado da potência teorética que se quer apresentar, é também ferramenta adicional para a superação dos mecanismos que, deste modo de se realizar a sociedade, ao longo de seu enviesamento conceitual e político, passaram a subsidiar a estiolação e a subalternização dos sujeitos. A presente dissertação traz consigo uma forte tônica de trans e interdisciplinaridade. Não como centro, contudo, como órbita, busca-se atribuir a partir do todo que percorre o trabalho, a gramática dos Direitos Humanos e dos Direitos da Mãe Terra. Por conseguinte, o campo analítico é o legado de uma liderança matriarca quilombola, Procópia dos Santos Rosa, do povo kalunga. E pelo espelho de suas lutas históricas que problematizamos, de um lado, a violação dos direitos fundamentais de sujeitos coletivos de direito em semântica de espoliação e, do outro, os fatores de influência para lutas e conquistas do povo contra a colonização – sempre – reinventada. Entre os desdobramentos que se faz estudo de caso, os impactos da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, a ADPF Quilombola (nº 742), em cuja síntese é a demarcação estratégica dos povos quilombolas junto ao “território” do sistema de Justiça, isto é, como sujeitos instituintes de direitos constitucionais. A luta de Procópia Kalunga e dos demais sujeitos quilombolas é pela vida, pelos direitos inscritos na promessa constitucional e pela preservação ecológica do sistema Terra. É nisto que se captura um outro escopo de Constitucionalismo. Isto posto, pesquisando, em especial Roberto Lyra Filho, José Geraldo de Sousa Junior, Raquel Yrigoyen Fajardo, e outras/os que entregam as epistemologias de potência científica, contudo, também de resistência às (super)estruturas estiolantes, apresentamos à sociedade um compêndio adicional para o que se denomina aqui como (Eco)constitucionalismo Achado na Rua.
Analiticamente a dissertação se desenvolve conforme os itens designados no Sumário do trabalho:
INTRODUÇÃO
CAPÍTULO 1: A história como esteira do movimento humano 1.1. Considerações iniciais – para a História e para o Constitucionalismo
1.2. A História enquanto ciência: noções gerais
1.3. Aplicação de um caso concreto à (nossa) proposta de observação da História
1.4. O Direito Achado na Rua – por sua disposição histórica
1.5. O Constitucionalismo Achado na Rua diante dos “deboches” da História
1.5.1. Cenário 1: o Marco Temporal, no STF, é criado
1.5.2. Cenário 2: o Marco Temporal volta ao STF, agora para ser julgado
1.5.3. Cenário 3: o Marco Temporal retornará ao STF, após revisionado no Congresso
CAPÍTULO 2: Constitucionalismo e (Eco)constitucionalismo: panoramas e paradigmas
2.1. Escopo histórico e teorético do(s) Constitucionalismo(s)
2.2. Do Constitucionalismo para a Constituição: questões conceituais
2.3. Dimensões de um Constitucionalismo – para reflexão e mobilização adicionais
2.4. Novo Constitucionalismo Latino-americano: paradigmas contra-hegemônicos
2.5. Constitucionalismo Achado na Rua: concepções teóricas
2.6. (Eco)constitucionalismo Achado na Rua: uma introdução
2.7. O Ecoconstitucionalismo como premissa de um Direito Geopolítico
2.8. O trans-ecoconstitucionalismo como mobilização de outra cultura (inter)nacional
2.10. Econstitucionalismo Latino-americano: contraste com a perspectiva de um “Cisne Negro”
CAPÍTULO 3: O Direito em Procópia dos Santos Rosa, liderança do povo kalunga
3.1. Procópia: Doutora Honoris da causa da humanidade
3.2. Quem é Procópia dos Santos Rosa e o que nela conectamos a Ecologia?
3.3. Procópia: uma aliada fundamental
3.4. Quem vem primeiro: o sujeito ou o sujeito coletivo de direito?
3.5. Dimensão indissociável entre decolonialidade e sujeitos coletivos (de Direito)
3.6. Procópia: inspiração e luta pelos Direitos Humanos – não apenas a seu povo
3.7. Procópia, a ADPF nº 742 e os ventos de um novo STF
3.8. ADPF nº 742 sela quilombolas como sujeitos instituintes de direito
3.9. Polos irrenunciáveis da principiologia contida no instituto da ADPF
3.10. A ADPF, por ela mesma
3.11. O Direito Achado na Rua como chave para um Direito Emancipatório
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
APÊNDICE I – As variações linguísticas e o sentido real das coisas
APÊNDICE II – Intersecções tentadas entre Lyra Filho e Procópia Kalunga
APÊNDICE III – Formação complementar ou (melhor) Formação essencial
ANEXO I – A Dra. Honoris Causa, Procópia dos Santos Rosa
ANEXO III – Registros: Momento em que a direção da CONAQ protocoliza a ADPF nº
742
ANEXO IV – Dialogias da Dissertação nº 1: Semiologia da Dominação
ANEXO V – Dialogias da Dissertação nº 2: Distopia e Humanidade
Dialogias da Dissertação nº 2: Distopia e Humanidade
ANEXO V – Araras presas – e a utopia da Liberdade: : paradigmas para o ECANR
ANEXO VII – Dialogias da Dissertação nº 3: Esperança(r)
ANEXO VIII – Direito de “Ulisses” e Direito Achado na Rua: encontros!
ANEXO IX – Dialogias da Dissertação nº 4: a História como Juíza
ANEXO X – Território Constitucional
A Introdução se constitui num consistente ensaio de posicionamento. O Autor é reconhecidamente convicto e assertivo no seu protagonismo intelectual e político, por isso sempre se colocando em primeira pessoa, embora com o cuidado de demarcar o plano de objetividade e de distanciamento para o estabelecimento de seus juízos. Constrói invariavelmente categorias e modelos classificatórios para a apresentação e organização dessas categorias, dos conceitos e das noções que maneja.
Assim que propõe como determinação de seu lugar de análise e da novidade de seu programa, estabelecer uma categoria própria que lhe situa e que propõe para ter validação no acumulado do que se tem chamado de fortuna crítica de O Direito Achado na Rua: tal como está no título de sua dissertação: (Eco) Constitucionalismo Achado na Rua como Chave para um Direito Emancipatório.
Com efeito, com essa designação, o seu desiderato acadêmico imprime uma caracterização a um processo em movimento que vai discriminando aproximações teórico-políticas como contribuição para a teoria crítica do direito e dos direitos humanos (https://estadodedireito.com.br/o-direito-achado-na-rua-contribuicoes-para-a-teoria-critica-do-direito/). É um movimento que opera no protagonismo de sua ação política, formas emancipatórias na perspectiva dos direitos humanos – germinais – já caracterizadas até aqui, por seus protagonistas intelectuais, associados à Nova Escola Jurídica Brasileira – NAIR, como sindicalismo achado na rua, ítem anterior acrescido ao catálogo de ricos achados que formam a fortuna crítica de O Direito Achado na Rua: a Aldeia, o Quilombo, a Rede, os Lares, a Noite, o Manicômio, o Cárcere, a Encruzilhada, as Águas, Campos e Florestas Amapaenses, o Constitucionalismo Achado na Rua (Victor Nunes Leal e JJ Gomes Canotilho), a Rua em seu sentido amplo de espaço de cidadania (Milton Santos, Paulo e Nita Freire, Roberto Lyra Filho).
O percurso de Marconi Burum na dissertação está mapeado a partir dos capítulos em que o trabalho se sumaria:
Capítulo 1, “A história como esteira do movimento humano”. A intenção deste instrumento é conectar o quanto possível as concepções da história ao elementar do movimento constitucional, ao caminhar humano para a vida e para o conjunto das coisas que permeiam a vida, entre as quais, o direito.
O Capítulo opera como um grande preâmbulo, um ensaio ao momento maior do trabalho – que vai transladando.
Capítulo 2, por seu escopo lido como: “Constitucionalismo(s) e Ecoconstitucionalismo: panoramas e paradigmas”, buscamos descrever entre os principais eventos, contextos gerais acerca do Constitucionalismo, isto é, um a apresentação sintética de teorias que tratam sobre esta categoria que é teoria e que é movimento. Também faremos dissertar as concepções acerca do Novo Constitucionalismo Latino-americano, e dimensões outras que sejam fundamentais na concatenação do capítulo em comento.
Nesse Capítulo o esforço conecta-se com as concepções gerais do Constitucionalismo Achado na Rua até desdobrar-se na proposta do Ecoconstitucionalismo Achado na Rua. Este último é o mote da seção mencionada, contudo, dividido em algumas dimensões que compreendemos estratégicas para a produção de uma epistemologia, que não integralmente autoral, carente de ampliação do seu estado da arte.
Capítulo 3, “O Direito em Procópia dos Santos Rosa, liderança do povo kalunga”, cujo núcleo é também o escopo da proposta do trabalho. Esse Capítulo traz ainda os pressupostos teóricos do Direito Achado na Rua; as concepções e mobilizações que se desdobram dos sujeitos coletivos de direito; e uma ampliação do conteúdo acerca da decolonialidade, isto é, instrumentos para uma cognição decolonial. E é neste Capítulo que também se inscrevem as interpretações autorais quanto à ADPF Quilombola.
Para o Autor, com estes capítulos, ele busca responder a pergunta-problema que o conduziu no trabalho, qual seja, “sabendo-se das crises por que possa a humanidade, particularmente, os eventos contra-climáticos, os abismos produzidos pelos mecanismos neoliberais (seus modos de produção e de extração de riquezas da Terra), os contenciosos geopolíticos com escaladas de conflitos intransponíveis e as de estabelecimento de uma cognição coletiva cada vez mais hegemonizada à competição entre humanos, como o Constitucionalismo Achado na Rua pode reunir vozes epistemológicas e políticas – a exemplo: a de Procópia dos Santos Rosa – para mobilizar (e assessorar as mobilizações) que colaborem com a noção de um movimento Ecoconstitucional, concomitantemente, com um Direito Emancipatório?”:
A Constituição, uma vez instituída, não deve ser reduzida a mero documento jurídico incapaz de influenciar na vida política e social do território que está submetida. Um olhar abstrato e idealizado desse instrumento inviabiliza a construção cotidiana da soberania popular e da legítima organização social da liberdade. A Constituição deverá sim, conferir sentido político ao direito garantindo concretude a uma Teoria Constitucional que reconhece a luta social, proveniente da dialética, ou seja, garanta o exercício real do que chamamos aqui de soberania popular. Este é o papel do Constitucionalismo Achado na Rua. (LEONEL JÚNIOR, 2018, p. 186)
É isto que requeremos como vitrine da presente dissertação, entretanto, cientes de que, o Constitucionalismo Achado na Rua não é a “salvação” do mundo – para além da metáfora que o presente texto buscou invocar como uma “genética” cognitiva-ativa aos sujeitos. No entanto, sua potência, indubitavelmente, pode apontar instrumentos – casos concretos e epistemologias de engajamento – que inspirem reflexões e ações (estruturais e institucionais) para que, ainda presos à ideologia dos Estados modernos, ao menos assim, possam repactuar sua gramática civilizatória, inaugurando acervos normativos-culturais novos que, se não consigam impedir a sucumbência da humanidade; ao menos “adiem o fim do mundo”, em sentido literal ao que se vislumbra concretamente.
Numa síntese geral, ademais, o Constitucionalismo se dá na história e para a história. É uma chave de guinada do arranjo histórico de uma civilização. Neste ínterim, o Constitucionalismo Achado na Rua representa a chave de uma outra dimensão diametralmente oposta a que se conhecia até o século XXI da humanidade. Um Constitucionalismo de pertença, de solidariedade, de cooperação, de integração do ser humano aos ecossistemas, ambiental, social, cultural diversos.
Esse constitucionalismo, dito por Marconi, de pertença, de solidariedade, de cooperação, é o que temos no Coletivo que formamos, designado como Constitucionalismo Achado na Rua (https://estadodedireito.com.br/constitucionalismo-achado-na-rua-uma-contribuicao-a-teoria-critica-do-direito-e-dos-direitos-humanos-constitucionais/). É uma uma proposta de decolonização do Direito, que escrevi com minha colega Lívia Gimenes Dias da Fonseca (Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, vol.08, nº. 4, 2017, p. 2882-2902), cf. em https://www.scielo.br/j/rdp/a/nshLTQJxwGHYJVk3Km6453P/?lang=pt&format=pdf. Também, https://pt.wikipedia.org/wiki/Constitucionalismo_achado_na_rua, verbete construído por meus alunos da disciplina Pesquisa Jurídica (Faculdade de Direito da UnB), que na compreensão deles “consiste em construções teóricas e práticas jurídicas resultantes de estudos do Grupo da linha de Pesquisa O Direito Achado na Rua, integrante do Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq. Tem entre seus objetivos conceber condições concretas de garantia e exercício de direitos por sujeitos coletivos, como grupos oprimidos e movimentos sociais. Tal concepção recebe influência da sociedade em diversos aspectos, como das lutas constituintes e da atuação de movimentos sociais, do novo constitucionalismo latino-americano e do pluralismo jurídico”.
Entretanto, para sugerir muitas aproximações, reporto-me à recensão que preparei para a Coluna Lido para Você – https://estadodedireito.com.br/sociologia-do-novo-constitucionalismo-latino-americano-debates-e-desafios-contemporaneos/, quando aludo ter resenhado esse percurso. Claro que em O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática, volume 2, cit., no capítulo (Parte IV): O Direito Achado na Rua: Desafios, Tarefas e Perspectivas Atuais, já inscrevemos uma anotação programática nessa direção, ao indicar (p. 224): que “Essas experiências refletem uma espécie de ‘Constitucionalismo Achado na Rua’, em que os atores constituintes, os protagonistas desses processos, que envolveram povos indígenas, feministas, campesinas e campesinos, trabalhadoras e trabalhadores e setores historicamente excluídos, arrancam do processo constitucional novas formas de pluralismo jurídico e conquistas de Direitos”.
Com Gladstone Leonel Silva Junior, presente na banca como examinador, eu também trabalhei o tema, procurando fixar a sua mais precisa enunciação. Assim, em Revista Direito e Práxis, On-line version ISSN 2179-8966 (http://old.scielo.br/scielo.php?pid=S2179-89662017000201008&script=sci_abstract&tlng=pt). LEONEL JUNIOR, Gladstone and GERALDO DE SOUSA JUNIOR, José. A luta pela constituinte e a reforma política no Brasil: caminhos para um “constitucionalismo achado na rua”. Rev. Direito Práx. [online]. 2017, vol.8, n.2, pp.1008-1027. ISSN 2179-8966. https://doi.org/10.12957/dep.2017.22331, valendo o resumo: “A crise política brasileira, evidenciada a partir de junho 2013, enseja novas reflexões para a conjuntura recente. A reforma do sistema político é necessária e um das formas de viabilizá-la é por meio de uma Assembleia Constituinte. Sobretudo, se observado os movimentos político-jurídicos dos últimos 15 anos nos países da América Latina. Cabe refletir sobre o momento e as possibilidades dessa aposta pautando-se em um ‘constitucionalismo achado na rua’”.
Quase que simultaneamente, também com Gladstone publicamos em La Migraña… Revista de Análisis Político, nº 17/2016. Vicepresidencia del Estado Plurinacional de Bolívia: La Paz, o artigo La lucha por la constituyente y reforma del sistema político em Brasil: caminhos hacia um ‘constitucionalismo desde la calle’.
Com essas referências, alcança-se o patamar que, juntamente com Antonio Escrivão Filho (ESCRIVÃO FILHO; SOUSA JUNIOR, Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016), especialmente no Capítulo V – América Latina, desenvolvimento e um Novo Constitucionalismo Achado na Rua, páginas 123-150), enunciamos, vale dizer, que o Constitucionalismo Achado na Rua vem aliar-se à Teoria Constitucional que percorre o caminho de retorno a sua função social. Uma espécie de devolução conceitual para a sociedade, da função constitucional de atribuir o sentido político do Direito, através do reconhecimento teórico-conceitual da luta social como expressão cotidiana da soberania popular. Um reencontro entre a Teoria Constitucional, e o Direito compreendido como a enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade (p. 149).
Em Marconi Burum, o seu arranque, instigado pelo aprendizado telúrico que a aproximação com Dona Procópia inspirou, levando-o pela mão nos territórios quilombolas, faz com que ele se coloque na órbita do novo ciclo de constitucionalização na América Latina (https://estadodedireito.com.br/sociologia-do-novo-constitucionalismo-latino-americano-debates-e-desafios-contemporaneos/).
Como anota a peruana Raquel Yrigoyen Fajardo (El horizonte del constitucionalismo pluralista: del multiculturalismo a la descolonización. In: GARVITO, César Rodriguez (Coord.). El derecho en América Latina: un mapa para el pensamiento jurídico del siglo XXI. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2011), aferindo as experiências constitucionais na América Latina, incluindo o Canadá, há um primeiro ciclo caracterizado como “constitucionalismo multicultural” (Canadá, 1982), (Guatemala, 1985), (Nicarágua 1987) e (Brasil, 1988). O segundo ciclo referente ao “constitucionalismo pluricultural” (Colômbia, 1991), (México e Paraguai, 1992), (Peru, 1993), Bolívia e Argentina, 1994), (Equador, 1996 e 1998) e (Venezuela, 1999). E o terceiro ciclo, finalmente, é reconhecido pelo alcance de um “constitucionalismo plurinacional”, a partir das inovadoras Constituições do (Equador, 2008) e (Bolívia, 2009), nas quais, diz Raquel, já se trata de um ciclo pluricultural, plurinacional e ecológico, nas quais “se pluraliza a definição de direitos, a democracia e a composição dos órgãos públicos e as formas de exercício do poder”.
Raquel Yrigoyen, que já inscrevera em sua concepção a tese de um constitucionalismo plurinacional, tem avançado fortemente, desde seu diálogo com as cosmogonias e cosmovisões dos povos ancestrais, em direção a um constitucionalismo ecológico ou eco-constitucionalismo, sem contudo abdicar de suas teses originais sobre o pluralismo jurídico (YRIGOYEN, O Direito à Alimentação como um Direito Humano Coletivo dos Povos Indígenas, in O Direito humano à alimentação e à nutrição adequadas [livro eletrônico] : enunciados jurídicos / organizadores Valéria Torres Amaral Burity…[et al.]. — Brasília, DF FIAN Brasil : O Direito Achado na Rua, 2021. PDF).
Concluo a indicação da dissertação como trabalho importante para pesquisadores e também para editores, com o que a obra representa, nas considerações de seu próprio Autores:
Precisamos compreender – e é esta a intenção de entrega do presente trabalho – que o Direito, como todo corpo (infra)estrutural que formam o tecido social (e os Estados modernos), possui um compêndio ideológico. Roberto Lyra Filho, em seu opúsculo tão magnificamente oportuno, “O que é Direito”, oferece uma reflexão dialética indubitavelmente oportuna para se escolher um dos “lados” da ciência do Direito.
A teoria crítica é gênese de nossa escolha ideológica para o conjunto referencial desta dissertação. Seu recorte gramatical: um direito que seja emancipatório – como nos educa Paulo Freire; como nos postula o próprio Roberto Lyra Filho; como mobiliza José Geraldo de Sousa Junior. Sua abordagem epistemológica: os acúmulos do Direito Achado na Rua a empreender no estado da arte do Constitucionalismo Achado na Rua, mais nuclearmente, a potência de um Ecoconstitucionalismo Achado na Rua, acréscimos teoréticos. Seu expoente para um estudo de caso: os sujeitos coletivos de direito do quilombo kalunga, neste particular, a semiologia que se desdobra da luta e inspiração para a luta de Procópia dos Santos Rosa. Procópia é sujeito (e o são os sujeitos coletivos) instituinte de um Constitucionalismo Achado na Rua, de viés Ecoconstitucional. Bolsonaro é sujeito (e o são os neocolonizadores da superestrutura capitalista latino-americana) desconstituinte de direitos. Lula é sujeito (e o são os movimentos sindicais, estudantis, negros, de mulheres etc.) constituintes – como em 1988 e nos tempos atuais – de um modelo cidadão, democrático de sociedade, com potência ao respeito para as coisas da Natureza, dos Direitos Humanos, da igualdade e equidade utópicas realizáveis.
O Direito Achado na Rua estuda isso. O Direito Achado na Rua aprende (com) isso. O
Direito Achado na Rua mobiliza isso. O Direito Achado na Rua assessora isso. O Direito Achado na Rua (re)existe a partir disso. E este trabalho é um recorte disso – tudo – que O Direito Achado na Rua encontra todos os dias – da História – nas várias tipologias de Ruas, onde mora a liberdade, a emancipação e a possibilidade de um mundo sem dominação, esbulho e exploração de cada pessoa (e de todas as pessoas), e da Natureza
É nesse diapasão que Marconi vai ficar O Direito Achado na Rua como chave para um Direito Emancipatório, apto a transitar para o outro lado da rua, como o percebe J. J. Gomes Canotilho, e “Do outro lado da rua, o ‘direito achado na rua’ e perante o sangue vivo que brota dos vasos normativos da realidade e a sedução de um direito outro, alternativo ao direito formal das constituições, códigos e leis, compreende-se que o discurso hermenêutico dos juristas mais não seja que um manto ocultador do insustentável peso do poder” (Estudos sobre Direitos Fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora; São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008).
O sindicalismo achado na rua: agência e contradições da Federação Única dos Petroleiros nas greves de 1995 e 2020
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
Rodrigo Camargo Barbosa. O sindicalismo achado na rua: agência e contradições da Federação Única dos Petroleiros nas greves de 1995 e 2020. Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Direitos Humanos e Cidadania da Universidade de Brasília –PPGDH/UnB, 2024, 171 fls.
Registro a Banca Examinadora, formada pelos professores Alexandre Bernardino Costa – Orientador (PPGDH/UnB), Antonio Sergio Escrivão Filho – Coorientador (PPGD/UnB), David Sánchez Rubio – (Universidade de Sevilla/US), membro externo; pela professora Renata de Queiroz Dutra – (PPGD/UnB), Membro Interno e por mim, membro interno do PPGDH, perante a qual a Dissertação foi apresentada, defendida e aprovada.
Transcrevo para compartilhar, o resumo da dissertação que sintetiza os objetivos do trabalho:
O problema de pesquisa interpela a organização sindical petroleira, através da Federação Única dos Petroleiros – FUP, em seu repertório de ações coletivas de sorte a confrontar os reflexos do neoliberalismo na regulação social do trabalho e ataque à organização sindical, em uma análise comparativa das reivindicações entre as greves dos petroleiros de 1995 e 2020. A hipótese da pesquisa está em compreender formas de resistência sindical e tendências de repertórios emergentes de mobilização social no seio da lógica neoliberal. Para além, uma hipótese de repertórios que se constituam emancipatórios na perspectiva dos direitos humanos e na mobilização coletiva de forças sociais, no sentido de se dispor a enfrentar a desconstrução de paradigmas como solidariedade e poder sindical. É verificar, portanto, se a FUP enuncia a categoria de um “sindicalismo achado na rua”. O objetivo geral, por sua vez, se debruça na análise da pauta reivindicatória da FUP no período das greves (1995 e 2020) e seu repertório estratégico de lutas sob o contexto da racionalidade neoliberal, de modo a visibilizar potencialmente os sujeitos coletivos de direito que configuram essa nova morfologia heterogênea do trabalho na agenda social do sindicalismo petroleiro. O percurso metodológico se alinha à epistemologia histórico-dialética, a ser adotada a revisão bibliográfica de estudos clássicos e contemporâneos da Sociologia do Trabalho, Economia e Filosofia Política e Teoria Crítica dos Direitos Humanos. A empiria será considerada via pesquisa de campo pelas entrevistas semiestruturadas de dirigentes sindicais, a partir da análise de conteúdo para interpretação e explicação dos dados e fenômenos
Em que pese a sofisticação do arcabouço de pesquisa que sustenta e valida os achados do estudo desenvolvido na Dissertação, a chave de leitura que me moveu no exame do trabalho foi o ponto de partida que o Autor estabeleceu: “A hipótese da pesquisa está na presença, através das ações coletivas da FUP, de formas de resistência sindical e tendências de repertórios emergentes de mobilização social no seio da lógica neoliberal. Para além, uma hipótese de repertórios que se constituam emancipatórios na perspectiva dos direitos humanos e na mobilização coletiva de forças sociais, no sentido de resistir à desconstrução de paradigmas como solidariedade e poder sindical, em observação comparativa entre as greves de 1995 e 2020. Verificar, portanto, se a FUP promove a teoria e prática de um sindicalismo achado na rua”.
Como somos muitos os examinadores e examinadora e extremamente zelosos os orientadores, ambos vinculados organicamente, à base político-epistemológica que sustenta o acervo conceitual que guia o percurso de conhecimento e análise desenvolvidos (aprimoramento e desenvolvimento de repertórios que se constituam emancipatórios na perspectiva dos direitos humanos e na mobilização coletiva de forças sociais. Significa dizer que, entender como o capital age (com eventuais limites ou não) na exploração sobre o trabalho (e sindicalismo petroleiro) é uma primeira etapa a se concluir, em seguida, se há parâmetros comparativos entre as greves de 1995 e 2020 a se concluir sobre a capacidade de se contrapor à ordem neoliberal a partir de mudanças ou (re)adaptações de repertórios estratégicos de luta), a minha atenção será enviesada, para avaliar a realização proposta, na baliza de enunciados pertinentes a essa base, assim, por exemplo, no que o Autor propõe no seu objetivo geral da pesquisa [que] está em compreender e analisar a pauta reivindicatória da FUP no contexto das greves tanto de 1995 quanto a de 2020, e seu repertório estratégico de lutas sob o contexto da racionalidade neoliberal, de modo a visibilizar potencialmente os sujeitos coletivos de direito que configuram essa nova morfologia heterogênea do trabalho na agenda social do sindicalismo petroleiro.
Penso que a organização da investigação desdobra, a partir do objetivo geral, três objetivos específicos, aptos a conduzir a bom termo o escopo da pesquisa. Compartilho com os leitores e as leitoras, esses objetivos:
Analisar o neoliberalismo a fim de demonstrar o atual estágio de espoliação da regulação social do trabalho no Brasil e na categoria petroleira, e seus impactos na terceirização e privatização contemporâneas;
Historicizar a trajetória da Federação Única dos Petroleiros e analisar qual o impacto da conformação, concepção e atuação do movimento sindical industrial petroleiro dentro da intensificação da agenda neoliberal, com especial atenção para suas capacidades e poderes sindicais de mobilização coletiva;
Problematizar qual a capacidade da organização sindical petroleira de se contrapor ao fenômeno neoliberal, a partir da comparação de eventuais mudanças e/ou (re)adaptações no seu repertório estratégico de ações coletivas e pautas reivindicatórias entre greves de 1995 e 2020.
Desde uma perspectiva que configura o sujeito como constitutivo de um sindicalismo achado na rua, é próprio que o objeto da pesquisa demande uma análise não só pela centralidade do trabalho,mas também atento às subalternidades transversais e interseccionais típicas da opressão neoliberal, alinhando um grande desafio a se averiguar se há umaproposta contrahegemônica atual de resistência coletiva do movimento petroleiro,notabilizando-se ao que entendemos pela necessidade da existência de uma nova sistemática organizacional pós “novo sindicalismo” presente no liberalismo clássico (p. 23-24).
Portanto, de que sindicato estamos falando? Na minha interlocução sindical, ao tempo em que colaborei com o Sindjus-DF, Sindicato dos Servidores do Poder Judiciário e do Ministério Público, de Brasília, propus essa questão mais de uma vez, na coluna que mantive na revista da Entidade por anos.
Não só para responder a injunções reformistas postas na pauta de quando em quando. Mas para dar lastro a uma discussão condizentes ao movimento de atribuir contemporaneidade ao sindicalismo. Que sindicato?
Num tempo em que o capital se globaliza e os trabalhadores vêem encurtar-se, o seu espaço de atuação institucional, a memória operária constituída na ação de conquista de direitos busca se revitalizar, pela base, de forma democrática e participativa.
É neste imaginário de revalorização da ação sindical que se deve aferir, na estrutura sindical, posicionamentos em favor da “fraternidade (que) exige dos sindicatos a luta pela integração de todos os excluídos, privilegiando a defesa dos segmentos mais pobres e discriminados”. Uma solidariedade, de resto, necessária à salvaguarda de sua própria ação sindical afetada pelos mais fortes assaltos de um neoliberalismo tão bem caracterizado por Rodrigo Barbosa na Dissertação (Revista do Sindjus nº 22, março de 2005).
Um começo de resposta, como condição para alargar as suas funções democráticas, levando ao desenho de um novo, mais amplo e mais arrojado arco de solidariedade adequado às novas condições de exclusão social e às formas de opressão existentes nas relações na produção, extravasando assim o âmbito convencional das reivindicações sindicais, ou seja, as relações de produção. Não porque se remeta a uma elite na hierarquia do mundo do trabalho, o que não lhe destaca do universo de classe salvo se o decolonial lhe permita arrancar-se, mesmo puxando-se pelos cabelos, do lugar subalterno que o domínio do capital lhe impõe.
Nessas condições, nas quais se constituem novos antagonismos sociais, o papel do sindicalismo na sociedade, toma feição mais política e mais solidária. Um sindicalismo com mensagem mais integrada e alternativa, onde tudo liga com tudo: trabalho e meio ambiente; trabalho e sistema educativo; trabalho e feminismo; trabalho e necessidades sociais e culturais de ordem coletiva; trabalho e Estado-Providência; trabalho e terceira idade etc, não podendo deixar de fora nada do que afete a vida dos trabalhadores e dos cidadãos em geral (confira-se meu texto e as referências devidas na publicação).
Com efeito, uma organização sindical estruturada democraticamente pela base, movendo-se pela solidariedade constituída no próprio espaço do trabalho, para fomentar um coletivo que é gestado na discussão do cotidiano, no qual se avalia a qualidade e a dignidade de um projeto de vida re-inserido em sua dimensão verdadeiramente humana que o investimento competitivo havia alienado (Revista do Sindjus Julho de 2005 • Nº 25).
Numa outra coluna – Responsabilidade Sindical e Projeto de Vida – puxei a discussão para a busca, em tempos de globalização, por essas alternativas voltadas para um mundo melhor de modo a pensar a reinvenção do movimento sindical, num processo que coloca hoje os sindicatos mais como movimentos do que como instituições.
É daí que vem a perspectiva do sindicato como movimento, “sindicato de cidadania”, descrito como parte de um mais amplo e arrojado arco de solidariedade, adequado às novas condições de exclusão social, que acabaram por conferir à ação sindical um novo papel na sociedade, mais político, para o qual a ação reivindicativa não pode deixar de fora nada do que afete a vida dos trabalhadores e da cidadania (Revista do Sindjus Outubro de 2007 • Nº 43).
Com efeito, um “sindicato cidadão” (Revista do Sindjus nº 66 – Maio de 2010: Como surgiu o sindicato cidadão). Um fenômeno marcante na década de 1980, logo difundido na mídia, dando conta da emergência no mundo da produção e do trabalho do discurso da “responsabilidade social”, como forma de grupos organizados se mostrarem comprometidos com as comunidades nas quais estejam, mais do que inseridos, integrados.
A noção de compromisso social, que rapidamente desbordou para outros campos, como o cultural e o acadêmico, traz uma notação que surgiu no espaço do mercado, quando tomou forma a incorporação dos sentimentos morais, aludindo aqui à expressão de Adam Smith para trazer a ética para o centro da economia.
Ainda que a forma capitalista do desenvolvimento econômico tenha entrado em contradição com a dimensão política da economia, revelando a impossibilidade de realização plena de valores, particularmente de valores democráticos, pelo mercado, a ilusão do consumo acabou por trazer a ética para aferir a qualidade social dos negócios, ao menos como produto, atribuindo a esse processo o nome de responsabilidade social.
Numa espécie de metonímia que toma o consumidor como cidadão, as relações de consumo começaram a assumir essa dimensão ética como guia dos negócios, multiplicando-se as experiências de interação produtor-consumidor pautadas por expectativas de atuação vinculada “a princípios de transparência e responsabilidade social, buscando comprometimento com a ética e a qualidade de vida dos empregados, de suas famílias, da comunidade e da sociedade”, conforme anuncia o portal de uma grande corporação brasileira.
Os sindicatos, como organizações sociais cada vez mais sólidas, também seriam, a partir de cada um de seus membros, transformados por essa onda humanizadora das relações de produção e de trabalho. Houve mudanças no método de ação sindical, com a introdução da negociação como forma prioritária de conseguir as reivindicações das categorias, e, sobretudo, a adoção de uma política comprometida não somente com os interesses das categorias, mas também com ações voltadas para o desenvolvimento social. Assim, no final da década de 80 se ouve falar pela primeira vez, formalmente, no conceito de sindicato cidadão.
Ainda assim, um contexto de luta, pois, mesmo enquanto opera para si, como classe, os trabalhadores assim organizados, não reivindicam privilégios, mas antes e sobretudo, direitos iguais para todos e o fim de todo domínio de classe (Programa de Gotta), no horizonte de seu antagonismo com o capitalismo, em direção a uma alternância de sociedade, na qual o humano se realize a partir de suas experiências de humanização (direitos humanos).
A CUT, uma das mais importantes centrais sindicais do país, apostou no começo dos anos 90 na estratégia do sindicato cidadão, sob o pressuposto de que a ação sindical dirigida exclusivamente àqueles que estão no mercado formal de trabalho, sob uma ótica mais individualizada e menos classista, tem refletido cada vez menos o conjunto dos problemas sociais, de ocupação e renda no país. Alargou assim sua agenda sindical, antes mais influenciada pela cultura corporativa, para contemplar também o desenvolvimento, a cidadania e a inclusão social, iluminando o cenário das lutas sindicais no Brasil desde 1990 com seu potencial de mobilização, e, sobretudo, entendimento do quanto a dimensão política está necessariamente entrelaçada à dimensão humana, para a reconstrução contínua de espaços públicos de cidadania.
À leitura do trabalho de Rodrigo, percebe-se a inserção desses enunciados no que ele denomina (p. 25-26) de conteúdo semântico das disputas dos corpos que tem impactos sobre as práticas sociais, as determinações históricas e revelam significativos reflexos, inclusive, na constituição dicotômica entre o direito formal e o Direito Achado na Rua, de genuína capacidade instituinte de direitos, articulado a partir da sociologia do trabalho e teorias críticas do Estado, do Direito e Filosofia, imiscuída nos conflitos socias da classe trabalhadora como sujeitos coletivos de direito no alcance emancipatório dos direitos humanos compõem a leitura sistemática da pesquisa, em interlocução que parte dos textos para o diálogo na Banca Examinadora: Alexandre Bernardino Costa, Sousa Júnior, Antonio Escrivão Filho, Marilena Chauí, Maria Célia Paoli, Renata Dutra; e é claro, eu próprio, David Sanchez Rubio e Roberto Lyra Filho.
Mas aqui faço uma nota de distinção para assinalar a importante presença na Banca da professora Renata Dutra, até porque com ela haverá mais autêntica interlocução pela proximidade de campos. Confirmo isso ainda impressionado pela leitura de um de seus últimos trabalhos, sobre o qual publiquei uma recensão ( Renata Queiroz Dutra. Direito do Trabalho: Uma Introdução Político-Jurídica. Belo Horizonte: RTM, 2021: https://estadodedireito.com.br/direito-do-trabalho-uma-introducao-politico-juridica/).
Desde esses estudos de formação, constituídos no rigor acadêmico em sentido epistemológico-metodológico, Renata já inseria em sua abordagem analítica o arranque político-jurídico que traz agora para seus ensaios empírico-teóricos nesse Direito do Trabalho: Uma Introdução Político-Jurídica. Dos 10 ensaios, distribuídos em capítulos, vê-se importantes pontos de contato: 1. Por que uma introdução político-jurídica ao estudo do direito do trabalho?; 2. A centralidade do trabalho e seus desdobramentos; 3. A regulação do trabalho no capitalismo e ‘a grande transformação’; 4. Sujeitos coletivos: a força e a potência subversiva das organizações dos trabalhadores; 5. Paradigmas jurídicos em transformação; 6. O contrato como forma jurídica para o capital e o contrato de trabalho: entre contradições e possibilidades; 7. Trabalho humano e subjetividade: a delicada tessitura das trocas reguladas pelo direito do trabalho; 8. Direito de trabalho e democracia: diálogo social, negociação coletiva e cidadania no trabalho; 9. Direito do trabalho na periferia do capital: escravidão, informalidade e delinquência patronal; 10. Direito do trabalho e crise: neoliberalismo, ruptura e reinvenção.
Na distribuição do conteúdo de sua pesquisa, a especial atenção do Autor concentra-se nas eventuais mudanças e/ou adaptações no seu repertório estratégico de ações objetivas e concretas no campo dos direitos humanos, além da agência dos sujeitos coletivos de direito, sobretudo os terceirizados no sistema Petrobras durante as greves de 1995 e 2020.
É o que se divisa da sua distribuição nos capítulos que formam a Dissertação:
O Capítulo 1 se estrutura de modo a construir um referencial teórico e conceitos sobre o neoliberalismo e os reflexos na desestruturação da regulação social do trabalho no contexto global e no âmbito da categoria petroleira. Buscaremos estabelecer uma abordagem crítico-dialética sob as lentes da categoria trabalho no que se refere à submissão neoliberal, na medida em que esta agenda coopta e captura o trabalho tanto em sua dimensão objetiva (apropriação do mais-valor e do excedente social) quanto na dimensão subjetiva (racionalidade e lógica normativa com a corrosão do caráter do sujeito neoliberal), bem como o avanço da precarização do trabalho no sistema Petrobras através da privatização e terceirização.
O Capítulo 2 abordará, primeiramente, um estudo da Federação Única dos Petroleiros – FUP a partir de sua historicidade na vivência orgânica, funcionamento das instâncias internas, suas características e marcos históricos de sua trajetória sindical desde a criação. Adiante, cuidaremos do impacto neoliberal no sindicalismo da FUP, sob a perspectiva da capacidade e poderes institucional, estrutural, social e associativo, dentro da natureza de contradições e agência a partir das disputas históricas.
O Capítulo 3 irá problematizar as facetas político-organizacionais das greves dos petroleiros de 1995 e 2020. Bem assim, irá abordar as dimensões reinvindicatórias das greves a partir das pautas estratégicas, aproximações com movimentos sociais e demais articulações coletivas da sociedade na perspectiva de agência dos sujeitos coletivos de direito. Com isso, propõe apresentar o retrato de forma integrada e comparativa das pautas do sindicalismo petroleiro entre as greves de 1995 e 2020, na compreensão dialética do que seria um sindicalismo achado na rua por meio de proposições e pistas na formação dessa categoria analítica e ontológica no campo dos direitos humanos.
As considerações finais, a pesquisa buscará suscitar as eventuais respostas confrontativas da Federação Única dos Petroleiros frente às bases de uma nova divisão internacional do trabalho. Tanto na conformação da regulação social do trabalho quanto do arrocho ao movimento sindical proporcionados pela agenda neoliberal.
Me detive com mais vagar e deleite no item 3.2 Movimentos Sociais, Aproximações e Sujeitos Coletivos de Direito. Digo com deleite porque considero que a Dissertação operou bem com essa categoria fundante de O Direito Achado na Rua. Sequer vou esgrimir o modo como Rodrigo move o conceito para nutrir o argumento da dissertação que ele até simplifica na síntese que oferece: “Trocando em miúdos, se se constituem no repertório e ações coletivas da FUP (poder institucional, estrutural, associativo e social), em observação comparativa entre as greves de 1995 e 2020, formas de se dispor a uma resistência sindical que operem de forma emancipatória na perspectiva dos direitos humanos, a se categorizar um sindicalismo achado na rua”.
De resto, como ele escora sua conclusão, em trabalho que produzimos em co-autoria (SOUSA JÚNIOR, José Geraldo de. ESCRIVÃO FILHO, Antonio Sergio. CAMARGO, Rodrigo. Matrizes históricas dos direitos humanos e a tradução jurídica das lutas socias. In XXVII JORNADA JURÍDICA. Direito: caminho ou obstáculo para a transformação social? Laboratório Americano de Estudos Constitucionais Comparados – LAECC. Universidade Federal de Uberlândia/UFU, 2023), é pressuposto que nos acertamos sobre o nosso entendimento compartilhado na categorização da subjetividade que move o processo sindical achado na rua. Ao fim e ao cabo um esforço de estabelecer a relação entre política e o direito, para o desafio de encarar os direitos humanos desde uma perspectiva crítica [que] tem reivindicado esse paradigma da necessidade do reposicionamento dessa relação, a fim de repensar a sua tradicional e clássica abordagem e assim separar, depurar e purificar o direito, sua teoria, e não raro – mais para os desavisados que para os seus formuladores – a sua prática (cf. para mais conferir em https://estadodedireito.com.br/direito-caminho-ou-obstaculo-para-a-transformacao-social/).
Em todo caso, na condição de co-orientador, os pressupostos para a elaboração desse ítem 3.2, está em VIEIRA, Renata Carolina Corrêa; FILHO, Antonio Escrivão. O direito achado na rua e a relação ‘direito e movimentos sociais’ na teoria do direito brasileiro. Direito.UnB – Revista de Direito da Universidade de Brasília, [S. l.], v. 6, n. 2, p. 67–92, 2022, um número especial dedicado a O Direito Achado na Rua. Contribuições para a Teoria Crítica do Direito. Edição completa PDF (https://periodicos.unb.br/index.php/revistadedireitounb/issue/view/2503).
Conquanto Rodrigo tenha dado toda a atenção a O Direito Achado na Rua. Sujeitos Coletivos: Só a Luta Garante os Direitos do Povo!, volume 7, Coleção Direito Vivo. Ana Cláudia Mendes de Figueiredo, Andréa Brasil Teixeira Martins, Edilane Neves, José Geraldo de Sousa Junior, José Roberto Nogueira de Sousa Carvalho, Luana Nery Moraes, Shyrley Tatiana Peña Aymara, Vítor Boaventura Xavier (Organizadores). Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2023, arrolado em sua muito representativa bibliografia.
Em O Sujeito Coletivo de Direito: uma Categoria Fundante de o Direito Achado na Rua, na condição de texto de Introdução à Obra, está a minha posição, bem referida por Rodrigo, no que eu localizo e rastreio o percurso de um conceito forte, sua concepção e prática como contribuição à teoria crítica do Direito, de seus primeiros enunciados nos anos 1980 ao seu protagonismo, inscrito nos movimentos sociais, e sua ação democrática e instituinte atual para criar direitos (https://estadodedireito.com.br/sujeitos-coletivos-so-a-luta-garante-os-direitos-do-povo/).
Eu também preciso registrar, a propósito da atuação mencionada por Rodrigo do Sindicato dos Petroleiros do Norte Fluminense, a partir do artigo de Carlos Eduardo Azevedo Pimenta, O sindicato cidadão: a campanha “petroleiro solidário” como instrumento de conscientização e consciência de classe (in Direitos Humanos & Covid-19, vol. 2. Respostas Sociais à Pandemia. José Geraldo de Sousa Junior, Talita Tatiana Dias Rampin, Alberto Carvalho Amaral (orgs.). Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2022).
Embora eu seja um dos organizadores do livro, a terceira parte da obra, em que se encontra o artigo, contou com a organização de José Eymard Loguércio, Eneida Vinhaes Bello Dultra, Catherine Fonseca Coutinho e Luciana Lombas Belmonte Amaral, parceiras e parceiros leais que, além de autores e autoras de textos, figuraram como editores especiais do eixo – Quando o mundo do trabalho confronta o capital e defende a vida.
Uma outra nota de referência. Nas referências Rodrigo aponta para O Direito Achado na Rua. Grupos de Estudos Diálogos Lyrianos. Disponível em: https://odireitoachadonarua.blogspot.com/. Acesso aos 03/07/2024, com farto material publicado, é conveniente uma nota específica para o Canal YouTube do blog, uma vez que o anexo da dissertação põe em relevo um catálogo de vídeos e filmes. E, no canal, a Playlist programas da TVExpresso61 – O Direito Achado na Rua e especificamente a série O Direito Achado na Rua conduzida pelo jornalista João Negrão e o advogado José Eymard Loguércio, pesquisador de O Direito Achado na Rua (O Direito Achado na Rua e o Mundo do Trabalho: Os impactos das mudanças no capitalismo sobre os direitos dos trabalhadores), com convidados, conferindo situações nacionais e internacionais: https://www.youtube.com/watch?v=EuxSzs72Hsg&list=PLuEz7Ct3A0Uj9NU2BYmgSIM0rWv7IRAjK.
Finalmente, considero relevante a afirmação final no encerramento da Dissertação, no sentido, diz Rodrigo Barbosa, numa constatação que me parece válida:
É também de se refletir que o questionamento da “nova” divisão internacional do trabalho, como categoria central e fundamental de formação social entre os sujeitos da regulação social se encontra, na atualidade, em uma agenda do capital mercadológico enviesada pelo paradigma neoliberal. E, portanto, inobstante possa parecer antagônico, o foco da racionalidade precarizante de superexploração do capital sobre o trabalho se torna a própria engrenagem propulsora da conformação das identidades e experiências coletivas por suas genuínas potências subversivas em meio aos ciclos do capital.
Assim, essas potências subversivas e experiências coletivas, por si só, nos fazem afirmar que a FUP opera a categoria dialético-ontológica na promoção de um sindicalismo achado na rua? Ela é dialética porque está imiscuída nas contradições do movimento social clássico que é o sindical, suas ambiguidades dentro da concertação social e na disputa do da política como cenário instituinte de direitos humanos indivisíveis, sustentando a representatividade dos novos sujeitos coletivos em uma dinâmica ontológica.
Essa dinâmica pensa no ser como experiência do existir no sensível, caracterizando o conhecimento empírico e concreto como propulsor dos repertórios de ação estratégica de luta. Os sujeitos coletivos, na categoria existencial ontológica, quem criam suas possibilidades no devir e inerentes à realidade do ser social que, de fato, traz o contexto político e social para uma construção perene na forma de direitos humanos que satisfaçam o campo social em sua busca emancipatória, sem reduções estatais, capaz de resistir às formas neoliberais alijantes.
A semântica do mundo do trabalho é heterogênea em sua dinâmica mutacional e o neoliberalismo como impulsionador da quebra de solidariedade e poder sindical. Essa compreensão é fundamental para o sindicalismo achado na rua, uma vez que a reprodução metabólica do capital é um inimigo comum causador desses efeitos desagregadores da condição de classe social. Por mais que classe social tenha componentes fundantes de natureza econômica, como Marx sempre disse, agora ela se desdobra em marcadores culturais, políticos e como contraponto às subjetividades individualistas. Essa, portanto, uma característica edificadora de um sindicalismo achado na rua.
Nessas condições, nas quais se constituem novos antagonismos sociais, o papel do sindicalismo na sociedade, toma feição mais política e mais solidária. Um sindicalismo com mensagem mais integrada e alternativa, onde tudo liga com tudo: trabalho e meio ambiente; trabalho e sistema educativo; trabalho e feminismo; trabalho e necessidades sociais e culturais de ordem coletiva; trabalho e Estado-Providência; trabalho e terceira idade etc, não podendo deixar de fora nada do que afete a vida dos trabalhadores e da cidadania.
É um movimento que opera no protagonismo de sua ação política, formas emancipatórias na perspectiva dos direitos humanos – germinais – para caracterizar um sindicalismo achado na rua, que venha agregar-se, como campo de teórico-prático, a um catálogo de ricos achados que formam a fortuna crítica de O Direito Achado na Rua: a Aldeia, o Quilombo, a Rede, os Lares, a Noite, o Manicômio, o Cárcere, a Encruzilhada, as Águas, Campos e Florestas Amapaenses, o Constitucionalismo Achado na Rua (Victor Nunes Leal e JJ Gomes Canotilho), a Rua em seu sentido amplo de espaço de cidadania (Milton Santos, Paulo e Nita Freire, Roberto Lyra Filho).
A Transmutação do Punitivismo: uma análise da política judiciária e penitenciária do Estado do Acre
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
Kaio Marcellus de Oliveira Pereira. A Transmutação do Punitivismo: uma análise da política judiciária e penitenciária do Estado do Acre. Tese apresentada à Banca examinadora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Brasília: FD/PPGD, 2024, 174 fls.
A Tese foi defendida em consonância com os fundamentos da Linha de Pesquisa “Sociedade, Conflito e Movimentos Sociais”, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Direito. Ela se desenvolveu sob a orientação da Professora Cristina Maria Zackseski, uma das lideranças da linha, a partir do Grupo de Pesquisa de Política Criminal.
Compus a banca examinadora, presidida pela professora Orientadora e integrada pelos professores Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth (Faculdade de Direito da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ, examinador externo; Bruno Amaral Machado, Faculdade de Direito do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB), também examinador externo; e Evandro Piza Duarte, Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB).
A tese, de alguma maneira, dá continuidade aos estudos iniciados pelo Autor, no mestrado, realizado em programa interinstitucional entre a UnB/Faculdade de Direito e a Universidade Federal do Acre/Curso de Direito – A cultura punitiva do Poder Judiciário: uma análise jurisprudencial do Tribunal de Justiça do Acre. 2017. 106 f., il. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade de Brasília, Brasília, 2017. Elementos dessa etapa são trazidos para o estudo mais avançado, agora, sob a perspectiva de um salto doutoral que pode se conter na sua proposta central – “conjunto de categorias para interpretar se uma política é ou não punitivista. Num sistema em que os discursos e práticas foram estruturados pelo racismo e colonialismo, apenas uma hermenêutica descolonizadora pode permitir novas leituras sobre as dimensões políticas e sociais do poder punitivo e novos horizontes para a reformulação de políticas judiciárias” – no contexto de enunciados que o Autor alinha no que denomina sociologia da punição, com referências indicadas no resumo do trabalho:
A presente tese analisa políticas judiciárias e penitenciárias no estado do Acre do período de janeiro de 2014 a maio de 2024 e sua relação com a população carcerária. A pesquisa buscou entender como o Poder Judiciário no Acre, por meio da criminalização secundária, gerencia o poder de punir e quais as estratégias de punição e controle, e de que forma as políticas judiciárias têm interferido na população carcerária. Nos últimos dez anos, o monitoramento eletrônico cresceu de forma exponencial no Acre, mas essa política estimulou o desencarceramento e a redução do Estado Penal na vida social? Ou aumentou de forma seletiva seu alcance para reforçar um quadro de violência institucional? Para responder essas questões, foi feita pesquisa de fluxo de 1.114 processos no Superior Tribunal de Justiça, e pesquisa documental, com análise qualitativa de 230 documentos e relatórios do Instituto de Administração Penitenciária do Acre e da Unidade de Monitoramento Eletrônico Penitenciário. O resultado revelou tendências de políticas judiciárias e penitenciárias locais que se diferenciam das estratégias de controle e punição do cenário nacional. Mas essas tendências de política são punitivistas? A falta de um consenso conceitual para definir o que é o punitivismo na literatura criminológica dificulta o trabalho de interpretação e atribuição de significados para as políticas judiciárias e penitenciárias contemporâneas. Por isso, propõe-se um conjunto de categorias para interpretar se uma política é ou não punitivista. Num sistema em que os discursos e práticas foram estruturadospelo racismo e colonialismo, apenas uma hermenêutica descolonizadora pode permitir novas leituras sobre as dimensões políticas e sociais do poder punitivo e novos horizontes para a reformulação de políticas judiciárias.
De saída, o Autor esclarece, até para demarcar a clivagem adotada no trabalho desde os estudos conduzidos a parir da pesquisa da dissertação, que “a hipótese inicial de pesquisa era que a superlotação carcerária decorria de uma cultura punitiva do TJAC, que era mantida e reforçada pelo STJ no julgamento de recursos especiais e habeas corpus, mantendo um quadro de violação de direitos num “estado de coisas inconstitucional.” Em razão disso, realizei uma pesquisa de fluxo de 1.114 processos no STJ. O resultado revelou tendências de políticas judiciárias interessantes, que podem sugerir novas pesquisas no campo da sociologia da punição”.
E que, diante disso, tendo sido feito levantamento de dados no Instituto de Administração Penitenciária do Acre (IAPEN), “a pesquisa documental acabou revelando uma mudança radical na políticajudiciária, o que fez com que o objeto de pesquisa fosse redirecionado”, porque “a análise dos dados do sistema penitenciário no transcurso de 07 anos, mostrou que as decisões do Poder Judiciário não se assemelham à cultura punitiva identificada na dissertação de mestrado, pois o crescimento da taxa de aprisionamento não foi expressivo”.
Segundo o Autor, embora alguns dados indiquem que as preferências do Poder Judiciário alteraram o quadro do sistema penitenciário, como por exemplo o aumento de prisões cautelares, essa tendência de política judiciária não explica, de maneira isolada, a manutenção do quadro de superlotação carcerária. Paralelo ao aumento do uso das prisões cautelares, houve um aumentou no uso de monitoramento eletrônico. Levando a uma questão de pesquisa que balizou o manejo dos achados nela encontrados: “Por que ainda vivenciamos um quadro de superlotação carcerária?”.
De posse dos dados que arrola no protocolo de sua pesquisa, o Autor declina a reorientação de seu estudo. Ele esclarece:
Diante dessas informações, para definir os caminhos que serão trilhados na presente pesquisa, devemos levar em consideração a seguinte problemática: Como o Poder Judiciário no Acre, por meio da criminalização secundária, gerencia o poder de punir? Quais as estratégias de punição e controle, e de que forma as políticas judiciárias têm interferido no aumento da população penitenciária?
A hipótese de pesquisa é que o Poder Judiciário do Acre alterou suas estratégias punitivas para aumentar o controle social formal e gerenciar grupos de risco, em razão do déficit de vagas do sistema penitenciário. Para tanto, a pesquisa buscou responder os seguintes questionamentos, considerando o período de janeiro de 2014 a maio de 2024:
1) Como o Poder Judiciário no Acre tem gerenciado o poder punitivo? Quais as estratégias de punição e controle?
2) Como o Poder Judiciário tem utilizado o monitoramento eletrônico, as audiências de custódia e a prisão cautelar no contexto da superlotação carcerária?
3) Como o Poder Judiciário tem utilizado o monitoramento eletrônico nos diferentes regimes de cumprimento de pena? E de que forma isso pode alterar os níveis de encarceramento?
4) O aumento do monitoramento eletrônico se destina a controlar qual grupo de risco? Quem são os escolhidos para o uso da tornozeleira eletrônica?
5) A monitoração eletrônica estimula o desencarceramento e reduz a intervenção do Estado Penal na vida social? Ou constitui mais uma estratégia punitiva de controle, para aumentar de forma seletiva o alcance do Estado Penal na esfera particular, reforçando um quadro de violência institucional?
6) A monitoração eletrônica representa um avanço para a redução do fluxo penitenciário, contribuindo para o caráter ressocializador da pena? Ou apenas cria um mecanismo de vigilância e controle como alternativa para o quadro de superlotação carcerária no Acre?
No tocante a sua pesquisa, Caio utiliza como generalização, conforme ele próprio indica, alguns conceitos teóricos que possuem forte aderência na literatura da sociologia da punição, tais como, punitividade, cultura do controle, hiperpenalidade, governamentalidade. As hipóteses de pesquisa sugerem que o Poder Judiciário adota uma cultura do controle para gerenciamento de grupos sociais, considerando os resultados da pesquisa feita em dissertação de mestrado. Porém, no contexto de alta punitividade, as estratégias de controle podem ter sido deliberadamente escolhidas para aumentar o alcance do poder de punir, substituindo o cárcere pela tornozeleira eletrônica.
Quanto à interpretação dos dados, ele escolheu entre os tipos de descrição ou de explicação dos resultados obtidos adotando “o tipo de descrição como forma de interpretação de dados, pois o campo da sociologia da punição carece de pesquisas direcionadas para análises de precedentes como causas próximas para explicar o encarceramento em massa. As explicações tradicionais para o fenômeno estudado foram retratadas nos estudos sociológicos que analisaram fatores externos às práticas do Estado Penal, tais como, sociais, econômicos e políticos”.
Uma passagem ousada, principalmente quando a sua metodologia assume a disposição descritiva, penso, com a mesma pretensão que terá animado o dialético Engels, sem concessão ao positivismo sociológico de seu tempo, confiante de “a descrição verdadeira do objeto seja, simultaneamente, a sua explicação” (A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra).
Em todo caso, podemos conferir, no arranjo proposto pelo Autor. No primeiro capítulo, o Autor, a montante de suas referências quer fixar o conceito de punitividade e suas implicações para o campo da pesquisa criminológica. Faz uma leitura historicista de como o gerenciamento do poder de punir alterou as tecnologias de punição e controle mediante fortes influências dos sistemas políticos e econômicos que imperavam em seus respectivos contextos. Do castigo e suplício do Antigo Regime feudal ao uso da prisão na era moderna para atender às expectativas do capitalismo. Até alcançar a transição do Estado Social para o Estado Penal apresentada como responsável pela formação de uma sociedade excludente de “parasitas sociais” que, sem alternativas de subsistência, migram para o varejo das drogas. Esse mercado emergente é responsável pelo crescimento do Estado Penal e pela profusão de um projeto genocida.
No segundo capítulo, foca na Sociedade Disciplinar, que utiliza a prisão para disciplinar e curar o sujeito desviante, cederá lugar para a Sociedade do Controle, que utilizará políticas atuariais para controlar os riscos sociais. Essa cultura do controle terá reflexos no fluxo carcerário das sociedades complexas da pós-modernidade. Mas para entender como a cultura do controle opera no contexto brasileiro, é necessário adotar uma Criminologia do Sul, que se sustente por uma nova racionalidade epistêmica (razão cosmopolita) e que leve em consideração o racismo, o colonialismo, o imperialismo e suas relações com o poder punitivo. Na busca de uma hermenêutica descolonizadora, apresenta o fenômeno da hiperpenalidade na América Latina e como os discursos neoliberais têm buscado reduzir conquistas democráticas para fomentar políticas de recrudescimento penal. Vale-se da atual situação do sistema penitenciário do Acre, e o resultado da pesquisa de fluxo dos 1.114 processos do TJAC, e de que forma o STJ avaliou os recursos que foram interpostos e os efeitos na população carcerária.
No terceiro capítulo, se detêm no modo como o monitoramento eletrônico surgiu e se desenvolveu como estratégia punitiva do direito de punir em nível global, nacional e local, e as razões políticas que levaram sua implementação, especialmente o que os últimos estudos concluíram sob os impactos do monitoramento eletrônico no campo orçamentário, no ambiente carcerário e no aspecto utilitário da ressocialização. Para entender como o Poder Judiciário no Acre tem gerenciado o poder punitivo no período de 2014 a 2024, vamos apresentar o relatório de pesquisa. Assim, poderemos responder: A monitoração eletrônica estimula o desencarceramento e reduz a intervenção do Estado Penal ou constitui mais uma estratégia punitiva de controle, para aumentar de forma seletiva seu alcance na esfera particular? A monitoração eletrônica representa um avanço para a redução do fluxo penitenciário, contribuindo para o caráter ressocializador da pena? Ou apenas cria um mecanismo de vigilância e controle como alternativa para o quadro de superlotação carcerária no Acre?
É quando, o método descritivo se articula com o explicativo, sem perder a consistência dos dados. O Autor, se mostra confiante, ao “atribuir as causas da superlotação carcerária à uma perspectiva aritmética é desconsiderar a própria história do pensamento criminológico, valendo-se de Gabriel Ignacio Anitua. E na sequência em “autores que, por diferentes perspectivas criminológicas, atribuem causas sociais, políticas e econômicas a esse fenômeno tão intrigante para a sociologia da punição, que é o encarceramento em massa. Estudando as economias do norte, em especial os Estados Unidos, alguns autores como Löic Wacquant, Jock Young, David Garland, Jackie Wang e Roger Matthews, são importantes para compreender como fatores sociais, políticos e econômicos contribuem para a superlotação carcerária. Analisando o cenário da hiperpenalidade na América Latina e a punitividade regional, autores como Máximo Sozzo, David Fonseca, Raul Zaffaroni, Katherine Beckett e Angelina Godoy, nos ajudam a entender como a penalogia neoliberal e seus anseios punitivos afetam as economias emergentes e impactam no aumento da lotação carcerária”.
E assim, lograr estabelecer que “a crise do sistema penitenciário brasileiro é multifatorial, não havendo causa única para explicar o crescimento das taxas de aprisionamento e aumento da população carcerária nas últimas décadas, embora os anseios punitivos no corpo social e a manipulação de atores políticos em defesa de um discurso de repressão contribuem para o cenário nacional. Contudo, como explicar o atual contexto de punitividade e de superlotação carcerária no Acre?
Ao chegar às conclusões, o Autor é convincente. Para ele, retiro dessas conclusões:
Para Loïc Wacquant, a punitividade é o encarceramento em massa nos EUA. A expansão das prisões é o substituto do gueto como instituição de contenção e controle. A gestão penal da pobreza, em substituição às políticas assistencialistas, é a principal característica do punitivismo. Seguindo Wacquant, Jonathan Simon vai se referir a punitividade como uma característica da sociedade contemporânea, na qual a crueldade é um direito distribuído pelo governo, de forma desproporcional aos pobres e aos grupos étnicos minoritários. Para Stanley Cohen, a punitividade é a coerção, formalismo, moralismo, ou seja, a inflição de dor a sujeitos jurídicos individuais por terceiros. Nessa lógica, a punitividade carrega conotação de excesso, pois se houver uso de pena menos restritiva não se classifica como punitivismo.
Para responder essas perguntas, exige-se um exercício de imaginação epistemológica. Não proponho um conceito para definir o punitivismo, mas a utilização de um conjunto de categorias para interpretar se uma política é ou não punitivista. Pretendo demonstrar que a atribuição de significado é local e não universal; é dinâmica e não estática, é parcial e não neutra, é epistêmica e não ontológica.
A seletividade do sistema de justiça criminal, que se dirige contra jovens, negros e pobres, exige uma interpretação parcial da percepção de punitividade. O poder de punir decorre de um exercício de direito, que sofre constantes alterações e influências de discursos autoritaristas cool das elites conservadoras, que buscam reduzir conquistas democráticas da clientela do sistema de justiça criminal. A forma como esse jus puniendi é interpretado por seus destinatários interfere na própria percepção de punitividade. A colonialidade e o racismo do sistema sofrem constante atualizações da razão indolente das sociabilidades metropolitanas, interferindo diretamente na formação e execução de estratégias de punição e controle.
O modo de interpretar é epistêmico, pois o punitivismo não pode ser percebido como um elemento pré-constituído do poder de punir, ou um dado ontológico de definição acabada e insuscetível de alteração. A percepção sobre o que vem a ser punitivismo é construída, e não constituída. Sua definição é uma construção social (está sendo percebida) e não uma constituição semântica (é percebida). Por uma hermenêutica descolonizadora, dar significado ao punitivismo depende de um modo de raciocinar, articular, categorizar e interpretar os problemas locais sem desperdiçar as experiências e vozes que foram silenciadas por um longo processo de opressão e produção de não-existência de subjetividades.
Além das categorias de interpretação para definição do que é (ser) o punitivismo (local, dinâmica, parcial e epistêmica), devemos levar em consideração alguns elementos de précompreensão de como se desenvolve e se manifesta (estar) o punitivismo.
O punitivismo pode se manifestar pela:
(i) Expansão, densificação e padronização do Estado Penal (FONSECA, 2021);
(ii) Falsa percepção de redução da tutela do direito penal, algumas reformas legais buscaram reduzir o encarceramento, como a lei dos crimes de menor potencial ofensivo, mas aumentaram a ingerência do Direito Penal na esfera particular (ZACKSESKI, 2021);
(iii) Discursos cool de recrudescimento penal em favor das vítimas (ZAFFARONI, 2014);
(iv) Transnacionalização do controle social punitivo (ZACKSESKI, 2021), mediante a importação de estratégias punitivas do Norte hegemônico;
(v) Exclusão de direitos pela redução de conquistas democráticas pelas elites conservadoras (BECKETT e GODOY, 2021), a aprovação da lei nº 14.843/2024 pode impedir a liberdade condicional desassistida;
(vi) Seletividade do sistema de justiça criminal contra a população negra (FLAUZINA, 2006), reconhecendo o racismo e o colonialismo como elementos estruturantes dos discursos e práticas dos órgãos de controle social (DUARTE; QUEIROZ; COSTA, 2016).
Mas afinal as tendências de política judiciária e penitenciária no Acre são punitivistas? O que acontece no Acre é diferente do que ocorre no Brasil. O punitivismo no Brasil é diferente do punitivismo no Acre. É a transmutação do punitivismo.
Por não possuir uma definição pré-constituída, o punitivismo não pode ser conceituado, categorizado ou rotulado, mas sim interpretado, pois as percepções sociais sobre as estratégias de controle e punição do Estado Penal variam de acordo com o tempo e lugar. A atribuição de significado às políticas judiciárias e penitenciárias não é uma tarefa exclusiva do pensamento crítico da academia. Atores endógenos e exógenos do sistema de justiça criminal podem utilizar as categorias de uma hermenêutica descolonizadora para dar significado ao punitivismo de forma local, dinâmica, parcial e epistêmica.
De modo local, enquanto no Brasil, o crescimento do monitoramento eletrônico acompanhou a redução da população carcerária, no Acre a tornozeleira se tornou complementar ao cárcere. A cultura punitiva de encarceramento no Acre (PEREIRA, 2017) se transmutou para estratégias locais de controle e monitoramento. De forma dinâmica, enquanto no período de 2014 a 2016, o cárcere foi a principal estratégia punitiva, do período de 2016 a 2024, o monitoramento eletrônico veio contribuir para o aumento da população penitenciária em razão do déficit carcerário. A importação de políticas norte-americanas de controle do crime, de maneira epistêmica, representa a estratégia colonizadora do poder de punir da parcial atuação do sistema de justiça criminal no Acre, para encarcerar e monitorar a população jovem, negra e pobre.
É necessário um processo de imaginação epistemológica, para raciocinar, articular, categorizar e interpretar os problemas locais sem desperdiçar as experiências e vozes que foram silenciadas por um longo processo de opressão e produção de não-existência de subjetividades.
Pensando nisso, o abolicionismo penal pós-metafísico pode consistir numa ferramenta de imaginação epistemológica, e permitir a reformulação de políticas judiciárias, e definir o que é o monitoramento eletrônico, não pelo conceito imperialista do discurso hegemônico das sociabilidades metropolitanas, mas sim pelo que a tornozeleira representa num sistema de justiça de raízes colonial e racial.
Não se trata de um simples método de controle e vigilância. Políticos de esquerda podem classificar como uma alternativa ao encarceramento, como se fosse uma política penal humanizada. Políticos de direita podem classificar como um “benefício”.
Mas, afinal, o que é o monitoramento eletrônico? Para lei, liberdade vigiada; para ciência, um aparato tecnológico; para política neoliberal, uma redução de custo; para políticos populistas, um benefício; para a sociedade, um estigma; para o egresso, uma oportunidade; para o apenado, um livramento; para o reincidente, uma chance perdida; para o abolicionismo penal pós-metafísico, uma crueldade.
Num contexto de alta punitividade, pensar numa sociedade mais justa, igualitária, fraterna e cristã exige um esforço contínuo na negação da crueldade. A tornozeleira eletrônica pode ser utilizada como instrumento provisório para abolir a pena de prisão e acabar com a crueldade da superlotação carcerária, mas isso não afasta sua natureza de crueldade. Seu uso imoderado, seletivo e racial causa dor e sofrimento à população jovem, negra e pobre. Para aqueles que se dizem civilizados, intelectuais e homens de bem, que defendem a trinca de valores neoliberais (Deus, Pátria e Família) negar a crueldade é o único caminho para seguir uma vida cristã.
Retenho das conclusões a afirmação desafiadora, sobre a exigência político-epistemológica de descortinar: “um processo de imaginação epistemológica, para raciocinar, articular, categorizar e interpretar os problemas locais sem desperdiçar as experiências e vozes que foram silenciadas por um longo processo de opressão e produção de não-existência de subjetividades”.
Não foi outro o intuito de nós, organizadores -https://estadodedireito.com.br/criminologia-dialetica-50-anos-um-dialogo-com-o-legado-de-roberto-lyra-filho/ – da obra comemorativa Criminologia Dialética, 50 Anos: Um Diálogo com o Legado de Roberto Lyra Filho. Autores Co-organizadores: José Geraldo de Sousa Júnior, José Carlos Moreira da Silva Filho e Salo de Carvalho. Autores: Carvalho, Salo de , Sousa Junior, José Geraldo de , Costa, Alexandre Bernardino , Cerqueira Filho, Gisálio , Castilho, Ela Wiecko Volkmer de , Lemos, Eduardo Xavier , Dornelles, João Ricardo W. , Rubio, David Sánchez , Pandolfo, Alexandre Costi , Adeodato, João Maurício , Silva Filho, José Carlos Morei , Ferreira, André da Rocha , Anitua, Gabriel Ignacio , Neder, Gizlene , Coelho, Inocêncio Mártires , Santos, Juarez Cirino dos , Oliveira, Lair Gomes de , Santos, Lorena Silva , Souza, Marcel Soares de , Dinis, Marcia , Noleto, Mauro Almeida , Souza Júnior, Ney Fayet de , Andrade, Vera Regina Pereira de , Capeller, Wanda. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2022.
Com esse pugilato intelectual regressamos a um trabalho que, a título de explicação pessoal, abrindo a edição de 1972, da Borsoi, da Criminologia Dialética, o próprio Lyra Filho indicava com o seu o livro, o intuito de que pudesse assinalar um movimento de reconstrução intelectual, cuja autenticidade parece evidente. Certamente não se continha numa autorreflexidade como balanço de percurso, mas como esboço de um programa de uma virada político-epistemológica que assinalasse uma convocatória para um trânsito paradigmático; na política, com a intensificação de um paroxismo autoritário; no campo penal para o controle seletivo de condutas, notadamente em relação às subjetividades ativas que resistiam à exceção, abrindo mobilizações para o protesto social. O ano é 1972. Tempo cruento. No plano epistemológico, a abertura de uma passagem da dogmática penal positivista pela interpelação do social em movimento, sugerindo leituras que se inspirassem em esforços de sociologização do delito.
De certo modo, percorrer essa abertura e enveredar por essa passagem da dogmática penal positivista pela interpelação do social em movimento, é o que me deu horizonte de sentido para me situar em debate que colocava armadilhas de um paroxismo autoritário na modelagem punitivista ainda em curso no país.
Numa conjuntura de lawfare, com táticas jurídicas no contexto de guerras híbridas, penso que um tanto desse apelo ao que se tem chamado de ideologia do punitivismo, explica o esgarçamento institucional em curso no Brasil e em outros lugares do mundo. Esse desvio esteve no cerne do conjunto de medidas de combate à corrupção – erigida em metonímia da categoria criminalidade – reunidas no PL 4850/16 – (Estabelece Medidas Contra Corrupção, que tomou na Comissão Especial da Câmara instalada para o examinar o Número: 1017/16 24/08/2016-16).
Convidado pela Presidência da Comissão e pela Relatoria da proposta a expor no plenário minha posição sobre o assunto (conferir o inteiro teor do depoimento conforme as notas taquigráficas da sessão, arquivadas no Departamento de Taquigrafia e acessíveis pela WEB), comecei por lembrar, por exemplo, que a crítica ao punitivismo é uma leitura de um sentido civilizatório., cujo roteiro, sustenta Evandro Lins e Silva, revela a história do Direito Penal como a história da contínua mobilização na direção da abolição da pena de prisão. Em texto precioso, ele traz para nossa atenção uma leitura do então Ministro Francisco de Assis Toledo, ex-integrante do Superior Tribunal de Justiça, que presidiu a Comissão Especial para reforma do Código Penal, segundo o qual em grave equívoco incorrem, frequentemente, a opinião pública, os responsáveis pela administração e o próprio legislador, quando supõem que, com a edição de novas leis penais, mais abrangentes ou mais severas, será possível resolver-se o problema da criminalidade crescente: “Essa concepção do direito penal é falsa porque o toma como espécie de panaceia que logo se revela inútil diante do incremento desconcertante das cifras da estatística criminal, apesar do delírio legiferante de nossos dias. Não percebem os que pretendem combater o crime com a só edição de leis que desconsideram o fenômeno criminal como efeito de muitas causas e penetram em um círculo vicioso invencível, no qual a própria lei penal passa, frequentemente, a operar ou como fator criminógeno ou como intolerável meio de opressão”.
O Autor está atento a essas armadilhas. Diz ele fechando a sua tese:
Pensando nisso, o abolicionismo penal pós-metafísico pode consistir numa ferramenta de imaginação epistemológica, e permitir a reformulação de políticas judiciárias, e definir o que é o monitoramento eletrônico, não pelo conceito imperialista do discurso hegemônico das sociabilidades metropolitanas, mas sim pelo que a tornozeleira representa num sistema de justiça de raízes colonial e racial.
Não se trata de um simples método de controle e vigilância. Políticos de esquerda podem classificar como uma alternativa ao encarceramento, como se fosse uma política penal humanizada. Políticos de direita podem classificar como um “benefício”.
Mas, afinal, o que é o monitoramento eletrônico? Para lei, liberdade vigiada; para ciência, um aparato tecnológico; para política neoliberal, uma redução de custo; para políticos populistas, um benefício; para a sociedade, um estigma; para o egresso, uma oportunidade; para o apenado, um livramento; para o reincidente, uma chance perdida; para o abolicionismo penal pós-metafísico, uma crueldade.
Num contexto de alta punitividade, pensar numa sociedade mais justa, igualitária, fraterna e cristã exige um esforço contínuo na negação da crueldade. A tornozeleira eletrônica pode ser utilizada como instrumento provisório para abolir a pena de prisão e acabar com a crueldade da superlotação carcerária, mas isso não afasta sua natureza de crueldade. Seu uso imoderado, seletivo e racial causa dor e sofrimento à população jovem, negra e pobre. Para aqueles que se dizem civilizados, intelectuais e homens de bem, que defendem a trinca de valores neoliberais (Deus, Pátria e Família) negar a crueldade é o único caminho para seguir uma vida cristã.
Citei lá atrás, Roberto Lyra Filho e a sua Criminologia Dialética, não só porque ele é uma voz fundante do pensamento criminológico crítico contemporâneo, mas também da inserção na planta epistemológica da Faculdade de Direito, da criminologia crítica. Mas, sobretudo que é de seu pensamento que se pode inferir o enlace dialético que permitirá a Kaio Marcellus de Oliveira Pereira, ultrapassar os riscos redutores de uma articulação descritivo-explicativa como um possível limite metodológico. Aliás, a citação se presta também para buscar um outro Gabriel Ignacio Anitua, o autor de Roberto Lyra Filho y los Antecedentes de una Criminología Crítica Latinoamericana: Dialéctica, Integralidad y Pluridisciplinariedad en los Comienzos de los Años Setenta, p. 129-149, da obra citada (Criminologia Dialética, 50 Anos), quando convoca “el esfuerzo pluridisciplinario de Lyra (Roberto Lyra Filho) – que – busca outro tipo de integración, que en la dialéctica tampoco pueda fosilizarse. Esa integración de datos criminológicos y del uso de uma ciencia penal ‘no normativa’ – que – debe hacerse con el recurso especialmente de la ética y del compromiso (desde los bastidores y no desde el palco) com la filosofia y la política criminales”.
Penso, nesse sentido, em Karl Marx, que não se deixasse enredar na preocupação de ordenação do caos dos fenômenos, para poder, assim, em um texto seu quase desapercebido – Benefícios secundários do crime (Tradução por Diego Marques e Marcelo Di Marchi. Enfrentamento, ano 7, n. 12, Goiânia: agosto/dezembro de 2012), lembrar-nos cautela e atenção, pois:
Um filósofo produz as ideias, um poeta produz os versos, um curandeiro produz os sermões, um professor produz compêndios, etc. Um criminoso produz a criminalidade. Mas se os laços entre esse ramo dito criminal da produção e toda atividade produtiva da sociedade são examinados anteriormente, somos forçados a abandonar certo número de preconceitos. O criminoso produz não somente a criminalidade, mas, também, a lei criminal; ele produz o professor de direito, também os cursos de análise da lei criminal, da criminalidade e assim o inevitável livro sobre o qual o professor apresenta suas ideias, que é mais uma mercadoria no mercado. Ele resulta num crescimento dos bens materiais, sem contar o lucro que o autor retira do dito livro .
No mais, o criminoso produz todo aparelho policial, assim como, a administração da justiça, detetives, juízes, júri, etc. todas essas profissões diferentes, que do mesmo modo constituem categorias na divisão social do trabalho, desenvolvendo as habilidades diversas do espírito humano, criando novas necessidades e novos meios de satisfazê-las. A tortura, por exemplo, permite a invenção de técnicas muito engenhosas, empregando uma multidão de honestos trabalhadores na produção desses instrumentos.
Voltando a Anitua e com ele também a Roberto Lyra Filho e a Marx, o que nessa franja de elementos não reduzidos a dados, ou obscurecidos pelas muitas cifras que os ocultam (negra, dourada), materializam uma realidade não objetificada para se fazer descritível, aferível desde os bastidores e não desde o palco, igualmente seletiva, neocolonizada, tão ou mais letal, que produz a criminalidade, a lei criminal, o professor de direito, os compêndios, as algemas, as tornozeleiras, os autos de resistência, as editorias dos jornais, as guerras entre quadrilhas, as execuções sob estrito cumprimento do dever legal, o sistema penal e o sistema de justiça, em suma, o controle criminal e o processo de criminalização?
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
Cristovam Buarque. Jogados ao mar. Rio de Janeiro: Editora Lacre, 2024. 160 páginas
Recebi o livro do Autor Cristovam Buarque, com uma dedicatória carinhosa: Para meus amigos Nair e Ze Geraldo que sempre lutam para salvar os náufragos sociais deste país. Beijo e abraço (14/8/24). De fato, eu e Nair, há muitos anos, estamos juntos com Cristovam na luta para resgatar náufragos.
De muitas formas, às vezes no ativismo da política, mas principalmente dando propagação crítica e aderindo ao formidável acervo de ideias e propostas da fonte inesgotável de seu pensamento utópico.
Nair (Nair Heloisa Bicalho de Sousa) desde os tempos de formação do pequeno mais aguerrido grupo de intelectuais (ela na Associação de Sociólogos e Cristovam no CEBRADE, em Brasília), ainda ao tempo das lutas de resistência à ditadura e de formação de frentes para a restauração da democracia no país. Mas sempre disposta a extrair de suas teses arrojadas, a consistência de sua potencialidade para satisfazer necessidades que dão materialidade à dignidade do humano. Registro o rico material publicado na Revista Pólis. Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Sociais, nº 30, 1998, São Paulo, Instituto Pólis: Programas de Renda Mínima no Brasil. Impactos e Potencialidades. Organizado por Vera da Silva Teles, Selva Ribas Bejarano, Carlos Henrique Araújo, Nair Heloisa Bicalho de Sousa e Silvio Caccia Bava, coube exatamente a Nair o tópico Avaliação do Impacto sobre as Famílias Beneficiárias. Programa Bolsa-Escola do Distrito Federal (p. 59-107), um programa reconhecidamente criado por Cristovam Buarque. Conforme está na orelha de Jogados ao Mar: “Sua missão sempre foi a educação, sendo um dos raros a se candidatar à Presidência da República (2006) tendo-a como foco do discurso, apresentando-a como a solução base para os problemas nacionais, desde a violência até a falta de infraestrutura industrial e tecnológica de nossa nação, perpassando pela fome e pobreza de nossos concidadãos. Uma revolução pela educação. Nessa intenção criou o Bolsa-Escola, ainda como governador (DF), onde o auxílio estava condicionado à presença das crianças da família na escola. Esse seu projeto foi elevado ao nível Brasil, mas depois, infelizmente, foi alterado, eliminando-se a necessidade escolar dos filhos dos auxiliados” (Ouvi hoje, 23/09/24, na Voz do Brasil, com informação do MDS, que essa condicionalidade está restabelecida no modelo bolsa-família, em vigor).
Eu também, não deixei de indicar muitas de suas obras para leituras valiosas em seu alcance, mostrando que elas se projetavam com a força de proceder de uma verdadeira escola de pensamento e de ação. Mostrei isso na resenha que elaborei sobre o seu livro A Desordem do Progresso. O Fim da Era dos Economistas e a Construção do Futuro. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1990, 186 p. (Revista Humanidades. Brasília: Editora UnB, vol. 7, n. 2, 1991, p. 201-202).
E na recensão-testemunho, conforme -https://estadodedireito.com.br/foto-de-uma-conversa/ – BUARQUE, Cristovam. Foto de uma Conversa. Celso Furtado. Paris, 8 de maio de 1991. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2007, 93 p. Entre as múltiplas razões que pudesse alinhar para comentar o livro, uma primeira razão decorreu logo da dedicatória manuscrita, feita pelo autor por ocasião do lançamento: Ao velho amigo Zé Geraldo que foi testemunha desta conversa. Uma segunda razão, não menos importante, ao menos para mim, vem do título – Foto de uma Conversa – certamente porque as fotos da capa e do miolo, retratando Celso Furtado e o autor Cristovam Buarque, foram tiradas por mim, durante a conversa, no gabinete do entrevistado em Jussieu, Paris, 6eme Arrondissement, pertinho da estação do Metro Jussieu, entre a Paris 7, Sorbonne e a Universidade Pierre e Marie Currie.
Mas a principal razão, que me dirigiu a resgatar esse pequeno texto – Foto de uma Conversa, enriquecido por notas e glosas de atualização que o seu autor Cristovam Buarque inseriu na edição da entrevista, esteve em recuperar as preocupações de dois economistas profundamente humanistas que se destacam quando na conjuntura corrente, no mundo e no Brasil, as opções que as políticas econômicas oferecem se circunscrevem às receitas do neoliberalismo cujo único resultado recorrente tem sido, ao fim e ao cabo, prover o interesse da acumulação de capital ao preço da mercantilização da vida.
Esse humanismo está mais uma vez e agora mais fortemente porque a ficção permite intensidade emotiva à narrativa, em Jogados ao Mar. Cristovam Buarque, mais uma vez, nos surpreende ao trazer uma profunda reflexão sobre os descaminhos da educação e da evasão escolar. Faz isso com maestria através de uma ficção investigativa, com elementos de suspense e mistério, é o que destaca a Editora ao oferecer uma suma da obra:
Tendo como ponto de partida o desaparecimento de um aluno – ao mesmo tempo filho, amigo – e a investigação de seu paradeiro, em busca pelo seu corpo, vivo ou morto, esta obra se desenrola em tramas que se entrelaçam e se desdobram em busca de outros que também foram jogados ao mar, sempre nos remetendo ao desencanto do alunato, mas também, em modo contrário, à esperança vinda da abnegação de professores e voluntários que se esmeram no aperfeiçoamento de seu trabalho em prol do progresso humano. No processo investigativo de um repórter, em conflito com o de um delegado, e sob a pressão e manifestação de “Véspera”, somos estimulados a discernirmos sobre o futuro que desejamos para as próximas gerações e o que queremos para nosso país.
Ivo Vitor saiu de casa para ir à escola, mas não chegou. Nem voltou para casa.
O jornalista Nestor é enviado para cobrir e noticiar o caso. Em sua investigação encontra um professor de história, uma mãe desolada, uma educadora que usa o tráfico para conseguir recursos para seus alunos e outros personagens que lidam com a evasão escolar a partir de diferentes perspectivas, desde o tempo da escravidão até os dias de hoje.
Em Jogados ao Mar, Cristovam Buarque combina ficção e realidade nos moldes do seu livro O Tesouro na Rua. A edição informa que esse livro recebeu o Prêmio Jabuti, em 1994. Não vi o livro ou o Autor no rol dos premiados. Em 1995, Cristovam alcançou o1º Lugar do Prêmio (Categoria Ciências Humanas (não ficção), com A Aventura da Universidade. Mas, a propósito de O Tesouro na Rua, anoto uma passagem interessante. Meu filho Daniel Bicalho de Sousa, com quem tenho lido em diálogo Jogados ao Mar, escreveu com seu primo Rafael de Farias Bicalho, ambos com 13 anos então, uma resenha. Cristovam era Governador na época e sofria uma campanha hostil da imprensa em Brasília. Daniel e Rafael haviam se motivado para ler o livro por causa da semelhança de título com obra que coordeno – O Direito Achado na Rua. Levei a resenha para o jornalista Paulo Pestana (recém e precocemente falecido, ele que era um formidável cronista), na época o editor do caderno Cidades do CB. O Paulo não só publicou a resenha como a emoldurou com uma matéria muito positiva sobre o governador-escritor, ocupando toda uma página do jornal. Penso que ali começou uma détend, entre o Jornal e o Governador que permitiu boas parcerias como a campanha pela faixa de pedestre, uma expressão de identidade do brasiliense, Brasil afora.
No texto da 4ª capa de Jogados ao Mar, a conclusão é interpelante: “Uma leitura empolgante que instiga reflexão, envolve e desperta o leitor. Entre a travessia do Atlântico ontem e a travessia para a vida adulta hoje, aqueles que foram Jogados ao Mar poderão ser salvos?”.
Em excelente matéria – seção Opinião – do mesmo Correio Braziliense, https://www.correiobraziliense.com.br/opiniao/2024/08/6919700-um-mergulho-na-evasao-escolar.html, com o título Um mergulho na evasão escolar, Eduardo Neiva, Professor emérito de estudos de comunicação da Universidade de Alabama em Birmingham (EUA) e escritor, diz que “a paisagem educacional que contemplamos hoje deveria nos aterrorizar e encher de cautela e medo. E que o romance Jogados ao mar, de Cristovam Buarque, trata o tema com coragem e isenção”.
De certo modo ele responde à pergunta sobre a possibilidade de salvação:
Por mais gigantesca que seja uma nação, não há berço esplêndido que nos permita sobreviver aos assaltos de tamanho descaso. Do jeito em que as coisas se encontram, e sem patriotadas que nos embalem, e se tivéssemos juízo cívico, o país do carnaval, do futebol e do ouro fugidio das medalhas olímpicas seria um país de sonâmbulos. Como já foi dito tantas vezes, com medalhas ou sem glória esportiva, uma nação que se submete ao encanto de patriotismo sem substância jamais superará o papel que reservamos para nós mesmos, o de sermos um reduto para os piores canalhas.
Ele completa, concordando com as teses do livro:
Admito que cheguei às últimas páginas desse romance convencido de que Jogados ao mar ocupará, principalmente em sua diferença, um lugar ao lado de Dona Flor, Brás Cubas e Grande sertão veredas. Afinal, e de uma maneira assemelhada ao livro de Cristovam Buarque, esses três clássicos da literatura produzida no Brasil enfrentam enigmas e impasses cruciais para a vida dos brasileiros, respectivamente a licenciosidade e a sua contenção no romance de Jorge Amado, o conformismo fúnebre que a ironia de Machado não perdoa e a ferocidade violenta que a fabulação de Guimarães Rosa se ocupou em ilustrar. Entretanto, por mais grandiosos que sejam esses ficcionistas, que arbitrariamente cito, é igualmente notória a falta deixada por outros temas centrais para o entendimento dos cinco séculos que forjaram a vida e a experiência brasileiras. Dos quais Jogados ao mar trata com coragem e isenção.
Em outra matéria sobre o livro coordenada por Severino Francisco em o Correio Braziliense -https://www.correiobraziliense.com.br/diversao-e-arte/2024/07/6903968-cristovam-buarque-lanca-livro-de-ficcao-que-retrata-recortes-da-educacao.html – surpreendo o ficcionista Cristovam se valendo mais uma vez do recurso literário para dar verossimilhança ao seu enredo.
Na matéria, o relevo é para o personagem Nestor, jornalista do Correio Braziliense, é fundamental na história, pois realiza pesquisas e entrevistas com mães, professores e traficantes para descobrir o que está acontecendo com as crianças de Planaltina. Ao ser perguntado sobre a escolha do veículo representado, Cristovam responde: “É um jornal fundamental que nós temos na cidade. Se acontece algo em Planaltina e quem vai atrás é um repórter, dificilmente seria outro jornal”.
Esse recurso Cristovam já aplicara em Os Deuses Subterrâneos. Escrito sob o estilo de fábula, ele desenvolve um argumento de todo imaginário. Mas logo oferece elementos aferíveis – dia, horário, número de vôo internacional (Varig 731), trecho, personalidade com agenda pública – para marcar fato real, desse modo trazido para a sua narrativa, para que os incrédulos possam checar ao menos essa parte da história (na minha edição da Record, de 1994, o enredo de verossimilhança está na página 21).
Certamente há aí a atemporalidade e desespacialização provocadas pelo imaginário do escritor. Com certeza Dom Eugênio Salles devia estar no vôo e sua figura cardinalícia logo o atraiu para os subterrâneos da trama criativa do enredo em processo de criação. Mas desconfio que o vôo era mesmo o de retorno da viagem que fizemos juntos a Argel para participar do Colóquio Internacional de Argel Encontro de Personalidades Independentes: Crise du Golfe: la Derive du Droit, Argel, 28 fevrier; 1 e 2 mars 1991 (Cristovam, comigo e mais o franco-brasileiro Christian Guy Caubet, erámos os três únicos latino-americanos convidados para o evento, entre personalidades do porte de Roger Garaudy, Ramsey Clark, Bernard Langlois, Edmond Jouve, René Dumont, Monique Weyl, pe. Jean Cardonnel, Regis Debret – quase três centenas de convidados de todo o mundo e particularmente do Maghreb). Cristovam fez uma forte comunicação Le Golf est Partout). Na volta, Cristovam retornou ao Brasil, via Paris, passando uns dias antes em Roma, onde começa a trama de Os Deuses Subterrâneos.
No vôo de ida nas asas da nostálgica Varig, Cristovam já ia lendo, para ativar a atmosfera parisiense que seria nossa escala esticada na ida e na volta, se não me falha a memória, o livro de Henry Sanson, Memórias dos carrascos de paris 1688 1847. A trama trazia algumas inferências inusitadas sobre posturas profissionais, se feitas pela mediação de palavras traiçoeiras. Como a história do carrasco que os aristocratas preferiam quando subiam o cadafalso pelo cuidado humanizador que lhes dispensava antes de acionar o dispositivo do equipamento criado por estímulo do médico Joseph-Ignace Guillotin que propôs, em 10 de outubro de 1789, o uso de um dispositivo mecânico para realizar as penas de morte na França, ele que era contrário à pena de morte, mas que passou a ter seu nome epônimo para a máquina mortífera. Em Jogados ao Mar Cristovam se pergunta se bondade na profissão é o mesmo que bondade no caráter. Ele avalia, se a conduta do traficante de escravos é simultaneamente boa e má: “Bom na profissão. Bom na busca de lucro. Bom para a ganância. Tipo dono que cuida bem do caminhão ou de seu gado; ou um carrasco que amarra com zelo o nó da corda ou lubrifica com esmero a guilhotina” (p. 18).
A analogia terá sido engendrada nos subterrâneos da mente? As memórias trabalhadas por Henry Sanson se insinuaram nas memórias do autor de Jogados ao Mar? Com quer que seja, na trilha dessas memórias a imaginação de Cristovam sempre tão movido pela aventura da universidade, já se abriu para outras interpelações. Não sei como, o perambular entre os sebos de Paris: no Quartier Latin, nas proximidades da Sorbonne (47 rue des Ecoles, 75230 Paris ou nas margens do rio Sena, perto da igreja de Notre Dame de Paris, Cristovam se pôs à procura de mapas medievais. Queria traçar um roteiro de Paris a Praga para desvendar o mistério que levou o imperador romano-germânico Carlos IV, em 1348, em meio a tensões religiosas, pestes devastadoras, a criar a Universidade Carolina de Praga, a mais antiga universidade da Europa Central e a maior da República Tcheca.
Além dos sebos, lá nos metemos às matulas dos Marchés aux puces parisienses, desde a rue Jean-Henri-Fabre9 et avenue de la Porte-de-Clignancourt (y compris sous le périphérique), no 14e arrondisissement, e dans le 18e arrondissement, já a procura de localizações de mosteiros porque o escritor achou melhor percorrer os caminhos não pelas rotas terrestres mas se deslocando entre os mosteiros do trajeto.
Não escreveu ainda o livro, mas o seu processo criativo vai revelando, sobretudo na atualização de sua obra ficcional, os meandros e os achados narrativos, ao menos enquanto disponha de um bom par de sapatos e cadernos de anotações.
Seu amigo e colega Elimar Nascimento, escrevendo sobre o livro – https://revistasera.info/2024/08/jogados-ao-mar-um-livro-de-cristovam-buarque-editora-lacre-2024/, classificou a obra, com uma quase ficção.
É uma quase ficção ele escreve – E o autor não esconde este fato, pois está na capa. Abaixo do título – Jogados ao mar – está escrito ficção, em que o i é um ponto de interrogação à espanhola, invertido. Portanto, uma pergunta: será que é uma ficção ou um descrição? De fato, o autor é de uma honestidade brutal. Diz no livro o que pensa sobre o humano, a sociedade e, sobretudo, a desigualdade que o incomoda sobremaneira e denuncia há anos. E sem pudor. Em um texto direto, cru. Sem sofisticação, tendo como personagem central um jornalista de casos policiais. A descrição de um real aparentemente invisível em forma de narrativa ficcional.
E completa, avaliando:
Li-o de um fôlego. E, ao final, fiquei pensando: este não é um livro para guardar nas minhas estantes. É um livro para circular. E foi o que fiz. Pedi desculpas ao autor que me o havia presenteado, dizendo-lhe que dispensava dedicatória (ele me enviou o livro junto com outros pelo correio). E, na primeira oportunidade, presenteei-o a um casal de amigos.
É um livro que nos incomoda. Perturba. E não deve deixar ninguém calado. Prevejo que as reações sejam muito diferentes e mesmo díspares e contraditórias. Alguns dirão que é um panfleto. Uma porcaria. Outros dirão que é um livro corajoso, verdadeiro, que escancara a mediocridade e o cinismo da elite brasileira, incluindo um largo segmento da classe média. Alguns o criticarão pela ausência de uma escrita não sofisticada, esquecendo que o autor, está dito no livro, é um jovem jornalista. O mesmo que sai para a periferia do Distrito Federal para escrever sobre um menino desaparecido. E a busca por descobrir o mistério do desaparecimento de Pedro Ivo, o conduz a descoberta de algo que muitos já sabiam, mas não o tinham percebido da forma dura que é apresentada. E outros ficarão estupefatos, porque nunca haviam pensado a respeito. E cobrirão o livro e, sobretudo seu autor, de elogios.
Mas, haverá aqueles que jogarão o livro fora antes de concluir a leitura. Perderão a melhor parte. Aquela em que uma personagem explica porque está presa por envolvimento no tráfico. Presa, e diz que está feliz, porque foi por uma boa causa. Sem qualquer arrependimento. Faria tudo de novo. O que levará alguns a dizer que o autor está estimulando o crime.
Em meio a tantos impropérios e elogios, o livro deve seguir uma bela trajetória. Salvo se a nossa sociedade estiver tão anestesiada que não se importe por mais nada, salvo pela sua vida mesquinha, construída por banalidades e Fake News. Sinal de que nossa sociedade se envolveu em uma bolha, distante da realidade dos fatos. E só nos resta ter pena, e esperar que um dia ela estoure.
Em Jogados ao Mar, Cristovam supera as sutilezas de sua ficcão anterior, Astrícia, A Ressurreição do General Sanchez, A Eleição do Ditador, Os Deuses Subterrâneos, A Rebelião das Bicicletas e outras histórias, A Borboleta Azul. No semestre passado, em meu curso de graduação da disciplina Pesquisa Jurídica, na Faculdade de Direito da UnB, eu havia lançado como eixo de interrogação para os jovens estudantes, o tema do pós-humano ou da humanização das máquinas. De novo, me inspirei na monografia de conclusão de curso (IESB/Comunicação Social, 2009) de Daniel Bicalho de Sousa, Reflexões Filosóficas sobre a Comunicação Social na Era Pós-Humana (Humanização das Máquinas). A preocupação de perscrutar na mentalidade artificializadora (IA) do contemporâneo, olhares críticos ou ao menos tocados para as concepções tradicionais de identidade e individualidade e de buscar estabelecer fronteiras entre humano e máquina, cada vez mais tênues, para inferir a emergência de questões, concepções e conceitos para dar conta de transformações tão profundas. As leituras e resenhas foram de Azimov a Cristovam Buarque (Os deuses Subterrâneos).
Encaminhei para Cristovam as 50 resenhas que as alunas e alunos fizeram de seu livro. Alunas como Raquel Pereira Guimarães. Distingo Raquel porque já encontro um eco criativo em sua disposição para o olhar crítico que eu esperava estimular. Raquel, aliás, logo me ofereceu sua própria perspectiva para pensar tempos caóticos e escatológicos. Mal iniciada no curso de Direito e já me traz um livro de poesias. Publiquei aqui neste espaço de minha Coluna Lido para Você, a recensão que fiz de seu livro depois de lhe ter escrito o prefácio (https://expresso61.com.br/2024/08/21/lido-para-voce-poesia-para-o-tempo-do-fim/).
Sobre Os Deuses Subterrâneos, diz Raquel:
Por fim, não queiramos nos tornar como os homens-deuses, tão dependentes da tecnologia e dos conhecimentos previamente adquiridos que percamos a nossa capacidade criativa. Ao contrário, busquemos romper com os padrões e trazer novas ideias. Ainda que criemos inteligências artificiais que colaborem com a nossa vida cotidiana, não devemos perder o nosso traço distintivo, que são a nossa curiosidade, a nossa capacidade de errar e a nossa capacidade em aprender com nossas falhas. Não nos acovardemos diante de um sistema rígido e aparentemente perfeito de normas positivadas. É possível a construção de um direito plural, que respeite as peculiaridades de cada cultura, a diversidade e a individualidade. Jamais encontraremos todas as respostas na norma escrita. Continuemos, assim, sonhadores e façamos dos nossos sonhos uma realidade melhor a todos.
Todavia, com Sarah Duarte Santos Lima, na perspectiva que ela extrai sob as metáforas de Cristovam Buarque, é muito interessante a leitura que ela faz de Os Deuses Subterrâneos:
Sob o viés da fertilidade imaginativa a capacidade que os homens deuses queriam adquirir eram a possibilidade de criação de novos mundos, como quase tudo na obra é reiterado pelo uso de metáforas, compreendo essa concepção como aquele que possui a capacidade cognitiva de não se limitar ao óbvio, a fim de encontrar novas perspectivas para suas aspirações ou proposituras. Enxergando dessa maneira se torna facilitado dimensionar como os homens deuses poderiam obter tal habilidade sem grandes esforços, isto é, se permitindo descobrirem evidências que nem sempre estão cobertas de ciência, mas que podem se tornar científicas.
É realmente prazeroso seguir o enredo narrativo da ficção de Cristovam em Jogados ao Mar. Há duplo esmero na construção do texto. Num aspecto, seus conceitos (evasão escolar; horário integral); noutro, suas referências-mestras (desconhecimento afoga, a escola é o útero da liberdade, brasileiro véspera, ideias que não existem as não-ideias), cerzidos numa elaboração estilística que reúne ambos, no argumento desenvolvido por toda a escrita. Com elegância e apelo: (quase todos nascemos de véspera, os humanos nascem duas vezes: ao sair do ventre da mãe e ao entrar na escola, jornalista tem mais ouvido do que estômago, jogou-se no mar da desescola, ainda não é visível, porque o hoje só se faz véspera depois que o amanhã acontece, até os que estão na escola são evadidos, estão nela, ela não está neles).
A chave de compreensão da tese subjacente ao imaginário ficcional está no gatilho que detona a consciência para questionar a naturalização da desigualdade (no tema da educação e da diferenciação das escolas para acentuá-las). Esse é um movimento que se intensifica nos porquês da personagem Dona Eloísa: naquele dia me perguntei o porquê da diferença. Quando você diz essa palavrinha, tudo começa a mudar ao redor. Perguntei o porquê e tudo começou a mudar. A gente só muda o destino quando descobre que ele não é feito de sorte e de azar, também de decisões que a gente toma na vida. Foi a primeira vez que me passou na cabeça a ideia de que o azar, era injustiça.
Uma introdução à obra de Cristovam teria preparado o leitor para seu modo de escrever. Em todo o seu repertório. Para ler Cristovam Buarque, de Jaime Sautchuk, Geração Editorial; a tese da querida Michelle Morais de Sá e Silva, professora no College of International Studies, University of Oklahoma. Michelle é PhD e Mestre em Educação Comparada e Internacional pela Columbia University. Doutorado em Educação Comparada e Internacional, sua tese de doutorado, Conditional Cash Transfers and Education: United in theory, divorced in policy, compara o programa bolsa-escola de Brasília (Cristovam Buarque), com a política desenvolvida na cidade de Nova Iorque; também no campo literário há estudos (incluindo tese) sobre a sua contribuição surrealista (realista fantástica) em sua escrita ficcional (PEREIRA, Wilson.O escritor Cristovam e seus heróis cibernéticos. DF Letras: suplemento cultural do Diário da Câmara Legislativa v. 2, n. 14, p.27-30, abr.1995). Wilson Pereira é citado por Nilto Maciel para corroborar a inclusão de Cristovam Buarque no elenco de escritores que representam a Literatura Fantástica no Brasil, no esboço histórico que elabora (https://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.php?cat=Ensaios&cod=61392): “Cristovam Buarque estreou em 1981, com o romance Sinandá. Seu quarto livro, Os Deuses Subterrâneos, se inscreve na linha da ficção científica, segundo Wilson Pereira”.
Nestor Afonso, o personagem que narra, investido da credencial de jornalista do Correio Braziliense, vai a campo com seu caderno de anotações. Ele, como Tchékhov, em Como Fazer uma Reportagem, subtítulo do material compilado por Piero Brunello para o livro Um Bom Par de Sapatos e um Caderno de Anotações (Martins Editora) no qual conduz o leitor numa viagem e apresenta conselhos, teóricos ou práticos, depreendidos dos passos do escritor através do olhar perspicaz, com que observa com honestidade, lucidez e sem preconceitos o mundo misterioso e inexplorado de Sacalina (ilha do extremo oriente russo), cumpre também a tarefa de desvelar as obviedades, o perverso, o injusto naturalizados na acomodação do banal.
Como sementes e as cigarras, algumas ideias de Cristovam se enterram no emaranhado nervoso para, de tempos em tempos aflorarem, subirem à superfície da cognição, germinarem. Em Jogados ao mar percebe-se esse movimento, como vislumbres de seus ensaios de visibilização do invisível, de metamorfose de não-ideias em formas pensamento encontrando modos de manifestação, o tópico transitando para o utópico e assim em diante.
A expressão perda de chance, por exemplo, que denota a realidade por trás da trama, aparece no enredo como expressão de ideia-semente. Lembro de Cristovam, há trinta anos, por instigação de seu humanismo, levantando a hipótese de reparação por perda de chance, querendo mobilizar forças-tarefas para caracterização de atos de violação à dignidade da vida, nas restrições escolares, nos atendimentos hospitalares, em face de posturas negligentes e omissas de realização de projetos de vida. Atualmente já se tem assentado que a perda de uma chance pode sim se traduzir numa noção civil de necessidade de reparação. A perda de uma chance é uma teoria da responsabilidade civil que se caracteriza pela frustração de uma expectativa ou oportunidade legítima que, de acordo com a lógica do razoável, teria ocorrido se as coisas tivessem seguido o seu curso normal (conforme configurado em fundamento de decisões em julgados de tribunais, no Brasil). A teoria surgiu na França na década de 1960, a partir de uma decisão da Corte de Cassação Francesa, que julgou um caso de erro médico. A perda de uma chance pode ser aplicada não só no âmbito das relações privadas, mas também na responsabilidade civil do Estado.
De certo modo, essa consideração de que a perda de chance implica danos que devem ser reparados e não só por meio de indenizações mas de modo a restaurar a dignidade aviltada já é uma realidade vinculante em decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos. A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), em cujo âmbito é reconhecido o direito ao desenvolvimento de um projeto de vida, garante a autonomia de cada pessoa para realizar escolhas e se desenvolver existencialmente. A Corte IDH também conceituou o “dano ao projeto de vida”, que é um dano que ocorre quando a vida de uma pessoa é frustrada por uma violação de direitos. Este dano é causado por aquilo que a pessoa deixou de realizar, conquistar ou viver devido ao evento danoso.
Para a fixação desse conceito, muito contribuiu a judicatura na Corte do juiz brasileiro Antonio Augusto Cançado Trindade, que a presidiu por duas vezes, um notável jurista que pontificou na UnB e figura no seu quadro de professores eméritos. Caso Niños de la Calle” (Villagrán Morales y otros) Vs. Guatemala (1999), Benavides versus Peru (2001), Atala Riffo y Niñas vs. Chille (2012). Nesses julgamentos, a Corte não cuidou só de reparação pecuniária, avançou para a dimensão dos sonhos e dos valores espirituais. Juízes da CorteIDH, Abreu Burelli e Cançado Trindade, no Caso Meninos de Rua vs Guatemala, equiparam o dano ao projeto de vida à morte espiritual: “Uma pessoa que em sua infância vive, como em tantos países da América Latina, na humilhação da miséria, sem a menor condição sequer de criar seu projeto de vida, experimenta um estado equivalente a uma morte espiritual; a morte física que a esta segue, em tais circunstâncias, é culminação da destruição total do ser humano.” A consequência tem sido, uma vez preenchidos os requisitos da responsabilidade civil, a condenação não apenas do Estado, mas do próprio particular em razão do dano autônomo ao projeto de vida provocado, capaz de fornecer meios para que as crianças e os adolescentes exerçam todas as suas potencialidades existenciais, interrompidas pela negligência e pelo descaso, a fim de emancipá-los no seio social.
Ler Jogados ao mar é perceber um mundo do desconhecimento que afoga, ou dos que não conseguem morrer, como Alonso o escravo traficado, que não tinha direito de morrer porque fuga era crime, mesmo quando em busca da morte, não da liberdade. Ou do desaparecimento de um filho, tal o personagem Ivo Vitor, causa de dor permanente, porque as lágrimas por filho morto acalmam e vão diminuindo, as lágrimas por desaparecido ressurgem todo dia e vão aumentando. Cristovam está, de fato, falando da perda de chance, da boa escola, o navio que leva ao porto seguro do futuro. Mas com sentimento, com Paulo Freire, para quem Escola é… o lugar que se faz amigos. Fazer amigos, educar-se, ser feliz. É por aqui que podemos começar a melhorar o mundo. Como Tchékhov, a sua escrita tem a força do vulcão que desarma a traição das palavras, e a traição dos valores numa sociedade que discrimina, segrega, que descarta os sub-humanos, sobrantes, e os joga ao mar.
Silêncio Perpétuo? Anistia e transição política no Brasil (República Velha e Era Vargas)
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
Mauro Almeida Noleto. Silêncio Perpétuo? Anistia e transição política no Brasil (República Velha e Era Vargas). Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares da Universidade de Brasília (PPGDH/CEAM/UnB), 2024, 335 fls.
Integrei a Banca Examinadora, presidida pelo Orientador professor Menelick de Carvalho Netto e formada ainda pela professora Juliana Neuenschwander Magalhães, da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pelos professores José Carlos Moreira da Silva Filho, da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e Mamede Said Maia Filho, da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB).
Desde logo, com a dupla satisfação de um reencontro. Primeiro, pelo que política e epistemologicamente nos liga, já anotado por Mauro nos agradecimentos com que abre a tese, no que me toca por, diz ele, lhe ter apresentado “ao Direito como libertação e me ter acolhido, desde a graduação, na reflexão crítica da matriz teórica de O Direito Achado na Rua, ‘furando os colchões da rotina e da opinião vulgar’. Posso dizer, mais de três décadas depois desse encontro, que aqueles anos de formação foram decisivos e me orientam na caminhada desde então”.
Depois, acompanhando o seu percurso, no que tenho registrado em comentários e prefácios a trabalhos seus – https://estadodedireito.com.br/subjetividade-juridica-a-titularidade-de-direitos-em-perspectiva-emancipatoria/ – NOLETO, Mauro Almeida. Subjetividade Jurídica. A Titularidade de Direitos em Perspectiva Emancipatória. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, ao me debruçar sobre seus livros, um deles fruto da dissertação que tive o gosto de orientar, na Faculdade de Direito da UnB para recuperar do autor, estudos mais avançados – https://estadodedireito.com.br/sujeitos-de-direito-ensaios-criticos-de-introducao-ao-direito/ – NOLETO, Mauro. Sujeitos de Direito. Ensaios Críticos de Introdução ao Direito. São Paulo: Editora Dialética, 2021, que prefaciei, e no qual Mauro analisa “a temática dos direitos (subjetivos) humanos enquanto bases para uma práxis jurídica emancipatória, na qual a hermenêutica pode assumir um papel de destaque no reenquadramento dos significados jurídicos das práticas sociais, conforme as pautas éticas de realização de uma ordem democrática. Os direitos humanos são encarados aqui sob a luz de sua historicidade e complexidade, afastando-se as interpretações idealistas e naturalizadas”.
Sobre a sua tese, tomo o resumo:
A tradição de conciliação via anistia tem prevalecido no Brasil desde os primórdios da nacionalidade e se mostrou ainda mais presente ao longo de todo o período republicano, desempenhando papel importante nas “aberturas”, isto é, nas transições para os regimes de restauração da constitucionalidade democrática. Mas, há muito silêncio sobre como se deu a fixação dessa tradição na rotina institucional e política. As anistias parecem ter conseguido, pelo menos parcialmente, promover um duplo silenciamento: dos crimes abrangidos pelo seu comando de esquecimento e dos próprios fatos e circunstâncias políticas que determinaram as sucessivas edições da medida ao longo da história republicana. No entanto, a concessão da medida nem sempre conseguiu de fato impedir a irrupção de novos surtos de violência política, insurreições e até mesmo de golpes de Estado. Ao contrário, pode ter contribuído para a manutenção desse quadro latente de ruptura institucional. Por outro lado, a promessa de esquecimento dos crimes anistiados também não foi cumprida à risca, como o demonstra a luta por direitos de reparação ou restituição de status civil e militar de muitos grupos de anistiados durante todo o período republicano. A tradição conciliatória, em que as anistias se inserem, por muitas vezes silenciou as vozes dissonantes, as críticas aos abusos e distorções cometidos com o emprego concreto da medida e a sua relação essencial com o “estado de exceção” e com a impunidade dos abusos da repressão, tudo em nome de um uso idealizado e exemplar, em que a anistia é vista como instrumento (mágico) de pacificação pelo silenciamento das disputas passadas. A hipótese aqui aventada é a de que, ao comandar reiterada e sucessivamente o esquecimento de um passado de conflitos políticos e de repressão violenta (os “crimes conexos”), as anistias editadas em momentos de transição de regimes no Brasil acabaram por acomodar e camuflar a presença (ou a ameaça) da exceção e do arbítrio na ordem constitucional ao longo do tempo, naturalizando tanto o recurso à violência para a tomada do poder, quanto a repressão política de exceção aos “inimigos” do Estado. Mas, ao criar restrições, condições e exclusões, de modo a satisfazer interesses políticos dos regimes de força, as anistias de transição entram em contradição com o seu sentido comum, o esquecimento (silêncio perpétuo) e até mesmo a conciliação.
Aliás, antes mesmo de completar a leitura da tese, vali-me desse resumo, para situar artigo de opinião recém publicado – https://brasilpopular.com/autoanistia-uma-violencia-inconstitucional-e-inconvencionaldo-delinquente-a-fim-gerar-sua-impunidade/. Com efeito, bem na linha de advertência que a tese traz, vi ser urgente confrontar consulta pública aberta no Senado, nos termos regimentais, a propósito do PROJETO DE LEI nº 5064 de 2023 (PL 5064/2023), que concede anistia aos acusados e condenados pelos crimes definidos nos arts. 359-L e 359-M do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, em razão das manifestações ocorridas em Brasília, na Praça dos Três Poderes, no dia 8 de janeiro de 2023.
A autoria da proposição é do General-Senador Hamilton Mourão (REPUBLICANOS/RS), sabidamente, basta conferir seus atos e pronunciamentos, um possível beneficiário futuro a depender do curso das investigações e dos indiciamentos, assim como de seu anterior superior no governo, a quem serviu e escudou com fidelidade.
Curiosamente o projeto exclui da anistia os executores dos delitos e serve de escapismo complacente, aos que dele se beneficiam ou se beneficiarão. É a lição de Maquiavel: “para os amigos tudo; para os inimigos a lei”. Diz o projeto: “Esta Lei não alcança as acusações e as condenações pelos crimes de dano qualificado, deterioração de patrimônio tombado e associação criminosa, porventura ocorridas em razão das manifestações indicadas no caput deste artigo”.
A justificativa do projeto me soou como um acinte à dignidade da política e uma afronta à Justiça: “As manifestações ocorridas no dia 8 de janeiro de 2023, em Brasília, constituem conduta deplorável, que merece nossa reprovação, pelo nítido caráter antidemocrático do movimento. Todavia, não se pode apenar indistintamente aqueles manifestantes, pois a maioria não agiu em comunhão de desígnios. Ocorre que os órgãos de persecução penal não têm conseguido individualizar as condutas praticadas por cada um dos manifestantes. Diante dessa realidade, é inconcebível que sejam acusados e condenados indistintamente por crimes de golpe de Estado e abolição violenta do Estado Democrático de Direito”.
Mas, simultaneamente, uma confissão e uma mobilização, sem justa causa e sem base constitucional ou convencional ((sistema internacional de direitos, especialmente Corte Interamericana de Direitos Humanos), para impor silêncio perpétuo à delinquência que tolerou.
Por isso que, no meu artigo, indiquei ter retirado a expressão silêncio perpétuo, de tese que estou lendo para defesa ainda neste mês de setembro (Mauro Almeida Noleto. Silêncio Perpétuo? Anistia e transição política no Brasil (República Velha e Era Vargas). Faculdade de Direito da UnB. Claro que considerei haver um recorte temporal na tese, para cumprir cronograma de apresentação do trabalho. Mas salientei que a consideração do autor, na tese, é atemporal: “ao comandar reiterada e sucessivamente o esquecimento de um passado de conflitos políticos e de repressão violenta (os ‘crimes conexos’, as anistias editadas em momentos de transição de regimes no Brasil acabaram por acomodar e camuflar a presença (ou a ameaça) da exceção e do arbítrio na ordem constitucional”.
É certo, também, que a consulta refere a mais uma iniciativa inscrita no móvel da anistia como esquecimento, como uma forma de “passar pano na delinquência política”. Assim que em outra oportunidade, tive ensejo de abordar o tema, conforme https://brasilpopular.com/artigo-repudio-culpabilidade-justica-e-responsabilizacao/, a propósito de abonar entendimento que considero certo, que sustentam que é hora de falar em punição e não em pacificação, como o faz Milly Lacombe, colunista do UOL (https://www.uol.com.br/esporte/colunas/milly-lacombe/2022/11/05/e-hora-de-falar-em-punicao-e-nao-em-pacificacao.htm).
Pois, na linha da melhor orientação da chamada justiça de transição, acentua que repúdio, culpabilidade, justiça e responsabilização, são marcas de memória para prevenir recorrências e não premiar contraventores que lesam a humanidade, o país e o povo (cf. livro que co-organizei: Série O Direito Achado na Rua, vol. 7: Introdução Crítica à Justiça de Transição na América Latina (https://www.gov.br/mj/pt-br/central-de-conteudo_legado1/anistia/anexos/direito-achado-na-rua-vol-7_pdf.pdf), e que teve em José Carlos Moreira Silva Filho, seu mais orgânico e diligente co-organizador, incluindo um dos desdobramentos a série de vídeos-documentários produzidos pela UnBTV, parte do projeto de edição.
Em relação ao projeto submetido a consulta, não hesito em dizer que ele ilustra a metáfora do gato que quer se esconder, mas deixa seu rabo comprido de fora. Pois, apesar da astúcia, é inconstitucional e inconvencional (sistema internacional de direitos), medidas de autoanistia para infrações que são imprescritíveis por sua ofensividade, tortura entre elas, também será inconstitucional e inconvencional qualquer medida que tenha por fim gerar impunidade, tal qual a espúria iniciativa dessa proposta.
Com efeito, Mauro chama a atenção para isso nas suas conclusões, que o sistema internacional de proteção aos direitos humanos já consagrou com fundamento de medidas de autoanistia, sobretudo quando elas deixam claro a intenção de acobertar crimes contra a humanidade e os direitos humanos. Mauro deixa isso claro ao trazer a confronto, especialmente quanto ao julgamento no STF na ADPF 153, a sentença no caso Gomes Lund e outros versus Brasil (caso da Guerrilha do Araguaia)
Também como já afirmei – https://brasilpopular.com/60-anos-do-golpe-de-1964-memoria-verdade-mas-tambem-justica-razoes-para-o-nunca-mais/ – estar seguro de que tudo que se vivencia no país desde o 8 de janeiro de 2023 deve ser avaliado sob o enfoque da Justiça Transicional. E isso significa estar atento às reiteradas manifestações da Comissão e da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre estabelecer que as disposições de anistia ampla, absoluta e incondicional consagram a impunidade em casos de graves violações dos direitos humanos, pois impossibilitam uma investigação efetiva das violações, a persecução penal e sanção dos responsáveis. A Comissão afirmou que esses crimes têm uma série de características diferenciadas do resto dos crimes, em virtude dos fins e objetivos que perseguem, dentre eles, o conceito da humanidade como vítima, e sua função de garantia de não repetição de atentados contra a democracia e de atrocidades inesquecíveis.
Especificamente sobre o monitoramento que exercita em relação ao Brasil, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), em seu último relatório (2021), ofereceu recomendações sobre ações que tendem a fragilizar e até extinguir esse sistema, como o enfraquecimento dos espaços de participação democrática, indicando, entre as recomendações, a necessidade de “investigar, processar e, se determinada a responsabilidade penal, sancionar os autores de graves violações aos direitos humanos, abstendo-se de recorrer a figuras como a anistia, o indulto, a prescrição ou outras excludentes inaplicáveis a crimes contra a humanidade”.
Penso que a tese de Mauro Noleto incide agudamente na desconstrução de algumas falácias. A primeira, sobre recusar a posição gatopardista de transição política, como conciliação, esquecimento de dissensos e antagonismos, que querem naturalizar restaurações dos processos de rupturas na História, banalizando a sua crueza e a letalidade que neles se desencadeia, na atenuação dissimuladora de uma cordialidade generosa e pacificadora que nos caracterizaria, disfarçando a violência própria de uma experiência que se mantêm neocolonial, apesar da descolonização sem o a decolonialidade que poderia superá-la. Por isso Mauro fala em silenciamento. Para ele, um cálculo político, que impõe a condição do esquecimento: “os militares não trabalhavam com um acordo, mas com um plano para aprovar o projeto de anistia em condições ‘inegociáveis’ quanto ao tratamento legal do seu passado”.
Veja-se o Sumário da tese:
Introdução
Capítulo I – Anistia e Exceção
Anistia: o esquecimento excepcional comandado
Anistia à brasileira: repressão e conciliação controlada
O estado de exceção e sua emergência na história republicana brasileira
Anistias de transição em revista
Capítulo II – A transição da Monarquia para a República: uma “anistia inversa” moderniza a tradição
A abolição do “passado negro”: anistia?
República proclamada: golpes, guerras e anistias
Marechais no Poder: consolidação militar da República
Estado de sítio e anistia na Primeira República: a exceção ordinária
Anistiar e Punir: a anistia teratológica
A judicialização da anistia: o “caso Trindade” (crimes conexos) e o julgamento da constitucionalidade da “anistia inversa” (razão de Estado)
O Atentado de 5 de novembro: epílogo do florianismo e da transição.
Capítulo III – A República em transição: revoluções tenentistas, anistias e a constitucionalização efêmera (1922-1934)
Tenentismo: revolução, exílio e anistia
1922: “sangue nas areias de Copacabana”
1924: a “Revolução Esquecida”
Clevelândia
Depois da Coluna Prestes: exílio e luta pela anistia
Outubro de 1930: “façamos a revolução antes que o povo a faça”
Governo Provisório: entre duas anistias
A pressão por anistia “ampla” na Constituinte de 1933/1934
Capítulo IV – A transição para a ditadura do Estado Novo (1935-1937).
Sob estado de (exceção) Segurança Nacional: o “plano inclinado”
A “Lei Monstro”
O inimigo é vermelho: a “revolução” que virou “intentona”
A reforma da Constituição: “o fetichismo constitucional vai muito bem nos tempos normais, agora não!”
A “Segurança”: um Tribunal para “julgar” os inimigos
Estado Novo: “o golpe silencioso” sem anistia.
Epílogo – A anistia de 1945: “mil bocas em silêncio, murmurando”
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FONTES DOCUMENTAIS
IMAGENS
ANEXOS
Por essas razões, meu relevo na leitura da tese de Mauro Noleto está na sua tomada de posição relativamente a vencer os limites de entendimento, seja sob a perspectiva linguística, seja sob o enfoque hermenêutico, ou da critica teórica, para localizar e ampliar “as iniciativas de recuperação da memória e da história desse tempo (p. 19), de modo a resgatar a anistia extorquida ou o uso parasitário do seu conceito, para romper o silêncio perpétuo, tal como indica o título de sua tese.
Sua abordagem reclama a necessidade da ousadia e da novidade na concepção política do presente e do futuro. E, de algum modo, uma disposição crítica da política e da história, com apoio em boa base conceitual para escovar a contrapelo e permitir que se revele um singular coletivo, uma passagem entre o passado e o futuro.
Em artigo da minha Coluna O Direito Achado na Rua, no Jornal Brasil Popular, 60 anos do Golpe de 1964: Memória, Verdade mas também Justiça. Razões para o Nunca Mais(https://brasilpopular.com/60-anos-do-golpe-de-1964-memoria-verdade-mas-tambem-justica-razoes-para-o-nunca-mais/), referi-me ao livro organizado por Eneá de Stutz e Almeida, a atual presidenta da Comissão de Anistia – http://justicadetransicao.org/a-transicao-brasileira-memoria-verdade-reparacao-e-justica-1979-2021/ (A transição brasileira: memória, verdade, reparação e justiça (1979-2021), Salvador: Soffia10 Editora, uma publicação do Grupo de Pesquisa Justiça de Transição, da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília). No livro, os organizadores (Eneá de Stutz e Almeida) designam uma justiça de transição reversa, que insiste em preservar essa astúcia de acobertamento da violência e da afronta aos direitos, numa exceção que parece não ter fim na sua recorrência.
Em outro texto -https://brasilpopular.com/60-anos-do-golpe-de-1964-memoria-verdade-mas-tambem-justica-razoes-para-o-nunca-mais/, lembrei, com Nair Heloisa Bicalho de Sousa, voltando ao nosso texto de apresentação ao volume 7, da Série O Direito Achado na Rua (Justiça de transição: direito à memória e à verdade), aliás citado por Mauro, que também participa da obra (embora associando sistema eleitoral e justiça de transição, pra expor O Direito Eleitoral da Ditadura, as aparências enganam?) que é necessário “um esforço para vencer a tendência a deixar no esquecimento os fatos reveladores das práticas políticas do regime autoritário. Vê-se, assim, com Pollack (1989), que memória e esquecimento são eixos fundamentais da esfera do poder, disputando o modo como a memória coletiva constrói-se em cada sociedade”. Em outro texto (Direito à memória e à verdade, Observatório da Constituição e da Democracia. Brasília: Faculdade de Direito da UnB, n. 17, outubro e novembro de 2007), avançamos esse ponto para reafirmar que há “uma memória coletiva em processo de construção necessitando que as diferentes gerações tenham conhecimento da verdade.
Teria sido possível apelar para a verdade, conforme a diretriz do pensamento da grande filósofa Hannah Arendt, e assim recuperar um “hiato de credibilidade” para resgatar a verdade como dimensão da política, em condições de estabelecer base para a confiança desejada entre governo e cidadãos. Atende-se à questão posta por Walter Benjamin, para designar o processo da memória histórica que segundo ele, implica articular historicamente o passado sem que isso signifique conhecê-lo “como ele de fato foi”, mas antes, apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo?
Benjamin não explica como a história humana pode dar o que o homem não tem. O objeto da memória não é um passado morto, mas uma linha tênue cujo desenrolar pode provocar novos emaranhados. O que não se tem hoje ao seu alcance de nosso discernimento ativo a história animada por esse passado pode ter”.
A imagem elaborada por Benjamin, serviu a sua interpretação da realidade de um tempo de paroxismo totalitário, ao qual ele próprio sucumbiu, e que marcou o mundo por uma referência de brutal irracionalidade, e assim, “reconstruir memórias que permitam ressignificar as experiências de outros sujeitos do passado e, com eles, estabelecer um diálogo no tempo presente”.
Reivindicar a verdade e resgatar a memória, como referências éticas contribui para estancar a mentira na política. Referi-me à grande pensadora Hanna Arendt exatamente para reter, sobre esse tema (cf. meu Memória e Verdade como Direitos Humanos in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Ideias para a Cidadania e para a Justiça. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 2008, p. 99-100) a sua advertência de que “uma das lições que podem ser apreendidas das experiências totalitárias é a assustadora confiança de seus dirigentes no poder da mentira e na capacidade de reescreverem a história para a adaptar a uma linha política”. Ou, dito poeticamente, com Milan Kundera, para o homenagear, há poucos meses de seu falecimento (11/07/23): “Para liquidar os povos, começa-se por lhes tirar a memória. Destroem-se seus livros, sua cultura, sua história. E uma outra pessoa lhes escreve outros livros, lhes dá outra cultura e lhes inventa uma outra história” (O Livro do Riso e do Esquecimento, 1978).
Mauro afirma (p. 32), que a hipótese aventada na tese “é a de que, ao comandar reiterada e sucessivamente o esquecimento de um passado de conflitos políticos e de repressão violenta (os “crimes conexos”), as anistias editadas em momentos de transição de regimes no Brasil acabaram por acomodar e camuflar a presença (ou a ameaça) da exceção e do arbítrio na ordem constitucional ao longo do tempo, naturalizando tanto o recurso à violência para a tomada do poder, quanto a repressão política de exceção aos “inimigos” do Estado. Mas, ao criar restrições, condições e exclusões, de modo a satisfazer interesses políticos dos regimes de força, as anistias de transição entram em contradição com o seu sentido comum, o esquecimento (silêncio perpétuo) e até mesmo a conciliação”.
A questão que lhe ponho é simples: Há acúmulo para se abrir uma agenda para esses questionamentos e tornar possível instituir finalmente políticas de Memória, Verdade e Justiça aplicáveis a condutas das Forças Armadas ou pelos menos de seus membros, incluindo os mais proeminentes, já “não confiáveis” ou a outros fautores sabidamente perpetradores de crimes, imprescritíveis e não anistiáveis? Quando pergunto se há horizonte é no sentido de aferir as condições de completude da transição, abrindo-se conforme as condicionantes presentes no trabalho do Mauro. A tese, realmente conduz à admissão dessa possibilidade que coincide em boa parte com aquelas que eu próprio menciono (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Anistia, compromisso da liberdade. In Revista Humanidades, nº 13, Editora UnB, 1987; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Memória e Verdade como Direitos Humanos. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Idéias para a Cidadania e para a Justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor/Sindjus – Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário do Ministério Público da União do DF, 2008, pp. 99-100). Sobretudo em meu artigo de 1987, quando então, eu tinha na constituinte, na anistia e na busca da memória e da verdade para resgatar a política e calibrar a própria transição entre o regime ditatorial e a instalação de um regime de enunciado democrático, as condições de possibilidade para esse trânsito.
Em relação à anistia, vou ao meu texto (Humanidades, 1987: 26-28): anistia, neste contexto, define responsabilidade, não apenas função corretiva que se exerça por meio do esquecimento de comoções já conjuradas; a sua substância real lhe define o título político: é inevitável extrair da liberdade a nova ordem para a qual ela é mediação necessária e impedir que a velha ordem sustente ainda os seus interesses com a reivindicação de uma interpretação obscurantista.
Massacres no Campo / Comissão Pastoral da Terra, Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
Massacres no Campo / Comissão Pastoral da Terra, Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais.Organizadores: Maria José Andrade de Souza, Diego Augusto Diehl, Carla Benitez Martins, José Humberto Góes Júnior – Goiânia : CPT; IPDMS, 2024, 291 p.
Conforme dizem os organizadores e organizadoras na Apresentação da nova publicação da CPT e do IPMDS, o relatório de pesquisa Massacres no Campo na Nova República –1985-2019, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS) têm por objetivo denunciar o alto índice de impunidade que o sistema de justiça brasileiro garante aos mandantes e executores de assassinatos de trabalhadoras e trabalhadores envolvidos na luta pela terra no país. Objetiva também manter vivo o debate sobre esta situação e reivindicar que o poder público nacional promova mudanças estruturais com vistas a alterar as condições que ensejam a impunidade. Formada por mais de uma dezena de pesquisadores, a equipe do IPDMS teve a possibilidade de acessar os registros de conflitos no campo e publicações feitas pela CPT ao longo de seu trabalho pastoral de monitoramento e denúncia das violências cometidas contra trabalhadoras, trabalhadores e povos do campo, das águas e das florestas, inclusive os casos de assassinatos. Além disso, foi realizada a análise de todas as 34 edições do relatório Conflitos no Campo – Brasil publicados entre 1985 e 2019, para entender a metodologia do trabalho de monitoramento da CPT e como, ao longo do tempo, as denúncias das violências e conflitos foram estudas e trabalhadas pela organização pastoral, por pesquisadores e representantes dos movimentos sociais de luta pela terra. No desenvolvimento da pesquisa, foi percebida a dificuldade em acessar inquéritos e processos dos casos de assassinatos, fossem individuais ou coletivos, em decorrência da inexistência das peças ou da deterioração dos autos. Tal situação demonstra o descaso do sistema de justiça brasileiro com a preservação documental e da memória de suas próprias obrigações e ações, o que dificulta ou mesmo impede o acesso aos inquéritos e processos. Essa é uma das características da impunidade do sistema de justiça aos mandantes e executores de assassinatos no campo.
Por meio da documentação de casos de violência e impunidade no campo no Brasil desde 1985 (no período chamado de Nova República), a Comissão Pastoral da Terra (CPT) mantém atualizados os dados sobre os conflitos no contexto agrário nacional. Até o ano de 2022, foram registrados 59 massacres (entendendo os assassinatos de três ou mais pessoas numa mesma ocasião), contabilizando 302 vítimas, com destaque para posseiros, sem-terra e indígenas.
A publicação analisa seis casos emblemáticos de massacres e as falhas encontradas nos processos judiciais, sendo resultado de uma pesquisa em conjunto com o Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS) e universidades públicas como a Universidade de Brasília (UnB). As entidades organizadoras, junto com trabalhadores e trabalhadoras, comunidades camponesas e povos indígenas, experimentam uma parceria metodológica que visa ao alcance de outros casos que ainda não foram estudados, e possa provocar uma resposta do Estado brasileiro diante de tantos crimes impunes de assassinatos, contribuindo para a reversão do quadro histórico de impunidade que permeia a luta pela terra no Brasil.
No toca especificamente à pesquisa, uma formidável equipe foi montada. A começar pela coordenação do Grupo. Coordenação Executiva: André Felipe Soares de Arruda, Carla Benitez Martins, Diego Augusto Diehl, Edimilson Rodrigues de Souza, Euzamara de Carvalho, Gladstone Leonel Júnior, José Humberto de Góes Junior, Maria José Andrade de Souza. Coordenação Acadêmica: Alexandre Bernardino Costa e Cláudio Lopes Maia.
Uma nota de reconhecimento deve ser atribuída às autoras e autores, aqui relacionados, por ordem alfabética: AFONSO MARIA DAS CHAGAS, Doutor em Ciência Política (UFRGS); Professor do Departamento de Ciências Sociais – DACS/UNIR, Câmpus Porto Velho; ALESSANDRA GASPAROTTO, Doutora e Mestra em História (UFRGS). Licenciada em História (UFRGS). Professora do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pelotas (UFPel); ALEXANDRE BERNARDINO COSTA, Doutor em Direito pela UFMG, mestre em Direito pela UFSC e graduado em Direito pela UnB. Professor associado da Faculdade de Direito da UnB, lecionando na graduação e pós-graduação (PPGD-UnB). Professor efetivo do Programa de Pós-Graduação em Direito Humanos e Cidadania do CEAM/UnB; atual Diretor da Faculdade de Direito da UnB; AMANDA BONA, Bacharel em Direito (UNIFESSPA); Coordenadora da Equipe de Monitoramento da Reparação Integral da Associação de Desenvolvimento Agrícola Interestadual (Adai) no projeto Assessoria Técnica de Desenvolvimento Socioeconômico às comunidades atingidas pelo rompimento da Barragem de Fundão; ANDRÉ FELIPE SOARES DE ARRUDA, Doutor em Direito PUC/SP. Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito Agrário da UFG (PPGDA/UFG) e Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFJ (PPGD/UFJ) e do Curso de Graduação em Direito da UFJ (FD/UFJ). Membro da Coordenação Executiva da pesquisa; ANGÉLICA FERREIRA DE FREITAS, Mestranda em Direito PPGD/UFJ. Bacharela em Direito pela Universidade Federal de Jataí (UFJ). Pós-graduanda em Direito Penal e Processo Penal pela Facuminas. Pesquisadora de Gênero e Deficiência; ARTHUR ERIK MONTEIRO COSTA DE BRITO, Mestre e Doutor em Agriculturas Familiares e Desenvolvimento Sustentável pelo Instituto Amazônico de Agriculturas Familiares (Ineaf) da Universidade Federal do Pará (UFPA); CARLA FERNANDA RODRIGUES DIAS, Ex-assentada rural. Advogada. Bacharela em Direito pela Universidade Federal de Goiás – Regional Goiás. Especialista em Direito do Trabalho pelo IED e Mestra em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás; CARLA BENITEZ MARTINS, Doutora em Sociologia (UFG). Mestra e graduada em Direito (UFSC e UNESP). Professora Adjunta da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB). Membra do IPDMS, tendo composto sua secretaria nacional (2016-2020). Membra da Coordenação Executiva da pesquisa; CAROL MATIAS BRASILEIRO, Doutoranda e Mestra em Direito pelo PPGD-UFMG. Pesquisadora associada ao Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais. Advogada trabalhista; CAMILA GIRON DE SOUZA, Graduanda em Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Pesquisadora de iniciação científica pela Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ); CLÁUDIO LOPES MAIA, Doutor e mestre em História pela UFG, graduado em História pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO). Possui pós-doutorado em Direito pela UFSC. Professor associado da Universidade Federal de Catalão (UFCAT). Professor efetivo do Programa de Pós-Graduação em Direito Agrário da UFG e do Curso de Mestrado Profissional em História da UFCAT; DIEGO AUGUSTO DIEHL, Doutor em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB); Professor de graduação e pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Jataí (UFJ). Professor efetivo do Programa de Pós-Graduação em Direito Agrário da Universidade Federal de Goiás (UFG). Membro da Coordenação Executiva da pesquisa; EDIMILSON RODRIGUES DE SOUZA, Doutor em Antropologia Social (Unicamp); Professor Titular da Faculdade Estadual de Música do Espírito Santo (Fames); EUZAMARA DE CARVALHO, Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Direito Humanos e Cidadania do CEAM/UnB. Mestre em Direitos Humanos pelo PPGDH-UFG. Graduada em Direito pela UFG campus Cidade de Goiás na turma “Evandro Lins e Silva” do PRONERA; Membra do IPDMS, tendo composto a secretaria nacional ( 2016-2020). Membra da Coordenação Executiva da Pesquisa ”. Assessora da Comissão Pastoral da Terra – CPT; FERNANDA DO SOCORRO FERREIRA SENRA ANTELO, Doutora em Ciências Sociais (CPDA/UFRRJ); tem experiência em Geografia Agrária, Sociologia Rural e Políticas Públicas com ênfase em análises ambientais, conflitos fundiários e ambientais e ordenamento territorial; GLADSTONE LEONEL JÚNIOR, Doutor em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB); Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional e da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF); Membro da Coordenação Executiva da pesquisa; GUINTER TLAIJA LEIPNITZ, Doutor em História (UFRGS); Professor Adjunto da Universidade Federal do Pampa, Câmpus Jaguarão; GUSTAVO SEFERIAN SCHEFFER MACHADO, Professor da Faculdade de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Bacharel(2008), mestre (2012) e doutor (2017) em Direito pela Universidade de São Paulo, foi pesquisador convidado em sede pós-doutoral do CéSor/EHESS/CNRS, em Paris, França (2018) e no PPGD-UFBA, em Salvador, Brasil (2023-2024). Membro do IPDMS, tendo composto sua secretaria nacional (2020-2022). Presidente do ANDES-Sindicato Nacional; HALYME RAY FRANCO ANTUNES, Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável (UnB). Graduada em Direito (UFPA). Membro da Coordenação Executiva da pesquisa; HELENA DE CASTRO DIAS, Graduada em Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Atualmente, é mestranda no programa Erasmus Mundus em Direito Internacional da Segurança Global, Paz e Desenvolvimento pela Universidade de Glasgow; JOSÉ HUMBERTO DE GÓES JUNIOR, Doutor em Direito, Estado e Constituição (UnB). Mestre em Ciências Jurídicas, área de concentração em Direitos Humanos (UFPB). Professor do Curso de Direito da Universidade Federal de Goiás, Câmpus Goiás. Membro da Coordenação Executiva da pesquisa; KERLLEY DIANE SILVA DOS SANTOS, Mestre em Ciências Ambientais pelo Programa de Pós-Graduação em Recursos Naturais da Amazônia (UFOPA). Graduada em Direito (UFPA). Técnica-administrativa em educação da UFOPA; LENIR CORREIA COELHO, Doutoranda em Direito Agrário (UFG), Advogada Popular; MARCELLE CONEGUNDES, Bacharel em Ciências do Estado pela UFMG. Tecnóloga em Gestão de Organizações do Terceiro Setor pela UNINTER. Pós-graduanda em Responsabilidade Social pela PUC Minas; MARIA JOSÉ ANDRADE DE SOUZA, Doutora em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professora do Curso de Direito da Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB). Membro da Coordenação Executiva da pesquisa; NAYARA GALLIETA BORGES, Doutoranda em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). Mestre em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UNICEUB). Bacharel em Direito (UNESP). Professora Assistente no curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do Tocantins (UFT); PEDRO HENRIQUE ANTUNES DA COSTA, Graduado em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Mestre e Doutor também em Psicologia pela UFJF. Professor do Departamento de Psicologia Clínica e do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica e Cultura da Universidade de Brasília (UnB); REGINA COELLY FERNANDES SARAIVA, Doutora em Desenvolvimento Sustentável (UnB); Professora Associada da Universidade de Brasília (UnB); RODOLFO BEZERRA DE MENEZES LOBATO DA COSTA, Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais (UFF); Professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Paraná; SARA MACÊDO DE PAULA, Mestra em Direito Agrário pela UFG, advogada popular, artivista do Coletivo Ciganagens.
Uma equipe de ponta, epistemologicamente georefenciada, afeiçoada aos temas interpelantes que compõem o estudo e movidos por uma racionalidade diligente e instigados por inequívocos compromissos sociais.
O estudo tem essa singularidade acadêmico-analítica mas guarda pertinência com a motivação política que a partir da CPT adotou o princípio do monitoramento social estabelecendo na metodologia do relatório para a denúncia e a crítica das ocorrências de violações inscritas nos conflitos e nos massacres que caracterizam as tensões sociais sobretudo no campo.
Por isso tenho dado atenção a esses estudos e relatórios. Quando saiu a edição 2023 de um desses muito completos estudos sobre o tema dos conflitos do campo no Brasil (Conflitos no campo Brasil 2023 / Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno. – Goiânia : CPT Nacional, 2024. 214 p.: il., tabelas, gráficos, fotografias – https://estadodedireito.com.br/conflitos-no-campo-brasil-2023-centro-de-documentacao-dom-tomas-balduino/), tratei de fazer uma recensão que traduzisse a importância dessas publicações. Aliás, já antes, ao fazer a recensão do relatório de 2022, tive a oportunidade de indicar o escopo, método e procedimento de elaboração – compartilhamento dos dados por uma forte rede de intercomunicação, conforme https://estadodedireito.com.br/comissao-pastoral-da-terra-conflitos-no-campo-brasil-2022/ (Comissão Pastoral da Terra. Conflitos no Campo Brasil 2022. Centro de Documentação Dom Tomás Balduino (Cedoc-CPT). Goiânia: CPT Nacional, 2023, 254 p.).
A propósito, sintetizei:
Conflitos no Campo Brasil 2022 vem se juntar a outros estudos importantes sobre a violência nessa que é a mais crítica faixa de agressividade da expansão capitalista e da ganância acumuladora no mundo e em nosso país. Há poucos meses, também na UnB, tivemos o lançamento de relatório semelhante, do CIMI – Conselho Indigenista Missionário, sobre violência contra os povos indígenas. A propósito, meu artigo na coluna O Direito Achado na Rua do Jornal Brasil Popular: https://www.brasilpopular.com/as-chamas-do-odio-e-a-continuidade-da-devastacao-relatorio-do-cimi-sobre-violencia-contra-os-povos-indigenas/. O Relatório pode ser consultado e copiado na página do CIMI (https://cimi.org.br/2022/08/relatorioviolencia2021/), violência contra os povos indígenas e seus territórios e sobre os conflitos no campo. Mas também quando uma virada democrática acontece no Brasil, com a volta de uma governança de base popular, participativa e radicalmente democrática que se abre à elaboração de políticas sociais e públicas que podem se valer desses estudos para orientar essas políticas.
A Publicação é um completo estudo que pode calçar muitas possibilidades de aplicação e de ações políticas para confrontar a realidade cruenta que prospecta. Basta compulsar o seu Sumário:
APRESENTAÇÃO
INTRODUÇÃO
MASSACRES NO CAMPO NA NOVA REPÚBLICA:
CARACTERIZAÇÕES E ANÁLISES DO PAPEL DO SISTEMA DE JUSTIÇA
1.1 DADOS E INFORMAÇÕES GERAIS DOS CASOS REGISTRADOS E DOS AUTOS LOCALIZADOS
1.1.1 TEMPORALIDADE DOS MASSACRES NO CAMPO NA NOVA REPÚBLICA 1.1.2 REGIONALIDADES E TERRITORIALIDADES DOS MASSACRES NO CAMPO NA NOVA REPÚBLICA
1.2 A RELAÇÃO ENTRE ARCO DO DESMATAMENTO E ARCO DOS MASSACRES
1.2.1 A POLÍTICA FUNDIÁRIA DA DITADURA EMPRESARIAL-MILITAR PARA A AMAZÔNIA LEGAL E SEUS IMPACTOS FUTUROS
1.2.2 O HISTÓRICO DA VIOLÊNCIA E DA GRILAGEM COMO MODOS DE AQUISIÇÃO DA POSSE E DA PROPRIEDADE DA TERRA NA AMAZÔNIA BRASILEIRA
1.2.3 OS MASSACRES NO CAMPO NA NOVA REPÚBLICA E A DINÂMICA SOCIAL DA “FRONTEIRA”
1.3 PRINCIPAIS AGENTES ENVOLVIDOS NOS MASSACRES NO CAMPO NA NOVA REPÚBLICA
1.4 AUTOS LOCALIZADOS E NÃO-LOCALIZADOS E SEUS SIGNIFICADOS NA COMPREENSÃO DAS RAZÕES DA IMPUNIDADE
1.5 DADOS PRODUZIDOS A PARTIR DOS AUTOS LOCALIZADOS: AS POSSÍVEIS RAZÕES DA IMPUNIDADE
1.6 CONCLUSÕES PRELIMINARES SOBRE O BALANÇO GERAL DOS CASOS
MASSACRES NO CAMPO NAS REGIÕES DE VIOLÊNCIA ENDÊMICA: CARACTERÍSTICAS DA ATUAÇÃO DO SISTEMA DE JUSTIÇA
2.1 POR QUE OS MASSACRES NO CAMPO SE REPETEM NA REGIÃO SUDESTE DO PARÁ?
2.1.1 LOCALIZAÇÃO E CARACTERIZAÇÃO GERAL
2.1.2 CARACTERIZAÇÃO HISTÓRICA DA REGIÃO
2.1.2.1 Modernização conservadora da agricultura brasileira, integração regional e inserção de novos atores sociais (1964-1984)
2.1.2.2. Redemocratização política, luta pela terra e reestruturação agrária do Sudeste Paraense (1985-1999)
2.2 O MASSACRE DE ELDORADO DOS CARAJÁS: CASO PARADIGMÁTICO DA NOVA REPÚBLICA
2.2.1 DESCRIÇÃO DO MASSACRE
2.2.1.1 Antecedentes
2.2.1.2 O Massacre de Eldorado dos Carajás
2.2.1.3 Repercussão do massacre
2.2.1.4 Ocorrências após o Massacre
2.2.1.5 Inquérito e Denúncia
2.2.1.6 Ação Penal
2.2.1.7 Instrução e Pronúncia
2.2.1.8 Júris
2.2.1.9 Sentença
2.2.1.10 Recursos
2.2.1.11 Prisão e impunidade
2.2.2 ATORES ENVOLVIDOS NO CONFLITO
2.2.3 SIGNIFICADOS SOCIOPOLÍTICOS DO MASSACRE DE ELDORADO DOS CARAJÁS PARA A COMPREENSÃO DA VIOLÊNCIA NO CAMPO NA NOVA REPÚBLICA
2.2.3.1 A “farsa” do julgamento, os limites do júri e as razões da impunidade
2.2.3.2 O uso político do julgamento pelo movimento
2.2.3.3 Memória das vítimas
2.2.3.4 Política do terror psicológico
2.2.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
2.3. A CHACINA DE UBÁ: ELOS ENTRE MILÍCIAS DE FAZENDEIROS E PISTOLAGEM NO POLÍGONO DOS CASTANHAIS
2.3.1 CONTEXTO SOCIAL DA CHACINA DE UBÁ
2.3.2 A CHACINA DE UBÁ: CONTROVÉRSIAS JURÍDICAS E POLÍTICAS NO CURSO DE UM JULGAMENTO DE QUATRO DÉCADAS DE TRAMITAÇÃO
2.3.3 UM PROCESSO DE IDAS E VINDAS
2.3.4. COMO O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL JULGA A CHACINA: A REALIDADE MATERIAL E SEUS REFLEXOS NA PRÁTICA PROCESSUAL
2.3.4.1 As vítimas
2.3.4.2 O Juízo e as suas relações: Ezilda Pastana Mutran e a família Mutran como síntese de latifúndio, crime e Estado
2.3.4.3 O Mandante
2.3.4.4 Os executores
2.3.4.5 Considerações Finais
2.3.5 LINHA DO TEMPO PROCESSUAL – CASO UBÁ
2.4. O MASSACRE DE PAU D’ARCO: UMA VEZ MAIS, A POLÍCIA A SERVIÇO DO LATIFÚNDIO
2.4.1 CONTEXTO DA REGIÃO E DO CONFLITO
2.4.2 O MASSACRE DE PAU D’ARCO
2.4.3 O INQUÉRITO POLICIAL
2.4.3.1 Exames médico-legais
2.4.3.2 Perícia Balística
2.4.3.3 Reconstituição
2.4.3.4 Relatório Final do Inquérito dos Executores
2.4.3.5 Buscas e apreensões
2.4.3.6 QUEBRAS DE SIGILOS BANCÁRIOS
2.4.4 O PROCESSO CRIMINAL
2.4.4.1 Denúncia (MP)
2.4.4.2 INSTRUÇÃO E PRONÚNCIA
2.4.4.3 Recursos
2.4.5 ANÁLISE QUALITATIVA E CRÍTICA DO CASO
2.4.5.1 Episódio mais violento depois de Eldorado dos Carajás
2.4.5.2 Tragédia Anunciada
2.4.5.3 Segurança Privada ou Milícias Privadas?
2.4.5.4 Grupo de Extermínio? Matadores? Justiceiros? Associação Criminosa? Milícia? Como caracterizarmos a atuação das forças policiais?
2.4.5.5 Significados dos usos da Tortura
2.4.5.6 Massacre como Recado
2.4.5.7 Sobreviventes: a morte em vida, a vida breve
2.4.5.8 Criminalização das vítimas
2.4.5.9 Executores
2.4.5.9.1 Não foi Confronto
2.4.5.9.2 O papel decisivo da Delação Premiada
2.4.5.9.3 Fraude Processual: limitações para a responsabilização
2.4.5.10 Mandantes e financiadores
2.4.5.10.1 Violência como uma prática associada a propinas
2.4.5.10.2 Consórcio de fazendeiros
2.4.5.10.3 Família Babinski: vítima da circunstância ou articuladora do massacre?
2.4.5.10.4 Superintendente Miranda, qual o seu lugar nessa história?
2.4.5.10.5 Esforços e equívocos dos inquéritos da Polícia Federal
2.4.5.11 Morte de Fernando e prisão de José Vargas: novos capítulos do conflito
2.4.6 AFINAL, AS RAZÕES DA IMPUNIDADE: COMO ACONTECE A DESRESPONSABILIZAÇÃO?
2.4.7 LINHA DO TEMPO CASO DE PAU D ́ARCO
2.5 A “GUERRILHA DO GUAMÁ” E O MASSACRE DE VISEU-OURÉM: MILITARIZAÇÃO DA QUESTÃO AGRÁRIA E A CONSTRUÇÃO DA VÍTIMA COMO INIMIGA
2.5.1 CONTEXTO SOCIAL DO MASSACRE DE VISEU-OURÉM
2.5.1.1 Os empreendimentos que se instalaram na região e as relações com a comunidade
2.5.1.2 O surgimento de Quintino Gatilheiro e a Guerrilha do Guamá
2.5.1.3 A intervenção do governo do estado no conflito
2.5.1.4 A região do conflito após a morte de Quintino
2.5.1.5 Comparativo com os dados de conflitos no campo da CPT
2.5.1.6 A não configuração do massacre de acordo com os critérios da CPT
2.5.2 O MASSACRE DE VISEU-OURÉM: A DESRESPONSABILIZAÇÃO JURÍDICA DE AUTORIDADES PÚBLICAS ENQUANTO MANDANTES E EXECUTORES DE MASSACRES NO CAMPO
2.5.2.1 A incursão militar que resultou na morte de Quintino
2.5.2.2 Inquérito policial
2.5.2.3 Denúncia
2.5.2.4 Processo Criminal
2.5.2.5 Conselho de Sentença Militar: absolvições
2.5.2.6 Recursos pós julgamento
2.5.3 COMO O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL JULGA O MASSACRE: CRIMINALIZAÇÃO DAS VÍTIMAS, LIMITES DA JUSTIÇA MILITAR E AS TESES JURÍDICAS IMPULSIONADORAS DA IMPUNIDADE
2.5.3.1 As vítimas
2.5.3.2 Mandantes e executores
2.5.3.3 Principais motivações
2.5.3.4 Principais fragilidades identificadas na condução das investigações, do inquérito e do processo judicial
2.5.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
2.5.5 LINHA DO TEMPO DO CASO VISEU-OURÉM (1985)
2.6 O MASSACRE DE CORUMBIARA: GRILAGEM, VIOLÊNCIA E A CRIMINALIZAÇÃO DAS VÍTIMAS
2.6.1 O MASSACRE DE CORUMBIARA: CONTROVÉRSIAS JURÍDICAS E POLÍTICAS, TRAMITAÇÃO PROCESSUAL
2.6.2 “NÃO TEME A JUSTIÇA AQUELE QUE TRABALHA COM A VERDADE” OU “MISSÃO CUMPRIDA COM FIDELIDADE E ISENÇÃO”
2.6.3 “OU ACABAMOS COM OS SEM-TERRA OU OS SEM-TERRA ACABAM COM O BRASIL” – A ATUAÇÃO DÚBIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DIANTE DO MASSACRE EM CORUMBIARA
2.6.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
2.7 O MASSACRE DE FELISBURGO: CASO PARADIGMÁTICO NO SUDESTE BRASILEIRO
2.7.1 INTRODUÇÃO
2.7.2 VALE DO JEQUITINHONHA
2.7.3 FELISBURGO
2.7.4 TRANSFORMAÇÕES NAS RELAÇÕES ECONÔMICAS E SOCIAIS NO VALE DO JEQUITINHONHA: O ACIRRAMENTO DOS CONFLITOS AGRÁRIOS A PARTIR DOS ANOS 1970
2.7.5 MASSACRE DE FELISBURGO
2.7.5.1 Narrativas do massacre
2.7.5.2 O processo judicial sobre o massacre
2.7.5.3 Um massacre anunciado
2.7.5.4 Um crime premeditado
2.7.5.5 As relações de poder e a lógica proprietária
2.7.5.6 O ódio e a “vingança” que alimentam a violência
2.7.5.7 A repercussão do Massacre de Felisburgo
2.7.5.8 Os “dois” processos do Massacre
2.7.5.9 Aspectos da impunidade do massacre
2.7.6 PARA ALÉM DO PROCESSO
2.7.7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
2.8. COMO O SISTEMA DE JUSTIÇA JULGA OS MASSACRES NO CAMPO:
INTERVISÕES SOBRE OS ESTUDOS DE CASO
2.8.1. SÍNTESE DO ESTUDO DE CASO
2.8.2. INTERVISÕES E CONSIDERAÇÕES SOBRE OS CASOS ANALISADOS
CONSIDERAÇÕES FINAIS E RECOMENDAÇÕES
BIBLIOGRAFIA
Chamo a atenção para o relevo que os próprios pesquisadores atribuíram, na apresentação do estudo em Brasília, ao trazer o marcador de dados gerais e de análise, especialmente sobre a crítica ao sistema de justiça, um fator determinante na dinâmica dos conflitos e dos massacres. São elementos que podem operar como chaves de leitura do relatório, no que os pesquisadores designam como arco do desmatamento, uma característica da ação de deslocamento das fronteiras de demarcação do campo, entre duas concepções de produção (a do agronegócio, gerador de commodities, mercadorias para o mercado internacional; e a da agricultura familiar e cooperativada, geradora de produtos saudáveis para promover segurança alimentar e popular), coincidente com o arco dos massacres. Para ativar essa chave os pesquisadores indicaram um ementário de termos: expansão da fronteira agrícola, políticas de colonização da ditadura, caos fundiário e grilagem de terras, oligarquias locais associadas a empresas nacionais e transnacionais, controle político das forças de segurança pública e controle oligárquico do sistema de justiça e sistema de pistolagem (‘lei do cão’; ‘pedagogia do terror’).
Esses marcadores se escoram, na análise dos casos, conforme o sumário, em dois conceitos básicos. O conceito conflito, fundamental à CPT, pois, ao contrário de justificar ou significar apenas ações violentas, ele traz a prática da resistência de trabalhadoras, trabalhadores e comunidades originárias e tradicionais que lutam ativamente para conquistar a terra e manter seus territórios, numa relação de intenso conflito social contra latifundiários e empresas várias, que pretendem manter a altamente concentrada estrutura fundiária brasileira.
E o conceito de massacre. Explicam os pesquisadores e organizadores: “Segundo o dicionário Aurélio, massacre é palavra oriunda do francês e como substantivo tem o significado de morticínio cruel; matança, carnificina. Já o verbo massacrar tem como primeira definição, no mesmo dicionário, a de matar cruelmente; chacinar. No âmbito de suas publicações, é nas que se referem ao Massacre de Eldorado dos Carajás, de 1996, que a CPT se esforça para denunciar com maior destaque os casos de assassinatos coletivos e busca ao menos definir o que para a instituição é um massacre e/ou chacina. No relatório Conflitos no Campo Brasil – 1996, abaixo de uma tabela intitulada Chacinas 1985-1996, na página 52, há a seguinte observação: “Consideramos como chacina, três ou mais assassinatos numa mesma data e conflito”. Nessa tabela estão listados, por exemplo, o caso do Massacre dos Indígenas Tikunas, no Amazonas, em 1988; da Fazenda Santa Elina, em Corumbiara/RO, em 1995; e o da Fazenda Macaxeira, estabelecimento localizado em Curionópolis/PA, mas cujos trabalhadores foram assassinados em Eldorado dos Carajás, em 1996. Todos os três casos são considerados pela CPT também como um massacre seja na descrição da tabela seja no texto de apresentação desta edição do relatório anual. Assim, a instituição pastoral segue, de certa forma, a definição da ação dada pelo dicionário e assume que chacina e massacre têm significados semelhantes, a de assassinatos coletivos, de três pessoas ou mais, numa mesma data e conflito. Essa mesma definição aparece no jornal Pastoral da Terra, nº 143, de junho de 1997, edição especial de lançamento do relatório Conflitos no Campo Brasil – 1996. Na página 10, encontra-se um texto de Alfredo Wagner Berno de Almeida intitulado Massacre, rito de passagem ao genocídio, no qual o autor afirma que “designa-se, inicialmente, como massacre ou chacina aquelas situações de conflitos agrários em que se registram pelo menos três assassinatos numa mesma ocorrência, ou seja, num só local e numa mesma data”.
O relatório permite perceber as formas pelas quais a classe exploradora utiliza o sistema de justiça para assegurar que a institucionalidade estatal atue a seu favor, ao criar as condições para a reprodução da estrutura fundiária altamente concentrada do Brasil. Mas permite também perceber que as pressões sociais, nacionais e internacionais, sobre o sistema de justiça contribuem para a mudança dessas formas. Após o Massacre de Eldorado dos Carajás, a cidade de Marabá passa a contar com unidades de órgãos federais que não existiam anteriormente no sudeste do Pará, como uma Superintendência do Incra, Ministério Público Federal e a Justiça Federal, diminuindo a dificuldade da população como um todo em acessar os serviços oferecidos por esses órgãos. Outro exemplo do impacto da pressão externa ao sistema de justiça foi no Massacre de Felisburgo, cujo tempo entre a abertura do inquérito e a decisão de pronúncia que determinou o julgamento dos assassinatos por um júri popular demandou pouco menos de um ano. A mesma celeridade não foi vista em casos anteriores nem no momento posterior, de apresentação de recursos contra a decisão de pronúncia e de julgamento.
São essas situações, em conclusão, que vão permitir entender que, apesar da mudança de alguns ritmos nos processos e ritos do sistema de justiça, este continua a atuar a favor de fazendeiros e empresários do campo. Porém, permite entender, além disso, a necessidade de as trabalhadoras e os trabalhadores permanecerem organizados e em luta, pois apenas assim se conseguirá transformar a estrutura fundiária brasileira.
Lido para Você: Direito Achado na Rua e o Movimento Quilombola na Aroeira
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
Emmanoel Antas Filho. Direito Achado na Rua e o Movimento Quilombola na Aroeira em Pedro Avelino/RN. Natal: OWL Editora Jurídica, 2024, 209 p.
Recebi com uma amável e leal dedicatória, manuscrita pelo Autor, essa bela edição, em capa dura, do livro Direito Achado na Rua e o Movimento Quilombola na Aroeira em Pedro Avelino/RN, de Emmanoel Antas Filho, advogado, Mestre em Serviço Social e em Direitos Sociais pela UERN (Mossoró), professor da universidade.
O livro tem o prefácio do professor Olavo Hamilton Ayres Freire de Andrade, da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), que identifica no trabalho de Emmanoel, o ter conferido ao seu estudo “do Quilombo Aroeira em Pedro Avelino/RN, cidade onde estão fincadas as suas raízes [o aporte] ao movimento um marco teórico para a luta e afirmação dos direitos que lhes são inerentes: o ‘Direito Achado na Rua’”.E o faz, seguindo uma linha de localização e de explicação sobre o campo teórico, assinalando que a “teoria do ‘Direito Achado na Ra’ é uma concepção de direito que busca enfatizar e legitimar as práticas sociais e os movimentos populares como fontes criadoras de normas jurídicas, defendendo um acesso mais democrático e inclusivo ao direito”.
Me reconheço nas demarcações mais precisas que o professor Olavo Hamilton desenvolve no prefácio fruto, certamente, do convívio entretido ao tempo da realização da UFERSA (Universidade Federal Rural do Semiárido, em Mossoró, RN), do programa interinstitucional de pós-graduação em direito, com a minha universidade, a UnB.
O professor Hamilton participou do programa com tese publicada em 2016 como livro, já constituído como referência, Princípio da Proporcionalidade e Guerra Contra as Drogas, pela OWL, já em terceira edição, com edição em inglês pela E-Book Kindle, Proportionality and The War On Drugs: Why banning drugs is unconstitutional.
A OWL é quem edita o livro de Emmanoel e vale uma nota de distinção sobre esse projeto editorial. Conforme pude constatar, seus fundadores traçaram um programa com esse objetivo: “A despeito das enormes disparidades econômicas que separam a região nordestina do sudeste brasileiro, paradoxalmente as produções intelectual e artística de ambas se equivalem, quando mesmo pesam mais em favor dos nordestinos. Tem sido assim historicamente na literatura e na prudução do conhecimento científico (mormente nas áreas das ciências humanas e sociais) e filosófico. Nos domínios do Direito, a vetusta Faculdade de Direito do Recife foi o grande polo irradiador da cultura jurídica nacional, desde a sua fundação no primeiro quartel do século XIX, ultrapassando sobejamente o saber jurídico criado à sombra das velhas arcadas de sua congênere do Largo São Francisco, em São Paulo. A despeito das enormes disparidades econômicas que separam a região nordestina do sudeste brasileiro, paradoxalmente as produções intelectual e artística de ambas se equivalem, quando mesmo pesam mais em favor dos nordestinos. Tem sido assim historicamente na literatura e na prudução do conhecimento científico (mormente nas áreas das ciências humanas e sociais) e filosófico. Nos domínios do Direito, a vetusta Faculdade de Direito do Recife foi o grande polo irradiador da cultura jurídica nacional, desde a sua fundação no primeiro quartel do século XIX, ultrapassando sobejamente o saber jurídico criado à sombra das velhas arcadas de sua congênere do Largo São Francisco, em São Paulo”.
Do projeto, quase um manifesto, segue-se a concretização: “O passo seguinte foi reunir as nossas experiências de docentes de faculdades de direito situadas no Rio Grande do Norte, bem assim de operadores jurídicos – um magistrado federal e dois advogados militantes – para criar uma editora que possa dar vazão à publicação editorial dessa produção teórica e prática dos juristas desta região nordestina. Na construção do nome da nova editora jurídica, do advogado e professor Olavo Hamilton Ayres Freire de Andrade foi extraído o “O”; o magistrado e professor Walter Nunes da Silva Júnior contribuiu como a inicial “W” e, finalmente, o advogado e professor Paulo Afonso Linhares entrou com a inicial “L” do seu nome de família, tudo para formar a sigla OWL que, em língua inglesa significa “coruja”, por excelência ave que, na cultura ocidental, simboliza o conhecimento filosófico. Eis a OWL Editora Jurídica, primeira editora jurídica sediada em solo potiguar. O objetivo da OWL Editora Jurídica Ltda. é, portanto, ser instrumento de intermediação entre as fontes de produção do conhecimento jurídico regional e o mercado editorial nacional, para tornar possível o surgimento de maiores oportunidade para aqueles que, distanciados das grandes editoras jurídica do sudeste brasileiro, muito dificilmente conseguiam publicar sua produção teórica em matéria de Direito, o que inelutavelmente fortalece uma maior presença do pensamento jurídico sulista a balizar as grandes questões nacionais, nos parlamentos, na imprensa, nas academias do Direito e, enfim, no mundo forense. Assim, nossa expectativa é que a OWL Editora Jurídica Ltda. possa, ao lado de outras congêneres já instaladas na região nordestina, cumprir este desiderato, pelo bem das letras jurídicas e da produção científica”.
Eu já conhecia o trabalho acadêmico de Emmanoel – dissertação de mestrado – que deu origem ao livro, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, em 2020, como requisito parcial para a obtenção do título de mestre em Serviço Social e Direitos Sociais. Orientadora: Profa. Dra. Maria Ivonete Soares Coelho; tendo como Co-orientador o estimado Professor Lauro Gurgel de Brito, que também participou do Minter UnB-UFERSA e que veio a ser diretor do curso de Direito da UERN – Mossoró.
Até publiquei uma nota-recensão sobre o trabalho, aqui neste espaço Lido para Você – https://estadodedireito.com.br/movimento-social-quilombola-e-o-direito-achado-na-rua/, manifestando dupla satisfação, o ter podido participar da banca e o de ter podido verificar a rica e fecunda elaboração derivada, em boa medida daquela experiência interinstititucional que a rigor, ainda tem curso pois, em seguida às defesas de teses que o programa ensejou com total aproveitamento, há continuidade do diálogo que então se abriu, bastando ver a sua projeção nos valiosos trabalhos que hoje circulam nos catálogos editoriais.
Já festejei a publicação de Neoliberalização da Justiça no Brasil: Modo Governamental de Subjetivação, Dispositivo Jurisdicional de Exceção e a Constituição como um Custo, de Thiago Arruda Queiroz Lima, pela Editora Lumen Juris. Contribui para a obra com um prefácio e dela fiz uma recensão na minha Coluna Lido para Você (https://estadodedireito.com.br/neoliberalizacao-da-justica-no-brasil/). Incluo nesse rol altamente representativo o próprio Professor Lauro Gurgel de Brito, que participa como coautor, no volume que co-organizei para a Série O Direito Achado na Rua, vol. 9: Introdução Crítica ao Direito Urbanístico. Na obra, conferir em (https://estadodedireito.com.br/introducao-critica-ao-direito-urbanistico/), tem relevo a importante contribuição do professor Gurgel de Brito – Além do Protesto: Movimento Pau de Arara Reivindica a Cidade, um tema desdobrado de sua tese, ela própria, necessariamente, constante da bibliografia da Dissertação de Emmanoel Antas Filho.
Exalta essa dupla satisfação o valioso e enriquecedor debate proporcionado pelas colegas Mirla Cisne Álvaro e Maria Ivonete Soares Coelho, da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), respectivamente, examinadora e Orientadora da Dissertação.
Em relação à dissertação e agora ao livro, constato com uma nota de aprovação o cuidado que o Autor demonstra em fundamentar, com dados relevantes de estudos locais e regionais, o seu estudo. Seu co-orientador sabe, ao tempo em que acompanhei o projeto interinstitucional UnB/UFERSA, de doutoramento em Direito, o quanto valorizo e recomendo esse cuidado. Algo que tenho insistido em fomentar em outras experiências com esse caráter de interinstitucionalidade regional. Na ocasião, desenvolvendo o meu curso no projeto, fiz incidir na bibliografia autores potiguares, não só porque com isso carrego um tanto de ufanismo, mas porque há na bibliografia norte-riograndense de Direito, contribuições notáveis, entre tantos, Amaro Cavalcanti, Miguel Maria de Serpa Lopes, Miguel Seabra Fagundes e, para mim, em registro duplo, de ufanismo e reconhecimento, meu próprio e querido avô, Floriano Cavalcanti de Albuquerque, sobre o qual e para distingui-lo, escrevi um ensaio que fiz circular no Curso (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Depoimento. In ALBUQUERQUE, Marco Aurélio da Câmara Cavalcanti de. Desembargador Floriano Cavalcanti de Albuquerque e sua Brilhante Trajetória de Vida. Natal: Infinitaimagem, 1a. Edição, 2013). Em aditamento a esse depoimento, remeto à minha Coluna Lido para Você, no Jornal Estado de Direito, conforme https://estadodedireito.com.br/desembargador-floriano-cavalcanti-de-albuquerque-e-sua-brilhante-trajetoria-de-vida/ . Além disso, anoto, entre as opções do Autor, o para mim insuperável Luís da Câmara Cascudo.
Tal como mostra a bibliografia da obra, toda uma forte documentação e estudos temáticos de excelente interpretação e boa circulação sobre o tema do escravismo colonial, do desenvolvimento local, regional e do Rio Grande do Norte, sobre protagonismo de movimentos sociais e sobre histórias e modos de vida das comunidades remanescentes de Quilombos, dão a dimensão de pertinência que o tema requer, exibindo um empírico que interpela realisticamente, as abordagens teóricas já disponíveis sobre o tema e que dão sustentação ao empenho explicativo que o Autor desenvolve.
Ponho em relevo entre esses estudos, a excelente Dissertação defendida na UnB, em 2019, no Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania da UnB, “Entre a Ocupação, a Certificação e a Titularidade da Terra: a Luta pelo Direito à Terra da Comunidade Quilombola de Macambira – RN” de autoria de Áurea Bezerra de Medeiros.
Nesse trabalho, sobre o qual também escrevi uma Coluna Lido para Você (https://estadodedireito.com.br/entre-a-ocupacao-a-certificacao-e-a-titularidade-da-terra-a-luta-pelo-direito-a-terra-da-comunidade-quilombola-de-macambira-rn/), Áurea oferece um sumário descritivo do campo que pretende abranger, abrindo com uma introdução histórica, na qual recupera o percurso que vai da escravidão à formação dos quilombos, para abrigar o sentido de reconhecimento dos remanescentes dessas comunidades, a partir de julgamento do Supremo Tribunal Federal, no marco da Constituição de 1988 e, tal como está no artigo 68 da Disposições Transitórias, a designação de direitos das comunidades quilombolas. Sob esse ângulo, ela analisa a decisão do STF sobre a constitucionalidade do Artigo 68 da ADCT e do Decreto 4.887, tal como se deu no julgamento da Adin 3239.
Em seguida a autora traça “a Longa e Tortuosa Trajetória Sofrida Pela Comunidade Quilombola de Macambira – Detalhamento da Tensão entre a Justiça Estadual, a Federal e o processo Administrativo no INCRA”. Assim ela descreve, com detalhes o Processo na Justiça Estadual, a luta pela terra iniciada em 1997; a Apelação TJRN e Ação de Execução Provisória na Justiça Estadual do RN; o enquadramento da questão na Justiça Federal – Processo nº 0800076-72.2013.4.05.8402; o modo de designação da Comunidade Quilombola Macambira no Processo Administrativo no INCRA; finalizando com uma análise documental crítica desses processos judiciais e administrativo.
No que é uma singularidade do trabalho, a Autora, indica já no sumário, a sua importante contribuição, para o conhecimento dessa realidade, pois penso que é o único estudo que a focaliza e oferece um retrato da COMUNIDADE QUILOMBOLA DE MACAMBIRA E SUA HISTÓRIA: o seu reconhecimento como comunidade quilombola; esse reconhecimento pela Justiça Federal, no tocante ao seu direito as terras; e, outra singularidade do estudo, a demonstração do conflito presente nesse enquadramento no que designa como “A Comunidade Quilombola de Macambira, as torres de energia eólica um acordo extrajudicial lesivo”.
O professor Menelick de Carvalho Netto, que também participou no Programa Interinstitucional em Mossoró e que orientou a dissertação de Áurea Medeiros, valoriza conforme eu também o faço, a importância dos estudos de caso, valiosos na configuração das singularidades, assim como em Barro Vermelho e Contente, no Piauí, na pesquisa Rodrigo Portela Gomes cujo trabalho acaba de ser indicado, juntamente com mais outros três, ao Prêmio UnB de Dissertações e Teses 2018/2019, pela Faculdade de Direito da UnB.
Editado pela Lumen Juris, com igual caraterística – estudo de caso – menciono o livro de Cássius Dunck Dalosto (Políticas Públicas e os Direitos Quilombolas no Brasil. O exemplo Kalunga, Rio de Janeiro, 2016, 243 p.). Pesquisa originada do Programa de Direito Agrário da Universidade Federal de Goiás, o livro insere no contexto da “história dos quilombos no Brasil”, a experiência de resistência dos Kalungas (Estado de Goiás) e seu processo de luta. É desse processo de luta que trata o livro, luta de resistência “contra a violência perpetrada sobre as comunidades negras no Brasil na busca por reconhecimento e por acesso aos bens e serviços oferecidos pelo Estado… para a conquista por direitos e sua efetivação na realidade social por meio de políticas públicas…”.
Ainda sobre o estudo de Áurea, sobre o que possa interessar à pesquisa de Emmanoel Antas Filho, está o apreender em ambos, uma realidade em processo, pondo em evidência o conjunto de ameaças que pairam sobre o direito reivindicado. Para Áurea, “no caso da Comunidade (de Macambira), a garantia jurídica de seus direitos esteve todo o tempo sendo tolhida, conseguir a efetivação deste direito tornou-se uma luta desleal, observa-se o período que o processo ficou parado na primeira instância sem ter prosseguimento, e o prazo que não foi concedido a Comunidade para apresentar manifestação sobre o terceiro interessado que iria fazer parte do processo”.
O livro de Emmanoel, em resumo, “tem o objetivo de analisar o processo de lutas, de reconhecimento e conquistas dos direitos sociais do quilombo da Aroeira, localizado no Município Pedro Avelino/RN, à luz da proposta teórica do Direito Achado na Rua. Nesse sentido, foram investigadas a formação e a origem da comunidade, identificados os interesses e os projetos em disputa pelo grupo, tudo com uma atenção especial em relação às formas de organização, lutas e a configuração como sujeito coletivo de direito e expressão do Direito Achado na Rua. O processo metodológico da pesquisa constou de revisão de literatura sobre as temáticas escravismo, quilombos, movimentos sociais, Direito Achado na Rua e Sujeito Coletivo de Direitos. Ocorreu pesquisa documental junto ao INCRA, à Prefeitura Municipal de Pedro Avelino, à Fundação Palmares e à Associação São Francisco do Quilombo Aroeira, bem como em sites e jornais disponibilizados em plataformas digitais quando as informações tratavam da temática ou dos atos do quilombo. Os estudos relacionados à escravização, quilombos, movimentos sociais e movimentos social quilombola fundamentaram-se em autores clássicos e contemporâneos e a análise foi feita dentro de um contexto histórico e a sua evolução traz diferentes posicionamentos, que contribuíram para apreciação e construção dos resultados. A pesquisa apresenta o termo Movimento Social Quilombola como Sujeito Coletivo de Direito e expressão do conceito de Movimentos Sociais e sua articulação com o Direito Achado na Rua, como materialização das conquistas e lutas do Quilombo Aroeira por Direitos Sociais. Esse se constitui como propósito teórico da dissertação. Para essa articulação, foi abordado o Direito dentro de um processo histórico que emerge da dialética social, não como ordem ou lei, mas como legítima expressão da liberdade, conforme propõe Roberto Lyra Filho, emanando do espaço público e decorrendo dos movimentos sociais quando lutam por direitos sociais enquanto sujeitos coletivos de direitos, tendo como referência empírica o quilombo da Aroeira e seu processo de reconhecimento, entre os anos de 2006 a 2020. Os achados da pesquisa apontam para a confirmação de que o processo de reconhecimento e conquistas dos direitos sociais da comunidade quilombola da Aroeira em Pedro Avelino-RN decorre da sua luta e organização enquanto sujeito coletivo de direitos do movimento social quilombola, constituindo-se, portanto, expressão do Direito Achado na Rua”.
Vale em sequência a advertência do Autor de que o “viso do trabalho não é na linha de abordagem do escravismo como folclore ou romantização escorada nos princípios da revolução francesa, mas como símbolo de resistência e de lutas”. Isso logo se verá a partir do enquadramento interpelante da leitura crítica que o Autor oferece, retirando do tema qualquer domesticação da crueza da luta por reconhecimento e direitos e do sentido dramático da reivindicação não conformista, mas que que é rebelde e contesta.
A advertência não é, pois, graciosa, se entre nós, no Rio Grande do Norte principalmente, com os registros folclóricos de narrativas a que nos acostumamos, um pouco românticas, como em Cascudo, ou Gilberto Freyre, edulcoradas num imaginário que oculta em comportamentos bondosos a dureza de uma estrutura que ultrapassa as biografias e mantêm intactas as condições de espoliação e de opressão.
A narrativa de Emmanoel, escovando a realidade a contrapelo, fez evocar em minhas memórias juvenis, as crônicas que tantas vezes serviram de cortina para fazer penumbra a uma sociedade patrimonialista, em arranjo decolonial, com os contornos de um legado escravocrata, mesmo entre “bons” senhores de escravos.
O estudo de Emmanoel Antas Filho contribui para o fortalecimento de consciência, de defesa e de apoio à causa quilombola em nosso País. Ele corrobora para realizar aqueles objetivos que Vilma Francisco procurou estabelecer ao preparar um manual de Direitos Humanos para Quilombolas (Coleção Caminho das Pedras, vol. 1. Rio de Janeiro, 2006 – https://estadodedireito.com.br/direitos-humanos-para-quilombolas/. O Manual, uma iniciativa do PROAC – Projeto de Apoio a Comunidades de Quilombos do Brasil, vinculado ao Instituto Brasileiro de Ação Popular – IbrAP, é fruto de cuidadosa pesquisa e de redação original e sensível e tem a preocupação de situar os direitos fundamentais e os direitos humanos ao alcance dos quilombolas, por meio de uma linguagem que facilita o seu entendimento e as suas condições de exercício.
Em sua tessitura editorial, a obra, em razão de sua motivação e de seu alcance, não é uma tarefa fácil, mas é uma tarefa urgente. Numa sociedade em que o racismo orienta fortemente as disposições ideológicas desde o pós-abolição (SANTOS, Sales Augusto dos. A Lei nº 10.639/03 como fruto da luta anti-racista do Movimento Negro, in Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal nº 10.639/03/Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade/MEC, Brasília, 2005), assumir atitude, defesa ou firmar a consciência da subjetividade aspirante a direitos iguais e plenos pelos excluídos da cidadania, requer sentido de imediatidade e comprometimento histórico.
Trata-se, por isso também, quando se cogita de um Manual de Direitos Humanos Quilombolas, de procurar abrir a doutrina jurídica nacional, para a relevância desses direitos, uma vez que “o povo negro teve o seu direito mantido separado da ‘lei oficial’, elaborada e mantida pelas oligarquias econômicas que estavam no poder” (SAULE JR, Nelson, org., A situação dos direitos humanos das comunidades negras e tradicionais de Alcântara, MA – Brasil. Relatório da Missão da Relatoria Nacional do Direito à Moradia Adequada e à Terra Urbana. São Paulo, Instituto Polis, 2003).
O Manual, vou continuar chamando-o assim, carrega esta pretensão auspiciosa. Além de oferecer aos próprios sujeitos membros das Comunidades Quilombolas o conhecimento que emancipa, colocando o Direito e os meios para os exercer ao alcance de sua capacidade de ação, quer ainda “despertar a consciência da sociedade em geral no sentido de perceber a necessidade que se impõe para o respeito às comunidades quilombolas. Não apenas pela importância simbólica de sua existência concreta, mas pelo reconhecimento dos seus direitos já garantidos e legitimados na Constituição e nos tratados internacionais”.
Para um País que se construiu sobre bases escravistas, lembra Ivair Augusto Alves dos Santos (Ações afirmativas: farol de expectativas, in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al., org. Educando para os Direitos Humanos. Pautas Pedagógicas para a cidadania na Universidade, Porto Alegre: Síntese, 2004), “mais de um século pós Abolição, não foi capaz de elaborar um programa de promoção de igualdade ou um conjunto de políticas sociais que contemplasse a questão das desigualdades raciais”.
O Manual aponta para esse esforço de construir igualdade. Na medida em que abre o horizonte dos direitos, opera com a expectativa da enorme disposição dos quilombos contemporâneos para se fazerem sujeitos de sua própria inserção. Citando Glória Moura, fonte na qual invariavelmente busco alimento para qualificar minhas reflexões nesse tema, com um pequeno ajustamento de contexto (O Direito à Diferença, in MUNANGA, Kabengele, org., Superando o racismo na escola. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, Brasília, 2005), cuida-se de imagina-los “como fator formador e recriador de identidade – para, através dos direitos fazê-los – veículo de transmissão e internalização de valores que possibilitam a afirmação e a expressão da diferença/alteridade e, ao mesmo tempo, a negociação dos termos de inserção das comunidades rurais negras na sociedade como um todo”.
Seu trabalho precede a vertente acadêmica que se debruça sobre o tema e que começa a oferecer reflexões valiosas para a afirmação dos direitos humanos das Comunidades Quilombolas. É o caso da dissertação de Mestrado (Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da UnB), também sob minha orientação, de Emília Joana Viana de Oliveira: Mulheres quilombolas na luta pelo direito à água: uma reflexão a partir do conflito do Quilombo Rio dos Macacos – BA.
No centro de sua pesquisa se vai constatar a água como elemento central para a produção e reprodução da vida humana, e, também para a manutenção do modo de vida da Comunidade Quilombola de Rio dos Macacos-BA, pela identidade quilombola pesqueira e agricultora no espaço rural. A dissertação apresenta a água como um componente central na disputa pelo território no conflito com a Marinha do Brasil, que executa uma gestão territorial de controle, proibição, violências e restrição do acesso à água, com diversas violações de Direitos Humanos desde a chegada da instituição no território onde já vivia a comunidade e se iniciaram as atividades que envolvem o complexo da Base Naval de Aratu-BA na década de 1950.
A partir do conflito, vê-se que a práxis de mulheres quilombolas para a manutenção do modo de vida quilombola, que é atravessada pelo racismo e pelo sexismo, tem o papel anunciar que o território também é água, na medida em que lutam para que o processo de regularização fundiária quilombola no contexto de conflito com o Estado, por meio de uma instituição militar, garanta também o acesso aos rios, fontes sagradas e a possibilidade de uso da água de todas as formas necessárias para a garantia do modo de vida quilombola.
A disputa pela compreensão da água como parte do território e como um Direito Fundamental, surge da percepção de mulheres negras nesse conflito e visa a efetivação deste diante do Estado e se aplica a esse, mas também a tantos outros conflitos fundiários no Brasil, marcados pelo racismo desde a colonização, de modo que o olhar para a experiência quilombola, no passado e no presente, evidencia um dos modos de disputa pelo acesso à terra da população negra brasileira, como continuidade da Diáspora Africana. Ao mesmo tempo, amplia a percepção do acesso a água como dinâmica essencial para a manutenção dos modos de vida de acordo com as identidades e as territorialidades.
As comunidades quilombolas surgem enquanto categoria que abre o reconhecimento jurídico a partir da previsão normativa do art. 68 do ADCT da CF/88, inaugurando a dogmática constitucional sobre os direitos dos povos quilombolas, considerando estes reunidos em territórios coletivos, com a regularização fundiária prevista no Decreto 4887/03, que prevê os procedimentos de identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação, recentemente declarado constitucional pelo Supremo Tribunal Federal (Por maioria de votos, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou a validade do Decreto 4.887/2003, garantindo, com isso, a titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades quilombolas).
Entendo que o livro de Emmanoel parte dessa ordem de posicionamento. Para o Autor o trabalho “tem como tema O Movimento Social Quilombola e o Direito Achado na Rua: uma análise da organização e lutas do Quilombo da Aroeira no Município de Pedro Avelino-RN, buscando respostas para o problema que deu impulso inicial à pesquisa, que é saber se o quilombo da Aroeira em Pedro Avelino-RN é expressão do Direito Achado na Rua. Nessa linha, tem-se como objetivo geral analisar se o quilombo da Aroeira em Pedro Avelino-RN é expressão do Direito Achado na Rua, ponto este que terá cada elemento dissecado nos capítulos do trabalho, ficando à cargo da última parte, fazer a articulação entre o que se apreendeu da pesquisa documental, os referenciais teóricos abordados e o quilombo objeto do estudo”.
Insere-se na motivação do Autor “pesquisar sobre O Direito Achado na Rua, trabalhando-o não como ordem, mas como “legítima expressão da liberdade” (LYRA FILHO, 1982), analisando seus elementos e a relação com as lutas dos movimentos sociais, valendo-se de posicionamentos doutrinários que tratam das formas de efetivas conquistas de Direitos Humanos, com significativa importância dada às contribuições dos Movimentos Sociais e do Direito Achado na Rua como um instrumento de lutas e vitórias”.
Quer o Autor compreender o do sujeito coletivo de direito, categoria fundante do campo teórico-epistemológico de O Direito Achado na Rua e analisar a sua formação e o seu papel dentro do contexto histórico, de constituição da comunidade quilombola, espaço no qual se forma a subjetividade ativa e instituinte de direitos.
O processo de titulação da terra correspondente ao território do quilombo, que tramita junto ao INCRA, possui cadastro de todas as famílias até 2013, o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), composto pelo estudo antropológico com entrevistas, fotografias, dados, árvore genealógica, relatos e mapas. Começou a tramitar no ano de 2006 e até julho de 2020 encontrava-se com o relatório concluído e pendente de andamento.
Com esse aporte empírico possível quer o Autor “fazer a subsunção das categorias descritas na parte teórica do trabalho para explicar como a comunidade se enquadra e se identifica como expressão do Direito Achado na Rua, tomando por base suas ações e conquistas no espaço público, enquanto sujeito coletivo e movimento social quilombola” e, nesse passo, “trabalhado o conceito de Direito Achado na Rua, passando pela sua concepção, objetivos e relevância dentro do contexto social e político, fazendo a relação com o movimento social, abordando o Movimento Social Quilombola, identificando-o e analisando-o como Sujeito Coletivo de Direitos” .
Tomando o território do quilombo não só como um espaço físico, “mas como lugar onde se tem depositado suas tradições, seus costumes, onde se concentram e se conservam valores étnicos, a linha de investigação percebe o quilombo, com uma ideia de nucleamento, de associação solidária em relação a uma experiência intra e intergrupos, vendo a territorialidade como uma fronteira construída a partir de um modelo específico de segregação, mas que propicia condições de permanência de continuidade das referências simbólicas importantes à consolidação do imaginário coletivo”, o Autor pretende em suma, fazer a articulação das categorias designadas no curso da pesquisa para “demonstrar que o quilombo se configura como expressão do Direito Achado na Rua, por ser imanente de práticas libertadoras do sujeito coletivo na luta por direitos que emergem do espaço público, como legítima expressão da liberdade”.
Terá alcançado seu intento?
Ora, o Autor opera com a convicção colhida em sua pesquisa, de que “os Movimentos Sociais não precisam pedir licença para lutar, tampouco para pautar as suas reivindicações políticas na lei ou na autorização dos poderes constituídos. Por essas razões, o direito que dessa organização se origina é puramente humano, democrático, na verdadeira acepção da palavra”. E que a “sua luta que não cessa, mas, é através do Direito Achado na Rua, com sua afirmação nas ações dos Movimentos Sociais, que respira a liberdade e a participação política, como meio de criação de verdadeiros direitos humanos e de uma democracia substantiva”.
Daí a relevância das categorias de O Direito Achado na Rua, que o Autor utiliza com pertinência e entendimento preciso, conforme se constata no capítulo 2 da Dissertação, como um instrumento para dar sustentação a essas relações com os Movimentos Sociais e suas lutas políticas, no alcance dos direitos humanos. Com efeito, para o Autor, “o referencial teórico tratado no presente fez constatar os movimentos sociais e o Direito Achado na Rua como instrumentos de luta, molas propulsoras para aquisição de direitos humanos, cidadania e democracia”.
A análise conceitual e histórica “mostrou que o quilombo deixou de ser somente um aspecto negativo, ilícito e até criminoso, para, diante de uma ressemantização, ser analisado por outros prismas, levando em conta aspectos sociológicos e políticos que passaram a fundamentar as razões da reunião dos negros descendentes de escravos e essa territorialidade que os ligam à terra vindicada”. Assim, “foi trazido um conceito de quilombo que envolve categorias como união, identidade étnica, luta, preservação de valores, sujeito coletivo de direito, resistência e territorialidade. Com essas categorias conceituais veio à baila uma nova percepção de quilombo, com nova interlocução com a sociedade e com o aparato estatal, que passa a se afigurar como o que se denomina de movimento social quilombola”.
Nesta linha, foi possível abordar, através das fundamentações teóricas, o Movimento Quilombola como um Novo Movimento Social, que transcende as discussões de classe, embora não as exclua. A partir de elementos conceituais coligidos em sua revisão bibliográfica, o Autor acaba por ressignificar o conceito, concluindo por designar quilombos, ao menos para sulear sua abordagem na Dissertação, como “movimentos por direitos e por reconhecimento dos quilombos como identidade étnica, resistência, luta, preservação de valores; buscando que seja a eles assegurado o território onde encontram-se fincadas suas raízes, bem como as conquistas decorrentes das lutas do povo negro e da população quilombola como sujeito coletivo”.
A organização dessas lutas e a identidade entre os sujeitos que se unem em torno de valores históricos e étnicos, na busca por direitos, os fazem se identificar com projetos convergentes para participar de ações coletivas, a fim de solucionar suas demandas. O Movimento Social Quilombola está pautado num referencial coletivo, que baliza suas ações em critérios subjetivos, identitários e comunitários de lutas, vendo o quilombo como um fator de mobilização política, que faz com que esses sujeitos gerem uma identidade entre si.
O Movimento Social Quilombola ainda apresenta tímida participação no cenário nacional nesse campo de lutas, mas cada dia vem se afigurando vetor de organização, ciente que o retrocesso não pode ser uma opção palatável, o que levará a implementação de estudos mais aprofundados.
Ainda segundo o Autor, “os documentos consultados dão conta que o reconhecimento como quilombo e a demarcação das terras em um processo moroso, assoberbado de exigências e investigações jurídicas, sociais e antropológicas é tratado como mais um tópico destes capítulos da resistência e lutas políticas do povo quilombola de Aroeira. Observou-se que as normas que disciplinam o processo de reconhecimento, demarcatório e de concessão do título da terra aos quilombos são objetos de lutas e decorrem, também, das marcas deixadas por esses embates e manifestações. Todavia, ficou claro que, não só no Rio Grande do Norte, mas em todo o Brasil, esse processo de titulação e elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Demarcação (RTDI) são morosos e penosos, sendo o seu andamento um desafio dos quilombos e dos Movimentos Socais Quilombolas, em razão da destinação de poucos recursos financeiros, bem como a secundarização pelo INCRA à política quilombola, a ausência de agenda com demandas comuns dos quilombos, além da fragmentação das organizações associativas das comunidades”.
O estudo constata que “no quilombo Aroeira que as conquistas são contínuas, dentre as quais o acesso à políticas públicas e infraestrutura, como a sede própria para a associação e um açude para abastecimento de água para a comunidade, que decorreu da compensação pela instalação de linhas de energia eólica construídas no território do quilombo, melhorando a vida da localidade. O Aroeira é um quilombo de pessoas sofridas, tradicionalmente abandonadas pelo poder estatal. Resistir mais de um século nessa situação mostra a garra que possuem os quilombolas lá fincados. Há pouco mais de uma década passos significativos passaram a ser dados como única saída de quem grita por direitos e percebeu que, para galgar espaços, é preciso uma articulação diferenciada através da organização enquanto, como a Associação São Francisco. Registre-se que não se pode esperar simplesmente da lei a resposta para essas necessidades, bastando lembrar que a escravidão tinha todo amparo do Estado e da legislação da época, como se evidenciou dos referenciais teóricos utilizados. Todavia, perceba-se que para o êxito dessas reivindicações, especialmente quando se luta por direitos humanos, democracia e cidadania, é fundamental que se dê de forma não segmentada, unindo forças dos movimentos sociais contra toda a estrutura de dominação, vindicando ter em mãos o efetivo poder político”.
E mais, diz o Autor: “No quilombo Aroeira, em Pedro Avelino-RN, a luta por direitos sociais, dentre os quais os títulos da terra, adicionados especialmente a luta por água potável, moradia e saneamento básico, está em plena efervescência e sua atuação como sujeito coletivo de direitos tem fundamental papel no processo de reconhecimento e conquistas desses direitos. Nessa perspectiva, é importante ter em mente, e isso já se apresenta claro para os quilombo da Aroeira, que a conquista da demarcação do território é apenas um passo, sendo fundamental que se implementem as políticas subsequentes de reforma agrária e infraestrutura que concebam a qualidade de vida como consequência dos direitos conferidos”.
Para além de meus próprios escritos, os mais importantes e mais pertinentes inscritos no referencial teórico resenhado, consinto que depois da completa e bem posicionada formulação de Mauro Almeida Noleto (Subjetividade Jurídica. A Titularidade de Direitos em Perspectiva Emancipatória. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998 – https://estadodedireito.com.br/subjetividade-juridica-a-titularidade-de-direitos-em-perspectiva-emancipatoria/), o abalizado e mais recente estudo sobre a aplicação da categoria sujeito coletivo de direito e as estratégias de enquadramento a partir do marco epistemológico estabelecido em O Direito Achado na Rua, foram bem configurados num texto ainda inédito – SUJEITO COLETIVO DE DIREITO E OS NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS: A LUTA POR DIREITOS DE ACESSO À TERRA E TERRITÓRIO – de Clarissa Machado de Azevedo Vaz e Renata Carolina Corrêa Vieira, produzido para o Seminário Internacional O Direito Como Liberdade: 30 Anos de O Direito Achado na Rua e que vai integrar o volume 10, da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade (no prelo).
Nesse texto as Autoras revisitam o acervo teórico do tema para articular a questão dos Movimentos Sociais e novos sujeitos: o Sujeito Coletivo de Direito e o Direito Achado na Rua e, em diálogo com meus conceitos, acertam que “depois de estabelecer as bases sociológicas e filosóficas do conceito, José Geraldo de Sousa Junior conclui, portanto, a fundamentação teórica necessária para a constituição da categoria jurídica “sujeito coletivo de direito”. Segundo o autor, “a análise da experiência da ação coletiva dos novos sujeitos sociais, que se exprime no exercício da cidadania ativa, designa uma prática social que autoriza a estabelecer, em perspectiva jurídica, estas novas configurações, tais como a determinação de espaços sociais a partir dos quais se enunciam direitos novos, a constituição de novos processos sociais e de novos direitos e a afirmação teórica do sujeito coletivo de direito”.
Para elas, assim como para Emmanoel, “é neste ponto, que se enquadra a teoria epistemológica de O Direito Achado na Rua, expressão criada pelo professor Roberto Lyra Filho (1986). Ao reconhecer esse espaço de cidadania ativa como uma experiência emancipatória, Lyra Filho defende que o direito não pode ser compreendido como mera restrição, senão, “enquanto enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade”. O direito, portanto, se faz no processo histórico de libertação enquanto desvenda precisamente os impedimentos da liberdade não lesiva aos demais. Nasce na rua, no clamor dos espoliados e oprimidos e sua filtragem nas normas costumeiras e legais tanto pode gerar produtos autênticos (isto é, atendendo ao ponto atual mais avançado de conscientização dos melhores padrões de liberdade em convivência), quanto produtos falsificados (isto é, a negação do direito do próprio veículo de sua efetivação, que assim se torna um organismo canceroso, como as leis que ainda por aí representam a chancela da iniquidade, a pretexto da consagração do direito”.
Para as Autoras, é somente nesse sentido que pode se orientar o trabalho político e teórico de O Direito Achado na Rua em compreender e refletir sobre a atuação jurídica dos novos sujeitos sociais e, com base na análise das experiências populares de criação do direito: 1. determinar o espaço político no qual se desenvolvem as práticas sociais que enunciam direitos; 2. definir a natureza jurídica do sujeito coletivo capaz de elaborar um projeto político de transformação social e elaborar a sua representação teórica como sujeito coletivo de direito; e 3. enquadrar os dados derivados destas práticas sociais criadoras de direito e estabelecer novas categorias jurídicas, que superem a condição de espoliação e de opressão e estabeleça uma legítima organização social da liberdade.
A pesquisa também evidenciou a questão identitária, étnico-racial de autodeclaração e orgulho da sua condição de negro quilombola. É essa questão identitária que a luta do quilombo como um sujeito coletivo ajuda a construir, como ocorre quando aqueles que não residem mais na Aroeira se afirmam quilombolas, em razão de terem a consciência que ali estão suas origens e que são parte daquela territorialidade por se sentirem melhor protegidos nesse processo contínuo e histórico de lutas.
É possível afirmar, consoante os achados da pesquisa, que no quilombo Aroeira a organização e o fortalecimento das práticas de políticas associativas estão em franco desenvolvimento e consolidação, demonstrando-se pela análise da documentação com os referenciais teóricos, que são elas responsáveis, direta ou indiretamente, pelas conquistas que decorrem das lutas como sujeito coletivo.
Nesse sentido – completa o Autor – “consideramos que os estudos realizados evidenciaram que a hipótese foi confirmada pelos elementos destacados, no sentido de que as experiências do Quilombo Aroeira em Pedro Avelino-RN se constituem expressão do Direito Achado na Rua. A importância do estudo empírico realizado é poder utilizar as vozes do quilombo Aroeira através dos documentos e outros estudos, analisando o lugar da fala dos seus sujeitos e, também, por possibilitar tratar do movimento quilombola como um movimento social responsável pelo surgimento do direito, onde nada havia sido escrito ou pesquisado com um olhar dedicado as suas lutas e ao Direito Achado na Rua, articulando, ainda, dois campos de conhecimento: o Serviço Social e o Direito”.
As Autoras, assim também Emmanoel, procuraram estabelecer reflexões sobre a categoria jurídica do “sujeito coletivo de direito” e sua relação com os novos movimentos sociais, na busca por direitos, em especial direito à terra e território, e a sua concretização na criação de novos direitos, revelando, ao fim, a atualidade da categoria jurídica “sujeito coletivo de direito” após os seus trinta anos de concepção.
Nessa observação, extraída do texto de Clarissa Machado e Renata Vieira, coloca-se uma necessária ordem de indagações ao Autor, na perspectiva da dupla confiança que a análise precisa carregar: política e epistemológica. Em tempos agônicos, de travessia entre mundos em transição, pelo esgarçamento dos modos de produção da existência e sua incapacidade de suprir dando equivalência as exigências de necessidade e de liberdade; de fracasso político para mediar as crises dessa travessia, nas tensões entre democracia e exceção; na disputa pelo futuro, nas condições pós-pandemia; o que significa fazer tese nesse contexto e que pode fazer o social organizado, a partir dos sujeitos coletivos de direito inscritos nos Movimentos Sociais?
Se nos Movimentos Sociais as identidades são móveis, variam segundo a conjuntura, como diz o Autor, na travessia corrente pode-se falar em regresso ou em avanço? Os Movimentos Sociais e os Sujeitos neles inscritos, estão se desmantelando em derrotas ou se reorganizam para reorientar seus projetos e suas formas de luta?
Para Clarissa Machado e Renata Vieira, aliás, minhas orientandas, que pensam como eu penso, como está assentado em nossas discussões e em trabalhos co-autorais, apesar da conjuntura política, social e econômica vivenciadas, com uma escalada de retrocesso de direitos e uma ameaça à integridade constitucional-democrática, o “campo prático-conceitual sustentado por José Geraldo de Sousa Junior, que vê nas formas de mobilização e organizações populares, especialmente quando organizadas em movimentos sociais, a emergência de atores e contradições sociais capazes de criar direitos nas suas dinâmicas de afirmação de necessidades não satisfeitas, ao relembrar historicamente das lutas e conquistas que os sujeitos coletivos de direitos construíram ao longo da história, principalmente no período de redemocratização do país, após analisar os avanços em suas conquistas, chega ao atual momento de crise, no qual observa-se a reorganização desses sujeitos coletivos”.
“As pessoas”, e eu acrescento, assim como os seus movimentos, como diz John Steinbeck, Prêmio Nobel de Literatura (A Rua das Ilusões Perdidas, tradução brasileira do original norte-americano Cannery Row. Rio de Janeiro: BestBolso, 2019, ninguém pode prever como saem das crises: “É que existem duas reações possíveis ao ostracismo social: ou um homem emerge determinado a ser melhor, mais puro e generoso ou desanda para o mal, desafia o mundo e faz coisas ainda piores”.
A segunda, afirma Steinbeck, “é a reação mais comum ao estigma social”, tão nitidamente identificada na conduta daqueles que deveriam encarnar a retidão de proto-homens, uma vez erigidos à condição de governança mas que indisfarçadamente regridem da posição de guias da comunidade.
Na primeira, os sujeitos coletivos inscritos em movimentos sociais que se recompõem em face da crise. Que se reorganizam. Uma reorganização não porque estavam desorganizados, mas porque se reinventam nas formas de protestos, unificam pautas e sujeitos, demonstrando a clareza da consciência do que estão enfrentando, focados na resistência, mas construindo, para o futuro (com as reservas utópicas de emancipação), orientadas por um conhecimento que traduza as possibilidades plurais que provenham, diz Boaventura de Sousa Santos, das “práticas políticas que estão nas ruas, nas lutas e que contribuam decisivamente para a construção de um mundo melhor” (Na Oficina do Sociólogo Artesão: aulas 2011-2016. Seleção, revisão e dição Maria Paula Menezes, Carolina Peixoto. São Paulo: Cortez, 2018), até consumar-se como “legítima organização social da liberdade” (LYRA FILHO).
Por fim, vencidas as questões que proponho, entendo com o Autor, ser possível sim afirmar que o Quilombo Aroeira é, uma expressão de realização daqueles fundamentos que configuram o estatuto político-epistemológico de O Direito Achado na Rua. É um trabalho que adensa a crítica teórica para armar a ação jurídica transformadora, criando condições para protagonismos emancipatórios de sujeitos até então invisibilizados, vulnerabilizados.
É o que mostra Karla Araújo de Andrade Leite. Os Ventos que Sopram na Serra do Inácio – Piauí: quando os invisíveis têm direitos?. Dissertação de Mestrado. Teresina/Universidade Estadual do Piauí – UESPI/PPGSC, Campus Poeta Torquato Neto, 2024
Quando os invisíveis têm direitos? Ela pergunta. E afirma: “A resposta será levantada todas as vezes que a Defensoria Pública se deparar com um grupo social marginalizado pelas forças colonialistas. É preciso estar atento aos fatos, aos valores simbólicos do grupo social, e não negociar direitos alheios sob nenhuma hipótese. É preciso permitir que cada sujeito esteja ativo em seu próprio destino, decidindo conscientemente e livremente sobre se e quando poderá ceder a negociações, em termos dialogados, e não impostos. É preciso ter a natureza confiada pela Constituição Federal de 1988, uma instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados. É preciso, desta maneira, assumir a postura contracolonialista desejada pelo constituinte”(https://estadodedireito.com.br/os-ventos-que-sopram-na-serra-do-inacio-piaui-quando-os-invisiveis-tem-direitos/).
Obras e autores e autoras que com intencionalidade revelam escolhas teóricas e políticas bem definidas. Sim, pois há sempre uma aproximação que não necessariamente carrega uma mesma intencionalidade, mas que, talvez por isso, corrobore a consistência dessas escolhas bem definidas. Em IL DIRITTO DI AVERE DIRITTI, di minima&moralia pubblicato giovedì, 10 Ottobre 2013 • 3 Commenti (https://www.minimaetmoralia.it/wp/estratti/stefano-rodota-il-diritto-di-avere-diritti/), notável jurista (e político recém-falecido) Stefano Rodotà, nos fala sobre “a necessidade inegável de direitos e de direito manifesta-se em todo o lado, desafia todas as formas de repressão e inerva a própria política. E assim, com a ação quotidiana, diferentes sujeitos encenam uma declaração ininterrupta de direitos, que tira a sua força não de alguma formalização ou reconhecimento de cima, mas da profunda convicção de mulheres e homens de que só assim podem encontrar reconhecimento e respeito pela sua dignidade e pela sua própria humanidade. Estamos perante uma ligação sem precedentes entre a abstração dos direitos e a concretude das necessidades, que põe sujeitos reais a trabalhar”.
Para ele, um autor insuspeito dadas as suas referências de origem, políticas e teóricas, certamente, “não os ‘sujeitos históricos’ da grande transformação moderna, a burguesia e a classe trabalhadora, mas uma pluralidade de sujeitos agora ligados entre si por redes planetárias. Não um “intelecto geral”, nem uma multidão indeterminada, mas uma multiplicidade laboriosa de mulheres e homens que encontram, e sobretudo criam, oportunidades políticas para evitar ceder à passividade e à subordinação”.
Mas, realmente, numa aferição que me surpreende porque ativa uma categoria metafórica com a qual instalamos toda uma linha de pesquisa (O Direito Achado na Rua, cf. Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq), ele prossegue: “Todos estes sujeitos ignoram o que, no final do século XVIII, começou em torno das duas margens do “Lago Atlântico”, não são dominados por alguma ‘tirania de valores’, mas interpretam, cada um à sua maneira, a liberdade e os direitos ao longo do tempo que vivemos. Aqui não é a ‘razão ocidental’ em ação, mas algo mais profundo, que tem as suas raízes na condição humana. Uma condição histórica, porém, não uma natureza da qual se possa extrair a essência dos direitos. Por que, de fato, só agora tantos condenados da terra os reconhecem, invocam, desafiam? Por que são eles os protagonistas, os adivinhos de um ‘direito achado da rua’? (‘diritto trovato per strada’)”.
(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)
Impactos Legislativos das Jornadas de Junho de 2013
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
Impactos Legislativos das Jornadas de Junho de 2013. Robson Rodrigues Barbosa. Brasília: Edições Câmara, 2024
Já no prelo, para edição em breve, livro de Robson Rodrigues Barbosa, uma versão reduzida de sua tese de doutoramento defendida na Universidade de Brasília em 2023, dez anos depois das jornadas de junho. A publicação é um estudo singular porque opta por destacar a exposição dos dados e reduzir a incursão teórica que foi aprofundada em pesquisa acadêmica. A obra vem a público pelas Edições Câmara. Fiz o prefácio a convite do autor e dele retiro o núcleo desta recensão.
Com efeito, há muitos ensaios e artigos de opinião sobre esse tema. Para preparar este prefácio li alguns. Eles, em maior ou menor extensão e desde diferentes perspectivas temporais ou mesmo conjunturais, buscam circunscrever os acontecimentos com aproximações em geral políticas ou sociológicas. Um exemplo é o conjunto de entrevistas que a Revista do IHU Instituto Humanitas – Nº 524 | Ano XVIII | 18/6/2018 (repositório do qual sou assíduo como leitor e também autor), que a edição organizou oferecendo como chave de leitura Junho de 2013 – Cinco Anos depois. Demanda de uma radicalização democrática nunca realizada.
Ainda com essa chave, encontrei textos nos quais as Jornadas de Junho de 2013 são avaliadas como elemento de uma crise da democracia. A ocupação das ruas e das redes naqueles dias marcou as mentalidades. O que começou com poucos milhares de estudantes protestando contra o aumento da tarifa (os 20 centavos), transformou-se nas maiores manifestações de rua da história recente do Brasil, marcadas pela violência policial e pela resistência ativa das multidões, sem contudo, levar a um entendimento sobre o que se passou.
Se bem possam ser identificadas as causas dos protestos, e nisso um bom grau de reconhecimento de sua legitimidade; dez anos depois ainda não é seguro determinar se houve mesmo um despertar da sociedade civil para um protagonismo pondo em tela crítica o sistema representativo e às consequências políticas e sociais que esse acontecimento segue produzindo mudanças no modo de ativar o sistema político, seu funcionamento e as relações dos sujeitos nesse processo, de modo a poder aferir de expectativas abertas com as mobilizações possam ter tido a qualificação de promessas para transformar qualitativamente, transformando-a, a ação democrática e a cultura política, se efetivamente cultura e política.
Cinco anos depois, a esperança democrática convertida em pesadelo autoritário, desvaneceu-se num desgoverno necropolítico indicando em boa medida que as performances seletivas, o impeachment falacioso, o Escola sem Partido, os caminhoneiros militaristas, não se tratava de um povo se constituindo como um sujeito constitucional, mas uma histeria de multidão, de caminhoneiros militaristas, de acampamentos sediciosos e de pretorianos e milicianos recrutados disponíveis por meio de fake news para urdir um golpe (2023), contra a democracia, a constituição e em última análise, contra o próprio povo, numa articulação que levou à perda da agenda do progressismo e à emergência de um claro projeto de direita e de extrema-direita.
Mobilizações como o Junho 2013, 15M espanhol e o recente Nuit Debout, “funcionam mais como performance do que como discurso e projeto político alternativo”, escreve Salvador Schavelzon, antropólogo, professor da Universidade Federal de São Paulo (Osasco) e autor de El nacimiento del Estado Plurinacional de Bolivia. Etnografía de una Asamblea Constituyente (2012), em artigo publicado por El País, 26-05-2016.
Segundo ele, “tais protestos aparecem como irracionais, infantis, ou subversivos para as forças repressivas e os interlocutores do Estado, mas também para uma esquerda dogmática e centralizada, para a imprensa e as ciências sociais que exigem ou esperam propostas e demandas claras, interlocutores com rosto e biografia, trajetos de mobilização delimitados e horário para terminar claramente estabelecido. Protestos como os de junho de 2013, o Occupy Wall Street, o 15M espanhol, a Primavera Árabe e o recente Nuit Debout na França não se adaptam a esses parâmetros, como críticas “de fora e de baixo” a todo um sistema político, mas também a um modelo de sociedade e de civilização. Essa realidade utópica não a paralisa, daí deriva sua força de rápida difusão e impugnação política”.
O livro de Robson Barbosa volta-se para o impacto das Jornadas de Junho de 2013 nas proposições normativas do Poder Legislativo com o intuito de verificar se esses protestos eventualmente reordenaram os assuntos que à época pautavam a agenda legislativa.
A justificativa decorre do fato de que, não obstante tais protestos serem de importância ímpar na história das manifestações de massa brasileiras, não foram encontrados escritos no direito que mensurassem empiricamente os seus impactos institucionais, pois apenas buscaram teorizar a natureza jurídica desses acontecimentos.
Segundo o Autor, “a primeira impressão é que tais protestos incitaram um outro ‘espírito de época’ legislativo, ainda que com efeitos diferidos. Se até meados de 2013 tinham atenção assuntos como, por exemplo, empregados domésticos, Lei Maria da Penha, Raposa Serra do Sol, Comissão Nacional da Verdade, união homoafetiva, cotas, Prouni/Fies, aposentadoria especial, concessão de remédios/tratamento, num posterior e relativo curto espaço de tempo, tomaram a pauta, por exemplo, a limitação dos gastos públicos sociais pela Emenda Constitucional 95, de 2016, a Reforma Trabalhista, a Reforma da Previdência, a prisão em segunda instância, a ampliação das competências da Justiça Militar, a intervenção federal, dentre outros.
O Autor utiliza análise estatística lexicométrica para o exame do conteúdo de 48.531 proposições legislativas federais, apresentadas entre 2003 e outubro de 2020, para mapear os grandes temas legislativos e mensurar em que medida esses protestos reordenaram a agenda do processo legislativo Mas cuidou de adotar precauções historiográficas “para evitar a essencialização dos sentidos desses protestos, analisando-os em seu caráter sublime, como manifestações específicas de um poder insurgente que implicam em acelerações do tempo social e forja outro nexo ontológico entre o social e o político, possibilitando o advento de um novo sujeito constitucional”.
No capítulo 1 busca esclarecer a utilidade e o funcionamento do processamento estatístico para a análise de conteúdo dos dados selecionados, a partir do qual pretendeu descobrir a representação social desses eventos na visão do legislador. É a questão de método.
No capítulo 2, tendo em vista que esse trabalho é sobre a receptividade do Parlamento acerca dos protestos de 2013, resume aspectos gerais do funcionamento do Poder Legislativo, no item 2.1, bem como busca entender, item 2.2, o papel dos parlamentares enquanto integrantes da instituição que, por designação constitucional, é a representante social sensível aos influxos das demandas das ruas.
O capítulo 3 estuda o contexto prévio que propiciou o surgimento e a repercussão das Jornadas de Junho de 2013. O item 3.1 tem por finalidade encontrar as conexões entre os contextos pretéritos com as oportunidades discursivas abertas pelas Jornadas de Junho de 2013, e procura compreender quais atores e respectivos discursos contribuíram para a convulsão social promovida pelos protestos e suas influências na possível reorientação da agenda legislativa desde então. Já o item 3.2 busca justificar a periodização adotada no processamento dos dados a partir dos antecedentes históricos do evento, no que diz respeito ao contexto institucional e social que parte de 2003.
O capítulo 4 condensa o processamento dos dados e busca avaliar como se deu a evolução dos temas que foram preocupações legislativas entre 2003 e 2020, para revelar os potenciais disruptivos das Jornadas de Junho de 2013 e demonstrar quais discursos passaram a ser possivelmente objetos da atenção legislativa e quais deixaram de ser em razão dos protestos.
O resultado do estudo é o de as direções da atividade legislativa demonstraram a alteração temporal dessa sensibilidade política em função das Jornadas de Junho de 2013. Para o Autor, as análises do macro cenário legislativo apontaram que a maior mudança decorrente da responsividade da instituição legislativa ao movimento insurgente das massas de 2013 foi o aumento da probabilidade de se discutir mais matérias penais, financeiras, tributárias e de organização federativa como temas hierarquizantes, enquanto se tornou mais difícil uma atenção principal e específica com assuntos relacionados a direitos sociais.
E a conclusão do trabalho é a de que, pese ter-se verificado que tal tendência já vinha se desenvolvendo timidamente desde 2011, a instituição legislativa interpretou que a potência insurgente das Jornadas de Junho de 2013 demandou a aceleração temporal dessa transição, com efeitos mais acentuados a partir de 2015. E que sim, as Jornadas de Junho de 2013 implicaram em acelerações do tempo social e, por conta da sua potência, impactaram nas direções da atividade propositiva do Poder Legislativo.
Essa conclusão é precedida de um talvez – “talvez as Jornadas de Junho de 2013 apenas aceleraram a maturação de um contexto legislativo que se desenhava antes mesmo dos protestos, com fortes efeitos a partir de 2015”.
Penso que os nítidos deslocamentos ocorridos na pauta de proposições pelo ativismo de uma bancada, nas duas Casas, com as eleições que se desenrolaram no ambiente de polarizações pós-junho de 2013, contribuíram para organizar a perspectiva de um projeto conservador, em todos os âmbitos, que fazem circular proposições que mais o enraízem na estrutura do social.
Assinalei essa clivagem ao contribuir para a publicação do livro Democracia da Crise à Ruptura. Jogos de Armar: Reflexões para a Ação. Roberto Bueno (Organizador). São Paulo: Editora Max Limonad, 2017, 1131 p. Convidado a participar da obra, o fiz com um texto afinado com seu projeto. Denominei meu artigo de Estado Democrático da Direita
Coloquei em causa um outro modo, mais sutil, de identificar um Estado Democrático da Direita. Refiro-me a sua disponibilidade para usurpar, apropriar-se e investir-se das representações e das narrativas simbólicas das conquistas históricas e jurídicas conferidas nas lutas travadas pelos sujeitos individuais e coletivos por reconhecimento da dignidade humana, da cidadania e dos direitos.
Ou ainda, o que assistimos agora em nosso próprio País, com a Constituição arguida contra a própria Constituição, para dela extrair-se, com o uso meramente formal de um enunciado, vale dizer, a previsão de aplicação de procedimento de afastamento do Presidente ou da Presidenta da República, uma retórica mobilizadora de engajamentos (sociais, políticos, jurídicos), delirantes de seu necessário fundamento material, a precisa tipificação de conduta que assim possa ser configurada como crime que justifique o afastamento (impeachment). Por isso, a configuração desse processo como um golpe, sem armas, sem quartelada, mas uma ruptura com a base de legitimidade do sistema constitucional-jurídico, um atentado à democracia, uma forma de traduzir, sem nenhuma sutileza, o Estado Democrático da Direita, que se vale da lei para esvaziá-la de suas melhores promessas.
O talvez lançado por Robson Barbosa, a meu ver, representa exatamente essa clivagem, a de que as Jornadas de Junho de 2013 apenas aceleraram, incitando conforme ele aventa, valendo-se de uma categoria de Hegel, um outro “espírito de época”, derivado da maturação de um contexto legislativo que se desenhava antes mesmo dos protestos, com fortes efeitos a partir de 2015.
Os ventos que sopram na Serra do Inácio – Piauí: quando os invisíveis têm direitos?
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
Karla Araújo de Andrade Leite. Os Ventos que Sopram na Serra do Inácio – Piauí: quando os invisíveis têm direitos?. Dissertação de Mestrado. Teresina/Universidade Estadual do Piauí – UESPI/PPGSC, Campus Poeta Torquato Neto, 2024, 142 p.
Com alegria e com uma ponta de orgulho recebi e logo mergulhei numa proveitosa leitura deste trabalho acadêmico da Defensora Pública Karla Araújo de Andrade Leite Os Ventos que Sopram na Serra do Inácio – Piauí: quando os invisíveis têm direitos?.
A alegria vem de confirmar, o que já era um indicativo de seu exercício funcional na Defensoria Pública, a perspectiva de que o múnus público de seu ofício já trazia interpelações não só políticas mas epistemológicas para conduzir e fundamentar suas intervenções, atentas às condições sociais e também teóricas, razões para justificar o meu orgulho.
O resumo da Dissertação valida esse duplo sentimento, ao mesmo tempo que expõe o tema e os objetivos do trabalho:
Este trabalho desenvolveu pesquisa empírica, de orientação participante e interdisciplinar, insculpido no marco teórico do pensamento crítico dos direitos humanos e das teorias descoloniais, e objetivou a sistematização de uma atuação contracolonialista a ser articulada pelas Defensorias Públicas. Partiu de estudo de casos, após atendimento à população da Serra do Inácio – Piauí, que foi profundamente afetada pela instalação de parques eólicos a partir de 2016. O estudo demonstrou que o incentivo do Estado à instalação das usinas de energia eólica desconsiderou os seus impactos nefastos, entre eles o silenciamento da população local. A pesquisa qualitativa apontou que famílias inteiras viviam sem documentos pessoais, sem acesso a políticas públicas ou qualquer amparo social. Revelou que os moradores, que já viviam em situação de vulnerabilidade, foram inviabilizados pelas práticas colonialistas de incentivo ao capital. A existência dos textos normativos com garantias de direitos era insuficiente para a superação da desigualdade social acentuada pelas decisões políticas adotadas na região. A proposta da presente pesquisa pauta a invisibilidade dos povos considerados subalternos pela própria estrutura do Estado e da organização institucional que sustenta em suas condutas a colonialidade do poder, legitimando dinâmicas econômicas do eixo Sudeste-Sul, onde se fortaleceram e se consolidaram os grandes centros industriais do País, em detrimento das demais macrorregiões, que foram relegadas à periferia do sistema. O método da pesquisa-intervenção, que usa como arcabouço uma pesquisa qualitativa participativa, foi capaz de definir seu plano de atuação entre a produção de conhecimento e a transformação da realidade. Este enfoque metodológico participativo permitiu que o momento de intervenção também servisse à produção teórica, incluindo a própria instituição (Defensoria Pública) na análise. A abordagem se restringiu aos atendimentos realizados aos moradores dos municípios situados do lado piauiense da Serra do Inácio, Curral Novo do Piauí e Betânia do Piauí, entre os anos de 2019 a 2022. Também foram utilizadas informações e imagens publicadas em veículos de comunicação e por documentários. O desenvolvimento da dissertação perseguiu o objetivo de sistematizar uma atuação contracolonialista que pudesse verdadeiramente atender ao que determina a Constituição Federal de 1988, que desenhou em seu art. 134 uma instituição com a missão de promover os direitos humanos. Esta instituição, umbilicalmente relacionada ao regime democrático, é a Defensoria Pública. O estudo também foi guiado pelas compreensões do Professor José Geraldo de Sousa Júnior e as reflexões da coleção O Direito achado na rua, por ele coordenada, que traz estudos críticos que pensam o Direito como emancipação e o compreende como criação do social, defendendo o pluralismo jurídico e a condição de insurgência. Após sistematização das práticas adotadas no acompanhamento dos casos da Serra do Inácio, o trabalhou analisou 03 eixos de atuação que marcaram uma postura manifestamente contracolonialista da defensoria Pública, com propósitos emancipatórios do público atendido.
Do mesmo modo, embora sem caber exatamente no recorte de experiências cartografáveis, pode ser identificada pelas designações mais gerais que demarcam a disposição de mobilizar o jurídico para assessorar os sujeitos que protagonizam a emancipação social. Também anotei essa perspectiva em outra recensão – https://estadodedireito.com.br/mapa-territorial-tematico-e-instrumental-da-assessoria-juridica-e-advocacia-popular-no-brasil/ – ao me debruçar sobre o estudo paradigmático, que bem poderia ser atualizado – Mapa Territorial, Temático e Instrumental da Assessoria Jurídica e Advocacia Popular no Brasil / José Antônio P. Gediel, Leandro Gorsdorf, Antonio Escrivão Filho, Hugo Belarmino, Marcos J. F. Oliveira Lima, Eduardo F. de Araújo, Yuri Campagnaro, Andréa Guimarães, João T. N. de Medeiros Filho, Tchenna Maso, Kamila B. A. Pessoa, Igor Benício, Virnélia Lopes, André Barreto – Curitiba/PR – Brasília/DF – João Pessoa/PB 2011. 90 p. ISBN: 978-85-62707-38-4.
Karla parte do território epistemológico de sua prática jurídica que é a Defensoria Pública. Desde esse território, são próximas, mas com especificidades, as possibilidades das práticas jurídicas emancipatórias. Tendo em vista um dos pressupostos de Karla – O Direito Achado na Rua – essas possibilidades pavimentam uma conexão naquele plano que já mencionei, o das condições sociais e das possibilidades teóricas.
Assim que, em trabalho de catalogação, realizado pela Defensoria Pública do Distrito Federal – a partir de seu programa editorial – tratei de demonstrar essa realção, por meio de categorias que serevm à Karla para seu fundamento teórico, conforme https://estadodedireito.com.br/o-direito-achado-na-rua-e-as-possibilidades-de-praticas-juridicas-emancipadoras/, fazendo a análise de duas edições da Revista da Defensoria Pública do Distrito Federal. V. 1 n. 3 (2019): Ordenamentos jurídicos, monismos e pluralismos: O Direito Achado na Rua e as possibilidades de práticas jurídicas emancipadoras. José Geraldo de Sousa Junior, Nair Heloisa Bicalho de Sousa , Alberto Carvalho Amaral ,Talita Tatiana Dias Rampim (Editores). Endereço do link para a edição completa da Revista: http://revista.defensoria.df.gov.br/revista/index.php/revista/issue/view/8/RDPDF%20vol%201%20n%203%202019.
De toda sorte, estamos em face de um estudo, que até por sua determinação metodológica, se presta a qualificar o que tenho chamado, com outros colegas, no duplo plano, teórico e prático, de experiências que devemos compartilhar sobre acesso à justiça.
Para tanto, sugiro considerar como uma espécie de guia – https://estadodedireito.com.br/experiencias-compartilhadas-de-acesso-a-justica-reflexoes-teoricas-e-praticas, com referências a REBOUÇAS, Gabriela Maia; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; CARVALHO NETO, Ernani Rodrigues de (Organizadores). Experiências Compartilhadas de Acesso à Justiça: Reflexões teóricas e práticas. Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo, 2016, 281 p. Texto Eletrônico. Modelo de Acesso World Wide Web (gratuito). www.esserenelmondo.com.br e REBOUÇAS, Babriela Maia; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; ESTEVES, Juliana Teixeira (Organizadores). Políticas Públicas de Acesso à Justiça: Transições e Desafios. Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo, 2017, 177 p. E-Book (gratuito). www.esserenelmondo.com.br.
Ali afirmo que a Defensoria Pública é, fora de dúvida, uma conquista da democracia e da sociedade brasileira. E os defensores e defensoras, são verdadeiros agentes da transformação, em sua missão de defender os direitos dos vulnerabilizados, assim mesmo designados, ao invés de vulneráveis, já que não se trata de um destino mas de uma condição, quando confrontam pois, as desigualdades sociais e promovem a inclusão social. Ao lado da justiça social, garantem a voz daqueles que mais precisam seja ouvida e seus direitos sejam respeitados.
O trabalho de Karla Araújo de Andrade Leite responde com substância a essa conquista. É expressão dela constitutiva. Isso transparece do seu resumo, já transcrito e do sumário que o organiza:
Sumário
Considerações Iniciais
Os Ventos que Sopram no Piauí
2.1 Serra do Inácio: o lugar e o não-lugar
2.2 Vozes ao Vento: a invisibilidade dos locais
2.3 Energia Eólica: alienação dos ventos piauienses
Colonialidade do Poder: Vulnerabilidades e Invisibilidade Social na Serra do Inácio
3.1 As vulnerabilidades da Serra do Inácio
3.2 A invisibilidade social na Serra do Inácio
Missão Contracolonialista da Defensoria Pública: Quando os Invisíveis têm Direitos?
4.1 Defensoria Pública: Entre o invisível e o visível
4.2 Missão Contracolonialista da Defensoria Pública: perspectiva necessária para promoção dos direitos humanos
Considerações Finais
Referências
Estou muito de acordo com essa perspectiva, que encontro em posicionamentos de muitos defensores e defensoras, entre eles e elas, Karla Araújo. Aliás, assim também me posicionei quando da edição do livro Defensoria Pública e a Tutela Estratégica dos Coletivamente Vulnerabilizados. (Orgs): Lucas Diz Simões, Flávia Marcelle Torres Ferreira de Morais, Diego Escobar Francisquini. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019.
Com Alberto Carvalho Amaral, Defensor Público em Brasília e como minha colega professora na Universidade de Brasília Talita Tatiana Dias Rampim, contribuímos para a obra com o artigo “Exigências críticas para a assessoria jurídica popular: contribuições de O Direito Achado na Rua”, p. 803-826. Na nossa abordagem, colocadas as questões pressupostas, focalizamos dois aspectos destacados para atender o plano da obra, que pede enfoque teórico e também prático: 1- A Defensoria Pública como necessário ator qualificado para o alargamento e a democratização do acesso à justiça; 2 – O projeto “Defensoras e Defensores Populares do Distrito Federal”: ação difusora e conscientizadora sobre direitos humanos, cidadania e ordenamento jurídico
No primeiro aspecto, para nós, o acesso à justiça constitui-se direito fundamental garantido pela Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada aos 5 de outubro de 1988 – CF/88 e não significa, necessariamente, acesso ao Judiciário. Partimos de uma visão axiológica da expressão “justiça”, que representa uma determinada ordem de valores e direitos fundamentais para o ser humano. Esse tema tem sido pesquisado por juristas e sociólogos, como Mauro Cappelletti e Bryant Garth , que consideram que o acesso à justiça pode ser encarado como o mais básico dos direitos humanos inseridos no contexto de um sistema jurídico moderno e igualitário, comprometido com a garantia (e não apenas com a proclamação) do direito de todos (https://estadodedireito.com.br/defensoria-publica-e-a-tutela-estrategica-dos-coletivamente-vulnerabilizados/).
Quando analisamos o desenho institucional conferido à Defensoria, verificamos a presença de fortes elementos democratizantes, que aproximam a instituição e sua prática a esse subcampo político-jurídico. Presença esta que notamos desde a constitucionalização de sua função essencial à justiça, passando pela natureza dos direitos e sujeitos que tutela e serve, até alcançar a sua arquitetura institucional.
A Defensoria Pública é uma instituição que figura como um dos principais atores para o alargamento e a democratização do acesso à justiça no Brasil. Comumente associada ao exercício de uma de suas funções constitucionais, a saber, a prestação de assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos (CF/88, artigo 5º, inciso LXXIV) – ou, atualmente, na tutela de grupos socialmente vulneráveis –, suas funções institucionais não se reduzem à dimensão da assistência judicial, mas, antes, a projetam como ator qualificado para a democratização da justiça no Brasil.
Isso advém, também, do processo de institucionalização do órgão, que inova ao ser introduzido em texto constitucional – atuação de constituinte originário que, posteriormente, será agregada por diversos outros países latino-americanos – como “verdadeiro modelo organizacional” a ser “assumido efetivamente pelo Estado”, prestigiando uma concepção ampla de acesso à justiça, que situa seus esforços na diminuição das desigualdades sociais, concretizadas em contundentes e rotineiras violações interpenetrantes de estruturas monetárias, raciais, sexuais, locais, identitárias, culturais, enfim, de um complexo de variantes discriminatórios que, na realidade fática, complexificam as dificuldades de efetivar acesso à proteção de direitos essenciais para o exercício básico da cidadania .
Nesse espaço sistêmico da Justiça, apenas a Defensoria Pública pensada nos termos da Constituição de 1988, é a instituição que mais avançou nessa direção, teórica, política e funcionalmente (https://brasilpopular.com/participacao-popular-consultiva-no-conselho-de-defensoria-publica/).
Em entrevista que concedi ao Boletim Forum DPU da Escola Superior da Defensoria Pública, visando a incutir esse fundamento na formação dos quadros da instituição, como projeto e como programa, acentuei esse carisma (Defensoria Pública e Acesso à Justiça – Forum DPU V.3 N.11 ISSN: 2526-9828 Ano: 2017 – https://www.dpu.def.br/enadpu/forumdpu/edicao-11)
À pergunta sobre o potencial da DPU como instituição voltada para a garantia do acesso à justiça e quais os principais desafios a serem enfrentados pela DPU para a concretização deste potencial? Respondi não ser por acaso que, nas mobilizações para a institucionalização de defensorias, o social organizado tenha sido um fator determinante para a sua criação. Pense-se, por exemplo, o caso da Defensoria de Sâo Paulo para cuja institucionalização muito contribuiu a mobilização da sociedade civil. Por isso mesmo, em sua estrutura, é muito pertinente a atividade de sua Ouvidoria Externa, eleita, que traduz de alguma maneira o sentido de participação que nesse sistema o princípio democrático alcançou. Veja-se a esse respeito, a belíssima tese de doutoramento de Élida Lauris dos Santos, defendida em Coimbra(tive o privilégio de aprendizado ao participar da banca): “Acesso para quem precisa, justiça para quem luta, direito para quem conhece: dinâmicas de colonialidade e narra(alterna-)tivas do acesso à justiça no Brasil e em Portugal. Coimbra: [s.n.], 2013 ”.
Logo, na sequência, a questão sobre o potencial do processo de coletivização judicial para a garantia do acesso à justiça e quais riscos este processo pode apresentar? Minha resposta: já não se trata de potencial, mas de constatação de seu valor para a ampliação de acessos à Justiça se considerarmos as formas coletivas de abreviar esse acesso e de coletivizar as pretensões. Pense-se nas estratégias ampliadas de subjetivação ativa das ações de inconstitucionalidade, na formação de juízos de convencimento a partir da dinâmica de audiências públicas, de admissibilidade de terceiros não diretamente parte em causas (amicuscuriae), nas gestões para construção de ajustes de conduta e outras modalidades de pactuação para constituir obrigações e responsabilidades mediadas pela estrutura administrativo-judicial. O risco é o da judicialização da política e do ativismo decisionista, não confundidos com a competência alargada de aplicação construtiva de soluções judiciais, situações que têm revelado uma indevida substituição de razões do mediador (juízes, cortes judiciais, órgãos do sistema de justiça e do ministério público) em lugar das disposições legítimas de entendimentos razoáveis construídos pela participação ativa de coletividades e sujeitos coletivos (mecanismos de consulta prévia e informada, expertises sociais etc). Ou ainda a orientação para rejeitar a incriminação por desacato, delito previsto no artigo 331 do Código Penal, afronta o artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica), ao impedir que o cidadão manifeste-se criticamente diante de ações e atitudes dos funcionários públicos, no exercício de sua função, recomendado que Defensores Públicos sustentem a absolvição do indivíduo, no bojo das ações judiciais, utilizando como instrumento o controle de convencionalidade. Em estudo sobre essa incidência (CONTROLE DIFUSO DE CONVENCIONALIDADE: CASOS DE ATUAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO, de Maria do Carmo Goulart Martins Setenta, Defensora Pública Federal em Salvador/BA, R. Defensoria Públ. União Brasília, DF n.14 p. 1-310 Jul/Dez . 2020), constata-se a aplicação do mecanismo do controle de convencionalidade como instrumento para a tutela dos direitos humanos, seja perante o Sistema Interamericano ou perante os Tribunais pátrios, porquanto se caracteriza em nova doutrina que prestigia os direitos humanos e promove uma interlocução entre o Direito Interno e o Direito Internacional.
Considero que a institucionalização das ouvidorias externas no corpo das defensorias é uma resposta contundente na direção da democratização do acesso à justiça e do debate que não pode ficar restrito corporativamente aos juristas. Por isso deve ser saudada a Lei Federal de 2009 que determina este formato de Ouvidoria Externa de Defensoria, mas só 17 das 27 defensorias cumprem a lei, que são: Acre, Rondônia, Pará, Maranhão, Piauí, Ceará, Pernambuco, Paraíba, Bahia, Mato Grosso, Distrito Federal, Goiás, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
Por isso é notável a iniciativa da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, por promoção de sua Ouvidora Externa Marina Ramos Dermann – (o Ouvidor atual Rodrigo de Medeiros, originado dos quadros da advocacia popular de movimentos sociais, foi nomeado depois de escrutínio do Conselho do órgão, avalisadopornota de apoio de 155 professores/as e acadêmicos/as de todo o país, carta de apoio de movimentos e entidades com 183 movimentos/entidades sendo mais de 120 do RS https://mst.org.br/wp-content/uploads/2023/03/Carta-Aberta-Apoio-a-Rodrigo-de-Medeiros-Para-Ouvidoria-da-DPE_RS-3.pdf, traduzindo a melhor forma de corresponder a um dever funcional tão democraticamente legitimado) – de constituição de um Conselho Consultivo da Ouvidoria-Geral da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, como já realizado por outras Defensorias Públicas no País (SP, PR, BA e AC) e Defensoria Pública da União.
É verdade que a concretização dessa expectativa não é fácil e os obstáculos, às vezes, são mais internos do que externos. Acabo de receber do Ouvidor Externo da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul Rodrigo Medeiros, material que expõe o grau desse obstáculo. Ele o exibe em bem fundamentado parecer (file:///C:/Users/HP/Downloads/Manifestacao_sobre_o_Parecer_n%20_133-2023_assinado%20(1).pdf) e manifesta a importância de posicionamento ampliado em nota que tornou pública e que reproduzo: “Recapitulando e infirmando sobre o processo de criação do Conselho Consultivo da Ouvidoria. 1. Foi juntado no processo o parecer, ainda da gestão anterior contrário à criação do Conselho, que deveria ser feito por lei estadual; 2. Veio para a Ouvidoria se manifestar e hoje demos entrada na manifestação. A @+55 51 9244-6276 também deu contribuições bem importantes ao texto; 3. Agora deve voltar ao relator e esperamos que se coloque em pauta para deliberação; 4. Defendemos a criação do Conselho por Resolução e utilizamos as manifestações já juntadas no processo, que a sociedade vem dando a esta criação. Artigo do Prof. José Geraldo de Sousa Jr. , notas técnicas da Unisinos, do Forum Justiça e CRESS-RS, nota do CRP, moção da VI Conferência Estadual de DH, etc”.
O texto de Karla Leite, escorreito e instigante, manifesta a mesma vivacidade que ela exibe no coloquial e no performático, em ambientes de debate, tal como pude testemunhar e me perceber mobilizado para os temas subjacentes à discussão da Dissertação, notadamente na correlação entre política e direitos humanos, em programas que ela modera juntamente com sua colega Gabriela Tunes: https://www.youtube.com/watch?v=FMaljeEODfk&t=249s, TV Trevo Brasil: DIREITOS HUMANOS E POLÍTICA – A ascensão da extrema direita no mundo; e de modo muito próprio, https://www.youtube.com/watch?v=zV379zY2HDk; Direito Achado na Rua – TV Trevo: Direitos Humanos e Política.
A Autora reivindica uma metodologia participativa e a realiza, mas de um modo sentipensante (Fals Borda), assim que logra estabelecer necessariamente a atitude diz ela, de “estranhar aquela realidade de opressão, identificada na Serra, valendo-se do fundamento teórico que lhe permite uma reflexividade que permitisse a promoção efetiva de direitos humanos…: A leitura dos direitos não poderia mais ser baseada unicamente em referências eurocêntricas, pois restariam desconectadas da verdade”. ´´E o que ela configura como virada ontológica, de modo a permitir (tal como sugere em sua concepção e prática O Direito Achado na Rua), a inclusão das vozes vulnerabilizadas na reivindicação de justiça.
Recolho, à fls. 127/128 uma síntese que define o trabalho:
Quando os invisíveis têm direitos? A resposta será levantada todas as vezes que a Defensoria Pública se deparar com um grupo social marginalizado pelas forças colonialistas. É preciso estar atento aos fatos, aos valores simbólicos do grupo social, e não negociar direitos alheios sob nenhuma hipótese. É preciso permitir que cada sujeito esteja ativo em seu próprio destino, decidindo conscientemente e livremente sobre se e quando poderá ceder a negociações, em termos dialogados, e não impostos. É preciso ter a natureza confiada pela Constituição Federal de 1988, uma instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados. É preciso, desta maneira, assumir a postura contracolonialista desejada pelo constituinte.
Com efeito, do que se trata, em suma, é tornar possível a aproximação do direito à realidade social, proporcionando o apoio à efetivação dos direitos dos grupos subalternizados, seja através de mecanismos institucionais, judiciais ou por mecanismos extrajudiciais, políticos e de conscientização. A aposta ultrapassa aspectos formais, do repertório jurídico tradicional e tenta compreender a realidade diante de sua complexidade, buscando, assim, ofertar respostas também complexas e abrangentes.
Foto Valter Campanato
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
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José Comblin – 100 Anos de Vida. Alzirinha Souza, Edelcio Ottaviani ( Organizadores). Aparecida (SP): Editora Santuário, 1ª edição, 2024, 128 p.
A obra “José Comblin – 100 anos de vida” reúne artigos que apresentam a vida, o trabalho, o pensamento e o legado do teólogo José Comblin (1923-2011), um dos mais importantes teólogos do Brasil e da América Latina, do pós-Vaticano II. Os artigos reunidos na obra foram apresentados na III Jornada José Comblin, realizada em 2023, para comemorar o Centenário de nascimento do célebre teólogo.
Meu primeiro contato com o pensamento profético e emancipador de José Comblin, assim o livro o nomina, foi por meio da leitura de seu livro de 1978, grafada a autoria como Joseph Comblin, A Ideologia da Segurança Nacional- o Poder Militar na América Latina, na edição da Civilização Brasileira.Um livro indispensável e que li com atenção em razão do tema e da linha de libertação própria de um intérprete de Gálatas, uma epístola cara a Comblin, tida como o manifesto da liberdade cristã e universalidade da Igreja. Leitura condizente com os tempos duros em que a obra foi escrita.
Eu ainda não conhecia Comblin o teólogo, o que só vim a fazer muito tempo depois, por meio de uma leitura muito profunda que dele faz Alzirinha Souza co-organizadora do livro 100 Anos de Vida, que já me anunciara a sua preparação e edição. Alzirinha, essa destacada teóloga católica que há dois anos, semanalmente, orienta nossas leituras – minhas e de um pequeno grupo doméstico – teológico-missionárias do Novo Testamento (já lemos com a sua orientação o Evangelho de Lucas, os Atos e estamos agora na leitura das Epístolas (Paulo), incluindo a Carta aos Gálatas. Pena que ainda não há a ordenação de mulheres. Alzirinha é leiga. Celebrasse e suas homilias me induziriam mais convicção, em sentido teológico-pastoral, do que a que me formou até aqui, no acumulado de meus 77 anos.
“desde uma perspectiva de descolonização do mundo e da vida, disse isso em meu artigo, uma missão não só libertadora, no sentido de escapar dos reducionismos que a opressão e a espoliação produzem numa realidade de exclusão, mas a missão verdadeiramente emancipadora, aquela que não só liberta mas humaniza, pelo impulso daqueles elementos críticos, próprios dos espíritos livres, que se encharcam de humanismo e de esperança, e que aparecem com muita força na conversa que entretive com a teóloga Alzirinha Rocha de Souza, além de muitas outras lições, ela que é leiga, professora na PUC-MG (Doutora em Teologia pela Universidade de Louvain), num programa de Justiça e Paz, da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Brasília (https://www.youtube.com/watch?v=imN1sM2p3W4), sobre o tema “Ação, Missão e Liberdade. Aproximações entre Comblin e o Papa Francisco”. Comblin não está evidenciado nos documentos da Agenda, mas a partir de Comblin, e sua teologia da missão (teologia da enxada ajustada ao contexto brasileiro e latino-americano), Alzirinha surpreende a função comunitária do trabalho do leigo e a importância do desenvolvimento de uma ação missionária em comunidade, impulsionada sim pelo Espírito, mas que traz a liberdade e a renovação da esperança: “o que movimenta a ação humana é a esperança de que essa ação transforme o mundo”. Isso que aparece como compreensão pastoral em Comblin (ação, comunidade, palavra, liberdade e espírito), ajuda a compreender uma ligação entre São Francisco (“evangelizar, se necessário, até com palavras” – não tenho a fonte, há até aquelas que negam tenha Francisco dito isso, mas ouvi a máxima do padre José Ernanne Pinheiro, conselheiro espiritual da CJP Brasília, amigo e estudioso de Comblin) e o Papa Francisco, combinando contemplação sim, como está em suas principais Encíclicas e Exortações, mas contemplação na ação, realizando-as em proposições sobre o que se pode construir a partir do agora, mas em conjunto, em comunidade, como povo de Deus, numa renovada louva-ação do cântico do irmão Sol. Em estudo de altíssima profundidade – “A Experiência como Chave de Concretização e Continuidade da Igreja de Francisco” (Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 49, n. 2, p. 375-397, Mai/Ago. 2017), diz Alzirinha: “Destaco aqui uma característica do fazer de Francisco, a que julgo mais marcante e me parece essencialmente ligada a Aparecida, da qual, em minha opinião, decorrem todas as outras possíveis, que é a exigência da missionariedade e da proximidade para o anúncio do Evangelho. Ser missionário, como seus gestos demonstram, é estar ao nível do outro, olhar nos olhos, falar em condições de igualdade de uma Boa Nova, que talvez possa ser efetivamente boa para seu ouvinte. Essa é, de fato, a ‘nova evangelização’ esperada, que se representa por uma Igreja em saída que possa realmente ‘primeirear’ (cf. Papa Francisco: “tomar iniciativa”) nas ‘periferias existenciais e sociais’, anunciando esperança, caridade e misericórdia de Deus. Se, na inspiração de João XXIII, o Concílio (Vaticano II) seria um novo pentecostes, como nos lembra Galli, aos olhos daqueles que esperaram 50 anos para uma grande virada na Igreja, ele finalmente acontece neste papado…Os gestos de Francisco advêm de sua experiência e somente é capaz de dar testemunho aquele que faz primeiramente a experiência de Deus. Por isso realiza a forma mais alta da teologia prática ao fazer coincidir sua experiência de Deus, sua experiência pastoral, às exigências de homens e mulheres que demandam e esperam da Igreja uma resposta concreta às suas vidas”.
O livro designa o personagem celebrado como José Comblin. É mais uma nominação que bem pode acrescer àquelas que são referidas no processo que na redemocratização (1985), buscou corrigir uma postura brutal da Ditadura quando, anota o processo instaurado no Ministério da Justiça buscou-se expulsá-lo e impedir seu retorno ao Brasil: Joseph Comblin ou Joseph Jules Comblin ou Joseph Combin ou Joseph Comblain.
À instância de Azirinha pedi a meu caríssimo amigo Jeam Uema, atual Secretário de Justiça, no Ministério da Justiça, a busca nos arquivos e o registro dessa saga. As anotações me comoveram, desde a abertura do processo (Processo de Expulsão nº 30.587/68, instaurado a partir de ofício da Deputada Federal Cristina Tavares, que para Sartre era a sua memória de Brasil (Simone de Beauvoir, A Cerimônia do Adeus. Madame Beauvoir lembra a moça ruiva, jovem jornalista que cativou Sartre e ciceroneou o casal em sua passagem pelo Brasil no ano de 1960). Aos seguintes encaminhamentos nos autos, de meu dileto amigo Humberto Pedrosa Espínola (parecer de 30/4/85, esclarecendo que a despeito do ofício da Deputada Cristina, atendendo “pedido da Comissão de Justiça e Paz da CNBB/Nordeste de revisão da permanência do Padre Joseph Comblin, perseguido pelo governo anterior”, cuidava-se mais propriamente de “revogação da determinação que proíbe o desembarque do alienígena no território nacional Padre Joseph Jules Comblin”.
Outra nota afetiva, a de encaminhamento para apreciação do Ministro Fernando Lyra pelo meu estimado amigo Cristovam Buarque, com quem trabalhei na Reitoria da UnB e no Ministério da educação, então Chefe de Gabinete do Ministro; e do notável Diretor Marcello Cerqueira, um dos mais destacados advogados brasileiros que se notabilizou na causa da advocacia da liberdade em defesa de presos políticos; ambos capeando a manifestação final de meu amigo-irmão Luiz Carlos Sigmaringa Seixas, meu colega na Comissão de Direitos Humanos da OAB-DF e na Comissão Justiça e Paz do DF, além de associados no Escritório de Advocacia de seu pai, o grande bâtonnier Antonio Carlos Sigmariga Seixas (sobre A. C. Sigmaringa Seixas, cf. meu Honradez e Dignidade, in Correio Braziliense, Brasil, 16/1/2016, pág. 5). O enunciado por Luiz Carlos Sigmaringa Seixas, Diretor-Geral do Departamento de Estrangeiros (3/5/1985), veio configurar o depacho final do Minsitro Fernando Lyra (10/5/1985): “arquivamento do processo e revogação da determinação que proíbe o desembarque…no território nacional”. Eis que Comblin voltou e está misturado ao solo brasileiro, seus restos revolvidos pela enxada que se fez sua teologia, a partir do chão que ele tanto amava.
Na apresentação do livro, num texto de intencionalidade manifesta – José Comblin: Uma Presença Necessária para o Tempo Presente – seus organizadores Alzirinha Souza e Edelcio Ottaviani, explicam o seu propósito: “Esta obra nasce de duas constatações importantes: a primeira faz referência a duas formas de tratar a história. Podemos abordá-la de forma a esquecer, anular a sua própria construção ou fazer memória de pessoas e eventos. A segunda constatação, decorrente da primeira, faz referência à percepção de que alguns desses eventos ou pessoas se tornaram verdadeiros acontecimentos que redirecionam o rumo da história. É a partir dessas duas constatações que o Grupo de Pesquisa José Comblin (PUCS-SP) e a Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) realizaram a III Jornada José Comblin (1923-2011), em junho de 2023, para comemorar o Centenário de nascimento do célebre autor. O evento procurou, em seu sentido mais estrito, fazer memória de sua vida e obra, através de conferências, comunicações e debates, que tiveram por finalidade mostrar a importância de seu pensamento para o tempo presente, resultando nesta obra. Nela, o leitor encontrará elementos do pensamento de Comblin, relidos através de um cronograma-teológico, que permite visualizar os elementos-chave de desenvolvimento de sua teologia ao longo de sua trajetória geográfica e intelectual, desde a Bélgica à sua amada América Latina, à qual dedicou a maior parte de sua vida pessoal, pastoral e intelectual”.
Além do Prefácio – Pe. José Comblin: testemunho palpável do amor de Deus entre nós, da inteligência acadêmica a serviço dos pobres – a cargo de Domingos Zamagna, jornalista e professor em São Paulo, seu ex-aluno, a obra traz as seguintes contribuições: José Comblin (1923 – 2011): teólogo, missionário e educador atento aos sinais dos tempos, de Edelcio Ottaviani, co-organizador, num texto que é o fio-condutor da tessitura do livro; José Comblin, uma testemunha epocal do Concílio Vaticano II. Vida no Chile de 1962 a 1965, de Anderson Frezzato; José Comblin: Missão e Testemunho na América Latina, de Adauto Guedes Neto; Uma ‘Ideia Arrojada’: José Comblin e a Fundação do Seminário Rural na Paraíba, de Elenilson Delmiro dos Santos; A Pneumatologia de José Comblin: Sua Contribuição para a Teologia (Brasil, 1980-2011), de Alzirinha Souza, co-organizadora; José Comblin, Teólogo Biblista: do Chão da Vida à Elaboração Teológica, de Rita Maria Gomes; Como ler os livros de José Comblin? (Uma contribuição à III Jornada José Comblin, na PUC de São Paulo, entre 05 e 08 de junho de 2023), de Eduardo Hoornaert; além de um posfácio – Projetando Comblin em seu legado, desde o chão da amada “Pátria Grande”, assinado por Alder Júlio Ferreira Calado.
O material autoral foi acomodado pelos organizadores em tópicos estruturantes assim constituídos: BRASIL 1957-1965 Chegadas e partidas; BRASIL 1972-1980 Conflitos e profecia; BRASIL 1980-2011 Caminhos Teológicos à luz do Espírito; 2010 aos dias atuais HERANÇA TEOLÓGICA. Eles se prestam a periodizar, mas também a tematizar um percurso, e nesse trânsito, divisar os sinais temporais – de antes e de agora para designar os nossos tempos e os chamados que nos convocam, Conforme diz Edelcio Ottaviani, ao cartografar as contribuições, trata-se de “destacar os aspectos teológicos, missionários e educativos de Comblin atentos à leitura dos ST nos primeiros anos de seu ministério presbiteral e como missionário na América Latina”, mas também de situar esses aspectos “presentes ao longo de toda a sua vida”, desde “suas primeiras reflexões teológicas, publicadas em periódicos e que apresentam sua conexão com temas atuais discutidos posteriormente no Concílio Vaticano II, “nos moldes da Teologia das Realidades Terrestres” de Gustave Thils”, sem ter tergiversar em face “das incongruências notadas por ele nas preocupações do clero europeu com o seguimento de Jesus, trocando a Parte pelo Todo, deixando-se mais levar pelas relações de poder do que pelas exigências do Evangelho”.
Assim que, “como missionário, soube logo compreender as transformações pelas quais passava a sociedade brasileira, particularmente no Sudeste do Brasil”, uma experiência que imanta a “atuação acadêmica de Comblin em espaços formais e informais, pautada no discernimento do Espírito, que animou as falas e as práticas de Jesus, dando especial atenção ao discipulado feminino e estabelecendo bases concretas para o discipulado de iguais”.
Uma leitura em suma que nos leva a discernir no âmbito teológico, e não só, também no mundo, movidos ao impulso de fé ativa para escavar o chão da libertação e abrir sendas e caminhos ao repique de enxadas missionárias.
Nunca más sin nosotras: as lutas femininas pela Paridade de Gênero no processo constituinte chileno (2019-2022)
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
CORDEIRO, Natalia Clemente. Nunca más sin nosotras: as lutas femininas pela Paridade de Gênero no processo constituinte chileno (2019-2022). 2024. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2024, 237 fls.
Apresento neste Lido para Você, uma dissertação de mestrado defendida por Natalia Cordeiro Clemente na Faculdade de Direito (Programa de Pós-Graduação em Direito- PPGD), da Universidade de Brasília, defendida perante a Banca Examinadora que presidi, na qualidade de Orientador, formada pelos professores e professoras Alexandre Bernardino Costa, Universidade de Brasília (UnB), Marcela Aedo Rivera, da Universidade de Valparaíso (UV – Chile), e Lívia Gimenes Dias da Fonseca, da Universidade de Brasília (UnB), na suplência.
A dissertação, conforme seu resumo,
aborda o processo de elaboração da primeira Constituição paritária da história, escrita no Chile entre 2021 e 2022, ainda sob os efeitos de uma inflamada revolta popular ocorrida em 2019, conhecida como estallido social. A pergunta norteadora da pesquisa foi: quais mecanismos políticos e práticas sociais contribuíram para que o Chile pudesse escrever uma Constituição paritária até então inédita na história política mundial? A resposta para essa questão foi buscada por meio da análise e reflexão sobre a presença massiva de corpos femininos nas ruas do Chile, suas estratégias políticas e suas agências nos meios institucionais. Em termos metodológicos, a pesquisa foi realizada por meio de um trabalho de campo nas cidades de Santiago e Valparaíso, assumindo um caráter mais etnográfico, baseado na observação participante. Em termos teóricos, mantivemos proximidade tanto com os autores que apresentam uma postura crítica em relação à vida política do Chile nos últimos 30 anos, quanto com os debates feministas levados a cabo tanto por autoras chilenas quanto de outros países. Como resultado, a pesquisa concluiu ter sido fundamental, para a escrita da referida Constituição, a presença das mulheres na institucionalidade, mas, sobretudo, a massiva presença de mulheres nas ruas, utilizando-se de diversas estratégias para imprimir suas questões na Carta Constitucional. Em que pese a Constituição ter passado por um plebiscito e não ter sido aprovada, algumas conquistas que foram consolidadas ao longo do processo permanecem, configurando um legado que resulta em um acúmulo de experiência para a continuidade das lutas que possam ser passíveis de alterar a realidade social, política e jurídica latino-americana.
Este é um trabalho que combina conhecimento e autoconhecimento, bibliografia e biografia, dada a mediação participativa que o método proporcionou e que se encontra fundamentado, nesse sentido, pedindo uma leitura compreensiva desde os agradecimentos: “Dentre todas as viagens que já fiz, essa foi a de maior grandeza e fome subjetiva de luta contra a opressão enfrentada pelas mulheres. Por isso, não poderia deixar de iniciar meus agradecimentos por algumas delas, que se mostraram presentes na elaboração deste trabalho”.
A Autora analisa e interpreta, não só porque pesquisou, mergulhou profundamente no enredamento de seu tema e objeto de estudo, chegando a assumir protagonismo no processo – tal como ela mostrará ao longo do trabalho, engajando-se em grupos e delegações nele ativas, mas viveu a experiência que expõe.
Como Garcia Márquez, em Viver para contar, nutre o seu trabalho com essa vivência e por isso qualifica a sua memória ao conta-la. Em Gabo, está dito, “a vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para conta-la”.
Por isso a dimensão qualificadora de uma memória amplificada pelas relações que entreteve no processo da pesquisa, certificada nos agradecimentos, e também a importância para a dissertação das listas de figuras, de gráficos, de quadros e de siglas, que não são adereços formais para compor o trabalho:
Primeiramente, gostaria de agradecer às mulheres chilenas, que se doaram de corpo e alma em prol da construção de uma sociedade melhor para as que já estão por aqui e as que virão.
Agradeço às convencionais e assessoras que me concederam um tempo, mesmo em meio à exaustão, para que eu pudesse entrevistá-las. Assim, sou grata à Glória Alvarado, Alondra Carrillo, Giovanna Grandón (Tia Pikachu), Vanessa Hope, Patrícia Labra, Aurora Rozas, Alejandra Flores, Elisa Loncón, Damaris Abarca, Manuela Royo, Tatiana Urrutia, Loreto Vallejos, Carolina Sepúveda e Karina Nohales.
Também sou grata pela colaboração das mulheres da Red Chilena contra La Violencia hacia las Mujeres, CF8M, Rebeldía Coletiva, Camila Lazo, Marcela Benevides, Pajarx Entre Puas e Javiera Arce-Riffo.
Agradeço aos convencionales Jaime Bassa, Daniel Stingo, Manuel Woldarsky, Nicolás Núñez, Cristóbal Andrade León (Dino Azulado), Pablo Tolosa, Andrés Cruz, Helmuth Martínez, Guillermo Namor Kong, Matías Orellana, Alvin Saldaña, Pedro Munõz e Jorge Baradict e também ao deputado Diego Ibañez, que tão gentilmente aceitaram me conceder uma entrevista para a pesquisa.
Fiquei feliz de figurar desses agradecimentos, de um modo extravagante ao protocolar, carregado pelo afetivo, até pelo laço que o assinala em significado – ao meu pai (in memoriam), que estaria radiante em saber que sua filha seguiu estudando, como me aconselhava, e estaria ansioso para conhecer o professor José Geraldo, no dia da Banca – conferindo-lhe um alcance simultaneamente hermenêutico e leal, sobretudo amorosamente pedagógico. Não me contenho e por isso o transcrevo:
Quando escolhemos um orientador, o fazemos por considerá-lo um mestre que admiramos e que nos inspira. Após convivermos com ele, recebemos alguns aprendizados. Um dos maiores legados deixados pelo meu, por meio do exemplo durante estes anos de convívio, foi aprender a ser otimista e tentar ver o melhor e o lado bom das pessoas, respeitando suas limitações, dificuldades, erros e acertos. Ele também me ensinou sobre a necessidade de ter cuidado no julgamento e a importância do perdão. Estou levando isso comigo. Além disso, agradeço o respeito às minhas ideias. Trata-se de alguém que não nos deixa esquecer a importância da pesquisa e da autoria, mas, sobretudo, do povo. A importância da legítima organização social da liberdade.
Para os propósitos da recensão, reproduzo o sumário da dissertação, com o intuito de que ele se preste a guia de leitura do trabalho:
1 INTRODUÇÃO
2 AS FERIDAS ABERTAS DO NEOLIBERALISMO
2.1 ENCONTRANDO COM O CONSTITUCIONALISMO ACHADO NA RUA 2.2 A CHEGADA AO CAMPO
2.3 O NEOLIBERALISMO NO CHILE
3 ¡LA ALEGRÍA YA VIENE! A CONCERTACIÓN
3.1 OS MOVIMENTOS SOCIAIS
3.1.1 Movimento Mapuche
3.1.2 O movimento estudantil
4 DAS RUAS À INSTITUCIONALIDADE
5 A PERFORMANCE DAS MULHERES NAS RUAS
5.1 UMA BREVE HISTÓRIA DO FEMINISMO
5.2 LASTESIS 6 A CONQUISTA DA PARIDADE
6.1 ANTECEDENTES DA PARIDADE
6.2 O MAIO FEMINISTA
6.3 UMA CONSTITUIÇÃO PARITÁRIA
7 LA CONVENCIÓN: ESTRATÉGIAS E MATERIALIDADES
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
Da Introdução retiro o esquema que sintetiza o sumário:
O capítulo 1, “Introdução”, apresenta as informações referentes à pesquisa, tais como a delimitação do campo, a problemática, os objetivos e os métodos. No capítulo 2, “As feridas abertas do neoliberalismo”, são apresentados os efeitos da presença histórica do neoliberalismo no Chile, atentando para seus mecanismos de implantação, os seus efeitos na sociedade de forma geral e as formas que essa racionalidade assumiu no período ditatorial.
No capítulo 3, “La alegría ya viene: A Concertación”, abordo mais detidamente o período pós-ditatorial. Para tanto, trago à tona as ações políticas de diferentes grupos que passaram a militar por democracia, e que também encenaram duras críticas ao neoliberalismo.
No capítulo 4, “Das ruas à institucionalidade”, apresento uma breve cronologia comentada da revolta iniciada em outubro de 2019, chamada de estallido social, e que serve de pano de fundo para minha discussão sobre as lutas das mulheres pela paridade de gênero no processo constituinte.
O capítulo 5 é intitulado “A performance das mulheres nas ruas”, pois aborda tanto uma breve história do feminismo, enquanto movimento político e teórico, como também traz as especificidades do LasTesis, grupo feminista que assumiu um protagonismo nas ruas durante a revolta social.
O capítulo 6, “A conquista da paridade”, discute de forma mais direta as lutas e estratégias implementadas pelas mulheres chilenas, dentro e fora dos ambientes institucionais, de modo a imprimir a paridade na Convención Constitucional, trazendo suas especificidades. Também fala das diversas organizações de mulheres que foram sendo constituídas ao longo do século XX e no início do século XXI.
No capítulo 7, “La Convención: estratégias e materialidades”, faço emergir as estratégias das mulheres no interior da Convenção, bem como as marcas que elas imprimiram na primeira Constituição Paritária do mundo por meio de certas materialidades, ou seja, normas constitucionais, que destaco ao longo do capítulo.
O trabalho de Natalia se debruça sobre uma realidade político-constitucional, ela o afirma, “pelas lentes do Direito Achado na Rua, [que é o protagonista da ação político transformadora] o sujeito coletivo [que] não é ordem substancial, mas sim, relacional. Portanto, o que conta, de fato, é a experiência que foi vivida, são as estratégias de luta que foram consolidadas, é tudo aquilo que foi construído a partir desse processo histórico. Esse foi o legado deixado pelos movimentos sociais feministas, que mostraram todo o seu acúmulo de forças”. Ela se filia, pois, em fidelidade epistemológica, a um pressuposto fundante da concepção e prática de O Direito Achado na Rua, conforme O Direito Achado na Rua. Sujeitos Coletivos: Só a Luta Garante os Direitos do Povo!, volume 7, Coleção Direito Vivo. Ana Cláudia Mendes de Figueiredo, Andréa Brasil Teixeira Martins, Edilane Neves, José Geraldo de Sousa Junior, José Roberto Nogueira de Sousa Carvalho, Luana Nery Moraes, Shyrley Tatiana Peña Aymara, Vítor Boaventura Xavier (Organizadores). Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2023, 428 p. (https://estadodedireito.com.br/sujeitos-coletivos-so-a-luta-garante-os-direitos-do-povo).
Como ficou demonstrado ao longo destas páginas, desde o período ditatorial chileno, as lutas feministas tiveram uma importância enorme para a volta da democracia ao país, e, mais recentemente, para a construção da ampliação desse conceito. Elas se organizaram politicamente em espaços diversos e foram ossificando um movimento mais amplo por meio de coletivos e organizações de ativistas e intelectuais, todos imbuídos de um desejo de reparação e construção de uma sociedade mais igualitária do ponto de vista das relações de gênero.
À luz das reflexões da práxis do Direito Achado na Rua, em sua vertente do Constitucionalismo Achado na Rua, emergiram importantes considerações acerca do fenômeno político-jurídico investigado. A primeira delas, confirmadora da tese de Roberto Lyra Filho e desenvolvida por José Geraldo de Sousa Junior, é a de que a Constituição que foi escrita no Chile, e que emergiu da rua, foi inventada pelos sujeitos coletivos de direito, que, ao abrirem sua consciência para as opressões, com criatividade política inventaram uma nova interpretação sobre o conceito de Paridade de Gênero. Assim fazendo, ampliaram o próprio conceito de democracia.
O produto autêntico, qual seja, a Constituição, foi possível graças ao acúmulo de forças históricas das lutas feministas, e se fez no processo histórico de libertação.
Na perspectiva desse achado, a Autora vai poder caracterizar “O produto autêntico, qual seja, a Constituição, foi possível graças ao acúmulo de forças históricas das lutas feministas, e se fez no processo histórico de libertação”, e desse modo inserir o seu estudo no itinerário que demarca hoje os caminhos de uma sociologia do novo constitucionalismo latino-americano (ver Sociologia do novo constitucionalismo latino-americano: debates e desafios contemporâneos / [Organizadores], Gustavo Menon, Maurício Palma, Douglas Zaidan. –São Paulo: Edições EACH, 2022.1 ebook ISBN 978-65-88503-38-6 (recurso eletrônico) DOI 10.11606/97865885033861 Acesso: https://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/view/939/851/3088, conforme a leitura que fiz dessa obra porque nela se abre espaço para reconhecer o que a Autora adota como referência teórica ao aludir ao que temos vindo a caracterizar como constitucionalismo achado na rua (https://estadodedireito.com.br/sociologia-do-novo-constitucionalismo-latino-americano-debates-e-desafios-contemporaneos).
De fato, ela salienta em suas conclusões:
Não obstante à rejeição da Carta Constitucional, pelas lentes do Direito Achado na Rua, o sujeito coletivo não é ordem substancial, mas sim, relacional. Portanto, o que conta, de fato, é a experiência que foi vivida, são as estratégias de luta que foram consolidadas, é tudo aquilo que foi construído a partir desse processo histórico. Esse foi o legado deixado pelos movimentos sociais feministas, que mostraram todo o seu acúmulo de forças.
As questões feministas cruzam, de forma transversal, toda a Carta Constitucional, mas uma mirada mais atenta, que foi o que tentei fazer nesta dissertação, revelou que a construção de direitos só foi possível graças a uma luta coletiva.
Para escapar à ordenação patriarcal e ao androcentrismo que domina ainda a cena política, a articulação feminista se realizou por meio da pactuação com grupos antagônicos, como ocorreu no Congresso para a aprovação da lei que garantiu a Paridade.
Em que pese muitas mulheres convencionales que se autodeclaravam feministas e homens convencionales que apoiavam a luta política das mulheres, encontrei nas entrevistas muitas contradições que iam de encontro a essa luta. Em razão dessa constatação, vejo a necessidade de incorporação e construção de uma consciência de gênero, como lembrou Segato, no âmbito social e cultural, pois um documento político sozinho, como a Constituição ou uma lei, serve como uma trincheira que dificulta retrocessos e alimenta conquistas, mas não fará com que se estabeleça um Estado feminista e se enterre o neoliberalismo; portanto, que se supere uma estrutura histórica. É apenas uma etapa de uma luta mais ampla, porém, uma etapa de importância ímpar.
Percebi com satisfação que essa perspectiva foi bem acolhida pela professora de la Universidad de Valparaíso Marcela Aedo Rivera, integrante da banca, chilena e professora de Sociologia Jurídica, tenha recortado do trabalho, o que ela identifica como recolha de memórias feministas, por meio de voces (vozes) expressam “experiências sociais e de vidas – projetos de vida – que desde suas raízes culturais de povo, revelem alianças com capacidade para se instalar e impactar os sistemas políticos, seus mecanismos e suas práticas sociais, para se realizar enquanto derecho hallado en la calle. O acolhimento ao trabalho, aliás, foi unânime da parte da Banca e pode ser aferido pelos leitores no acompanhamento da própria sessão conforme sua exibição pelo Canal YouTube de O Direito Achado na Rua: https://www.youtube.com/watch?v=AuUYJ_hfzhg.
De certo modo é que temos denominado de constitucionalismo achado na rua –https://estadodedireito.com.br/constitucionalismo-achado-na-rua-uma-contribuicao-a-teoria-critica-do-direito-e-dos-direitos-humanos-constitucionais/ -, conforme o livro Constitucionalismo Achado na Rua: uma Contribuição à Teoria Crítica do Direito e dos Direitos Humanos Constitucionais, volume 8, da Coleção Direito Vivo, da Editora Lumen Juris, resultado coletivo de esforços reflexivos sob uma perspectiva teórica e prática sobre a temática do constitucionalismo achado na rua. Desenvolvidos por pesquisadores e pesquisadoras, estudantes, professores e professoras, em ambiente de ensino, pesquisa e extensão, serão apresentados aqui trabalhos que constituem o acervo crítico da Coleção, demarcada pela perspectiva teórico-crítica de O Direito Achado na Rua, sua concepção e prática.
Assim que, no livro A constituição da democracia em seus 35 anos / (Orgs) Luiz Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Álvaro Ricardo de Souza Cruz. Belo Horizonte: Fórum, 2023, 656 p. (https://estadodedireito.com.br/a-constituicao-da-democracia-em-seus-35-anos/), tratei de inferir desde a experiência brasileira, tal como o faz Natália em relação a experiência chilena, conforme meu texto – CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 35 ANOS: AINDA UMA DISPUTA POR POSIÇÕES INTERPRETATIVAS – que a Constituição não é o texto no qual se representa, mas aqueles fatores que a promovem (conforme indicava no século XIX Ferdinand de Lassale) e que por isso ela se realiza ao impulso da “Disputa por Posições Interpretativas”. Daí o desdobramento que organizei para desenvolver o tema: “O que a Constituição ainda tem a oferecer? Impasses atuais: Reformas trabalhista e previdenciária – Como compreender essa mudança de rumo? Em direção a um constitucionalismo achado na rua”.
E por isso que o trabalho heurístico no campo constitucional é o de rastrear interpretações construtivas, que expandem o alcance da promessa constitucional em sua disposição de realizar direitos e ter cumpridas as suas promessas. Certamente para a compreensão dessa possibilidade é indispensável abrir-se a exigências próprias à disputa narrativa de realização da Constituição e de categorias que dêem conta de aferir as aberturas que a política proporcione para projetar as disposições constitucionais para o futuro.
Volto às conclusões de Natália Cordeiro:
Como dado de pesquisa a ser relatado, após ter acompanhado toda a efervescência social ainda no Brasil, minhas expectativas iniciais – que orientaram meu planejamento de trabalho – eram de que a Constituição seria aprovada. Quando iniciei o mestrado, o projeto inicial da dissertação elaborado tinha como título O nascimento de um Estado Paritário. Mas, no decorrer da pesquisa, quando cheguei ao Chile e iniciei os primeiros diálogos informais com os chilenos, em restaurantes, supermercados e ônibus, pude começar a compreender que talvez devesse elaborar um luto por algo que provavelmente não ocorreria, pois aquelas eram as vozes das pessoas “comuns”, que não estavam organizadas em movimentos sociais ou partidos políticos de esquerda e que, em sua maioria, possuíam o discurso de que a Carta seria aprovada.
Embora a dissertação tenha sido finalizada, a pesquisa segue viva, buscando realizar questionamentos sobre esse processo histórico, sobre o direito Constitucional, sobre o direito internacional dos direitos humanos das mulheres, e sobre as questões que permearam o rechazo da Constituição.
Concluo acreditando ter contribuído para a ampliação das discussões envolvendo gênero, democracia, política, constitucionalismo e movimentos sociais, na esperança de que muitas outras pesquisas se juntem à minha, no Brasil, no Chile ou em outros países da América Latina.
Com essas conclusões Natália Clemente Cordeiro, a meu ver, alcança o patamar que, juntamente com Antonio Escrivão Filho (ESCRIVÃO FILHO; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Para um Debate Conceitual Teórico e Político sobre os Direitos Humanos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016), especialmente no Capítulo V – América Latina, desenvolvimento e um Novo Constitucionalismo Achado na Rua, páginas 123-150), enunciamos, vale dizer, que o Constitucionalismo Achado na Rua vem aliar-se à Teoria Constitucional que percorre o caminho de retorno a sua função social. Uma espécie de devolução conceitual para a sociedade, da função constitucional de atribuir o sentido político do Direito, através do reconhecimento teórico-conceitual da luta social como expressão cotidiana da soberania popular. Um reencontro entre a Teoria Constitucional, e o Direito compreendido como a enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade (p. 149).
Confesso que foi grande a surpresa quando M N, meu aluno no Curso de Direito, na Universidade de Brasília, me pediu para colocar notas (apresentação, prefácio, o que seja), em seu livro de poemas “O frio das minhas cinzas”.
Note-se que identifico o poeta por suas iniciais. Até aqui, conforme o que me confidenciou, seus poemas, publicados ou não, estão protegidos por pseudônimos e heterônimos: “Comecei a escrever em 2017, ainda no Ensino Fundamental, mas foi a partir de 2019 que enxerguei uma possibilidade de estudar os movimentos literários e aplicá-los por meio da escrita. Posteriormente, em 2020, após acumular diversos poemas em nome do pseudônimo Aurora, decidi criar uma página na internet de poemas. Porém, notei que eu poderia ampliar a minha escrita, incorporando diversas influências e estilos sem perder a identidade, foi assim que me encontrei na ideia de escrever por meio de heterônimos. A ideia vingou, desde então escrevo meus poemas na perspectiva de 24 heterônimos”.
Bem, eu conhecia M N por sua destacada participação em minha disciplina na graduação – “Pesquisa Jurídica” – da qual foi monitor. Ajudou-me para além da minha competência, com a sua enorme capacidade e reconhecimento no sistema editorial da wikipedia, o repositório no qual, como parte da metodologia do curso, publicávamos verbetes produzidos pelos estudantes, como trabalho de finalização do curso. O sentido da atividade? Aquele sugerido por Pedro Demo, “não há aprendizagem sem pesquisa e sem autoria”.
Diferentemente de gente muito importante, que teve seus trabalhos criticados e até postos em discussão por objeção editorial, os verbetes dos alunos, graças a expertise de M N, foram sempre acolhidos, com pouca ou nenhuma objeção.
Depois, o próprio M N se credenciou no sistema de pesquisa, pela iniciação científica, e me escolheu para Orientador, apresentando um projeto, já aprovado, com foco em uma análise da proteção extralegal da Escadaria Selarón. “Além de buscar entender os efeitos práticos da lei nº 5.927, de 17 de agosto de 2015, a partir de uma relação da obra com a teoria crítica do Direito Achado na Rua, nessa pesquisa, o que se pretende estudar é a presença fática dos movimentos sociais, os quais possuem a potencialidade da reivindicação de direitos na ausência do Estado. Além disso, o trabalho pretende entender como uma obra coletiva na cidade do Rio de Janeiro moveu setores amplos da sociedade para pressionarem a criação de uma lei de proteção à Escadaria, visando transformá-la em patrimônio para não ser degradada”.
Na justificativa do projeto, acolhido pelo Comitê de Iniciação Científica da UnB, o interesse de M N se voltou para uma obra política e culturalmente forte no imaginário da coletividade do Rio de Janeiro, incluindo turistas estrangeiros que a visitaram e mandaram azulejos de seus países para que Jorge Selarón agregasse na escadaria.
Ainda nessa justificativa, M N sustenta que “após a morte do artista em 2013, diversos setores da sociedade carioca vêm se agrupando e lutando para manter a obra revitalizada. Em 2019 iniciou-se uma vaquinha coletiva virtual, a qual juntou 132 mil reais com o objetivo de ajudar na revitalização da escadaria e criar um inventário digitalizado da obra do artista. A vaquinha contou com 343 benfeitores de diversos países do mundo e com o auxílio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) que se dispôs a pagar o dobro do que foi arrecadado pela vaquinha. O projeto foi feito pela Liga Independente dos Guias do Rio de Janeiro (LIGUIA) juntamente com os comerciantes do centro da cidade por meio do Polo Novo Rio Antigo. Por mais que a escadaria seja tombada, nunca houve um levantamento da quantidade exata de azulejos, dos tipos e técnicas utilizadas nas cerâmicas e dos países de origem dos azulejos. Dessa maneira, é evidente que apesar da existência da Lei, foi a LIGUIA e os comerciantes que se organizaram para montar um plano de revitalização e de procurar informações da obra, o que indica a importância dos movimentos sociais independentes na proteção dessa obra de arte. (RIO, P. J. DO E. DO. Acesso em: 6 nov. 2022)”.
Aí eu já comecei a intuir que a persona circunspecta do pesquisador na Academia, vestia a alma de um artista, no plano teórico, e de um poeta, no sensível. Traduzida por Aracê, seu heterônimo:
………………….
Nesse sonho
Que pesa
O corpo
Falta algo…
A leveza
De uma
Alma
………………….
De A Alma
Aqui, introduzo uma diretriz de leitura da obra, retirada da interpretação autêntica de M N: “Em 2022, já com bastante material acumulado, decidi que era hora de tentar publicar alguns poemas. Consegui a publicação de 3 heterônimos, sendo eles: Crononauta, Aracê e Maratus. Crononauta foi publicado por meio de 2 livros, sendo duas antologias contendo alguns poemas. Já Aracê e Maratus serão publicados por meio de um livro próprio, chamado “O frio das minhas cinzas”, que aguarda o lançamento. O livro “O frio das minhas cinzas” reúne poemas de Aracê e Maratus, mas não há uma pretensão de produzir uma história a ser guiada pelos passar dos poemas. Na verdade, o livro é uma forma de marcar a identidade dos heterônimos, cada um com suas influências e estilos. Nesse sentido, Aracê é uma tentativa de buscar parte da essência do Romantismo e do Simbolismo, focando na transmissão da mensagem, deixando de lado a rigidez da estrutura. Já Maratus é uma construção que busca refletir a beleza encontrada na natureza preservada”.
Na introdução do livro, são apresentadas as identidades dos poetas.
Aracê é uma viajante temporal, mas poeta quando convém. A poeta não existe concretamente, é a voz que vaga no corpo de um morador de Brasília. Surgiu livremente da manifestação da aurora em uma manhã qualquer da pandemia. As flores, conta Aracê, tinham um aroma tão agradável que foi suficiente para dar vontade à poetisa para nascer espontaneamente.
Para além dela, há Maratus, fruto do ventre de Aracê. Maratus nasceu já velho, independente, esquisito por natureza. O poeta, ao nascer, tomou consciência de que queria se isolar de tudo e de todos, mas não por ódio ou enjoo perante a humanidade, como diz o clichê. Na verdade, o poeta, apaixonado pela natureza, em um ato de liberdade, se isolou na Mata Atlântica e por lá ficou, sem ressentimento, apenas pelo amor, pelos cantos de seus amigos pássaros e pelo cultivo das flores em seu coração. No plano da existência, Aracê e Maratus encontram morada em M N, morador de Brasília, estudante de Direito e, como os demais, poeta. M se caracteriza por ser o abrigo de tantas possibilidades poéticas, o qual, por meio de sua presença orgânica, traduz para o real as imagens poéticas desenvolvidas por seus heterônimos.
MARIANA
Das ondas da lama
Das ondas do rio
Dos vultos da morte
Quero me livrar
De uma água eivada
O que tirarei?
Só me resta o nada
E o sonho letargo
Das ondas da lama
Quem vem me salvar?
Do arrasto feroz
De um mal entre nós
Num rio deserto
Aposento o anzol
As ondas da lama
Enfim vou largar
Nascido velho do ventre de Aracê, assim como Minerva sai armada da cabeça de Júpiter, Maratus e seus parceiros heterônimos, assim como os heterônimos de Fernando Pessoa, não escondem a sua tentativa desesperada de se instalar no real, no real interior ou o que se exibe exteriormente, impressionando o poeta M N.
Acaba de ser publicado pela Editora Dialética, em coedição com o Jornal Estado de Direito, o primeiro volume de Lido para Você. Direito, Cinema e Literatura, coletânea de textos de minha Coluna, com a mesma denominação (Lido para Você), que sai no Jornal, semanalmente (José Geraldo de Sousa Junior. Lido para Você: Direito, Cinema e Literatura – São Paulo : Editora Dialética, 2023. (https://estadodedireito.com.br/lido-para-voce-direito-cinema-e-literatura/)
O livro é o primeiro volume de uma coleção que reúne, por seleção temática, os temas da Coluna. Neste primeiro volume – outros três estão sendo preparados – o tema é Direito, Cinema e Literatura.
Na minha Introdução – Lido para Você. O Real Apreendido por Muitas Narrativas e Diferentes Linguagens – explico o processo de criação da obra e a seleção dos textos. São leituras que desvendam no discurso artístico o intuir que não precisa fundamentar, explicar o real, porque o expõe em compreensão direta e sem mediações. Conforme lembra o grande acadêmico de Coimbra Eduardo Lourenço (Mitologia da Saudade. São Paulo: Companhia das Letras, 1999), “a literatura não é um delírio, mas a apropriação do real por meio de uma outra linguagem”.
Tal como tenho indicado nessa perspectiva, sigo a consideração de Roberto Lyra Filho, no plano filosófico-jurídico, ao referir-se às múltiplas atitudes e não unilaterais atitudes de conhecimento – a explicação científica, a fundamentação filosófica, a intuição artística e até a revelação pela experiência mística – conforme entre outros Filosofia, teologia e experiência mística, in Anais do VIII Congresso Interamericano de Filosofia. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia, vol. II, p. 145-150, 1974; Filosofia geral e filosofia jurídica em perspectiva dialética, in PALÁCIO, C., org. Cristianismo e história. São Paulo: Edições Loyola, p. 147-169, 1982; A concepção do mundo na obra de Castro Alves. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1972.
Roberto Lyra Filho (ou Noel Delamare) é, nesse sentido, ego e alter ego, filósofo e poeta, conforme eu assinalei em meu in memoriam (Indivíduo e Coletivo em Plena Harmonia), Revista Humanidades, Brasília: Editora UnB, nº 11, novembro/janeiro, ano III, p. 38, 1986/1987; ele próprio, Roberto Lyra Filho. A Nova Filosofia Jurídica, p. 39-42 e Noel Delamare. O Cancioneiro dos Sete Mares, p. 43-50, Revista Humanidades, idem.
Também, em Luis Alberto Warat, procedente dos estudos lógico-analíticos e da teoria do Direito, até se extravasar no Manifesto do Surrealismo Jurídico. São Paulo: Editora Acadêmica, 1988, e excedendo qualquer fronteira artístico-epistemológica no romance O Amor Tomado pelo Amor. Crônicas de uma paixão desmedida, in Territórios desconhecidos, vol. 1. Florianópolis: Fundação BOITEUX, 2004. O enlace dessas múltiplas dimensões sensíveis neste autor, que foi meu orientador de doutorado, assim como Roberto Lyra Filho foi meu orientador no mestrado, está bem delineado pelo próprio Warat, na entrevista Arte e direito começam a virar a página, concedida a Marta Gama (Entrelugares de Direito e Arte: experiência artística e criação na formação do jurista, de Marta Regina Gama. Fortaleza: EdUECE, 2019: https://estadodedireito.com.br/entrelugares-de-direito-e-arte-experiencia-artistica-e-criacao-na-formacao-do-jurista/).
Observatório da Constituição e da Democracia. UnB – SindjusDF | Outubro de 2006, p. 12-13, sobre o tema Os Novos Caminhos da Arte e do Direito. Nessa edição (https://drive.google.com/file/d/0B5uBt99PdGHCSU96RlhsQ3FlMmc/view?fbclid=IwAR1m27zSYcZQzP2u612YAE2PVuCjoDgrMGZLuZB86YQv2mb0S_kV1xkO9w0&resourcekey=0-c4htb_V_ECNmUIHiFQ9dMQ), além de Warat, Roberto Lyra Filho e Boaventura de Sousa Santos, pesquisadores e pesquisadoras do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, fazem ricas aproximações a esses temas que podem ser sintetizadas numa locução do próprio Warat: “A arte é o fio condutor para uma apurada reflexão sobre política, direito, ciência e vida. Uma reflexão vinculada à luta contra todas as formas de opressão e injustiça”.
Completo com Boaventura de Sousa Santos, esse Janus instituinte de continuidades e rupturas de impérios cognitivos, tarefa impossível sem a mediação artística de metáforas e (pluri)versos. Tome-se os exemplos: Escrita INKZ anti-manifesto para uma arte incapaz (Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 2004) e RAP Global, Queni N. S. L Oeste, rapper compondo sobre texto de Boaventura (Rap Global / Queni N. S. L Oeste; apresentação de Boaventura de Sousa Santos. Rio de Janeiro: Confraria do Vento – 2ª edição, 2019).
De certo modo, a publicação de O Frio das Minhas Cinzas, pode representar para M N o galgar de uma escadaria que o leva ao real, com a ajuda de seus heterônimos. Uma espécie de Dia Triunfal, alusivo ao 8 de março de 1914, dia em que Fernando Pessoa, o múltiplo, teve a epifania criativa para se encarnar e almar por seus heterônimos, como tão bem representa o filme com o mesmo título, realizado por Rita Nunes, a partir de uma ideia de Nuno Arthur Silva, numa ficção de Maria João Cruz – https://www.youtube.com/watch?v=An5nfi_BI2c): Alberto Caeiro, o mestre pagão, Ricardo Reis, o neoclássico estóico, e Álvaro de Campos, a besta modernista.
Sim, O Frio das Minhas Cinzas, traz arte para a vida, pela criação de M N, manifestada por Aracê e Maratus.
Foto Valter Campanato
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55
Por trás das chamas. Mortos e desaparecidos políticos – 60 anos do golpe de 1964
Direitos Humanos na Sociedade. Acesso à justiça, gênero e proteção de direitos
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
Gabriela Maia Rebouças, Grasielle Borges Vieira de Carvalho, Flávia Moreira Guimarães Pessoa (Organizadoras). Direitos Humanos na Sociedade. Acesso à justiça, gênero e proteção de direitos. Aracaju-SE: EDUNIT, 2024. 285 p.: il. e-book (https://editoratiradentes.com.br/wp-content/uploads/2024/06/Acesso-a-justica.pdf).
A obra celebra 10 anos do Programa de Pós-graduação em Direitos Humanos da Universidade Tiradentes e com esse intuito e aborda temas relacionados à Linha de Pesquisa Direitos Humanos na Sociedade, dando ênfase a pesquisas sobre acesso à justiça, gênero, políticas públicas, segurança, criminalidade e trabalho digno.
Na Apresentação as Organizadoras esclarecem que dela participam autores e autoras provenientes das redes de pesquisa e dos projetos em colaboração desenvolvidos, provenientes da UNISC, UnB, UFMA, IDP, UNICHRISTUS, UFBA, UPM/SP (Mackenzie), UDF.
Vou à Apresentação porque ela sintetiza e resume os trabalhos que compõem a obra. O livro foi organizado iniciando com estudos sobre o acesso à justiça e os direitos humanos, tendo quatro trabalhos abordando a grande área “Acesso à justiça”. O capítulo ACESSO À JUSTIÇA NO NORDESTE DO BRASIL: uma década de pesquisas junto ao PPGD/UNIT, elaborado pela Dra. Gabriela Maia Rebouças, aborda o conjunto de pesquisas empíricas sob sua liderança desenvolvidas no Nordeste brasileiro, por meio do olhar crítico do acesso à justiça. O próximo trabalho com esta temática, intitulado: ACESSO À JUSTIÇA, EXTENSÃO E EDUCAÇÃO PARA OS DIREITOS HUMANOS, do Dr. José Geraldo de Sousa Junior e da Dra. Nair Heloisa Bicalho de Sousa, refletem sobre a perspectiva de educação libertadora pela mediação dos direitos humanos, compreendendo o tema do acesso à justiça como uma experiência pedagógica originada da extensão universitária. O próximo capítulo trata do ACESSO À JUSTIÇA E O PROBLEMA DA RESSIGNIFICAÇÃO DO INTERESSE DE AGIR NAS ONLINE DISPUTED RESOLUTIONS – ODR’S, escrito por Dr. Antônio Soares Silva Júnior e Dra. Samyle Regina Matos Oliveira, ao abordarem as principais teorias acerca da obrigatoriedade do uso prévio de tecnologias, especificamente, criadas para solução de conflitos através de meios digitais e o desenvolvimento de uma releitura das condições da ação sob a ótica da Justiça Multiportas. Logo em seguida, o texto escrito pela Ma. Iracy Ribeiro Mangueira Marques, sobre o ACESSO À JUSTIÇA DO ADOLESCENTE EM CONFLITO COM A LEI, o texto parte do questionamento sobre o Sistema de Justiça, se este garante ao adolescente que infraciona acesso à justiça no transcorrer do processo socioeducativo. Sob a inspiração da teoria agnóstica enfatiza o fundamento político dos mecanismos de sanção socioeducativos e a prevalência da cultura tutelar, legada pelo menorismo, na condução do processo infracional.
Em seguida, a temática do acesso à justiça se conecta com políticas públicas e trabalho digno. O capítulo PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA, VIOLAÇÕES A DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS E ATUAÇÃO DO CNJ escrito por Flávia Moreira Guimarães Pessoa e Vilma Leite Machado Amorim, aborda violações a direitos humanos fundamentais das pessoas em situação de rua, a sua invisibilidade social, a atuação Poder Judiciário brasileiro, com destaque para o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável – ODS, nº 16, que tem como meta promover sociedades pacíficas, responsáveis e inclusivas para o desenvolvimento humano sustentável e proporcionar o amplo acesso à Justiça, enquanto direito humano fundamental. O próximo título, A MEDIAÇÃO DE CONFLITOS ENQUANTO POLÍTICA PÚBLICA DE PROTEÇÃO AO DIREITO HUMANO DE CONVIVÊNCIA FAMILIAR NA ALIENAÇÃO PARENTAL por Fabiana Marion Spengler e Carolina Kolling Konzen, tem por objetivo principal compreender o direito humano fundamental à convivência familiar sob o aspecto da prática de alienação parental, abordando, ao final, a mediação de conflitos como alternativa. Sob a ótica do trabalho digno, o artigo de Verônica Fonseca de Resende e Antonio Escrivão Filho, intitulado: UMA LEITURA DA REFORMA TRABALHISTA A PARTIR DA PIR MIDE DE LITÍGIOS analisa a reforma trabalhista sob o enfoque do acesso à justiça e das contribuições da sociologia dos conflitos, com especial atenção para os efeitos sociais da retirada da participação do sindicato na validação da rescisão contratual, fragilizando diretamente na possibilidade de litigância do trabalhador e da trabalhadora. Também o artigo O MONITORAMENTO ELETRÔNICO DO TRABALHADOR E O DIREITO AO TRABALHO DIGNO: limites ao poder diretivo do empregador frente às novas tecnologias, de Paulo Campanha Santana e Fabrício Segato Carneiro, que pretende verificar se as ferramentas eletrônicas e algorítmicas de monitoramento do trabalhador representam alguma ameaça de violação a garantias constitucionais mínimas inerentes à pessoa humana do trabalhador, com foco no direito fundamental ao trabalho digno.
Os capítulos que seguem, conectados com a linha direitos humanos na sociedade, abordam os direitos humanos, as políticas públicas, as questões de gênero e de segurança pública. Iniciando com o artigo do Dr. Paulo Renato, sobre A PLURIVERSALIDADE COMO PARADIGMA PARA (RE)PENSAR DIREITOS HUMANOS DESDE AS LUTAS SOCIAIS, que tem o propósito de apresentar algumas considerações em torno da possibilidade (e da necessidade) de se assumir um horizonte alternativo, fundado na pluriversalidade, reivindicando a politização dos direitos humanos em favor dos interesses das maiorias exploradas e oprimidas. Em seguida, apresentamos o texto envolvendo à violência doméstica contra as mulheres no Brasil e as políticas públicas de prevenção à violência e de proteção às vítimas, intitulado: ÓRFÃOS(ÃS) DOS FEMINICÍDIOS NO BRASIL: MAPEAMENTO DOS PROGRAMAS DE PROTEÇÃO E ACOLHIMENTO, da Ma. Bruna Karoline de Jesus Santos e Dra. Grasielle Borges Vieira de Carvalho, abordam sobre como a desigualdade de gênero gera violência e que o feminicídio é o ápice do ciclo da violência. E quando ocorre no âmbito familiar, grande parte das mulheres vítimas, deixam filhos/as que são órfãos da violência. Com isto, o objetivo do trabalho é dar visibilidade a esta problemática tão grave e pontuar a existência de possíveis programas de acolhimento e proteção para os/as órgãos/ãs dos feminicídios no Brasil. Seguindo com a temática violência de gênero, o artigo a seguir aborda: A VIOLÊNCIA DE GÊNERO NO TRABALHO RURAL: UMA ANÁLISE SOB A PERSPECTIVA DO EXERCÍCIO DA CIDADANIA, escrito pela Dra.Patrícia Tuma Martins Bertolin,Dra. Artenira da Silva e Silva e Ma.Gabryella Cardoso da Silva, buscam investigar a efetividade do exercício da cidadania pelas mulheres trabalhadoras rurais, sob a perspectiva da violência de gênero, que condiciona a liberdade e autonomia das mulheres, sobretudo às trabalhadoras rurais, invisibilizadas no campo e por meio da teoria feminista do direito. O próximo texto escrito pelas Dras. Denise Almeida de Andrade e Monica Sapucaia Machado, abordam sobre O FUNCIONAMENTO ININTERRUPTO DE DELEGACIAS ESPECIALIZADAS DE ATENDIMENTO À MULHER: QUANDO O ÓBVIO PRECISA VIRAR LEI, ao analisar a relevância da publicação da Lei n° 14.541, de 2023, à luz das conjecturas de que a LMP seria suficiente para que o atendimento da DEAM fosse contínuo, por meio da leitura de textos especializados, bem como da análise de dados. E finalizando a segunda seção, apresentamos o artigo escrito pelo Me.Raphael Dantas Menezes, Dr. Ronaldo Alves Marinho da Silva e Dra. Verônica Teixeira Marques sobre O USO DE CÂMERAS INDIVIDUAIS NA FARDA DOS AGENTES DE SEGURANÇA: UMA ALTERNATIVA NUDGE PARA A REDUÇÃO DE MORTES POR INTERVENÇÃO POLICIAL EM SERGIPE, que a partir da teoria da arquitetura de escolhas ou Nudge e levando em consideração o princípio da economia comportamental do direito, o artigo sugere a implementação de câmeras pessoais no uniforme dos operadores de segurança do estado, com o objetivo de diminuir a utilização de força excessiva pelos agentes, através da arquitetura da escolha mais desejável e que leva em consideração os vieses cognitivos da função policial.
O livro ainda dispõe de uma resenha feita pela egressa Daniela de Andrade Souza sobre sua Dissertação de mestrado intitulada: DIREITOS LGBT E OS DISCURSOS DOS TRIBUNAIS DE JUSTIÇA BRASILEIROS: POSSIBILIDADES A PARTIR DOS ESTUDOS TRANSVIADOS, a dissertação analisada buscou, ao mobilizar as ferramentas foucaultianas e baseando-se nas prerrogativas dos estudos transviados, analisar o discurso jurídico das decisões de tribunais de justiça do país sobre uniões homossexuais e retificação de registro civil de pessoas trans entre 2011 e 2018, de modo a verificar de que forma as categorias de homossexualidade e transexualidade apareceram nesse discurso.
Avaliados em sua organização, os textos que compõem o livro formam o que Gabriela Maia Rebouças sugere ser uma agenda de possibilidades para as pesquisas em acesso à justiça, não apenas como achados de um programa bem sucedido que se consolidou ao longo de dez anos.
Mas o que ela acaba por asseverar ao final de sua Introdução: uma primeira possibilidade, ou caminho, dispor de um acervo apto a ser avaliado qualitativamente. E uma outra possibilidade, esta como abertura para trabalhos futuros, a de “problematizar uma possível precarização da prestação jurisdicional, com investimentos, sobretudo em pessoal, insuficientes, chamando a atuar atores em formação, atores em transição, quase nunca através dos próprios magistrados”. E, ainda que haja “muita resistência política a essas práticas quando comparadas com processo judicial ordinário, tido como padrão”, enseja-se também, “uma compreensão de que as causas de menor valor, portanto, menos importantes, como fica evidente na lógica neoliberal, não precisam receber os mesmos investimentos, nem ocupar o tempo caro do magistrado”.
De todo modo, mesmo com a preocupação de que se poderia estar “ampliando o acesso à justiça através de uma prestação barateada, mas igualmente precarizada” ou mesmo contribuindo para “a criação de uma justiça de classes”, o conjunto de estudos podem contribuir para assentar tomadas de posição a partir dos temas que balizam esses estudos. Em suma, ela conclui:
Há também uma preocupação com a multiplicação de práticas e mecanismos de resolução que a adoção de uma justiça multiportas pode sugerir. Aqui, em especial, identificamos como problemática a adoção de práticas como as da constelação familiar nos tribunais. Na perspectiva de ampliação da esfera privada de resolução e conflitos, como estímulos e arenas de resolução fora dos tribunais, uma outra problemática que emerge, no campo teórico, é o de refletir sobre o contorno do próprio direito e da justiça, e a maneira como um e outra vão perdendo centralidade como instituições de regulação da sociedade. Quanto mais o direito é debatido numa arena particular (de resolução de conflitos concretos interpartes), menos ele serve como padrão de regulação social, porque deixa de cumprir a função de uma razão compartilhada na esfera pública. Em sociedades ainda tão desiguais como o Brasil, a possibilidade de uma justiça sem direito é um obstáculo ao acesso à justiça, e não o seu caminho.
Reencontro nessa perspectiva, os referenciais que já havia identificado em nosso diálogo sobre o tema, nos eventos e articulações que, com Gabriela Rebouças, derivavam de nossos programas de pesquisa (UNIT e UnB) e nossas preocupações compartilhadas.
Fiz anotações obre isso – https://estadodedireito.com.br/experiencias-compartilhadas-de-acesso-a-justica-reflexoes-teoricas-e-praticas/ – ao recensear parte de nossos apontamentos, por exemplo, em REBOUÇAS, Gabriela Maia; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; CARVALHO NETO, Ernani Rodrigues de (Organizadores). Experiências Compartilhadas de Acesso à Justiça: Reflexões teóricas e práticas. Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo, 2016, 281 p. Texto Eletrônico. Modelo de Acesso World Wide Web (gratuito). www.esserenelmondo.com.br; e REBOUÇAS, Gabriela Maia; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; ESTEVES, Juliana Teixeira (Organizadores). Políticas Públicas de Acesso à Justiça: Transições e Desafios. Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo, 2017, 177 p. E-Book (gratuito). www.esserenelmondo.com.br.
Nessas anotações, a recuperação do trabalho preparatório para chegar a essas coletâneas concretizado em Workshop realizado em Brasília, em maio de 2015, contando com participantes da UnB, UNIT e UFPE. Na ocasião, a temática desenvolvida, Pesquisa na Pós-Graduação em Direitos Humanos e Justiça na América Latina, contou ainda com valiosa contribuição do Programa de Pós-graduação em Direitos Humanos e Cidadania da Universidade de Brasília.
As experiências de pesquisa compartilhadas na ocasião, de observação de políticas públicas de acesso à justiça, sejam com viés teórico ou prático, sinalizaram para a importância de lutas por direitos, evidenciando a cultura de direitos humanos em consonância com uma prática democrática. Aos trabalhos produzidos pelos pesquisadores da rede, foram agregados também contribuições de convidados de outros programas nacionais, além de pesquisadores estrangeiros com afinidade à temática, permitindo ampliar a rede de reflexões para além das experiências do Brasil.
Desde então, ou seja, de 2015 para cá, ao passo que os estudos tomavam argumento e ganhavam a escrita, as garantias de um estado de direito e da democracia eram colocadas em xeque, na conjuntura de mudanças políticas e econômicas de alto impacto para os direitos humanos no Brasil. Mais do que nunca, era preciso dar vasão às reflexões e pesquisas que aqui apresentamos, organizadas em duas partes: (i) reflexões teóricas em acesso à justiça e (ii) experiências práticas em acesso à justiça.
Tenho me referido a essas perspectivas propugnando por uma concepção alargada de acesso à justiça (https://revistajuridica.presidencia.gov.br/index.php/saj/article/view/223), até como modo de realizar a promessa democrática da Constituição que era e é ainda o desafio de concretizar a promessa do acesso democrático à justiça e da efetivação de direitos por meio de estratégias de alargamento das vias para esse acesso e isso implica encontrar no direito a mediação realizadora das experiências de ampliação da juridicidade. Do que se cuida é de alcançar o reconhecimento de que tanto na observação das instituições de Estado, a exemplo do poder Judiciário e Conselhos de Justiça, quanto na análise dos espaços coletivos de realização da sociedade civil, através da cidade, da educação ou da ética, é preciso problematizar e qualificar o acesso à justiça encontram na contribuição de Ludmila Cerqueira Correia (UFPB), Antonio Escrivão Filho (UnB) em co-autoria comigo, uma reflexão fundamental acerca de A expansão semântica do acesso à justiça e o direito achado na assessoria jurídica popular (in Cescontexto, nº 19, outubro, 2017 Debates – www.ces.uc.pt/cescontexto). Neste caso, a aderência com a linha de pesquisa da UnB – Pluralismo jurídico e O Direito Achado na Rua, reforçam a dimensão concreta do direito, como produto de lutas, na correlação de forças que evidenciam compromisso político com os sujeitos coletivos organizados e movimentos sociais cujas atuações expressam práticas instituintes de direitos, reforçando a combinação de instrumentais pedagógicos, políticos e comunicacionais com a dimensão jurídica.
Penso que esses pressupostos foram incluídos no balanço de 30 anos do projeto O Direito Achado na Rua, no qual o acesso à justiça se imanta na dinâmica dos direitos humanos. Basta ver a publicação que decorre desse evento – https://estadodedireito.com.br/o-direito-achado-na-rua-volume-10-introducao-critica-ao-direito-como-liberdade/ e nela a Seção VI – Expansão judicial, direitos humanos e acesso à justiça no Brasil: reflexões em meio aos 30 Anos de O Direito Achado na Rua. Anoto, entre as contribuições que ajudaram a adensar o projeto, exatamente a de Gabriela Maia Rebouças: Acesso à Justiça e Neoliberalismo. O direito a se achar na rua.
São miradas que focam a perspectiva de solidariedade aos vulnerabilizados do social, ao limite do aporofóbico como se pode constatar no estudo de Gustavo de Assis Souza -https://estadodedireito.com.br/o-acesso-a-justica-para-a-populacao-em-situacao-de-rua/. Nele, o acesso à justiça para a população em situação de rua: perspectivas frente às práticas autoritárias aporofóbicas e a atuação da Defensoria Pública, quer se imbricar com o princípio da dignidade humana, e avaliar como esse princípio tem sido violado atualmente, por meio das práticas autoritárias aporofóbicas que são gestadas em detrimento aos pobres.
Por isso que a preocupação também se volta para a expansão judicial da política e questiona a aptidão mediadora do institucional para abrir sendas de reconhecimento das lutas e demandas de dignidade.
Esse o tema desenvolvido por Antonio Escrivão Filho -https://estadodedireito.com.br/porteiro-ou-guardiao-o-supremo-tribunal-federal-em-face-aos-direitos-humanos/ – Porteiro ou Guardião? O Supremo Tribunal Federal em Face aos Direitos Humanos. Antonio Escrivão Filho. São Paulo: Friedrich-Ebert-Stiftung (FES) Brasil/Articulação Justiça e Direitos Humanos (JusDh), maio de 2018.
Numa linha de interpelação que localiza o trabalho do autor, desde a sua tese, encontra-se o lastro de onde recolhe os pressupostos teóricos para a análise que oferece (cf. Repositório de Teses da UnB – Mobilização social do direito e expansão política da justiça: análise do encontro entre movimento camponês e função judicial. 2017. 315 f., il. Tese (Doutorado em Direito)—Universidade de Brasília, Brasília, 2017). Com efeito, na tese Escrivão Filho oferece o resultado de uma pesquisa que tem por objeto o fenômeno de encontro entre o movimento social e a função judicial no Brasil, analisando a experiência do movimento camponês a partir da década de 1980, com foco empírico (primário e secundário) e bibliográfico nos conflitos fundiários e no MST, observando a sua capacidade de reivindicação e mobilização constitutiva (criação) e instituinte (efetivação) de direitos.
É pois, neste cenário, segundo o resumo do trabalho, observa-se um fenômeno de expansão política da sociedade brasileira, e com ela uma dialética de expansão política do direito, no bojo da ativação social dos direitos fundamentais. De modo complementar, neste período observa-se ainda a densificação das funções de controle judicial sobre a sociedade e os entes estatais, o que, por via de consequência, proporciona uma potencial transferência da deliberação de assuntos de elevada intensidade política para a arena judicial – como a relação ‘Estado-sociedade’ inscrita nos direitos fundamentais- culminando, enfim, no fenômeno identificado pela noção de expansão política da justiça. Identifica-se, assim, que a análise da mobilização social do direito realizada pelo movimento camponês, e o respectivo padrão de enfrentamento judicial com proprietários, tanto pode ser melhor analisada sob o enfoque da expansão política da justiça, como fornece elementos para a própria compreensão do fenômeno da expansão judicial no Brasil, a partir do regime de enunciado democrático.
Esse é o mesmo cenário, embora alargado em alcance histórico e político, no qual Escrivão, aqui denominando contexto, instala sua análise sobre o Supremo Tribunal Federal em face dos direitos humanos. Trata-se, diz ele (pp. 5-6) de reconhecer a política como o campo constitutivo (de criação) e instituinte (de efetivação) de direitos, a partir do que antigos e novos movimentos sociais, urbanos e rurais, comunitários e eclesiais, locais e nacionais, de Gênero e étnico-raciais entram em cena, primeiro deslocando o lócus da ação política dos espaços institucionais para achá-la na rua, espaço público por excelência, depois, ocupando também os espaços institucionais para então disputar a participação no próprio processo constituinte de 1987-88. Assim que, se não parece Possível afirmar a existência de um regime democrático sem direitos fundamentalmente referidos à cidadania – ou seja, às garantias de dignidade, bem estar social e participação ativa na vida política da sociedade – não soaria lógico conceber um regime de direitos sem identificar que, por detrás da sua conquista, traduzida em reconhecimento jurídico-institucional, estão os sujeitos que irromperam a história, superando violências, exploração e opressões cotidianas para, a cada novo momento, a cada nova emergência em luta social, afirmar novos direitos.
Penso que além desse enlace entre direitos humanos e acesso à justiça se dá uma exigência de educação emancipatória, enquanto pedagogia da cidadania. É disso que cuida, no livro tema deste Lido para Você, o artigo que elaborei em co-autoria com a professora Nair Heloisa Bicalho de Sousa (Rede Brasileira de Educação para os Direitos Humanos): ACESSO À JUSTIÇA, EXTENSÃO E EDUCAÇÃO PARA OS DIREITOS HUMANOS, por meio do qual refletimos “sobre a perspectiva de educação libertadora pela mediação dos direitos humanos, compreendendo o tema do acesso à justiça como uma experiência pedagógica originada da extensão universitária”.
De minha parte remonto aos termos do debate que propus com Escrivão Filho –https://estadodedireito.com.br/para-um-debate-teorico-conceitual-e-politico-sobre-os-direitos-humanos/ (Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016). Com efeito, nessa obra, partimos do debate conceitual dos direitos humanos, para esboçar o panorama do cenário internacional e de sua emergência histórica, no mundo e no Brasil. Para, desse modo, articular o seu percurso no contexto da conquista da democracia, assim designada enquanto protagonismo de movimentos sociais, ao mesmo tempo sujeitos de afirmação e de aquisição dos direitos humanos. Em relevo, pois, a historicidade latino-americana para acentuar a singularidade da questão pós-colonial forte na caracterização de um modo de desenvolvimento que abra ensejo para um constitucionalismo “Achado na Rua”. Problematiza-se, em conseqüência, os modos de conhecer e de realizar os direitos humanos, em razão das lutas para o seu reconhecimento, a partir das quais se constituem como núcleo da expansão política da justiça e condição de legitimação das formas de articulação do poder e de distribuição equitativa dos bens e valores socialmente produzidos. Aliás, Antonio Escrivão Filho, em co-autoria com Verônica Fonseca de Resende, está presente no livro com o artigo intitulado: UMA LEITURA DA REFORMA TRABALHISTA A PARTIR DA PIR MIDE DE LITÍGIOS, cujo descritor consta da Apresentação já transcrita nessa parte.
Em suma, compreender os direitos humanos dentro de “um programa que dá conteúdo ao protagonismo humanista, conquanto orienta projetos de vida e percursos emancipatórios que levam à formulação de projetos de sociedade para instaurar espaços recriados pelas lutas sociais pela dignidade” e que represente uma concepção alargada de acesso à justiça.
Conflitos no campo Brasil 2023 / Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
Conflitos no campo Brasil 2023 / Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno. – Goiânia : CPT Nacional, 2024. 214 p.: il., tabelas, gráficos, fotografias.
Saiu a edição 2023 de um dos mais completos estudos sobre o tema dos conflitos do campo no Brasil. Ao fazer a recensão do relatório de 2022, tive a oportunidade de indicar o escopo, método e procedimento de elaboração – compartilhamento dos dados por uma forte rede de intercomunicação, conforme https://estadodedireito.com.br/comissao-pastoral-da-terra-conflitos-no-campo-brasil-2022/ (Comissão Pastoral da Terra. Conflitos no Campo Brasil 2022. Centro de Documentação Dom Tomás Balduino (Cedoc-CPT). Goiânia: CPT Nacional, 2023, 254 p.).
A propósito, sintetizei:
Conflitos no Campo Brasil 2022 vem se juntar a outros estudos importantes sobre a violência nessa que é a mais crítica faixa de agressividade da expansão capitalista e da ganância acumuladora no mundo e em nosso país. Há poucos meses, também na UnB, tivemos o lançamento de relatório semelhante, do CIMI – Conselho Indigenista Missionário, sobre violência contra os povos indígenas. A propósito, meu artigo na coluna O Direito Achado na Rua do Jornal Brasil Popular: https://www.brasilpopular.com/as-chamas-do-odio-e-a-continuidade-da-devastacao-relatorio-do-cimi-sobre-violencia-contra-os-povos-indigenas/. O Relatório pode ser consultado e copiado na página do CIMI (https://cimi.org.br/2022/08/relatorioviolencia2021/), violência contra os povos indígenas e seus territórios e sobre os conflitos no campo. Mas também quando uma virada democrática acontece no Brasil, com a volta de uma governança de base popular, participativa e radicalmente democrática que se abre à elaboração de políticas sociais e públicas que podem se valer desses estudos para orientar essas políticas.
O Relatório de 2023, lançado nesta segunda-feira, na CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, tem a seguinte composição:
Apresentação
Metodologia
Organograma dos temas publicados
Tabela 1 – Comparação dos Conflitos no Campo Brasil (2014 – 2023)
Infográfico 1 Ruptura política e contrarreforma agrária: geografia dos conflitos no campo brasileiro
Paulo Alentejano, Luiz Jardim Wanderley, Karoline Santoro, Pedro Catanzaro da Rocha Leão, Amanda Guarniere Ribeiro, Vinícius Martins
Tabela 2 – Conflitos no Campo
Conflitos por terra e concentração de renda
Tales dos Santos Pinto
Tabela 3 – Violência Contra a Ocupação e a Posse
O mercado de carbono e os impactos
negativos sobre as comunidades do campo
Carlos Augusto Pantoja Ramos
Tabela 4 – Conflitos por Terra
Povos e comunidades do campo: entre as águas que fluem para a Vida e as águas capturadas e contaminadas
Raquel Maria Rigotto e Aline do Monte Gurgel
Tabela 5 – Conflitos pela Água
Infográfico 2
CONFLITOS NO CAMPO, TERRA, ÁGUA
Infográfico 3
As cadeias produtivas do trabalho escravo em 2023
André Campos e Carlos J. Barros
Tabela 6 – Conflitos Trabalhistas
O paradoxo da (geo)grafia da violência e da r-existência no campo brasileiro: o caso da mãe Bernadete
Rafaela Pinheiro de Almeida Neves
Tabela 7 – Violência Contra a Pessoa
Mercantilização da natureza, espiritualidades e práticas de enfrentamento
Flávio Lazzarin
Tabela 8 – Assassinatos
Tabela 9 – Tentativas de Assassinato
Tabela 10 – Ameaças de Morte
Manifestações: as ações de resistência ao Marco Temporal e o avanço das ações de retomada e das teias de organizações dos territórios indígenas e tradicionais
Kum’tum Gamela
Tabela 11 – Manifestações
Notas
Listagem de Movimentos Sociais (2023)
Fontes de Pesquisa
Como nos anos anteriores, a divulgação do Relatório (na verdade um consistentes estudo muito autoral), foi recebida com grande interesse pelos meios críticos de comunicação. A mídia Ninja, assim se reportou ao evento:
O relatório da CPT também ressalta a crescente preocupação com os conflitos relacionados ao acesso à água, onde fazendeiros, governos estaduais, empresários, hidrelétricas e mineradoras são apontados como principais agentes de violência
O ano de 2023 registrou um recorde de conflitos no campo no Brasil, conforme revelado pelo mais recente relatório anual da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Divulgado nesta segunda-feira (22) em Brasília, o relatório destaca que o país enfrentou 2.203 conflitos no campo, afetando a vida de 950.847 pessoas.
Embora os números tenham aumentado em comparação com o ano anterior, a área em disputa diminuiu em 26,8%, agora totalizando cerca de 59,4 mil hectares. As regiões mais impactadas foram o Norte e o Nordeste, concentrando 810 e 665 ocorrências, respectivamente, seguidas pelo Centro-Oeste (353), Sudeste (207) e Sul (168).
A terra permaneceu como o principal ponto de disputa, com 1.724 disputas registradas em 2023, representando 78,2% do total de conflitos. Outros focos de tensão incluem disputas por água (225 ocorrências) e trabalho escravo contemporâneo na zona rural (251 ocorrências).
A violência contra a ocupação e a posse de terra se destacou, com 1.588 conflitos relatados, dos quais a invasão de territórios e a pistolagem foram os tipos mais prevalentes. Este último registrou um aumento de 45% em comparação com 2022, afetando principalmente trabalhadores sem terra, posseiros, indígenas e quilombolas.
O relatório também ressalta a crescente preocupação com os conflitos relacionados ao acesso à água, onde fazendeiros, governos estaduais, empresários, hidrelétricas e mineradoras são apontados como principais agentes de violência.
Ronilson Costa, coordenador nacional da CPT, expressou preocupação com a ascensão da extrema-direita e a falta de mediação estatal nos conflitos, destacando que o agronegócio tem gerado desequilíbrio ambiental e social.
O governo federal anunciou medidas para abordar os desafios, incluindo a compra de propriedades para reforma agrária pelo programa Terra da Gente, visando uma reforma agrária menos conflituosa. O Ministério dos Povos Indígenas também ressaltou esforços para acelerar demarcações de terras indígenas.
Apesar disso, críticas ao governo persistem, com chamados para uma ação mais efetiva na proteção dos direitos das comunidades tradicionais e dos povos originários.
*Com informações da Agência Brasil
Na sua página, o Instituto Humanitas, da Unisinos (Universidade do Rio dos Sinos), fez como é seu modelo de reunião de notícias, um excelente resumo do teor da publicação, colando no texto o seu exercício de pesquisa de temas correlatos, que podem ser consultados para complementar e aprofundar o conhecimento da matéria.
Trago o texto do IHU (https://www.ihu.unisinos.br/638784-o-brasil-registra-numero-recorde-de-conflitos-no-campo-em-2023-conforme-relatorio-da-comissao-pastoral-da-terra):
O Brasil registra número recorde de conflitos no campo em 2023, conforme relatório da Comissão Pastoral da Terra
Ao som de um lamento, ao ritmo grave e cadenciado do atabaque, três membros da Comissão Pastoral da Terra (CPT) cantaram: “Chega Mãe Bernadete, chega Edvaldo, chega Fernando, chega por aqui, eu mandei tocar chamada, foi para resistir”. Esse momento marcou o início do lançamento do Caderno Conflitos no Campo 2023, realizado na sede da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) em Brasília–DF, em 22 de abril de 2024.
Maria Bernadete Pacífico foi tragicamente assassinada em agosto de 2023 com 12 tiros no quilombo Pitanga dos Palmares, na região Metropolitana de Salvador. Por defender a mesma causa, o direito ao território, Edvaldo Pereira Rocha, líder do quilombo Jacarezinho (MA), foi assassinado em abril de 2022 com seis tiros.
Em outra situação, mas no mesmo contexto, Fernando Araújo dos Santos, um trabalhador rural sem-terra e sobrevivente do Massacre de Pau D’Arco no Pará, foi morto a tiros em janeiro de 2021. Mãe Bernadete, Edvaldo e Fernando não são exceções isoladas; no Brasil, há pessoas sendo mortas ao tentar proteger seus territórios e o meio ambiente de forças predatórias.
Sinais de esperança
O bispo auxiliar de Brasília (DF) e secretário-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), dom Ricardo Hoepers, deu as boas-vindas aos participantes e enfatizou que as dores, sofrimentos e mortes mencionadas no relatório representam as dores de Jesus Cristo. Ele destacou que a presença das pessoas que representam os agentes da CPT de todo o Brasil são sinais de esperança e ressurreição de Cristo. Em nome dos bispos do Brasil, dom Ricardo expressou sua gratidão pelo trabalho realizado pela CPT.
O administrador da prelazia de Itacoatiara (AM) e presidente da CPT, dom José Ionilton Lisboa de Oliveira, SDV, enfatizou a importância da publicação do caderno para expor as violações de forma transparente. “O objetivo deste caderno é manter-se fiel ao Deus dos pobres e à terra que pertence a eles”, disse.
Ele ressaltou que publicação possui uma base teológica, lembrando que Deus escuta o clamor dos pobres. Dom Ionilton destacou também a dimensão ética do material, pois a luta pela terra é uma questão de justiça que requer uma ordem social equitativa. Salientou a necessidade de uma sociedade organizada para combater a violência no campo e salvar vidas. Além disso, mencionou a importância política do caderno, auxiliando as lideranças a serem protagonistas de suas histórias com base em dados seguros e recordou que a CPT tem como missão ser parceira, não substituta, dos trabalhadores em suas lutas.
Outra dimensão do caderno, segundo o bispo, é a pedagógica porque promove transformações necessárias e históricas, mantendo vivas as lutas passadas e inspirando as futuras gerações. Por fim, destacou que o conteúdo possui embasamento científico, passando por processos rigorosos de levantamento e consolidação de dados antes da publicação, incluindo averiguações, confirmações e análises.
Dos conflitos no Brasil
Dos 2.203 conflitos no campo registrados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) em 2023, no relatório Conflitos no Campo Brasil, a maior parte é relacionada aos conflitos por terra (78,2%), representando 1.724 ocorrências. Em relação ao ano de 2022, houve um aumento de 7,6% no número de ocorrências nesse eixo, em que 187.307 famílias tiveram suas vidas impactadas pelas violências desse tipo de conflito.
Os números revelam uma intensificação da violência contra os povos da terra, das águas e das florestas, que vivem sob a mira dos conflitos no campo no Brasil. Do total de conflitos por terra em 2023, 92,1% é referente às Violências contra a Ocupação e a Posse e/ou contra a Pessoa (1.588), representando um aumento de 4,3% nos registros de violência nesse eixo em relação ao ano anterior.
Subvertendo tamanha violência, os povos e comunidades do campo somam ações coletivas de resistências. As novas Ocupações/Retomadas (119) e os novos Acampamentos (17) superaram em 60,8% e 240%, respectivamente, os números de 2022. As ações de Retomada foram protagonizadas por indígenas (22) e quilombolas (3), já as Ocupações (94) foram realizadas pelas demais identidades sociais camponesas. Os sem terra e posseiros foram responsáveis por todos os novos Acampamentos em 2023, que representam um aumento expressivo em relação ao ano anterior, mas ainda demonstram números tímidos em relação aos dados alarmantes de violências contra as comunidades, que cresceram intensamente neste mesmo período.
Em 2023, a discrepância entre os números de violência e ações de resistências nos conflitos por terra continuou na tendência de crescimento iniciada em 2016. Este ano, os registros apontam 92,1% correspondente às violências, enquanto as ações de resistências representam apenas 7,9% das ocorrências. As análises presentes no relatório apontam que esse quadro é resultado da escalada da extrema direita, com a reconfiguração das forças políticas e econômicas após o Golpe/Impeachment, somada ao trágico e criminoso governo Bolsonaro, que promoveu uma verdadeira política de ódio contra os povos e comunidades do campo, das águas e das florestas, os tornando ainda mais vulnerabilizados, como expresso nos dados dos últimos anos.
Este contexto sociopolítico não apenas permitiu, como preparou o terreno para que o agronegócio avançasse inescrupulosamente contra as comunidades do campo, que enfrentam cotidianamente invasões de suas terras e territórios, pistolagem, incêndios criminosos, contaminação por agrotóxicos, grilagem e desmatamento, entre tantos impactos sofridos pelos povos em defesa de seus modos de vida, dos direitos humanos e da natureza. Agrupando as categorias de agentes causadores de violências identificados como fazendeiros, grileiros e grandes arrendatários, em 2023, foram registradas ocorrências de pistolagem (165), invasão (181), grilagem (86), desmatamento ilegal (67), incêndios (34) e contaminação por agrotóxicos (21) como algumas das violências promovidas por eles no Eixo Terra.
Geografia dos conflitos por terra
Dos estados em que mais se registraram conflitos por terra, destacam-se a Bahia (202 ocorrências), seguida do Pará (183), Maranhão (171), Rondônia (162) e Goiás (140). Do recorte por região, a que apresenta maiores números de conflitos por terra é a região Norte (700 ocorrências), que acumula 40,6% do total, seguida da Nordeste (530), representando 30,7%. A região Centro-Oeste registrou 300 ocorrências (17,4%), a Sudeste obteve 106 registros (6,1%), e a região Sul, com 88 (5,1%).
Principais causadores das violências
Em 2023, o principal agente causador das violências no Eixo Terra foi o Fazendeiro, responsável por 31,17% das violências, seguido da categoria Empresário, com 19,71%, o Governo Federal, com 11,02%, Grileiro, com 9,06% e o Governo Estadual, com 8,31%. Houve uma diminuição nos números de violências causadas pelo Governo Federal, passando de 240, em 2022, para 175 ocorrências, em 2023, uma diminuição de 27,1%.
Nesse, o tipo de Violência contra a Ocupação e a Posse denominada Omissão/Conivência cujo o Governo Federal foi o agente causador diminuiu de 214 ocorrências, em 2022, para 165, em 2023 (-22,9%). Algumas mudanças de atuação do novo governo podem justificar a diminuição desses números, com a abertura de canais de diálogos com movimentos e organizações de luta no campo, como a criação do Ministério dos Povos Indígenas e do Departamento de Mediação e Conciliação de Conflitos Agrários do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA).
Já em relação aos Governos Estaduais, os dados revelam um aumento de 109,5% no número de violências causadas, passando de 63 ocorrências, em 2022, para 132, em 2023. Foram 13 tipos de violência protagonizados por este agente causador, com destaque para Omissão/Conivência (58 ocorrências) e as ações policiais de intimidação armada e ameaças variadas (103 ocorrências). Em 2023, os estados de Goiás e Bahia estiveram à frente neste recorte de categoria que causou a ação.
Indígenas e posseiros são as principais vítimas
É sempre válido enfatizar que os dados não são apenas números, é preciso humanizá-los. Os registros da CPT evidenciam a intensidade e os tipos de violência a que estão submetidos os povos do campo, das águas e das florestas. Por trás dos números dos conflitos está o martírio de famílias, povos e comunidades que vivem uma rotina de ataques contra suas vidas e suas terras e territórios. Povos que sofrem com ameaças, expulsão, destruição de suas casas, pertences e roçados, despejos e outras diversas violências já mencionadas.
Como no ano anterior, os Indígenas continuam a ser a categoria que mais sofreu violência no Eixo Terra, com 29,6% do total de violências registradas. Desde 2019, os povos originários aparecem nos registros da CPT como a categoria que mais vem sofrendo violências nesse eixo. Em 2023, não foi diferente: com um crescimento de 10,8% em relação a 2022, os indígenas foram as vítimas em 470 ocorrências de violências por terra.
Em número de ocorrências, seguem os Posseiros (18,7%), os Sem Terra (17,5%), os Quilombolas (15,1%), e os Assentados (6,7%). O relatório destaca um aumento de 61,6% das violências sofridas pelos sem terra, passando de 172 ocorrências em 2022, para 278 em 2023. Esse aumento pode ser decorrente do crescimento do número de novas ocupações e acampamentos, uma vez que nos territórios em que houve estas ações de resistências foram registradas, em 2023, 96 ocorrências de Violência contra a Ocupação e a Posse, 34,5% do total das violências sofridas pelos sem terra.
A rotina de ataques contra povos e comunidades
Os dados levantados pelo Centro de Documentação Dom Tomás Balduino (Cedoc-CPT) permitem aprofundar nos tipos de violência sofridas pelas comunidades no contexto da luta pela terra. Como nos últimos dez anos, Invasão é o tipo de Violência contra a Ocupação e a Posse com o maior número de registros em 2023. Foram 359 ocorrências de invasões no ano, que afetaram 74.858 famílias.
O ano de 2023 também foi o que mais se registrou ocorrências de Expulsão no último decênio e o segundo em que mais se registrou famílias expulsas dos territórios. Foram 37 ocorrências, que envolveram 2.163 famílias. Destaca-se que, dessas 37 ocorrências, 59,4%, contaram com algum tipo de apoio das forças policiais, evidenciando a respaldo dessas forças no processo de retirada das famílias das áreas, sem que houvesse a mediação do Poder Judiciário.
Outro tipo de violência que se destacou foi em relação às ocorrências de Despejo Judicial, com aumento de 194,1%, passando de 17, em 2022, para 50 em 2023. O crescimento sucede um período de diminuição dos casos, devido a suspensão dos despejos coletivos, proposto na Arguição de Descumprimento de Poder Fundamental (ADPF) 828, entre meados de 2020 e final de 2022, com o intuito de evitar os impactos maiores da pandemia junto às populações vulneráveis. Passado esse período, percebe-se que a atuação de fazendeiros e empresários do campo segue respaldada pelo Poder Judiciário, voltando fortalecida em 2023.
Em relação às ocorrências de Grilagem, em 2023 foram registrados 152 casos, envolvendo 29.797 pessoas. Desses, 25% ocorreram em territórios indígenas (38 ocorrências), e 26,3% ocorreram em terras de famílias posseiras. Os casos de Pistolagem registraram um aumento de 45%, com 264 ocorrências. Dessas, 113 contaram com algum apoio das forças policiais. Os sem terra foram os principais alvos das ações de Pistolagem, representando 130 ocorrências, seguidos pelos posseiros (49), indígenas (47) e quilombolas (19). Os números de Desmatamento Ilegal e Incêndios caíram em 2023, com redução de 33,3% e 38,6%, respectivamente. Foram registradas 27 ocorrências de contaminação por agrotóxicos no Eixo Terra, com 2.068 famílias atingidas no ano.
Conflitos pela Água representam 10,21% dos conflitos
Nos últimos anos, verifica-se uma queda nas ocorrências de Conflitos pela Água, após um pico de registro em 2019, o que demonstra os impactos dos crimes de Mariana, Brumadinho e do vazamento de petróleo de um navio cargueiro no litoral brasileiro naquele ano. Em 2023, as ocorrências de conflitos no Eixo Água chegaram a 225, número 1,32% menor que os 228 registrados em 2022.
A região Nordeste concentra o maior número de Conflitos pela Água, com 71 ocorrências. Entre os estados com mais registros, estão o Paraná (44), a Bahia (34), o Maranhão (22) e o Pará (22). Dentre os causadores das violências contra as comunidades nesse eixo, o Fazendeiro ficou em primeiro lugar, com 27,56%, seguido por Empresário nacional e internacional, com 21,33%, do Governo Estadual, com 19,56%, e Mineradora nacional e internacional, com 10,22%. As cinco categorias de identidades sociais que mais sofreram com ações violentas foram os Indígenas (24,44%), Pescadores (21,78%), Ribeirinhos (13,33%), Quilombolas (12,44%) e Assentados (8,44%).
A principal Situação de Conflito pela Água registrada em 2023 foi o Não Cumprimento de Procedimentos Legais (78 ocorrências), decorrente da violação de direitos das comunidades, que são atacados por inúmeras formas de projetos de empreendimentos que têm a água como objetivo central de atuação. Em seguida, as situações de Destruição e/ou Poluição (56), sendo a maioria decorrente do Uso e Preservação (46 ocorrências).
Os registros de Diminuição de Acesso à Água somaram 37 ocorrências em 2023, que representam as várias dificuldades criadas às comunidades para acessarem os corpos d’água. A Contaminação por Agrotóxico resultou em 26 ocorrências de conflitos pela água, um aumento de 52,9% em relação aos números de 2022. Os conflitos pela água são permeados por denúncias por parte de povos, comunidades e organizações sociais aos projetos de empreendimentos predatórios, uma vez que atuam por meio da apropriação, contaminação, privatização e mercantilização desse bem comum.
Observe-se que a bela reportagem, de Osnilda Lima (com informações da Comissão Pastoral da Terra), publicada por CNBB, 23-04-2024, começa com a referência da mística, preparada a partir do lamento que foi o modo sensível de apresentar o documento.
E deriva da abertura editorial do trabalho, “Por que cantamos?”, tal como perguntava Mário Benedetti, em um poema eivado de sofrimento e desesperança, no qual o canto não teria lugar diante dos sofrimentos da vida. Mas Benedetti também respondia com a esperança e com a força que o canto traz para as lutas, para os homens e mulheres militantes desta vida, que pretendem construir um mundo melhor.
Por isso dizem os editores, na edição do relatório Conflitos no Campo Brasil 2023, “queremos presentear os leitores e as leitoras com a imagem da capa, que é a representação das (Re)existências populares. Ela retrata o tambor de crioula para os povos, com os corpos, cores, movimentos e sorrisos, e ao ler as análises presentes nesta publicação, os convidamos a compreender ao modo de Benedetti, porque dançamos”.
E eles afirmam: “Perguntam por que dançamos diante de 2.203 ocorrências de conflitos no campo. Dessas, a maioria sendo caracterizada pela violência dirigida às diversas comunidades da terra, das águas e das florestas. Os conflitos no campo atravessam a história do Brasil, mas, após o golpe contra o governo de Dilma Rousseff, em 2016, a situação no campo se agravou em conflitividade, com números acima das 1.500 ocorrências anuais, entre 2016 e 2018, e chegando a mais de 1.900 por ano entre 2019 e 2022. As ocorrências registradas em 2023 — o maior número da série histórica da Comissão Pastoral da Terra — apresentam uma taxa 8% superior às ocorrências documentadas em 2022, sendo que, nos últimos 10 anos, a violência no campo cresceu 60% em intensidade. A maior parte dos conflitos, em 2023, ocorreu na região Norte, representando 35% das ocorrências, e na região Nordeste, 32%. O Maranhão — território de origem do tambor de crioula — é o segundo estado com maior registro de conflitos entre 2014 e 2023, com 1.926 ocorrências, atrás apenas do Pará, com 1.999 ocorrências no mesmo recorte temporal”.
E, tal como assina o Conselho Editorial | Março de 2024:
Dançamos descalços, sobre a terra nua, e em comunhão com os que estão em volta, pois a riqueza que queremos acumular não deve ser restrita apenas a uma pequena elite que pretende controlar a imensidão do território brasileiro. Dançamos para que a riqueza seja repartida de modo igual. Dançamos para que os territórios sejam destinados de modo igual a todas e todos que neles trabalham e que deles necessitam para produzir e reproduzir sua vida. Dançamos e cantamos, pois é nossa forma de viver. Dançaremos e cantaremos no mesmo ritmo e movimento, pois é nossa forma de lutar.
Por isso também, faz todo sentido a Dedicatória lançada na publicação:
Primeiro ao MST:
Há 40 anos…
Nascia o MST (Movimento de Sem Terra), em contexto de ditadura civil-militar, na cidade de Cascavel, estado do Paraná. Movimento popular de luta que surgiu reivindicando a justa distribuição da terra, a reforma agrária e a transformação social, contra as cercas do latifúndio. À medida que caminhava e lutava percebeu que a democratização do acesso à terra precisava pautar também a disputa do modelo produtivo de agricultura, bem como uma uma reforma agrária que defende o meio ambiente, a educação, cultura, saúde e as práticas agroecológicas, por alimentos saudáveis e sem agrotóxicos, em contraposição ao modelo do agronegócio (antigo latifúndio), que transforma a terra/território em mercadorias e se sustenta por meio da exploração do trabalho e do controle político do mercado. Parabéns, MST! Pelos seus 40 anos de luta e resistência em defesa da reforma agrária e dos direitos de trabalhadores e trabalhadoras do campo (e da cidade).
Depois, num In memoriam a:
Carlos Walter Porto-Gonçalves (21/07/1949 – 06/09/2023). A profecia de Daniel diz: “Os homens esclarecidos brilharão como brilha o firmamento, e os que ensinam a muitos a justiça brilharão para sempre como estrelas” (Dn 12:3). Assim é o Carlos Walter, homem sensível e aberto ao diálogo e à escuta das comunidades e dos povos intencionalmente colocados à margem do Estado; homem que no decorrer da caminhada junto ao Centro de Documentação da CPT, aprendemos a chamar de amigo. A ele, a nossa gratidão e saudade eterna. Carlos Walter, presente!
E por fim, a Dona Maria Bernadete Pacífico, Mãe Bernadete (1951 – 17/08/2023):
Certa vez, a pensadora e ativista Ângela Davis disse que “quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”. Assim foi a vida de Mãe Bernadete: Movimento! Mãe de muitas e muitos, Ialorixá e liderança do Quilombo Pitanga dos Palmares, em Simões Filho (BA), mulher negra, “sambadeira”, defensora da cultura popular quilombola, passou a vida lutando pelos direitos do povo negro. Os 12 tiros que ceifaram a sua vida no dia 17 de agosto de 2023, dão um indicativo do quanto ela incomodou na movimentação pela defesa dos territórios quilombolas, por justiça e igualdade social. Mãe Bernadete, presente! Que a sua ancestralidade nos fortaleça na luta pelo direito à terra/território.
A Comissão Pastoral da Terra (CPT) lançou a 38ª edição da publicação Conflitos no Campo Brasil, apontando o balanço dos dados da violência ligada a questões agrárias no país ao longo de 2023. No primeiro ano de governo do terceiro mandato do presidente Lula, foram registrados os maiores números desde o início dos levantamentos, em 1985: ao total, foram 2.203 conflitos, contra 2.050 do ano anterior e 2.130 do ano de 2020, até então o ano com o primeiro lugar em conflitos.
A maioria dos conflitos registrados é pela terra (1.724, sendo também o maior número registrado pela CPT), seguidos de ocorrências de trabalho escravo rural (251) e conflitos pela água (225). Dentre os estados, o maior número foi registrado na Bahia, com 249, seguido do Pará (227), Maranhão (206), Rondônia (186) e Goiás (167). Dentre as regiões, a região Norte foi a que mais registrou conflitos (810), seguida da região Nordeste (665), Centro-Oeste (353), Sudeste (207), e por fim, a região Sul, com 168 ocorrências.
Os conflitos envolveram 950.847 pessoas, disputando 59.442.784 hectares em todo o Brasil. O número de pessoas envolvidas é 2,8% maior em relação às 923.556 pessoas envolvidas em conflitos no campo em 2022, mas a área em disputa é 26,8% menor, tendo sido 81.243.217 hectares disputados no mesmo período de comparação.
Conflitos pela Terra – Das 1.724 ocorrências registradas neste tipo de conflito, 1.588 são referentes às violências contra a ocupação e a posse e/ou contra a pessoa. No primeiro tipo de violência, se destacam as ocorrências crescentes de invasão, em que foram registradas 359 ocorrências em 2023, afetando 74.858 famílias, contra 349 casos em 2022. Também cresceram os registros de expulsão (37 ocorrências e 2.163 famílias em 2023, contra as 23 ocorrências e 596 famílias, em 2022), transformando este no segundo ano em que mais se registrou famílias expulsas dos territórios, ficando atrás apenas do ano de 2016. Também aumentaram consideravelmente as ameaças de despejo judicial (de 138 para 183) e o despejo judicial concretizado (de 17 para 50).
A pistolagem foi o segundo tipo de violência contra a ocupação e a posse que mais teve registros de ocorrência em 2023 (264), um crescimento de 45% em relação ao ano de 2022, sendo o maior número registrado pela CPT nas ocorrências deste tipo de violência contra a coletividade das famílias — um total de 36.200 famílias atingidas. Os sem-terra foram os principais alvos destas ações, com o registro de 130 ocorrências, seguidos por posseiros (49), indígenas (47) e quilombolas (19). Destruição de pertences (101), casas (73) e roçados (66) também foram ações violentas contra a permanência dos povos em seus territórios.
Trabalho Escravo Rural – Em 2023, foram registrados 251 casos de trabalhadores e trabalhadoras em situação de escravidão no meio rural, com 2.663 pessoas resgatadas desta condição, sendo estes os maiores números dos últimos 10 anos. Os destaques de resgates foram para os estados de Goiás (699), Minas Gerais (472), Rio Grande do Sul (323), além de São Paulo, com 243 pessoas resgatadas. Os tipos de atividades que mais tiveram trabalhadores libertos em 2023 foram a cana de açúcar, com 618 trabalhadores; as lavouras permanentes, com 598; as lavouras temporárias, com 477; e, outros tipos de atividades rurais, com 273. Os números poderiam ser ainda maiores, se houvesse uma política mais estruturada de fiscalização e combate ao trabalho escravo especialmente nas regiões Norte e Nordeste.
Conflitos pela Água – Houve estabilidade nos registros (225, contra 228 no ano anterior), mas os dados ainda são altos em relação ao início dos 10 últimos anos, tendo a frente o não cumprimento de procedimentos legais por parte do poder público e empresas privadas (78), seguido da destruição e/ou poluição (56), diminuição e impedimento no acesso à água (48) e contaminação por agrotóxico (26). Fazendeiros, governos estaduais, empresários, hidrelétricas e mineradoras continuam sendo os agentes causadores destes conflitos, que vitimam principalmente indígenas (24,4%), pescadores (21,8%), ribeirinhos (13,3%), quilombolas (12,4%) e assentados (8,4%).
Violência contra a Pessoa – Foram 554 ocorrências que atingiram 1.467 pessoas, incluindo 31 assassinatos, uma diminuição de quase 34% em relação ao ano anterior, quando foram mortas 47 pessoas no campo. A maior proporção de vítimas foi do estado de Rondônia (com 5 mortes), seguido do Amazonas, Bahia, Maranhão e Roraima, com 4 vítimas cada. Foram tiradas as vidas de 14 indígenas e 9 sem-terra, sendo estas as populações que mais sofrem deste tipo de violência extrema, seguidos de posseiros (4) e quilombolas (3). Ao longo dos últimos dez anos, trabalhadores sem-terra continuam sendo as maiores vítimas (151), seguidos de indígenas (90), de um total de 420 pessoas assassinadas na luta pela terra. Das vítimas fatais da violência, 7 eram mulheres. O tipo de violência com mais vítimas foi a contaminação por agrotóxico, com 336 pessoas vitimadas, seguida das ameaças de morte (218), intimidação (194), criminalização (160), detenção (135), agressão (115), prisão (90) e cárcere privado (72), todos crescentes em relação a 2022.
Principais Causadores da Violência – Os principais agentes causadores das violências no Eixo Terra foram os fazendeiros, responsáveis por 31,2% do total de violências causadas neste eixo, seguidos de empresários (19,7%), Governo Federal (11,2%), grileiros (9%) e os governos estaduais, com 8,3%. No caso do Governo Federal, mesmo com a pequena diminuição no total das violências causadas e com a maior abertura de diálogo do governo com os movimentos sociais, por meio da reestruturação de ministérios como o do Desenvolvimento Agrário, Direitos Humanos e Justiça, além da criação do Ministério dos Povos Indígenas, isto não se refletiu em avanços na conquista de direitos pelas populações camponesas e tradicionais, como a reforma agrária e a demarcação das terras indígenas.
Já os governos estaduais têm agido com repressão policial intensa contra acampamentos e assentamentos, comunidades quilombolas e terras indígenas, com destaque para Goiás, Bahia, Mato Grosso do Sul, Tocantins, Maranhão e Rondônia. O mesmo se pode dizer em relação ao poder legislativo federal e estaduais, com o avanço da bancada ruralista, promovendo mudanças em legislações como o Marco Temporal, o Pacote do Veneno, e as leis de terras e liberações para pulverização aérea de agrotóxicos nos estados.
Amazônia Legal – Na região que compreende quase 60% do território brasileiro, houve diminuição no desmatamento, com destaque para as ações de fiscalização da Polícia Federal no combate aos garimpos ilegais. Mas a violência tem crescido em regiões como a da tríplice divisa dos estados do Amazonas, Acre e Rondônia (chamada de Amacro ou Zona de Desenvolvimento Sustentável Abunã-Madeira). Dos 31 assassinatos no país, 8 foram nesta região, sendo 5 causados por grileiros. A região prometida como “modelo” de desenvolvimento com foco na sociobiodiversidade, tornou-se epicentro de grilagem para exploração madeireira e criação de gado, com altas taxas de desmatamento, queimadas e conflitos.
Ações de Resistência – Registradas também no relatório Conflitos no Campo, as ações de resistência também tiveram aumento expressivo em 2023, pois incluem 119 ocupações e retomadas, sendo 22 ações conduzidas por indígenas, 3 retomadas quilombolas e outras 94 pelas demais identidades sociais. Também foram registrados 17 acampamentos protagonizados por sem-terra e/ou posseiros, superando 2022, apenas com 5. Estes números passaram a ter novamente um crescimento a partir de 2021, mas ainda inferior aos números da série de dez anos.
Relatório – Elaborado anualmente há quase quatro décadas pela CPT, o Conflitos no Campo Brasil é uma fonte de pesquisa para universidades, veículos de mídia, agências governamentais e não-governamentais. A publicação é construída principalmente a partir do trabalho de agentes pastorais da CPT, nas equipes regionais que atuam em comunidades rurais por todo o país, além da apuração de denúncias, documentos e notícias, feita pela equipe de documentalistas do Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno (Cedoc) ao longo do ano.
Valter Campanato
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
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O Desenho Constitucional da Desigualdade. Antonio Moreira Maués. 1ª edição – São Paulo: Tirant lo Blanch, 2023, 208 p. (Há acesso à Versão Digital Grátis na Nuvem: atendimento@tirant.com).
Recebi, com afetiva dedicatória, esse livro escrito pelo brilhante Antonio Moreira Maués. Conheço Maués desde seus tempos de estudante, quando me recebeu, na condição de dirigente do Centro Acadêmico de Direito, juntamente com seu colega de graduação então e hoje seu colega de congregação José Heder Benatti, para uma palestra na UFPA, sobre meu tema de interpelação crítica ao jurídico, o direito achado na rua.
Curiosamente, há poucos meses, pude reecontrar ambos, por ocasião do concurso de titulação de Banetti, tendo como presidente da Comissão, o Maués https://estadodedireito.com.br/uma-trajetoria-academica-do-agrarismo-aos-direitos-socioambientais/, eu, representando a Universidade de Brasileira, participando como membro externo ao curso (BANCA AVALIADORA, formada pelos professores titulares Antonio Gomes Moreira Maués (Presidente da Banca – UFPA); Carlos Frederico Marés Souza Filho (Examinador Externo – PUCPR); Maria Cristina Vidotte Blanco Tárrega, (Examinadora Externa – UFG); Antonio José de Mattos Neto (Suplente Interno – UFPA) Carlos Teodoro José Hugueney Irigaray (Suplente Externo – UFMT) ocasião em que foi apresentado e defendido o Memorial para habilitação à titulação, ponto culminante de uma também brilhante carreira.
Sobre o livro, o resumo oferecido pela editora e o sumário, dão conta da relevância da Obra. Vou ao resumo:
A desigualdade é o maior problema da sociedade brasileira. De que modo as instituições constitucionais podem atuar para combatê-la? É possível que a própria ordem constitucional contribua para manter estruturas desiguais? Em que medida a desigualdade afeta o funcionamento do regime democrático? Este livro busca responder às questões acima analisando a atuação das instituições constitucionais do Brasil nas últimas décadas. A Constituição de 1988 conferiu ao Estado instrumentos para reduzir a desigualdade, garantindo o direito à não discriminação e a implementação de políticas sociais. Porém, ao lado das normas que promovem inclusão e redistribuição, outras disposições constitucionais limitam os gastos sociais, preservam o caráter regressivo do sistema tributário e favorecem a concentração da propriedade. O trabalho demonstra que, desde o processo constituinte, tanto interesses favoráveis quanto contrários à redistribuição de renda e riqueza conseguiram se entrincheirar na Constituição, embora de modo assimétrico. As constantes emendas constitucionais sobre tributação e orçamento evidenciam como é difícil obter acordos estáveis para gerir os conflitos distributivos da sociedade brasileira. Além disso, o caráter rígido da Constituição e a justiça constitucional têm operado para restringir avanços nas políticas sociais. O autor conclui que o desenho constitucional adotado em 1988 se mostrou apto para reduzir a pobreza no Brasil, mas não para implementar reformas estruturais que alterem a concentração de renda e riqueza em nossa sociedade. Conhecer como funcionam esses obstáculos constitucionais é fundamental para buscar alternativas que contribuam para a retomada do processo de democratização do país.
E logo ao Sumário:
Agradecimentos ………………………………………………………………….. 7
Capítulo 1 Uma Constituição, Duas Histórias………………………………………. 11
Desigualdades………………………………………………………………………….. 23
Igualdade e Democracia …………………………………………………………….. 30
O Enigma da Constituição de 1988…………………………………………….. 40
Capítulo 2 Constituição e Conflito ……………………………………………………. 44
Constituição e Estruturação de Conflitos……………………………………… 44
Constituição e Recursos de Poder………………………………………………… 49
Regras que Conferem Poderes…………………………………………………….. 56
Recursos de Poder e Igualdade ……………………………………………………. 62
Capítulo 3 Conflitos Distributivos e Reforma Constitucional ………………. 77
A Formação de Maiorias na Constituinte……………………………………… 78
Modelos de Reforma Constitucional……………………………………………. 87
A Prática da Reforma Constitucional …………………………………………… 97
Capítulo 4 Constituição, Redistribuição e Pobreza……………………………… 111
Entrincheiramento Estratégico e Maiorias Qualificadas…………………. 113
O Entrincheiramento da Política Fiscal………………………………………. 124
O Entrincheiramento da Política Social ……………………………………… 136
Avanços e Recuos nos Gastos Sociais………………………………………….. 139
Constituição Redistributiva ou Constituição Anti-Pobreza? …………… 153
Capítulo 5 Constituição, Propriedade e Reforma Agrária …………………… 161
A Propriedade na Constituição …………………………………………………. 164
O STF como Ponto de Veto……………………………………………………… 174
Considerações Finais ……………………………………………………….. 188
Referências bibliográficas
O livro de Maués vem juntar-se a um movimento, uma onda, uma tendência, uma disposição, como quer que a chamemos para designar o constitucionalismo de um outro modo, lembrando, com Canotilho (J.J. Gomes Canotilho), quando destaca um importante ator no vetor histórico de transformação social: o sujeito coletivo de direitos. Com Canotilho, pensando outros modos de designar o Direito que se oriente por teorias de sociedade e de justiça, podemos vislumbrar como o social se expressa, atua (é instituinte) e constitui direitos.
Assim é que, como está no meu desenho, por impulso de direitos humanos instituintes, tenho chamado a atenção para o que já é possível designar como “Constitucionalismo Achado na Rua”. Em artigo recente, publicado no volume 9, n. 2 (2022): Dossiê: “IPDMS, 10 anos de história e desafios”. Julho a dezembro de 2022. Organização do dossiê: Carla Benitez Martins, Diego Augusto Diehl, Luiz Otávio Ribas e Ricardo Prestes Pazello. DOI: https://doi.org/10.26512/revistainsurgncia.v8i2. Publicado: 31.07.2022, 535 p.) Leura Dalla Riva (p. 406-421) publica um texto que tem como título Bem viver e o “Constitucionalismo Achado na Rua”: um olhar a partir da teoria da ruptura metabólica.
A Autora parte de uma análise da crise ecológica hodierna como resultado da ruptura metabólica existente entre seres humanos e natureza e suas consequências, este artigo focaliza o desenvolvimento do novo constitucionalismo latino-americano como um movimento “achado na rua”. A pesquisa tem como problema de pesquisa: em que medida o novo constitucionalismo latino-americano abre caminhos para a superação da ruptura metabólica ao consagrar a ideia de Bem Viver? Para tanto, utiliza-se abordagem dedutiva. Primeiramente, aborda a categoria “ruptura metabólica” com especial foco na exploração da natureza na América Latina, o que envolve a abordagem de questões como capitalismo dependente no continente e o histórico extrativismo. Num segundo momento, analisa-se qual o papel das constituições da Bolívia e do Equador como construtoras de um constitucionalismo achado na rua e apresentam-se as origens, conceitos e aspectos principais da ideia de “Bem Viver” a partir dos povos latino-americanos. Por fim, aborda-se em que aspectos essas constituições apontam para a superação da ruptura metabólica em prol da ideia de Bem Viver.
Esse texto vem se agregar a um bem constituído modo de pensar o constitucionalismo, enquanto constitucionalismo achado na rua, tal como temos os pesquisadores do Grupo de Pesquisa com a mesma denominação – O Direito Achado na Ria (certificado no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPQ), tal como o mais atualizado, até aqui, percurso dos estudos com essa concepção, conforme descrito a seguir.
Desde logo, uma mais estendida e circunstanciada aproximação entre O Direito Achado na Rua e o Direito Insurgente, foi apresentada pelo professor De la Torre Rangel, durante o Seminário Internacional O Direito como Liberdade 30 Anos do Projeto O Direito Achado na Rua, em sua contundente comunicação Constitucionalismo Achado na Rua en México: de los acuerdos de San Andrés al concejo indígena de gobierno (De la TORRE RANGEL, 2021).
As experiências registradas no México, tendo como base as lutas sociais por emancipação, têm o caráter de uma revisão crítica da historiografia do país, na percepção da insurgência e do processo instituinte de direitos, repondo o tema do constitucionalismo desde baixo, nas anotações de planos e acordos estabelecidos nos embates para estabelecer projetos de sociedade. Relevo para os acordos de San Andrés, pela conformação constitucional que os caracterizam.
Como anota a peruana Raquel Yrigoyen Fajardo (YRIGOYEN, 2011), aferindo as experiências constitucionais na América Latina, incluindo o Canadá, há um primeiro ciclo caracterizado como “constitucionalismo multicultural” (Canadá, 1982), (Guatemala, 1985), (Nicarágua 1987) e (Brasil, 1988). O segundo ciclo referente ao “constitucionalismo pluricultural” (Colômbia, 1991), (México e Paraguai, 1992), (Peru, 1993), Bolívia e Argentina, 1994), (Equador, 1996 e 1998) e (Venezuela, 1999). E o terceiro ciclo, finalmente, é reconhecido pelo alcance de um “constitucionalismo plurinacional”, a partir das inovadoras Constituições do (Equador, 2008) e (Bolívia, 2009), nas quais, diz Raquel, já se trata de um ciclo pluricultural, plurinacional e ecológico, nas quais “se pluraliza a definição de direitos, a democracia e a composição dos órgãos públicos e as formas de exercício do poder”.
Raquel Yrigoyen, que já inscrevera em sua concepção a tese de um constitucionalismo plurinacional, tem avançado fortemente, desde seu diálogo com as cosmogonias e cosmovisões dos povos ancestrais, em direção a um constitucionalismo ecológico ou eco-constitucionalismo (YRIGOYEN, 2021), sem contudo abdicar de suas teses originais sobre o pluralismo jurídico.
Ainda que nessa passagem o foco da leitura do pluralismo jurídico, desde a leitura de Raquel Yrigoyen, compreendido propriamente como pluralismo jurídico igualitário (consulte-se entre outros estudos, os escritos fundamentais com aberturas inéditas para a aplicação dessa categoria, de Boaventura de Sousa Santos – sempre presente nas atividades do IIDS -, até o mais recente de Antonio Carlos Wolkmer e de Maria de Fatima S. Wolkmer, (WOLKMER; WOLKMER, 2020), se dirija aos povos indígenas e originários, essa acepção, orientada “por uma racionalidade jurídica diferente”, que nela, alcança também os ronderos campesinos, em enfoque autoral bem conhecido: “Outro claro ejemplo de racionalidade jurídica diferente, resulta em palavras de Raquel Yrigoyen, la de las Rondas Campesinas, que si bien nacen em uma primera etapa, como respuesta a uma demanda de seguridade, frente al robo y el abigeato se traduce finalmente, en prácticas sociales de auto administración de justicia” (SONZA, Bettina. 1993).
Tal como dissemos eu e meu colega Antonio Escrivão Filho (ESCRIVÃO FILHO; SOUSA JUNIOR, 2019 op. cit.), mais que reconhecimento de direitos, tais ciclos tratam do grau de abertura à efetiva participação constituinte das distintas identidades, aliado à efetiva incorporação de seus valores sociais, econômicos, políticos e culturais não apenas no ordenamento jurídico, mas no desempenho institucional dos poderes, entes e entidades públicas e sociais.
Ou seja, a partir do que atualmente, com as experiências constituintes em curso na América Latina, com as novidades trazidas pela proposta de Constituição do Chile, aprofundam-se temas emergentes de um constitucionalismo em chave decolonial, que para Antonio Carlos Wolkmer em texto publicado há poucos dias – Notas para Pensar la Descolonización del Constitucionalismo en Latinoamérica in Constitucionalismo en clave descolonial / Amélia Sampaio Rossi … [et al.].; Liliana Estupiñán- Achury, Lilia Balmant Emerique, editoras académicas. — Bogotá: Universidad Libre, 2022.
A novidade agora vem do Chile, e aponta para o que Wolkmer identifica como propostas de um constitucionalismo crítico na ótica do sul global referida a aportes do constitucionalismo transformador de que fala Boaventura de Sousa Santos, do constitucionalismo andino, pluralista, horizontal decolonial, comunitário da alteridade, ladino-amefricano e, ainda, do constitucionalismo achado na rua.
É a partir dessa perspectiva, algo que deixo como sugestão ao autor para suas pesquisas futuras considerando que o que vou dizer não se colocava quando o trabalho foi publicado. Ou seja, a partir do que atualmente, com as experiências constituintes em curso na América Latina, aprofundar temas emergentes de um constitucionalismo em chave decolonial.
Disso cuida Antonio Carlos Wolkmer em texto publicado há poucos dias – Notas para Pensar la Descolonización del Constitucionalismo en Latinoamérica in Constitucionalismo en clave descolonial / Amélia Sampaio Rossi … [et al.].; Liliana Estupiñán- Achury, Lilia Balmant Emerique, editoras académicas. — Bogotá: Universidad. Para Wolkmer, “la propuesta de un constitucionalismo crítico bajo la óptica del sur global puede ser contemplada en los aportes innovadores de la propuesta del consti tucionalismo transformador de Sousa Santos, B. de y de las variaciones presentes que tienen en cuenta las epistemologías del sur y, más directamente, del constitucionalismo andino, ya sea en la vertiente del constitucionalismo pluralista (Yrigoyen Fajardo, 2011; Wolkmer, 2013, p. 29; Brandão, 2015), del constitucionalismo horizontal descolonial (Médici, 2012), constitucionalismo comunitario de la alteridad (Radaelli, 2017), constitucionalismo crítico de la liberación (Fagundes, 2020), constitucionalismo ladino-amefricano (Pires, 2019) o aún del constitucionalismo hallado en la calle (Leonel Júnior, 2018)”.
Realmente Gladstone Leonel Junior trouxe essa designação, ainda sem a aprofundar em seu livro de 2015, reeditado – Novo Constitucionalismo Latino-Americano: um estudo sobre a Bolívia, 2a. Edição. SILVA JUNIOR, Gladstone Leonel. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, (SILVA JUNIOR, 2018).
Na segunda edição, novas questões ensejam novas análises para a construção de um projeto popular para a América Latina a partir do que a experiência na Bolívia e em outros países nos apresenta. Das novidades dessa edição, a Editora e o Autor destacam: Um capítulo a mais. Esse quarto capítulo debate “O Constitucionalismo Achado na Rua e os limites apresentados em uma conjuntura de retrocessos”. A importância do mesmo está na necessidade de configurar um campo de análise jurídica que conjugue a Teoria Constitucional na América Latina com o Direito Achado na Rua, situando então, o Constitucionalismo Achado na Rua.
O livro, aliás, pavimenta o caminho para estudos e pesquisas nessa dimensão do constitucionalismo e o próprio professor Gladstone Leonel, em sua docência na Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense, criou a disciplina “O Constitucionalismo Achado na Rua e as epistemologias do Sul”, ofertada no programa de pós-graduação em Direito Constitucional na UFF. O programa da disciplina e maiores informações podem ser obtidos no seguinte site: http://bit.ly/2NqaABn.
Resenhei esse percurso em http://estadodedireito.com.br/novo-constitucionalismo-latino-americano-um-estudo-sobre-bolivia/. Claro que em O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática, volume 2, cit., no capítulo (Parte IV): O Direito Achado na Rua: Desafios, Tarefas e Perspectivas Atuais, já inscrevemos uma anotação programática nessa direção, ao indicar (p. 224): que “Essas experiências refletem uma espécie de ‘Constitucionalismo Achado na Rua’, em que os atores constituintes, os protagonistas desses processos, que envolveram povos indígenas, feministas, campesinas e campesinos, trabalhadoras e trabalhadores e setores historicamente excluídos, arrancam do processo constitucional novas formas de pluralismo jurídico e conquistas de Direitos”.
Com Gladstone eu também trabalhei o tema, procurando fixar a sua mais precisa enunciação. Assim, em Revista Direito e Práxis, On-line version ISSN 2179-8966 (http://old.scielo.br/scielo.php?pid=S2179-89662017000201008&script=sci_abstract&tlng=pt). LEONEL JUNIOR, Gladstone and GERALDO DE SOUSA JUNIOR, José. A luta pela constituinte e a reforma política no Brasil: caminhos para um “constitucionalismo achado na rua”. Rev. Direito Práx. [online]. 2017, vol.8, n.2, pp.1008-1027. ISSN 2179-8966. https://doi.org/10.12957/dep.2017.22331, valendo o resumo: “A crise política brasileira, evidenciada a partir de junho 2013, enseja novas reflexões para a conjuntura recente. A reforma do sistema político é necessária e um das formas de viabilizá-la é por meio de uma Assembleia Constituinte. Sobretudo, se observado os movimentos político-jurídicos dos últimos 15 anos nos países da América Latina. Cabe refletir sobre o momento e as possibilidades dessa aposta pautando-se em um ‘constitucionalismo achado na rua’”.
Quase que simultaneamente, também com Gladstone publicamos em La Migraña… Revista de Análisis Político, nº 17/2016. Vicepresidencia del Estado Plurinacional de Bolívia: La Paz, o artigo La lucha por la constituyente y reforma del sistema político em Brasil: caminhos hacia um ‘constitucionalismo desde la calle’.
Com essas referências, alcança-se o patamar que, juntamente com Antonio Escrivão Filho (ESCRIVÃO FILHO; SOUSA JUNIOR, 2016, op. cit.), especialmente no Capítulo V – América Latina, desenvolvimento e um Novo Constitucionalismo Achado na Rua, páginas 123-150), enunciamos, vale dizer, que o Constitucionalismo Achado na Rua vem aliar-se à Teoria Constitucional que percorre o caminho de retorno a sua função social. Uma espécie de devolução conceitual para a sociedade, da função constitucional de atribuir o sentido político do Direito, através do reconhecimento teórico-conceitual da luta social como expressão cotidiana da soberania popular. Um reencontro entre a Teoria Constitucional, e o Direito compreendido como a enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade (p. 149).
Com pesquisadores do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua (Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq), organizamos o livro O Direito Achado na Rua: questões Emergentes, revisitações e travessias (SOUSA JUNIOR, 2021), um capítulo é dedicado ao tema: Constitucionalismo Achado na Rua, com os temas A Democracia Constitucional e a Proposta para um Constitucionalismo Inclusivo no Brasil, de Bárbara R. R. C. de Oliveira, Jean Patrício da Silva, João Paulo Santos Araújo, Samuel Barbosa dos Santos e Betuel Virgílio Mvumbi; e O Constitucionalismo Achado na Rua, os Sujeitos Coletivos Instituintes de Direito e o Caso APIB na ADPF nº 709, de Marconi Moura de Lima Barum, Mauro Almeida Noleto, Priscila Kavamura Guimarães de Moura e Renan Sales de Meira.
É sempre estimulante poder construir com os compromissos de engajamento, sobretudo epistemológico, escoras teóricas para anaçar nessas emergências, revisitações e travessias, em arcos de cooperação não apenas orgânicos – os Grupos de Pesquisa – mas nos encontros conjunturais com aliados acadêmicos nos eventos, disciplinas e projetos que nossos coletivos de ensino, extensão e pesquisa proporcionam.
É nesse ambiente que podemos localizar abordagens instigantes que acolhem os achados desse processo, assimilando-os as suas estruturas de análise e de aplicação, e prorrogando seu alcance heurístico para novos níveis de discernimento. Assim, nesse recorte aqui realizado, o texto de Antonio Carlos Bigonha (Subprocurador-Geral da República, atua na 2a. Seção do Superior Tribunal de Justiça, proferindo pareceres em Direito Privado. Foi presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (2007/2011) e coordenador da 6a. Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais da PGR (2019/2021), além de destacado compositor, pianista e mestre em Música pela Universidade de Brasília. O texto, originalmente publicado na página do IREE, Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa, foi reproduzido pelo Expresso 61 (https://expresso61.com.br/2022/02/17/darcy-ribeiro-a-unb-e-o-constitucionalismo-achado-na-rua/), com o título Darcy Ribeiro, a UnB e o constitucionalismo achado na rua:
A interpretação constitucional que setores retrógrados da magistratura e do Ministério Público adotaram para o exercício arbitrário de suas prerrogativas e atribuições, ao longo dos últimos 30 anos, faria corar monges de mármore, para usar uma expressão muito referida pelo ministro Gilmar Mendes, em sessões de julgamento no STF. Desconheço em que fonte foram beber seu fundamento teórico, fruto talvez de uma corrupção semântica, resultado da leitura equivocada da matriz germânica ou estadunidense. Neste contexto, o Direito Achado na Rua afirma-se como um poderoso vetor hermenêutico, uma abertura capaz de barrar os exageros do neoconstitucionalismo e oferecer novas epistemologias que conduzam à interpretação da Constituição e das leis do País para a afirmação e o fortalecimento dos direitos humanos, segundo uma agenda comprometida com os interesses do nosso povo. E ouso supor que Darcy Ribeiro e Machado Neto subscreveriam, novamente, esta virada hermenêutica.
Em comunicação oral realizada no GT 12- Constitucionalismo achado na rua, por ocasião do Seminário Internacional O Direito como Liberdade – 30 Anos do Projeto O Direito Achado na Rua, Menelick de Carvalho Netto e Felipe V. Capareli, com o título “O Direito Encontrado na Rua, a Luta por um Constitucionalismo Plural e Inclusivo, e a necessidade de enfrentar o risco autoritário de uma política simplista e privatizante. Visão dicotômica do Estado e do Direito” (Revista da Defensoria Pública do Distrito Federal (RDPDF, 2019, vol. 1, n. 2) – Dossiê Ordenamentos jurídicos, monismos e pluralismos: O Direito Achado na Rua e as possibilidades de práticas jurídicas emancipadoras), também extraem consequências dessa dimensão constitucional estabelecida na rua.
É com esse acumulado que chegamos ao Seminário Internacional O Direito como Liberdade: 30 Anos do Projeto O Direito Achado na Rua, realizado em Brasília, na UnB, em dezembro de 2019. No programa toda uma seção (Seção III) para o tema Pluralismo Jurídico e Constitucionalismo Achado na Rua. Esse material veio para o volume 10 da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade. Brasília: Editora UnB/Editora da OAB Nacional, 2021. Na seção podem ser conferidos os textos: Pluralismo Jurídico Comunitário-Participativo: processos de descolonização desde o Sul, de Antonio Carlos Wolkmer; A Contribuição do Direito Achado na Rua para um Constitucionalismo Democrático, de Menelick de Carvalho Netto; Constitucionalismo Achado na Rua em México: de los acuerdos de San Andrés al concejo indígena de gobierno, de Jesús Antonio de la Torre Rangel; O Direito à Alimentação como um Direito Humano Coletivo dos Povos Indígenas, de Raquel Z. Yrigoyen Farjado; e Constitucionalismo Achado na Rua: reflexões necessárias, de Gladstone Leonel Júnior, Pedro Brandão, Magnus Henry da Silva Marques (SOUSA JUNIOR, 2021, op. cit.).
É importante “recordar que o constitucionalismo é permanente tentativa de se instaurar e se efetivar concretamente a exigência idealizante que inaugura uma modernidade no nível da organização de uma sociedade complexa, incapaz de lançar mão de fundamentos absolutos e que, por isso, só pode legitimar seu próprio sistema de direitos na medida em que os potenciais podem se reconhecer como coautores e autoras das normas que os regem. Ou seja, ou o direito é constitucionalmente achado na rua e nas ruas, e com as ruas, é construído e reconstruído de forma plural e inclusiva, ou, sem dúvida, tende-se a privatizar o próprio Estado, mediante a colonização do direito por uma lógica simplista binária de cunho plebiscitário e na da democrática, pois infensa a qualquer eficaz de bate”.
Para o constitucionalista português J. J. Gomes Canotilho, em sede de debate que envolve teorias de sociedade, teorias de justiça e teorias constitucionais, cuida-se de ter atenção à multiplicidade de sujeitos que se movem no debate constitucional contemporâneo que tende a abrir expectativas de diálogo político estruturado na linguagem do direito, gerando na expressão dele, “posições interpretativas da Constituição” que emergem desse processo e formam uma luta por posições constituintes, luta que continua depois de aprovada a constituição (CANOTILHO, J. J. Gomes. Cf. Entrevista que me concedeu: Pela Necessidade de o Sujeito de Direito se Aproximar dos ‘Sujeitos Densos’ da Vida Real. Constituição & Democracia. Brasília: Faculdade de Direito da UnB, n. 24, julho de 2008, p.12-13), luta travada pela disposição a ir para o meio da rua, pois “do outro lado da rua, o ‘direito achado na rua’ e, perante o sangue vivo que brota dos vasos normativos da realidade e a sedução de um direito outro, ao direito formal das constituições, códigos e leis, compreende-se que o discurso hermenêutico dos juristas mais não seja que um manto ocultador do insustentável peso do poder” (CANOTILHO, 2008a).
Ao indicar a desigualdade como eixo que interpela o constitucionalismo, Maués resgata um momento episódico nos estudos constitucionais brasileiros e mesmo na teoria da justiça que marcaram esses estudos.
Com efeito, subjugados esses campos a uma dogmática pobre, o jurídico sempre foi um epifenômeno, reflexo pálido de uma realidade naturalizada na desigualdade e na exclusão. O positivismo legalista que marcou esses estudos repercutia num manualismo descritivo de um jurídico extremamente redutor delirante do real instituinte inscrito nas relações sociais e de produção.
Aqui, os autores eram repetições da pedagogia de um Bugnet, exacerbado no seu exegetismo, máxima ideologia do legalismo que mal se dava conta que a nova legalidade era a expressão de uma emergência político-econômica da emancipação burguesa. Reproduziam o sentimento que repercutia a vontade dos membros desse pensamento, na forma de uma locução célebre “não conheço o direito civil, ensino somente o Código Napoleão”.
E note-se que Ferdinand Lassalle já tivera sua conferência de 1862 – A Essência da Constituição – publicada, com a constatação certamente compartilhada de sua colaboração com Marx, de que a essência da Constituição reside nos fatores reais de poder.
Também já tinha curso o texto de 1908 de Jean Cruet –A vida do direito e a inutilidade das leis (La vie du droit et l’impuissance des lois), argumentando que, para compreender a legalidade, é necessário estudar as leis como fenômenos históricos, econômicos e sociais.
E mesmo no Brasil, o socialismo de João Mangabeira indicava que não são possíveis direitos elementares desvinculados dos direitos alimentares, de modo a orientar o jurídico pelo viés da desigualdade expresso na máxima do suum cuique tribuere. Deixado ao formalismo que a máxima expressa, numa sociedade desigual, o seu de cada um será sempre o atribuir-se ao pobre a pobreza e ao rico a riqueza, enquanto a igualdade se realize conforme uma transformação social justa, que se expresse na máxima, de cada um conforme o seu trabalho, a cada um conforme a sua necessidade (conferir em MANGABEIRA, João. A Oração do Paraninfo, in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de (org). Série O Direito Achado na Rua, vol. 1 – Introdução Crítica ao Direito. Brasília: Editora UnB, 4ª edição, 1993).
Essa talvez seja a vertente que levou Orlando Gomes, em 1956, em A Crise do Direito (Max Limonad) a indicar o curso costeiro dos que fazem navegação de cabotagem ao redor dos códigos, e assim, na perspectiva da economia e do trabalho, a buscar os pressupostos econômicos, sociais e políticos para contextualizar o jurídico.
No âmbito do Direito Constitucional, essas dimensões contextualizadoras estão bastante bem assentadas e integram a bibliografia corrente dos programas e dos currículos jurídicos. Mas até bem pouco tempo e ainda em muitas escolas, há um estigma para abordagens que tragam essa condição.
Por isso que duplamente deve-se registar em Direito Constitucional os estudos muito desafiadores de Luiz Pinto Ferreira, da Faculdade de Direito do Recife. Estudos que até incomodavam e logo sofriam rotulação – não se enquadravam na perspectiva positiva do direito constitucional – tal como reivindicavam autores até progressistas.
É que, o próprio Pinto Ferreira assentava ((Discurso de posse como Diretor da Faculdade de Direito do Recife, pronunciado de improviso no Salão Nobre da Faculdade de Direito do Recife, em 8 de março de 1982). Cf. em http://www.luizpintoferreira.com/), “Creio na justiça social, porque a justiça é o ideal do direito, permitindo a constante e progressiva eliminação do desnível de classes entre os homens, o constante desenvolvimento da vida social, dessa justiça que não distingue entre ricos e pobres em face do direito, dessa justiça que é o único escudo dos pequenos contra os grandes e o anteparo protetor do povo humilde e simples”.
Com foco na questão da desigualdade, Maués indica que “para compreender mais as dificuldades enfrentadas pela ordem constitucional inaugurada em 1988, nosso caminho irá explorar as relações entre desigualdade e democracia. A Constituição assumiu a tarefa de construir um regime democrático e reduzir as desigualdades da sociedade brasileira. No Brasil, os avanços e recuos em um desses campos contribuem para os avanços e recuos no outro campo e a análise da Constituição de 1988 deve dar conta dos movimentos de progresso e retrocesso que compõem os dois lados de sua história”.
Há outras questões interpelantes. Mas para mim, essa é a singularidade do livro de Antonio Moreira Maués.
Foto Valter Campanato
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
Arquitetura do controle de armas no Brasil. Um estudo criminológico sobre a atuação do Exército e da Polícia Federal no mercado da morte
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
Roberto A. R. de Aguiar. Incapacidades: Proteção ou Repressão? Fundamentos das Incapacidades no Direito Positivo: em Busca de uma Reconceituação. Tese apresentada em Concurso para Professor Titular do Departamento de Propedêutica e Direito Comercial do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Pará, matéria Filosofia do Direito. Belém: Universidade Federal do Pará (mimeo), 1988, 193 fls.
Não é a primeira vez que me debruço sobre um texto de Roberto A. R. de Aguiar para o resenhar. Muito pelo contrário. Minha primeira resenha publicada foi exatamente sobre um livro desse querido amigo, meu colega na UnB, meu antecessor na Reitoria da universidade e parceiro em muitos projetos, acadêmicos e políticos.
Com efeito, então, ainda estudante no Mestrado de Direito da UnB, fiz, por indicação de meu Orientador o Professor Roberto Lyra Filho, uma leitura crítica de Roberto, um autor que nem ele, nem eu conhecíamos, e que acabara de publicar pela Editora Alfa Ômega, o livro Direito, Poder e Opressão. Minha resenha, com o mesmo título foi publicada no Correio Braziliense, de 15/4/1981. Fiz a leitura e preparei uma primeira versão da resenha que submeti a Lyra Filho, como de hábito, questionando a pertinência de sua publicação. Penso que ele ficou atento ao fato de que eu, mesmo sugerindo pleno acolhimento ao livro e às proposições avançadíssimas do autor, levantasse alguns pontos para criar polêmica nos debates em seminário que ele deveria promover.
Assim, para ilustrar, um certo tom no meu texto, reticente a aspectos inferidos em Michel Foucault, forte na obra, de um lado sobredeterminando relações de direito às tensões ideológicas entre dominantes e dominados, eventualmente conducentes, por causa de Foucault à uma leitura nihilista do jurídico.
De outro lado, também com o objetivo de recortar temas para o debate pedagógico, cuidados que algumas afirmações de meu texto deveriam suscitar. Reproduzo uma passagem: “…o livro atinge a sua finalidade. Isto é, percorre o primeiro caminho do processo cognoscitivo, o da abstração, o da extração das categorias. Inclusive, nesta etapa, alcança (ainda como processo cognoscitivo) intuições e representações formidáveis. Refiro-me, não só à percepção de antidireitos, de direitos plurais (p. XV e 135), à questão do desaparecimento ou ultrapassamento do direito (pág. 184), como, muito significativamente, na colocação dos direitos humanos (p. 171), embora, contraditoriamente, neste caso, recusando as suas mais amplas possibilidades (admissão apenas como princípios e não como direitos propriamente ditos) à falta de um poder que lhes confira eficácia e vigência, não obstante, a incursão anterior (p. 47), muito lúcida, quanto ao problema das fontes e do contra legem (p. 84)…”.
Tendo enviado previamente a resenha para Roberto, por mediação da Editora Alfa-Ômega, esse foi o cartão de visita, para uma amizade, que seguindo-se à resposta elegante que deu, fortaleceu-se por toda a vida dele e para o que ainda possa restar da minha.
Mais recentemente, a propósito de uma reedição de seu livro O Que é Justiça: uma Abordagem Dialética. Brasília: Senado Federal (Edições do Senado Federal; v. 279). Conselho Editorial, 2020 (https://estadodedireito.com.br/o-que-e-justica-uma-abordagem-dialetica-2/), no qual também tenho um ensaio extenso no qual faço o registro de múltiplas trocas intelectuais e políticas que estabelecemos em nosso percurso, arrolo várias leituras que fiz de suas obras, incluindo outras resenhas, entre elas a que foi publicada na Revista Humanidades, da Editora UnB (volume 8, número 1, 1992, p. 97-98, a propósito de seu livro A Crise da Advocacia no Brasil – Diagnóstico e Perspectivas, também publicado pela Alfa-Ômega, 1ª edição 1991.
Ainda na recensão mais recente sobre a obra celebratória publicada pelo Senado (https://estadodedireito.com.br/o-que-e-justica-uma-abordagem-dialetica/), lembrei outros registros, entre eles o de ter, com meus alunos de Pesquisa Jurídica, na Faculdade de Direito da UnB, incluído nessa mobilização de homenagens, o exercício autoral de pesquisa, conforme temos seguidamente procedido nas suas edições da disciplina, compondo para a wikipedia o verbete Roberto Aguiar (https://pt.wikipedia.org/wiki/Roberto_Aguiar), cujo conteúdo, apresentado em sala de aula no momento de seu lançamento, teve a presença da viúva Wanja Meire de Carvalho, procuradora federal e da filha Júlia Aguiar, e outros ilustres convidados.
Em complemento, trago o testemunho da professora Nair Heloisa Bicalho de Sousa, minha colega e esposa, extraindo de seu belo e consistente parecer no Conselho Universitário da UnB, por ocasião da deliberação de outorga de título de professor emérito a Roberto, o retrato completo que ela desenhou, e que veio a ser publicado no Portal da UnB: Roberto Aguiar, um Paladino da Causa da Justiça (https://noticias.unb.br/artigos-main/3043-roberto-aguiar-um-paladino-da-causa-da-justica), 12/7/2019.
Com muita síntese, extraio do que com a acuidade que a tornaram uma credenciada avalista das mais destacadas biografias acadêmicas, com o modo muito preciso com que faz a leitura crítica dos elementos curriculares para que melhor se exibam às distinções acadêmicas, notabilizou-se no Conselho Universitário da UnB pelas peças que muito contribuíram para conferir reconhecimento honorífico nas láureas universitárias, a respeito de Roberto, disse a professora Nair Bicalho.
Tenho que ela leu o currículo do Professor Roberto Aguiar para aferir seus requisitos acadêmicos quando submetida ao Conselho Universitário da UnB a proposta do título de Professor Emérito da UnB. No parecer, atualizado para registro de homenagem que a autora faz ao amigo, colega e ex-Reitor da UnB, ela anota que o docente, com trajetória militante e acadêmica, que o erige em verdadeiro paladino da causa da justiça, publicou em 1980 seu primeiro livro Direito, poder e opressão (São Paulo: Alfa-Ômega) onde apresenta uma nova concepção do direito “sempre parcial por conter a ideologia do poder legiferante” e elabora uma crítica da “simbiose oficial entre o saber teórico e o saber burocrático”. Em 1985 recebeu o prêmio Alceu Amoroso Lima da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de S. Paulo pelo ensaio publicado em 1983, “LSN – a lei da insegurança popular”. Em 1986 publica novo livro Os militares e a Constituinte (São Paulo: Alfa-Ômega), além de diversos ensaios e artigos sobre o tema. Em 1991 lançou A crise da advocacia no Brasil (São Paulo, Alfa-Ômega), onde realiza uma reflexão entre direito, ciência e tecnologia e afirma que o “Direito é uma expressão de um processo que faz do advogado um sujeito partícipe de sua criação, na medida em que ele representa interesses, expectativas e projetos de grupos sociais e de coletividades emergentes. O advogado é um explicitador de direitos”. Nos anos seguintes o professor Roberto Aguiar se dedicou à publicação de ensaios e artigos sobre os temas da justiça, da ética, da bioética, da cidadania e dos direitos humanos. Em 2000, publica Os filhos da flecha do tempo: pertinência e rupturas (Brasília: Letraviva), um marco teórico fundamental na sua trajetória de jurista e filósofo. Além de refletir sobre a opressão, as repressões, as violências (“estranhamento do outro”) e desigualdades presentes no mundo contemporâneo, ele propõe a constituição de um ser integral: “Os entes sociais , para viver em liberdade, necessitam ser unos e plurais (…) Só as convivências da unidade na variedade, da totalidade com as diferenças poderá construir sistemas unos, porém dinâmicos e mutáveis, e manter seu sentido de complexidade e possibilidade de saltos para patamares mais avançados de ser”.
Apesar de tantas excursões à fortuna crítica do pensamento filosófico-jurídico de Roberto Aguiar, acabei me dando conta de que um trabalho seminal por ele elaborado, ainda que referido aqui e ali, restou pouco referido. Talvez porque só tenha tido a circulação circunscrita ao objetivo de sua elaboração: uma tese para concurso. E ainda assim, num tempo ainda muito artesanal para a circulação de material acadêmico: o texto foi datilografado e encadernado para leitura da banca de concurso e para depósito nos repositórios oficiais da Instituição, portanto, com muito poucas cópias disponíveis e que se propagaram quase no privado do restrito grupo de leitores, alguns colegas e uns tantos amigos.
Trata-se da tese tema deste Lido para Você. Fui um dos escolhidos que receberam uma cópia do texto. Texto que li com enorme curiosidade e surpresa, sobretudo por logo me dar conta de que a sua defesa num departamento de direito privado, não lhe retirava a densidade epistemológica que bem o poderia ser arrolado, tal como diz a Professora Nair Bicalho, na linha condutora que caracterizou a produção de Roberto num conjunto reflexivo formado pelos temas da “justiça, da ética, da bioética, da cidadania e dos direitos humanos”.
Acabei revisitando a obra, por ocasião da participação em recente banca de qualificação de dissertação de mestrado, no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, da UnB.
Trata-se da dissertação (ainda em etapa de qualificação já concluída) – Capacidade Jurídica das Pessoas com Deficiência: a Compreensão da Magistratura do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios Após a Lei nº 13.146/2015 – de Ana Cláudia Mendes de Figueiredo, em elaboração no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, da Universidade de Brasília (CEAM).
Sob a orientação da Professora Sinara Zardo, a dissertação pretende investigar “a argumentação e o entendimento dos magistrados do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) sobre as mudanças efetivadas pela Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI) – também denominada Estatuto da Pessoa com Deficiência –, no sentido de ruptura do tradicional regime das incapacidades e de garantia, às pessoas com deficiência, do direito ao exercício da sua capacidade jurídica, em igualdade de condições com as demais pessoas”. A pergunta que a pesquisa quer responder “é se o direito das pessoas com deficiência à capacidade jurídica – estabelecido no artigo 12 da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) e reiterado, em parte, na Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI) e em outras normas legais – tem sido reconhecido e interpretado, pelos magistrados do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, sob a ótica dos direitos humanos”.
Ana Cláudia vem trabalhando o tema da capacidade ou incapacidade, como ativista e teórica do tema, em parte motivada por convocações subjetivas que lhe são próximas. Antes da dissertação, ainda em fase de elaboração, mas já qualificada, ela se associou a projeto editorial que conduzo e em processo de reflexão se associou à proposta de pensar o empoderamento de sujeitos coletivos cujas lutas sociais e políticas instituem e ampliam direitos fortalecendo a capacidade protagonista de lutar por reconhecimento.
Ela assim se fez autora e co-organizadora do livro O Direito Achado na Rua. Sujeitos Coletivos: Só a Luta Garante os Direitos do Povo!, volume 7, Coleção Direito Vivo. Ana Cláudia Mendes de Figueiredo, Andréa Brasil Teixeira Martins, Edilane Neves, José Geraldo de Sousa Junior, José Roberto Nogueira de Sousa Carvalho, Luana Nery Moraes, Shyrley Tatiana Peña Aymara, Vítor Boaventura Xavier (Organizadores). Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2023. Para mais, conferir em https://estadodedireito.com.br/sujeitos-coletivos-so-a-luta-garante-os-direitos-do-povo/
Os artigos do livro tratam, cada um do seu modo, da categoria jurídica do sujeito coletivo de direito. Com cerca de três décadas desde a formulação do conceito, tal como indicado nessas leituras preparatórias, a obra em questão serve como uma espécie de compêndio que promove balanços, inovações e direcionamentos acerca da fortuna crítica dessa categoria e de seu alcance nos âmbitos da teoria e da práxis.
A identidade política dos movimentos sociais e a possibilidade de que eles venham a se investir de uma titularidade jurídica coletiva, ou seja, de atuarem como um sujeito coletivo de direito, são questões caras para a política e para o ensino jurídico. Assim, as reflexões com o pano de fundo teórico do Humanismo Dialético e d’O Direito Achado na Rua são, por sua vez, uma referência para a leitura crítica da realidade.
Pois bem, no ensaio O Reconhecimento dos Direitos Humanos das Pessoas com Deficiência: Resultados Provisórios de Lutas do Movimento Social, Ana Cláudia Mendes de Figueiredo aborda a trajetória das lutas do movimento social e político das pessoas com deficiência pelo reconhecimento jurídico dos direitos humanos desses sujeitos de direito, bem como alguns resultados provisórios de tais lutas. À luz da teoria crítica dos direitos humanos, analisa os processos para tal reconhecimento e o cenário de não efetivação ainda dos direitos daquela população, reveladores da imprescindibilidade de criação de condições que viabilizem a esses sujeitos o acesso igualitário aos bens necessários a uma vida digna.
A arranque dessa ordem de considerações, na dissertação, ela é bastante firme no estabelecimento dos pressupostos que orientam o seu trabalho. O objetivo geral da sua pesquisa é o de investigar como os magistrados do TJDFT têm interpretado normas legais que, por força da CDPD (Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência), desconstruíram o tradicional regime das incapacidades, passando a assegurar a todas as pessoas com deficiência o direito ao exercício da sua capacidade jurídica, em igualdade de condições com as demais pessoas. O trabalho, que há pouco passou pelo procedimento de qualificação (precedente ao momento definitivo de ser apresentado a defesa), tem como título, nessa etapa: “Capacidade Jurídica das Pessoas com Deficiência: a Compreensão da Magistratura do Tribunal de Justiça do Distrito Federal após a Lei nº 13.146/2015”.
A hipótese de pesquisa é a de que, não obstante o artigo 12 da CDPD tenha reconhecido o direito das pessoas com deficiência ao exercício da sua capacidade jurídica, em igualdade de condições com as demais pessoas, e a LBI tenha promovido em nosso ordenamento, em homenagem à citada norma constitucional, alterações importantes acerca do tema, o aludido direito segue sendo interpretado à luz de teorias, institutos, concepções e conceitos superados pelo novo paradigma da capacidade jurídica e pelos princípios de direitos humanos consagrados nas citadas normas constitucional e legal, especialmente quando se trata de pessoas com deficiência intelectual e psicossocial.
Para a Autora, “constituindo o exercício da capacidade jurídica um direito humano – que se insere na esfera existencial de todas as pessoas – e havendo, de outro lado, a possibilidade de que o referido direito venha sendo ignorado, é de extrema relevância e necessidade a investigação pretendida, a qual propiciará a geração de informações empiricamente sustentadas. Contudo, na banca, ao discutir a questão da incapacidade necessária a esses pressupostos, verifiquei que a disponibilidade conceitual e política para afrontar esses pressupostos, ainda se faz muito carente de possibilidades emancipatórias que livrem os sujeitos de um sistema de contenção para exercitar liberdades e autonomias legítimas”.
Em apoio a Ana Cláudia de Figueiredo, eis que me veio em socorro a tese única de Aguiar, para poder abrir esse campo de possibilidades: Incapacidades: Proteção ou Repressão? Fundamentos das Incapacidades no Direito Positivo: em Busca de uma Reconceituação.
A tese de Roberto Aguiar, tal como ele propõe, teve (tem) por objetivo discutir a validade dos modelos explicativos das denominadas incapacidades previstas no ordenamento jurídico, em específico, o brasileiro. Ela (a tese) se vale de subsídios trazidos pelo marxismo, pelo pensamento de Michel Foucault – um autor sempre em diálogo co Aguiar -, pelos juristas que procuram uma renovação epistemológica e pelas contribuições das ciências sociais. Assim, foi desenvolvida uma análise crítica do modelo que subjaz à doutrina sobre as incapacidades, destacando as justificativas ideológicas da vontade livre, do mundo harmônico e do individualismo, como sustentadoras desse entendimento do jurídico. O resultado dessa análise levou a reconceituação de incapacidades, que foram chamadas de incapacitações, já que imersas em contexto mais amplo, atingindo também as pessoas jurídicas, não tendo caráter protetivo dos incapazes, uma vez que apresentam evidente marca repressiva, configurando-se por isso, como uma das formas do exercício dos poderes.
Seguindo ainda o que o próprio autor da tese designa, foram levantadas outras formas de incapacitação que constam em outras regiões do ordenamento e que aparecem nas práticas sociais, sejam confirmando o direito, seja negando, mas sempre a serviço de interesses que não são os dos incapacitados. Para um aprofundamento da questão foram (são) levantas questões sobre cada um dos atingidos pelas incapacitações. Mas a questão de fundo, que está ligada aos problemas tratados na tese, refere-se aos países periféricos, que têm uma tradição histórica de autoritarismo e vivem relações oriundas de um capitalismo tardio, o que vem a exacerbar as desigualdades, aumentar o arbítrio e distanciar as classes sociais, em evidente colisão com os objetivos propostos em abstrato pelo ordenamento.
Marcada pelo pensamento europeu – ele continua – nossa doutrina dominante não tem condições de perceber a natureza fragmentária e perigosamente destrutiva de nosso ordenamento, que tem baixa credibilidade até mesmo nos setores que são por ele beneficiados.
Em conclusão, diz Roberto Aguiar, resumindo sua proposta, o problemas das incapacidades, na sua tese, foi (é) tratado partindo desses pressupostos, além (grifo) de levar em conta a existência de uma pluralidade de ordenamentos, o que significa a presença constante – grifo de novo – de uma tensão contraditória permanente entre os direitos cristalizados e os emergentes das lutas dos destinatários desfavorecidos.
Outro ponto que o Autor põe em relevo, foi (é) a preocupação de evidenciar a estigmatização de uma população, que é jogada para fora da produção convencional e que, não tendo os valores da acumulação ou da transformação, podem tomar atitudes que podem inviabilizar o direito e os poderes, sem que haja um salto para melhor.
O sumário da tese tem uma distribuição analítica que permite percorrer todas essas dimensões postas em relevo no resumo, até consumar-se numa discussão de fim que é poder discutir ou melhor, rediscutir incapacidades.
Dei conta dessa tentação, exatamente no tema das capacidades/incapacidades/incapacitações, ao recuperar incidente que exigiu leitura crítica inspirada em posicionamentos político-epistemológicos, de rara localização, como esse de Roberto Aguiar.
A situação diz respeito a um incidente dentro da vocação autoritária e anti-povo, nunca totalmente superada em nosso País. Ainda que a Constituição atual, artigos 231 e 232 tenha reconhecido a capacidade ativa dos índios, ela manteve o dever de proteção pelo Estado dos direitos originários desses povos, tanto que atribuiu ao Ministério Público acompanhar todos os atos que digam respeito à salvaguarda desses direitos e manteve como obrigatoriedade governamental, não havendo mais o regime de tutela, de exercitar essa obrigação, atribuindo a Fundação Nacional do Índio (Funai) como órgão indigenista oficial responsável pela promoção e proteção aos direitos dos povos indígenas de todo o território nacional.
Ora, é legítimo o repúdio indígena aos posicionamentos hostis que a partir desse órgão, começam a caracterizar a quebra de lealdade ao dever constitucional de Proteção, violando os direitos indígenas.
É preciso lembrar que mesmo no curso da ditadura do regime imposto em 1964 e ainda sob a égide de uma Constituição de traços colonialistas, que não reconhecia a capacidade plena aos indígenas, mantendo-os subalternos e tutelados, nunca se perdeu o horizonte emancipatório de respeito aos seus direitos, usos e tradições originários.
Num artigo que publiquei no Jornal de Brasília, edição de 29/04/1984 – Os Índios e o Direito – trato desse tema. Nele aludo a decisão proferida em mandado de segurança que estudantes terenas, representados por membros da Comissão de Direitos Humanos, da OAB-DF, impetraram contra a Funai, ocasião para que o íntegro juiz Dario Abranches Viotti, da Justiça Federal em Brasília, reconhecendo a incompatibilidade de interesses entre o tutor e seus assistidos, nomeou curador especial um dos advogados, para o fim específico de representa-los na ação. Essa curatela especial coube a mim, um dos advogados da OAB, investido no processo pelo magistrado.
Essa decisão não trouxe, a rigor, eu disse no artigo, nenhuma inovação técnica. A remoção do tutor, no âmbito da legislação cível, ou a interdição de direitos, como pena acessória, nos casos de incompatibilidade manifesta, na esfera penal, implicam na perda do exercício da tutela, constituindo alternativas adequadas para a verificação da responsabilidade do tutor em face de suas obrigações para com o tutelado.
Tanto é assim que, no caso relatado, o Juiz simplesmente adotou a solução sugerida pela lei processual civil, identificando, na situação litigiosa, uma hipótese de colisão de interesses.
O inusitado da medida não chega a ser, sequer, o seu pioneirismo jurisprudencial, embora mereça relevo a determinação, no particular, que resultou em abandono de postura, evidentemente inibida da magistratura brasileira. O que repercute nessa decisão, sem precedente a nível judiciário, é o seu alcance instrumental para a defesa de interesses e direitos diferenciados no seio da sociedade civil, como garantia de acesso à Justiça de segmentos sociais dela alienados.
Penso ter aí um exemplo da disposição que Roberto Aguiar sugere na conclusão de sua tese, sobre caminhos para “a superação das incapacitações em direitos como o brasileiro passam pelas redistribuições das desigualdades, pela instrumentalização dos direitos previstos e pela eliminação dos ardis que remetem a questão para o mero exercício da violência ou do arbítrio”.
São trilhas emancipatórias. Referidas a O Direito Achado na Rua, na perspectiva do que temos atribuído a essa concepção, do que se trata é realizar uma espécie de devolução conceitual para a sociedade, da função crítica para de atribuir o sentido político ao Direito, através do reconhecimento teórico-conceitual da luta social como expressão cotidiana da soberania popular, claro, o Direito compreendido como a enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade.
Curiosamente, embora essa perspectiva emancipatória tenha leito natural no campo da teoria do direito e dos direitos humanos, Roberto Aguiar a traz para o campo do direito privado que historicamente serviu bem ao modo burguês de produção capitalista, assentada na perspectiva privatizante da acumulação.
E não tardou que a pudéssemos surpreender sustentada de modo muito orgânico, no sentido intelectual e político do termo, em nuances que a pressentem, embora por distintas razões, em autores que se distinguiram em estudos de direito privado. Assim que, em IL DIRITTO DI AVERE DIRITTI, di minima&moralia pubblicato giovedì, 10 Ottobre 2013 • 3 Commenti (https://www.minimaetmoralia.it/wp/estratti/stefano-rodota-il-diritto-di-avere-diritti/), notável jurista (e político recém-falecido) Stefano Rodotà, nos fala sobre “a necessidade inegável de direitos e de direito manifesta-se em todo o lado, desafia todas as formas de repressão e inerva a própria política. E assim, com a ação quotidiana, diferentes sujeitos encenam uma declaração ininterrupta de direitos, que tira a sua força não de alguma formalização ou reconhecimento de cima, mas da profunda convicção de mulheres e homens de que só assim podem encontrar reconhecimento e respeito pelos seus dignidade e pela sua própria humanidade. Estamos perante uma ligação sem precedentes entre a abstração dos direitos e a concretude das necessidades, que põe sujeitos reais a trabalhar”.
Para ele, certamente, “não os ‘sujeitos históricos’ da grande transformação moderna, a burguesia e a classe trabalhadora, mas uma pluralidade de sujeitos agora ligados entre si por redes planetárias. Não um “intelecto geral”, nem uma multidão indeterminada, mas uma multiplicidade laboriosa de mulheres e homens que encontram, e sobretudo criam, oportunidades políticas para evitar ceder à passividade e à subordinação”.
Mas, realmente, numa aferição que me surpreende porque ativa uma categoria metafórica com a qual instalamos toda uma linha de pesquisa (O Direito Achado na Rua, cf. Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq), ele prossegue: “Todos estes sujeitos ignoram o que, no final do século XVIII, começou em torno das duas margens do “Lago Atlântico”, não são dominados por alguma ‘tirania de valores’, mas interpretam, cada um à sua maneira, a liberdade e os direitos ao longo do tempo que vivemos. Aqui não é a ‘razão ocidental’ em ação, mas algo mais profundo, que tem as suas raízes na condição humana. Uma condição histórica, porém, não uma natureza da qual se possa extrair a essência dos direitos. Por que, de fato, só agora tantos condenados da terra os reconhecem, invocam, desafiam? Por que são eles os protagonistas, os adivinhos de um ‘direito achado da rua’? (‘diritto trovato per strada’)”.
Fecho a recensão com Roberto Aguiar. Conforme ele lembra, “tais modificações não podem acontecer no interior do direito estatal. Elas vêm das lutas pela transformação social e pela cristalização de direitos operativos, já existentes nos grupos dominados que se estruturam. Isso significa que só haverá o fim das incapacitações exacerbadas, pela mudança dos poderes políticos. Se houver tempo…” (p. 180).
(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
Luiz Recena Grassi. Rússia Resistente. Primeira Guerra Mundial com Alta Tecnologia, livro 2. 1ª edição. Brasília: Irmãos Recena Editora, 2024, 104 p.
Contato para aquisição: Rozane Oliveira (whatsapp 61-9839-9293)
O jornalista Luiz Recena que por anos foi correspondente do Correio Braziliense em Moscou, lançou no dia 20/04, a segunda edição (na verdade segundo volume) do livro sobre a guerra entre a Rússia e a Ucrânia, que caminha para o terceiro ano. “Rússia resistente” reúne uma leva de artigos analíticos publicados ao longo de 2023 e início deste ano no Blog do jornalista Vicente Nunes (Jornal Correio Braziliense).
Os textos de Recena organizados na obra têm o esmero analítico do jornalista experimentado capaz de mergulhar fundo no exame dos fatos sem se deixar iludir pela reverberação dos eventos espetacularizados pela mídia contemporânea, fiel ao seu lado (lado que a nutre e capitaliza).
Recena, da velha escola, mergulha na trama cultural que dá nervura aos acontecimentos. Com o estilo de correspondente, vivencia o entretecer dos fatos que animam os seus despachos. Viveu na União Soviética, testemunhou a Perestroika e a Glasnost. Impregnou-se da alma russa (sabe porque viu). Aprendeu que o urso hiberna, mas quando deixa o covil embora tenha os pelos amarfanhados, conserva as presas e as garras afiadas.
Talvez venha daí o título Rússia Resistente. Dura lição que Napoleão e von Paulus amargaram ainda que o aprendizado não aproveite apenas a eles e se restrinja a Borodino ou a Stalingrado. Aleksandr Vasilievsky e Georgy Jukov e antes deles Kutuzov mostraram, com as nuances de 1812 como ilustrou Tolstoi (Guerra e Paz) ainda que com discutível Filosofia da História, que a continuidade absoluta do movimento é incompreensível para o espírito humano, que só pode compreender as suas leis gerais se lhe for dado examinar determinadas unidades, porque o fracionamento arbitrário do movimento contínuo em unidades descontínuas produz a maior parte dos erros humanos; por isso que, diz Tolstoi, interpretando o velho urso, a arte da guerra é a arte de ser a um dado momento mais forte do que o inimigo.
Com uma visão que foge da análise rasa, Recena acredita que há chances de um possível cessar-fogo ou mesmo de um acordo de paz entre os dois países ainda neste ano. “É muito importante parar com o frenético mercado de armamentos em que se transformou o conflito. Quem ganhou dinheiro deve pensar, agora, na reconstrução da Ucrânia”, diz.
Para Recena, Estados Unidos e Europa estão mais preocupados, agora, com a guerra entre Israel e o Hamas, do que com as disputas entre russos e ucranianos. Não por acaso, o dinheiro enviado ao país de Volodimyr Zelensky está cada vez mais escasso. “Do ponto de vista político, Israel é muito mais importante do que a Ucrânia. Zelensky foi engabelado”, frisa.
E, na sequência da matéria, registra os principais trechos de entrevista que Recena concedeu ao Blog:
Como avalia a guerra entre a Rússia e a Ucrânia, dois anos depois? Há vencedor?
Esse é o tipo de conflito em que não há vencedores no final. Nenhum dos lados têm razão maior. Não adianta ficar discutindo quem invadiu quem sem analisar os elementos em volta do conflito, como, por exemplo, a tentativa de isolamento da Rússia pela União Europeia com o apoio dos Estados Unidos. O que era para ser uma convivência harmônica e produtiva se tornou uma guerra, porque, principalmente, a UE e os EUA foram cercando toda a fronteira da Rússia, que sempre soube se defender. Quando a União Europeia e os Estados Unidos não honraram um acordo com Mikhail Gorbachev, ele avisou: “Não mexam com a Rússia, deixem a Rússia quieta”.
É possível acreditar em um processo de paz? Por quê?
Sim, é possível. Acredito que, neste ano, o terceiro da guerra, haverá condições de algum tipo de acordo de paz, de cessar-fogo, de cessar as hostilidades, de parar o frenético mercado de armamentos em que se transformou o conflito. Está na hora de quem ganhou dinheiro vendendo armas parar um pouco e começar a pensar na reconstrução da Ucrânia, que é importante para o equilíbrio da Europa e mesmo do mundo.
Nesses dois anos de guerra, a Otan expandiu seu território de atuação, com a recente adesão da Suécia. O que isso representa?
Aparentemente, a primeira percepção é de que a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) está conseguindo o objetivo de isolar cada vez mais a Rússia. Mas são aparências. Acredito que a formalização da adesão de outros países à organização bélica vai permitir que, com regras bem mais claras, se busque o convívio pacífico. O foco tem ser a paz e não a venda de armas.
Até que ponto as eleições deste ano no Parlamento Europeu e nos Estados Unidos impactam o contexto internacional de guerra?
Com exceção das eleições dos Estados Unidos, os demais pleitos pelo mundo não têm impacto no conflito entre a Rússia e a Ucrânia. Os norte-americanos têm dinheiro, armas, projetos de guerra, teoria, prática e soldados. Portanto, os EUA são importantíssimos para começar e terminar uma guerra. Os europeus são coadjuvantes nesse processo. Na verdade, a Europa perdeu a capacidade de determinar para onde vai o mundo e para onde ela própria vai. Incharam de tal maneira a União Europeia com países tão díspares, que as desigualdades vão atrapalhar por muito tempo se chegar a uma verdadeira união em um bloco.
É visível a redução do apoio financeiro do Ocidente à Ucrânia. Como avalia isso?
Em primeiro lugar, foi um erro de avaliação. Os norte-americanos e os europeus acharam que seriam parceiros na missão de confinar geograficamente a Rússia a uma região que gostariam e que queriam. Só não contavam com a astúcia dos russos. O retorno do capital bélico foi baixo. A Ucrânia se mostrou um mau investimento, muito lento, ruim mesmo. Por isso, o apoio financeiro foi reduzido. Os europeus não têm o dinheiro que prometeram. Até hoje, chegou à Ucrânia um terço do combinado. Também não querem armar o país de Volodimir Zelensky. Não por acaso, estão enviando para os ucranianos sucatas bélicas, liberando os pátios de seus exércitos. Os países europeus mais ricos optaram por modernizar as suas Forças Armadas. Zelenski foi engabelado pelo discurso conquistador da União Europeia e dos Estados Unidos, que estão sempre atentos para ganhar mais espaço na geopolítica mundial. Há, ainda, um ponto importantíssimo, que reduziu o dinheiro para a Ucrânia: a guerra entre Israel e o Hamas, na Faixa de Gaza. Israel é mais importante do ponto de vista político do que a Ucrânia.
Vladimir Putin ganhou mais um mandato. O que isso representa para o futuro da guerra?
A reeleição de Putin pouco muda o quadro da guerra. Na minha opinião, o mais importante para Putin é ter uma força maior no futuro para negociar a paz ou o cessar-fogo. Ele é a Rússia.
É possível medir o impacto dos atentados promovidos pelo Estado Islâmico em Moscou sobre o governo russo e, por consequência, na guerra?
Na minha visão, é quase uma guerra para Putin. Está a ser construído uma nova hipótese de provocação ao poderio russo. Só que é uma sinuca de bico, porque apoiar o terrorismo mais enlouquecido contra a Rússia é sempre um risco. Penso que a questão se resume à região próxima ao país de Putin, onde estão vários países muçulmanos e radicais.
Esse segundo volume segue-se ao primeiro – Rússia Condenada. Primeira Guerra Mundial com Alta Tecnologia, preparado nas mesmas condições e circunstâncias (Rússia Condenada, a primeira guerra mundial com alta tecnologia, conforme – https://www.correiobraziliense.com.br/mundo/2023/06/5101160-livro-revela-guerra-paralela-da-informacao-no-conflito-entre-ucrania-e-russia.html#google_vignette
Por ocasião da publicação do primeiro volume Nunes destacou “a visão privilegiada do jornalista Luiz Recena Grassi, que foi correspondente na antiga União Soviética, permite uma leitura muito diferenciada da guerra entre a Rússia e a Ucrânia, que se arrasta por mais de um ano. Todo seu conhecimento tem sido compartilhado por meio de artigos semanais publicados no Blog do Vicente, do Correio Braziliense. O retorno foi tão grande, que o jornalista decidiu aglutinar todos os textos em um livro — Rússia condenada, a primeira guerra mundial com alta tecnologia —, que acaba de ser lançado pela editora independente Irmãos Recena”. Ele acentuou, depois de ouvir o Autor que “quando decidiu escrever os artigos, Recena optou por uma posição desengajada do apoio incondicional à Rússia ou à Ucrânia e crítica do desinteresse pela paz. Ele ressalta que é preciso entender o contexto histórico que está na base do conflito, o primeiro nas franjas da Europa desde o fim da Segunda Guerra Mundial”.
Recena pontuou que “A guerra atual está contaminada pelo uso da tecnologia e pela disseminação de notícias falsas por parte dos dois lados”, explica. “Desde o início do conflito existe uma guerra paralela de informação que, muitas vezes, não encaixa com a realidade mostrada pelas próprias notícias”, complementa. Isso, no entender dele, só aumenta a responsabilidade de todos os governos na busca por uma saída que ponha fim aos ataques e poupe vidas. Há civis morrendo todos os dias”. E, que “Desde que a Rússia fez os primeiros ataques à Ucrânia, o mundo sofreu consequências pesadas. Passou a conviver com a escassez de alimentos, o que empurrou os preços para cima, levando a Europa a registrar a maior inflação em pelo menos três décadas, movimento que se espalhou para o planeta. Para piorar, dependentes da Rússia na questão energética, os países europeus entraram em situação de emergência. As faturas arcardas pelas famílias ficaram tão caras, que milhares de lares caíram na pobreza, exigindo consecutivos socorros por parte dos Estados. A guerra só beneficiou um lado, o dos fabricantes de armas, como sempre”.
Vicente Nunes também traz uma nota biográfica do Autor. Recena, que estava morando há quase quatro anos em Portugal, é gaúcho, formado na primeira turma de jornalismo da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). A paixão pelas notícias e pelas palavras o fizeram se aventurar pelo mundo. Sua primeira experiência como jornalista, antes mesmo de sua formatura, foi na Razão de Santa Maria. Após obter o diploma, aportou em Brasília, onde trabalhou na Gazeta Mercantil, no Globo, na TV Globo, no Jornal de Brasília, no Correio Brasiliense, na Radiobras e na EBC.
Sua atuação, contudo, não se limitou ao Brasil. No México, deu aulas de redação em uma faculdade. Uma quase paródia a Rui Barbosa, que em Londres, durante seu exílio, acabou“ensinando, inglês aos ingleses”, Recena acabou “ensinando castelhano a mexicanos”.
Na ex-União Soviética, trabalhou na agência de notícias TASS e escreveu sobre a Perestroika e a queda do regime para jornais brasileiros e de Portugal, além fazer boletins para rádios do Brasil e da Alemanha. Em Paris, foi correspondente do Correio. Atualmente, colabora com o blog do Vicente, onde o livro começou a nascer. Aliás, no Blog, ao seu jeito de cronista, Recena ainda inovou com uma sessão – O Correio Sabe Porque o Correio Viu – um registro do seu cotidiano moscovita recriado por uma memória crítica e simultaneamente saborosa muitas das quais ouvidas por seus amigos nas rodas de conversas jogadas fora, na Quituart (a feirinha do Lago Norte), depois do futebol de sábado ou na Pizzaria Baco. Onde também líamos em primeira mão suas crônicas gourmet durante muito tempo publicadas na Revista Roteiro Brasília. Comida, Diversão e Arte, editada por seu amigo Adriano Lopes de Oliveira.
Nunes ilustra o estilo peculiar de Recena, nessas crônicas O Correio Sabe Porque o Correio Viu (O Correio, no caso, é o próprio Recena):
Estava lá. A jovem loura robusta ri e seus dentes de ouro brilham sob o teto do Mercado. Frestas filtram a luz do sol, frágil, mas capaz de devolver calor e sorrisos aos rostos soviéticos, a saudar o final de mais um inverno. “Orelha?”, a incrédula loura trava ao ouvir a resposta e a notícia de que a parte suína vai para panela, com outras carnes, linguiças e feijão preto. Feijoada, não conseguiu repetir.
Era demais para ela naquela quinta-feira de sol no bairro Dínamo. Caucasiana, os limites da barbárie não chegavam a uma panela. Só melhorou na troca de limões sicilianos por sacolas Louis Vitton, trazidas de Paris pelo correspondente. Vazias. Doação de amigos quando souberam que eram moeda de troca naquela Moscou da Perestroika, distante e misteriosa.
Feita na quinta e na sexta-feira, a feijoada foi servida no sábado. Quer dizer, começou no sábado e entrou domingo adentro. Farra digna de um Comitê Central. Brasileiros, russos que sabiam do Brasil, outras nacionalidades minoritárias. O amálgama eram o feijão preto, as carnes e caipirinha de cachaça. Sim, sobrou cerveja. Vodka, no limite.
Confraternização sem problemas e convivas partindo sob promessa de que haveria outra. Lembranças provocadas pela internacionalização da guerra e ações extra conflito, tipo a entrevista do novo embaixador da Ucrânia no Brasil, a reclamar da nossa neutralidade e falta de manifestações de apoio a Kiev e maldições a Moscou. Andrii Melnyk certamente não sabe o convívio entre nações. Feijoada nem pensar.
Esse é bem o Recena, sempre dando sutileza ao seu ofício, resiliente em sua mestria. Também tenho memórias. Com ele, como editor, publicamos na UnB – Faculdade de Direito, por três anos, um jornal tablóide, com o conceito de Observatório da Constituição e da Democracia. Resultados de nossas pesquisas em Direito Constitucional – https://estadodedireito.com.br/21528-2/ (Observatório da Constituição e da Democracia, C & D. Brasília: Faculdade de Direito da UnB/Sindjus-DF (Sindicato dos Servidores do Poder Judiciário e do Ministério Público em Brasília). Grupo de Pesquisa Sociedade, Tempo e Direito-STD. Ano I, número 1, janeiro de 2006…ano IV, número 35, julho/agosto de 2010).
Recena nos ajudava a aprimorar texto, organizar conteúdo e nos fazer legíveis. Há memórias antológicas dessa orientação e de sua argúcia editorial. Lembro aqui alguns episódios. Para limpar o texto ele dizia: “suprimam toda palavra que termine em mente. Livrem-se dos advérbios, façam amizade com os substantivos. Vocês juristas tomam o incidental como essencial, invertem a hierarquia do texto. Perdem um tempo enorme nos pressupostos e o leitor desiste de ler antes de chegar à conclusão. O/as jornalistas, ao contrário, lançam no primeiro parágrafo o núcleo informativo do texto pois, caso o leitor não chegue ao fim da leitura, já terá recebido a informação importante”. Recena sempre respeitou nossos textos, mas às vezes precisava fazer caber na diagramação todo o material. Uma ocasião foi inesquecível. Era o fechamento da edição e um autor-coordenador estava bravo uma vez informado de corte em seu texto. Recena quis se justificar e o colega logo obtemperou: “já li e reli a matéria e eu estou bravo não porque você cortou, mas porque eu não consigo encontrar o que você cortou”. Convimos que o Editor tinha razão, parece que a parte cortada não fez falta ao texto.
E Recena contou mais uma vez com a arte de nosso colega da turma do futebol – Pedro Koshino. Eu próprio, assim como O Pasquim, também me vali do traço singular e muito irônico do P. Koshino. Aliás, no meu caso, em publicação na Revista Roteiro (graças à mediação editorial do Recena), para crônica que fiz em homenagem ao imorrível (para nós) Jorjão (Jorge Ferreira):
Eu já havia destacado o traço do Pedro. Ele completou os textos de Gustavo Tapioca, nas crônicas reunidas em Uma Senhora Pelada proporcionando uma outra descoberta. Refiro-me ao desenho (cartoon, charge, ilustração) de Pedro K (K de Koshino). Talento também descoberto por Luiz Recena (Recena depois seria o editor do tablóide Observatório da Constituição e da Democracia que os Grupos de Pesquisa Sociedade, Tempo e Direito e O Direito Achado na Rua publicaram por três anos na UnB, com temas ainda insuperados), Pedro, caricaturista bissexto (porque nas horas vagas de seu ofício de auditor do Tribunal de Contas), cujos primeiros traços apareceram nos anos 1970 no Pasquim, para reaparecerem nas páginas do Tribuna do Brasil (outro experimento editorial de Recena) e que é, no livro, autor e personagem, em ilustrações marcadas pela irreverência, tal qual no pastiche (“Picasso, Perdão” p. 71), https://estadodedireito.com.br/meninos-do-rio-vermelho/.
Volto a Rússia Resistente. O livro, é compilação dos despachos ordinários sobre uma guerra que já vai para o terceiro ano, mas boa análise, com o auxílio interpretativo de excelentes fontes e consultores que Recena cultivou em seus tempos de correspondente na Europa. Mestre no ofício, Recena mostra “a guerra de forma transversal a grande mídia ocidental” – num jornalismo raro hoje em dia, que é autônomo e que toma lado no front (nada de novo, no sentido duro de Erich Maria Remarque).
(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)
José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.
Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.
Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Teoría de la Justicia. Norberto Bobbio. Edición a cargo de Alberto Filippi. 1ª ed. Buenos Aires, Argentina: Remedios de Escalada: De la UNLa – Universidad Nacional de Lanús; España: Tirant lo Blanch, 2023, 168 p.
Conforme o descritivo da Editora, a obra tema deste Lido para Você, é um projeto “en honor al vigésimo aniversario del fallecimiento del eminente pensador político y jurista italiano Norberto Bobbio, Tirant lo Blanch se enorgullece en anunciar el lanzamiento de su obra magistral ‘Teoría de la Justicia’. Esta edición, meticulosamente preparada, ha sido dirigida por el reconocido académico italiano Alberto Filippi, quien ha trabajado incansablemente para asegurar la fidelidad y la excelencia en la reproducción de la obra original.
La obra de Norberto Bobbio ha dejado una huella imborrable en el ámbito de la filosofía política y del derecho. Su profunda reflexión sobre la justicia, la democracia y los derechos humanos ha inspirado a generaciones de estudiosos y activistas en todo el mundo. Con ‘Teoría de la Justicia‘, Bobbio ofreció una visión penetrante y perspicaz sobre los fundamentos éticos y políticos de la justicia, estableciendo un marco conceptual indispensable para el debate contemporáneo sobre la igualdad, la libertad y la democracia.
‘Teoría de la Justicia‘, en esta nueva edición a cargo de Tirant lo Blanch, se presenta como una invitación a reflexionar sobre los desafíos éticos y políticos de nuestro tiempo. Es un homenaje al pensamiento de Norberto Bobbio, cuya vigencia y relevancia perduran más allá de las fronteras y las generaciones.
La obra ya se encuentra disponible en la web editorial de Tirant y en librerías especializadas. Nos complace profundamente poder contribuir a difundir y preservar el legado de uno de los grandes pensadores del siglo XX.
En el vasto panorama del pensamiento político y jurídico del siglo XX, pocas figuras destacan tanto como Norberto Bobbio. Este ilustre filósofo, politólogo y jurista italiano abrió un camino que continúa guiando los senderos de la democracia, los derechos humanos y la justicia en todo el mundo. En este artículo, exploraremos la vida, obra y legado de Norberto Bobbio, un visionario cuyo pensamiento sigue siendo relevante en la búsqueda de un orden social más equitativo y justo.
¿Quién es Norberto Bobbio?
Norberto Bobbio (1909-2004), destacado filósofo, politólogo y jurista turinés, fue una figura influyente en el campo de la teoría política y el derecho. Nacido en Turín, Italia y fallecido hace 20 años, Bobbio dejó un legado perdurable en el ámbito académico y social.
Su aporte se centra en la defensa de los valores democráticos, los derechos humanos y la justicia. Así, Bobbio fue un crítico incisivo de las dictaduras y los regímenes autoritarios, abogando por la protección de las libertades individuales y la promoción de un Estado de derecho.
Bobbio y su influencia en el ámbito jurídico
Uno de los aspectos más destacados de la contribución de Bobbio al derecho fue su enfoque multidisciplinario. Integró la filosofía, la sociología y la política en su análisis jurídico, proporcionando una perspectiva más amplia y completa de los problemas legales y sociales. Esto permitió que sus obras, como “Teoría General del Derecho” y “El Futuro de la Democracia”, se convirtieran en referencias fundamentales en el estudio del derecho.
Bobbio también se destacó por su defensa de los principios democráticos y los derechos humanos en el ámbito jurídico. Abogó por un sistema legal que garantizara la protección de las libertades individuales y promoviera la igualdad ante la ley. Su compromiso con la justicia distributiva y la equidad social lo llevó a analizar críticamente las estructuras de poder y las desigualdades en la sociedad, proponiendo soluciones basadas en principios éticos y democráticos.
Además, Bobbio desempeñó un papel activo en el debate público sobre cuestiones jurídicas y políticas. Sus opiniones y análisis influyeron en la opinión pública y en la formulación de políticas gubernamentales, contribuyendo así al desarrollo de un sistema legal más justo y equitativo.
Norberto Bobbio, a lo largo de su vida, desarrolló un pensamiento profundo y multifacético que abarcó una amplia gama de temas, desde la teoría política y jurídica hasta la ética y la filosofía. Su enfoque analítico y crítico lo convirtió en una figura influyente en el panorama intelectual del siglo XX. Una de las características distintivas de su pensamiento fue su capacidad para integrar diferentes disciplinas y corrientes de pensamiento, ofreciendo así una visión holística de los problemas sociales y políticos.
En sus obras, Norberto Bobbio exploró temas fundamentales como la democracia, los derechos humanos, la justicia y la libertad. Abogó por un enfoque pluralista de la democracia, que garantizara la participación activa de los ciudadanos y el respeto por las minorías. Además, Bobbio defendió la importancia de proteger los derechos individuales frente al poder del Estado, promoviendo así un sistema legal que garantizara la igualdad ante la ley y la dignidad humana.
Su pensamiento también se caracterizó por su compromiso con la ética y la moralidad en la vida pública y privada. Bobbio abogó por la responsabilidad individual y colectiva en la búsqueda del bien común, argumentando que una sociedad justa y equitativa solo puede lograrse a través del compromiso con los valores éticos y democráticos.
Norberto Bobbio, a lo largo de su vida, recibió numerosos honores y reconocimientos por su destacada contribución al pensamiento político y jurídico. Uno de los momentos más destacados en su carrera fue cuando fue nombrado senador vitalicio de Italia, un título honorífico otorgado por el Presidente de la República, Sandro Pertini. Este nombramiento no solo reconoció su excelencia académica, sino también su compromiso con los valores democráticos y los derechos humanos.
Además, Bobbio fue distinguido con el título de Doctor honoris causa por diversas universidades de renombre en todo el mundo. Entre estas universidades se encuentran la Universidad de París, la Universidad de Buenos Aires, la Universidad Complutense de Madrid, la Universidad de Bolonia, la Universidad de Chambéry y la Universidad Carlos III de Madrid. Estos honores subrayan la importancia y la influencia global de su trabajo, así como su impacto duradero en el pensamiento académico y político en todo el mundo.
Para a divulgação da obra, nesta edição especial, a Editora distingue o notável trabalho realizado por Alberto Filippi: “Editado por el reconocido académico italiano Alberto Filippi. La labor de Alberto Filippi en esta edición ha sido fundamental para preservar la integridad y el valor intelectual de la obra de Bobbio. Su experiencia y su profundo conocimiento del pensamiento del autor han permitido ofrecer al público una versión que respeta fielmente el legado del maestro italiano”.
Com efeito, partilho há muitos anos, com Alberto Filippi, algumas agendas de interesse comum, notadamente aquelas que dizem respeito à formação universitária emancipatória desde a América Latina, no intercâmbio afetivo com seus grandes amigos Darcy e Berta Ribeiro.
Assim, que entre os vários momentos de conferências e rodas de conversas, guardamos registros memorialistas da passagem de Alberto pela UnB, sua vivacidade e pensamento inquieto: https://www.youtube.com/watch?v=OmGOX04_neo, Diálogos Unb TV Universidade Darcy Ribeiro e América Latina, programa com a participação do professor da UnB José Geraldo de Sousa Júnior e do professor da Escuela de Serviço Judicial, da Argentina Alberto Filippi.
Mas anoto com mais orientada indicação, o belo texto que me ofereceu: Os direitos nas ruas da resistência e nos caminhos do exílio entre América e Europa, para a obra que co-organizei – Sousa Junior, José Geraldo de. O direito achado na rua : introdução crítica à justiça de transição na América Latina / José Geraldo de Sousa Junior, José Carlos Moreira da Silva Filho, Cristiano Paixão, Lívia Gimenes Dias da Fonseca, Talita Tatiana Dias Rampin. 1. ed. – Brasília, DF: UnB, 2015. – (O direito achado na rua, v. 7).
Do texto de Alberto recorto passagem valiosa: “É sobre essas relações e vínculos do insigne intelectual e militante brasileiro pelas ruas da América Latina que, 46 anos depois, me proponho evocar por ocasião de minha primeira e tão sonhada visita à Universidade de Brasília (UnB). Na oportunidade, participei como conferencista na Aula Magna “América Latina, Democracia, Direitos Humanos e Justiça de Transição” dos programas de pós-graduação em Direitos Humanos e Cidadania (PPGDH) e em Desenvolvimento, Sociedade e Cooperação Internacional (PPGDSC), do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (CEAM), e fui provocado a estabelecer um diálogo crítico entre Filosofia, Política e Direito. Naquele momento, experimentei uma profunda sensibilização decorrente do lugar de fala das atividades, que foram realizadas no Memorial Darcy Ribeiro, e problematizei a des-historialização dos direitos desde as categorias específicas que são trabalhadas pelo “O Direito Achado na Rua” como essenciais para compreender as lutas por liberdade na América Latina. Nesse sentido, a obra de José Geraldo de Sousa Junior, intitulada “O Direito como Liberdade”, serviu como referência teórica com a qual dialoguei para fundamentar minha tese de que a persistência de direitos sem memória favorece a não memória dos direitos. É dizer: a des-historialização dos direitos, considerada como fenômeno em que os processos e os contextos de luta histórica por direitos e liberdades são esquecidos, esvazia o seu conteúdo e repercute negativamente na construção social e plural das democracias. Utilizando a “rua” como metáfora do lugar em que os direitos constituem-se e no qual identificamos as práticas instituintes, invoquei a contextualização das lutas por direitos “pelas ruas da América Latina” como estratégia para recuperar a memória histórica dos direitos e, assim, refletir sobre o desafio de integração latino-americana”.
Daí se percebe a troca sempre atualizada de referências desde a perspectiva dos direitos humanos, talvez o mais forte elo de significação de nossa agenda comum. Neste caso, associada a outro grande intérprete de Bobbio, o ítalo-brasileiro Giuseppe Tosi (graduado em Filosofia pela Universidade Católica de Milão (1977); doutor em Filosofia pela Universidade de Pádua (1999); pós-doutorado em Teoria e História dos Direitos Humanos pela Universidade de Florença (2005) e Camerino (2012). Desde 1989 é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal da Paraíba; membro do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos; professor dos programas de pós-graduação em Filosofia e em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas da UFPB. Publicou várias obras no Brasil e no exterior sobre temas de filosofia política, teoria e história dos direitos humanos, educação em direitos humanos, justiça de transição).
Duas notas sobre Tosi, relacionadas a Norberto Bobbio. A primeira, referente ao livro digital, contendo 52 comunicações apresentadas no “V Seminário Internacional de Direitos Humanos da UFPB”, ocorrido de 9 a 12 de novembro de 2009 em João Pessoa, tendo como tema: “Norberto Bobbio: Democracia, Direitos Humanos, e Relações Internacionais”. Tosi explica que o evento, promovido pelo Núcleo de Cidadania e Direitos Hu-manos do CCHLA e pelo Centro de Ciências Jurídicas (CCJ) da UFPB, em parceria com o “Dipartimento di Teoria e Storia del Diritto” e o Jura Gentium.Centro di Studi della Filosofia del Diritto e della Politica Globale” da Universidade de Florença, Itália e da “Escola de Direito” da Universidade do Minho, Braga, Portugal. O evento contou com o apoio da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República-SEDH-PR, da Secretaria de Alfabetização Continuada e Diversidade do Ministério da Educação-SECAD/MEC, da CAPES e do Consulado Italiano em Recife, resultou em dois volumes reúnem as comunicações de professores, estudantes, pesquisadores, militantes de direitos humanos de todo o Brasil (e alguns do exterior), provenientes de várias áreas das ciências humanas e sociais: direito, filosofia, história, educação, psicologia, antropologia, sociologia, ciência política, geografia, relações internacionais.
A segunda nota coloca Tosi como um leitor credenciado de Bobbio, com seu livro 10 lições sobre Bobbio (Giuseppe Tosi, Editora Vozes, 28 de dez. de 2023 – 136 páginas). O eixo de leitura de Tosi está em dar relevo ao Bobbio, “um mestre e um clássico da filosofia do direito e da política contemporâneas e seus estudos abordam, principalmente, a mediação e o diálogo, no momento em que, no Brasil e na América Latina, estão se acirrando as intolerâncias e as intransigências ideológicas, a lição de Bobbio está na retomada do que há de melhor na tradição iluminista e racionalista ocidental, contra os fundamentalismos, fanatismos e outras formas de extremismo”.
É nessa clivagem que em Bobbio significa repensar o socialismo (qual socialismo?), e aberta essa discussão, mais politizar do que normatizar o jurídico, que vai se por a leitura que Alberto Filippi faz do grande pensador, para expor um modo de ler a sua teoria da justiça.
Filippi é agora uma voz pontifícia. Com efeito, em seguida ao colóquio promovido pela Pontifícia Academia de Ciências Sociais do Vaticano, sobre Colonialismo, Descolonização e Neocolonialismo, da qual participaram especialistas provenientes de diversas partes do mundo, sobretudo juízes e juízas (https://brasilpopular.com/vaticano-conferencia-sobre-colonialismo-descolonizacao-e-neocolonialismo/), o Papa Francisco vem enfatizando a importância de juízes e juízas, para um mister que contribua para superar desigualdade, conter perdas de direitos e assegurar a dignidade da existência. Em http://estadodedireito.com.br/justicia-poetica-la-imaginacion-literaria-y-la-vida-publica/, anotei como de modo muito direto, porque dirigindo-se a juízes e juízas em encontro remoto com juristas das Américas e da África – Primeiro Encontro virtual dos Comitês para os Direitos Sociais da África e da América – ele exortou: “uma sentença justa é uma poesia que repara, redime e nutre” (https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2020-11/papa-francisco-juizes-africa-america-sentencas.html). “Nenhuma sentença pode ser justa, – ele ainda afirmou – se gera mais desigualdade, mais perda de direitos, indignidade ou violência”.
No encontro de agora, o Papa aponta para a sutileza atual de um neocolonialismo constituído como um crime e um obstáculo à paz (https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2023-04/papa-francisco-neocolonialismo-mensagem-ciencias-sociais.html). Na reflexão do Pontífice, embora no século XXI não se possa mais falar, tecnicamente, de países “colonizados”, do ponto de vista geográfico, nos aspectos econômicos e ideológicos, o colonialismo mudou em suas formas, métodos e justificativas. O que também preocupa o Papa Francisco é o colonialismo ideológico, que tende a uniformizar tudo, sufocando a ligação natural dos povos aos seus valores, desenraizando tradições, história e vínculos religiosos. Esta é uma mentalidade que não tolera diferenças e se concentra apenas no presente e nos direitos individuais, descuidando dos deveres com os mais fracos e frágeis.
Na síntese preparada pelo Dicastério há, na Mensagem de Francisco, a preocupação de que os interesses da ganância promovam a substituição da verdade por justificativas de dominação: “Eis as características do colonialismo contemporâneo. Como se, sublinha o Pontífice, diversos séculos de experiências históricas, sangrentas e desumanas, não tivessem servido para amadurecer uma ideia global de libertação, autodeterminação e solidariedade entre as nações e os seres humanos. Agora, tudo é mais sutil e corre-se o risco de que as verdadeiras causas, que levaram ao colonialismo, sejam substituídas por leituras históricas, que justificam a dominação com presumíveis lacunas “naturais” dos colonizados”.
E essa síntese vai para a Declaração Final da Cumbre Por un mundo más justo Colonialismo, Descolonización y Neocolonialismo: Una perspectiva de justicia social y bien común cujo teor e pronúncia coube a Alberto Filippi apresentar.
Não será extravagante encontrar na declaração um eco da distinção político-jurídica em Bobbio (Direita e esquerda razões e significados de uma distinção política. São Paulo: Editora UNESP, 2003), cuja atualidade tem como ponto de ruptura a diversidade dos modos de encarar o problema da desigualdade social e de traçar seus diagnósticos e prognósticos, desvelando a permanência de antigos conflitos por trás de novas situações socioeconômicas e geopolíticas.
Ler Teoria da Justiça de Bobbio, com a chave interpretativa de Alberto Filippi, me proporcionou estranhar da concepção de Bobbio uma acentuada positivação que me parecia isolar o jurídico num formalismo árido e estiolante, inacessível a teorias de sociedade e de justiça.
De fato, eu divisava em campo mais radical – guerra e paz, caos e ordem – (v. no livro o capítulo La justicia como paz, p. 81-94) uma derivação hermenêutica reduzida à legalidade acaba estiolando o jurídico de uma dimensão ética que o incruste em concepção de justiça que não seja a da ideologização própria do positivismo.
Em Bobbio, em que pese a sofisticação de sua visão normativista assim como aparece, por exemplo, na Era dos Direitos, renunciando ao filosófico para assimilar com logicidade o jurídico que se encarna no político, enviesa a questão da justiça mesmo que ao largo de qualquer inferência metafísica.
Veja-se, em questão limite, a sua autoridade quando fundamenta as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos – os direitos do homem, a democracia e a paz – e o modo como a guerra é definida relativamente ao direito, numa formulação estritamente jurídico-formal, nos quatro tipos por ele enunciados: a guerra como meio de se afirmar o direito; a guerra como objeto de regulamentação jurídica, ou seja, a legalidade da conduta dos beligerantes e sua conformidade com as normas de direito internacional; a guerra como fonte de um direito novo e a guerra como antítese do direito (BOBBIO, Norberto. El Problema de la Guerra y las Vias de la Paz. Barcelona: Gedisa, 1979).
Em A Crise do Golfo: a Deriva do Direito (in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Sociologia Jurídica: Condições Sociais e Possibilidades Teóricas. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 2002, p. 133-144), a propósito de minha participação no Colóquio Internacional de Argel Encontro de Personalidades Independentes: Crise du Golfe: la Derive du Droit, Argel, 1 e 28 fevrier; 1 e 2 mars 1991), anotei o quanto essa questão leva ao se deixar arrastar pela lógica da guerra. E tomei com referência o próprio Bobbio, a partir de entrevista que concedeu após ocupação do Kuwait antes mesmo que a guerra começasse, transcrita por Celso Lafer De sua manifestação pude deduzir a possibilidade legalmente autorizada do conflito levando a que qualificasse – o que me parecia e logo se revelou na sequência dos acontecimentos, a imposição hegemonista de interesses multinacionais autoconstituídos travestidos de aparência de direito internacional.
No argumento de Bobbio, tratava-se de guerra justa porque se fundava no direito de restabelecer legalidade violada, na condição de que os responsáveis pela condução da guerra, a assimilavam a um mal menor, alegando submeter-se aos limites de meios definidos nas regras previstas pelo direito, no que se preservassem a proteção às populações civis, tratamento de prisioneiros, disciplina dos meios e métodos das ações militares, com o propósito de evitar sofrimentos e danos desnecessários e supérfluos (LAFER, Celso. A Guerra Justa dos Aliados, Jornal do Brasil, Ideias/Ensaios, 3.2.1991).
Menos que que extrair da obra, avant la lettre, os enunciados do próprio Bobbio, quero mais obter do estúdio introductorio (las formas de la democracia y la justicia en las filosofias de Bobbio), a cargo de Alberto Filippi, a sua maneira de ler a obra do autor homenageado. Até porque me identifico com o método. Penso que Filippi opera como eu próprio, uma vez que, diferentemente do método de situação que é tomar o pensador em seu tempo, como fez Jacques D’Hondt (Hegel en son temps, Editions Sociales, Paris, 1968)), ou Floriano Cavalcanti (Antonio Marinho e seu tempo, Separata da Revista da Academia Norte-Riograndense de Letras, Natal, 1955) – autor que eu estudei -, nas referências feitas, têm-se em conta uma autoria para além de seu tempo. E é esse projetar-se para o futuro que leva a perceber, a completude transeunte de um percurso que se divisa em cada passagem e em cada tema, e não apenas no recorte operacional ou conceitual – ação e pensamento – que mobiliza (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Floriano Cavalcanti de Albuquerque, Um Juiz À Frente de Seu Tempo. In ALBUQUERQUE, Marco Aurélio da Câmara Cavalcanti de. Desembargador Floriano Cavalcanti de Albuquerque e sua Brilhante Trajetória de Vida. Natal: Infinitaimagem, 2013, págs. 329-338; v. https://estadodedireito.com.br/desembargador-floriano-cavalcanti-de-albuquerque-e-sua-brilhante-trajetoria-de-vida/).
Assim, Bobbio, diz Filippi em sua atualizadora e contextualizadora leitura desse grande pensador, rompe com esquematismos estiolantes para acentuar um processo que se modifica sem se relativizar: “Em realidade – insistia Bobbio – no se trata de dos concepciones distintas de la justicia, sino más bien de dos momentos del processo histórico a través del cual la justicia puede realizarse. La justicia legal representa el momento de la restauración de um orden que há sido violado, la conservación de ideales que se consideran todavia vivos, el valor del orden en contra del desvalor do lo arbitrário, el valor de la igualdad frente a la ley en contra de la prevaricación y el privilegio. La justicia sustancial representa, en cambio, el momento de la reforma o de la revolución, la exigência de afirmar nuevos valores que exigen ser satisfechos, como el valor de la libertad en contra de um orden que se ha vuelto opressor” (p. 21).
Filippi põe em relevo os dualismos não só epistemológicos, como políticos, armando clivagens para desafiar o pensamento fundante do potente filósofo que se propõe estudar. Assim, sem que isso possa se traduzir em fecho de obra, com pretensão de síntese, Filippi lembra que estão presentes no pensamento de Bobbio “valores filosóficos-jurídicos nos quais convergem sua experiência histórica concreta e sua formação política que teve seus eixos dominantes nos valores da justiça e da liberdademas também, direita e esquerda, condição para melhor esclarecer o lugar que assinalo para os valores supremos da igualdade e da liberdade na interpretação da grande divisão: grande na história da luta política da Europa no último século (XX), e conforme minha obstinada e convicta opinião, divisão mais viva do que nunca (p. 44).
É ainda Alberto Filippi que vai sinalizar esse modo de compreensão em Bobbio, conforme sua mirada de dentro e de fora, da Itália e da Europa – Filippi acentua as relações do pensamento inconcluso do filósofo, na teoria da política, da justiça e do direito, também em perspectiva ibero-americana e distinguidamente latinoamericana – uma singularidade que lhe permite atravessar o labirinto de sua contemporaneidade, e protagonizar o processo histórico de construção dos direitos, em seu vínculo entre ‘democracia, direitos humanos e paz’ enquanto componentes necessários de toda concepção bobbiana: sem direitos humanos reconhecidos e juridicamente protegidos não há democracia e sem democracia não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos (p. 45).
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
Direito à Consulta e Consentimento de Povos Indígenas, Quilombolas e Comunidades Tradicionais
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
Direito à Consulta e Consentimento de Povos Indígenas, Quilombolas e Comunidades Tradicionais. Biviany Rojas Garzón, Erika M. Yamada, Rodrigo Oliveira. – São Paulo: Rede de Cooperação Amazônica – RCA, 2016.
Protocolos Autônomos de Consulta e Consentimento. Guia de Orientações. Erika M. Yamada, Luís Donisete Benzi Grupioni, Biviany Rojas Garzón. – São Paulo: RCA – Rede de Cooperação Amazônica, 2019.
As publicações que apresento neste Lido para Você, foram trazidas para exposição e compartilhamento por ocasião de painel, realizado e transmitido pelas redes sociais do Centro Cultural de Brasília (Jesuítas), com o apoio das mesmas entidades que promovem mensalmente os chamados Diálogos de Justiça e Paz: o OLMA – Observatório Nacional de Justiça Sociambiental Luciano Mendes de Almeira, a CJP/DF – Comissão Justiça e Paz de Brasília e a CBJP – Comissão Brasileira de Justiça e Paz.
Sobre o painel, uma iniciativa do COPAJU Brasil (O Comitê Pan-Americano de Juízes e Juízas para os Direitos Sociais e a Doutrina Franciscana – COPAJU foi constituído em 4 de junho de 2019 na Cidade do Vaticano, sob a inspiração das palavras de Sua Santidade o Papa Francisco) e a Rede de Cooperação Amazônica, com a participação de mulheres indígenas, entre elas as que participaram do painel
Para a integral apreensão do roteiro do painel, as participações que lhe deram conteúdo, e seus objetivos, pode-se conferir https://www.youtube.com/watch?v=xE0V_TcvMNA, Percursos & Perspectivas – Encontro com Mulheres Indígenas da Rede de Cooperação Amazônica: Convenção 169 da OIT.
De relevo o fato de que o eixo da atividade foi a apresentação dos conceitos, enunciados e, sobretudo, com a locução das mulheres indígenas, a apresentação de um conjunto de registros de protocolos autônomos de consulta e de consentimento, e de experiências que permitiram realizar o modo como foram livremente estabelecidos por povos e comunidades, notadamente na região amazônica. E a mobilizada e comprometida moderação a cargo da Juíza Ananda Tostes Isoni, do TRT 10ª Região, Coordenadora-Geral do COPAJU Brasil.
Nos dois textos postos em relevo, em formato de informação e de guia de procedimento, o instituto da consulta é descrito e situado no contexto de sua formulação, a partir da Convenção 169, da OIT – Organização Internacional do Trabalho (ONU), ratificada pelo Brasil.
No primeiro – Direito à Consulta e Consentimento de Povos Indígenas, Quilombolas e Comunidades Tradicionais – de modo claro, bem informado (como orienta o próprio instituto da consulta – os organizadores identificam o marco normativo e jurisprudencial que explica o mecanismo, os desafios para a implementação do direito à consulta e consentimento, oferecem uma reflexão crítica acerca dos percalços de implementação e abrem um capítulo de recomendações em prol da efetivação do direito à consulta prévia no Brasil.
No segundo – Protocolos Autônomos de Consulta e Consentimento. Guia de Orientações – como o título indica, o objetivo é oferecer uma espécie de manual de uso: em seguida a uma Introdução que esclarece a natureza e os conceitos fundamentais que designam o instituto (consulta), os organizadores o contextualizam desde a perspectiva do dever do Estado de consultar e de buscar o consentimento livre, prévio e informado; indicam o sujeito legítimo a quem se destina e que deve ser o protagonista do processo – o direito de decidir como ser consultado; estabelecem os fundamentos que dão autenticidade ao sistema – para que servem os protocolos de consulta? e a oportunidade para a sua realização – o momento adequado da consulta. Na sequência, o guia de procedimentos: modo de se fazer uma consulta adequada e dicas práticas para a elaboração de Protocolos de Consulta (Dicas para trabalhar informações sobre o contexto local; dicas sobre o Direito à Consulta Prévia e Consentimento; dicas sobre organização social e representação política). Ao final arrolam materiais de referência (Direito à consulta prévia e protocolos de consulta).
Chamo a atenção para outro evento que precedeu o debate inscrito em Percursos & Perspectivas, realizado duas semanas antes no mesmo espaço sob enfoque próximo: https://www.youtube.com/watch?v=9LqU6B1Yn-Q. Nessa edição do Diálogos de Justiça e Paz com o tema Luta Indígena e o Marco Ancestral“. Para fomentar essa conversa, o DJP recebe Kretã Kaingang, liderança da Arpin Sul e Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Angela Inácio Kaingang, cacica da Retomada Faxinal do Rio Grande do Sul, e Luis Ventura, Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Luiz Felipe, do Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida (Olma) e da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), é o responsável por mediar esse diálogo.
Entre os expositores uma cacica (Angela Inácio Kaingang), liderança da Retomada Faxinal, no Rio Grande do Sul. Destaco a designação. Entre temas fortes que o evento trouxe, a partir do título, ao opor a noção de marco ancestral, à exdrúxula e astuciosa expressão colonizadora forjada pelo agronegócio e pelo latifúndo, marco temporal, os indígenas e aliados logo identicaram os grandes eixos que marcam sua luta autônoma, de sujeitos coletivos, para formar a agenda da afirmação de seus direitos originários: retomada, desintrusão, autodemarcação e elaboraão de protocolos autônomos de consulta e consentimento.
Aliás, essa agenda já vem sendo constituída pela ação política dos povos e comunidades. Basta olhar com atenção as pautas de diferentes modos de trazer a debate as questões que mobilizam os povos e comunidades. Eu próprio me dei conta disso, em meu ofício acadêmico e social.
Assim, quando examinei a dissertação de MATHEUS DE ANDRADE BUENO. Ouça um bom conselho: povos-floresta, o caso da UHE Belo Monte (Monstro) e práticas reconstituintes de direitos na Amazônia brasileira. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (CEAM) – https://estadodedireito.com.br/ouca-um-bom-conselho-povos-floresta-o-caso-da-uhe-belo-monte-monstro/.
Nesse estudo vê-se que se agregam à intensa e constante resistência dos povos tradicionais, verificada não apenas no enfrentamento do projeto da UHE Belo Monte, mas ilustrada a partir dele. Com efeito, as práticas reivindicatórias no ambiente da Amazônia brasileira, sobretudo a partir de mobilizações dos povos tradicionais, consistem efetivamente em práticas, não se exaurindo em atos episódicos.
Também, em https://estadodedireito.com.br/o-mercado-de-carbono-e-o-direito-dos-povos-xinguanos/, dissertação de mestrado de Ewésh Yawalapiti Waurá. O mercado de carbono e o direito dos povos xinguanos. Dissertação de Mestrado defendida na Faculdade de Direito – Programa de Pós-Graduação em Direito. Brasília: UnB, 2023. Por coincidência, Ewésh é sobrinho de Watatakalu Yawalapiti que se apresentou com muita força no debate sobre a Convenção 169.
No seu trabalho Ewésh se posiciona estabelecendo como objetivos do seu estudos “entender e compreender: 1) o que é mercado de carbono, quais as bases jurídicas e normas de sua regulamentação; 2 ) como se dá na prática com contratos de carbono envolvendo povos indígenas, quais os riscos, os requisitos e os tipos de contratos de crédito de carbono; 3) como os povos indígenas vem se organizando para defesa dos direitos na temática de mercado de carbono, quais são os sistemas da Governança Geral do Território Indígena do Xingu e sua compreensão sobre o tema”.
Mas uma boa síntese pode ser encontrada em livro recentemente publicado, com apoio do ISA – Instituto Socioambiental, no qual tem papel organizativo alguns dos que também cumprem essa função nos dois textos em destaque neste Lido para Você.
Conforme indiquei -https://estadodedireito.com.br/tribunais-brasileiros-e-o-direito-a-consulta-previa-livre-e-informada/ – vale mergulhar no oitavo capítulo, a cargo de Juliana de Paula Batista, Luiz Eloy Terena, Luiz Henrique Reggi Pecora e Vercilene Francisco Dias. No capítulo eles discutem a relação do Supremo Tribunal Federal com a consulta prévia, livre e informada. Daniel Lopes Cerqueira e Biviany Rojas Garzón, no nono capítulo, apresentam uma coletânea e sistematização analítica de decisões da Corte IDH sobre o direito à consulta e consentimento prévio, livre e informado de povos indígenas e tribais. Por fim, no capítulo conclusivo, Rodrigo Magalhães de Oliveira, Liana Amin Lima da Silva e Joaquim Shiraishi Neto tecem, juntos, a análise sistemática e um balanço crítico da jurisprudência brasileira.
A obra tem caráter único, enquanto repositório crítico de jurisprudência de tribunais. Atualmente há todo um esforço acadêmico, organizacional e funcional no sentido de dar evidência ao alcance da Convenção 169, da OIT, que trata da Consulta. Anoto, por exemplo, Convenção n. 169 da OIT e os Estados Nacionais/Organizadora: Deborah Duprat. – Brasília: ESMPU, 2015, resultado de seminário realizado em 2014, pela 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, e que dá origem à presente obra, teve por eixo os contextos nacionais na aplicação da Convenção n. 169. Seu propósito foi fazer avançar, no nosso âmbito interno, a concretização desse documento, colhendo da experiência de outros países os avanços obtidos e, com eles, exercitar uma reflexão que possibilite superar as dificuldades que nos são comuns.
Penso que todos esses esforços, incluindo o livro ora Lido para Você, vêm reforçar estratégias que contribuem para designar – eu o disse em outro texto (https://estadodedireito.com.br/povos-indigenas-no-brasil-2017-2022/), o alcance insurgente das lutas dos povos indígenas, para as quais chamo a atenção, para que sejam lidas em matérias, artigos, entrevistas e palavras indígenas que dão atualidade à obra, entre outras manifestações que logo procurei examinar: É a Hora de Ouvir: Protocolos Autônomos de Consulta e Consentimento, de Biviany Rojas Garzón e Luíz Donisete Benzi Grupioni; Retomar e Fortalecer a Funai, de Fernando Vianna (Fedola), Luana Almeida e Mitia Antunha; Protocolo de Consulta e Fortalecimento do Movimento Indígena no Rio Negro, de Renata Carolina Corrêa Vieira e Renato Martelli Soares; Comunidades Indígenas Engajam-se na Autodemarcação, de José Cândido Ferreira, Patrícia Carvalho Rosa e João Bento Ramos; “Autodemarcação é Ato Político. É a Nossa Forma de Dizer que essa Terra é Nossa”, Entrevista concedida à equipe de edição; Desintrusão da TI Pankararu (PE) e Covid-19 no Real Parque (SP), de Arianne Rayis Lovo; A Autodemarcação do Povo Nawa, de Fábio Pontes e Alexandre Noronha; Povo Pataxó Retoma Territórios Tradicionais, de Tiago Miotto; Território Insurgente – o Uso da Terra nas Retomadas Terena, de Carolina Perini de Almeida e Gilberto Azanha; O Conselho do Povo Terena como Instância de Consolidação das Retomadas, box; Os Avá Guarani e as Retomadas pela Terra e pela Vida, de Rafael Nakamura e Júlia Navarra.
Incluo ainda, como leitura necessária, o artigo de Eloy Terena e Roberta Amanajás – “O Direito Constitucional à Retomada de Terras Indígenas Originárias”. Este texto está lançado em obra coordenada pela FIAN Brasil e pelo Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua (O Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas: enunciados jurídicos / Organização Valéria Torres Amaral Burity, Antonio Escrivão Filho, Roberta Amanajás Monteiro, José Geraldo de Sousa Junior. 1ª edição. Brasília: FIAN Brasília; O Direito Achado na Rua, 2020). Para os autores, “as retomadas dos territórios tradicionais podem ser entendidas como atos de resistência em defesa dos direitos humanos” e por essa via, inseridos constitucionalmente e convencionalmente ao direito dos povos indígenas ao “Território tradicional, do Direito à Identidade Cultural e da inadequação ou omissão de políticas públicas articuladas e específicas”.
A referência ao trabalho que Raquel Yrigoyen vem imprimindo ao IIDS, valeu, exatamente nesse momento, seu credenciamento para se fazer representar em Audiencia Pública do Pedido de Opinião Consultiva sobre “Emergência Climática e Direitos Humanos” apresentada pela República da Colômbia e pela República do Chile (SECRETARÍA DE LA CORTE, San José, 12 de abril de 2024 REF.: CDH-SOC-1-2023/1529, Opinión Consultiva SOC-1-2023), que será realizada presencialmente em Brasília, Brasil, no dia 24 de maio de 2024, e em Manaus, Brasil, nos dias 27, 28 e 29 de maio de 2024.
Explica Raquel que “el planteamiento que hemos enviado desde el IIDS, para ser considerado por la Corte IDH en su Opinión Consultiva, señala que las actividades extractivas en territorios indígenas, como el secamiento de lagunas para la minería a cielo abierto (como está autorizado en el caso Conga o Río Blanco), o la tala de bosques para la extracción de petróleo (como está autorizado en el caso Achuar) o actividades agroindustriales o mineras, es una causa central del calentamiento global y la emergencia climática mundial. Ello se debe a concesiones inconsultas otorgadas por el Estado a favor de corporaciones extractivistas, en violación de derechos de los pueblos indígenas a su integridad territorial, autodeterminación, participación, consulta y consentimiento previo, libre e informado. Y, además, generan criminalización y violencia institucional por décadas, cuando los pueblos defienden sus territorios para evitar tales actividades de destrucción de su territorio y secamiento de fuentes de agua. Ante ello, planteamos la declaratoria de la nulidad de las concesiones extractivas otorgadas sin consulta ni consentimiento previo, libre e informado, como una medida necesaria que, simultáneamente, garantizaría los derechos de los pueblos indígenas y protegería el planeta del calentamiento global y la emergencia climática que padecemos. Esa es nuestra posición como IIDS”. Não são diferentes esses temas dos que também nos afligem.
Daí a importância de uma forte mobilização que vem caracterizando a luta dos povos e comunidades indígenas a partir dos temas fortes dessa agenda. Relevo para para a elaboração autônoma de protocolos de consulta e de consentimento e para enfrentamento às teses jurídicas que são continuamente erigidas para afrontar os direitos indígenas (AS TESES JURÍDICAS EM DISPUTA NO STF SOBRE TERRAS INDÍGENAS. Conselho Indígena Tapajós Arapiuns – CITA e Terra de Direitos. Apoio: Misereor. Autores: Auricelia dos Anjos, Elida Lauris, Pedro Sérgio Vieira Martins e Raimundo Abimael dos Santos. Contribuição: Franciele Petry Schramm, José Lucas Odeveza e Lizely Borges Foto da capa: Gabriele Siqueira. Diagramação: Sintática Comunicação. Agosto de 2021 (https://terradedireitos.org.br/uploads/arquivos/Justica-e-o-marco-Temporal-de-1988-(final).pdf); https://bit.ly/tesesmarcotemporal. Cf. https://estadodedireito.com.br/as-teses-juridicas-em-disputa-no-stf-sobre-terras-indigenas/).
Nas ilustrações são apresentados alguns modelos desses protocolos autônomos que foram apresentados aos participantes do evento realizado no Centro Cultural de Brasília. O seu teor pode ser conferido nas edições virtuais dos documentos. São muitos, mas não são todos. Em Procolos Autônomos de Consulta e Consentimento. Um olhar sobre o Brasil/Belize/Canadá/Colômbia, há uma lista de protocolos autônomos de consulta, formada pelos que foram analisados para a obra. Belize, 1; Brasil,23; Canadá, 7; Colômbia, 5.
No evento, o Ministro Lélio Bentes, presidente do Tribunal Superior do Trabalho, recapitulo os elementos constitutivos do instituto da consulta. Até mais porque, com a memória de 14 anos de exercício das funções de perito da OIT, em Genebra, om o tema da consulta no seu escopo de expertise, pode conferir os atributos do instituto, livre, prévia e informada, de boa-fé, conducente a acordo, por meio de diálogo transparente e consentimento. O ministro discorreu sobre todos esses aspectos mas insistiu numa categoria validadora do processo, o processo participativo. No Guia esse requisito está assim enunciado: “as regras do processo de consulta deverão ser decididas conjuntamente entre os povos e comunidades tradicionais afetados e o Estado”. A participação e a representatividade indígena são dois pressupostos da consulta legítima e eficaz. Todos os protocolos examinados dão ênfase a esses pressupostos e é uma riqueza constatar o alcance desse processo radicalmente participativo, na forma, no tempo, no compartilhamento, e no alcance das deliberações.
É notável o esforço de aprendizado a que leva, não só entre os povos e comunidades, mas a partir deles dos demais agentes convocados para o processo. Em face da participação do TST, por seu Presidente e por juízes (no caso juízas) movidos (as) pelo apelo do social que deve animar a realização funcional da Justiça. Na reunião, recebi de Maíra Pankararu (atualmente assessoria da Presidência do TST), uma mostra dessa disposição de aprendizado recíproca. Maíra me passou a notícia do programa Letramento em Diversidade – (re) pensando o Direito do Trabalho a Partir dos Territórios, promovido pelo CENTRO DE FORMAÇÃO E APERFEIÇOAMENTO DE ASSESSORES E SERVIDORES DO TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO – CEFAST. E a realização da Aula 2 O que o Direito do trabalho tem a aprender com os povos indígenas?. Nesse abril indígena, dia 25 das 14h às 17h, Auditório Ministro Arnaldo Lopes Süssekind – Térreo do Bloco B – Tribunal Superior do Trabalho. Abertura Ministro Cláudio Mascarenhas Brandão, Diretor do Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Assessores e Servidores do TST. Mediador: Jônatas dos Santos Andrade, Juiz Auxiliar da Presidência do Conselho Nacional de Justiça. Docentes: Janina Karipuna, Professora da Universidade Federal do Amapá e indígena do povo Karipuna; Cris Julião Pankararu, Líder indígena do povo Pankararu; Paulo Celso de Oliveira, Advogado e indígena do povo Pankararu.
Não é por acaso que Maíra tenha sido a protagonista de um grande pioneirismo em matéria de reconhecimento de direitos dos povos indígenas. Ela foi relatora na Comissão de Anistia, vinculada ao Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, com um voto aprovado unanimemente de anistia coletiva determinando a reparação de violações não a um indivíduo, mas a todo um povo (https://brasilpopular.com/anistia-coletiva-efetivacao-da-justica-de-transicao-para-os-povos-indigenas-no-brasil/). O voto de Maíra e o julgamento, no contexto de 60 anos passados desde o Golpe de 1964 e as violências que o caracterizaram, representa bem possibilidades efetivas para um agir, não só na Comissão de Anistia, mas no sistema de governo, para a criação de políticas com o recém criado Ministério dos Povos Indígenas ou para a atuação emponderada do Movimento Indígena para avançar nesse campo. O voto é também um voto de confiança. Eu também sou confiante, na medida de conquistas que vençam o pessimismo da razão com o entusiasmo da vontade, em razões bem fundadas cujas referências próximas se encontram na dissertação de mestrado da própria Maíra (https://estadodedireito.com.br/nossa-historia-nao-comeca-em-1988-o-direito-dos-povos-indigenas-a-luz-da-justica-de-transicao/).
Mas confesso que me preocupam mais os aliados que os adversários. O juiz Cançado Trindade, por duas vezes Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, exemplar em seus votos de valorização das exigências de reparação para restaurar a dignidade de projetos de vida e projetos sociais, lembrava que o principal obstáculo para integrar os direitos humanos nos sistemas nacionais de direito é o obstáculo do positivismo – o científico e o jurídico – que reduzem o humano na hierarquia da evolução (será o indígena gente como nós?) e o direito ao legal que desconsidera a dimensão antropológica de outras sociabilidades em dinâmica de pluralismo jurídico (aliás, já acolhidas no voto do relator Ministro Fachin no exame da ADPF que discutiu e rejeitou a tese esdrúxula do chamado marco temporal.
Nesse caso, sustentei essa constatação, em texto no qual afirmo que a Constituição é mais que o texto disputas por posições constitucionais (in A constituição da democracia em seus 35 anos / (Orgs) Luiz Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Álvaro Ricardo de Souza Cruz. Belo Horizonte: Fórum, 2023), conforme https://estadodedireito.com.br/a-constituicao-da-democracia-em-seus-35-anos/. Até para aludir a interpretações construtivas, que expandem o alcance da promessa constitucional em sua disposição de realizar direitos e ter cumpridas as suas promessas. Certamente para a compreensão dessa possibilidade é indispensável abrir-se a exigências próprias à disputa narrativa de realização da Constituição e de categorias que dêem conta de aferir as aberturas que a política proporcione para projetar as disposições constitucionais para o futuro.
É assim, portanto, que se pode compreender a decisão do Ministro Fachin um dos coordenadores esta obra, para repensar a dimensão política da função judicial e reconhecer que “são os sujeitos coletivos que conferem sentido à soberania popular”, e que, afirmam uma ‘participação política da comunidade [indígena]’ expressão dessa subjetividade coletiva que se faz titular de direitos em perspectiva inter-sistêmica, juridicamente plural”, conforme seu voto no TSE (segundo semestre de 2022), por ocasião do julgamento do Recurso Especial Eleitoral (Processo Número: 0600136-96.2020.6.17.0055 – Pesqueira – Pernambuco
Com a sua repristinação pelo Senado Federal da teratológica tese do marco temporal (embora na iminência de novo rechaço pelo STF), ainda permanece a preocupação: será o direito positivo, legal, capaz de abrir-se a esse reconhecimento?
Claro que essa possibilidade só se dá valendo-se de consideração sobre “a dimensão política da função judicial, apontada por Antônio Escrivão Filho e José Geraldo Souza Junior (Para um debate teórico-conceitual e político sobre os direitos humanos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016)” para, não só afastar “o mito de neutralidade e buscando processos de democratização da justiça a partir, inclusive, da sua reorientação aproximada da realidade brasileira”, mas para afirmar, nesse passo, que são os sujeitos coletivos que conferem sentido à soberania popular”, e que, afirmam uma “participação política da comunidade [indígena]” expressão dessa subjetividade coletiva que se faz titular de direitos em perspectiva inter-sistêmica, juridicamente plural.
Como está em Maíra Pankararu, que esteve presente no evento do CCB e que em co-autoria tem participado no plano teórico dessa forma de interpelação ao jurídico para que ele se abra ao social e ao político (O Direito Achado na Rua: Questões Emergentes, Revisitações e Travessias: Coleção Direito Vivo, volume 5. José Geraldo de Sousa Junior et al (org). Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2021. Em especial: Larissa Carvalho Furtado, Luana Bispo de Assis, Maíra de Oliveira Carneiro Pankararu, Natália Albuquerque Dino, Solange Ferreira Alves integrantes do primeiro eixo de autoria, elaboraram o “Manifesto por um Direito Achado nas Aldeias” onde problematizaram sobre a “necessidade de privilegiar a autonomia dos povos originários, de suas lutas, linguagens, práticas e produções, também no campo da construção do que se entende por “conhecimento”, “ciência” e “Direito” no pensamento jurídico brasileiro” (FURTADO, Larissa; ASSIS, Luana; PANKARARU, Maíra; DINO, Natália; ALVES, Sol) e assim apresentam uma convocação à um modelo epistemológico do Direito Achado na Aldeia inserido como um conjunto de instrumento teórico capaz de romper as práticas coloniais ainda hoje vigentes no ensino e na prática jurídica tradicional. (FURTADO, Larissa; ASSIS, Luana; PANKARARU, Maíra; DINO, Natália; ALVES, Sol). Cf. https://estadodedireito.com.br/o-direito-achado-na-rua-questoes-emergentes-revisitacoes-e-travessias/.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Quintas Literárias 2023 / Organização Sôniahelena. Vários Autores. 1ª edição. Brasília, DF: Vitalia, 2024, 368 p.
O cartaz anuncia o lançamento, no dia 21 de março, do sexto volume da série Quintas Literárias. Com apresentação do Presidente da ANE – Associação Nacional de Escritores, escritor Fábio de Sousa Coutinho, o novo volume agrega à série, iniciada em 2018 com a edição dos textos das palestras realizadas em 2017, no Auditório Cyro dos Anjos, compondo um acervo de “publicações virtuosas, eternizando o trabalho intelectual desenvolvido na ANE ao longo desses anos e invariavelmente assegurando relevante diversidade temática e alta qualidade estética”.
As Quintas Literárias são, portanto, um evento marcante no calendário de atividades e de encontros da ANE. O panorama dessa agenda pode ser visitado na página da Associação – https://anenet.com.br/ – um convite a uma estimulante navegação cartografada conforme um sofisticado imaginário cultural e literário.
A edição agora lançada, sexto volume, corresponde às participações do ano de 2023, das Quintas Literárias, num contexto de celebrações importantes, incluindo “centenários ocorridos no ano e, também, um jubiloso bicentenário na literatura brasileira, o do poeta romântico maranhense Gonçalves Dias e uma programação [que]se encerrou no dia 7 de dezembro, com mais uma apresentação de palestra-recital de nosso associado Luiz César Costa, que celebrou a poesia do pantaneiro Manoel de Barros”, diz Fábio Coutinho em sua Apresentação.
O sumário do volume traz o elenco dos palestrantes e as datas de suas exposições: Roberto Rosas, Vladimir Carvalho, Carlos Henrique Cardim, Edmílson Caminha, Margarida Patriota, Anderson Olivieri, Cristovam Buarque, Sôniahelena, Lidivaldo Reaiche Britto, José Roberto de Castro Neves, Maurício Melo Júnior, Lauro Moreira, Vera Lúcia de Oliveira e Luiz César Costa. Há outros registros temáticos que compuseram a agenda das Quintas em 2023.
Por indicação do querido amigo e colega de universidade (UnB) Vladimir Carvalho, fui um dos convidados a formar mesa, com o próprio Vladimir (O Direito de Exibir), numa das Sessões das Quintas Literárias, em 2023, com o tema Cinema e Literatura (dia 26 de outubro, p. 267-310). Aí, os textos elaborados por mim e por Vladimir, para a edição.
O próprio Vladimir, notável cineasta, a meu ver, hoje, no Brasil, o mais importante documentarista ainda em plena atividade, foi o meu paraninfo, mobilizado por recente livro que eu havia publicado – José Geraldo de Sousa Junior. Lido para Você: Direito, Cinema e Literatura – São Paulo: Editora Dialética, 2023. 168 p., no qual dou relevo à filmografia do querido colega, nos termos que podem ser conferidos aqui neste espaço da Coluna Lido para Você (https://estadodedireito.com.br/lido-para-voce-direito-cinema-e-literatura/).
Vladimir inclui em seu texto, trazido para a edição do volume 6, uma nota de apreço, compartilhando comigo a mesa, mas abre uma reflexão que lhe é própria, basta ver outros ensaios seus sobre o seu tema de vida: “Assim me senti mais à vontade para, depois de ler o livro de autoria de José Geraldo, Lido para Você, que adota o subtítulo Direito, Cinema e Literatura, animar-me a falar de algo que me é comum, porque trata-se em parte de meu ofício, e portanto razão de atuar no mundo da cultura como simples militante do cinema brasileiro”. E prossegue, nesse diapasão, o seu instigante ensaio.
De minha parte, aproveito o ensejo para compartilhar a minha exposição. Não me parece um excesso. Considero que o repositório, valioso em sua concepção, tem circulação muito restrita porque fica limitado ao acervo da Associação e manuseado a poucas mãos, embora pelas mais esclarecidas cabeças da cidade e do país (já que a ANE é nacional. Por isso acho válido, com o impulso da rede movimentada pelo Jornal Estado de Direito que abriga a Coluna Lido para Você, amplificar para o compartilhamento com interlocutores de diferentes inserções acadêmicas em sentido estrito, e culturais em sentido amplo, o que pude apresentar num sarau literário.
Segue o meu texto.
Compartilho, nesta noite, com o cineasta e professor Vladimir Carvalho e com Carmela Grüne, minha editora no Jornal Estado de Direito, um debate, coordenado pelo presidente da ANE, o escritor Fabio Coutinho, sobre Cinema e Literatura, tema imaginado a partir da obra Lido Pra Você, que organizei, num primeiro volume exatamente sobre o tema “Direito, Literatura e Cinema”.
Do que trata essa obra (São Paulo: Editora Dialética, 2023. 168 p. (https://loja.editoradialetica.com/humanidades/lido-para-voce-direito-cinema-e-literatura), publicada em coedição com o Jornal Estado de Direito, espaço no qual são publicados os textos originais que formam a edição do livro.
Um primeiro lançamento da obra foi realizado em junho, no Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB (evento virtual), dentro do projeto “Saindo do Prelo”, com abertura conduzida pelo Presidente do IAB Sydney Sanches, Marcia Dinis, Diretora da Biblioteca do IAB e as participações especiais de Carmela Grüne, Cristina Zackzeski e Nara Ayres Brito, membros do Instituto, contando também com a participação de autores e de autoras das obras comentadas no livro.
Logo, com Carmela Grüne, iremos organizar um cronograma subsequente de lançamentos e também, pela página do Jornal, o modo de aquisição do livro, cujos direitos autorais servirão ao objetivo de contribuir para a manutenção da plataforma do Jornal Estado de Direito.
O livro é o primeiro volume de uma coleção que reúne, por seleção temática, os temas da Coluna. Neste primeiro volume – outros três estão sendo preparados – o tema é Direito, Cinema e Literatura.
Na minha Introdução – Lido para Você. O Real Apreendido por Muitas Narrativas e Diferentes Linguagens – explico o processo de criação da obra e a seleção dos textos.
Tal como digo nessa Introdução, aqui reproduzida, artigos de opinião e a sua expressão no estilo de interpretação de conjuntura passaram a compor uma característica de minha intervenção intelectual. É um estilo opinativo que experimento desde os anos 1980.
Primeiro, no Jornal da Ordem, da OAB do Distrito Federal, nas sucessivas direções editoriais de Luiz Carlos Sigmaringa Seixas, Jarbas da Silva Marques e Galba Menegale. Depois na Rádio Cultura FM, do Governo do Distrito Federal, durante a gestão do Governador Cristovam Buarque, no Programa “Música e Informação”, com uma participação semanal, sempre atenta, a partir da leitura matinal dos jornais, feita pelo âncora, e meus comentários articulados pelo eixo interpretativo da democracia, da cidadania, da justiça e dos direitos. Esse eixo, aliás, baliza um plano mais geral que se orienta pela disposição dupla: contribuir para uma contínua democrati- zação da democracia e uma constitucionalização atualizada pela estratégia de atualização permanente de direitos, já que esses não são quantidades, são relações, daí que a professora Marilena Chauí sustente ser a democracia uma forma de sociedade e não apenas uma forma de governo.
Por isso também, que entre os anos 2006 e 2008, na Universidade de Brasília, com a coordenação dos Grupos de Pesquisa “O Direito Achado na Rua” e “Sociedade, Tempo e Direito”, publicamos um tabloide mensal denominado Observatório da Constituição e da Democracia, com colunas e entrevistas mensais para o acompanhamento criativo do experimento de realização da Constituição e da Democracia, já que seus fundamentos não se instalam uma vez para sempre mas são sempre o resultado de disputas e posições interpretativas que prosseguem no movimento legitimado da política.
Uma nota de relevo atribuo à série de artigos publicados mensalmente na Revista do Sindjus-DF, Sindicato dos Servidores do Judiciário e do Ministério Público no Distrito Federal, por quase dez anos, entre 2001 e 2011.
Tudo começou quando o Coordenador-Geral do Sindjus, Roberto Policarpo, propôs para o 3o Congresso da categoria, o tema central: A sociedade pode ser democrática com um Judiciário conservador, realizado nos dias 7, 8 e 9 de dezembro de 2001, e me incumbiu de proferir a conferência inaugural sobre o tema.
Trazendo para os servidores do Judiciário e do Ministério Público, sindicalizados, a responsabilidade de pensar esse tema, o Sindjus mostrava claramente que a promessa constitucional de edificar uma sociedade justa e solidária implicava em dinamizar o protagonismo participativo já presente em várias dimensões da sociedade e do Estado, mas ainda tênue no espaço do Ministério Público e, principalmente, do Poder Judiciário. E nesse passo, trazer para a ação sindical o compromisso de não só conduzir lutas que implicassem acumular conquistas orientadas por demandas corporativas, mas igualmente engajar-se em frentes políticas que abrissem perspectivas de desenvolvimento democrático pleno para toda a sociedade. Logo a seguir, Policarpo me convidou para manter uma coluna permanente na Revista, nascendo aí uma colaboração que durou até 2011, quando deixou de circular, mudando a direção sindical, já alcançada pelo arranhar da política, com o roer das entranhas democráticas, a fera proto-fascista que recentemente saiu de sua hibernação, com o golpe desdemocratizante e desconstituinte desencadeado em 2016.
Meu querido editor e amigo Sergio Antonio Fabris publicou em Idéias para a Cidadania e para a Justiça (Porto Alegre, 2008), uma coletânea dos 50 primeiros artigos da Coluna. O mesmo Sérgio Fabris que me apresentou a Carmela Grüne, a motivada editora do Jornal Estado de Direito, e de outros belos e engajados projetos nas áreas do direito e da cidadania, conforme ela própria relata na apresentação desteº volume, de Lido para Você.
Carmela conta como ela ao recompor o projeto editorial do Jornal Estado de Direito, um projeto com dezoito anos (lançado em 15 de novembro de 2005) de contínua edição, então passando do formato impresso para o digital, me convidou para tornar permanente uma colaboração eventual e como, assim, surgiu a ideia da Coluna.
O Jornal já mantinha uma agenda de colunistas permanente, ocupando cada um e cada uma um dia da semana e acertamos que eu cobriria a quarta-feira. Foi aí que me ocorreu transformar em rotina uma experiência de ofício, a de orientar leituras para meus alunos, especialmente de graduação, estimulando-os tal como eu próprio o fazia com empenho metodológico, a elaborar resenhas dessas leituras. Por outro lado, muitas dessas leituras eram pautadas não só por necessidade de atualização pedagógica de bibliografias, mas pelo ofício de examinar monografias, relatórios, dissertações e teses, além de livros. Portanto, naturalmente, sugestões de leituras para pesquisadores e, por que não, para editores, considerando o ineditismo e a relevância de muitos desses trabalhos.
Assim, a coluna logo se exibiu para a imaginação: Lido para Você. Anoto que a inspiração veio de coluna mantida pelo notável jurista André-Jean Arnaud, diretor de pesquisa do CNRS (França), editor de Droit et Société – Revue Internationale de Theorie du Droit et de Sociologie Juridique. Essa revista, vale dizer, foi fundada em 1926, por Hans Kelsen, León Duguit e Franz Weyer. Claro que Arnaud, com seus colaboradores, investidos de uma perspectiva crítica, imprimiu ao periódico uma outra orientação para os estudos críticos de teoria do direito e de sociologia.
A Droit et Société tinha uma seção “Nouvelles du Monde”, e nela em registro permanente, dois tópicos: “Chronique bibliographique” e “Lu pour vous”. Nesta, comentários indicativos de edições recomendadas pelos editores/convidados/subscritores.
Para minha “glória”, no nº 9, edição de 1988, o próprio Arnaud (sobre Arnaud disse-me Michel Miaille certa vez, “nous parlons d’une institution”) publicou uma nota sobre O Direito Achado na Rua (pp. 328-329): Le droit qu’on trouve dans la rue, comme cours de Faculté de droit, ce n’est pas mal! Décidément, nous avons, em France, bien du chemin à faire….
Assim nasceu a coluna Lido para Você, com mais de duzentos textos já publicados. Eles abrangem um amplo arco de referências, modos paradigmáticos de apreensão do real, pelas aproximações filosóficas, teológicas, científicas, literárias, jurídicas, todos discursos interpretativos expressos em diferentes linguagens, mas sempre pelos eixos que orientam minha leitura de mundo: a democracia, a cidadania, a justiça e o direito.
Neste primeiro volume, com a apresentação de Carmela Grüne, e não poderia ser outra a apresentadora dado o seu acolhimento editorial à Coluna, são publicados títulos que se caracterizam por articular os temas de fundo, formadores do eixo, pela mediação cultural e literária.
São leituras que desvendam no discurso artístico o intuir que não precisa fundamentar, explicar ou revelar o real, o expõe em compreensão direta e sem mediações. Conforme lembra o grande acadêmico de Coimbra Eduardo Lourenço (Mitologia da Saudade. São Paulo: Companhia das Letras, 1999), a literatura não é um delírio, mas a apropriação do real por meio de uma outra linguagem.
Nesse volume I, colecionados a partir da temática que distingue a obra, são destacados os seguintes textos, além da minha Introdução e do Prefácio de Carmela Grüne, os artigos conforme o Sumário: Coluna Lido para Você: Direito no Cinema Brasileiro; Cartas de Viagem: Histórias de caminhos não contados; Olhos de Madeira. Nove Reflexões sobre a Distância, de Carlo Ginzburg; Meninos do Rio Vermelho e Uma Senhora Pelada; Criminologia e Cinema: Semânticas do Castigo; Comunicação e música; Memória e Perspectivas 50 Anos de Letras da Universidade de Brasília (1962-2012); Pesadelo. Narrativas dos anos de chumbo; Retratofalado; A Rua de Todo Mundo; Justicia Poética. La Imaginación Literaria y La Vida Publica; Agenda 2021; Traços – Especial 5 Anos; Por Que Ler os Clássicos; Justiça Indeferida; Literaturas Munduruku; As Histórias Contadas e a Justiça Cognitiva; Deu Nisso! Cláudio Almeida.
Júlia Noffs foi a Produtora Editorial, cujo zelo garantiu que o livro pudesse alcançar a qualidade de edição com que se apresenta. Chamo a atenção para a capa, criação de Larissa Brito. Agradeço a Larissa ter acolhido para o esboço do desenho do trabalhador que representa o Direito na iconografia do tema, a sugestão de tomar como inspiração a arte de nossa colega pesquisadora do coletivo O Direito Achado na Rua e artista reconhe- cida Judith Cavalcanti. Por isso, nos créditos a nota seguinte:
A imagem do trabalhador com os cestos para representar o Direito se inspira na ilustração criada por Judith Cavalcanti, Têmis, como representação da Justiça para ilustrar a capa do volume 10, da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade, co-organizado pelo autor deste primeiro volume de Lido para Você.
Anoto um trecho do prefácio elaborado por Carmela Grüne:
Realmente é uma grande honra poder apresentar essa obra que é o resultado da sua generosidade com o Jornal Estado de Direito e seu público leitor, antes impresso, agora na edição eletrônica semanal, às quartas-feiras, onde o professor José Geraldo publica a Coluna “Lido para Você”, a qual apresenta um universo de pessoas através de suas obras sejam elas monografias, teses, pesquisas, livros, nos presenteando com a fonte que fortalece a nossa consciência crítica: o conhecimento. Neste prefácio, também, além de contar um pouco sobre a história do professor José Geraldo com o Jornal Estado de Direito é importante destacar o papel da obra “O Direito Achado na Rua”, mencionar os pesquisadores e autores que trouxeram grandes ideias para a sua elaboração. O livro, organizado por José Geraldo Souza Júnior, quebra paradigmas, ao colocar o Direito de forma prática, não o distanciando do coletivo, mas o aproximando daquele que está na rua. Dá voz e vez à população pelo protagonismo, com vistas a transformação da sociedade e o empoderamento da cidadania. Como referi a Coluna “Lido para Você”, o professor José Geraldo, nesse primeiro volume, apresenta os estudos de pesquisadores e autores, assim, também agradeço publicamente a eles pela dedicação nas áreas que são tão sensíveis e necessárias o olhar social.
Até aqui, uma espécie de recensão que expõe o livro. Para a Quinta Literária, em feição reduzida para se ajustar ao formato e a devida consideração ao auditório. Entretanto, o tema da sessão – Quinta Literária – proporciona abrir a vertente de interesse para o conhecimento do Direito e suas formas de difusão, incluindo o ensino e a educação jurídicas. As relações entre Direito, Arte, Literatura, Teatro e Cinema formam uma Paidéia em alcance clássico e dispõem de um catálogo expressivo para o confirmar. Este texto recupera o pano de fundo da exposição, na sua completude, para registro nos anais do evento.
No plano epistemológico, a propósito, tem sido estimulante a vertente que trabalha a interlocução interdisciplinar e complexa para acentuar o diálogo entre saberes, demonstrando que o conhecimento não se realiza por uma única racionalidade, mas, ao contrário, pela integração entre diferentes modos de conhecer que nos habilitem a discernir o sentido e significado da existência e a elaborar sínteses interpretativas que além de nos permitir compreender o mundo, contribuam para transformá-lo, conforme, entre todos, sustenta Boaventura de Sousa Santos. Trata-se, como acentua Roberto Lyra Filho (A Concepção do Mundo na Obra de Castro Alves, Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1972; Filosofia Geral e Filosofia Jurídica, em Perspectiva Dialética, in Palácio, Carlos, S.J., coord. Cristianismo e História, São Paulo: Edições Loyola, 1982), de operar padrões de esclarecimento, recusando o monólogo da razão causal explicativa, para abrir-se a outras possibilidades de conhecimento: o fazer, da atitude técnica; o explicar e compreender, da atitude científica; o fundamentar, da atitude filosófica; o intuir e mostrar, da atitude artística; o divertir-se, da atitude lúdica; o revelar, da atitude mística.
Tem razão Eduardo Lourenço, não só em sustentar a unidade da poesia fernandiana (Fernando Pessoa), mas em suscitar a totalidade que abarca os seus aparentes fragmentos heterônimos, para indicar que nesse processo o problema central continua a ser o do conhecimento. Para Lourenço (Tempo e Melancolia em Fernando Pessoa, publicado na edição brasileira do livro O Mito da Saudade, Editora Companhia das Letras), os avatares de Pessoa representam uma tentativa desesperada de se instalar na realidade.
Marx não havia ainda com O Capital analisado a estrutura econômica para, num certo modo de produção explicar a forma- ção da mais-valia, e bem antes o Padre Vieira, artisticamente, a exibiu tal como está no Sermão XIV do Rosário:
Eles mandam e vós servis; eles dormem, e vós velais; eles descansam, e vós trabalhais; eles gozam o fruto do vosso trabalho, e o que vós colheis deles é um trabalho sobre outro. Não há trabalhos mais doces que o de vossas oficinas; mas toda essa doçura para quem é? Sois como as abelhas, de quem disse o poeta: ‘sic vos non vobis melificatis apes’ (assim como vós, mas não para vós, fabricais o mel abelhas).
No plano das habilidades, que é o que remete mais imediatamente à constituição de perfis profissionais, a alusão a uma justiça poética quer mais designar a categoria subjetividade, como própria ao afazer do jurista para interpretar criativamente e com imaginação as relações do homem com o mundo e com o outro. É com este sentido que Martha Nussbaun fala em poesia e imaginação (Justicia Poética. La Imaginación Literaria y La Vida Publica, Editorial Andrés Bello, Barcelona/Buenos Aires/México D.F./Santiago do Chile), ou seja, para caracterizá-las como ingrediente indispensável ao pensamento público, com condição de criar hábitos mentais que contribuam para a efetivação da igualdade social.
Aplicadas aos operadores do Direito, essas categorias traduzem as expectativas de mediação humanística entre visão de mundo e consciência social, de modo a traduzir aquela exigência funcional destacada por Bistra Apostolova (Perfil e Habilidades do Jurista: razão e sensibilidade, Notícia do Direito Brasileiro, no 5, Faculdade de Direito da UnB, Brasília): a habilidade de ver o outro como diferente e saber colocar-se no lugar dele, e desse modo, desenvolver a capacidade de imaginar e de compreender, essencial na formação do bacharel.
O antropólogo Pierre Clastres, em seu livro A Sociedade Contra o Estado – Investigações de Antropologia Política (Porto: Afrontamento, 1984), mostra que a lei encontra espaços inesperados para se inscrever, indicando uma relação entre lei, escrita e corpo como eixo essencial relativamente ao qual se ordena, na sua totalidade, a vida social e comunitária.
É certo que Clastres transporta a sua percepção para a dimensão antropológica em cuja análise se deteve, ou seja, o estudo das sociedades antigas e os ritos de iniciação que nelas fazem do corpo o espaço que a sociedade designa como único espaço propício a transportar o sinal de um tempo, a marca de uma passagem, o cumprimento de um destino, transformando o corpo do indivíduo em veículo de uma operação social de aprendizado, de identidade e de norma cultural.
Para Clastres, o ritual iniciático é uma pedagogia que vai do grupo ao indivíduo, da tribo aos jovens e por meio dele a sociedade dita a sua lei aos seus membros, ela inscreve o texto da lei sobre a superfície dos corpos porque a ninguém é permitido esquecer a lei que funda a vida social da tribo.
Em suas considerações, Clastres evoca a passagem de Kafka em A Colônia Penal, na qual o oficial explica ao viajante o funcionamento da “máquina de escrever a lei”: a nossa sentença não é severa. Gravamos simplesmente com a ajuda do ferro o parágrafo violado sobre a pele do culpado.
Aliás, trazendo essas considerações para o campo da imagem e do cinema, vale pontuar o belo vídeo produzido pelo Centro de Produção Cultural e Educativa – CPCE, da Universidade de Brasília, a UnB: “Pintura Corporal“, interessante trabalho de pesquisa e de direção de Devair Montagner. Em seu roteiro traz grafismos, desenhos, cores, pinturas corporais das culturas Ya- nomami de Demini (AM), Kayapó de Kriketum (PA) e Marubo (AM), revelando significados sociais e simbólicos, que justificam o sobretítulo do vídeo – “Uma Pele Social“.
Penso, pois, tomando como referência a metáfora da “pele social”, ser possível conceber a constituição de discursos sociais de normatividade para além dos lugares usuais e obrigatórios da jurisdição: o Estado, as classes sociais, os grupos de poder, revelando-se em seus significados rebeldes ao “discurso da arrogância” de que fala Barthes, sempre que de um lugar “autorizado” se reivindique o monopólio do dizer o direito.
Tenho em mente, ao assinalar a necessidade deste deslocamento de percepção, a advertência de Carlos Cárcova de que o direito, enquanto dimensão ontológica da normatividade social, deve ser pensado como uma prática social específica que expressa e condensa os níveis de conflito social em uma formação histórica determinada. Mas esta prática, ele completa, é uma prática discursiva no sentido que a língua atribui a esta expressão , isto é, no sentido de um processo social de produção de sentidos, processo conforme indica Enrique Marí, de formação, decomposição e recomposição no qual intervém outros discursos que, diferentes por sua origem e função se entrecruzam.
Não é a Justiça a resultante de um diálogo que liga os Atos dos Apóstolos ao Manifesto Comunista de 1848? Entre nós, no Brasil, quem disso se apercebeu, em síntese político-jurídica evidente, foi o político e jurista João Mangabeira:
……a fórmula da Justiça não deve ser mais a que se resume em ‘dar a cada um o que é seu’. Aplicada em toda a sua inteireza, a velha norma é o símbolo da descaridade, num mundo de espoliadores e de espoliados. Porque se a Justiça consiste em dar a cada um o que é seu, dê-se ao pobre a pobreza, ao miserável a miséria e ao desgraçado a desgraça, que isso é o que é deles. A regra da Justiça deve ser: a cada qual segundo o seu trabalho, enquanto não se atinge o princípio de a cada um segundo a sua necessidade.
De outro modo, não podendo às vezes ultrapassar o disciplinado esforço de fundamentação próprio dos estudos lógicos sobre o enunciado dialético da contradição, pode o discurso artístico suprir o labor filosófico e num delírio declamatório dizer o indizível: “É sempre bom lembrar que um copo vazio está cheio de ar”, na música de Gilberto Gil; ou no poema de Alberto Caieiro: O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,/ Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia/ Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
Quase 50 anos após a conferência de Sutherland lançando a tese do white collar crime, o debate chega a nossa consideração criminológica sob o impulso de uma delinquência político-institucional. Todavia, a declamação antecipadora dos versos inquietos de Chico Buarque e Francis Hime, cantava os desvarios de nossas elites entreguistas e predadoras: Dormia/ A nossa pátria mãe tão distraída/ Sem perceber que era subtraída/ Em tenebrosas transações.
Em seu livro Literatura & Direito. Uma outra leitura do mundo das leis (Rio de Janeiro: LetraCapital Editora/IDES – Instituto Direito e Sociedade, 1998), Eliane Botelho Junqueira trata dessa relação, acentuando vários aspectos dos vínculos entre as ciências sociais e a literatura para ampliar as percepções da realidade social. Ela põe em relevo nesse campo a disputa de diferentes análises sobre o direito desenvolvidas na academia, sobretudo norte-americana, a partir do movimento direito e sociedade e direito e desenvolvimento para estabelecer esse novo campo de relações:
As correntes Law and economics, Law and society, critical legal studies, critical race theory e feminist jurisprudence, dentre outras, sem dúvida são conhecidos exemplos dessa efervescente produção acadêmica. Mais recentemente, o ‘movimento’ Law and literature conquistou importante espaço institucional” (pág. 21). A partir daí ela estabelece uma interessante distinção de tendências, a primeira denominada literature in Law, segundo ela, “tendo como origem remota os trabalhos de Benjamin Cardozo, (que) defende a possibilidade dos textos jurídicos – aqui incluindo-se leis, decretos, contratos, testamentos, contestações, sentenças etc – serem lidos e interpretados como textos literários” (pág. 22); e a segunda tendência, “conhecida como Law in literature, voltada para trabalhos de ficção que abordem questões jurídicas” (pág. 23).
Essas tendências continuam fecundantes na cultura jurídica latino-americana, dotada de um imaginário que não se comporta apenas na racionalidade instrumental, mas que aspira a uma razão sensível, afetiva, para assimilar o alcance sugerido por Maffesoli. Ainda mais num ambiente nutrido pelo extraordinário favorável a nos permitir adentrar no realismo. Não sei se procede do Gabo (Gabriel Garcia Marques) a anedota do professor que interpelando seu aluno sobre ele ter lido a Crítica da Razão Pura de Kant, recebeu a resposta imediata, não, mas assisti o filme.
Anoto aqui, o cuidado editorial, por exemplo, do Ministério de Justicia y Derechos Humanos, da Argentina, no sentido de preservar esse imaginário e procurar inculcar na cultura jurídica dos operadores do direito e da justiça portenhos a exigência do enlace entre direito e literatura. Indico a importância da leitura do livro organizado por Alicia E. C. Ruiz, Jorge E. Douglas Price e Carlos María Cárcova, La letra y la ley. Estudios sobre derecho y literatura (Buenos Aires: Infojus, 2014). Na Introdução ao livro, coincidente com as tendências marcadas por Eliane Junqueira, Carlos Cárcova para além de reafirmá-las, ainda acresce: otro tipo de articulación, una articulación ‘interna’…que permite descubrir notables analogias en el proceso de produción discursiva del derecho, por una parte y en el de la literatura en sentido amplio, por otra” (pág. IX).
Volto ao livro de Eliane, para dizer que nele, uma nota de precedência é encontrada, quando ela acentua que a inspiração para a edição que preparou, decorreu dos ciclos sobre Direito e Teatro e Direito e Cinema organizados por Nilo Batista na Seccio- nal Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Rio de Janeiro, em 1986 (pág. 17).
Portanto, ao interesse que o teatro sempre proporcionou para o conhecimento do direito e para a pedagogia da vida pública e da cidadania e que aparece de forma expressa e razão de fundo nas obras de Hegel (valendo-se da Antígona), de Jhering (utilizando o Mercador de Veneza) e que se transforma em método no trabalho político de Augusto Boal (Teatro do Oprimido, Teatro Forum), hoje registro didático difundido no ensino jurídico, ganhou o cinema esse lugar destacado, que a filosofia soube tão bem utilizar. No ensino jurídico aludo às excelentes estratégias encontráveis um pouco nos melhores cursos.
Na UnB, que melhor conheço, distingo os projetos combinando ensino, extensão e pesquisa desenvolvidos pelos professores e professoras Gloreni Machado (teatro), Bistra Apostolova (teatro), Alexandre Bernardino Costa (cinema) e Cristiano Paixão (cinema). E, notadamente, o trabalho desenvolvido pela professora Alejandra Leonor Pascual: Produção cinematográfica para direitos humanos, para estudantes de Graduação e de Pós-Graduação em Direito e outros cursos da UnB.
Conforme nota que fez a meu pedido, a professora Alejandra salienta que a rica experiência de ensino e implementação do uso de produção cinematográfica em disciplinas de Graduação e de Pós-Graduação começou durante o primeiro semestre de 2011, na Faculdade de Direito da UnB, quando ministrava disciplinas que abordam temáticas de direitos humanos.
Em suas palavras, com essa metodologia os/as alunos/as aprendem a realizar filmes de forma profissional para a realização de seus trabalhos acadêmico-científicos, em cada uma das etapas de produção de um filme; aprendem a trabalhar em equipe já que o produto final dessa metodologia será a realização de um filme, pensado, elaborado, discutido, ambientado, protagonizado, musicalizado e editado pelos próprios estudantes. A ideia de incorporar o ensino e uso de produção cinematográfica no ensino começou em 2010 quando estava realizando um Pós-Doutorado em Filosofia Política na cidade de México. Durante a minha permanência naquela cidade comecei a frequentar cursos sobre produção cinematográfica, que incluíam o domínio de técnicas de pré-edição de filmes (linguagem cinematográfica, elaboração dos personagens, história e argumento cinematográficos, elaboração de roteiro, story-bord, planilhas e plantas de filme), edição de filmes (uso de cores e sons, uso das câmeras e iluminação, como filmar, realização de diálogos etc.) e pós-edição de filmes. Depois de ter realizado vários cursos naquela cidade ainda realizei um último, sobre metodologia de auto-conhecimento para produção cinematográfica, com a cineasta mexicana Carolina Rivas, que foi de fundamental importância para possibilitar a sistematização de uma metodologia apropriada para organizar e incorporar o conhecimento obtido nos cursos sobre produção cinematográfica no intuito de aplicá-la como proposta didático-metodológica no Curso de Direito da Faculdade de Direito da UnB.
A experiência foi objeto de comunicação no I Encuentro Internacional de estudios visuales latinoamericanos 2014, organizado pela Universidad Nacional de Hidalgo e realizado em Pachuca, Hidalgo, México, em julho de 2014 sob o título Enseñanza de producción cinematográfica para la realización de trabajos académico-científicos sobre derechos humanos en América Latina.
Além disso, em 2015 a professora recebeu Menção Honrosa na primeira Edição do Prêmio Esdras Borges de Ensino do Direito, sobre qualidade da dinâmica de ensino do Direito, da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas, pelo trabalho que desenvolve com o ensino de produção cinematográfica em direitos humanos na Universidade de Brasília –UnB.
Chamo a atenção, entretanto, para a vertente filosófica de conhecer pelo cinema por meio do precioso livro de meu colega de UnB, Julio Cabrera Cine: 100 años de filosofia. Uma introducción a la filosofia a través del análisis de películas (Barcelona: Gedisa Editorial, 1999). Pelo que sei há uma edição brasileira recente desse livro, embora eu não saiba indicar a fonte editorial.
Na obra Cabrera faz uma advertência para a qual sinalizei antes:
Decir que el sentido del mundo debe abrirse para uma racionalidad exclusivamente intelectual, sin ningún tipo de elemento emocional y sensible, es, por lo menos, una tesis metafilosófica que necesita de justificación. Tal vez el sentido del mundo solo sea captable a través de uma combinación – estratégica y amorosa – de sense y sensibility, como diria la profesora Emma Thompson. En este sentido, se habla aqui de una ‘razón logopática’, de uma racionalidad que es lógica y afectiva al mismo tiempo, y que se encontraria presente en la literatura, en la filosofia de los mencionados ‘rebeldes’, y, ciertamente, em el Cine (pág. 9).
Também no ensino do Direito, desde há muito, percebe-se a preocupação didático-pedagógica e também epistemológica, de abrir o conhecimento do jurídico para outros modos de apreensão de seu objeto, em diálogos estético-expressivos mediados por diferentes racionalidades.
Essa preocupação transparece dos esforços indutores que a Comissão de Educação Jurídica, na origem (1991), Comissão de Ciência e Ensino Jurídico, do Conselho Federal da OAB, pro- curou imprimir em seu protagonismo para o aperfeiçoamento dos cursos de Direito, sua atualização curricular e sua avaliação. Em balanço crítico de um de seus mais destacados presidentes, influente no estabelecimento de padrões para a implementação desses objetivos (MEDINA, Paulo Roberto de Gouvêa. Ensino Jurídico, Literatura e Ética. Brasília: Conselho Federal da OAB, 2014), com experiência docente enriquecida com o trabalho que o autor desenvolveu, ao longo de seis anos, na presidência da Comissão Nacional de Ensino Jurídico da OAB (pág. 9), constata-se o tempero que a literatura proporciona para a formação jurídica. De fato, ele procura mostrar (pág. 9), como algumas obras essencialmente literárias podem ser úteis no ensino do direito. Ele acrescenta:
À guisa de motivação para as aulas ou, até mesmo, como método destinado a ilustrar o estudo de determinados institutos, o professor de direito pode valer-se, com proveito, da literatura. Isso já não constitui novidade, nas Faculdades de Direito, de tal forma esse enfoque vem sendo difundido em trabalhos teóricos e adotado na prática docente. Livros e revistas especializadas têm contribuído significativamente para despertar o interesse pela literatura, servindo como elementos auxiliares do ensino jurídico. Além do que o gosto literário amplia a formação humanística e esta é indispensável ao profissional do direito. O senso jurídico, que Ferrara dizia ser tão importante para o jurista quanto o ouvido musical para o músico, só pode ser apurado pelas boas leituras e pela experiência da vida. Até mesmo a poesia tem papel de relevo na formação do senso jurídico. Não é por outra razão que Cou- ture salientava que sentença deriva de sentir. O juiz que conhece apenas o direito tende a isolar-se numa torre de marfim. Ele necessita obter isso que as escrituras chamam de sal da terra, como forma de prevenir-se contra as impurezas do espírito humano e os vícios de interpretação que podem causar. Da mesma forma o advogado não deve adstringir-se às leis. Carlos Drummond nos advertia, em belo poema, que as leis não bastam / os lírios não nascem das leis. Daí o lugar de destaque conferido à literatura no ensino jurídico (págs. 9-10).
Em seu instigante livro El aprendizaje del aprendizage. Fruta Prohibida. Una introducción al estúdio del Derecho (Madrid: Editorial Trotta, 1995), Juan Ramón Capella mostra a preocupação de que o estudo do Direito não se torne uma tarefa fatigante, “desligado dos temas que andavam pelas ruas”, para assinalar o desalento, lembra Roberto Lyra Filho, do estudante de direito Castro Alves (Pego o compêndio – inspiração sublime/ P’ra adormecer inquietações tamanhas./ Violei à noite o domicílio – ó crime!/ Onde dormia uma nação de aranhas.) e sugere metodologias alternativas de modo a aprender de material no jurídico: de los relatos cinematográficos, de la pintura, de cursos o conferencias de otras facultades. Sobre todo, de la lectura; y del saber estar en soledad (pág. 97).
Ao final de seu livro cuida de oferecer a título de bibliografia um elenco amplíssimo incluindo discografia e um catálogo de “cines”, registrando, que “no puedes perderte…” (págs. 110- 111). São filmes que envolvem a prática e a performance jurídicas, as dimensões da pedagogia (método e didática) e o próprio conhecimento, inclusive do Direito.
Com esse mesmo intuito vale mencionar os trabalhos de Luis Carlos Cancellier de Olivo – o Reitor martirizado no furor do lawfare que se abateu sobre o país recentemente – e Renato de Oliveira Martinez (http://bit.ly/2Hnergd e http://bit. ly/2HqpKV3 – acesso em 12/01/2016). Vale a pena consultar esses dois registros, para localizar alguns trabalhos que contribuem para o tema e usufruir de um excelente levantamento bi- bliográfico, dentro de um campo de estudo, assinalam os autores, que corresponde a uma área de investigação que compartilha o interesse por um mesmo tema, e que se desenvolve por meio de um conjunto interrelacionado de práticas, técnicas, informações e experiências.
Próximo ao desenho elaborado por Cabrera para a Filosofia, mas com pretensão focalizada em relacionar “filmes para discutir conceitos, teorias e métodos”, localiza-se o livro Direito e Cinema, (Salvador: Edufba, 2004), organizado por Verônica Teixeira Martins Marques, Ilzver de Matos Oliveira e Waldimeiry Corrêa da Silva. Tomo alentado de 543 páginas se presta aos objetivos dos organizadores com o apoio dos seus colaboradores autores e autoras de oferecer à didática do ensino jurídico, a abordagem de relações instigantes entre filmes e conceitos – dos filmes hollywoo- dianos à poesia de metáforas sensíveis – onde o cinema registra a condição de nossa existência com o poder de imagens, sonhos e ideais, de maneira que uma teoria árida ou o caráter de neutralidade dos métodos científicos se tornem acessíveis a partir do poder de imaginação provocado pelo cinema (pág. 10).
Recorto as ricas e plurais contribuições coligidas no livro, com temas que trazem ainda a vinculação em algumas abordagens, também da questão política, por exemplo, a vivida sob a sombra do autoritarismo obscurantista, que resultou em censura, em tortura, em exílio, em assassinato político. No recém- lançado volume, o no 7, da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica à Justiça de Transição na América Latina (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de, et allli (orgs). Brasília: Centro de Educação a Distância – CEAD/NEP/UnB- MJ/Comissão de Anistia, 2015), inclui um texto do cineasta, expoente do documentarismo brasileiro, meu colega de UnB, Vladimir Carvalho (A Resistência em Brasília – um breve testemunho), exemplar a esse propósito (págs. 69-70):
Neste mesmo ano de 1971, por mais que tentasse evitar, confrontei-me com o esquema de repressão do Estado discricionário: meu primeiro longa-metragem, O País de São Saruê, foi liminarmente proibido pela Censura e mais do que proibido, interditado em todo o território nacional. O veredito dos censores, como está no Diário Oficial da União, incluía uma justificativa afirmando que o documentário, imaginem, ‘feria a dignidade e os interesses nacionais’. Decidi, então, que não iria desistir e inscrevi o filme na competição do Festival de Brasília; para minha surpresa, ele foi selecionado. Entretanto, para purgar os meus pecados, a direção da Fundação Cultural, que tinha como presidente do seu Conselho José Pereira Lira, ex-chefe de polícia no Governo do general Eurico Dutra, foi taxativa, e, dias depois, recusou a decisão da Comissão de Seleção. Ficava o dito por não dito. … apelei e fui sozinho e contrafeito ao velho Pereira Lira, homem tosco, servil aos poderosos, herdeiro dos coronéis do Piancó, na Paraíba. Disse-me, seco como uma múmia, despachando-me: ‘Se esse seu filme fosse boa coisa, não teria sido preso na Censura’. Ainda insisti, indo bater na porta do gabinete de Rogério Nunes, manhoso e sibilino chefe da Censura Federal. E aí foi a vez da mais descarada farsa. Apanhou o meu processo e foi despachar com o general Canepa, o temível chefão da Polícia Federal; duas horas depois, voltou dizendo que o Ministro Alfredo Buzaid estava muito preocupado com o que lera na imprensa e, temendo pelo festival, desaconselhara qualquer liberação. Resumo da ópera: o O País de São Saruê foi substituído por uma xaropada esportiva chamada Brasil Bom de Bola, para adular o ditador Médici, que havia recebido em praça pública os vencedores da Copa de 70, objeto do documentário.
Sugiro a leitura completa do texto de Vladimir Carvalho, conforme a referência indicada, em tudo ilustrativo do quadro hostil que o autoritarismo esboça para escapar ao modo artístico de fazer a leitura simbólica do social, do político e do jurídico. E, no ambiente universitário, também afetado por essas interferências, de que modo o conhecimento crítico, nas suas múltiplas expressões, se preserva gerando formas sutis de resistência. Assim também em relação ao cinema. De fato, conforme ele conclui o seu texto (pág. 71): Foi no clima dessa reconstrução (da Universidade de Brasília) e como pedagogia para a superação do período autoritário, que realizei ‘Barra 68 – Sem perder a ternura’”.
Descubro em algumas dessas referências, para além das dimensões a que já me referi, ainda uma outra influência que talvez possa ser considerada a mais notável difundida no Brasil. Refiro-me a que deu origem, sob a baliza dos dois manifestos “do Surrealismo Jurídico” e da “Ecologia dos Desejos”, ao movimento da Cinesofia, criado por Luís Alberto Warat.
Remeto aqui aos anais da 3ª Semana Nacional de Cinesofia, coordenada pelo grande pensador e que aconteceu na Chapada dos Guimarães, em Mato Grosso, em novembro de 2000 (Cuiabá: Unirondon/Almed, 2000), para indicar a existência de um achado memorial dessa rica experiência pedagógica. Mas, para esclarecê-la trago as palavras do próprio Warat, in La Cinesofia y Su Lado Oscuro. La infinita posibilidad surrealista de pensar com la cinesofia (Territórios Desconhecidos. A Procura Surrealista do Abandono do Sentido e da Reconstrução da Subjetividade (Florianópolis: Fundação Boiteux, vol. I, 2004):
Siempre pense que los sueños libertadores se expresan en un lenguage esencialmente poético. Esa es mi proximidad com el surrealismo. Eso me lleva a pensar em el sueño-poesía como antídoto para una sociedad finisecular que solo conserva el desencanto como valor. Bajo estas condiciones, la poesia reabre la posibilidad de una fuerza creadora, nos devuelve la capacidad mágica de ilusionarmos. La poesia funcionando, em situación de transferência, como disparador.
Lo que finalmente me quedo como saldo: Para la cinesofia, el cine es una experiência poética, ética, política y psicoanaliticamente orientada: uma poesia para descifrar. También es una cartografia de la subjetividad y de las relaciones intersubjetivas em la condición trasmoderna. La Idea de una metafísica constitutiva que enfrente, poéticamente, los abismos de la existência. La cartografia que busca outro niveles de subjetivación. La cartografia que busca a constitución del mundo y sus saberes com la misma disponibilidad que puede tener el analista com su paciente, tan diferente a la postura rígida para com el otro que presenta la academia iluminada (la falsa metafísica de los que sienten la necesidad de ser sábios). Una forma de tirarnos a uma pileta de aguas explosivas, para que nos ayude a viabilizar la construcción del futuro. La fuga hacia los lugares que no hacen sentido, para la composición del nuevo… . (págs. 561-562, assim mesmo, em “portunhol”, no original).
Reafirmo o sentido libertário em Warat porque ele é o autor que mais intensamente interpelou o novo pela imaginação e até pelo sonho e ofereceu condições para construir mediações acessíveis para o futuro. E porque, entre essas mediações, sugeriu estratégias dialógicas, entre elas o cinema, aptas, lembrei em um trabalho meu (Direito como Liberdade. O Direito Achado na Rua, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2011), a constituir um trabalho de reconstrução simbólica, imaginária e sensível, com o outro do conflito e de produção com o outro, das diferenças que permitam superar as divergências e formar identidades culturais (pág. 60).
Conforme o próprio Warat nos legou, tal como ficou registrado em sua entrevista concedida a Marta Gama para o Observatório da Constituição e da Democracia (C & D), no 8, outubro de 2006, UnB/FD, Brasília, págs. 12-13 (aliás, a última entrevista, antes de aposentar-se na UnB instalar-se na UFRJ, até o momento de regressar a Buenos Aires e logo falecer):
A arte me mostra que é o melhor caminho para a inclusão social dos excluídos. A recuperação da autonomia, a descoberta de um sentido para a vida é sempre através da arte, porque não pode haver outro modo de fazê-lo que através da poesia. Evidentemente, uma nova concepção do Direito deve ser transdisciplinar, porém de uma transdisciplinariedade que seja mais que uma simples interseção, que habilidades oriundas de diferentes lugares de saber. Precisamos falar de um lugar ‘trans’ que agregue uma nova dimensão no espaço pedagógico: o espaço da sensibilidade e das artes. Assim, a arte nos abre uma infinidade de mundos e ajuda a encontrarmos nosso sentido de vida. Nosso lugar na vida como sentido. A arte nos ajuda a construir um caminho pessoal e único. Creio que a arte também tem um papel muito importante no processo de construção da emancipação individual e coletiva. Na verdade, penso que a única forma de fazermos uma revolução existencial é através da arte. A única forma de fazermos as revoluções moleculares no século XXI.
Detive-me um pouco mais no esquadrinhamento do pensar waratiano porque, de alguma forma encontro a sua influência numa das mais fecundas abordagens atuais sobre as intersecções epistemológicas, pedagógicas e políticas que se desenvolvem, institucionalmente, no Brasil. Aliás, retiro desse texto, integralmente, uma nota de filiação, que transcrevo e que me confirma a localização dessa identidade. Transcrevo a nota:
Possivelmente, a pesquisa mais detalhada realizada no Brasil sobre as diversas intersecções e possibilidades de abordagens investigativas en- tre Direito e Cinema seja a desenvolvida pelo ‘Grupo de Pesquisa em Direito e Cinema’, que atualmente integra o Laboratório de Direitos Humanos da UFRJ – LADIH. Nesse sentido, ver: MAGALHÃES, J. N.; PIRES, N.; MENDES, G. et al (org.). Construindo memória: seminários direito e cinema. Rio de Janeiro: Faculdade Nacional de Direito, 2009. E também: DE MATOS, Marcus V. A. B.. “Direito e cinema: os limites da técnica e da estética nas teorias jurídicas contemporâneas”. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, n. 60, p. 231 a 267, jan./jun. 2012.
Trata-se, salienta o autor, – Warat certamente é uma referência para a coordenação desse projeto, referindo-me a Juliana N. Magalhães – de percorrer o caminho no qual, a senda mais promissora continua a ser a que permite “falar da relação entre “cinema e direito” – num modo que – requer, de antemão, rever a “concepção tradicional, normativista de direito”, e abrir espaço para outras formas simbólicas de manifestação do Direito”.
No trabalho de Marta Gama, Entrelugares de Direito e Arte: experiência artística e criação na formação do jurista, editado pela EdUECE, ela parte de uma pergunta visceral: O que pode a arte na formação do jurista? Esta pergunta que ela responde neste livro serviu de guião na sua trajetória de pesquisadora e foi diligentemente trabalhada em sua tese de doutorado “PENSAR É SEGUIR A LINHA DE FUGA DO VOO DA BRUXA” Pesquisa sociopoética com estudantes de Direito sobre a arte na formação do jurista, defendida na Faculdade de Direito da UnB, em 2013, de onde a Autora extrai a matéria da obra.
Nas palavras da própria Autora, tudo começou com a busca pelos infinitos de possibilidades que a arte pode produzir no ensino jurídico, suas potencialidades e seus limites, e com o propósito de investigar tais alternativas. Para isso, empiricamente, antes, foi realizado o Percurso em Direito e Arte em uma abordagem Socio-poética, curso-pesquisa com sete estudantes de Direito – quatro mulheres e três homens –, dos quais seis eram alunos na Universidade de Brasília e um da Universidade Católica de Brasília, a partir de um tema-gerador A arte na formação do jurista.
Do que se trata a Sociopoética? Essa é a questão teórica que dá lastro à pesquisa tal como ela a desenvolve no livro, aprofundando um enquadramento que já havia designado, previamente, como se vê do artigo que assina comigo por ter sido seu orientador A experiência artística e a criação na formação do jurista. Uma pesquisa sociopoética com jovens estudantes de Di- reito do Distrito Federal, publicado em Linguagens, Educação e Sociedade: Revista de Pós-Graduação em Educação da UFPI/ Universidade Federal do Piauí/Centro de Ciências da Educação e Juventude-Teresina: EDUFPU, 2013-353p. Edição Especial Dossiê Educação e Juventudes. ISSN 1518-0743, Ano 18.
No artigo foram apresentados os resultados parciais da investigação de doutorado. Nele já se destaca a abordagem sociopoética de pesquisa, que tem a experiência artística como dispositivo disruptor, um dos seus princípios, e foi o caminho metodológico empregado no curso-pesquisa, proporcionando aos estudantes Formação em Direito e Arte e produção dos dados. Também já se confirma, com a segurança do percurso realizado, que a experiência artística, pela violência com que afeta as subjetividades, deslocando-as da sua zona de acomodação, promove o ato de pensar, que, no dizer de Deleuze e Guattari, fontes da retaguarda teórica do trabalho, nada tem de ordinário, pois somente ocorre diante da brutalidade, da violência, que nos retira da opinião, da representação, da recognição. É no encontro com o caos, a partir dessa violência, que somos provocados a pensar e a criar. Nesse sentido, a experiência artística revela-se um potente dispositivo na formação do jurista, porque, promovendo o ato de pensar e a ruptura com a recognição, oportuniza a criação.
As análises dos dados levaram a duas linhas ou dimensões do pensamento do grupo-pesquisador, que no livro, são examinadas em pormenor. A primeira: o ensino jurídico, linha que desvela o quanto do passado persiste no presente do ensino jurídico; o quanto há linhas de segmentarização constantemente perturbadas, inquietadas, assombradas por práticas e ideias, linhas de fuga, que operam transformações da paisagem. O que demonstra que o ensino jurídico é um terreno conflituoso, um campo de lutas onde práticas arraigadas convivem com ideias e ações educativas transformadoras.
A segunda linha: Arte na formação do jurista demonstra que a experiência artística pela violência com que opera, retira o pensamento da sua imobilidade, promovendo o ato de pensar. Porque pensar, diz Marta – é sempre seguir a linha de fuga do voo da bruxa, já que o pensamento não pensa sozinho, mas apenas diante de algo que o força a pensar. Mas a questão funda- mental do pensamento é a criação. Pois não existe pensamento sem criação, porque pensar é inventar, pensar é fazer o novo. Assim, a experiência artística na formação do jurista é a possibilidade de reinventar conceitos jurídicos, produzir novas possibilidade para o Direito.
Por isso que, os dados produzidos na pesquisa, movida por conceitos peculiares, singulares, constituídos numa voragem criadora do imaginário interpelante, demonstram o turbilhão de ideias e de conceitos desterritorializados e heterogêneos, marca- dos pelas multifaces presentes no entrelugar entre o Direito e a Arte.
Marta se mantem íntegra e fiel neste percurso, na busca de novos caminhos para mapear esse entrelugar entre Direito e Arte. Com Luis Alberto Warat, a voz silente (expressão muito usada por Warat) do discurso de Marta, para ela tudo converge para a possibilidade da instituição do novo. Mais ainda, no campo da pedagogia e do ensino do Direito, seu espaço de movimento, porque é do que se trata, ela afirma, é propor uma revolução da forma de ensino do Direito, através da arte, abrir caminho para uma macro revolução, já que a revolução poética, dos sentidos, de libertação dos desejos, aponta para a própria revolução do homem e do mundo. Da palavra libertada, da imaginação descolonizada, pela magia dos sonhos, pelo ato poético de viver, emerge irresistivelmente uma nova forma de existir, novas maneiras de significar a vida, as relações humanas, uma nova significação imaginária, que rompendo, enfim, com os grilhões de uma racionalidade totalizante (cientificidade moderna, positiva, causal) seja capaz de construir a autonomia individual e coletiva (GAMA, Marta. Surrealismo Jurídico, Arte e Direito: Novos Caminhos. Brasília: Fa- culdade de Direito da UnB. Observatório da Constituição e da Democracia, n. 8, outubro de 2006, p. 06-07).
Na Coluna Lido para Você que mantenho no jornal Estado de Direito, publiquei a algum tempo uma recensão do livro infantil A Rua de Todo Mundo. Carolina Nogueira. Brasília: Longe/ Edição da Autora. 2 edição, 2015. ISBN 978-85-916451-0-). Neste livrinho a autora fala e ilustra uma obra, diz ela que nasceu da generosa colaboração dos meus amigos do mundo todo, numa história da maior rua do mundo, a mais legal de todas. A rua de todo mundo. Uma rua na qual os vizinhos são ao mesmo tempo diferentes e bem parecidos. Eu cheguei a esses livros “infantis” de Carolina Nogueira, da forma como em geral se chega a essas histórias escritas para crianças, mas que nos alcançam de modo inesperado.
Curiosamente, porém, meu primeiro contato, aliás, não foi com a escritora mas com a produtora de um instigante projeto Feirinha do Quadrado (https://www.feirinhadoquadrado.com. br/) que me convidou para participar de uma live abrindo a sessão de debates do projeto, para discutir o tema Quem tem direito a Brasília? Tal como se pode ver na página, a descrição da proposta estava assim orientada:
No primeiro debate, a Feirinha do Quadrado 2020 tem a alegria de receber o ex-reitor da UnB José Geraldo de Sousa Júnior, ideólogo do Direito Achado na Rua. Ele discute conosco e com Luísa Porfírio e Guilherme Black, da ONG No Setor, como o direito à moradia, à livre circulação e ao lazer é distribuído na cidade de Brasília. Pessoas que moram na rua, vendedores ambulantes, pessoas que não moram no Plano Piloto: quem tem direito a Brasília? Em que contextos os espaços urbanos são apropriados de maneira real, para além de eventos temporários?
A minha primeira intervenção foi exatamente, a pedido da moderadora, esclarecer o sentido e o alcance da expressão O Direito Achado na Rua. Falei das condições políticas e teóricas que abrem o tema do Direito às teorias críticas que o articulam ao social e não apenas às normas. Sustentando que os direitos são relações, não são quantidades. São as dimensões do humano que se realiza na história, no movimento das subjetividades que se emancipam. E não artefatos que se depositam em prateleiras legislativas e que se empoeiram e se fadigam em face das transformações que operam na sociedade.
Por isso a metáfora da rua, para designar o espaço público, o lugar popular do poder como declama Castro Alves (O Povo ao Poder: pois quereis a praça?/ Desgraçada a população/ Só tem a rua de seu…); ou Cassiano Ricardo (Sala de Espera: Mas eu prefiro é a rua./ A rua em seu sentido usual de “lá fora”./ Em seu oceano que é ter bocas e pés/ para exigir e para caminhar./A rua onde todos se reúnem num só ninguém coletivo./ Rua do homem como deve ser:/ transeunte, republicano, universal./ Onde cada um de nós é um pouco mais dos outros/ do que de si mesmo./ Rua da procissão, do comício,/ do desastre, do enterro./ Rua da reivindicação social, onde mora/ o Acontecimento…); ou em Marshal Berman (Tudo que é Sólido Desmancha no Ar), aludindo à rua como o espaço no qual, em seus encontros e desencontros, ao reivindicar liberdade, justiça, cidadania e direitos, a multidão se transforma em povo. Ou em Marx, em quadra que Roberto Lyra Filho traduziu e tomou como metáfora para simbolizar a sua concepção de Di- reito: Kant e Ficht buscavam o país distante/ pelo gosto de andar no mundo da lua/ eu por mim tento ver, sem viés deformante/ o que pude encontrar bem no meio da rua.
Por isso a imediata identificação desse tema comum, no meu projeto de pesquisa – O Direito Achado na Rua – e no livrinho de Carolina Nogueira – A Rua de Todo Mundo – Um lugar onde tão lindas quanto as diferenças que existem entre as culturas são as semelhanças que aproximam todas as crianças do mundo. Assim, transformado em mote, fio condutor, para mostrar as disputas interpretativas e de apropriação da cidade, enquanto não formos capazes de vivenciar e compartilhar a cidade de modo solidário, ao invés de disputar projetos de cidade, conforme acentuaram meus colegas de live.
Observe-se a atualidade do discurso higienista, refeita na intenção de “revitalização do Setor Comercial Sul” recuperado para a especulação imobiliária sem nenhuma política social de compensação para os seus usuários, apesar de todas as formas de inserção social nas políticas públicas de direito urbanístico e mais ainda de direito à cidade. O discurso do Governo distrital, e as práticas repressivas, violadoras de direitos e destituintes do uso livre da cidade, permanece o mesmo que o proferido pelo antigo prefeito de São Paulo, depois Presidente da República Washington Luís, sobre o projeto de recuperação da Várzea do Carmo (durante o seu mandato municipal entre 1914 e 1919), esvaziado de sua apropriação de uso para integrá-lo ao âmbito capitalista das trocas e da mercadorização, o que ainda se vê, na adiantada capital do estado, a separar brutalmente do centro comercial da cidade os seus populosos bairros industriais, é uma vasta superfície chagosa, mal cicatrizada em alguns pontos, e, ainda escalavrada, feia e suja, repugnante e perigosa, em quase toda a sua extensão. (…):
É ai que, protegida pelas depressões do terreno, pelas voltas e ban- quetes do Tamanduateí, pelas arcadas das pontes, pela vegetação das moitas, pela ausência de iluminação, se reúne e dorme e se encachoa, à noite, a vasa da cidade, em uma promiscuidade nojosa, composta de negros vagabundos, de negras edemaciadas pela embriaguez habitual, de uma mestiçagem viciosa, de restos inomináveis e vencidos de todas as nacionalidades, em todas as idades, todos perigosos. (…)
Denunciado o mal e indicado o remédio, não há lugar para hesitações porque a isso se opõem a beleza, o asseio, a higiene, a moral, a segurança, enfim, a civilização e o espírito de iniciativa de São Paulo.
Os fundamentos que orientam a minha posição jurídica no tocante às questões que o debate suscita estão no nono volume de O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito Urbanístico (http://livros.unb.br/index.php/portal/catalog/book/17), que vem ampliar a série e é apresentado em um momento político que as liberdades democráticas, núcleo central do direito à cidade, encontram-se fortemente ameaçadas. Esperamos, assim, que as palavras aqui escritas ganhem vida e sirvam como repertórios de legitimação para as práticas insurgentes de resistência e de reinvenção das formas de sociabilidade democratizantes e libertárias em que nossas trajetórias pessoais e coletivas se inserem (https://correiodolivrodaunb.wordpress.com/2020/11/09/ introduçao-critica-ao-direito-urbanistico/).
Ao fim e ao cabo, procurei, como se pode ver em minhas locuções na live, recuperar o sentido de polis que o social reivindica para o projeto de Brasília, e que orienta a ação e o discurso sobre a cidade, na disputa entre consumo e cidadania, e que precisa ir além da civitas e da urbs, a cidade bela e funcional, pensada no projeto e usufruída por sua elite descendente dos pioneiros e com sensível tensão com os descendentes dos candangos, e inserir na interpretação da cidade o lugar que só a história de protagonismos pode inscrever.
Assim, recuperei a noção de cidade educadora para pensar respostas a essas tensões e o fiz resgatando texto de coluna que mantive na Revista do Sindjus DF – Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário e do Ministério Público da União no DF (Ano XVII, no 59, junho/julho de 2009, p. 5). Com efeito, em 1990, em Barcelona, na Espanha, por iniciativa da Associação Internacional de Cidades Educadoras, realizou-se o 1º Congresso Internacional de Cidades Educadoras. Ao final desse Congresso foi elaborada uma Carta das Cidades Educadoras, chamada Declaração de Barcelona, contendo definições e princípios pelos quais se definem compromissos que levam a orientar os impulsos educativos da cidade.
Uma cidade pode ser considerada educadora quando nela, além dos vários modos de ocupação de espaços, nos quais se realizam múltiplas interações e experiências do conviver, são disponibilizadas incontáveis possibilidades educacionais, contendo em si elementos importantes para a formação integral de seus habitantes.
A cidade contém, de fato, como assinala a Carta de Barcelona, um amplo leque de iniciativas educadoras, de origem, intenções e responsabilidades diversas. Engloba instituições formais, intervenções não formais com objetivos pedagógicos preestabelecidos, assim como propostas ou vivências que surgem de forma contingente mas que favorecem a disposição para o aprendizado permanente de novas linguagens e que oferecem oportunidades para o conhecimento do mundo, o enriquecimento individual e o seu compartilhamento de forma solidária.
No Brasil, já são oito os municípios que assinaram o termo de compromisso da Carta de Barcelona, entre eles São Paulo, Belo Horizonte e Porto Alegre. São cidades que podem, assim, trocar experiências bem-sucedidas segundo esses valores e que passam a desenvolver uma identidade constituída por investimentos culturais para a formação das pessoas que nela convivem. Elas procuram, enquanto cidades educadoras que pretendem ser, converter seu espaço urbano em “escola” e, na intencionalidade de suas atribuições, se oferecer como mediação para o desenvolvimento pleno de seus habitantes, contribuindo para que eles se façam sujeitos e cidadãos.
Com efeito, ainda conforme a Carta de Barcelona, a cidade só será educadora quando reconhecer, exercitar e desenvolver, além de suas funções tradicionais (econômica, social, política e de prestação de serviço), uma função educadora cujo objetivo é a formação, pr moção e desenvolvimento de todos os seus habitantes.
Normalmente são identificados atributos para designar uma cidade educadora, a partir da constatação de que ela tem um governo eleito democraticamente e seus dirigentes se empenham em incentivar projetos de educação para a cidadania. Mas a análise histórica e social de qualquer cidade facilmente leva a identificar ações organizadas de movimentos sociais ou de comunidades de vizinhança que representam inúmeras iniciativas e experiências carregadas de sentido educador, por se caracteriza- rem como processos qualitativos de novas sociabilidades.
O notável nesses processos é a construção de uma consciência social mais elevada. Aí reside o fator educador por excelência, na medida em que as pessoas que dele participam acabam conhecendo melhor as situações que fundamentam as decisões relativas à sua cidade e vivenciam de forma efetiva a experiência democrática.
É possível pesquisar uma cartografia dessas práticas a partir de experiências apresentadas em congressos (www.edcities.bcn. es) ou em coletâneas que as registram, como a coleção Cidades Educadoras (Editora Cortez/Instituto Paulo Freire/Cidades Educadoras América Latina) disponível nos sites www.paulofreire. org e www.cortezeditora.com.br.
Elas são muitas e vão desde as práticas de orçamento participativo às de educação para a democracia, direitos humanos e cultura da paz. O que revelam de comum é o efeito irradiador, intercultural e mobilizador das redes e das instituições que se articulam nessa lógica de inclusão e de solidariedade, revelando o caráter aberto e irradiante da proposta de cidade educadora.
Abordo todas essas questões propostas no Painel, embalado também pela leitura de uma dissertação que orientei no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania da UnB, com o título imaginativamente interpelante de Oralituras Munduruku;
As Histórias Contadas e a Justiça Cognitiva. O estudo tem como ponto de partida as mensagens coletadas nos livros de Daniel Munduruku, autor de literatura indígena, em geral escritas para o imaginário infantil – As Serpentes que Roubaram a Noite e Outros Mitos; Meu Avô Apolinário: Um Mergulho no Rio da (Minha) Memória; Todas as Coisas São Pequenas, Memória de Índio – Uma Quase Autobiografia – sob a forma de transmissão de conhecimentos pelos guardiões da memória aos mais jovens, diz Catherine Fonseca Coutinho, proponente da pesquisa. Com certeza essa leitura veio me empurrando para o encontro com a literatura infantil de Carolina Nogueira, ela também instigando a compreender que todas as coisas têm um ciclo; criar, cultivar, ajudar a dar frutos, deixar ir: uma planta, uma ideia, um trabalho, um sonho, um amor, um livro, a vida.
Creio que sua expectativa se refere aos desafios e às tarefas atuais que se colocam para esse modo de conhecer e de realizar o Direito, tal como procurei acentuar em livro (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de (coord.). O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2015). Cuida-se, nessa obra que conta com um coletivo de pesquisadores do Grupo de Pesquisa com a mesma denominação, de pôr em relevo, pensamento e ação de operadores que sabem exercitar a compreensão plena do ato de realizar o Direito, rejeitando a falsa oposição entre o político e o jurídico, ao entendimento de que, para se realizar, “a justiça não deve encontrar o empecilho da lei”. É aí que reside o protagonismo dos provedores de uma justiça poética, capazes de apreender o Direito a andar pelas ruas porque, “quando anda pelas ruas, colhe melhor a vida nos seus contrastes e se prolonga pela clarividência da observação reduzida a aresto”, como já se disse certa feita em homenagem a essa estirpe de juristas.
“Que a marreta do padre Lancelotti, para mim a mais contundente declaração de direitos e de manifestação por Justiça, esmague as serpentes e os sistemas antipovo enquanto alimenta pobres e abriga em sua igreja povo de rua”. Não é simples, nem fácil, comprometer-se com esses direitos. Lembra Eduardo Galeano: a justiça (e muitos governos), como as serpentes, só morde os descalços (https://www.brasilpopular.com/ossos-de- boi-arroz-e-feijao-quebrados-e-pe-de-galinha-fome-no-brasil/).
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Direitos Humanos no Brasil 2023 / Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. São Paulo: Outras Expressões, 2023, 231 p.
Antes de mais, uma indicação do Coletivo que se responsabiliza pela edição desse repositório fundamental para a compreensão do processo de democratização e de validação do árduo esforço de construir civilidade em nosso País, obra que me foi ofertada pela querida amiga, da Comissão de Justiça e Paz, advogada, religiosa e ativista de Direitos Humanos Sueli Bellato. Sueli, aliás, é membro do Conselho Consultivo da articulação responsável pela preparação da obra: DIREITOS HUMANOS NO BRASIL 2023.Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. Livro, de resto, que “é dedicado à memória de nossa querida companheira Nalu Faria, liderança fundamental do movimento feminista e da Marcha Mundial das Mulheres. Seu exemplo e sabedoria inspiram e iluminam nossa caminhada. Nalu, presente sempre!”.
Uma nota sobre o expediente que se incumbiu da edição:
Organização: Daniela Stefano e Maria Luisa Mendonça
Fotos: João Roberto Ripper
Projeto gráfico diagramação e capa: Zap Design
Revisão: Dulcineia Pavan
Diretora Executiva: Sandra Inês Faé
Assessoria técnica: Cláudia Felippe
Assessoria administrativa: Caroline Maciel
Assessoria jurídica: Aton Fon Filho e Roberto Rainha
Colaboração e fontes de pesquisa
Ação Educativa
Articulação Agro é Fogo
Associação Brasileira de Saúde Mental
Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra)
Campanha Nacional em Defesa do Cerrado
Comissão Pastoral da Terra (CPT)
Conselho Indigenista Missionário (CIMI)
Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq)
Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE)
Escola Nacional Paulo Freire
Geledés – Instituto da Mulher Negra
Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial (IDMJRacial)
Instituto Justiça Fiscal
Intervozes
Marcha Mundial das Mulheres
Movimento Sem Terra
Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR)
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia
Terra de Direitos
Universidade de Brasília (UnB) Universidade de São Paulo (USP)
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
Universidade Federal do ABC (UFABC)
Universidade Federal do Pará (UFPA)
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ)
Universidade Federal de Viçosa (UFV)
Universidade de Strathclyde
Apoio: Coordenadoria Ecumênica de Serviço (Cese), Comissão Dominicana de Justiça e Paz do Brasil, DKA
Áustria, Grassroots International.
Conselho Consultivo
Guilherme Costa Delgado
Jelson Oliveira
Kenarik Boujikian
Letícia Sabatella
Luiz Bassegio
Mônica Dias Martins
Ricardo Rezende Figueira
Roberto Rainha
Rubens Naves
Suzana Angélica Paim Figueredo
Conselho Deliberativo
Aton Fon Filho
Guilherme Amorin
João Roberto Ripper
Lucia Xavier
Sérgio Haddad
Sueli Aparecida Bellato
Conselho Fiscal
Antonio Eleilson Leite
Ricardo Gebrim
Thomaz Ferreira Jensen
REDE SOCIAL DE JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS
Alameda Barão de Limeira, 1038 – Sala 204 Campos Elíseos
Um time de peso. Vou logo ao prefácio, elaborado pelos caros amigos Pedro Cláudio Cunca Bocayuva e Ricardo Rezende Figueira. Antes, uma nota sobre os autores. Pedro Cláudio Cunca Bocayuva é professor de Mestrado do Programa de Pós-graduação de Políticas Públicas em Direitos Humanos do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPDH-/NEPP-DH/UFRJ). Doutor em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ. E Ricardo Rezende Figueira é professor no PPDH-/NEPP- -DH/UFRJ. Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Membro do Conselho da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos.
Como se percebe são intelectuais e militantes da causa dos direitos humanos. Mas são também interpretes sensíveis da realidade. Gente sentipensante como diria Falls Borda, que sabem representar um mundo com razão e sensibilidade.
Sobre Cunca Bocayuva eu disse algo em Lido para Você –https://estadodedireito.com.br/cultura-de-direitos-cultura-democratica-narrativas-criticas/ – ao apresentar evento e realização editorial, ocorridos no Rio de Janeiro, nos dias 17, 18 e 19 de outubro o Instituto Joaquín Herrera Flores – América Latina realizou o Seminário Cultura de Direitos e Cultura Democrática, evento presencial e gratuito, no Teatro Casa Grande, Leblon, Rio de Janeiro. O objetivo foi discutir os elementos constitutivos do ethos da cultura democrática no Brasil, apresentando temas transversais como sistema de justiça, literatura e linguagem, história do direito, constitucionalismo, racismo estrutural, direito à cidade e aos territórios.
Conforme o programa do Seminário, seu terceiro dia foi dedicado ao lançamento do livro “Cultura de Direitos e Cultura democrática – Narrativas Críticas”, uma iniciativa do Instituto Joaquín Herrera Flores – América Latina. Ali, o professor Pedro Cláudio Cunca Bocayuva fez a palestra de encerramento, sobre “Desafios para uma cultura democrática”. Cunca também está presente na publicação com um texto eloquente Direitos Humanos na Transição Paradigmática: A multiplicação das Vozes. No Seminário, a palestra do professor do NEPP (Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos)-DH/UFRJ, cuidou de um balanço dos dias dos seminários, articulando os discursos dos expositores com a análise da conjuntura política brasileira, agudizada pelas eleições à Presidência da República, mais que um processo eleitoral, algo que acelera as injunções das tensões paradigmáticas. Foi de Cunca Bocayuva também a exposição “Arte e resistência”, com desenhos de sua autoria.
Também Ricardo integra essa estirpe de interpretação de mundo que se realiza por impulso sentipensante. Seu acervo crítico é notável e sua arte representativa da realidade é perpassada por sentimento de mundo. Ricardo foi um dos ilustradores da obra O Direito Achado na Rua, volume 10: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade (https://estadodedireito.com.br/o-direito-achado-na-rua-volume-10-introducao-critica-ao-direito-como-liberdade/), a convite de Judith Cavalcati, nossa pesquisadora e também curadora de arte da edição.
Não consegui transmitir aqui a contribuição de Ricardo para o volume, celebratório de 30 anos do projeto O Direito Achado na Rua, cuja Ficha técnica assim indica: Título: (sem título). Artista: Ricardo Rezende Figueira; Técnica (original): bico de pena s/ papel couche; Dimensão (original): 21×31 cm; Ano: 2019. Descrição: O desenho apresenta três figuras, em preto e branco, uma masculina, duas femininas. Ao lado, a mala. São migrantes, empreenderam um deslocamento físico e psicológico, como outsiders que povoam nosso mundo e apontam para a desigualdade social, étnica e de gênero. E podem estar perto ou longe de nossos olhos no trabalho escravo. Maltratados, estranhados, têm o olhar atento, olham de frente, têm sua dignidade, mesmo se ela não é respeitada, se são tratados como objeto, coisificados nas relações de produção, mesmo se não têm o direito à palavra e os lábios não são visíveis. Mas existem e podem se manifestar nas resistências, nas fugas, nas denúncias. Representam o mundo do trabalho urbano e rural, expressos no martelo, no prego, nas foices que se contemplam, na vassoura, na panela, nos três tijolos empilhados, na cana de açúcar, na lua e na lâmpada. Há escadas, há ondas, há um bordado de fios trançados nestas existências. É noite de aço, de dobras doloridas de perguntas. Mas virá o dia.
A ilustração pode ser vista na página 67 do volume acima indicado de O Direito Achado na Rua. Entretanto, ofereço aqui para visualização imediata, uma mostra de sua arte:
Pois bem, no prefácio eles oferecem a perspectiva que caracteriza a obra.
O ano de 2022, desde o golpe contra a ex-presidenta Dilma Rousseff, foi o primeiro momento no qual iniciamos o retorno a uma certa mobilidade e reorganização das forças democráticas no Brasil. Apesar disso, a fúria negacionista, o racismo, o sexismo e o golpismo se mantiveram em ação.
No último ano, ficou claro o retrato da devastação e do genocídio social e racial, da destruição ambiental e do colapso do Estado. Presenciamos desastres e crimes ambientais como consequências do ciclo neoliberal e dos discursos de guerra interna. Milícias e militarização se amalgamaram, se somando ao discurso e a políticas armamentistas.
Ataques às políticas públicas de defesa de direitos se somaram ao ataque contra o sistema eleitoral e contra o Supremo Tribunal Federal. Em 2022 cresceu a polaridade política resultante de uma gigantesca batalha no plano da violência material e da violência simbólica. Medo e desinformação se combinaram com tentativas de paralisar o país para concentrar o poder em um governo milicianizado, com um tipo de estratégia que podemos designar de neofascista.
Neste livro que a Rede Social Justiça e Direitos Humanos publica em 2023, podemos visualizar um cenário de transformação e de esperança. Em 2023, movimentos e organizações sociais retomaram articulações de coletivos e de blocos intelectuais que colocaram em cena as prioridades para formar resistências nos territórios. O quadro complexo apresentado no livro Direitos Humanos no Brasil mostra o vigor da resistência das populações periféricas e dos povos originários, que afirmaram um giro paradigmático. Estes movimentos sociais enfrentam os desafios das lutas em defesa dos direitos humanos, apontando novos horizontes, abordagens e práticas. Este cenário expressa avanços em relação ao protagonismo, ao conjunto de respostas, ao pensamento crítico e à ação coletiva.
A resistência ao regime de dominação tem como base a transversalidade e a complexidade de estratégias para entender as relações entre classe, gênero, raça e demais violências coloniais, patriarcais, racistas e sexistas.
Este tipo de violência se agrava no contexto da financeirização da economia. Sistemas de vigilância e desinformação impulsionam a precarização do trabalho e a manipulação política. Diante deste contexto, o livro Direitos Humanos no Brasil traz as vozes e as análises territorializadas das periferias urbanas, dos movimentos negros, feministas, da luta dos povos indígenas, quilombolas e camponeses.
É na chave de lutas por justiça social, racial e ambiental que novas leituras afirmam um horizonte que articula as ecologias social, mental e ambiental, com articulações locais, regionais, nacionais e internacionais. O ano de 2023 teve início com a vitória eleitoral de Lula, como fruto de uma aliança de forças democráticas. Apesar das tentativas golpistas, o bolsonarismo foi derrotado nas urnas. As conspirações e ações ilegais para forçar a tentativa de golpe foram derrotadas. As condições de governabilidade e de defesa da democracia puderam garantir, por exemplo, a proteção a povos indígenas, as medidas protetivas para o desarmamento e as ações emergenciais em apoio a populações vítimas de desastres ambientais, como ocorreu no Rio Grande do Sul.
Outras medidas importantes foram a atuação contra o garimpo em territórios indígenas, a retomada de políticas de distribuição direta de renda, a reestruturação de ministérios com protagonismo de movimentos de mulheres e de povos indígenas, são alguns exemplos da retomada da agenda ambiental e dos direitos humanos. A presença do governo Lula nos espaços internacionais representou um marco contra o isolamento do país.
Neste cenário, os movimentos sociais continuam a cobrar coerência do governo com seus compromissos eleitorais. Alguns governos estaduais seguem na direção da agenda genocida.
No momento em que escrevemos estas linhas avançam atos de barbárie em operações policiais como nos casos do Guarujá (SP), Rio de Janeiro (RJ) e Salvador (BA). A disputa política é intensa, com a ação do pântano chamado equivocadamente de “centrão”, composto por oligarquias parlamentares da bancada dos três “Bs” – bala, bíblia e boi. Estas oligarquias fazem pressão, por exemplo, pela aprovação do marco temporal contra a demarcação de territórios indígenas, contra direitos civis, diversidade e direitos reprodutivos. As máquinas de produção de notícias falsas tentam continuar com o negacionismo que gerou tantas mortes durante a pandemia de Covid.
O quadro de reconstrução de uma agenda de diretos humanos e a proposição de políticas incluem o retorno de espaços para interlocução entre governo e sociedade. Os desafios continuam nos campos da justiça social, racial, ambiental, de gênero e diversidade. O momento exige uma transformação capaz de gerar avanço democrático. Este livro publicado pela Rede Social de Justiça e Direitos Humanos e seus parceiros faz um balanço lúcido e atual da conjuntura do país, desde a ótica dos sujeitos e dos coletivos que defendem os direitos humanos no Brasil.
Uma mirada sobre o Sumário dá a dimensão do trabalho que é apresentado:
Prefácio, Pedro Cláudio Cunca Bocayuva e Ricardo Rezende Figueira
Apresentação Um antídoto à grilagem de terras públicas: nova jurisprudência do STF em embrião, Guilherme C. Delgado
Feminismo, agroecologia e biodiversidade na Marcha das Margaridas, Sarah Luiza de Souza Moreira e Liliam Telles
Garantir os direitos dos povos indígenas é garantir a vida da humanidade e do planeta, Antônio Eduardo Cerqueira de Oliveira
Imagens Humanas: Povos Indígenas, João Roberto Ripper
Quilombolas pelos direitos de territórios e vidas, Vercilene Francisco Dias
A sabedoria yanomami e a saúde global, Jelson Oliveira
A política agrícola e os impasses para uma efetiva reforma agrária, Claudinei Lucio Soares dos Santos
A justiça ambiental na Amazônia e a transversalidade de gênero, Susie Yumiko Fugii, Guilherme Amorim Campos da Silva e Rubens Naves
Empresas transnacionais do agronegócio causam violência, grilagem de terras e destruição no Cerrado, Fábio Pitta, Teresa Paris e Maria Luisa Mendonça
“Ficamos sem o minério, sem a floresta e sem os animais”: a violação dos direitos territoriais de comunidades ribeirinhas no Pará, Hugo Gravina Affonso, Yamila Goldfarb, Thaís Borges, Maurício Torres e Brian Garvey
Vivendo em territórios contaminados: um dossiê sobre agrotóxicos nas águas do Cerrado, Helena Rodrigues Lopes
Queimadas criminosas e mudanças climáticas, Paulo Tadeu Barausse, Rosineide Sibâdi Xerente e Ludmila Pereira de Almeida
A luta das comunidades apanhadoras de flores sempre-vivas, Fernanda Testa Monteiro e Alessandra Jacobovski
Do narcotráfico aos crimes ambientais: desafios da segurança regional e da justiça ambiental na Amazônia, Aiala Colares Oliveira Couto
Ações de enfrentamento à violência no campo e defesa dos direitos humanos, Andréia Silvério
A escravização e o primeiro ano do terceiro mandato de Lula, Ricardo Rezende Figueira e Suliane Sudano
A práxis da Economia de Francisco e Clara, Thomaz Ferreira Jensen
Novos ares para o mercado de trabalho, Fausto Augusto Júnior e Patrícia Lino Costa
Pensando a universidade com Paulo Freire, Sérgio Haddad
Automatismos, plataformas e alienação técnica, Sérgio Amadeu da Silveira
Justiça socioambiental na encruzilhada do direito à comunicação, Alfredo Portugal, Gabriel Veras, Nataly de Queiroz Lima e Raquel Baster
Juventude trabalhadora: resistência, educação popular e participação social, Deisy Boscaratto, Lauro Carvalho da Silveira, Luiz Bugarelli, Luiza Troccoli e Thays Carvalho
Reforma tributária justa e mobilização social, Fábio Santos Brunetto e Márcio Calvet Neves
Gênero, raça e direitos humanos, Maria Sylvia Aparecida Oliveira
Como lutar contra o feminicídio?, Analba Brazão Teixeira
Agenda LGBTQIA+ no governo Bolsonaro: inflexões nas políticas públicas, Henrique Rabello de Carvalho
Pandemia de Covid-19 como violação sistemática de direitos humanos, Rogério Giannini
A produção de dados em favelas e periferias em busca de memória, verdade e justiça, Giselle Nunes Florentino e Fransérgio Goulart
Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro!, Eleilson Leite
Buscando a Apresentação, tem-se:
O livro é composto por 28 artigos, escritos por autoras e autores comprometidas/os com a transformação social a partir de sua atuação em movimentos, organizações sociais e universidades. Justiça ambiental e defesa dos direitos humanos são temas transversais que articulam a diversidade de conteúdos apresentados nos artigos do livro Direitos Humanos no Brasil 2023. Esta edição é lançada em um contexto no qual se ampliam espaços de mobilização social a partir da vitória de um governo que busca dialogar com a sociedade. Estes espaços são fundamentais para a garantia de direitos conquistados historicamente através da organização social e para a ampliação da defesa dos direitos econômicos, sociais, culturais, ambientais, civis e políticos.
Alguns dos temas apresentados no livro são a defesa dos direitos dos povos indígenas, quilombolas e camponeses. A organização destas comunidades é fundamental para a garantia do direto à terra e território, para a preservação ambiental dos biomas brasileiros e para conter a crise climática em âmbito global. Povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos-brejeiros e camponeses são guardiões da biodiversidade. Estas comunidades enfrentam violações aos seus direitos e violência causada pelo agronegócio e por empresas de mineração. Os artigos relacionados às questões de terra e território denunciam o racismo ambiental, a destruição causada por agrotóxicos, a grilagem de terras e os assassinatos de defensoras e defensores dos direitos humanos.
O livro traz análises e dados sobre uma diversidade de temas como trabalho, economia, educação popular, juventude, feminismo, relações raciais e comunicação. Essas análises incluem ferramentas no combate à desinformação; propostas para apoio e reparação às vítimas de Covid-19; organização e defesa de direitos coletivos no meio rural e urbano. O livro traz denúncias e dados alarmantes sobre sobre feminicídio, sobre violência contra populações periféricas urbanas e contra populações LGBTQIA+.
As conquistas dos movimentos e organizações sociais que lutam por direitos básicos, por justiça racial e ambiental. Alguns destes temas são o combate ao trabalho escravo, os direitos trabalhistas, a análise crítica dos meios de comunicação e as propostas para a reforma tributária. A pedagogia de Paulo Freire, a educação popular, a organização da juventude e do movimento feminista, a articulação da economia de Francisco e Clara são exemplos práticos que alimentam a esperança e a solidariedade. Outra ferramenta de mobilização descrita no livro é a cultura popular para “virar a página infeliz da nossa história” e seguir fortalecendo a defesa dos direitos humanos.
Além da satisfação de encontrar entre autores e autoras parceiros e parceiras ativos em projetos compartilhados em frentes que nos convocam teórica e politicamente para afirmar direitos humanos, o conjunto das intervenções abre, a preocupação comum que os artigos mostram: “as conquistas dos movimentos e organizações sociais que lutam por direitos básicos, por justiça racial e ambiental”. Nesse sentido a Apresentação destaca como “alguns destes temas são o combate ao trabalho escravo, os direitos trabalhistas, a análise crítica dos meios de comunicação e as propostas para a reforma tributária. A pedagogia de Paulo Freire, a educação popular, a organização da juventude e do movimento feminista, a articulação da economia de Francisco e Clara são exemplos práticos que alimentam a esperança e a solidariedade”, conquanto “outra ferramenta de mobilização descrita no livro é a cultura popular para ‘virar a página infeliz da nossa história’ e seguir fortalecendo a defesa dos direitos humanos”.
Eis aí um ponto de convergência que venho sustentando para afirmar o alcance necessário que o debate teórico-conceitual e político sobre os direitos humanos, deve procurar estabelecer.
Juntamente com um parceiro de pesquisa e em co-autoria – refiro-me ao professor Antonio Escrivão Filho, procuramos abrir um debate orientado por esses pressupostos, para interrogar os direitos humanos desde uma perspectiva política, teórica e conceitual, o que fizemos por meio do livro “Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos” (Editora D’Plácido, Belo Horizonte, 2016). Nesse livro, aproveitamos uma reflexão por nós acumulada numa sequência de cursos e escritos que realizamos em conjunto em diferentes espaços e auditórios, construindo uma rica interlocução à base de algumas singularidades.
De um lado, do que cuidamos é recusar a abordagem linear segundo a qual os direitos humanos se manifestam por etapas, como se fossem um suceder de gerações, em espiral evolutiva, de cujo evolver naturalizado derivassem os direitos individuais, civis e políticos, seguidos dos direitos econômicos, sociais e culturais. Em vez disso, buscamos conferir os processos ou as dimensões, designadas num cotidiano de afirmação e de reconhecimento, do qual emergem de modo indivisível, interdependente e integralizados os direitos humanos, manifestados ontologicamente na realidade instituinte e deontologicamente, abrigados num plano de garantias institucionalizado.
De outra parte, nos propomos a tarefa de rastrear a emergência dos direitos humanos como projeto de sociedade. Vale dizer, na consideração de que não se realizam enquanto expectativas de indivíduos, senão em perspectiva de coletividade, como tarefa cuja concretização se dá em ação de conjunto.
Por isso que partimos do debate conceitual dos direitos humanos, para esboçar o panorama do cenário internacional e de sua emergência histórica, no mundo e no Brasil. Para, desse modo, articular o seu percurso no contexto da conquista da democracia, assim designada enquanto protagonismo de movimentos sociais, ao mesmo tempo sujeitos de afirmação e de aquisição dos direitos humanos. Em relevo, pois, a historicidade latino-americana para acentuar a singularidade da questão pós-colonial forte na caracterização de um modo de desenvolvimento que abra ensejo para um constitucionalismo “Achado na Rua” (https://estadodedireito.com.br/constitucionalismo-achado-na-rua-uma-contribuicao-a-teoria-critica-do-direito-e-dos-direitos-humanos-constitucionais/).
Problematizamos, em conseqüência, os modos de conhecer e de realizar os direitos humanos, em razão das lutas para o seu reconhecimento, a partir das quais se constituem como núcleo da expansão política da justiça e condição de legitimação das formas de articulação do poder e de distribuição equitativa dos bens e valores socialmente produzidos”.
Em suma, tal como no livro ora Lido para Você, procuramos compreender os direitos humanos dentro de “um programa que dá conteúdo ao protagonismo humanista, conquanto orienta projetos de vida e percursos emancipatórios que levam à formulação de projetos de sociedade para instaurar espaços recriados pelas lutas sociais pela dignidade”.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Livro: Luiz Cláudio Cunha. Varsóvia e Gaza: Dois Guetos e o Mesmo Nazismo. Cadernos IHU ideias / Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Instituto Humanitas Unisinos. – Ano 20. São Leopoldo: Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 2003- .v. 21. Publicado também on-line: http://www.ihu.unisinos.br/cadernos-ihu-ideias
Este é um ensaio altamente interpelante, mais um daqueles que vem caracterizando o ensaio-reportagem do jornalista Luiz Cláudio Cunha.
Uma nota memorialista para informar aos leitores de que estirpe de jornalista estamos falando. Luiz Cláudio Cunha. Jornalista, consultor da Comissão Nacional da Verdade no período 2012-2014. Gaúcho de Caxias do Sul, começou sua carreira em 1969 na Folha de Londrina, no Paraná.
Autor de Operação Condor: o Sequestro dos Uruguaios (Ed. L&PM, 2008), recebendo da Câmara Brasileira do Livro no ano seguinte ao seu lançamento o Prêmio Jabuti, além de menção honrosa do Prêmio Vladimir Herzog do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, ambos na categoria Livro-Reportagem. O texto evidencia um tempo em que adversários eram punidos com a tortura, o desaparecimento e a morte. Nas palavras da editora, “o sequestro dos uruguaios Lílian Celiberti e Universindo Díaz em 1978, numa ação dos órgãos de repressão do Uruguai e do Brasil, expôs as vísceras da sinistra Operação Condor à opinião pública brasileira e internacional. Fundada em 1975 no Chile de Pinochet, a Condor era uma vasta ação terrorista de Estado que atropelava fronteiras nacionais e afrontava direitos humanos, forçando o desaparecimento de quem ousasse contestar os regimes de força dos generais. Dissidentes políticos eram caçados por comandos clandestinos militares e policiais”.
Em Porto Alegre, foi repórter especial de Zero Hora e dirigiu a sucursal da revista Veja entre 1972 e 1980, até se transferir para Brasília, onde chefiou as sucursais das revistas Veja, Isto É e Afinal, e dos jornais O Estado de S. Paulo, Jornal do Brasil, Diário do Comércio e Indústria e Zero Hora. No Rio de Janeiro, foi editor do Informe JB no Jornal do Brasil. De volta a Brasília, foi repórter especial da Rede Globo, correspondente da coluna de Ricardo Boechat em O Globo, editor-contribuinte da revista Playboy e colunista político do Correio Braziliense.
Para quem quiser estabelecer contato, o e-mail de Luiz Cláudio, que aliás está ao pé de sua mini biobliografia por ele mesmo preparada para a edição deste Caderno IHU Ideias: cunha.luizclaudio@gmail.com.
Tive a chance de construir a ponte para a edição do texto pelo IHU – Instituto Humanitas, apresentando Luiz Cláudio ao seu Diretor Inácio Neustzling, meu amigo desde os tempos de assessoramento à CNBB (Dom Ivo e Dom Luciano), no período da Constituinte.
Foi assim que, feitas as apresentações, Luiz Claúdio apresentou sua proposta de edição: “Meu texto, que envio em anexo, é um esforço vigoroso de pesquisa de mais de três meses para traçar um inédito paralelo entre as práticas nazistas no Gueto de Varsóvia e as técnicas de extermínio sionista no Gueto de Gaza – ambas truculentas e visando o extermínio de comunidades civis e desarmadas diante do poderio bélico dos opressores. Tenho certeza de que não existe no Brasil nenhum texto tão contundente quanto o meu na denúncia desse absurdo, que se repete agora em Gaza, oito décadas depois do massacre cometido em Varsóvia. Um absurdo que se renova, agora, com atores invertidos – e sempre pervertidos. Faço também uma avaliação dura sobre o pífio e parcial desempenho da imprensa brasileira. É inédita simplesmente porque nenhum meio de comunicação se atreveu a um julgamento de autocrítica tão rigoroso sobre sua própria atuação. Escrever honestamente sobre esse fracasso profissional não é uma atitude previsível de auto avaliação da mídia nacional. Um detalhe importante, Inácio, é o tocante – por vezes chocante – material gráfico, com mais de 80 fotos exaustivamente pesquisadas e selecionadas por mim em arquivos de jornais e de museus ligados ao Holocausto e à Segunda Guerra Mundial. Elas traçam um paralelo veemente, nunca antes visto, entre as atrocidades cometidas em Varsóvia e agora renovadas em Gaza. São uma parte inseparável do meu texto, porque provam e comprovam fotográficamente a dramática situação genocida vivida por judeus e por palestinos no espaço de 80 anos. Todas as fotos estão com os devidos créditos e com legendas precisas, que sincronizam e enriquecem o texto. Ao longo do meu artigo, a intenção é dar ao leitor um texto e um contexto que explicam e justificam a comparação histórica, mostrando suas perturbadoras, inquietantes simetrias e permitindo uma didática reflexão sobre os fatos. Tive o cuidado de personalizar e focar minha crítica na figura politicamente maligna de Benjamin Netanyahu, tentando não incriminar a sociedade israelense, que abrange setores democráticos e progressistas que se opõem corajosamente à política extremista e excludente do seu belicoso premiê”.
Foi assim que, acolhida a proposta, logo se mostrou adequada a publicação no CADERNO IHU IDEIAS. Se para Luiz Cláudio “o mais importante é aquele que, a juízo de vocês, dê maior visibilidade e garanta maior tempo de exposição. Essa, com certeza, não é uma manchete que deva sobreviver apenas algumas horas, de um dia para o outro, na implacável letalidade da internet. Quanto mais tempo sobreviver num espaço de destaque da HUMANITAS, melhor e mais ampla será a reflexão de um tema tão doloroso e dramático quanto este da chacina de civis em Gaza”.
Um desses modos de fazer o tema receber mais responsável reflexão, a partir do veículo da publicação, é abrir outros espaços para trocas leais de interpretação-ação para confrontar um tema que angústia, que afere a nossa humanidade. Assim, o debate já preparado pelo IHU para acontecer no próximo dia 9 de abril.
Mesmo que em geral, logo que publicado o Caderno, a matéria tenha sido levada em sua devida consideração, mas com muito respeito à interpretação conduzida pelo autor, não faltou uma reação incisiva de críticos bem posicionados mas que investidos da origem ou da convicção judaica, se ressinta como descendente povo judeu ou da confissão judaica e tome como antissemitismo a crítica que se faça o que já está sendo assentado como uma ação neocolonial e genocida do governo (e até do Estado de Israel contra o povo palestino assentado em Gaza).
São reações que estabelecem haver impropriedade entre realidades segregacionistas ou de extermínio, rejeitando que se compare o holocausto sofrido pelos judeus sob o nazismo, como equivalente ao que se impõe pelo governo de um estado judeu, aos palestinos de Gaza.
Anoto uma reação:
Povo perseguido em 1943 pela barbárie nazista na Polônia e convertido, em 2023, em um Estado vingativo que bombardeia impiedosamente hospitais, escolas, ambulâncias, mesquitas, mulheres, crianças e dois milhões de civis inocentes no enclave palestino de Gaza. A dramática inversão de papéis dos judeus atacados no Gueto de Varsóvia para os judeus atacantes no Gueto de Gaza – a inacreditável degeneração do judeu perseguido para o papel de judeu perseguidor – marca talvez o pior retrocesso moral e ético dos princípios civilizatórios de um povo no curto espaço das últimas oito décadas da Humanidade. A impensável conversão de Israel ao horror nazista tem agora um pretexto de sangue e terror.”
Me bastou ler o início do artigo para ver a confusão proposital que é feita entre o povo judeu e o Estado de Israel… LAMENTÁVEL!
Igualar o que está acontecendo em Gaza, que é terrível e deve ser criticado, com o holocausto é um enorme equívoco…
Não vale a pena responder tanta ignorância histórica além do óbvio antissemitismo. Mas a gente anota e sempre saberemos o que eles escreveram no verão passado.
De “judeu perseguido” a “judeu perseguidor”! Misericórdia! Eu sempre soube que éramos extraordinariamente racistas em relação aos pretos. Só não fazia ideia que também éramos tão antissemitas. Triste demais.
Vê-se que o crítico nem prosseguiu com a leitura. Estancou na primeira frase e já deu por imprestável toda a pesquisa e o eixo narrativo da matéria produzida por Luiz Cláudio.
Mas no geral, a publicação tem sido recebida com a admissão de sua seriedade jornalística e historiográfica. Destaco o comentário do também jornalista Luis Nassif, publicada em https://jornalggn.com.br/memoria/varsovia-e-gaza-as-semelhancas-dos-metodos-nazistas/ : Varsóvia e Gaza, as semelhanças dos métodos nazistas, por Luiz Cláudio Cunha.
Diz a matéria:
Afinal, a política da Israel aplicada em Gaza tem semelhança com o nazismo? Durante 3 meses, o jornalista Luiz Cláudio Cunha – repórter que ajudou a desvendar a Operação Condor na América do Sul.
Seu trabalho permite uma comparação assustadora entre o premiê sionista Netanyahu e o general nazista Jurgen Stroop que comandou a chacina em Varsóvia.
O trabalho, de 20 mil palavras, tem o título “Varsóvia e Gaza: dois guetos e o mesmo nazismo” e saiu originalmente na Editora Unisinos.
Na abertura, Cunha já extravasa sua indignação com ambos os genocídios:
“O judeu assassinado e o judeu assassino. Oitenta anos separam essa brutal metamorfose de um povo perseguido em 1943 pela barbárie nazista na Polônia e convertido, em 2023, em um Estado vingativo que bombardeia impiedosamente hospitais, escolas, ambulâncias, mesquitas, mulheres, crianças e dois milhões de civis inocentes no enclave palestino de Gaza”.
“A dramática inversão de papéis dos judeus atacados no Gueto de Varsóvia para os judeus atacantes no Gueto de Gaza – a inacreditável degeneração do judeu perseguido para o papel de judeu perseguidor – marca talvez o pior retrocesso moral e ético dos princípios civilizatórios de um povo no curto espaço das últimas oito décadas da Humanidade.”
Cunha reconhece a brutalidade do ataque do Hamas a civis israelenses.
“Foi o maior atentado terrorista no mundo desde o 11 de setembro de 2001, quando 19 membros da Al-Qaeda de Bin Laden sequestraram quatro aviões comerciais nos Estados Unidos – atingindo entre eles as torres gêmeas de 110 andares do World Trade Center, em Nova Iorque”
A reação judaica desonrou a tradição humanista dos judeus:
“Líderes notórios máximos de Israel, incluindo generais, jornalistas, celebridades e destaques das redes sociais, se lambuzaram na defesa da punição coletiva em massa. Um constrangedor surto de desmemória para um povo que sempre lembra ao mundo a brutalidade de que foi vítima na barbárie do Holocausto nazista”
Cunha lembra as declarações de Netanyahu prometendo transformar Gaza em ilha deserta; e do major-general Yoav Galant, Ministro da Defesa d Israel, afirmando que lutavam contra “animais humanos”.
Segue-se um festival horrendo de racismo, de pregação do genocídio por parte de figuras ilustres de Israel. O ápice foram as declarações do general Giora Eiland, 71 anos, um dos militares mais influentes do país:
“Israel deve criar um desastre humanitário sem precedentes em Gaza. Somente a mobilização de dezenas de milhares e o clamor da comunidade internacional criarão a alavanca para que Gaza fique sem o Hamas ou sem pessoas. Estamos em uma guerra existencial”.
A caçada de Israel aos “terroristas”: as tropas de Benjamin Netanyahu no combate implacável ao inimigo…
Mas o personagem similar a Netanyhau, segundo Cunha, é o tenente-general da SS nazista, Jurgen Stroop que, aos 47 anos, seguindo ordens expressas de Hitler, exterminou em 1943 o que restava do gueto de Varsóvia e seus 400 mil habitantes.
Conta Cunha que os 350 mil judeus eram um terço da população de Varsóvia antes da Segunda Guerra Mundial. Era a segunda maior cidade judaica do mundo, só ficando atrás de Nova York. Os judeus foram confinados num gueto espremido de 3 km2, o correspondente a apenas 2,4% da área de Varsóvia.
Em 16 de novembro de 1940, os nazistas obrigaram os judeus a construir um muro de tijolos de três metros de altura, cercando o gueto. “Não era tão imponente quanto o muro que Netanyahu mandou fazer para cercar Gaza, um colosso de conreto de 65 km de extensão, torres de vigilância, alta tecnologia, seis metros de altura e vinte metros abaixo do solo”.
Os judeus de Varsóvia tinham uma ração diária de 184 calorias, o erquivalente a um único ovo cozido; “A maior diferença do gueto de Varsóvia sobre Gaza é que, na Polônia, os judeus não engoliam a ração indigesta de 42 bombas por hora e a rotina de até 200 rasantes diários da Força Aérea que o judeu Netanyahu vomita sobre os palestinos em Gaza”.
Eu próprio fui acusado de antissemitismo porque em comentários entre um e outro repositório fiz críticas à reação desproporcional de Israel que se protege como em estado de guerra, não contra um estado beligerante e com forças armadas, mas ao fim e ao cabo. Contra um povo.
O governo do Brasil afirmou, em manifestação na Corte Internacional de Justiça, em Haia, na Holanda, nesta terça-feira (20), que a comunidade internacional não pode normalizar a ocupação de territórios na Palestina por Israel. No espaço das audiências públicas para ouvir a posição dos países-membros das Nações Unidas sobre os 56 anos de ocupação de Israel em territórios palestinos, que a CIJ realiza, a avaliação do Brasil busca interromper o curso de uma resposta unilateral de Israel que, descolada da via jurídica do direito internacional, acaba levando a uma ação não de força, mas de pura violência, “desproporcional e indiscriminada”, que não expressa uma disposição de justiça e se cobre de finalidade geopolítica, neocolonial.
A intensidade da ação militar na região havia levado o presidente Lula a classificá-la como “genocídio”, na esteira das preocupações lançadas pela CIJ, a ponto de comparar a ofensiva como equivalente àquela infringida aos judeus na Alemanha nazista.
A manifestação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, feita durante a 37ª Cúpula da União Africana, não foi um arroubo. Só a vê assim aqueles que, por posicionamento ou tática política de mobilização de interesses e de alianças, estão de acordo com a prepotência da intervenção de força para concretizar hegemonias de qualquer matiz, estratégica, econômica ou ideológica. No local ou no global, acaba difundido uma narrativa que esconde a intencionalidade de suas razões, deslocando a objeção que deveria se dirigir ao argumento, para desqualificar o oponente.
Note-se que a manifestação não é a de uma voz isolada. O Vaticano, pela palavra do cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado, também falou de uma resposta “desproporcional” em comparação com o ataque do Hamas. É preciso “parar a carnificina”. O direito à defesa, o direito de Israel de garantir a justiça para os responsáveis pelo massacre de outubro, não pode justificar essa carnificina.
A posição do presidente Lula, desde o início do conflito, mantém-se coerente e firme, na chamada à mediação pelo direito internacional, como pela possibilidade mediadora de um conjunto de países, com assento na Assembleia Geral, mas que não têm seus interesses estratégicos envolvidos na região e no conflito, ou em sua ideologia.
Em minha participação, juntamente com Cristovam Buarque — os dois únicos sul-americanos convidados e presentes no Colóquio Internacional de Argel – Encontro de Personalidades Independentes sobre o tema “Crise du Golfe: la Derive du Droit”, instalado exatamente em 28 de fevereiro de 1991, dia do cessar-fogo na chamada Primeira Guerra do Golfo, o que procuramos foi indicar, a partir da premissa de convocação do Colóquio, que a crise coloca o direito à deriva, tendo perdido o seu rumo no trânsito ideológico entre a “historicidade constitutiva dos princípios que consignam a sua força e força mesma, representada como Direito porque formalizada como norma de Direito Internacional”.
Já então, uma inquietação com o emprego hegemônico de razões de fato, para que, em qualquer caso, principalmente quando há nítida disparidade entre forças, inclusive militares, que se deixem arrastar por um pretenso “direito de violência ilimitada”, cuja resultante “sugere a cessação da beligerância pelo aniquilamento inexorável de toda forma de vida”. Minhas razões completas estão no texto “A crise do Golfo: a deriva do Direito” (in SOUSA JÚNIOR, José Geraldo de. Sociologia jurídica: condições sociais e possibilidades teóricas. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 2002, p. 133-144).
O que urge é “restaurar a humanidade incondicional em Gaza”. Essa é afirmação de um médico sem fronteiras. O que assistimos aqui, diz ele, em matéria que me enviou o querido amigo Alessandro Candeas, o incansável e presente diplomata brasileiro, embaixador do Brasil na Palestina: é um “bombardeamento indiscriminado [que] tem de acabar. O nível flagrante de punição coletiva que está atualmente a ser aplicado ao povo de Gaza tem de acabar”. É preciso “parar a carnificina”. Resgatar o humano que se perde nesse drama. E restaurar a mediação dos verdadeiramente fortes, que confiam e aplicam a força cogente (Hannah Arendt) do direito internacional e dos direitos humanos.
Confirmo que o trabalho de Luiz Cláudio Cunha é ainda agora aquilo que ele próprio caracterizou em seu livro Todos temos que Lembrar – A lição e a missão do jornalista. CUNHA, Maria Jandyra C. (Org.), CUNHA, Luiz Cláudio, SOUSA JUNIOR, Jose Geraldo de, MOTTA, Luiz Gonzaga, TAVARES, Flávio e BUARQUE, Cristovam. Brasília: Editora UnB, 2013, no qual tenho participação por consideração de sua esposa e organizadora.
O livro é a reunião das manifestações – memorial, pronunciamentos e declarações de outorga da sessão solene do Conselho Universitário da UnB para a concessão do título de Notório Saber ao grande profissional assim galardoado.
Tal como salientei aqui neste espaço da Coluna Lido para Você – https://estadodedireito.com.br/todos-temos-que-lembrar-a-licao-e-a-missao-do-jornalista/ – para mim, que presidi a cerimônia, foi esse o grande sentido da manifestação do homenageado, como designei em minha manifestação, que a Organizadora trouxe para o livro dando-lhe como título: a lição do jornalista (p. 47-51).
Se bem tenha iniciado meu discurso com o esclarecimento sobre o conceito da distinção – notório saber – inscrita no estatuto da universidade e, assim, explicado que um título de Notório Saber é especial porque os outros títulos previstos são certificações que fazemos a partir dos cânones que a própria Universidade estabelece, mas o faz para diplomar percursos, carreiras, que ela acompanha, avalia e qualifica. O Notório Saber é diferente, porque a Universidade vai ao encontro de quem, independentemente dela, construiu um percurso em que com seu saber próprio – aquele saber de experiências feito, reivindica da Universidade que ela se abra para essa interlocução muito peculiar. E que ela que se arvora ser o lugar exclusivo de certificação, passe a reconhecer que há outros lugares em que o saber, o conhecimento, também se organiza.
O que distingue a Universidade é ela poder ser o lugar em que todos os saberes podem dialogar. Naturalmente, é essencial que dialoguem prática e teoria: o saber da vida prática, que organiza a nossa ação no mundo, com o saber universitário, o saber acadêmico, o saber sistematizado. Entretanto, o conhecimento de notório saber tem essa dimensão exponencial, para provocar o diálogo. Porque reivindica do saber normalizado, abrir-se para a pluralidade interpretativa do mundo.
Lembrar para contar. Se o notório saber alude à prática, a prática pensada é sempre oportunidade para grandes lições. Tal a grande lição que oferece o homenageado. A lição de um grande jornalista. Como jornalista, ele diz, é preciso lembrar para contra. Isso também disse Gabriel García Márquez, outro grande jornalista (Viver para Contar. Rio de Janeiro: Record, 2ª. edição, 2003).
E o jornalista nos ofereceu uma grande lição, se conferimos o seu texto. Ele lembrou uma quadra sombria da história brasileira, uma história de extrema violência institucional, de enorme perigo, principalmente para a higidez das próprias instituições. O alcance da lição está em que ela não isola no passado um acontecimento para recuperá-lo por meio de uma narrativa embora crítica. Mas porque ela mostra que o passado se enrosca no presente e furtivamente se prorroga para o futuro. É recidivo, repristinatório. Sua sombra densa se estende na paisagem e eventualmente ganha nitidez. Como nesse momento, ainda obscuramente mas já se prenunciando em meandros palpáveis. Uma institucionalidade que se fragiliza, uma representação que se falseia, uma juridicidade que se esgarça e eis o paroxismo que volta à tona. O monstro do fascismo não dorme, hiberna.
Por isso outra grande lição, esta do historiador (Walter Benjamin, Sobre o Conceito da História. In Obras Escolhidas, Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Editora Brasiliense, 3a. edição, 1987, p. 222-232): construir a história como um relampejar do momento em que vivemos no perigo para que a nossa consciência aberta sobre o seu significado nos oriente à ação transformadora, para o nunca mais.
Em Luiz Cláudio Cunha, a lição visa a abrir a experiência política para a democracia, para recuperar o sentido legítimo da anistia que não se preste de abrigo para perpetradores de crimes contra a humanidade e para a realização plena do projeto de sociedade inscrito na Constituinte de 1988. Projeto contra o qual estão em permanente armação golpes letais de opressões e de espoliações de ontem e de hoje, e dos autoritarismos impertinentes, de qualquer natureza, legislativos, judiciários, midiáticos, civis e militares com os quais se instalam, felizmente, nunca de forma permanente.
Mas visa também abrir a grandeza da política e do direito para vencer a monstruosidade, a barbárie que desumaniza. Por isso é razoável o trabalho atual de Luiz Cláudio Cunha que esta edição do Caderno IHU Ideias promove e que se sintetiza na conclusão do Autor: “É impossível fazer a equivalência de 6 milhões de judeus chacinados pelos nazistas ao longo dos 12 malignos anos do III Reich com o massacre de 30 mil civis palestinos em apenas quatro meses de bombardeios em Gaza. Não é uma questão burra de matemática. É mais do que isso: é uma argumentação ética e moral sobre os padrões civilizatórios da humanidade. Vale para o nazismo cruel de Hitler, vale para o sionismo brutal de Netanyahu”.
De todo, esse tema difícil, confunde e torna igualmente difíceis os posicionamentos, quando pressupõem outras tantas questões igualmente tensas – xenofobia, sionismo, antissemitismo – e nele me movo com o cuidado obsequioso de não ultrapassar limites do razoável e do criticamente ético, para generalizar-se como racismo. Quero ter presente em minha cogitação o texto sensível que recebi de um parente querido, judeu, mais enraizadamente brasileiro, autoria de uma intelectual também brasileira, mas enraizadamente judia – (texto de Lia Vainer Schucman), que eu não conhecia nem sei como circulou: “A traidora… Eu – que havia aprendido com os movimentos com os quais trabalho que quando alguém diz que está vivendo racismo, é bom parar para escutar – aprendi também na marra que judeus não contam. E que, sim, estava vivendo a pior chaga do preconceito, de ser acusada daquilo que se é e não se pode deixar de ser. No meu caso, judia…De uma maneira ou de outra fui me sentindo sozinha, como era possível que ninguém das pessoas ao lado de quem sempre estive percebesse que os ataques eram racistas? De um dia para outro parecia que eu tinha me tornado outra, que minhas ideias haviam mudado, que eram duvidosas, e que afinal eu poderia ser uma traidora”.
Meu parente, muito querido, progressista, preocupado com algumas de minhas manifestações sobre esse assunto ainda me acrescentou um comentário, que guardo como um modo ativável de atenção quando trato desse tema, como agora o faço: “A convergência, neste texto, de ideias tão importantes já teria sido suficiente. Mas sinto necessário agregar e testemunhar que a Lia esteve muito longe de se omitir em relação ao conflito em Israel e em Gaza. Escreveu, pelo contrário, sobre ele, inclusive em jornais de grande circulação. Li análises suas extremamente lúcidas, que não achatam a complexidade da vida, da situação e nem deixam de ver a urgência de ações, textos que ajudaram a mim e a muitos que os leram. Lia Vainer participa ativamente de um fórum de judias e judeus preocupados com os rumos deste conflito trágico, com suas vítimas, com a ação que é possível ter”.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
Constitucionalismo Achado na Rua: uma contribuição à Teoria Crítica do Direito e dos Direitos Humanos Constitucionais
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Nada melhor para apresentar o livro, indicar sua organização, autores e temas que formam o seu conteúdo, sintetizando-o, do que valer-se do texto que eu próprio, um dos coordenadores da Coleção (tarefa que compartilho com meu colega de Grupo de Pesquisa professor Alexandre Bernardino Costa), juntamente com Daniela de Macedo B. R. T. de Sousa, Daniella de Oliveira Torquato, Débora Donida da Fonseca e Janaína Carvalho Simões Patriota, preparamos para a edição da obra. Claro que o núcleo sintético de cada texto foi esboçado pelos seus autores e autoras, num cuidado da organização em preservar a fidedignidade autoral dos respectivos textos.
Este Livro, Constitucionalismo Achado na Rua: uma Contribuição à Teoria Crítica do Direito e dos Direitos Humanos Constitucionais, volume 8, da Coleção Direito Vivo, da Editora Lumen Juris, é mais um resultado coletivo de esforços reflexivos sob uma perspectiva teórica e prática sobre a temática do constitucionalismo achado na rua. Desenvolvidos por pesquisadores e pesquisadoras, estudantes, professores e professoras, em ambiente de ensino, pesquisa e extensão, serão apresentados aqui trabalhos que constituem o acervo crítico da Coleção, demarcada pela perspectiva teórico-crítica de O Direito Achado na Rua, sua concepção e prática.
A publicação consolida a reunião de ensaios elaborados por pesquisadores, pesquisadoras e participantes do programa acadêmico de O Direito Achado na Rua, dando continuidade aos 7 volumes já publicados, a partir do trabalho desenvolvido nos últimos meses de 2022 e no primeiro semestre de 2023 nos Programas de Pós-graduação em Direito – FD e em Direitos Humanos e Cidadania – CEAM da Universidade de Brasília, sob a coordenação e regência dos Professores José Geraldo de Sousa Junior e Alexandre Bernardino Costa, vinculados aos respectivos Programas.
Considerando a diversidade das trajetórias acadêmicas e profissionais dos autores e das autoras, o ponto de conexão entre os ensaios foi a participação profícua e coletiva nos debates, reflexões e seminários sobre temas e realidades que atravessam o debate sobre o Constitucionalismo Achado na Rua a partir de uma perspectiva teórica crítica do Direito e dos Direitos Humanos.
A obra se apresenta, então, como um conjunto de reflexões e de diálogos teóricos e práticos a partir da fortuna crítica das categorias do Direito Achado na Rua. Os ensaios foram organizados em quatro eixos temáticos, construídos tanto singular quanto coletivamente, com diferentes abordagens que se aproximam em relação à perspectiva de proteção e de promoção dos direitos humanos à luz de um Constitucionalismo Achado na Rua.
Autores, autoras, organizadores e organizadoras do presente livro agruparam os trabalhos da seguinte maneira: Eixo 1 – reflexões teórico-filosóficas; Eixo 2 – constitucionalismo, movimentos e achados; Eixo 3 – insurgências e emergências; Eixo 4 – constitucionalismo e democracia.
Ainda que o fio condutor das reflexões a partir do Direito Achado na Rua seja a concepção do Direito enquanto “a enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade”, consoante a formulação de Roberto Lyra Filho, é importante registrar que a singularidade da formação acadêmica dos autores e das autoras da presente obra poderá traduzir uma perspectiva que não esteja plenamente alinhada a este enunciado.
Entretanto, os ensaios foram elaborados com o respeito à autonomia autoral e acadêmica dos que os subscrevem, com o alinhamento à perspectiva da emancipação do humano, da proteção e da promoção de direitos em prol da superação da opressão e da espoliação, no fortalecimento da pauta democrática.
Feito esse breve panorama da coletânea, apresentamos os resumos dos textos que compõem a presente publicação:
Em Constitucionalismo Achado na Rua: uma contribuição à Teoria Crítica do Direito e dos Direitos Humanos Constitucionais, na condição de texto de Introdução ao livro, o Professor Dr. José Geraldo de Sousa Junior apresenta o percurso das reflexões que entrelaçam o Constitucionalismo com a perspectiva do Direito Achado na Rua, com referências teóricas e conceituais fundamentadas na Teoria Crítica do Direito e dos Direitos Humanos.
Em Constitucionalismo Achado na Rua no Contexto do Pluralismo Jurídico Emancipatório Latino-americano, Eduardo Xavier Lemos, Vercilene Dias, Daniele Gonzales, Euzilene Morais e Valdivina Costa abordam a origem e a proposta de emergência do coletivo O Direito Achado na Rua, que se explica a partir da dialética de Roberto Lyra Filho, partindo da insurgência das camadas populares e que procura evidenciar a apropriação e redução do Direito, do constitucionalismo na figura única do Estado. Uma redução à norma que produz um engessamento da sociedade, criando um Direito que não responde adequadamente às crises, inerentes de todas as sociedades.
Em A constituição rizomática de O Direito Achado na Rua, Margareth Conceição Batista discute a teoria de O Direito Achado na Rua sob a Dimensão Filosófica do conceito do rizoma de Deleuze e Guattari. Discute-se o direito dentro da trama rizomática, que não é centralizado e nem hierarquizado, mas está aberto a novas possibilidades de teorização, a partir da percepção de que o direito está inserido na realidade histórica dos sujeitos e, portanto, passível de reelaboração para atender às necessidades contidas na realidade cotidiana dos sujeitos. O conceito filosófico desses autores vai ao encontro das bases epistemológicas e metodológicas da teoria do Direito Achado na Rua que está assentada na historicidade e na complexidade do homem. O conceito rizomático pode ser explorado nas investigações sobre o Constitucionalismo Achado na Rua, o Pluralismo Jurídico e, ainda, na metodologia de ensino de O Direito Achado na Rua.
Em Direito Achado na Rua: críticas e esperanças, Fernando La Roque faz uma reflexão crítica das leituras e das aulas da disciplina O Direito Achado na Rua. A partir das inquietações trazidas por essas vivências, foram feitas digressões, sempre que possível aplicando ao objeto concreto da pesquisa que é a dignidade humana, mais especificamente, questionando o porquê da nossa passividade em relação à constante violação de direitos de que somos vítimas cotidianamente.
Em O constitucionalismo negro e a contribuição de Sérgio Martins, Benjamin Xavier de Paula apresenta pesquisa qualitativa baseada em fontes bibliográficas e documentais sobre a produção intelectual dos/as pesquisadores/as negros que tratam do Direito Constitucional e do Constitucionalismo no Brasil, a partir das teorias e metodologias científicas que inserem a negritude e o racismo como foco de análise das suas investigações, dentre os quais, o panafricanismo e as teorias da negritude com as contribuições recentes dos/as intelectuais brasileiros/as à Teoria Crítica Racial. A imersão no pensamento do advogado, jurista, e ativista negro brasileiro – Sérgio Martins – responsável pela primeira produção científica realizada na pós-graduação stricto sensu na área do Direito, após a Constituição Federal de 1988, demonstra como seu estudo busca desmistificar as nuances que permeiam a nossa tradição constitucional, bem como, indicar caminhos para uma outra tradição que incorpore os direitos fundamentais da população negra.
Em Direito Achado na Rua e Movimento Negro: Ferramentas constitucionais para a concretização das lutas políticas, Danielle de Castro Silva Lobato explora como O Direito Achado na Rua dialoga com as demandas e a luta política da população negra para a concretização de políticas públicas e avanços para o movimento negro. As diferentes visões a partir de um pluralismo jurídico se entrelaçam na construção de direitos constitucionais através dos sujeitos coletivos de direitos. Sendo assim, é uma das questões da contemporaneidade importantes para o campo das Ciências Sociais e do Direito, ao explicitar e compreender o racismo como fenômeno estruturante da sociedade, que gera opressões e determina lugares sociais numa matriz de dominação. O movimento negro e O Direito Achado na Rua remam contra a maré de opressões na esperança de dias melhores e ferramentas para o alcance da dignidade humana.
Em Crianças, adolescentes e jovens como sujeitos coletivos de direito: diálogos e reflexões à luz do constitucionalismo achado na participação, os autores Alisson Oliveira da Silva, Carolina Rodrigues, Daniela de Macedo Britto Ribeiro Trindade de Sousa e Daniella de Oliveira Torquato, considerando as diferentes experiências profissionais dos autores, realizam uma conexão entre os direitos de crianças, adolescentes e jovens com o constitucionalismo achado na participação. Para tanto, o ensaio propõe um olhar decolonial, que considera a diversidade social e cultural como fatores essenciais para enxergar esses sujeitos em sua integralidade, garantindo sua proteção integral e seu desenvolvimento como cidadãos ativos e capazes de transitar e de contribuir para uma sociedade democrática.
Em O Direito Achado nas Imagens, Débora Herszenhut parte do levantamento do acervo filmográfico desenvolvido ao longo de 1987 e 2014 pela ONG Vídeo nas Aldeias com grupos indígenas de diversas etnias ao redor do Brasil, bem como da produção bibliográfica já produzida sobre este acervo fílmico. Ela apresenta algumas das questões que foram propostas acerca destes filmes relacionando-as com teorias antropológicas e cinematográficas, ao passo que propõe a articulação destas teorias e questões levantadas acerca desta produção com a história do indigenismo brasileiro ao longo deste período. As questões apresentadas referem-se principalmente ao papel desempenhado pela imagem na construção de relações e de elaboração de identidades étnicas no contexto político-social contemporâneo, especialmente no que tange à história da constituição dos direitos legislativos das populações indígenas brasileiras em diálogo com a teoria do Direito Achado na Rua.
Em A opressão feminina no Brasil como um resquício da colonialidade e reflexo na representatividade política, Janaína Carvalho Simões Patriota e Raquel Martins de Arruda Neves registram a presença contínua do poder e da dominação ao longo da história humana, particularmente evidenciados na subjugação do feminino desde as primeiras sociedades. No Brasil, essa dinâmica remonta aos tempos da colonização, quando as mulheres eram relegadas a um papel secundário, confinadas a atividades privadas e excluídas da esfera pública. No entanto, desde o início do século XX, movimentos feministas emergiram com a intenção de reconstruir o papel da mulher na busca de equidade. Essas iniciativas encontram respaldo na perspectiva do Constitucionalismo achado na rua, que almeja transformar o modelo organizacional do Estado de modo a reconhecer e apoiar as lutas emancipatórias. O processo de conquista do espaço público pelas mulheres perpassa a necessidade de uma maior representatividade no Congresso Nacional, que não reflete apenas uma luta por paridade, mas o reconhecimento histórico de sua subjugação, com reflexo em diversos aspectos da sociedade contemporânea.
Em Insurgência e disputa de narrativas no campo da segurança pública: propostas a partir da experiência maranhense de construção de uma assembleia popular pelo desencarceramento, Cristian de Oliveira Gamba busca descortinar o viés ideológico do populismo penal, ao mesmo tempo em que apresenta os obstáculos e dificuldades para formação de movimentos de resistência que propiciem às condições para pensar uma nova política criminal, tudo isso a partir dos aportes teóricos da criminologia crítica e de O Direito Achado na Rua. Por fim, é apresentado e descrito o desenrolar de uma experiência concreta de insurgência da sociedade civil contra o uso abusivo do sistema penal, em Assembleia Estadual pelo Desencarceramento, ocorrida no Maranhão, cujos trabalhos resultaram na aprovação de parâmetros para o desencarceramento e para o enfrentamento da violência nas prisões.
Em Entregadores de aplicativo e o Constitucionalismo Achado na Rua: uma interpelação à Liberdade Sindical, Paulo Fontes de Resende e Silvia Angélica Tavares Santos trazem apontamentos sobre a forma representativa coletiva da classe trabalhadora pelo sistema corporativista em cotejo com as experiências de paralisação das atividades de entrega por trabalha- dores e trabalhadoras de aplicativo durante a pandemia de Covid-19. O intuito é interpelar a estrutura sindical e o princípio constitucional da Liberdade Sindical, inicialmente com uma breve abordagem histórica atinente à conformação da referida estrutura no Brasil, adiante pondo em destaque as articulações coletivas que emergiram a partir dos trabalhadores e trabalhadoras em tela para, ao fim, entrelaçar tais questões a partir do elo concernente à concepção do Constitucionalismo Achado na Rua, do exercício do direito de greve e da concretização da Liberdade Sindical plena.
Em Entre os escombros do nosso tempo e o Constitucionalismo Achado na Rua, Luiz Felipe de Oliveira Pinheiro Veras tem como objetivo investigar o desenvolvimento, o significado e o alcance do Constitucionalismo Achado na Rua e sua relação com o Estado Democrático de Direito. Examina as construções jurisprudenciais e doutrinárias sobre o tema, pontuando algumas observações e recomendações gerais atinentes a esta novíssima abordagem teórica constitucional. Analisa as contribuições dos demais constitucionalismos, em especial a corrente atrelada ao Direito Achado na Rua e a relação entre constitucionalismo, povo e democracia.
Em Das Manifestações de Junho de 2013 à intentona de 8 de janeiro: breve análise sob a perspectiva d´O Constitucionalismo Achado na Rua, Aderruan Tavares discute como a concepção de um direito emancipatório pode e deve atuar como escudo de proteção contra processos desconstituintes e desestruturantes da sociedade democrática, notadamente, a brasileira. O Constitucionalismo Achado na Rua se apresenta como poderoso arsenal teórico e prático no sentido de compreender, pela via do direito emancipatório, o lapso temporal das Manifestações de Julho de 2013 à Intentona de 8 de Janeiro de 2023. Além de compreender o momento, o Constitucionalismo Achado na Rua possui condições de apresentar um novo projeto de percepção da realidade constitucional que vai além das possibilidades normativas advindas da Constituição de 1988, bem como de enfrentar no plano institucional e social as vozes raivosas de turbas que se apresentam, na esfera pública e nas redes sociais, como se fossem as únicas possibilidades de reprodução do social no campo político.
Em Constitucionalismo Ambiental e Coletividade: Um Estudo sobre a Subjetividade Diante do Colapso, Ricardo Carmo e Débora Donida abordam a conjuntura de colapso ecológico iminente sob a ótica das experiências de constitucionalismo ambiental na América Latina, entendendo em que medida as cosmovisões andinas refletem sobre a ideia de coletividade. Em seguida, transpõem essa conjuntura às subjetividades humanas, refletindo sobre processos sociais e ecológicos que nos demandam a capacidade de reaprender a sofrer. Concluem que, para a inauguração de um novo constitucionalismo “achado na rua”, é preciso, necessariamente, construir subjetividades humanas capazes de se mobilizar diante da perda de forma transformadora, superando a melancolia própria do individualismo para dar lugar ao trabalho de luto em coletivo. Ainda, que o constitucionalismo achado na rua precisa avançar sobre a agenda ambiental e climática para atender às necessidades das populações do Sul Global.
Em A Democracia Achada na Rua: o Orçamento Participativo como uma proposta de discussão popular dos gastos públicos e espaço de fala dos sujeitos coletivos de direito, José Felicio Dutra Júnior registra que há demandas sociais que não podem ser satisfeitas apenas com um modelo de democracia representativa, mas exigem um processo democrático de ampla participação popular. Isto porque se discute a racionalização dos gastos públicos para efetivar direitos que se referem às demandas sociais prestacionais, dentre elas, as previstas no art. 6º da Constituição da República (saúde, educação, habitação, lazer, por exemplo), a superação da crise ético-política do sistema representativo, a superação da miséria, a identificação de novos sujeitos coletivos de direito, dentre outras contingências complexas. Os integrantes da sociedade, neste contexto, além de exercerem o direito de votar e serem votados no sistema eleitoral representativo, também exercem o direito de participar no processo de tomada de decisões, principalmente no destino de verbas públicas nas comunidades locais, destacando-se, portanto, a experiência do Orçamento Participativo (OP).
Na catalogação do Volume 8, uma nota de relevo para a bela capa produzida pela direção de arte da Lumen. Mas o destaque é para a da autoria da fotografia, obtida pelo jovem artista amador Benjamim Fernandes Herszenhut Wiedemann (11 anos). Benjamin é filho de Débora Herszenhut, autora na obra e militante. A foto foi captada no momento da manifestação – Acampamento Terra Livre, quando o artista acompanhava a mãe em seu ativismo social e político.
O Constitucionalismo achado na rua – uma proposta de decolonização do Direito, que escrevi com minha colega Lívia Gimenes Dias da Fonseca (Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, vol.08, nº. 4, 2017, p. 2882-2902), cf. em https://www.scielo.br/j/rdp/a/nshLTQJxwGHYJVk3Km6453P/?lang=pt&format=pdf. Também, https://pt.wikipedia.org/wiki/Constitucionalismo_achado_na_rua, verbete construído por meus alunos da disciplina Pesquisa Jurídica (Faculdade de Direito da UnB), que na compreensão deles “consiste em construções teóricas e práticas jurídicas resultantes de estudos do Grupo da linha de Pesquisa O Direito Achado na Rua, integrante do Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq. Tem entre seus objetivos conceber condições concretas de garantia e exercício de direitos por sujeitos coletivos, como grupos oprimidos e movimentos sociais. Tal concepção recebe influência da sociedade em diversos aspectos, como das lutas constituintes e da atuação de movimentos sociais, do novo constitucionalismo latino-americano e do pluralismo jurídico”.
Entretanto, para sugerir muitas aproximações, reporto-me à recensão que preparei para a Coluna Lido para Você – https://estadodedireito.com.br/sociologia-do-novo-constitucionalismo-latino-americano-debates-e-desafios-contemporaneos/, quando aludo ter resenhado esse percurso. Claro que em O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática, volume 2, cit., no capítulo (Parte IV): O Direito Achado na Rua: Desafios, Tarefas e Perspectivas Atuais, já inscrevemos uma anotação programática nessa direção, ao indicar (p. 224): que “Essas experiências refletem uma espécie de ‘Constitucionalismo Achado na Rua’, em que os atores constituintes, os protagonistas desses processos, que envolveram povos indígenas, feministas, campesinas e campesinos, trabalhadoras e trabalhadores e setores historicamente excluídos, arrancam do processo constitucional novas formas de pluralismo jurídico e conquistas de Direitos”.
Com Gladstone eu também trabalhei o tema, procurando fixar a sua mais precisa enunciação. Assim, em Revista Direito e Práxis, On-line version ISSN 2179-8966 (http://old.scielo.br/scielo.php?pid=S2179-89662017000201008&script=sci_abstract&tlng=pt). LEONEL JUNIOR, Gladstone and GERALDO DE SOUSA JUNIOR, José. A luta pela constituinte e a reforma política no Brasil: caminhos para um “constitucionalismo achado na rua”. Rev. Direito Práx. [online]. 2017, vol.8, n.2, pp.1008-1027. ISSN 2179-8966. https://doi.org/10.12957/dep.2017.22331, valendo o resumo: “A crise política brasileira, evidenciada a partir de junho 2013, enseja novas reflexões para a conjuntura recente. A reforma do sistema político é necessária e um das formas de viabilizá-la é por meio de uma Assembleia Constituinte. Sobretudo, se observado os movimentos político-jurídicos dos últimos 15 anos nos países da América Latina. Cabe refletir sobre o momento e as possibilidades dessa aposta pautando-se em um ‘constitucionalismo achado na rua’”.
Quase que simultaneamente, também com Gladstone publicamos em La Migraña… Revista de Análisis Político, nº 17/2016. Vicepresidencia del Estado Plurinacional de Bolívia: La Paz, o artigo La lucha por la constituyente y reforma del sistema político em Brasil: caminhos hacia um ‘constitucionalismo desde la calle’.
Com essas referências, alcança-se o patamar que, juntamente com Antonio Escrivão Filho (ESCRIVÃO FILHO; SOUSA JUNIOR, 2016), especialmente no Capítulo V – América Latina, desenvolvimento e um Novo Constitucionalismo Achado na Rua, páginas 123-150), enunciamos, vale dizer, que o Constitucionalismo Achado na Rua vem aliar-se à Teoria Constitucional que percorre o caminho de retorno a sua função social. Uma espécie de devolução conceitual para a sociedade, da função constitucional de atribuir o sentido político do Direito, através do reconhecimento teórico-conceitual da luta social como expressão cotidiana da soberania popular. Um reencontro entre a Teoria Constitucional, e o Direito compreendido como a enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade (p. 149).
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
Insurgencia, Ilegalidad de la Justicia y Liberación
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
INSURGENCIA, ILEGALIDAD DE LA JUSTICIA Y LIBERACIÓN. Miradas cómplices en homenaje a Jesús Antonio de la Torre Rangel. David Sánchez Rubio – Alejandro Rosillo Martínez (Coordinadores). Centro de Estudios Jurídicos y Sociales Mispat Maestría en Derechos Humanos de la Universidad Autónoma de San Luis Potosí Aguascalientes / San Luis Potosí, 2024, 650 p.
Começamos o ano de 2024 com essa obra seminal, organizada por David Sánchez Rubio e Alejandro Rosillo Martínez: Insurgencia, ilegalidade de la justicia y liberación, com essa aproximação tão própria dos trabalhos de David, na forma de miradas cómplices, sobre as contribuições críticas à concepção crítica de direito, direito que nasce do povo, de Jesús Antonio de la Torre Rangel. Nessa perspectiva ver, de David Sãnchez – Miradas Críticas en Torno al Derecho y la Lucha Social: Confluencias con América Latina (sobre esse livro: https://estadodedireito.com.br/miradas-criticas-en-torno-al-derecho-y-la-lucha-social-confluencias-con-america-latina/).
Jesús Antonio é um dos grandes, em extração latino-americana, que criaram as bases de um direito insurgente, alternativo, achado na rua, um outro derecho, emancipatório e humanizador, democraticamente emergente, das lutas sociais e dos protagonismos dos sujeitos coletivos de direito.
É um dos grandes ainda ativo e produtivo entre os que pavimentaram o caminho emancipatório, do social que transforma a realidade, fazendo o salto que só a consciência armada criticamente, da história para a política, pela mediação da justiça e do direito.
Outros grandes, que com ele abriram sendas para demarcar esse caminho, já concluíram sua contribuição fundamental: Luis Alberto Warat, Oscar Correas, Roberto Lyra Filho, Carlos Maria Cárcova, Roberto Armando Ramos de Aguiar. A eles podemos acrescentar Enrique Dussel e Franz Himkelammert (Filosofia e Teologia), Miguel Pressburger e Miguel Baldez, na advocacia popular. Estou citando os que me são mais próximos, não o elenco completo.
Nem outros potentes formuladores, na teoria e na práxis, entre os quais a influência de Jesus Antonio é marcante. Vários deles estão no sumário desta obra. E claro que também não convoco os não latino-americanos, interlocutores íntimos do pensar e agir de no pensar do nosso homenageado: Joaquín Herrera Flores e Boaventura de Sousa Santos.
Vou ao Sumário da Obra para que se visualize esse tremendo plantel:
Prólogo, David Sánchez Rubio
Prefacio, Alejandro Rosillo Martínez
ANÁLISIS GENERAL Y GLOBAL DEL PENSAMIENTO DE JESÚS ANTONIO DE LA TORRE RANGEL
El derecho pensado desde la exterioridad: el Iusnaturalismo. Histórico Analógico como fundamento del derecho en general y los derechos humanos en particular. Un análisis al pensamiento iusfilosófico de Jesús Antonio de la Torre Rangel, César Eder Alanís de la Vega
Jesús Antonio de la Torre Rangel y el Iusnaturalismo histórico analógico. Su diálogo con la hermenéutica analógica, Mauricio Beuchot Puente
O direito desde os pobres da terra: emancipação e insurgência em Jesus António de la Torre Rangel, Ivone Fernandes Morcilo Lixa
O pensamento jurídico insurgente de Jesus António de la Torre Rangel: fundamentado na perspectiva crítica da libertação, Lucas Machado Fagundes
Direitos humanos e jusnaturalismo histórico analógico: um diálogo com o pensamento de Jesús Antonio de la Torre Rangel, José Carlos Moreira Da Silva Filho
El Iusnaturalismo Histórico Analógico como Filosofía crítica del Derecho y los derechos humanos, Alejandro Rosillo Martínez
Iusnaturalismo histórico analógico. Un paradigma jurídico en la periferia: agradecimento de sus aportes y posibilidades de evolución, Antonio Salamanca Serrano
Sobre pensamiento de Jesús Antonio de la Torre Rangel. El derecho que nace del pueblo (como derecho insurgente), David Sánchez Rubio
ANÁLISIS DEL PENSAMIENTO DE JESÚS ANTONIO DE LA TORRE RANGEL PROYECTADA SOBRE CASOS, TEMAS O EJEMPLOS CONCRETOS
El pueblo pariendo al derecho. Acercamientos entre el iusnaturalismo histórico analógico y las teorias de los movimientos sociales, Andrés Alcalá Rodríguez
Educación y asesoría jurídica popular como presupuesto del derecho insurgente, Oscar Arnulfo de la Torre de Lara
Defensoria pública: um direito que nasce do povo, Caio Jesús Granduque José
El litigio estratégico en defensa de los derechos humanos como expresión del derecho insurgente. una aproximación general, María del Carmen Herrera García
A través de una conversación imaginaria. Un reencuentro con Jesús Antonio de la Torre Rangel, Manuel Jacques Parraguez
La aportación de Jesús Antonio de la Torre Rangel al movimiento latinoamericano de derecho y literatura, Manuel de J. Jiménez Moreno
Jesús en el Tawantinsuyo. Brujas, vírgenes y conversaciones con Jesús Antonio de la Torre Rangel, Alejandro Medici
Acercamientos al derecho que nace y camina con el Pueblo, Lizy Peralta Mercado
MIRADAS CRÍTICAS Y CONSTRUCTIVAS SOBRE EL PENSAMIENTO DE JESÚS ANTONIO DE LA TORRE RANGEL
Liberaciones y nudos. A propósito de la teoría jurídica de Jesús de la Torre Rangel, Rodrigo Calderón Astete
Sobre la presentación de las teorías marxistas del derecho por parte de Jesús Antonio de la Torre Rangel, Raymundo Espinoza Hernández
Avances es para impulsar la Tradición iberoamericana de derechos humanos en el Estado de Jalisco: reconocimiento a Jesús Antonio de la Torre Rangel, Oscar González Gari
Afinidades relativas: a tensão insurgente entre de la Torre Rangel e a crítica marxista ao direito, Ricardo Prestes Pazello
SEMBLANZA SOBRE LA OBRA DE JESÚS ANTONIO DE LA TORRE RANGEL
Hacia una concepción liberadora y popular del derecho en América Latina: el aporte de Jesús Antonio de la Torre Rangel, Antonio Carlos Wolkmer
TRABAJOS GENÉRICOS EN HONOR A LA OBRA DE JESÚS ANTONIO DE LA TORRE RANGEL
Defensoria pública: a proteção do um contra todos, Amilton Bueno de Carvalho
Uso alternativo del derecho y defensa del territorio en San Luis Potosí, Guillermo Luévano Bustamante
Proceso penal, prueba y el derecho de la víctima a tener derechos, José Luis Eloy Morales Brand
Cultura de litígio, formação jurídica e função social dos operadores de direito no Brasil: tributo a Jesús Antonio de la Torre Rangel, José Geraldo Sousa Júnior
Sobre los autores
E logo transcrevo o Prólogo, escrito por David Sánchez Rubio em dezembro de 2023, como uma amostra descritivo/explicativa do que representa esse livro:
La idea de hacer un libro en homenaje a nuestro querido y admirado Jesús Antonio de la Torre Rangel, referente de la teoría crítica del derecho en América Latina desde hace muchos años, empezó a gestarse entre los años 2015 y 2016. Le propuse a Alejandro Rosillo tramitar su edición incorporando textos de autores que, consideramos, conocían la obra del iusfilósofo, abogado e historiador del derecho aguascalentense. El dilema se nos presentó cuando dudamos si la edición del libro debía ser toda en castellano, o si también era posible incluir trabajos en portugués, para que fuera más representativa de la cultura latinoamericana. El problema de la segunda opción era que debíamos buscar el modo de traducir los aportes escritos en la lengua lusitana y procedentes de Brasil. Eso paró la iniciativa, retrasándola, pues no disponíamos ni de tiempo ni de personal para hacerlo. En aquel momento, recibimos los trabajos en portugués del juez gaúcho Amilton Bueno de Carvalho, el sociólogo del derecho José Geraldo de Sousa Júnior y del defensor público francano Caio Jesús Granduque José, junto con unos pocos textos escritos en castellano. Lamentablemente han estado ahí parados y se han quedado esperando hasta que, por fin y afortunadamente, sale a la luz el libro que fue interrumpido y recuperado. El año pasado, en el 2022, volví a plantearle a Alejandro Rosillo que retomáramos su publicación, teniendo claro que estaria formada por aportaciones escritas tanto en castellano como en portugués, sin necesidad de traducir nada. Y he aquí el resultado de este libro que prologo.
Confieso la enorme alegría que nos causó la respuesta recibida y la gran disposición de tod@s l@s autor@s que aparecen en esta maravillosa obra. El resultado refleja muy bien cuál era el propósito de este homenaje y que se debe a muchas razones. No somos muy partidario de hacer este tipo de trabajo post mortem, pues pensamos que el reconocimiento de la valía, la trayectoria, los aportes y los méritos personales y/o profesionales de una persona a la que se aprecia y admira, debe hacerse en vida, sin que ello impida el recuerdo y la presencia que deja entre quienes quieren homenajear y tener presente a quien fallece, pese a su ausencia que se hace presente. Nuestra idea ha sido la de querer mostrar la admiración, el cariño, el respeto, el agradecimiento y el reconocimiento a una persona que es pura coherencia entre lo que dice y lo que hace, ejemplo de vida para muchos y fuente inspiradora de lucha por la justicia social y de tod@s, tanto desde la razón, por todos sus aportes teóricas y reflexiones, como desde el corazón por su intensidad ética y su compromiso por el ser humano.
Algunas de las personas invitadas, por distintas razones más que justificadas, terminaron por no enviar texto alguno. Son los casos de David Velasco Yáñez (triste y recientemente fallecido), Carlos Frederico Marés y Jacques Távora Alfonsin, entre otros. No obstante, sabemos que sus espíritus y sus mentes están en sintonía y empatía con el autor y con esta obra.
Las condiciones para participar y contribuir en el libro eran particulares y específicas. Decidimos que los trabajos tenían que ser realizados con aportaciones que, expresamente, dialogaran, analizaran, discutieran, utilizaran, resignificaran y desarrollaran los conceptos, las ideas, las prácticas y los marcos categoriales del pensamiento de Jesús Antonio de la Torre Rangel, no valiendo artículos sobre temas que no tuvieran nada que ver con la obra de nuestro querido iusfilósofo aguascalentense. No queríamos un homenaje en el que cada cual envía lo que estima oportuno y está investigando sin guardar relación con lo pensado por el homenajeado, hecho que sucede en muchas ocasiones. En este caso, en principio, no aceptábamos aportes que no entraran de lleno y con evidente conocimiento en el contenido de la prolija obra de Jesús Antonio de la Torre Rangel.
Tanto Alejandro Rosillo como yo nos hemos encargado de dictaminar la pertinencia o no de los trabajos enviados, siguiendo uma serie de criterios. Para concretizar y definir los contenidos de las contribuciones, se debían tratar algunas de las líneas temáticas que a continuación se especifican y que sintetizan muy bien los aportes más significativos del pensamiento del homenajeado, las cuales podían combinarse entre sí. Son seis:
El pensamiento iusfilosófico y iusteológico de Jesús Antonio de la Torre Rangel
Su iusnaturalismo histórico analógico
La tradición iberoamericana de derechos humanos
Pluralismo jurídico y derecho insurgente que nace del pueblo
Educación y asesoría jurídico-popular
Cualquier semblanza sobre el autor de carácter personal
El resultado es el que tienen entre sus manos y a la vista. Casi todos los trabajos cumplen con el desarrollo de alguno de los puntos señalados, ensalzando, alabando, dialogando, cuestionando y criticando constructivamente algún elemento de su obra, que, como ya he dicho, es ejemplo de vida y en vida por su verdadero y humilde compromiso y por su riqueza teórico-práctica en la defensa de los colectivos más oprimidos y vulnerados, no solo de México, sino de toda
América Latina y de toda la Humanidad. Las excepciones son cuatro. Dos porque se entregaron en el año 2016 y no se les puso ninguna de las condiciones que hemos puesto en esta edición: el trabajo de Amilton Bueno de Carvalho, quien conecta la obra de Jesús Antonio, como pretexto, con la Defensoría Pública con reflexiones sobre el pensamiento de Nietzsche, y el artículo entregado por José Geraldo de Sousa Júnior quien se centra más en la formación jurídica y la función social de los operadores jurídicos desde miradas críticas com el pensamiento de Roberto Lyra Filho y el Direito achado na rua como trasfondo. Los otros dos los menciono más abajo.
La estructura del libro que hemos establecido, pese a la dificultad de organizarlos por núcleos temáticos dada la diversidad de aportes, no ha sido la más fácil. Son cinco bloques temáticos: a) uno dedicado a la totalidad del pensamiento de Jesús Antonio de la Torre, con mayor o menor detención en alguno de sus marcos categoriales; b) un segundo bloque en el que, además de referencias generales a su obra, se proyecta sobre casos concretos y ejemplos particularizados; c) un tercer bloque de autores que ensalzando al autor, cuestionan y critican algunos de sus conceptos y métodos de análisis, siempre con la intención de abrir caminos y nuevos horizontes; d) un trabajo de semblanza y alabanza personal y profesional del iusfilósofo de Aguascalientes; y e) finalmente, el libro cierra con aquellos trabajos que homenajean al autor pero sin entrar en profundidad en su pensamiento. Cada bloque está ordenado por orden alfabético independientemente del tema tratado.
a) En este primer bloque nos encontramos con autores que han entrado a destacar con análisis generales y profundos, los méritos y los logros del pensamiento del autor homenajeado relacionados com el iusnaturalismo histórico analógico, el pensamiento de liberación (teológico y filosófico principalmente) y su proyección jurídica, la hermenéutica analógica, el personalismo y la raíz del cristianismo primitivo u originario, como sucede con Ivone Morcilho Lixo, Antonio Salamanca, Alejandro Rosillo, César Eder Alanís de la Vega, Lucas Machado, José Carlos Moreira Da Silva Filho, David Sánchez Rubio y Mauricio Beuchot. Todos subrayan el paradigma jurídico crítico y de liberación que representa el pensamiento del autor desde la periferia.
b) En el segundo bloque, que es el más denso, hay que subrayar de qué manera hay autores que se han centrado en ensalzar la obra de Jesús Antonio de la Torre Rangel, relacionándola con un caso particular que se toma como ejemplo y proyección. Esto sucede con Oscar de la Torre en materia de educación y asesoría jurídica popular, destacando la combinación del positivismo de combate, el uso alternativo del derecho y el derecho insurgente como expresión de uma juridicidad en disputa y compleja producida por los pobres; también con Carmen Herrera como abogada defensora de derechos humanos, quien se detiene en determinados litigios estratégicos que son expresión de violaciones de derechos humanos y la capacidad de resistencia de los movimientos populares, pobres y oprimidos que interactúan con los abogados para producir una juridicidad compleja que combina el positivismo de combate y el derecho insurgente; asimismo, Manuel Jacques dialoga y conversa imaginariamente entre el pensamiento de Jesús Antonio de la Torre y su proyección con el processo constituyente chileno subrayando la importancia de los derechos ancestrales de los pueblos indígenas, el pluralismo jurídico, la legalidade de la injusticia y la disidencia de los oprimidos frente a un sistema injusto; también Caio Jesús Granduque José vincula el pensamiento de Jesús Antonio de la Torre Rangel, al que lo considera brújula ética y jurídica en América Latina, con la labor de acceso a la justicia realizada entre la Defensoría Pública brasileña y los colectivos más vulnerables; Lizy Peralta señala los aportes que sobre el derecho que nace del pueblo en las comunicades campesinas e indígenas mayas em relación a sus derechos verdaderos de acceso y gestión del agua, la tierra y la soberanía alimentaria frente a la agroindustria; y, finalmente; asimismo Alejandro Medici realiza una conexión entre el pensamiento complejo de Joaquín Herrera y el iusnaturalismo analógico de
Jesús Antonio de la Torre Rangel, deteniéndose en el contexto de la zona del Gran Tucumán colonial en el Virreynato del Perú, relacionado con las luchas y resistencias de las hechiceras ante el perverso tratamiento inquisitorial de las mujeres descalificadas como brujas y vírgenes. Ahí expone el desarrollo de un uso alternativo y un derecho insurgente frente al patriarcado colonial y se detiene en el caso concreto de la india Juana Berraza.
Asimismo, con Raymundo Espinoza Hernández hay un reconocimiento del paradigma crítico anticapitalista del pensamiento jurídico de Jesús Antonio de la Torre y su labor a la hora de difundir la heterogeneidad de las teorías críticas del derecho marxistas y su valor para la teoría crítica del derecho en general; Andrés Alcalá, conecta el pensamiento iusnaturalista analógico de Jesús Antonio de la Torre con la lucha y la cultura política de los movimientos sociales y su proyección sobre la creación en Chile de una nueva Constitución; finalmente, de una manera original y creativa, Manuel de J. Jiménez, relaciona el perfil novelístico de nuestro autor aguascalentense con el mundo de la literatura, principalmente latinoamericana y su relación con el mundo jurídico desde su uso, su teoría y su historia. En concreto, Manuel Jiménez se detiene en las reflexiones de Jesús Antonio de la Torre Rangel sobre algunas de las novelas de Manuel Scorza y el libro de Roa Bastos Yo el Supremo.
c) En el tercer bloque, nos encontramos con autores que dialogan con el pensamiento de Jesús Antonio de la Torre Rangel, desde una crítica siempre constructiva. Resulta de especial originalidad la comparación y contrastación complementaria que Ricardo Prestes Pazello realiza desde el pensamiento marxista. Señala sus afinidades y sus discrepancias, profundizando en el concepto de derecho insurgente, la educación y la asesoría popular y la reapropiación del poder normativo por parte del pueblo; por otra parte, Oscar González Gari centra su cuestionamiento en su defensa, no admitida por el iusfilósofo e historiador del derecho aguascalenteño, de considerar al Papa Benedicto XIII (Papa Luna) dentro de la tradición iberoamericana de derechos humanos y el relato de distintas experiencias conjuntas com Jesús Antonio de la Torre Rangel a partir del primer encuentro en la pastoral indígena de la Diócesis de San Cristóbal de Las Casas; finalmente, Rodrigo Calderón Astete lo hace también, ensalzando algunos de los aportes del iusfilósofo aguascalentense e incluso viendo em él una especie de cristología jurídica, pero cuestionando su iusnaturalismo analógico desde un enfoque de teoría del derecho, metodologia jurídica y socio-materialismo.
d) Este cuarto bloque solo está compuesto por un trabajo, em el que se expone una semblanza sobre el autor y su pensamiento, de carácter personal, emotivo, sincero y de reconocimiento fraterno. Lo realiza Antonio Carlos Wolkmer, sin que ello impida que también casi todos los demás autores lo ensalcen puntualmente.
e) El último bloque está conformado por trabajos de quienes generosamente han querido participar de este homenaje, enviando trabajos que no entran de manera directa y profunda en el pensamiento de Jesús Antonio de la Torre Rangel. Además de los textos de Amilton Bueno de Carvalho y de José Geraldo de Sousa ya mencionados, tenemos las contribuciones de José Luis Eloy Morales y Guillermo Luévano. El primero centrado en el derecho a tener derechos de las víctimas dentro del proceso penal junto con la prueba, además de la posible conexión entre garantismo jurídico y uso alternativo del derecho- El segundo hace una exposición de tres conflictos socioambientales en San Luis Potosí y señala la influencia del uso alternativo del derecho de Jesús Antonio de la Torre en la Clínica Jurídica de la UASLP.
Para terminar, quisiera expresar la emoción que me produce contribuir, junto con mi querido amigo Alejandro Rosillo, para posibilitar que salga a la luz y tenerla en mis manos una obra tan merecida y necesaria, latinoamericano-centrada pero también ecuménica, dedicada a una persona cuyo corazón y cuya razón nos inspira y orienta a quienes tenemos claro, como el mismo autor aguascalentense, que apostar y amar a la Humanidad siempre situada, historizada y no abstracta, implica un pleno compromiso por la lucha de la dignidad y de los derechos de todo ser humano, corporal, concreto, con nombre y apellidos. El papel que en ello juegan las víctimas de un sistema capitalista y de una modernidad que, en sus oscuridades, mata y que utiliza las normas jurídicas para generar injusticias, es manifiesto y resulta central. Que salga en la editorial de la Maestría en Derechos Humanos de la UASLP, tan bien mediada y gestionada por Alejandro Rosillo, en coedición con el Centro de Estudios Jurídicos y Sociales Mispat, tiene una gran simbología. Le agradezco a él y a todo su equipo de edición y revisión de los textos, el dificultoso y complicado trabajo realizado. Pero creo y estoy convencido, que valió la pena.
Em seu prefácio, Alejandro Rosillo Martínez, muito próximo do homenageado e autor de ensaios de apresentação de vários de seus livros, atribui mais subjetividade a sua abordagem, talvez por essa proximidade, mas oferece uma nota de caracterização dos estudos jurídicos na América Latina, na vertente crítica que sustenta o trabalho de Jesus Antonio, o que pode representar uma chave de leitura dos trabalhos reunidos nessas miradas:
Si algo caracteriza a los estudios jurídicos en América Latina es que, por la fuerte influencia del positivismo, son profundamente formales y poco reflexivos: entender los conceptos jurídicos fundamentales –sin mayor cuestionamiento, como algo ya dado de por símemorizar textos normativos y aprender procedimientos, es como se podría sintetizar la enseñanza jurídica. Las pocas asignaturas que pueden ir más allá de esto, como historia, sociología o filosofía del derecho, suelen también estar sometidas a esa visión positivista o a una enseñanza bancaria poco estimulante. Algo así, con pocas excepciones, fue mi experiencia como estudiante de Derecho.
En este tipo de educación jurídica, uno encuentra poca conexión con la realidad social, pues la referencia dominante son los procedimientos y las decisiones de las instituciones. La reducción del derecho a la ley, de los poderes al poder del Estado, de las relaciones sociales a la relación jurídica, del pensamiento a los tecnicismos jurídicos, y la verificación de que es una constante la legalización de la injusticia, provoca que cualquier persona con un mínimo de sensibilidad social y pensamiento crítico, se sienta desolada al cursar una disciplina así de empobrecida.
Tal como Rosillo, também me vejo envolvido subjetivamente pela convocatória de engajamento a um pensamento que milite. Este é um pensamento que argumenta que a lei nasce do povo. Jesús Antonio de la Torre Rangel, numa série de obras que trabalha a consideração de que o Direito nasce do povo.
A convite de Jesus Antonio preparei um prólogo que abre a edição de sua mais recente obra em sequência a esse tema: El Derecho Que Nace Del Pueblo Como Derecho Insurgente (https://estadodedireito.com.br/el-derecho-que-nace-del-pueblo-como-derecho-insurgente/).
Na articulação dos fundamentos do pluralismo e da insurgência enquanto filosofia e teoria do Direito que nasce do povo, assertivamente, “uma nova teoria do Direito”, desde 1986, com El Derecho que nasce del pueblo, depois, em 2012, com El Derecho que sigue nascendo del pueblo. Movimientos sociales y pluralismo jurídico; e agora. 2022, com El Derecho que Nasce del Pueblo como Derecho Insurgente, de la Torre Rangel percorre um caminho disciplinado, imaginativo e criativo que consolida uma referência para o campo.
Uma mais estendida e circunstanciada aproximação entre O Direito Achado na Rua e o Direito Insurgente, foi apresentada pelo professor De la Torre Rangel, durante o Seminário Internacional O Direito como Liberdade 30 Anos do Projeto O Direito Achado na Rua, em sua contundente comunicação Constitucionalismo Achado na Rua em México: de los acuerdos de San Andrés al concejo indígena de gobierno.
Para a vertente crítica que pensa o Direito como emancipação e o compreende como criação do social, a hipótese do pluralismo jurídico e a condição da insurgência, são critérios constitutivos do campo, das referências possíveis de teorias de sociedade e de justiça, e de qualquer consideração que se elabore sobre o tema. É nesse ponto que a insurgência, como direito que nasce do povo se encontra com a juridicidade achada na rua, abrindo miradas críticas para a emancipação.
Em outubro de 2022 o Diretório Acadêmico XXI de Abril finalmente conseguiu realizar a XXVII Jornada Jurídica após impossibilidades motivadas pela pandemia de Covid-19 nos dois anos anteriores. Juntamente às Jornadas, ocorreu também o IV Simpósio de Pesquisa em Direito da Universidade Federal de Uberlândia, uma derivação do programa político-epistemológico conduzido pelo Laboratório Americano de Estudos Constitucionais Comparados – LAECC – http://laecc.org.br/conselho-editorial. O LAECC procura aprofundar as discussões temáticas comparativas entre os vários sistemas constitucionais americanos. O grupo desenvolve abordagens comparativas em 4 diferentes linhas, procurando cobrir todas as dimensões materiais do constitucionalismo e fomentar a produção científica nos diversos ramos do direito e das ciências sociais, sempre primando pela abordagem de abrangência interdisciplinar.
O Sumário da Obra é extenso e casuístico. Compreende o conjunto das exposições dos convidados palestrantes e dos organizadores e o conjunto de textos dos participantes dos Grupos de Trabalho.
Do Sumário, reproduzo os títulos gerais dos artigos dos palestrantes, sem seus desdobramentos nos itens analíticos:
APRESENTAÇÃO
SOBRE OS PALESTRANTES E ORGANIZADORES
TEXTOS DOS PALESTRANTES
1.1 DIREITO ̶ UM CAMINHO E UM OBSTÁCULO PARA A TRANSFORMAÇÃO SOCIAL, Debora Regina Pastana
1.2 DO HOMO FABER AO HOMO TRANSHUMANUS: A SAGA HUMANA RUMO À CIVILIZAÇÃO DA TÉCNICA, Mariah Brochado
1.3 MATRIZES HISTÓRICAS DOS DIREITOS HUMANOS E A TRADUÇÃO JURÍDICA DAS LUTAS SOCIAS, Antonio Escrivão Filho, José Geraldo de Sousa Júnior, Rodrigo Camargo Barbosa
1.4 UTOPIA S/A: NEOLIBERALISMO E COMODITIZAÇÃO DO FUTURO, Philippe de Almeida (UFRJ)
O Sumário ainda expõe os Textos dos 4 Grupos de Trabalho.
Em seu desenho completo a obra reflete, assim se pode constatar do Prefácio (um recorte de seu próprio texto exposto na abertura da Jornada), um enunciado conteudístico, metodológico, descritivo e em boa medida emotivo, de todo o processo que culminou no livro, na elaboração que lhe imprimiu a professora Debora Regina Pastana (Doutora e Mestra em Sociologia pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Graduada em Direito pela UNESP. Professora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade Federal de Uberlândia (2009) e coordenadora do grupo de estudos sobre violência e controle social (GEVICO). Professora permanente do Programa de Pós Graduação em Direito Público da UFU), da Comissão Científica da Jornada e autora do Prefácio da obra.
Do Prefácio retiro:
Certamente, toda a comunidade UFU estava ansiosa pela realização da Jornada Jurídica que não apenas já é tradicional na instituição, como muito profícua no que se refere às discussões no âmbito do Direito e, mesmo, interdisciplinares. O título, “Direito: caminho ou obstáculo para a transformação social”, já adiantava a qualidade dos debates que aconteceriam. Contudo, o que presenciamos nesse evento tão pungente foi um turbilhão de emoções permeado por produção e divulgação de conhecimento científico de altíssimo comprometimento político. Na abertura do evento uma comovente recepção visual por meio de um lindo mural trazendo trechos de músicas de Chico Buarque que reproduzo no início deste texto. Aquelas eram músicas de protesto produzidas no auge da ditadura civil-militar da qual saímos formalmente em 1988. Os trechos ali posicionados novamente nos convidavam a refletir sobre o momento político que estávamos vivenciando. Também eram convites para produzirmos coletivamente uma ação questionadora e transformadora da nossa realidade político-social. Como sinalizava outro trecho de música do mural, agora de Belchior (Como nossos pais), era possível “ver vindo no vento um cheiro de novas estação”.
De fato, 2022 não foi apenas um ano eleitoral marcado pela possibilidade de mudança no governo federal. Esse ano foi o marco limite para nossa tolerância a todo tipo de perversidade associada à governança do país. Estávamos fartos (as/es) e exaustos (as/es) diante de tanta atrocidade institucional. Aquele mural era também um desabafo, um grito de basta, uma certeza de que uma nova atmosfera estava por se concretizar. Ali, impactada pelos trechos, chorei e percebi logo que não seria um evento qualquer. Para completar minha emoção, fui também convidada a proferir a palestra de encerramento desta Jornada; responsabilidade que comprimiu meu coração a quase não suportar tanto contentamento.
Nos demais dias o que se viu foi entusiasmo e força. Auditórios lotados, ouvintes ávidos (as/es), palestrantes emocionados (as/es). Marcelo Semer abriu o evento discutindo os paradoxos da Justiça. Falou do Judiciário e sua relação com a política brasileira, sinalizando que esse poder contribuiu para a construção da grave situação política atual, marcada pelo enfraquecimento da democracia. Antonio Escrivão nos alertou para a importância do Direito achado na rua. O Direito contra hegemônico oriundo das classes populares que muitas vezes substitui o Estado em sua completa ausência, traduzindo juridicamente verdadeiras lutas sociais. Mariah Brochado trouxe para o debate o Cyberdireito, fruto do advento da revolução tecnológica que passou ser recorrente também no cotidiano jurídico, além dos novos desafios ético-jurídicos do século XXI decorrentes desse processo. Rafael Mafei trouxe a questão: Como punir um expresidente? Dizia ele, naquele momento, que punir Jair Bolsonaro pelos seus crimes seria nossa última chance de poder dizer, sem cinismo, que as instituições ainda funcionam no país. Philippe Oliveira de Almeida trouxe a importância das teorias críticas para nos devolver a consciência de que somos sujeitos históricos capazes de intervir nos rumos da nossa história política. Isso não é uma utopia! Eu, por fim, muito emocionada por finalizar o evento, me atrevi a dizer que o título do evento era uma falsa contradição. O Direito pode sim ser ambas as coisas, vale dizer, caminho e obstáculo para a transformação social. Estava ali defendendo um outro ativismo jurídico, diferente daquele que já conhecemos, que costuma interferir na política para derrubar governos legítimos e manter interesses escusos. Na contracorrente defendi um ativismo voltado para a defesa dos vulneráveis e para a emancipação social. Sabemos que o campo jurídico não é neutro, então vamos lutar pelo Direito contra hegemônico! Eu estava feliz em perceber que pelo menos naquele auditório o Direito que prevalecia era o transformador. Senti isso como uma vitória pessoal. Sim, sou uma subversiva que quer continuamente derrubar o Direito que oprime e subjuga. Esse é o meu compromisso científico.
Em suma, trata-se de obra da melhor qualidade destinada a quem se interessa pela Ciência do Direito que não se deixa resumir pelo positivismo raso traduzido em descompromisso político e reificação da norma jurídica.
Prefaciar esta maravilhosa contribuição à Ciência do Direito, que serve de caminho para a justa transformação social, é um privilégio que me deixa profundamente agradecida e extremamente honrada e que me foi dado, creio, pelo afeto generoso do querido corpo discente da FADIR.
Me fiz presente na obra com meus colegas co-autores Antonio Escrivão Filho e Rodrigo Camargo Barbosa. Sendo que Escrivão nos representou presencialmente no evento, compondo a mesa inaugural.
Desdobrado do enunciado do artigo, tal como aparece no Sumário, o nosso texto se desenvolve conforme os seguintes marcadores:
PROLEGÔMENOS
1.3.1 A RELAÇÃO ENTRE POLÍTICA E O DIREITO
1.3.2 COTIDIANO DA HISTÓRIA E A HISTÓRIA DO COTIDIANO
1.3.3 UMA MATRIZ LIBERAL
1.3.4 UMA MATRIZ INTERSECCIONAL
1.3.5 UMA MATRIZ DECOLONIAL
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Aqui e agora, do texto, dois recortes ao seu final. Um, que antecipa uma questão que ganhou ressonância nos dias correntes, depois de uma manifestação do Presidente Lula, pondo em causa de precedência o sentido mobilizador das lutas políticas para a emancipação.
Em nosso texto, as linhas que desdobramos, seguiam uma proposta de diálogo acerca da perspectiva crítica dos direitos humanos na contemporaneidade e o modo através da qual tal abordagem parece ser elaborada e explicitada sob as lentes analíticas de O Direito Achado na Rua. Reproduzo aqui a parte do texto, e nessa parte, a tessitura que lhe atribuiu Antonio Escrivão Filho, tal como a seguir.
Para isso, dizemos, ou antes, diz Escrivão, seria interessante organizar uma estrutura, fixar um objetivo e saber por onde vamos caminhar. Ao que tudo indica, o debate sobre direitos humanos na perspectiva crítica tem se colocado, pelo menos nos últimas 15 anos e em meio a diversas correntes e tendências, em uma busca para enxergar os direitos humanos através de uma lente do reposicionamento da relação entre política e direito.
Essa parece então ser uma boa plataforma para pensar este debate, utilizando-a como uma lente que vai conferir mais nitidez ao fenômeno dos direitos humanos na história, no cotidiano e na realidade social. Mas afinal de contas, o que são os direitos humanos? Ao ressoar a questão, a sensação é quase inevitável: “eu sei o que são, mas quando me perguntam não consigo responder”. Por isso vamos cogitar aqui de algumas lentes que nos ajudem a conferir nitidez, algum delineamento, projeção da profundidade e coloração deste fenômeno a fim de que, quem sabe, um dia consigamos chegar até a resposta.
Vamos partir então desta plataforma analítica do reposicionamento da relação entre política e direito, que parece um bom caminho, para chegar até uma identificação sobre a relação entre o lócus – o tempo-espaço – e os sujeitos dessa relação. Em um terceiro momento, vamos cogitar sobre a história que nos trouxe até aqui, ao menos na trilha ontológica desse fenômeno, mais interessados nos processos sociais que nas ideias que lhes conferiram iluminação histórica, um pouco na linha das perguntas brechtianas de um trabalhador que lê, e à melhor maneira da teoria kosikiana, quando alerta: “a filosofia não se realiza, é o real que filosofa” (KOSÍK, Karel. Dialética do concreto. Trad. Cália Neves e Alderico Tobírio. 7ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002).
De fato, é sempre a partir desta perspectiva, ou seja, a partir do modo como a realidade se desenvolve e revela as ideias que estão percorrendo os meandros e nosso cotidiano, que nos orientamos neste debate.
Por essa razão, o ´tem necessário sobre a relação entre política e o direito. O desafio de encarar os direitos humanos desde uma perspectiva crítica tem reivindicado esse paradigma da necessidade do reposicionamento sobre a relação entre política e direito, a fim de repensar a tradicional e clássica abordagem que sugere um abismo entre a política e o direito, buscando separar, depurar e purificar o direito, sua teoria, e não raro – mais para os desavisados que para os seus formuladores – a sua prática.
Isso porque Kelsen (KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2000), e alguns autores alinhados à sua concepção não cogitaram de uma teoria pura da prática do direito, ou seja, da Justiça. Sua proposta se orientava por uma teoria pura da ciência do direito. No entanto, ao ser mal-entendida e aplicada, não raro decisões judiciais acabam reivindicando uma pretensa depuração do direito para proferi-las sob um argumento de neutralidade que, por seu turno, se presta apenas a conferir verniz técnicojurídico às suas convicções, valores e não raro interesses em meio aos conflitos de elevada intensidade política, econômica e social que, se de um lado vem a cada dia gritando socorro no ambiente das estreitas raias judicias, de outro nos interpelam a todas/os e a cada um nas nossas expectativas sobre o modelo e o projeto de sociedade. Nada indica que embaixo de uma toga o sangue corra em sentido diferente.
Não parece ser desnecessário cogitar da inserção social e política dos agentes da justiça, porque estamos tratando, justamente, da função judicial que é uma das funções políticas do Estado moderno. Temos a função legislativa, a função executiva e a função judicial. A organização dos Poderes do Estado e da autoridade, nesse modelo adotado, insere a função judicial neste lugar de organização da sociedade e é uma função política e bastante poderosa, porque ela tem o poder de decidir quem tem direito na nossa sociedade em determinadas situações e vamos observando nas últimas décadas que esse poder vem se expandindo.
Então é preciso encontrar e trazer essa plataforma analítica da relação entre política e direito para entender melhor o fenômeno que vem ganhando espaço, presença dilemática na sociedade brasileira – a expansão judicial – que significa, em si, uma expansão política da Justiça (ESCRIVÃO FILHO, Antonio; SOUSA JÚNIOR, José Geraldo. Para um debate teóricoconceitual e político sobre os direitos humanos. Belo Horizonte: D‟Plácido, 2016).
Vale notar que o poder de dizer o direito e prestar a justiça consiste em uma função estatal delegada pela sociedade, equação política esquecida mas lapidada nos exatos termos da inscrição da soberania popular no art. 1º, parágrafo único, da Constituição Cidadã, já que a princípio somos nós quem dizemos para a autoridade, através da lei, o que ela pode e deve fazer no exercício da jurisdição.
Essa, então, poderia ser reconhecida como uma terceira matriz dos direitos humanos, a matriz interseccional. Os sujeitos no século XX conformaram novos modelos de relação de poder na sociedade e na relação com o Estado. Na sua compreensão sobre as contradições da vida, da identificação com outros sujeitos que experimentam a mesma experiência e do desenvolvimento da solidariedade. Estamos tratando, com isso, de paradigmas advindos da teoria dos movimentos sociais, e da ideia do repertório desenvolvido pelo movimento social antes sindical, e agora feminista e negro, qual seja, a ideia de participação política que não é mais no Parlamento, é na rua, desafiando o poder em outras instâncias e esferas da sociedade.
Como a esta já se constitui algo notório, a noção de interseccionalidade nos termos formulados por Kimberlé Crenshaw (CRENSHAW, Kimberle. Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics. University of Chicago Legal Forum: Vol. 1989: Iss. 1, Article 8. Disponível em: http://chicagounbound.uchicago.edu/uclf/vol1989/iss1/8 . Acesso em: 25-07-2017) se projeta como uma interessante e potente plataforma analítica que enxerga as relações sociais – em especial desde o ponto de vistas das relações de poder desafiadas no cotidiano dos direitos humanos – a partir da conjunção de diferentes vetores de dominação e exploração que, pese apontarem em sentidos distintos (no que se refere à especificidade das relações sociais onde incidem), se encontram em um ponto de intersecção que é cotidianamente experimentado por grande parcela da população.
Nesta intersecção, portanto, diríamos que se encontram de modo estrutural os vetores de classe, raça e gênero, projetando experiências cotidianas que somente encontrarão a emancipação de seus sujeitos e portanto da própria sociedade na medida em que todas as três dimensões forem enfrentadas.
Daí que a chave de abóboda do texto tenha sido a designação de o configurar seguindo uma matriz decolonial.
De fato, estes são elementos importantes para se ter em mente e, dando um salto avançado, essas reivindicações foram também se espraiando e contagiando outros campos da sociedade. Podemos encontrar, como exemplo, o movimento camponês no Brasil, que a partir de uma expertise organizativa do movimento sindical e partidos políticos junto com a Igreja, organiza o campesinato na década de 50, voltando a se recompor ao final da década de 70 até a criação, em 1984, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST no objetivo reivindicatório político original de democratização do acesso à terra e a reforma agrária.
Experiências organizativas que chegam também através da Igreja Católica, sobretudo pela vertente da Teologia da Libertação, a organizações da sociedade civil e ao movimento indígena na década de 80, posteriormente no século XXI ao movimento quilombola, hoje protagonizando, ambos, a experiência de duas das maiores potentias transformadoras da sociedade brasileira, no sentido da filosofia da libertação de Enrique Dussel (DUSSEL, Enrique. 20 teses de política. Trad. Rodrigo Rodrigues. São Paulo: Expressão Popular, 2007), como a conquista no ano de 2023 da inscrição do Ministério dos Povos Indígenas na esplanada do ministérios do terceiro governo Lula parece evidenciar.
Eis os novos sujeitos de direito, que não são novos no processo histórico, mas apenas recentemente conquistaram a condição de sujeitos do direito e da política no Brasil. Com a novidade de sua presença nos seus meios de organização, mobilização, reivindicação e repertório de luta social, acabaram produzindo novidades inexistentes (mas não inimagináveis) no campo do direito. Os novos sujeitos, quando finalmente têm condições históricas de ocupar o locus da regulação política, vão produzir quase que necessariamente novos direitos, já que a “igualdade” positivada de forma abstrata acaba se constituindo como um apelo a um novo movimento social venha apresentar uma nova perspectiva de dignidade e reivindicar a sua concretização.
Esses sujeitos que agora chegam nesse campo com condições históricas de luta e disputa das relações de poder – agora também incorporando o movimento LGBTQUIA+ – encontram no século XXI um momento de acúmulo de forças do campesinato, organizações indígenas e movimento quilombola, podendo arriscar, então, para fins analíticos deste debate, uma terceira matriz conceitual de jaez decolonial na teoria dos direitos humanos, que no entanto não teremos condições de desenvolver neste espaço, esboçando apenas algumas linhas em brevíssima consideração.
Como visto, essa metodologia do ponto de vista da historicidade serve para colocar e organizar as ideias, conferir nitidez às experiências, e entender que as noções de direitos humanos estão na conformação do cotidiano, no intenso movimento da realidade. Se a matriz liberal advinha do Norte eurocentrado, carregada de contradições, observa-se que a matriz interseccional ainda é desenvolvida em sua gênese na experiência da classe trabalhadora no Norte, na experiência da classe trabalhadora da Europa e, posteriormente, também nos EUA, por meio do movimento de mulheres e movimento negro, porém na periferia dessas sociedades do Norte Global, se espraiando posteriormente para a América Latina, por exemplo.
Agora, finalmente, a matriz decolonial que vem se delineando e desenvolvendo, é advinda do Sul Global, em que pese ela seja compartilhada em termos conceituais por autoras e autores do Norte, que por seu turno se encontraram com intelectuais do Sul que para ali migraram ou se exilaram para realizar seus estudos ou fugir de regimes autoritários. Eis então uma matriz que está fundada na experiência do sujeito latino-americano, do sujeito africano, do sujeito asiático. De homens e mulheres do Sul Global que estão a construir o seu cotidiano de liberdade e dignidade, em mais um capítulo – metodologicamente diríamos uma matriz – dos direitos humanos na atualidade.
Uma matriz que em boa medida, a partir das sugestões analíticas trazidas neste texto, é aqui deixada para que as leitoras e leitores se desafiem na tarefa histórica de experimentar, e teorizar.
Infelizmente não pude retornar a UFU, em mais uma interlocução valiosa, para além daquelas de caráter político, quando discuti com servidores questões de gestão acadêmica e de pessoal, a partir de minha experiência como ex-Reitor da UnB; em trocas culturais, participando de mesa no bem instalado estúdio radiofônico, sendo a rádio universitária da UFU, uma das mais bem estruturadas do sistema de rádios universitárias; e em mesas de fundamento epistemológico no campo das teorias políticas e do direito. Ainda bem que a participação de meu colega Antonio Sergio Escrivão Filho assegurou a continuidade de uma troca de entendimentos e ajuste de posicionamentos.
Nesse último aspecto, aliás, até para continuar a tecer o fio de continuidade dessas trocas, guardo um registro impresso, a partir de dois repositórios muito bem editados pelo professor Roberto Bueno (que andou algum tempo na Faculdade de Direito da UnB em programa de visita). Menciono, a propósito, meu artigo Estado Democrático da Direita, publicado em DEMOCRACIA: DA CRISE À RUPTURA. Jogos de Armar: Reflexões para a Ação. Roberto Bueno (Organizador). São Paulo: Editora Max Limonad, 2017, 1131 p. (https://estadodedireito.com.br/democracia-da-crise-a-ruptura/) e também um capítulo – 16 – com o título Latinoamericanidade, lugares políticos, reencontro de humanidades, no livro Democracia, Autoritarismo e Resistência: América Latina e Caribe. Roberto Bueno (Organizador). São Paulo: Editora Max Limonad, 2021 (https://estadodedireito.com.br/democracia-autoritarismo-e-resistencia-america-latina-e-caribe/).
Fico muito satisfeito ao me dar conta das pegadas deixadas nesse percurso de forte interlocução, reativadas ao ensejo dessa XXVII Jornada Jurídica. E o faço a partir do reconhecimento que a sua Organização demonstra em buscar ter presente nos debates, a perspectiva estabelecida por O Direito Achado na Rua, sua concepção e prática.
Certamente, a participação de Antonio Sérgio Escrivão Filho na abertura da Jornada e a inclusão de nosso texto (MATRIZES HISTÓRICAS DOS DIREITOS HUMANOS E A TRADUÇÃO JURÍDICA DAS LUTAS SOCIAS, Antonio Escrivão Filho, José Geraldo de Sousa Júnior, Rodrigo Camargo Barbosa), no livro, bastaria para selar os compromissos político-epistemológicos dessa interlocução.
Entretanto, mais que isso, e no atual, vale por em relevo a compreensão do alcance dessa cooperação acadêmica, ao identificar, no texto condutor de todo o debate, porque preparado por uma das organizadoras do evento, autora do prefácio da obra – Direito – um Caminho e um obstáculo para a transformação social, de Debora Regina Pastana, em definir qual o Direito que é adotado como o sul de nossas intenções e compromissos: o direito que humaniza e emancipa, o Direito que “quem me ensinou isso foi um grande jurista brasileiro chamado Roberto Lyra Filho”.
Ela expõe:
Lá nos idos de 1982, ele publicou um livrinho pequenino e afetuoso intitulado “O que é Direito”. Esse livrinho fazia parte da coleção primeiros passos, publicada pela já extinta editora brasiliense. Roberto Lyra Filho foi um jurista marxista, um dos fundadores da Nova Escola Jurídica Brasileira (NAIR), da Faculdade de Direito da UnB, cujo boletim era a Revista Direito & Avesso.
Roberto Lyra dizia à época que o Direito não se reduzia à norma, nem a norma à sanção. Ao contrário, ele dizia, citando Gramsci, que a visão dialética precisava alargar o foco do Direito, abrangendo as pressões coletivas que emergiam na sociedade civil e adotavam posições de vanguarda, “como determinados sindicatos, partidos, setores de igrejas, associações profissionais e culturais e outros veículos de engajamento progressista” (FILHO, 1985, p. 04). Ainda em suas palavras o Direito não poderia “ser isolado em campos de concentração legislativa”, pois indicaria “os princípios e normas libertadores”, considerando a lei “um simples acidente no processo jurídico”, que poderia, ou não, “transportar as melhores conquistas” (FILHO, 1985, p. 04).
Seu pensamento teve grande influência no movimento jurídico intitulado “Direito Achado na Rua”, um movimento teórico/prático de extrema relevância para o Direito brasileiro e que possui mais de três décadas de existência. Aqui mesmo na Jornada foi falado sobre esse movimento. O professor Antônio Escrivão, veio justamente explanar sobre o “O Direito Achado na Rua e a tradução jurídica das lutas sociais”. Eu não sabia, mas descobri durante o evento, que, em tempos distintos, cursamos a mesma faculdade e tivemos o mesmo encantamento pelo professor Luis Alberto Machado, responsável pelo Núcleo de Direito Alternativo (NEDA) da Unesp de Franca. Talvez por isso tenhamos escolhido caminhos jurídicos e acadêmicos parecidos.
Segundo Escrivão, “o Direito não é; ele se faz, em um processo histórico de luta e libertação” para então se afirmar enquanto Direito que “nasce da rua, no clamor dos espoliados (VIEIRA, FILHO, 2022, p. 70). “Sua filtragem pode ser percebida nas normas costumeiras e mesmo nas legais que assumem diferentes significados de mediação das relações sociais”, podendo ora ser um Direito autêntico, ora um produto falsificado. Citando Lyra Filho, Antonio Escrivão e Renata Vieira (2022, p. 71) também dizem que “ao exprimir o Direito, as normas só podem servi-lo, na medida em que se tornem canais, e não diques”. Nesse sentido são também as palavras de Roberto Lyra Filho, para quem “uma norma será tanto mais legítima, quanto mais elástica e porosa se torne, para absorver os avanços libertadores, que surgem da dialética social e provocam transformação da ordem instituída” (LYRA, 1986, p.310).
Por um tempo esse movimento teve grande expressão e rivalizou com o Direito Positivo e a dogmática jurídica que aprisionavam o jurista à letra da lei positivada. Em maior destaque no Rio de Janeiro, no Rio Grande do Sul e em Brasília; mas praticamente em todo o Brasil, foi possível perceber essa efervescência transformadora tão bonita no interior do campo jurídico. Entre as décadas de oitenta do século XX e a primeira década do século XXI, esse movimento produziu verdadeiras revoluções jurídicas que promoveram ondas de justiça social pelo país. Euzamara Carvalho (2022) enaltece toda potência desse movimento que de certa forma também redefiniu a própria normatividade internacional.
Nesse sentido destaca-se a legitimidade da luta social a luz dos princípios constitucionais e institucionais de direitos humanos, conforme Resolução 53/144 da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 9 de dezembro de 1998. Esta resolução ratifica a Declaração sobre o Direito e a Responsabilidade dos Indivíduos, Grupos ou Órgãos da Sociedade de Promover e Proteger os
Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais Universalmente Reconhecidos (Defensores de Direitos Humanos). Em seu Artigo 1.º, expressa: “Todas as pessoas têm o direito, individualmente e em associação com outras, de promover e lutar pela proteção e realização dos direitos humanos e das liberdades fundamentais a nível nacional e internacional” (CARVALHO, 2022, p. 134/135) (sic).
Assim, o Direito deixou de ser pura norma, para ser ação constante daqueles (as) subjugados (as) no processo histórico da vida social. De forma ambivalente, a própria norma internacional passa a reconhecer essa realidade. Como bem destaca Joaquín Flores (2009, p. 71):
Não podemos entender os direitos sem vê-los como parte da luta de grupos sociais empenhados em promover a emancipação humana, apesar das correntes que amarram a humanidade na maior parte de nosso planeta. Os direitos humanos não são conquistados apenas por meio das normas jurídicas que propiciam seu reconhecimento, mas também, e de modo muito especial, por meio das práticas sociais de ONGs, de Associações, de Movimentos Sociais, de Sindicatos, de Partidos Políticos, de Iniciativas
Cidadãs e de reivindicações de grupos, minoritários (indígenas) ou não (mulheres), que de um modo ou de outro restaram tradicionalmente marginalizados do processo de positivação e de reconhecimento institucional de suas expectativas. (sic).
Nesse contexto, durante mais de trinta anos assistimos o Direito se fortalecer justamente por meio de sua vertente considerada “o avesso”, aliada ao universo oprimido e compromissada com o fortalecimento da cidadania participativa.
Conforme Debora Pastana: “Esse ‘Direito Achado na Rua’ se realizaria, portanto, de forma dialética, por meio da inter-relação entre teoria e práxis. Imediatamente percebi que era esse o meu Direito; aquele capaz de nos levar à transformação social que emancipa e empodera. Logo percebi também que à minha volta havia um coletivo jurídico pronto para me inserir nesse Direito transformador”. E comigo, ela conclui: “O ‘Direito Achado na Rua’, enquanto movimento político, buscava capacitar assessorias jurídicas de movimentos sociais; buscava também “ser a expressão de criação do Direito a partir da atuação jurídica dos novos sujeitos coletivos e das experiências por eles desenvolvidas” (SOUSA JÚNIOR, José Geraldo de. Ideias para a Cidadania e para a Justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008.). Era assim um projeto político de transformação social como dizia Roberto Lyra Filho”.
Era e continua sendo. Sinto-me ainda mais organicamente engajado nos compromissos de conduzir nossas ações teóricas e práticas de O Direito Achado na Rua, ao impulso desse objetivo de contribuir para o campo teórico crítico do direito e dos direitos humanos (https://estadodedireito.com.br/a-teoria-e-praxis-do-coletivo-o-direito-achado-na-rua/; https://estadodedireito.com.br/30425-2/: v.6 n. 2 (2022): Revista Direito. UnB |Maio – Agosto, 2022, V. 06, N. 2 Publicado: 2022-08-31. O Direito Achado na Rua. Contribuições para a Teoria Crítica do Direito. Edição completa PDF (https://periodicos.unb.br/index.php/revistadedireitounb/issue/view/2503).
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
Influenciadores Digitais Católicos. Efeitos e perspectivas
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de DireitoInfluenciadores Digitais Católicos. Efeitos e perspectivas. Aline A. da Silva, Alzirinha R. de Souza, Fernanda de F. Medeiros, Moisés Sbardelotto e Vinícius Gomes. Editora Ideias & Letras. 1ª edição 2024, 416 páginasNa imagem preparada pela Editora com a indicação dos autores e autoras, pode-se encontrar uma minibiografia de cada uma e de cada um. São pesquisadoras e pesquisadores experientes e reconhecidos por seus muitos estudos e escritos. Eu já estava na expectativa dessa obra porque uma de suas autoras Alzirinha Rocha de Souza já me anunciara a sua preparação e edição. Alzirinha, uma destacada teóloga católica vem, há dois anos, semanalmente, orientando nossas leituras – minhas e de um pequeno grupo doméstico – teológico-missionárias do Novo Testamento (já lemos com a sua orientação o Evangelho de Lucas, os Atos e estamos agora na leitura das Epístolas (Paulo). Pena que ainda não há a ordenação de mulheres. Alzirinha é leiga. Celebrasse e suas homilias me induziriam mais convicção, em sentido teológico-pastoral, do que a que me formou até aqui, no acumulado de meus 77 anos. Valho-me frequentemente de aspectos até incidentais do substancioso manancial hermenêutico de Alzirinha. Então, quando nos escoramos em Comblin, seu amigo e seu tema de tese em teologia, em Louvain, sinto minha âncora bem fundeada. Até ouso ser assertivo (cf. https://estadodedireito.com.br/papa-francisco-carta-enciclica-fratelli-tutti/; ou, principalmente, cf https://estadodedireito.com.br/agenda-latino-americana-mundial-2024/):
desde uma perspectiva de descolonização do mundo e da vida, disse isso em meu artigo, uma missão não só libertadora, no sentido de escapar dos reducionismos que a opressão e a espoliação produzem numa realidade de exclusão, mas a missão verdadeiramente emancipadora, aquela que não só liberta mas humaniza, pelo impulso daqueles elementos críticos, próprios dos espíritos livres, que se encharcam de humanismo e de esperança, e que aparecem com muita força na conversa que entretive com a teóloga Alzirinha Rocha de Souza, além de muitas outras lições, ela que é leiga, professora na PUC-MG (Doutora em Teologia pela Universidade de Louvain), num programa de Justiça e Paz, da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Brasília (https://www.youtube.com/watch?v=imN1sM2p3W4), sobre o tema “Ação, Missão e Liberdade. Aproximações entre Comblin e o Papa Francisco”.Comblin não está evidenciado nos documentos da Agenda, mas a partir de Comblin, e sua teologia da missão (teologia da enxada ajustada ao contexto brasileiro e latino-americano), Alzirinha surpreende a função comunitária do trabalho do leigo e a importância do desenvolvimento de uma ação missionária em comunidade, impulsionada sim pelo Espírito, mas que traz a liberdade e a renovação da esperança: “o que movimenta a ação humana é a esperança de que essa ação transforme o mundo”. Isso que aparece como compreensão pastoral em Comblin (ação, comunidade, palavra, liberdade e espírito), ajuda a compreender uma ligação entre São Francisco (“evangelizar, se necessário, até com palavras” – não tenho a fonte, há até aquelas que negam tenha Francisco dito isso, mas ouvi a máxima do padre José Ernanne Pinheiro, conselheiro espiritual da CJP Brasília, amigo e estudioso de Comblin) e o Papa Francisco, combinando contemplação sim, como está em suas principais Encíclicas e Exortações, mas contemplação na ação, realizando-as em proposições sobre o que se pode construir a partir do agora, mas em conjunto, em comunidade, como povo de Deus, numa renovada louva-ação do cântico do irmão Sol.Em estudo de altíssima profundidade – “A Experiência como Chave de Concretização e Continuidade da Igreja de Francisco” (Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 49, n. 2, p. 375-397, Mai/Ago. 2017), diz Alzirinha: “Destaco aqui uma característica do fazer de Francisco, a que julgo mais marcante e me parece essencialmente ligada a Aparecida, da qual, em minha opinião, decorrem todas as outras possíveis, que é a exigência da missionariedade e da proximidade para o anúncio do Evangelho. Ser missionário, como seus gestos demonstram, é estar ao nível do outro, olhar nos olhos, falar em condições de igualdade de uma Boa Nova, que talvez possa ser efetivamente boa para seu ouvinte. Essa é, de fato, a ‘nova evangelização’ esperada, que se representa por uma Igreja em saída que possa realmente ‘primeirear’ (cf. Papa Francisco: “tomar iniciativa”) nas ‘periferias existenciais e sociais’, anunciando esperança, caridade e misericórdia de Deus. Se, na inspiração de João XXIII, o Concílio (Vaticano II) seria um novo pentecostes, como nos lembra Galli, aos olhos daqueles que esperaram 50 anos para uma grande virada na Igreja, ele finalmente acontece neste papado…Os gestos de Francisco advêm de sua experiência e somente é capaz de dar testemunho aquele que faz primeiramente a experiência de Deus. Por isso realiza a forma mais alta da teologia prática ao fazer coincidir sua experiência de Deus, sua experiência pastoral, às exigências de homens e mulheres que demandam e esperam da Igreja uma resposta concreta às suas vidas”.
Não é, pois, episódico, atuando na Comissão Justiça e Paz de Brasília, ter podido sugerir, com sucesso, contar com comentários de Alzirinha para o discernir de nossos propósitos de caráter evangelizador, no modo de comunicação que procuramos seguir. Para melhor ilustração do que digo, cf. na agenda de nossos Programas de Justiça e Paz, essa participação aguda de Alzirinha: “Conversa de Justiça e Paz: Missão, Ação e Liberdade em José Comblin, https://www.youtube.com/watch?v=QewxUTFiqoI&list=PLuEz7Ct3A0UiYqiG8ThpjLeyiBP4b4LGK&index=3. Eu recebi a notícia da publicação do livro, no mesmo dia em que circulou uma expressão desse modo falso de comunicar. Duplamente chocante. Pela fonte, a mais destacada estrutura de comunicação entranhada no que se denomina grande mídia e a aleivosia irresponsável e despudorada porque dirigida a falsear a manifestação do Presidente da República. A minha fonte é uma comunicação reconhecida por sua credibilidade, mesmo entre críticos:
“Essa menina bonita que está aqui, eu estava perguntando: o que faz essa moça sentada, que eu não ouvi ninguém falar o nome dela? Falei: ‘É cantora? Vai cantar?’. Não, não vai ter música. ‘Então, vai batucar alguma coisa? Porque uma afrodescendente assim gosta do batuque de um tambor.’ Também não é. ‘Nossa, então é namorada de alguém?’. Também não é. O que que é essa moça? Essa moça foi premiada o ano que vem como a mais importante aprendiz dessa empresa e ganhou um prêmio na Alemanha. É isso que nós queremos fazer para as pessoas neste país”, disse Lula. Mídia corta fala de Lula e gera fake news racista ao tirar o sentido de pronunciamento, agências de notícias acabam por disseminar notícia falsa em torno de uma fala afirmativa GGN – Luis Nassif4 de fevereiro de 2024, 13:06 https://jornalggn.com.br/destaques-luis-nassif/midia-corta-fala-de-lula-e-gera-fake-news-racista/
“Foi o coração que nos moveu para ir, ver e escutar, e é o coração que nos move para uma comunicação aberta e acolhedora”, ressalta Francisco, recordando que “não devemos ter medo de proclamar a verdade, por vezes incômoda, mas de o fazer sem amor, sem coração. Só ouvindo e falando com o coração puro é que podemos ver para além das aparências, superando o rumor confuso que, mesmo no campo da informação, não nos ajuda a fazer o discernimento na complexidade do mundo em que vivemos. O apelo para se falar com o coração interpela radicalmente este nosso tempo, tão propenso à indiferença e à indignação, baseada por vezes até na desinformação que falsifica e instrumentaliza a verdade. Com efeito «o programa do cristão – como escreveu Bento XVI – é “um coração que vê”». Trata-se de um coração que revela, com o seu palpitar, o nosso verdadeiro ser e, por essa razão, deve ser ouvido. Isto leva o ouvinte a sintonizar-se no mesmo comprimento de onda, chegando ao ponto de sentir no próprio coração também o pulsar do outro. Então pode ter lugar o milagre do encontro, que nos faz olhar uns para os outros com compaixão, acolhendo as fragilidades recíprocas com respeito, em vez de julgar a partir dos boatos semeando discórdia e divisões”.
O livro Influenciadores Digitais Católicos traz para esse âmbito comunicacional sensível toda essa ordem de preocupações. Conforme o resumo preparado pela Editora, “A partir de uma perspectiva diferenciada, esta obra apresenta uma instigante análise do fenômeno dos influenciadores digitais católicos no complexo ecossistema comunicativo e eclesial atual. Além de socialmente relevante, trata-se de um processo que afeta de modo direto o desenvolvimento da pastoral, da evangelização, da teologia e da comunicação eclesial. É também uma questão cultural, que atravessa as barreiras das religiosidades, uma vez que tais influenciadores alcançam e mobilizam pessoas comuns por meio de poderosas dinâmicas tecnológicas. O foco deste livro é justamente compreender em profundidade esse fenômeno e suas possíveis consequências socioeclesiais”. Atente-se para o seu Sumário: 1 Introdução 1.1 O caminho da pesquisa 1.2 Sobre as autoras e os autores 2 Influência digital: um pouco de teoria 2.1 Fama e celebridade 2.2 Influência digital 2.3 Influência digital religiosa 3 Bernardo Küster: a influência religiosa como instrumento político de uma “guerra santa” 3.1 Premissas teóricas: a extrema direita como base do conservadorismo católico do influenciador Bernardo Küster 3.2 Biografia: a pessoa/persona e a construção da trajetória de Bernardo Küster 3.3 Performance: a atuação conflitiva e estruturante da defesa dos valores católicos 3.4 Conteúdo 3.5 Interação 3.6 “Eles estão no meio de nós”: a estruturação de um combate ao progressismo e à teologia da libertação 3.7 Apontamentos analíticos sobre o documentário “Eles Estão no Meio de Nós” 3.8 O caso Bernardo Küster: apontamentos e pistas sobre a influência digital católica Referências bibliográficas 4 Autorreferência, humor e fama: análise sobre a imagem do padre galã Fábio de Melo 4.1 Biografia: a construção do padre cantor Persona 4.3 Influências teológicas eclesiais e sociopolíticas 4.4 Performance 4.5 Conteúdo: análise da conta @pefabiodemelo 4.6 Considerações Referências bibliográficas 5 Voz e vez dos pobres nas redes digitais: o caso Júlio Lancellotti 5.1 Quem é o Pe. Júlio Lancellotti? 5.2 Inclusão do Pe. Júlio Lancellotti no corpus de análise da pesquisa 5.3 Análise da amostra (eixo comunicacional-cultural) 5.4 Análise teológico-eclesial (eixo teológico-eclesial) 5.5 Influência social e política (eixo sociopolítico) 5.6 Conclusão Bibliografia 6 Pe. Patrick Fernandes e a comunicação de uma “fé leve” 6.1 Introdução 6.2 Entre a história e o story: construção do corpus e método 6.3 Pessoa/persona: “Eu sou um padre acessível” 6.4 Performance: o “dia do lixo” para comunicar uma “fé leve” 6.5 Conteúdo: “Tô brincando, gente” 6.6 Interação: “A inspiração são as próprias pessoas” 6.7 Reflexões transversais Referências 7 Padre Paulo Ricardo de Azevedo Júnior: celebridade influenciadora do conservadorismo católico brasileiro 7.1 Introdução 7.2 Biografia: a construção do ícone Padre Paulo Ricardo 7.3 Análise do conteúdo multiplataformas 7.4 Análise de conteúdo 7.5 Interação 7.6 Conclusão Referências 8 Conclusões 8.1 Eixo comunicacional 8.2 Eixo sociopolítico 8.3 Eixo teológico-eclesial 8.4 Perspectivas pastorais Referências Da Introdução retiro que a obra resulta de uma grande pesquisa, motivada por “cenário, complexo e difuso”, que caracteriza realidade própria fixada no livro. A pesquisa, esclarece a Introdução, “foi realizada ao longo de dois anos (2021-2023) pelo Núcleo de Estudos em Comunicação e Teologia (Nect), vinculado ao Anima PUC Minas: Sistema Avançado de Formação, Identidade e Missão, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. O Nect foi constituído em agosto de 2021, pelo então reitor da PUC Minas, Dom Joaquim Giovani Mol Guimarães, e surgiu a partir do desejo de colaborar de forma acadêmica com a Igreja Católica do Brasil, a partir de pesquisas que conjugam as áreas da Comunicação e da Teologia. Na era dos avanços da comunicação digital, o núcleo assume a desafiadora missão de refletir sobre como as práticas comunicacionais podem ser pensadas teologicamente; sobre como as práticas eclesiais e pastorais podem ser pensadas comunicacionalmente; sobre como a inter-relação entre essas áreas do conhecimento toca os processos de evangelização, a pastoral e as ações da Igreja do Brasil; e ainda sobre os efeitos éticos e religiosos da comunicação contemporânea sobre a práxis cristã”. A sua motivação, acolhida por Dom Mol, não somente quanto à eleição do tema mas, sobretudo, por resguardar o seu desenvolvimento e divulgação, o que requer, além de discernimento, ousadia e coragem, para navegar num território cercado de tensionamentos, vai assim se definir dentro do vasto campo de possibilidades que emerge da inter-relação dos campos da Comunicação e da Teologia. A Introdução expõe o percurso metodológico, e também o enquadramento teórico, muito rigorosos que balizaram o trabalho, desde a pesquisa até a organização de seus elementos interpretativos. Mas o que chama a atenção é a apropriação desse processo à modalidade comunicacional especial que caracteriza o estudo, seu protocolo epistemológico e o posicionamento: a perspectiva teológico-pastoral. Destaco essa particularidade com a dição dos autores:
No âmbito cristão, o esforço de evangelização, em princípio, confronta-se com algumas práticas já estabelecidas na dinâmica da influência digital, como, por exemplo, a monetização (que será aprofundada mais adiante). A exposição da privacidade e o excesso de informalidade, que são outras práticas comuns da categoria, também podem afrontar determinadas estruturas religiosas ou simplesmente fugir de critérios e orientações instituídos e consolidados do ponto de vista eclesiástico. Ademais, algumas dessas práticas também interpelam diretamente a questão da autoridade que é exercida por meio da figura de padres, pastores e bispos, especialmente em situações relacionadas à exibição de rotinas, que carregam uma linguagem baseada no humor e na publicidade.No âmbito católico, embora as mensagens dos últimos três pontífices incentivem os fiéis a desenvolverem iniciativas de evangelização nas mídias e haja casos de pessoas que buscam dar um testemunho de vida cristã na rede, há influenciadores que se denominam “católicos”, mas que prestam um desserviço à comunidade cristã, disseminando dúvidas e divisão na Igreja, por meio de notícias falsas, intolerância e discursos de ódio. Alguns desses influenciadores instrumentalizam ideias, ideais e valores cristãos para fins políticos, enquanto outros mercantilizam e barateiam conteúdos e símbolos da doutrina católica. Um exemplo internacional é o de Alessandro Maria Minutella, presbítero italiano excomungado em 2018 por disseminar heresias e calúnias contra o Papa Francisco, fomentando o cisma da Igreja Católica por meio de seu canal no Youtube.No Brasil, não apenas os ataques diretos a bispos católicos são motivos de preocupação, mas também o modo como orientar os fiéis, especialmente o clero, a realizarem boas práticas comunicativas na rede, pois ser influenciador digital é um ofício cada vez mais frequente entre padres e seminaristas. Atitudes discrepantes e incoerentes na rede por parte de presbíteros geram alerta e demonstram que a Igreja Católica no Brasil e no mundo precisa refletir sobre como lidar e se posicionar em meio a essa cultura comunicativa que tende a se expandir.Algumas ações em Igrejas locais já foram tomadas, como o caso da medida disciplinar direcionada aos clérigos da Arquidiocese de Fortaleza, lançada em outubro de 2021 pelo arcebispo local, Dom José Antonio Aparecido Tosi Marques, que admoesta aos presbíteros que utilizem os meios digitais com prudência e sabedoria.A prática dos influenciadores e influenciadoras digitais católicos levanta ainda outras questões importantes que nos fazem pensar sobre os papéis dos sujeitos dentro da tradição eclesial. Para muitos fiéis hoje, tais influenciadores constituem “bolhas eclesiais” que alimentam um “magistério paralelo” às autoridades eclesiais. Seja padre ou leigo, são tais influenciadores que, até certo ponto, moldam a mentalidade e a fé cristã de seus milhares ou milhões de seguidores. Seus perfis públicos muitas vezes constroem uma imagem pública da Igreja de traços predominantemente masculinos, clericais e brancos, não expressando a diversidade do Povo de Deus. Para muitos fiéis, a palavra de um influenciador ou influenciadora da fé tem mais peso do que a do bispo de sua diocese e até do que a do papa. O engajamento, bem como a fé e a confiança em certos influenciadores podem gerar um clima de extremização e discórdia entre os membros da Igreja, promovendo ações de “excomunicação” recíproca, que caracterizam uma verdadeira antievangelização .Nota-se, portanto, que são muitos os pontos que particularizam a atuação e a conceituação dos influenciadores digitais que atuam no âmbito religioso. Ademais, a performance e o alcance crescente dessas figuras também apontam para valores socialmente compartilhados que merecem ser observados com mais atenção. Entram em jogo, desse modo, o conteúdo comunicado por essas pessoas em torno de um determinado elemento religioso, a mistura promovida tanto com pautas humorísticas, políticas, por vezes preconceituosas, quanto com outras que beiram um “psicologismo” superficial, que simplifica a complexidade da existência humana, e ainda as motivações que levam as pessoas em geral a seguirem influenciadores digitais da fé.
O livro vai certamente provocar muito interesse e deve ser muito bem acolhido como contribuição importante pelo tema e pelo alcance. Mas também vai causar impacto sobretudo no meio religioso, atualmente muito conturbado por dissenções pastorais e teológicas. A começar pelos comunicadores e seus apoiadores postos em evidência no estudo. Principalmente entre os que se instalam em ambientes convencionais que se fortalecem com esse modelo comunicacional. Penso, realmente, que o livro e seu tema vão incidir numa realidade pastoral e missionária em disputa. Há poucos dias, no Vaticano, o Papa Francisco recebeu, em audiência, 85 membros do Conselho Nacional da Renovação no Espírito Santo, a Renovação Carismática italiana (https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2024-01/papa-audiencia-renovacao-carismatica-sejam-construtores-comunhao.html). Em seu discurso, ao dar as boas-vindas o Papa, em agraciar o serviço que o Movimento realiza, com a sua “espiritualidade simples e alegre”, põe em causa “dois aspectos particulares para a vida do movimento: “serviço à oração”, especialmente à adoração; e “serviço à evangelização”. A respeito do primeiro aspecto, disse:
“O movimento carismático, por sua natureza, dá espaço e destaque à oração, em particular, à oração de louvor, que é muito importante. Em um mundo, dominado pela cultura da posse e da eficiência, e em uma Igreja que, por vezes, se preocupa demais com a organização – estejam atentos a isso! -, devemos dar mais espaço à ação de graças, ao louvor e ao estupor diante da graça de Deus.”
Mas, em seguida, após este primeiro aspecto de serviço à “oração”, Francisco propôs o segundo: o serviço à “evangelização”: “O Espírito Santo, acolhido no coração e na vida, não pode deixar de abrir, mover, fazer sair; o Espírito sempre impele a comunicar o Evangelho, a sair, com a sua imaginação inesgotável. Cabe a nós ser dóceis e colaborar com Ele, sem jamais esquecer que o primeiro anúncio é feito com o nosso testemunho de vida! Do que adianta fazer longas orações e cantar lindas canções se não tivermos paciência com o próximo… A caridade concreta e o serviço no anonimato é sempre a prova do nosso anúncio.”. Um processo que resulte em construir comunhão, antes de tudo exortou o Papa, “entre si, no âmbito do movimento, mas também nas paróquias e dioceses”. Essa construção é desafiadora, convoca a discernir sobre missão e evangelização, mas nos convoca a atenção sobre externalidades que nos confundem porque nos dividem. “Análises de Conjuntura são elefante na sala da CNBB”, é uma matéria de um jornal do Paraná que acaba expondo um espaço de opinião identificado com um modo de comunicar o Evangelho entretanto fechado a uma comunhão entre possibilidades distintas de evangelização, que não sejam só o louvor que vai ao céu para nele projetar a sua visão de mundo. Na matéria, diz o jornalista, que certamente não fala só por si, mas difunde uma vertente, até possivelmente como sugestão ab intra, atribuída a bispos (será?) “que não receberam bem o documento” uma peça “doída de ler”, que “um grupo formado por um bispo, o sacerdote assessor de política da Conferência, vários professores e alguns especialistas” prepara para a Conferência.
“A Análise de Conjuntura não é um documento oficial da CNBB, não representa o pensamento nem da entidade, nem da coletividade dos bispos… gostem ou não os bispos, o fato é que as Análises de Conjuntura ajudam a fomentar a ideia de que a CNBB tem viés político à esquerda, abrindo o flanco para críticas, das sensatas e respeitosas às mais tresloucadas…”.
Tenho a honra e a gratidão de pertencer e de aprender, na sua composição atual, à equipe de Análise de Conjuntura da CNBB. Sim, é um serviço para a CNBB, credenciado por sua direção. Não representa, é certo, a opinião da Conferência. Se credencia, tanto mais, pelo pluralismo confessional e filosófico dos homens e mulheres que a formam, por seu agir, concepção de mundo e de sociedade, firmes na fé e no projeto missionário (Colossenses 1), prevenidos, pois, dos enganos de belos discursos (Colossenses 2: 4). A equipe atual é formada por membros da Conferência, assessores, professores das universidades católicas e por peritos convidados. Participaram da elaboração dos textos: Dom Francisco Lima Soares – Bispo de Carolina (MA), Frei Jorge Luiz Soares da Silva – assessor de relações institucionais e governamentais da CNBB, Pe. Thierry Linard de Guertechin, S.J. (in memoriam), Antonio Carlos A. Lobão – PUC/Campinas, Francisco Botelho – CBJP, Izete Pengo Bagolin – PUC/Rio Grande do Sul, Maria Cecília Pilla – PUC/Paraná, Jackson Teixeira Bittencourt – PUC/Paraná, José Reinaldo F. Martins Filho – PUC/Goiás, Ricardo Ismael – PUC/Rio, Manoel S. Moraes de Almeida – Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP, Marcel Guedes Leite – PUC/São Paulo, Robson Sávio Reis Souza – PUC/Minas, Ima Vieira – REPAM, Tânia Bacelar – UFPE, Maria Lucia Fattorelli – Auditoria Cidadã da Dívida, José Geraldo de Sousa Júnior – UnB e Melillo Dinis do Nascimento – Inteligência Política (IP). O livro Influenciadores Digitais Católicos, a meu ver, contribui para aquele “processo que resulte em construir comunhão ‘entre si, no âmbito do movimento, mas também nas paróquias e dioceses’”, conforme exortou o Papa Francisco em seu encontro com representantes do Movimento Carismático. Buscando melhor compreender sua gênese e estrutura, me socorri da exegese autêntica de Alzirinha. Ela me esclarece que o grupo autoral, na pesquisa, selecionou “cinco objetos de estudo, mas o enfoque todo é uma pesquisa que quer pensar o conjunto, quer pensar o fenômeno, quer pensar os impactos pastorais, sobretudo, a formação das bolhas eclesiais, a formação desse magistério paralelo, que vem se formando pelo mau uso das redes digitais”. A partir do carisma de cada comunicador estudado, com seus vieses, o artista galã que prevalece sobre o padre, o performer que psicologisa o aconselhamento na franja do senso comum, ao largo e a despeito do Evangelho; aquele que se centra no aconselhamento pelo humor em nome da leveza do cristianismo e que mistura o elemento religioso com o elemento político, até com erudição mas com tênue lastro teológico para sustentar a ideologia política que permanece escondida e com ela sobrepondo a sua verdade sobre as interpretações corretas do Evangelho; aquele que em antagonismo não disfarçado a CNBB e ao Papa, que além de tudo por arregimentação, monetiza a sua comunicação; e até quem, nos limites do chão pastoral que pisa, se expressa pelo chamado de uma causa missionária, que abre o coração para a fraternidade e solidariedade com os pobres. Aí está a chave do livro e a sua questão de fundo, diz Alzirinha: “tudo que se fala nas redes sociais é processo de evangelização?”. Eis a questão: “Ser seguido por 25 milhões de pessoas diz o que para a fé católica, diz o que a favor ou contra da igreja, diz o que para o anúncio do Evangelho e da pessoa de Jesus, que afinal de contas é a função primeira da Igreja. Então, as redes sociais hoje, elas são uma terra de missão. Eu considero assim, aí eu vinculo com a minha teologia e vinculo também com a minha área de pesquisa, que é a missiologia”. Sim, nessa perspectiva, o que amplia a tese declinada no livro, leva a que, conforme Alzirinha, “as mídias digitais, elas são um terreno de missão. A questão é, como é que nós encontramos uma linguagem adequada para que as pessoas simplesmente não sigam só isso, mas que as pessoas possam seguir, mas também a partir daí que essa comunicação leve a uma atitude missionária, leve a um aprofundamento doseguimento da pessoa de Jesus e, um engajamento nas pastorais, na Igreja”. No plano republicano, onde se estabelece a cidade dos homens, a comunicação no conceito de transparência ativa, de diálogo com a cidadania e com a sociedade, realiza o direito à informação, como direito do cidadão. É condição inescapável, no plano de qualquer institucionalidade, para a construção de um ambiente mais democrático, participativo e transparente, incluindo tanto o direito de ser informado quanto o direito de informar. Não apenas visando ao sujeito da informação e da comunicação, mas também ao produtor da comunicação e da informação, quando se organize de modo independente, autônomo relativamente à propriedade dos grandes meios e engajado em seus compromissos sociais e democráticos. Esse o argumento que balizou o conjunto de reflexões reunidas em O DIREITO ACHADO NA RUA V.8 – INTRODUÇÃO CRÍTICA AO DIREITO À COMUNICAÇÃO E À INFORMAÇÃO. Organizadores José Geraldo de Sousa Júnior, Murilo César Ramos, Elen Cristina Geraldes, Fernando Oliveira Paulino, Janara Kalline Leal Lopes de Sousa, Helga Martins de Paula, Talita Tatiana Dias Rampin, Vanessa Negrini. – Brasília: FACUnB, edição impressa (ISBN 978-85-9-3078-06-4), 2016, 455p. Edição e-book file:///C:/Users/Jos%C3%A9%20Geraldo/Pictures/faclivros_direitoachadorua8.pdf Imagine-se então, no campo onde se instala a cidade de Deus. O que deve orientar o agir humano nesse plano de transcendência, é o princípio missionário da vida fundada no caminhar orientado pela verdade (João 14:6-7), como condição para crer verdadeiramente (João 11: 25), a comunicação, como mentira, ou como meia verdade, aturde mas ao mesmo tempo expõe a falsidade de quem a propaga ou professa.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
Direitos humanos, dignidade e erradicação da pobreza: uma dimensão hermenêutica para a realização constitucional
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
Direitos humanos, dignidade e erradicação da pobreza: uma dimensão hermenêutica para a realização constitucional / Lúcia Barros Freitas de Alvarenga. Brasília, Brasília Jurídica, 1998, 248 p.
Ao final de 2023, o MDHC – Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania lançou relatório sobre pessoas em situação de rua no Brasil – https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2023/setembro/mdhc-lanca-relatorio-sobre-pessoas-em-situacao-de-rua-no-brasil-estudo-indica-que-1-em-cada-mil-brasileiros-nao-tem-moradia.
O levantamento inclui perfil da população em situação de rua, apontamentos sobre articulação interministerial, uso problemático de drogas como problema de saúde pública, fortalecimento de acesso a emprego e renda e implementação de política habitacional robusta, equitativa e estruturante.
O significativo é que entre as conclusões, o relatório aponta que a articulação interministerial para a construção de políticas públicas para pessoas em situação de rua deverá envolver as pastas do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS); do Trabalho e Emprego (MTE); da Educação (MEC); da Saúde (MS); da Justiça e Segurança Pública (MJSP) e das Cidades (MCID).
Além disso, o documento afirma que é “primordial fortalecer a atuação dos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e outros equipamentos, serviços, programas e projetos de assistência social básica, visando a prevenir situações de vulnerabilidade e risco social e fortalecer vínculos familiares e comunitários; e a atuação dos serviços de proteção especial, como os CREAS e Centros Pop, favorecendo a reconstrução desses vínculos, a defesa de direitos e o enfrentamento das situações de violações”.
Outros pontos de destaque se referem ao fortalecimento do acesso a emprego e renda, direitos básicos como documentação e educação; olhar para o uso prejudicial das drogas como problema de saúde pública, promovendo equipes de Consultório na Rua, dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e outros serviços de atenção à saúde tem grande relevância.
O enfrentamento às condições de indignidade que a pobreza provoca, é hoje um eixo ético que constitui a leitura realizadora dos direitos humanos e da afirmação dos direitos fundamentais, que se tornou, com a Constituição de 1988, um dos princípios estruturantes da sociedade brasileira, sintetizados nos objetivos estabelecidos em seu artigo 3º: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Assim se entende porque se criou na estrutura de governo articulações para a promoção e implementação de políticas públicas para a realização desses objetivos, entre elas um ministério para a atenção aos direitos humanos, a dignidade das pessoas e a cidadania.
A ideia pois, dos direitos humanos, dignidade e erradicação da pobreza, como dimensão hermenêutica para a realização constitucional, era um desafio à concretização da política e dos direitos, especialmente os direitos constitucionais, no contexto de um pensamento elitista e segregador que naturalizava desigualdades e reduzia o jurídico, incluindo o jurídico constitucional, a uma abstração vazia de conteúdo, conduzindo o direito e o direito constitucional a um estiolamento formal hipócrita nas suas promessas, igualmente vazias em sua concretização.
Essa a importância do livro tema deste Lido para Você. Numa conjuntura ainda de exacerbado positivismo, o constitucional, em que pesem as revoluções sociais (mexicana e soviética), que reivindicaram a afirmação dos direitos alimentares (socialistas) e não só dos elementares (liberais), abriram as Constituições modernas para a agenda dos direitos, que até então só tratavam da organização dos poderes e da garantia dos direitos formais (“não será constituição a que não assegure a separação dos poderes e a proteção aos direitos humanos”, conforme a Declaração de 1789).
Há na obra de Lúcia Alvarenga uma nota evidente de antecipação. Colocar na agenda da realização constitucional do Direito a dimensão material da Justiça Social que tem na pobreza o acicate da desigualdade, porque a miséria de muitos e o regozijo de poucos, garantido por um sistema legal que apoia a sua ganância.
Acaba de ser publicado o relatório da Oxfam sobre a desigualdade no mundo (https://www.ihu.unisinos.br/636062-riqueza-dos-cinco-homens-mais-ricos-do-mundo-dobrou-desde-2020-enquanto-a-de-5-bilhoes-de-pessoas-diminuiu-revela-novo-relatorio-da-oxfam): “Os cinco homens mais ricos do mundo mais que dobraram suas fortunas desde 2020 – de US$ 405 bilhões para US$ 869 bilhões -, a uma taxa de US$ 14 milhões por hora, enquanto quase cinco bilhões de pessoas ficaram mais pobres, revela o novo relatório da Oxfam, Desigualdade S.A., lançado nesta segunda-feira (15/1). O relatório, que discute a relação das desigualdades e o poder corporativo global, mostra ainda que se a tendência atual continuar, o mundo terá seu primeiro trilionário em uma década, mas a pobreza não será erradicada nos próximos 229 anos. O relatório Desigualdade S. A., publicado no início do Fórum Econômico Mundial, que reúne a elite do mundo corporativo em Davos, na Suíça, informa que sete das 10 maiores corporações do mundo têm um bilionário como CEO ou principal acionista. Essas empresas valem US$ 10,2 trilhões, mais do que o PIB combinado de todos os países da África e da América Latina”.
O livro “DIREITOS HUMANOS, DIGNIDADE E ERRADICAÇÃO DA POBREZA: UMA DIMENSÃO HERMENÊUTICA PARA A REALIZAÇÃO CONSTITUCIONAL”, Ed. Brasília Jurídica, 1998, 248 pp., de Lúcia Barros Freitas de Alvarenga, é um dos primeiros a tratar desse tema.
Lembrei-me desse livro há poucos dias. Embora tivesse sido o orientador da dissertação de mestrado que lhe deu origem, defendida por Lúcia, na Faculdade de Direito da UnB (1994-1997), eu havia perdido de vista a autora e a obra, logo que Lúcia retornou para o seu Mato Grosso do Sul.
Há poucos dias nos tornamos amigos no facebook e me surpreendi com uma postagem de Lúcia sobre o livro, com o registro de meu comentário sobre a obra lançado na quarta-capa da sua primeira edição (1998).
Retomo, para os objetivos desta recensão, o teor daquele meu comentário. Com efeito, ali eu lembrava, que em ‘Uma dialética da Invenção’, o poeta mato-grossense MANOEL DE BARROS, uma das mais altas expressões da poesia brasileira contemporânea, fala-nos de uma pedagogia de compreensão do mundo que se aproxima da intimidade enquanto dimensão existencial do conhecimento (in: O livro das Ignorãnças).
Não é por acaso, nem por causa do parentesco, que abro este comentário acerca de Lúcia Barros Freitas de Alvarenga e de seu livro “Direitos Humanos, Dignidade e Erradicação da Pobreza: Uma dimensão Hermenêutica para a realização constitucional”, com uma citação poética. Embora esteja convencido de que a literatura não é um delírio, mas uma apropriação do real por meio de outro discurso, a reverência à poesia aqui decorre de um objetivo hermenêutico preciso e exemplar. É que ela remete a um perfil novo de jurista, cujo desempenho atual emerge das crises da década que abriram o questionamento acerca da função social e da cultura legalista de sua formação, para constituir um intérprete e realizador do Direito que deve, tal como mostra Martha Nussbaum (Justicia Poética: La Imaginación Literaria y la Vida Pública), não só “refinar suas aptidões técnicas, mas sua capacidade humana”.
Este é o perfil de Lúcia Alvarenga, desenhado com as cores da sensibilidade e da reflexão, no importante trabalho que a autora mato-grossense desenvolveu em seus estudos avançados no seu Mestrado na Faculdade de Direito da UnB. A inserção do trabalho no roteiro da hermenêutica constitucional é objeto do prefácio de Inocêncio Mártires Coelho. De minha parte, o que desejo pôr em relevo é esta dimensão nova tão presente no livro de Lúcia e que faz dele um apelo à ampliação das possibilidades de compreensão e de explicação dos problemas fundamentais do Direito Constitucional. Com efeito, em seu livro, Lúcia porta, como recomenda o constitucionalista português J.J. Gomes Canotilho, esta espécie de “olhar vigilante das exigências do ‘direito justo’ e amparadas num sistema de domínio político-democrático materialmente legitimado”.
Para Lúcia, os direitos fundamentais colocados no cerne da realização constitucional, são a expressão desse exigência e pressupõem a experiência de sujeitos capazes de agir e de refletir sobre sua ação e sobre a validade ética de seu agir, num aprendizado constante. Assim é o livro de Lúcia Alvarenga, forte no recuperar o impulso dialógico e crítico, nutrido em outros modos de conhecer e compreender as normas jurídicas; escapa, desse modo (é ainda Canotilho quem o diz), de restar definitivamente prisioneiro da aridez formal e do conformismo político do velho e dogmático Direito Constitucional”.
A realidade brasileira ainda enfrenta graves e sérios problemas relativos aos direitos sociais, essencialmente ligados à miséria e à fome, o que deixa evidente que dois dos princípios fundamentais elencados pela Constituição Federal – a Dignidade da Pessoa Humana e a Erradicação da Pobreza – não foram efetivamente concretizados. Se realizar a Constituição requer que se tornem juridicamente eficazes as normas constitucionais, é correto afirmar que a Constituição Federal encontra-se prenhe de realização, mas não realizada. Para que ela se realize, portanto, é necessário que as políticas públicas voltadas para os direitos sociais sejam implementadas e que, através de uma hermenêutica dos magistrados e da função transformadora dos operadores do Direito, se dê efetividade aos princípios basilares por ela elencados. Afinal, erradicar a pobreza significa outorgar ao indivíduo a capacidade de conscientização e de hermenêutica, mas, sobretudo, é um processo de resgate à dignidade possível, à cidadania plena, ao direito a ter direitos.
Membro da banca e autor da Apresentação da obra, o professor e constitucionalista e ex-Procurador-Geral da República, não hesita em afiançar: “Sobre o estudo de Lúcia Alvarenga, de boa qualidade em toda a sua extensão, desde logo merece louvor o capítulo Hermenêutica e Hermenêutica Constitucional, no qual ela demonstra segurança no trato da matéria e no manejo bibliográfico, fatores que lhe permitiram expor suas ideias com clareza e precisão… Essencialmente, ela conseguiu evidenciar, no onto, e com integral pertinência, que o chamado ativismo judicial tem base de sustentação, digamos, endógena, que está centrada na atividade hermenêutica dos magistrados, assim como energia propulsora, chamemos, exógena, que se estrai da atuação dos operadores do direito comprometidos com a realização constitucional, uns e outros acicatados pela realidade social, que lhes exige participação e engajamento para a construção da cidadania”.
Curiosamente, sustentada de modo muito orgânico, no sentido intelectual e político do termo, ela tem nuances que a presentem, embora por distintas razões. Em IL DIRITTO DI AVERE DIRITTI, di minima&moralia pubblicato giovedì, 10 Ottobre 2013 • 3 Commenti (https://www.minimaetmoralia.it/wp/estratti/stefano-rodota-il-diritto-di-avere-diritti/), notável jurista (e político recém-falecido) Stefano Rodotà, nos fala sobre “a necessidade inegável de direitos e de direito manifesta-se em todo o lado, desafia todas as formas de repressão e inerva a própria política. E assim, com a ação quotidiana, diferentes sujeitos encenam uma declaração ininterrupta de direitos, que tira a sua força não de alguma formalização ou reconhecimento de cima, mas da profunda convicção de mulheres e homens de que só assim podem encontrar reconhecimento e respeito pelos seus dignidade e pela sua própria humanidade. Estamos perante uma ligação sem precedentes entre a abstração dos direitos e a concretude das necessidades, que põe sujeitos reais a trabalhar”.
Para ele, certamente, “não os ‘sujeitos históricos’ da grande transformação moderna, a burguesia e a classe trabalhadora, mas uma pluralidade de sujeitos agora ligados entre si por redes planetárias. Não um “intelecto geral”, nem uma multidão indeterminada, mas uma multiplicidade laboriosa de mulheres e homens que encontram, e sobretudo criam, oportunidades políticas para evitar ceder à passividade e à subordinação”.
Mas, realmente, numa aferição que me surpreende porque ativa uma categoria metafórica com a qual instalamos toda uma linha de pesquisa (O Direito Achado na Rua, cf. Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq), ele prossegue: “Todos estes sujeitos ignoram o que, no final do século XVIII, começou em torno das duas margens do “Lago Atlântico”, não são dominados por alguma ‘tirania de valores’, mas interpretam, cada um à sua maneira, a liberdade e os direitos ao longo do tempo que vivemos. Aqui não é a ‘razão ocidental’ em ação, mas algo mais profundo, que tem as suas raízes na condição humana. Uma condição histórica, porém, não uma natureza da qual se possa extrair a essência dos direitos. Por que, de fato, só agora tantos condenados da terra os reconhecem, invocam, desafiam? Por que são eles os protagonistas, os adivinhos de um ‘direito achado da rua’? (‘diritto trovato per strada’)”.
Eis aí uma perspectiva que se insere no que temos chamado de constitucionalismo achado na rua. Com essas referências, alcança-se o patamar que, juntamente com Antonio Escrivão Filho (ESCRIVÃO FILHO, Antonio; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Para um Debate Teórico-Conceitual e Políticos sobre os Direitos Humanos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016), especialmente no Capítulo V – América Latina, desenvolvimento e um Novo Constitucionalismo Achado na Rua, páginas 123-150), enunciamos, vale dizer, que o Constitucionalismo Achado na Rua (a propósito: https://pt.wikipedia.org/wiki/Constitucionalismo_achado_na_rua; e, no prelo: SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al – orgs – Constitucionalismo Achado na Rua: uma contribuição à Teoria Crítica do Direito e dos Direitos Humanos Constitucionais. Coleção Direito Vivo vol. 8. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2024), vem aliar-se à Teoria Constitucional que percorre o caminho de retorno a sua função social. Uma espécie de devolução conceitual para a sociedade, da função constitucional de atribuir o sentido político do Direito, através do reconhecimento teórico-conceitual da luta social como expressão cotidiana da soberania popular. Um reencontro entre a Teoria Constitucional, e o Direito compreendido como a enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade (p. 149).
Voltar a Lúcia é prestar um tributo. Seu livro, publicado por uma pequena e comprometida editora de Brasília que não sobreviveu à arrogância do mercado editorial, está confinando hoje aos sebos e bibliotecas particulares. Aponto, assim, para esses maravilhosos repositórios que nos preservam preciosidades.
Eu próprio havia negligenciado essa fonte. Tivesse Lúcia feito um pouco antes sua postagem no facebook, eu lhe teria consignado a justiça de incluir sua obra no artigo que ofereci ao livro celebratório A constituição da democracia em seus 35 anos / (Orgs) Luiz Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Álvaro Ricardo de Souza Cruz. Belo Horizonte: Fórum, 2023, 656 p.
Com efeito, conforme – https://estadodedireito.com.br/a-constituicao-da-democracia-em-seus-35-anos/ – tive em mente, ao produzir o texto, tratar-se de um debate público atual sobre importantes questões sociais, econômicas e políticas em tempos de dissolução de direitos, que há três décadas foram garantidos pela aprovação da Constituição Brasileira. E fica a reflexão, animada pelo ensaio de Lúcia Alvarenga, de qual papel estratégico e político devem os movimentos sociais assumir neste projeto ainda em construção para romper o atraso neocolonialista do País. De minha parte, ele é uma continuidade da avaliação que fiz, em evento semelhante, a propósito de celebrar os 30 anos da mesma Constituição, ocasião em que focalizei minha leitura, com uma perspectiva interpelante, inscrita na indagação: Constituição 30 anos: Uma Promessa Vazia?
Proteção popular em direitos humanos: Sentidos, limites e potencialidades
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
Paulo César Carbonari. Proteção popular em direitos humanos : Sentidos, limites e potencialidades [recurso eletrônico]/ Paulo César Carbonari. – Passo Fundo: Saluz, 2023. 271 p. ; 1,8 MB; PDF. Editado também como livro impresso em 2023.
A proposta da proteção popular em direitos humanos está em construção como prática própria das organizações que atuam em direitos humanos há muito. Ela também está em construção como proposta teórica, contando com vários exercícios de sistematização. Este livro é um deles. Nasce nos movimentos e organizações populares de direitos humanos, os mais diversos, dos que concentram sua atuação nos territórios locais aos que incidem em espaços nacionais e internacionais. Nutre-se das experiências, dos saberes de experiência feitos, dos debates e embates ali realizados. Este livro oferece subsídios aos militantes e engajados que se empenham na construção coletiva. Essa é a descrição do livro na página da Editora.
A obra foi editada no contexto do projeto sementes de proteção, uma iniciativa conjunta para o desenvolvimento de ações que tem por finalidade o fortalecimento das organizações da sociedade civil que tem atuação em direitos humanos nos territórios. Ações de formação, de comunicação, de organização, de mobilização e de incidência se somarão ao desenvolvimento de ações de proteção popular de militantes e coletivos dos quais são parte.
Esse projeto, dos mais consistentes desenvolvidos em articulação da sociedade civil, tem por objetivos: contribuir com o apoio a defensores/as dos direitos humanos e as organizações da sociedade civil que atuam em questões associadas a violações dos direitos humanos e ataques contra liberdades fundamentais no Brasil; fortalecer as capacidades de defesa, promoção e proteção dos direitos dos/as defensores/as de direitos humanos de movimentos sociais e organizações da sociedade civil em 21 Estados das cinco regiões brasileiras.
Junto com o livro, que me foi entregue pessoalmente por Paulo César, com uma fraterna dedicatória, o autor me brindou, cadernos da Série Proteção Popular, subsídios do Projeto Sementes de Proteção – Projeto Defendendo Vidas, um material pedagógico no melhor fundamento freireano de educação popular (educação em e para os direitos humanos). Material, aliás, compartilhável, conforme se pode ter acesso pelo endereço: https://sementesdeprotecao.org.br/subsidios-para-analise-desafios-a-protecao-popular-de-defensores-e-defensoras-de-direitos-humanos/.
Conheço e convivo com Carbonari a décadas. Notadamente nos espaços de interlocução do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH) do qual é um dos fundadores e ao tempo em que exerceu docência a Direção Pedagógica do Instituto Berthier (IFIBE), Passo Fundo, RS. Também no Rio Grande do Sul, nos eventos do Conselho Estadual de Direitos Humanos, especialmente quando o coordenou.
Basta uma mirada nas informações do seu Lattes para aferir suas credenciais: “Graduado em Filosofia no Instituto Berthier (IFIBE) com reconhecimento pela Universidade de Passo Fundo (1993). Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Goiás (2000). Doutor em Filosofia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) (2015). Foi professor e Diretor Pedagógico do Instituto Berthier (IFIBE), Passo Fundo, RS. Professor convidado em cursos de Especialização em Direitos Humanos na Unocapeco, UCS, PUCRS e Unisinos, além de convidado para cursos e atividades a UFRGS, UPF, URI, UFFS e outras instituições. Membro da Coordenação Nacional do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), da coordenação da Rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos (ReBEDH), da Associação Brasileira de Direitos Humanos, Pesquisa e Pos-Graduação (ANDhEP), educador social na Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH) e do Centro de Educação e Assessoramento Popular (CEAP). Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em Ética e Filosofia Política. Autor de artigos, livros e capítulos de livros em vários temas de filosofia, ética e direitos humanos. Atua principalmente nos seguintes temas: responsabilidade ética, direitos humanos, organização social, participação popular”.
Vou ao livro, com Apresentação, a cargo do Autor e Prefácio assinado pela caríssima Joisiane Sanches Gamba, da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH), o seu conteúdo forma o seguinte sumário:
Parte I
Proteção em direitos humanos: ensaio para sugerir uma proposta libertadora e militante
Defensores/as populares de direitos humanos: agentes e sujeitos da proteção popular
A condição humana na proteção popular: ensaios para subsidiar práticas protetivas
Parte II
Espiritualidade e proteção popular: abordagem sobre sensibilidade e mística
Empotenciamento para a proteção popular: prática fundamental para o fortalecimento popular
A dialogicidade na proteção popular: ensaio sobre limites e possibilidades em Paulo Freire
Parte III
Campos práticos de ação da proteção popular: reflexões para seguir em construção
Atuação em direitos humanos: ensaiando pistas para orientar práticas em direitos humanos
Dinâmica de ação na proteção popular: subsídios para atuação
Operacionalização da proteção popular: reflexões para orientar a prática de defensores/as de direitos humanos
Parte IV
Pedagogia da proteção: contra a “pedagogia da crueldade”
Pedagogia da proteção e educação em direitos humanos: bases éticas para uma proposta ecológica e popular
Pedagogia da proteção e educação popular em direitos humanos: bases freirianas para a ação educativa na proteção popular
Parte V
Proteção como prática coletiva: considerações gerais para colaborar ao debate
Proteção “três porquinhos”: uma reflexão inspirada no conto infantil
Proteção popular samaritana: um exercício de serviço ao “próximo”
Proteger quem cuida: o cuidado dos/as cuidadores/as
Bruno e Dom: presente, agora e sempre!
O próprio Autor expõe, na Apresentação os fundamentos, os enunciados e o modo de leitura da obra:
Os ensaios aqui recolhidos são fruto das reflexões feitas a caminho, na atuação; por isso, carregam as marcas da intensidade dos momentos, as características próprias da reflexão em ação, as insuficiências e as potencialidades destes processos. Têm o objetivo de subsidiar outras reflexões e ações, alimentar debates e, sobretudo, inspirar sua ampliação e superação crítica e criativa.
A proposta da proteção popular em direitos humanos está em construção com a prática própria das organizações que atuam em direitos humanos há muito. Ela também está em construção como proposta teórica, contando com vários exercícios de sistematização. Este é um deles. Nasce nos movimentos e organizações populares de direitos humanos, os mais diversos, dos que concentram sua atuação nos territórios locais aos que incidem em espaços nacionais e internacionais. Nutre-se das experiências, dos saberes de experiência feitos, dos debates e embates neles realizados. Ali encontra subsídios militantes e engajados que se oferecem à construção coletiva.
As elaborações aproveitam trabalhos feitos em outros momentos e construções novas; todas, porém, trabalhadas no enfoque e na busca dos sentidos, dos limites e das potencialidades da proteção popular. Sentidos porque interessa menos uma definição e mais uma construção processual performativa que se dá na práxis.
Limites porque é fundamental conhecer as situações que ainda precisam de qualificação e aprofundamento. Potencialidades para, sabendo do que de melhor se acumulou, dar passos a fim de que as práticas sejam encorajadas e fortalecidas.
Os textos podem ser lidos em sequência ou em separado, um a um. Por vezes, com temas retomados; em outras, recolocados; noutras, complementados. Estão organizados em grupos que compõem as partes da obra. São cinco partes. A primeira reúne textos que se ocupam particularmente dos sentidos da proteção popular. A segunda apresenta temas de aprofundamento da proteção popular.
A terceira trata de aspectos práticos, talvez até procedimentais para a efetivação da proteção popular. A quarta trata da pedagogia da proteção, aprofundando os aspectos educativos da ação protetiva popular. A quinta apresenta alguns temas ilustrativos e de aplicação da proposta protetiva popular.Os textos da primeira parte são três: Proteção em direitos humanos: ensaio para sugerir uma proposta libertadora e militante; Defensores/as populares de direitos humanos: agentes e sujeitos/as da proteção popular; A condição humana na proteção popular: ensaios para subsidiar práticas protetiva. Os textos tratam de desenhar um esboço de uma proposta de proteção em direitos humanos, de perfil dos/as sujeitos/as da proteção e enfoques de abordagem da condição humana para subsidiar práticas de proteção popular.
Os textos da segunda parte são três: Espiritualidade e proteção popular: abordagem sobre sensibilidade e mística; Empotenciamento para a proteção popular: prática fundamental para o fortalecimento popular; A dialogicidade na proteção popular: ensaio sobre limites e possibilidades em Paulo Freire. Os ensaios abordam três questões de fundo para a proteção popular, elementos determinantes para a qualificação da atuação protetiva.
Os textos da terceira parte são três: Campos práticos de ação da proteção popular: reflexões para seguir em construção; Atuação em direitos humanos: ensaiando pistas para a orientar práticas em direitos humanos; Dinâmica de ação na proteção popular: subsídios para atuação. Os textos estão dedicados à orientação prática da atuação protetiva popular e abordam os campos, uma concepção de atuação em direitos humanos e a dinâmica da ação protetiva.
Os textos da quarta parte são três: Pedagogia da proteção: contra a “pedagogia da crueldade”; Pedagogia da proteção e educação em direitos humanos: bases éticas para uma proposta ecológica e popular; Pedagogia da proteção e Educação Popular em direitos humanos: bases freirianas para a ação educativa na proteção popular. Os ensaios desenvolvem os sentidos da pedagogia da proteção, considerando aspectos diversos a serem tomados em conta nas práticas protetivas.
Os textos da quinta parte são cinco: Proteção como prática coletiva: considerações gerais para colaborar no debate; Proteção “três porquinhos”: uma reflexão inspirada no conto infantil; Proteção popular samaritana: um exercício de serviço ao “próximo”; Proteger quem cuida: o cuidado dos/as cuidadores/as e Bruno e Dom: presentes agora e sempre! Os ensaios aqui reunidos são mais sintéticos e agregam subsídios que dão plasticidade à proposta de proteção popular.
Estas contribuições estão disponíveis à crítica. Espera-se que alimentem o debate e os diálogos sobre a proteção popular em direitos humanos. Espera-se, igualmente, receber contribuições para seu aprimoramento; e, mais do que para isso, para o aperfeiçoamento da própria prática protetiva popular.
Operar é uma construção que se faz em processo e como dinâmica permanente. Temos ciência que, ao dizer uma palavra autêntica sobre o tema, também estamos, de alguma forma, em ação, alimentando a práxis.
Agradecimento a todas as organizações, movimentos, instituições, lutas e processos que nos permitiram aprender e a seguir aprendendo. Obrigado a cada uma e cada um que nos ajudou nesta empreitada que é não mais do que a expressão de uma tarefa cumprida, de um serviço feito à “causa” da dignidade humana.
O prefácio, conforme mencionei antes, é assinado pela caríssima Joisiane Sanches Gamba, da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH). Diz ela:
A oportunidade de apresentar um livro sobre Proteção Popular e desenvolvido por Carbonari é um convite para revisitar como tudo começou há cerca de 13 anos, quando, desafiada a assumir, através da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH), a coordenação do Programa Federal de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas, resolvi buscar apoio no Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH) para imprimirmos a marca dos direitos humanos na política pública de proteção. Desafio aceito, o processo foi desencadeado. Esse livro é a sistematização de uma prática de resistência, de ansiedade e de dor. Ultrapassamos o limite da política pública, voltamos no tempo, bebemos nas histórias de luta, revisitamos a proteção vivenciada em períodos onde muitos foram presos, torturados e mortos pelo simples fato de pensar diferente dos que estavam no poder, mas que também registrou muitas vidas salvas devido a estratégias de autoproteção, proteção recíproca e solidária, que este livro chama de proteção popular.
A sistematização desse conhecimento acumulado é construída por muitas mãos. Em si já seria um desafio, mas o autor foi além, imergiu na experiência coordenando um projeto nacional de proteção popular, o Sementes. É sobre essa experiência vivenciada por muitos e muitas que Carbonari escreve, de forma intensa. O livro se baseia em um processo que vai além das pesquisas bibliográficas, bebe na fonte, faz uma análise das experiências e aponta luzes para seu aperfeiçoamento.
A obra é atualíssima, se justifica pelo momento do Brasil, onde o ódio, a intolerância e a violência se sentiram autorizadas a agredir os direitos conquistados e aos que lutam pela garantia desses direitos. É um olhar na/da resistência e nas/das formas como os/as resistentes se protegem e protegem todos/as os/as envolvidos/as e a luta.
Nem preciso dar ênfase à urgência e à oportunidade do trabalho exposto a partir do livro. Em minha coluna O Direito Achado na Rua, publicada regularmente no Jornal Brasil Popular – https://www.brasilpopular.com/25a-hora-genocidio-declarado-agir-ou-omitir-se/ – faço referência à recente visita ao Brasil da subsecretária-geral das Nações Unidas e Assessora Especial para Prevenção do Genocídio Alice WairimuNderitu. Ainda que o escopo da visita de monitoramento derive de um mandato que objetiva coletar informações sobre graves violações de direitos humanos contra grupos étnicos e raciais discriminados que, se não forem evitadas ou interrompidas, podem levar a crimes de atrocidade (genocídio, crimes contra humanidade, crimes de guerra ou limpeza étnica), uma declaração importante feita pela Comissária em seu relatório, diga respeito a uma preocupação ativada pela constatação de reais ameaças a defensores de direitos humanos.
Retiro de declaração da subsecretária-geral, a ênfase a esse indicador crítico: “O discurso de ódio pode levar a discriminação, ódio, violência e, em seu extremo, crimes de atrocidade e deve ser abordado em alinhamento aos direitos humanos internacionais. Isso vale especialmente para o discurso de ódio dirigido contra os grupos protegidos que mencionei e outras populações em risco, por exemplo, defensores dos direitos humanos, líderes comunitários, mulheres, entre outros. Meu Escritório está pronto para fornecer apoio técnico ao governo, equipe nacional da ONU e outros atores relevantes no Brasil nesta área”.
Essa indicação, grave, reforça a importância do Projeto Sementes de Proteção, e do livro ora Lido para Você. E essa importância se destaca no excerto do prefácio de Josiane: “Esse livro é a sistematização de uma prática de resistência, de ansiedade e de dor. Ultrapassamos o limite da política pública, voltamos no tempo, bebemos nas histórias de luta, revisitamos a proteção vivenciada em períodos onde muitos foram presos, torturados e mortos pelo simples fato de pensar diferente dos que estavam no poder, mas que também registrou muitas vidas salvas devido a estratégias de autoproteção, proteção recíproca e solidária, que este livro chama de proteção popular”.
O livro vem fortalecer uma vertente crítica necessária de estudos e subsídios nesse tema. A exemplo do Guia prático de proteção à violência política para defensoras e defensores de direitos humanos / Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos. — 1. ed. — Rio de Janeiro: Artigo 19. Justiça Global e Terra de Direitos: 2022. 55 p. Acesse o Guia em https://comiteddh.org.br/, uma realização Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos. Organização da publicação Agnes Karoline de Farias Castro, Alane Luzia da Silva, Amara Hurtado, Anna Carolina Murata Galeb, Antonio Francisco de Lima Neto, Guacira Cesar de Oliveira, Maria Tranjan S. do Prado, Luciana Pivato e Tatiana Lima. Co-realização Artigo 19, Cfemea; Justiça Global e Terra de Direitos. Redação e Edição Textual Antonio Escrivão Filho. Consulte-se sobre esse trabalho a minha recensão em https://estadodedireito.com.br/guia-pratico-de-protecao-a-violencia-politica-para-defensoras-e-defensores-de-direitos-humanos/.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
Lido para Você: Espelho D’água E Visibilidade: A Prática Dos Direitos Humanos Em Um Contexto De Desordem.
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
Espelho D’água E Visibilidade: A Prática Dos Direitos Humanos Em Um Contexto De Desordem. Pensilvania Silva Neves. São Paulo: LTr Editora; 1ª edição, 2009, 176 páginas.
Abro o livro na página11. Logo um anúncio – Manto (mãos e textos), e a chamada para versos (Por mim. Pérola Negra: Cubro-me em véus de palavras, cascatas de letras que rondam o ar, caem levemente em fios coloridos de vozes, de mantos, de mãos, de textos…).
A página me é referida – mestre do diálogo – e uma anotação que remete a meu primeiro comentário sobre o livro de Pensilvania (irmã de Georgia e de Virgínia), quando me trouxe a dissertação que oriente exposta sob a forma do livro que a LTr editou:
Se quiser, ela pode ser escritora. Tem a matéria-prima e o talento para essa vocação. Ainda que o seu trabalho seja jurídico, ele se expressa no diálogo com outros modos de conhecer.
Trata-se de um trabalho de teoria geral do direito. Esse diálogo entre a linguagem precisa do jurídico e a expressão aberta do discurso literário é o que permite a mediação entre a razão e a sensibilidade.
Se a literatura não é um delírio, mas a apropriação do real por meio de um outro discurso, a linguagem do direito não é um limite, mas um esforço para estressar-se como vocação para a liberdade.
Essa é a riqueza do trabalho de Pensilvania, combinar esses dois modos de expressão: ser jurista, mas de modo sensível; ser escritora, mas com compromisso emancipatório.
Releio o livro (e nessa disposição não computo as leituras e releituras da dissertação) de Pensilvania em seguida à publicação na Coluna Lido para Você, da tese de Liliane Reis Marcon, professora e baiana como Pensilvania: https://estadodedireito.com.br/narrativas-literarias-desconstituintes/ – Narrativas literárias (des)constituintes. Tese de Doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em Direito. Brasília: UnB/Faculdade de Direito, 2023, 180 fls.
A tese de Liliane trata de O Constitucionalismo latino-americano percorreu caminhos descontínuos e tracejos coloniais, que oscilaram entre a instituição da linguagem de poder e o silenciamento. Devido à consolidação das democracias, entre o final do século XX e o início do século XXI, certo tensionamento passa a pressionar a sua lógica fundante, de limites ao arbítrio do poder e de legitimidade do poder constituinte. As minorias e os grupos vulneráveis, desapossados do poder e discurso jurídico, social e político dominantes, tornam-se questionadores da vontade hegemônica que, sob os auspícios da legitimidade, não deve comprometer as diferenças radicais e o pluralismo próprio das democracias. Assumindo esses pressupostos e com base nos aportes da Teoria Narrativista do Direito, da Filosofia da Linguagem e do Constitucionalismo Achado na Rua, investigo se as narrativas literárias insurgentes no final do último século, na América-latina, têm o condão de fornecer elementos denunciantes, críticos e reveladores de modo de existir e resistir que importem ao Constitucionalismo, fenômeno que ultrapassa os textos normativos constitucionais e se fortalece na Rua. Para tanto, articulo obras literárias e escritos de Daniel Mundukuru, Julie Dorrico e Férrez, entendidos, nessa pesquisa, como hipóteses reflexivas e privilegiadas de investigação”.
Sobre a tessse de Liliane, gosto de pensar e de constatar que ela valorizou essas vertentes, valendo-se inclusive de minhas referência em Lido para Você: Direito, Cinema e Literatura. E o fez para amarrar epistemologicamente os enunciados literários que escolheu como eixo narrativo para designar uma emancipação que humaniza, tomando a metáfora da rua, tal como assenta em sua conclusão nº 32, segundo o que, a rua, “é o ponto de chegada nesta pesquisa, pelas articulações propostas com o Constitucionalismo Achado na Rua, contribuições voltadas às associações dos desenvolvimentos das suas bases epistemológicas e da Literatura, e, igualmente, como referencial teórico possibilitador dos diálogos acadêmicos e institucionais, a partir daqui”.
Trata-se, ela diz, de compreender, e com isso fecho a resenha, que “o tempo da Literatura atravessa o Direito para fortalecer o Constitucionalismo Achado na Rua, visto ser um processo vinculado aos movimentos históricos. A Literatura foi o instrumento do possível para que os muitos contos, histórias e versos indígenas chegassem aos mais diversos leitores; para que muitos poemas e romances atravessassem os morros e favelas, rompendo a marginalidade. As organizações dos movimentos, que agregaram pessoas com objetivos comuns tornam mais claras as questões e aflições que unem aqueles que escrevem às margens”.
Também Pensilvania trilha esse caminho, no qual, ela diz, topografando a rua para nessa espacialidade (pensando em Milton Santos e a sua noção de espaços de cidadania, enquanto compreendem territórios como lugares em disputa na construção de sociabilidades quando se envolve relações humanas e suas produções materiais, formando uma geografia cidadã e ativa): “Reflexo e visibilidade capinam a diferença do cenário da igualdade excludente. Cegueira muda que entorna na discussão acerca da efetividade dos direitos humanos e do descompasso entre o mundo e o silêncio, a fala e o lugar: redução estrutural. O papel do direito problematizando o ser sendo narrativo com o outro diálogo, na Rua. A prática dos direitos humanos em um contexto de desordem”.
Eis que, nessa topografia, dá-se o que para a Autora é Esconde-Esconde: Mas Fala, Mal Ouve, Mal Vê, título do capítulo 3, de seu livro, e modo de aferir “a efetividade dos direitos humanos [que] narra uma perspectiva que contempla, a partir do reconhecimento dos seus devires, a sua dimensão pedagógica”, pois, “narrar, pedagogicamente, os direitos humanos se traduz na intenção da diferença com a visibilidade – dela decorrente – com o outro; com a positividade do conflito e com o diálogo inseridos no espaço vazio das lutas sociais mediadas por tais direitos”.
Então, com aquelas palavras soltas á guisa de apresentação, o querido colega e amigo Carlos Alberto Reis de Paula, o sensível ministro do TST, benemérito do América de Minas Gerais, natural de Pedro Leopoldo, de onde veio também seu contemporâneo e pasmem também ministro do TST, nosso querido amigo comum José Luciano de Castilho Pereira (tive a alegria de ter podido contribuir com um texto Novas sociabilidades, novos conflitos, novos direitos, para o livro organizado por Cristiano Paixão, Douglas Alencar Rodrigue e Roberto de Figueiredo Caldas – Os Novos Horizontes do Direito do Trabalho. Homenagem ao Ministro José Luciano de Castilho Pereira. São Paulo: Editora LTr, 2005), diz de encantamento, com o ler, e reler a dissertação e de novamente lê-la em sua forma livro, e poder re-encontrar “as ideias que transmite [e] têm vida. Mexem conosco. E as palavras também são vivas. Criam uma teia que nos envolve e, ao nos envolver, nos libertam. O jogo da forma e do fundo. Tudo com muita liberdade e espírito libertário”, enquanto mostram “direitos humanos que vêm sendo usados como reprodutores da ordem que domina, ao passo que o seu núcleo gerador é a liberdade”.
Assim que para Pensilvania, “esses elementos combinados demonstram a dinamicidade que caracteriza a complexidade social e as diversas nuances dentro de um contexto que destaca a construção de direitos em relação. Construção que não se remete, apenas, à criação de novos direitos, mas, sobretudo, è indicativa da sua materialidade vivida em seus devires, em narração, no caminho da outridade, da rua”. Ao fim e ao cabo, Direitos Achados na Rua.
Em Poucas Palavras a autora resume o seu trabalho: “A formalização dos direitos humanos não é garantia para a sua efetivação. Ao contrário, observa-se a tutelar exclusão social no âmbito do estado democrático de direito. A compreensão da extensão e do alcance da temática que envolve a efetividade de direitos ultrapassa os limites de uma concepção normativa e antidialógica para fincar suas expectativas na aprendizagem, ou seja, considerando a possibilidade pedagógica dos direitos humanos e do direito. Movendo-se de um discurso verticalizado para a existência compartilhada…Trato, portanto, de uma outra dimensão jurídica dos direitos humanos – não normativa -, da sua perspectiva simbólica considerando as possibilidades pedagógicas que possam ser construídas com eles”.
Talvez tenha sido essa a perspectiva que definiu os termos da relação de orientação. Eu ainda não havia, com Antonio Escrivão Filho, publicado Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos (Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos. Antonio Escrivão Filho e José Geraldo de Sousa Junior. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016).
Neste livro, aproveitamos uma reflexão por nós acumulada numa sequência de cursos e escritos que realizamos em conjunto em diferentes espaços e auditórios, construindo uma rica interlocução à base de algumas singularidades.
De um lado, recusar a abordagem linear segundo a qual os direitos humanos se manifestam por etapas, como se fossem um suceder de gerações, em espiral evolutiva, de cujo evolver naturalizado derivassem os direitos individuais, civis e políticos, seguidos dos direitos econômicos, sociais e culturais. Em vez disso, buscar conferir os processos ou as dimensões, designadas num cotidiano de afirmação e de reconhecimento, do qual emergem de modo indivisível, interdependente e integralizados os direitos humanos, manifestados ontologicamente na realidade instituinte e deontologicamente, abrigados num plano de garantias institucionalizado.
De outra parte, rastrear a emergência dos direitos humanos como projeto de sociedade. Vale dizer, na consideração de que não se realizam enquanto expectativas de indivíduos, senão em perspectiva de coletividade, como tarefa cuja concretização se dá em ação de conjunto.
Assim sendo, partimos do debate conceitual dos direitos humanos, para esboçar o panorama do cenário internacional e de sua emergência histórica, no mundo e no Brasil. Para, desse modo, articular o seu percurso no contexto da conquista da democracia, assim designada enquanto protagonismo de movimentos sociais, ao mesmo tempo sujeitos de afirmação e de aquisição dos direitos humanos. Em relevo, pois, a historicidade latino-americana para acentuar a singularidade da questão pós-colonial forte na caracterização de um modo de desenvolvimento que abra ensejo para um constitucionalismo “Achado na Rua”. Problematiza-se, em conseqüência, os modos de conhecer e de realizar os direitos humanos, em razão das lutas para o seu reconhecimento, a partir das quais se constituem como núcleo da expansão política da justiça e condição de legitimação das formas de articulação do poder e de distribuição equitativa dos bens e valores socialmente produzidos”.Em suma, compreender os direitos humanos dentro de “um programa que dá conteúdo ao protagonismo humanista, conquanto orienta projetos de vida e percursos emancipatórios que levam à formulação de projetos de sociedade para instaurar espaços recriados pelas lutas sociais pela dignidade”.
Em todo caso, de modo compartilhado com Pensilvânia e outros estudantes, algo desse posicionamento já pudera ter sido antecipado em nossas rodas pedagógicas de conversas, por exemplo, em Educando para os Direitos Humanos: pautas pedagógicas para a cidadania na universidade. José Geraldo de Sousa Junior, Nair Heloisa Bicalho de Sousa, Alayde Avelar Freire Sant’Anna, José Eduardo Elias Romão, Marilson dos Santos Santana, Sara da Nova Quadros Côrtes (organizadores). Porto Alegre: Síntese, 2004,
Também, para melhor referência, remeto a https://estadodedireito.com.br/educando-para-os-direitos-humanos/. Identificar então, uma exigência dialética de validação simultaneamente política e filosófica contida numa afirmação de princípio e na constatação de que “a história das declarações de direitos humanos não é a história de ideias filosóficas, de valores morais universais ou das instituições. É sim, a história das lutas sociais, do confronto de interesses contraditórios. É o ensaio de positivação da liberdade conscientizada e conquistada no processo de criação duma sociedade em que cessem a exploração e opressão do homem pelo homem”.
Uma satisfação e um bom augúrio encontrar, no livro, ocupando as suas duas “orelhas”, o contundente comentário de minha colega, a professora Loussia Mousse Felix: “A obra demonstra a capacidade da autora de refletir sobre direitos humanos a partir do lugar em que, todos desejamos (…) no lugar das relações pedagógicas, em que somos simultaneamente aprendizes e mestres; em que modelos de formação centrados no docente, no professor ou instrutor devem se integrar a novas propostas que acolham tanto dimensões de autoridade acadêmica quanto perspectivas de reconstrução, tanto de conteúdos quanto de metodologias”.
Retirei essa passagem abonadora do comentário. Mas gostaria de repô-la em seu contexto, referido a modelos de formação centradosno docente, no professor ou instrutor e não só no excerto, pois, como ela sustenta, devem se integrar a novas propostas:”Essa reconstrução não prescinde da ação discente. E Pensilvania, fiel a suas convicções teóricas e metodológicas, não se inibe em nos trazer suas escolhas narrativas centradas em uma mescla de considerações teóricas e linguagem poética”.
Para concluir:
Estamos em tempos de afirmação de nossa igualdade pela garantia de que nossas diferenças sejam acolhidas e mesmo protegidas da homogeneização perniciosa dos valores, discursos e expectativas. E Pensilvania, nesse sentido, foi generosa em nos alertar que a linguagem, quando tradutora de conteúdos pertinentes, como é o caso de seu livro, deve também incorporar e expressar imaginação e subjetividade. Sua obra contém e oferece tanto criatividade quanto uma contribuição valiosa para a disseminação das relações entre Direitos Humanos e Educação. Por tudo isso, a publicação será, com certeza, uma contribuição importante em tempos em que essa vinculação, Direitos Humanos e processos educacionais formais e não formais, torna-se tanto mais sólida quanto deva garantir a multiplicidade de suas manifestações.
Falei antes em augúrio. É que ao reler o livro de Pensilvania para incluí-lo no acervo de recensões da Coluna Lido para Você deparei-me com a coincidência de que o revisitava no exato instante em que o MEC encaminha ao Conselho Nacional de Educação (Ofício Nº 45/2024/ASTEC/GM/GM-MEC, Processo SEI nº 23001.000054/2023-65), ato de criação da Comissão da Câmara de Educação Superior que trata da revisão geral das Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de Graduação em Direito, concernente à Portaria CNE/CES nº 9, de 29 de novembro de 2023.
No ofício o ministro, “tendo em vista a relevância do tema e considerando a publicação da Portaria CNE/CES nº 13, de 15 de dezembro de 2023, encaminho, para avaliação desse Conselho, a indicação dos seguintes especialistas para contribuírem com os trabalhos da Comissão”.
O elenco é notável. Especialistas de alta representatividade e notoriedade, incluindo – algo estranhável dado o status do nomeado, o professor Silvio Luiz de Almeida, atual Ministro de Estado dos Direitos Humanos e da Cidadania. Mas um grupo muito heterogêneo cujos membros, na academia e nos espaços institucionais, associativos e corporativos de crítica e avaliação do ensino jurídico, alcançaram relevo nos anos recentes.
O bom augúrio é que registro entre os indicados, exatamente a professora Loussia Penha Musse Felix, cujas credenciais estão assim descritas no ato de indicação: “Doutora em Educação pela Universidade Federal de São Carlos – UFSCar, 1997; Mestre em Ciências Jurídicas pela Pon cia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 1988; Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis – UCP, 1982. Professora, pesquisadora, líder de grupo de pesquisa (Direito e Educação da Universidade de Brasília – UnB). Especialista em Educação Jurídica, e em redes acadêmicas nacionais e internacionais nas áreas de Direito e Educação Superior. Docente no sistema público federal de ensino superior, atuando na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Foi Erasmus Mundus Scholar da Rede de Ação Humanitária. Coordenadora da Área de Direito na América La na do Projeto Tuning – Inovação Social e Acadêmica. Membro do Comitê Execu vo da DHES – Rede de Direitos Humanos e Educação Superior – ALFA-Comissão Européia. Presidente do Conselho da Clínica de Direitos Humanos e Democracia da Universidade de Brasília”.
Dentre todos os nomes a professora Loussia de fato acompanha e participa da construção do modelo vigente de educação jurídica, desde os anos 1990, ainda como estudante de doutorado recolhendo material para o seu tema – educação jurídica – e já então participando dos esforços consertados que resultaram na edição da emblemática Portaria-MEC nº 1.886, de 30 de dezembro de 1994, que estabeleceu as diretrizes curriculares e o conteúdo mínimo atuais do curso jurídico.
A professora Loussia é do restrito grupo de operadores e hermeneutas desse campo, se consideramos o panteão que se reuniu para pensá-lo a contrepelo, e que figuram do elenco de autores e autoras que contribuíram para a proposição de enunciados constantes do livro OAB Ensino Jurídico. Diagnóstico, Perspectivas e Propostas. Brasília: OAB Federal/Comissão de Ciência e Ensino Jurídico, 1ª edição, 1992, respondendo aos 15 enunciados que balizaram a conjuntura de crise e a construção de figuras de futuro (expressão trazida para o livro por Roberto A. R. de Aguiar): refletidas na análise da realidade social, das novas demandas sociais, do perfil dos novos conflitos, dos novos processos sociais de autogestão da vida democrática e de organização das instâncias de solução de conflitos, das estratégias de ação coletiva e dos novos sujeitos e das novas dimensões da cidadania, de modo a tornar possível o conhecimento e a prática do jurídico e de seu ensino, num contexto de criação contínua de juridicidades que atualizam o social em criação permanente da sociedade.
Não é fraco o grupo constituído por esses formuladores. Entre os que acudiram ao chamado: Ada Pellegrini Grinover, Alberto Venânco Filho, Álvaro Melo Filho, Antonio Carlos Wolkmer, Benedito Calheiros Bomfim, Celso Campilongo, Cláudio Souto, Fábio Konder Comparato, Horácio Wanderlei Rodrigues, João Baptista Herkenhoff, João Maurício Adeodato, João Ricardo W. Dornelles, Joaquim Arruda Falcão, Jonathas Silva, José Eduardo Faria, José Reinaldo de Lima Lopes, José Ribas Vieira, Leonel Severo Rocha, Luciano Oliveira, Luis Alberto Warat, Marília Muricy, Miguel Pressburger, Paulo Lopo Saraiva, Plauto Faraco de Azevedo, Roberto O. Santos, Roberto Kant de Lima, Roberto Rosas, Ronaldo Rabello de Britto Poletti, Solange Souto, Tércio Sampaio Ferraz, Walter Ceneviva. Por trás, a voz silente de Roberto Lyra Filho. Indo além do roda-pé, puderam saltar o limite, da grade curricular, que enquadra a realidade e sua ideologização redutora, para emancipar o conhecimento, assim desdiciplinarizado e emancipado, política e epistemologicamente, pelas matérias (matérias não se confundem com disciplinas) em que se aninham estabelecidas pela sociedade interpelante. A educação é isso, saber dizer belas palavras, mas apropriá-las na direção do conhecimento e da transformação do mundo, como respondeu Fênix a seu pupilo Aquiles, a propósito do valor da sua finalidade (para ir à fonte dessa referência, veja-se Werner Jaegger, na Paidéia).
Na contracorrente do stand up corporativo (comediantes de empresas), permanece o campo reflexivo dos formuladores autoreflexivos que balizaram os esforços de qualificação e de adensamento da educação jurídica cujo trabalho deu lastro ao conjunto de diretrizes que marcam as últimas três décadas no campo, contadas desde a instalação da Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da OAB (conferir a farta bibliografia por ela produzida sob a retranca da Coleção Ensino Jurídico), caracterizando verdadeiramente uma reinvenção do ensino jurídico.
Incluo nesse acervo o volume substancioso OAB Recomenda: um Retrato dos Cursos Jurídicos. Brasília, DF: OAB, Conselho Federal, 2001, 164p.), quando do lançamento do selo de qualidade que a Entidade confere para indicar os cursos que alcançam os patamares de qualidade conforme os indicadores das Comissões de Ensino Jurídico e de Exame de Ordem. Trabalho, aliás, bastante referido pelo Autor da Tese.
Entre os trabalhos que emolduram o rol de cursos certificados na primeira edição do Selo OAB Recomenda, chamo a atenção para a exemplaridade ainda insuperável que proporciona, o texto da Professora Loussia P. Musse Felix – Da Reinvenção do Ensino Jurídico: Considerações sobre a Primeira Década. Texto seminal, orienta para o conhecimento e a hermenêutica de uma virada político-teórica-funcional, designada como “ponto de não-retorno” que designa esse formidável movimento de reinvenção do ensino jurídico.
Um pouco desse percurso eu o registrei em vários documentos da OAB, do MEC, do INEP. Da ABEDI, do CONPEDI, e os tenho atualizado criticamente na medida de minhas leituras correntes sobre dissertações e teses que têm se debruçado sobre esse processo dinâmico.
Menciono, para complementar a leitura do livro de Pensilvania, que arrolo entre esses estudos:
APOSTOLOVA, Bistra Stefanova. Poder Judiciário: do Moderno ao Contemporâneo. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998.
ENSINO JURÍDICO. A Descoberta de Novos Saberes para a Democratização do Direito e da Sociedade, de Fábio Costa Morais de Sá e Silva. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2007, 288 p.
VETORES, DESAFIOS E APOSTAS POSSÍVEIS NA PESQUISA EMPÍRICA EM DIREITO NO BRASIL, de Fábio de Sá e Silva. Revista de Estudos Empíricos em Direito, vol. 3, n. 1, jan. 2016, p. 24-53.
SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; COSTA, Alexandre Bernardino; e MAIA FILHO, Mamede Said. A Prática Jurídica na UnB. Reconhecer para Emancipar, Coleção Prática Jurídica, vol. 1. Brasília: Faculdade de Direito da UnB/Ministério da Educação/Ministério da Justiça, 2007
Entrelugares de Direito e Arte: experiência artística e criação na formação do jurista, de Marta Regina Gama. Fortaleza: EdUECE, 2019
Ensino Jurídico, Diálogos com a Imaginação. Construção do projeto didático no ensino jurídico. Inês da Fonseca Pôrto. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2000
BELMONTE AMARAL, Luciana Lombas. Ensino jurídico e educação em direitos humanos: entre hierarquias sociais e redes de poder do mundo do direito — Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019
A Experiência da Extensão Universitária na Faculdade de Direito da UnB. Alexandre Bernardino Costa (organizador). Brasília: Faculdade de Direito da UnB/Coleção “O que se Pensa na Colina”, vol. 3, 2007
Thiago Fernando Cardoso Nalesso. EDUCAÇÃO JURÍDICA BRASILEIRA: entre as Diretrizes Curriculares Nacionais e o Exame de Ordem. Doutorado em Direito. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2021
Há outros trabalhos. Mas nesses que acabo de designar encontro um sólido balizamento para demarcar o campo em benefício da atenção atual que o tema vai certamente merecer.
Assim que ainda vou aludir aos trabalhos de Mauro Noleto e de Inês da Fonseca Porto, que juntamente com Bistra Apostolova (hoje professora na UnB), atuaram fortemente na gerência da Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da OAB e muito contribuíram para a organicidade do sistema de educação jurídica e as diretrizes de eu ensino.
NOLETO, Mauro. Sujeitos de Direito. Ensaios Críticos de Introdução ao Direito. São Paulo: Editora Dialética, 2021 – https://estadodedireito.com.br/sujeitos-de-direito-ensaios-criticos-de-introducao-ao-direito/
É reconfortante constatar, no percurso de Mauro Noleto a fidelidade aos princípios que traçam o mapa desse percurso. Isso transparece dos fundamentos de seu projeto de pesquisa atual e também nas participações e intervenções funcionais ativadas nesse seu caminhar. Certo que seu mapa de navegação está tecnicamente aberto às inflexões operadas em razão das injunções que manifestam no seu trânsito, por isso que a sua salvaguarda de ancoragem é coerentemente fincada nos pressupostos de uma teoria crítica em seus fundamentos. Ainda quando o fluxo do seu agir se faça em terreno estritamente funcional, conforme, por exemplo, ao exercer assessoria junto à Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da OAB, a direção que imprime ao seu movimento reflexivo, segue aquele cânone indicado por Boaventura de Sousa Santos, expressamente, no sentido, diz Mauro, de que a teoria crítica deve partir de uma atitude insatisfeita, mas também autocrítica, pois, para Boaventura, a auto-reflexidade á a atitude de perceber criticamente o caminho da crítica. Mauro sustenta isso enquanto submete a juízo crítico o sistema de avaliação de cursos jurídicos desenvolvido pela OAB (NOLETO, Mauro Almeida. A Recomendação da OAB, Uma Nova Perspectiva para a Avaliação dos Cursos Jurídicos. In Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da OAB. OAB Recomenda. Um Retrato dos Cursos Jurídicos. Brasília: OAB Conselho Federal, 2001, p. 101-112).
Mauro aplica assim, concepção que aprofundou em seu trabalho acadêmico, combinando ensino, pesquisa e extensão universitária, quando em situação de responder a interpelações da realidade, no diálogo entre conhecimento e ação no mundo, quando o agir acadêmico é desafiado a abandonar a contemplação para atuar no sentido da transformação do mundo e a reconhecer a influência da teoria crítica, antes de tudo um filosofar na práxis.
É de Mauro Noleto, o excerto a seguir transcrito:
Por isso, a distinção mencionada acima entre formas de aprendizado prático nos cursos jurídicos (assistência e assessoria) não se limita à questão metodológica, pois tem como pano de fundo os conflitos epistemológicos travados no campo da teoria do direito, em busca de uma compreensão mais alargada desse objeto de estudo…
(…) é possível perceber os elementos inovadores e emancipatórios da teoria jurídica crítica, mais especificamente, os marcos teóricos da Nova Escola Jurídica Brasileira, presentes no curso O Direito Achado na Rua, organizado e coordenado pelo professor José Geraldo de Sousa Jr,, quais sejam: a apreensão dialética do fenômeno jurídico, como enunciação e positivação histórica das conquistas concretas humanas, a partir dos conflitos sociais, pela ampliação e constante reorganização dos espaços de liberdade em sociedade; a compreensão de que este fenômeno, o Direito, é plural, isto é, surge em diversos contextos de produção normativa e, portanto, não se restringe ao contexto jurídico-legal, embora reconheça seja este um espaço privilegiado de produção do Direito na sociedade moderna; a superação do modelo individualista de subjetividade jurídica, de titularidade de direitos, forjado pelo pensamento idealista dos séculos XVII e XVIII, por sua compreensão atualizada da sociedade e de seus conflitos em sua dimensão coletiva, que fazem emergir novas formas de subjetividade em cada contexto em que se apresentam lutas pela superação das condições de opressão e de injustiça social, cultural, étnica, religiosa, classista…(NOLETO, Mauro Almeida. Prática de Direitos. Uma Reflexão sobre Prática Jurídica e Extensão Universitária. In SOUSA Junior, José Geraldo de; COSTA, Alexandre Bernardino (Orgs.). Direito à Memória e à Moradia. Realização de Direitos Humanos pelo Protagonismo Social da Comunidade do Acampamento da Telebrasília. Brasília: UnB/Faculdade de Direito/MJ/Secretaria de Estado de Direitos Humanos, 1996, p. 93-105).
O livro de Inês da Fonseca Pôrto – Ensino Jurídico, Diálogos com a Imaginação – é um achado do selo editorial Sergio Antonio Fabris. Ele se coloca também como “tarefa e promessa” (Mills) de “espionamento do real pela imaginação”, capturando ângulos em que ele não se percebe observado e, desde a perspectiva de testemunho (“testemunho da construção do projeto didático-pedagógico na reforma do ensino jurídico”), avalia “o modelo central do ensino jurídico” e indica, na medida em que “a imaginação dê forma à vontade de transformação”, as possibilidades que ele comporta de abrir-se “a novas experiências – não vividas, mas possíveis”, como projeto de futuro.
Configurado a partir dos seus elementos característicos – a descontextualização (negação do pluralismo jurídico), o dogmatismo (exclusão das contradições e preservação dos processos unívocos de seu pensamento constitutivo) e a unidisciplinaridade (exclusividade de um modo de conhecer) – a Autora demonstra o impasse crítico a que chegou o modelo central de ensino jurídico e o esgotamento paradigmático de sua matriz positivista e formalista.
A abordagem de Inês Pôrto, fruto de seu protagonismo no processo, apreende nitidamente o foco de intervenção dos sujeitos nele engajados, principalmente o da Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e interpreta, fielmente, a visão de crise do Direito que iluminou as reflexões sobre suas determinações e os elementos nucleares que ela articulou. Esses elementos, a meu ver (Anais da XVI Conferência Nacional da OAB) são, em sua dimensão epistemológica: 1) de representação social relativa aos problemas identificados; 2) de conhecimento do Direito e suas formas sociais de produção; 3) de cartografia de experiências exemplares sobre a autopercepção e imaginário dos juristas e de suas práticas sociais e profissionais. É por meio deles que se dá o balizamento para a superação da distância que separa o conhecimento do Direito de sua realidade social, política e moral, possibilitando a edificação de pontes sobre o futuro, através das quais possam transitar os elementos novos de apreensão e compreensão do Direito e de um novo modelo de ensino jurídico. O livro de Pensilvania Silva Neves vem se juntar a esse catálogo. Dou-lhe a palavra final, que aliás, fecha seu livro: “Trilhando essa perspectiva da efetividade dos direitos humanos, na qual se evidencia o caráter histórico, o narrativo, o político, o poético, o complexo, o pedagógico, a imagem, a ação – uma dimensão inconclusiva… – mantendo-me musicalidade, desencadernando a vida, abrindo a boca sentindo sentidos nos redores do mundo, construindo respeito à minha coexistência significativa no mundo, porque menos ar não há, retirando-me de dentro do com (o)pressor, vou me deslocando da quartinha para a terra da vida, do espelho d’água para a visibilidade.”
(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Liliane Maria Reis Marcon. Narrativas literárias (des)constituintes. Tese de Doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em Direito. Brasília: UnB/Faculdade de Direito, 2023, 180 fls.
Presidi, como Orientador da Dissertação, a Banca Examinadora da qual resultou a aprovação do trabalho. Também participaram da Banca a professora Angela Araújo da Silveira Espíndola (UFSM) que coordena a Rede Brasileira de Direito e Literatura; e os professores Gladstone Leonel Silva Júnior (UFF), Antônio Sergio Escrivão Filho (UnB) e Menelick de Carvalho Netto (UnB).
O contexto integral da apresentação e da defesa, para além do que demarco na Coluna pode ser conferido pelo Canal Youtube de O Direito Achado na Rua, pelo qual o evento foi transmitido, em cujo repositório permanece catalogado para acompanhamento dos estudiosos do tema: https://www.youtube.com/watch?v=3vjGMbd0Pik (Defesa da Tese de Doutorado de Liliane Mª Reis Marcon (PPGD/UnB)).
Desde logo o Resumo do trabalho para situar a leitura da Tese:
O Constitucionalismo latino-americano percorreu caminhos descontínuos e tracejos coloniais, que oscilaram entre a instituição da linguagem de poder e o silenciamento. Devido à consolidação das democracias, entre o final do século XX e o início do século XXI, certo tensionamento passa a pressionar a sua lógica fundante, de limites ao arbítrio do poder e de legitimidade do poder constituinte. As minorias e os grupos vulneráveis, desapossados do poder e discurso jurídico, social e político dominantes, tornam-se questionadores da vontade hegemônica que, sob os auspícios da legitimidade, não deve comprometer as diferenças radicais e o pluralismo próprio das democracias. Assumindo esses pressupostos e com base nos aportes da Teoria Narrativista do Direito, da Filosofia da Linguagem e do Constitucionalismo Achado na Rua, investigo se as narrativas literárias insurgentes no final do último século, na América-latina, têm o condão de fornecer elementos denunciantes, críticos e reveladores de modo de existir e resistir que importem ao Constitucionalismo, fenômeno que ultrapassa os textos normativos constitucionais e se fortalece na Rua. Para tanto, articulo obras literárias e escritos de Daniel Mundukuru, Julie Dorrico e Férrez, entendidos, nessa pesquisa, como hipóteses reflexivas e privilegiadas de investigação.
Esses enunciados resumidos se desdobram no Sumário:
Linhas Introdutórias
CAPÍTULO 1: ÀS MARGENS COM O CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO
1.1 Dimensões narrativas do Constitucionalismo latino-americano
1.2 O giro narrativo no Direito: possibilidades constitutivas a partir da Literatura
1.3 História, Literatura e Constitucionalismo: o boom da literatura latinoamericana
1.4 Novas narrativas literárias latino-americanas: perspectivas decoloniais
CAPÍTULO 2: O QUE SE CONSTITUI ÀS MARGENS: NARRATIVAS LITERÁRIAS LATINO-AMERICANAS
2.1 Elementos essenciais para o constitucionalismo latino-americano
2.2 Contar para existir: novas narrativas literárias latino-americanas como hipóteses reflexivas e privilegiadas de investigação
2.3 Identidade e Pertencimento em Vozes ancestrais: dez contos indígenas, de Daniel Mundukuru
2.4 Subjetividades e Memória em Eu sou Macuxi e outras histórias, de Julie Dorrico
2.5 Resistência e Emancipação em Capão Pecado, de Férrez
CAPÍTULO 3: ALÉM DAS MARGENS, HÁ A RUA: NARRATIVAS
(DES)CONSTITUINTES?
3.1 Desconstituir para ser: a utopia e a compreensão dos variados modos de existência
3.2 Narrativas Descontituintes: possibilidades para além de um protagonismo ressentido em diálogo com as contribuições de Ailton Krenak
3.3 As novas narrativas literárias latino-americanas encontram a Rua: contribuições epistemológicas para o Constitucionalismo Achado na Rua
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Os objetivos estão distribuídos em três capítulos. No primeiro, “Às margens com o Constitucionalismo latino-americano”, procurarei demonstrar como a compreensão do constitucionalismo, enquanto fenômeno, pode se tornar mais apta ao diálogo com outros campos, se entendido a partir de suas dimensões narrativas (1.1); após, explico como o giro narrativo, fenômeno linguístico e filosófico, comum a todos os campos do conhecimento, exerce influência sobre o Direito (1.2); na sequência, apresento a intersecção entre Direito, História e Constitucionalismo, a partir dos influxos ocasionados pelo giro narrativo, para indicar como o boom literário latino-americano, nos anos 60 e 70, modificou as leituras possíveis entre as três áreas do saber (1.3); por fim, as novas narrativas literárias latino-americanas são apresentadas, com as suas características e peculiaridades emancipatórias para as reflexões sobre a decolonialidade do constitucionalismo (1.4).
No segundo capítulo, “O que se constitui às margens: narrativas literária latinoamericanas”, estabeleço quais são os elementos essenciais do constitucionalismo latinoamericano, a partir das experiências locais e suas particularidades (2.1); após, tracejo algumas questões formais e metodológicas necessárias para a realização de análise jus crítico-literária de obras latino-americanas, além de indicar os motivos delas serem entendidas nesta pesquisa como hipóteses reflexivas e privilegiadas de investigação (2.2); por fim, detalho, a partir das narrativas, como elas são reveladoras e denunciantes dos elementos essenciais do constitucionalismo-americano, a partir das análises dos conceitos de identidade e pertencimento em Vozes ancestrais: dez contos indígenas, de Daniel Mundukuru (2.3); de subjetividades e memória, em Eu sou Macuxi e outras histórias, de Julie Dorrico (2.4); de resistência e emancipação, em Capão Pecado, de Férrez (2.5).
No terceiro e último capítulo, “Além das margens, há a rua: narrativas (des)constituintes”, em diálogo com Roberto Lyra Filho, ressalto a importância de compreender o constitucionalismo entre os conceitos de utopia e distopia (3.1); após, indico que a leitura sobre narrativas literárias latino-americanas precisa se efetivar a partir de um olhar de maravilhamento, conceito extraído da filosofia de Ailton Krenak, e que possibilita que os protagonismos se estabeleçam para além do ressentimento, no sentido de ausências (3.2); por fim, no ponto de chegada desta investigação, situo a pesquisa dentro dos referenciais epistemológicos de o Direito Achado na Rua, a partir de sua construção histórica, principais desafios, em diálogo com as pesquisas desenvolvidas no campo, sobre Direito e Literatura, mas sobretudo a partir das contribuições desta pesquisa com o Constitucionalismo Achado na Rua.
Folgo em ter reencontrado na Banca a professora Angela Araujo da Silveira Espindola da UFSM – Universidade Federal de Santa Maria. Meu encontro anterior com ela se deu no Colóquio Internacional de Direito e Literatura que aconteceu em Brasília de 25 a 28 de outubro tendo como tema “Artes, Direito e Cidade”. Por indicação de meu colega Douglas Pinheiro que participa da Rede Brasileira de Direito e Literatura, atualmente sob a coordenação da professora Angela Espíndola, participei do painel (Po)éticas Urbanas: Narrativas de Justiça e Emancipação. Painel, de resto, moderado pela própria professora Angela Espíndola e que contou também com a participação dos professores Luiz Meliante Garcé (Universidad CLAEH/Uruguai; Grupo de Investigación de Derecho y Literatura de Uruguay, GRIDEL) e Marcelo A. Cattoni de Oliveira (UFMG).
O que ali apresentei reúne elementos de uma reflexão que tenho aqui e ali desenvolvido sobre o tema direito e literatura num enfoque que dialoga com a tese de Liliane Reis Marcon. São leituras que desvendam no discurso artístico o intuir que não precisa fundamentar, explicar ou revelar o real, o expõe em compreensão direta e sem mediações. Conforme lembra o grande acadêmico de Coimbra Eduardo Lourenço (Mitologia da Saudade. São Paulo: Companhia das Letras, 1999), “a literatura não é um delírio, mas a apropriação do real por meio de uma outra linguagem” (https://estadodedireito.com.br/lido-para-voce-direito-cinema-e-literatura/).
Em José Geraldo de Sousa Junior. Lido para Você: Direito, Cinema e Literatura – São Paulo: Editora Dialética, 2023. 168 p. (https://loja.editoradialetica.com/humanidades/lido-para-voce-direito-cinema-e-literatura), coleciono várias aproximações a esse tema. Numa delas fazendo alusão ao trabalho de Eliane Botelho Junqueira que só apresentei a Liliane depois de sua tese depositada, mas que considero valioso possa ser lida em suas análises futuras sobre o tema.
Com efeito, em seu livro “Literatura & Direito. Uma outra leitura do mundo das leis” (Rio de Janeiro: LetraCapital Editora/IDES – Instituto Direito e Sociedade, 1998), Eliane Botelho Junqueira trata dessa relação, acentuando vários aspectos dos vínculos entre as ciências sociais e a literatura para ampliar as percepções da realidade social. Ela põe em relevo nesse campo a disputa de diferentes análises sobre o direito desenvolvidas na academia, sobretudo norte-americana a partir do movimento direito e sociedade e direito e desenvolvimento para estabelecer esse novo campo de relações: “As correntes Law and economics, Law and society, critical legal studies, critical race theory e feminist jurisprudence, dentre outras, sem dúvida são conhecidos exemplos dessa efervescente produção acadêmica. Mais recentemente, o ‘movimento’ Law and literature conquistou importante espaço institucional” (pág. 21). A partir daí ela estabelece uma interessante distinção de tendências, a primeira denominada literature in Law, segundo ela, “tendo como origem remota os trabalhos de Benjamin Cardozo, (que) defende a possibilidade dos textos jurídicos – aqui incluindo-se leis, decretos, contratos, testamentos, contestações, sentenças etc – serem lidos e interpretados como textos literários” (pág. 22); e a segunda tendência, “conhecida como Law in literature, voltada para trabalhos de ficção que abordem questões jurídicas” (pág. 23).
No meu prefácio para Direito no Cinema Brasileiro, livro organizado por Carmela Grüne. São Paulo: Saraiva, 2017, anoto que essas tendências continuam fecundantes na cultura jurídica latino-americana, dotada de um imaginário que não se comporta apenas na racionalidade instrumental, mas que aspira a uma razão sensível, afetiva, para assimilar o alcance sugerido por Maffesoli. Ainda mais num ambiente nutrido pelo extraordinário favorável a nos permitir adentrar no realismo. Não sei se procede do Gabo (Gabriel Garcia Marques) a anedota do professor que interpelando seu aluno sobre ele ter lido a “Crítica da Razão Pura de Kant”, recebeu a resposta imediata, “não, mas assisti o filme”.
Registro aqui, o cuidado editorial, por exemplo, do Ministério de Justicia y Derechos Humanos, da Argentina, no sentido de preservar esse imaginário e procurar inculcar na cultura jurídica dos operadores do direito e da justiça portenhos a exigência do enlace entre direito e literatura. Indico a importância da leitura do livro “La letra y la ley. Estudios sobre derecho y literatura” (Buenos Aires: Infojus, 2014), organizado por Alicia E. C. Ruiz, Jorge E. Douglas Price (queridos amigos que estavam presentes no Colóquio de outubro em Brasília e Carlos María Cárcova (também dileto amigo, infelizmente recém-falecido. Tive ensejo de entrevistá-lo para o Observatório da Constituição e da Democracia: https://constituicaoedemocracia.com.br/2022/09/09/entrevista-com-carlos-maria-carcova-crise-de-representacao-e-constitucionalismo-na-america-latina/?fbclid=IwAR11elToEosWpbbzNhTNYfpxXryfA_39LPA20DCoMYwhGLGRBSDq8dNShGU), ele que se destaca como expoente nessa temática, ambos, Alícia e Cárcova, trazidos por Liliane em sua discussão.
Na Introdução a “La letra y la ley. Estudios sobre derecho y literatura”, coincidente com as tendências marcadas por Eliane Junqueira, Carlos Cárcova para além de reafirmá-las, ainda acresce: “outro tipo de articulación, una articulación ‘interna’ que permite descubrir notables analogias en el proceso de produción discursiva del derecho, por una parte y en el de la literatura en sentido amplio, por otra” (pág. IX).
Gosto de pensar e de constatar que Liliane valorizou essas vertentes, valendo-se inclusive de minhas referência em Lido para Você: Direito, Cinema e Literatura. E o fez para amarrar epistemologicamente os enunciados literários que escolheu como eixo narrativo para designar uma emancipação que humaniza, tomando a metáfora da rua, tal como assenta em sua conclusão nº 32, segundo o que, a rua, “é o ponto de chegada nesta pesquisa, pelas articulações propostas com o Constitucionalismo Achado na Rua, contribuições voltadas às associações dos desenvolvimentos das suas bases epistemológicas e da Literatura, e, igualmente, como referencial teórico possibilitador dos diálogos acadêmicos e institucionais, a partir daqui”.
Trata-se, ela diz, de compreender, e com isso fecho a resenha, que “o tempo da Literatura atravessa o Direito para fortalecer o Constitucionalismo Achado na Rua, visto ser um processo vinculado aos movimentos históricos. A Literatura foi o instrumento do possível para que os muitos contos, histórias e versos indígenas chegassem aos mais diversos leitores; para que muitos poemas e romances atravessassem os morros e favelas, rompendo a marginalidade. As organizações dos movimentos, que agregaram pessoas com objetivos comuns tornam mais claras as questões e aflições que unem aqueles que escrevem às margens”.
Que encontro notável vejo nessa conclusão, alusiva à ideia de margem. Liliane, tal como Roberto Lyra Filho pensam a margem como o lugar de inflexão do movimento que emancipa. Isso está fortemente designado no humanismo que Roberto Lyra Filho procurou imprimir à Nair – Nova Escola Jurídica Brasileira, a manjedoura de O Direito Achado na Rua. Mas está diretamente posto num fragmento que, curiosamente não se encontra em nenhum de seus textos, recuperado entretanto, num registro leal e fraterno de nosso amigo e colega comum Hildo Honório do Couto (Instituto de Letras da UnB), que salvou a expressão (cf. epígrafe em COUTO, Hildo H. O que é Português Brasileiro. São Paulo: Editora Brasiliense. Coleção Primeiros Passos n 164, 1ª edição, 1986): “Num sistema injusto, se quisermos ser sérios temos que ser marginais. Roberto Lyra Filho”.
Superação do racismo religioso a partir da construção de um Direito Achado na Encruzilhada
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
EMANUEL DE OLIVEIRA PINHEIRO. Superação do racismo religioso a partir da construção de um Direito Achado na Encruzilhada. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense, 2023, 102 fls.
Tendo participado da banca de qualificação, foi com muita atenção ativada por perceber que o Autor trouxe para o trabalho final as sugestões teórico-políticas que ofereci, para a versão final da dissertação aprovada pela Banca Examinadora, que também integrei, constituída pelas professoras e professores Roberta Duboc Pedrinha, orientadora; Silene de Moraes Freire; Gabriela Caramuru Teles e Hamilton Gonçalves Ferraz.
Vou ao Resumo da Dissertação:
O presente trabalho aborda questões relacionadas ao racismo religioso dirigido aos praticantes de religiões de matriz africana. Para tanto, são analisados aspectos sociológicos e históricos que repercutem na contemporaneidade em práticas epistemicidas de tentativa de apagamento da cultura trazida para o Brasil através da diáspora africana. No mais, objetiva traçar um panorama dialético entre Direito, Justiça Social e o Direito Achado na Rua e as lendas e orikis de Exú, orixá mais controverso do panteão africano. O constitucionalismo Latino-Americano também é tratado numa perspectiva exuística, tendo como uma base teórica os pensadores de um Direito decolonial, voltado para construção de uma dogmática jurídica pensada e reproduzida pelas minorias, encaradas como novos sujeitos coletivos de direito, como forma de superar o racismo religioso que se apresenta como modo de manutenção da hegemonia, sustentada a partir de condutas colonialistas, seja por meio de discursos que promovem o embate entre as minorias, seja por sua forte presença nas instituições. Diante de um status quo à primeira vista imutável, trazem-se novas perspectivas a partir das características transgressoras de Exú como rei das infinitas possibilidades, dono da rua e protetor de quem nela transita. Assim, como Elegbara, senhor da magia, Exú se transforma em catalizador de forças e importante suleador em busca de uma emancipação político-jurídica e de uma liberdade democrática.
Em nosso âmbito de estudos (Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua), tanto filosófica quanto sociologicamente já havíamos configurado um campo de interpelação ao direito, sob enquadramento de perspectivas cosmológicas que abrissem perspectivas de emancipação e de subjetividades instituintes política e juridicamente.
Em https://estadodedireito.com.br/candomble-e-direito-o-encontro-de-duas-cosmovisoes-na-problematizacao-da-nocao-de-sujeito-de-direito/, a propósito do livro (ADAD, Clara Jane. CANDOMBLÉ E DIREITO: Tradições em Diálogo. Fortaleza: Editora UECE, 2019), e do prefácio que ofereci à obra, demarco isso que desde a dissertação que deu origem ao livro me pareceu “um relampejar clareador numa atmosfera sombria, pobre em discernimento e míope na representação da Justiça. Não é, pois, singela a indagação sobre ser possível o diálogo entre Candomblé e Direito, uma questão central lançada no texto”
Na obra é feita referência a ocorrência, no Rio de Janeiro, um juiz de Direito, a toda certeza, indigente nesses dois fundamentos, que lavrou sentença, felizmente logo corrigida, recusando a prestação de justiça em matéria que envolvia reconhecimento da titularidade e da dignidade de religião de matriz tradicional de origem africana.
Com efeito, a Justiça Federal no Rio de Janeiro proferiu sentença na qual considera que os “cultos afro-brasileiros não constituem religião e que manifestações desses cultos não contêm traços necessários de uma religião”.
A decisão foi lançada em ação do Ministério Público Federal (MPF) que pedia a retirada de vídeos de cultos evangélicos que foram considerados intolerantes e discriminatórios contra as práticas religiosas de matriz africana do YouTube.
O juiz entendeu que, para uma crença ser considerada religião, é preciso seguir um texto base – como a Bíblia Sagrada, Torá, ou o Alcorão, por exemplo – e ter uma estrutura hierárquica, além de um deus a ser venerado.
A iniciativa do MPF visava a retirada dos vídeos por considerar que o material continha apologia, incitação, disseminação de discursos de ódio, preconceito, intolerância e discriminação contra os praticantes de umbanda, candomblé e outras religiões afro-brasileiras.
Para o órgão do MPF, “a decisão causa perplexidade, pois ao invés de conceder a tutela jurisdicional pretendida, optou-se pela definição do que seria religião, negando os diversos diplomas internacionais que tratam da matéria (Pacto Internacional Sobre os Direitos Civis e Políticos, Pacto de São José da Costa Rica, etc.), a Constituição Federal, bem como a Lei 12.288/10. Além disso, o ato nega a história e os fatos sociais acerca da existência das religiões e das perseguições que elas sofreram ao longo da história, desconsiderando por completo a noção de que as religiões de matizes africanas estão ancoradas nos princípios da oralidade, temporalidade, senioridade, na ancestralidade, não necessitando de um texto básico para defini-las”.
Ora, foi a partir dessa decisão e citando algumas outras manifestações do Judiciário de do Ministério Público, a pesquisadora do Coletivo O Direito Achado na Rua Luciana Ramos chama a atenção para uma inflexão preocupante percebida no sistema formal de justiça, que pode ser considerado um desvio ideológico determinante de sua procedimentalidade.
Ela alude, por exemplo, ao fato de que “o Conselho Nacional do Ministério Público realizou uma sessão para discussão e votação de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para “regularizar” os limites sonoros durante os cultos e liturgias das religiões de matriz africana em Santa Luzia (MG).
De acordo com o TAC e informe do Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro-brasileira (CENARAB) “a casa poderia executar as atividades somente nas quartas-feiras e em único sábado do mês, utilizando apenas um atabaque”.
Ademais, o referido TAC impõe uma multa diária pelo descumprimento de R$ 100,00 (cem reais), inclusive com punição para práticas de culto silenciosas fora dos dias estipulados no referido Termo (Tribunal da Inquisição na Modernidade: Racismo Religioso e Insconstitucionalidade do Termo de Ajuste de Conduta do Ministério Público Federal, http://odireitoachadonarua.blogspot.com/search?q=luciana+Ramos+tribunal+de+inquisi%C3%A7%C3%A3o)”.
Segundo ela, em seu texto, “temos vivenciado um acirramento nos últimos tempos de perseguições, sejam físicas, sejam político-judiciárias, às religiões de matriz africana no Brasil. Muitos debates têm girado em torno de dois grandes pontos. O primeiro ponto é sobre a laicidade do estado, ou seja, um país que declara constitucionalmente ser um Estado sem um vínculo confessional com qualquer religião, na prática tem se revelado como um Estado confessional cristão”.
Por isso ela questiona ser, assim, “fundamental perguntar sobre até que ponto, embora não acredite na neutralidade, o Judiciário que se diz e se camufla como um espaço neutro tem sido um espaço de proteção aos direitos fundamentais constitucionais? Em que medida, a “neutralidade” não está imbuída de dogma religioso, por uma cultura religiosa cristã? Em que medida, para manutenção do estado democrático de Direito, o Judiciário tem sido o capitão do mato na captura e regularização cosmológica dos “selvagens”?”.
E de modo contundente chega a uma conclusão muito inquietante, se considerarmos os rumos correntes no País com o sítio político-religioso ao princípio constitucional da laicidade: a de que “A retórica da neutralidade e a justiça são racistas! A neutralidade a favor da barbárie. A neutralidade travestida de justiça. A neutralidade que persegue. A neutralidade que é incapaz de enxergar seus privilégios. A neutralidade que evidencia inconstitucionalidades em prol de um grupo cristão. Neutralidade que tem sido fundamental para manutenção e reforço do racismo contra religiões de matriz africana. Temos um Judiciário cada dia mais colonizado, branco, ocidental, liberal e lócus de injustiças contra a população negra no Brasil, por ser incapaz de refletir os privilégios que sempre construiu em prol do racismo e da opressão. Judiciário que reflete Themis e não Xangô!!!!” (RAMOS, Luciana, op.cit.).
Essa conclusão é reafirmada ainda por Luciana Ramos quando reage a declaração de Ministro do Supremo Tribunal Federal durante julgamento naquela Corte, repristinando suas habituais idiossincrasias às concepções emancipatórias de O Direito Achado na Rua. Em resposta ao Ministro ela resgata os pressupostos conceituais dessa corrente crítica, afirmando que “O sistema jurídico brasileiro tem sido confrontado no seu racismo, não só no âmbito jurisdicional, mas principalmente nos instrumentos colonizadores e de opressão reproduzidos pelas suas casas grandes” (RAMOS, Luciana. http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/577807-o-direito-achado-em-uganda-justica-diasporica-e-combate-ao-racismo-jurisdicional).
Nos fundamentos conferidos por Luciana Ramos se encontram aqueles pressupostos que convergiram para o seu mais importante achado, agora recuperado por Emanuel Peixoto para sustentar a sua formulação, na dissertação.
Com efeito, em O Direito Achado na Encruzilhada: territórios de luta, (re) construção da Justiça e reconhecimento de uma epistemologia jurídica afro-diaspórica, de Luciana de Souza Ramos. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2019 – conferir em https://estadodedireito.com.br/25815-2/, livro originado da tese de doutorado defendida na UnB, no Programa de Pós-Graduação em Direito, da Faculdade de Direito, em 2019, a Autora, de modo aqui resumido, tem como núcleo o entendimento de que a escravidão colonial, fato articulador da diáspora africana, envolvia um universo cultural e simbólico, inserindo-se neste um campo ideológico ocidental universalizante. Aspecto central desse cenário é a transmutação do escravo da condição de pessoa em mercadoria, impondo um processo de coisificação, desontologizando a existência negra. O sagrado e a vida cotidiana para os povos africanos diaspóricos, seja na Améfrica ladina, seja no continente africano são parte do mesmo ser. A luta por direitos não se faz sem o plano ancestral espiritual, e este é ensinamento da ciência política dos orixás. O trabalho tem como objetivo analisar a (re)semantização da justiça a partir dos processos de luta por direitos dos Terreiros de Candomblé em Manaus/Brasil e das comunidades negras em Chocó/Colômbia e a fundação de uma epistemologia diaspórica, em que a influência da cosmologia africana é parte ontológica. A afrocentricidade é o mapa cartográfico para análise metodológica da pesquisa em dois territórios, aparentemente distintos, mas que guardam na relação ancestral com a espiritualidade, potencial ontológico do ser muntu/geru maã, do ser político, na construção e ressignificação de direitos. Desta maneira, a contextualização histórico–político sobre o Haiti e sua importância na modernidade para os processos de luta e resistência negra nas Américas, assim como a influência da cosmologia afrodiaspórica no processo de luta Haitiana são fundamentais para a identificação e reconhecimento do Ser Muntú/Geru Mãa em oposição a efabulação jurídica e racista da categoria Sujeito de Direitos. Segundo, construir e analisar o cenário histórico-político do processo de resistência e luta no Brasil, por meio dos territórios das Casas de Santo de Candomblé, e na Colômbia, nos territórios Chocoanos, que se revela nestes processos de luta. E por último a resemantização do direito e da justiça por meio das batalhas na encruza, do Direito Achado na Encruza.
No livro, assim está no Prefácio que preparei, a pedido da Autora, esse núcleo está organizado por meio de um instigante sumário que inclui o rol de anexos que balizam a localização e análise do objeto de estudo, com a refinada bibliografia que apoia esse estudo, oferecendo os seguintes enunciados: em seguida a uma Introdução que se propõe situar o Direito Achado Na Encruza E Justiça Afro-Diaspórica: Exu e a pluriversalidade da encruzilhada, um conjunto de tópicos para enquadrar no corpo teórico que orienta a direção do trabalho, num arranjo além de tudo, estético e, simultaneamente, que incorpora em afirmação epistêmica, a própria semântica do campo.
A Dissertação de Emanuel Pinheiro, prossegue no sentido dessa percepção, entretanto, com uma preocupação epistemológica de desvendar no decolonial que caracteriza a formação econômico-social e jurídica em nosso território ao sul global constituído pela clivagem capitalista, o potencial político emancipatório que abre à subjetividade coletiva de sujeitos que se emancipam, instituir dimensões alargadas para a democracia para os direitos.
Atente-se ao sumário do trabalho:
INTRODUÇÃO
COLONIALIDADE E ASPECTOS HISTÓRICOS DA CULTURA DE DOMINAÇÃO
1.1. Diáspora africana e colonialismo
1.2. Manifestações e religiões de matriz-africana no Brasil
1.3. Racismo religioso e interseccionalidade
DISCURSO EPISTEMICIDA E RACISMO NAS INSTITUIÇÕES
2.1. O controle de massas através de discurso colonialista
2.2. As igrejas neopentecostais como vetor de manutenção do racismo religioso e os traficantes de Jesus
2.3. Racismo religioso institucionalizado, reparação e a experiência de Macaé, no Rio de Janeiro
DECOLONIALIDADE EXUÍSTICA
3.1. A religião como cultura de resistência na defesa da ancestralidade e na
superação do racismo religioso
3.2. A academia como vetor de práticas decoloniais sob a perspectiva do
Direito Achado na Encruzilhada
3.3. Superação do racismo religioso através de um novo Constitucionalismo
Latino-Americano na garantia dos direitos fundamentais dos povos de terreiro
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
Desde a Introdução, o Autor já demarca um campo de afinidade teórica que dialoga com as referências do campo constituído por O Direito Achado na Rua, sua concepção e prática.
Ele afirma:
Refletir meios de superar o racismo religioso através da perspectiva do Direito Achado na Rua se caracteriza como principal propósito da presente pesquisa, na qual o pesquisador se coloca como um observador e ao mesmo tempo um sujeito no meio a ser observado – pois, afinal, conforme perspectiva Ubuntu, só podemos ser alguém através dos outros, mesmo afastado fisicamente dos dogmas e ordenamentos jurídicos, impossível se afastar das reflexões no campo do Direito que impõe a vivência do terreiro, que por trás das palhas esconde o receio de muitos irmãos e irmãs de viver sua fé aberta e publicamente.
Esse panorama verossímil se observa a partir do recrudescimento de práticas racistas na esfera religiosa, o tema, portanto, apresenta e representa uma infeliz contemporaneidade na perpetuação de fatores que tem como finalidade essencial o apagamento, ou epistemicídio, de uma cultura de resistência que, apesar da herança escravagista, persiste a cada gira, a cada toque
nos atabaques e a cada movimento dentro dos terreiros, dessa forma, a contracultura, a do negro, continua sendo atacada, por sua vez, a cada culto, a cada programa televisivo e até mesmo a cada literatura na qual inferiorizam sua ancestralidade e sua história, demonizando seus deuses, seus corpos e seus saberes.
Para alcançar os objetivos traçados para a pesquisa – ele vai configurar – é “indispensável que contemos com uma metodologia baseada em estudos teóricos e bibliográficos, haja vista a complexidade sociológica das questões abordadas, e em análise de dados e documentos, para que seja possível comprovar a hipótese de que o Estado brasileiro está ancorado em ordenamento jurídico estigmatizador e subalternizador, que estimula a prática racista como um meio proselitista de manutenção do poder para as classes dominantes, razão pela qual se busca demonstrar o Direito através da concepção teórica do Direito Achado na Rua, aqui substituída por Encruzilhada, por ser ponto de força de Exú, orixá-entidade representativo da mudança, do impossível, da ruptura e da circuncialidade, que faz “o acerto virar erro e o erro virar acerto” como possibilidade de subverter as estruturas sociais ancoradas na colonialidade”.
Por isso que, no trabalho “o objetivo geral da pesquisa é analisar as raízes da estigmatização da cultura negra através da linha das religiões de matriz africana, suas consequências e sua necessidade como instrumento de manutenção do poder, bem como o papel das Instituições na atenuação do atual quadro visando a extinção de tais práticas a partir de uma perspectiva exuística de construir o Direito, enquanto os objetivos específicos estão divididos nos capítulos que compõem o presente estudo”.
Assim, o trabalho está assim organizado:
O primeiro capítulo, são abordados a colonialidade e os aspectos históricos que acarretaram na cultura de dominação narrada em diversos outros trabalhos acadêmicos, perpassando pela diáspora africana, colonialismo, assentamento das Oriki de Exú. No segundo capítulo apresentam-se as consequências históricas e sociológicas dos discursos colonialistas, sobretudo os desígnios de manutenção do poder por meio de padrões proselitistas, onde se controla massas a partir de do fomento do embate entre oprimidos, culminando em aberrações sociais como os traficantes de Jesus, além de observar com o devido recorte a realidade no interior do Estado do Rio de Janeiro, inclusive, com relação às instituições e a difusão e reprodução dos discursos coloniais e opressores dentro do próprio Estado.
Por fim, no terceiro capítulo, propõe-se a sistematizar práticas que estimulam a contracultura e a resistência, especialmente por meio de aproximação da pauta com novos mecanismos de elaborar, interpretar e aplicar o Direito, compartilhando do pensamento de que a obstinação das ruas, da capoeira e dos atabaques será levada ao Estado como forma de mudança de paradigma e através daqueles historicamente marginalizados e oprimidos, através de uma exuêutica jurídica, com início nas academias, e levando à representatividade estrutural das minorias.
Certo também ao derredor dessa disposição paradigmática sobredeterminar-se ainda um ranço hegemonista que se inscreveu na racionalidade científica moderna a ponto de a própria religião, que já fora o viés legitimador do conhecimento, aspirar a positivar-se para se manter reconhecida. No século XIX foi notável o modo como se procurou adotar o requisito da demonstrabilidade mesmo quando se tratou de pesquisar os ditos fenômenos mediúnicos.
Na Europa, por exemplo, os mais destacados representantes das academias assumiram essa disposição, sendo conhecidos os experimentos do químico William Crookes (Inglaterra), do médico Cesare Lombroso (Itália), do astrônomo Camille Flammarion (França) que procuraram estabelecer pressupostos de cientificidade para o recém desenvolvido movimento “espírita”, que acabou ganhando densidade com os esforços sistematizadores do pedagogo Hippolyte Léon Denizard Rivail (pseudônimo Allan Kardec). No acumulado de indagações que esse campo motivou, inclui-se o formidável levantamento feito por Conan Doyle o genial criador da mítica ficção do investigador analítico Sherlock Holmes, com sua História do Espiritismo e, a atenção que deu ao tema o companheiro de estudos dialéticos de Marx, Friedrich Engels, que apesar do ceticismo arredio ao empiricismo rasteiro deixou aberta a possibilidade de novas pesquisas nesse campo, inserindo entre seus ensaios sobre a Dialética da Natureza, uma leitura muito instigante de 1878 publicada com o título A Ciência Natural e o Mundo dos Espíritos.
De toda sorte, permanece para além do paradigmático, uma sombra hierárquica no litúrgico desse campo, que não esconde a precedência da religiosidade burguesa dos trabalhos de mesas brancas em contraposição ao animismo do povo de terreiros. Algo que não deixa de impressionar a jurisdição dos palácios de justiça em face do direito achado na rua.
Os tribunais razoavelmente acolhem as provas mediúnicas, atestadas pela alta idoneidade de um trabalhador presumidamente reconhecido no labor da espiritualidade a que o próprio Direito faz recepção, como está em parecer absolutamente convicto do meu próprio querido avô, em ilustração kantiana que nunca deixo de homenagear (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Floriano Cavalcanti de Albuquerque, um Juiz à Frente de seu Tempo. In ALBUQUERQUE, Marco Aurélio da Câmara Cavalcanti de. Desembargador Floriano Cavalcanti de Albuquerque e sua Brilhante Trajetória de Vida. Natal: Infinitaimagem, 2013, p 329-338):
“E que Francisco Xavier é médium, ninguém, lealmente, o contestará, bastando unicamente, sem vê-lo em transe ou ação, considerar a sua já vasta obra, muito acima de sua cultura e possibilidades, produção tão excelente que consagra o seu autor como um dos vultos mais proeminentes e complexos das nossas letras, ao mesmo tempo poeta e prosador, cronista e romancista, sociólogo e filósofo. Mesmo uma só delas dar-lhe-ia direito a um lugar na Academia, Forçosos é, pois, convir que a sua probidade é de tal natureza que ele não se apropria da intelectualidade dos que o servem e nem explora, auferindo o lucro material da venda dos livros, fatos que convencem em absoluto da sua sinceridade e boa-fé” (Trechos da Longa Entrevista do Desembargador Floriano Cavalcanti, ao Diário de Natal. In TIMPONI, Miguel. A Psicografia Ante os Tribunais. O Caso Humberto de Campos. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 2010, p. 401-404; conferir também, sobre o assunto ALBUQUERQUE, Marco Aurélio da Câmara Cavalcanti de. A Vida Transcende Além da Terra. Natal: Infinitaimagem, 2016).
De outra parte, num sistema mundo colonizado, a notícia sobre juiz que consultava duendes, leva ao desfecho de seu afastamento da Suprema Corte na qual exercia jurisdição (Filipinas), conforme relata o jornal Philippine Daily Inquirer. Em que pese o fato, disse o Juiz ao Jornal, de ter sido o caso discutido em mais de mil blogs e suscitado mais de 10 mil respostas em todo o mundo, inclusive de apoio de praticantes de magia e ocultismo, o afastamento se consumou com o agravante de que durante as audiências do processo, os médicos da Suprema Corte e do próprio juiz terem afirmado que o réu sofria de problemas mentais.
Na visão da Suprema Corte, a aliança do juiz com duendes “coloca em risco a imagem de imparcialidade judicial, e mina a confiança pública do Judiciário como guardião racional da lei, isto é, se não torná-lo objetivo do ridículo”. E, diferentemente do que foi considerado, por exemplo, em relação a Francisco Xavier, para o tribunal filipino “fenômenos psíquicos, mesmo assumindo que existam, não têm lugar na determinação do Judiciário de aplicar apenas a lei positivista e, na sua ausência, regras e princípios igualitários para resolver controvérsias” (https://noticias.uol.com.br/bbc/2006/08/18/ult2363u7712.jhtm, acesso em 10.01.19).
Mas, perceber “no direito positivo, esses conceitos, historicamente construídos, induzem formas de pensar sedimentadas em verdades absolutas (pretensamente únicas e universais) e, assim, impositivas, uma vez que se fundam numa cosmovisão essencialista, individualista e excludente que tem como modelo de sujeito de direito o homem de tradição eurocêntrica visto como individual. Boaventura de Sousa Santos, no seu livro Se Deus fosse ativista de direitos humanos (2013, p.124), permite-me dizer que aliadas a isto, tradicionalmente as concepções e práticas dominantes dos direitos humanos foram monoculturais, e isso constituiu um dos maiores obstáculos à construção de uma luta de baixo para cima, real e universal, pelos direitos”.
E se o “direito positivo não consegue alcançar a multiplicidade que constitui o ser “pessoa” para o candomblé, conceito esse que vai além do ser único, indivíduo, já que agrega a esse ser os seus antepassados e descendentes – a ancestralidade. Isso aparece refletida nas inúmeras dificuldades de diálogo e/ou mediação de conflitos entre as tradições do candomblé e a forma de se pensar a pessoa, o sujeito de direito e a justiça no sistema oficial, monista, o que demonstra que o conceito de indivíduo na teoria monista é impróprio tanto para as questões do candomblé quanto para o contexto diverso dos direitos humanos. Por isso, impõe-se, então, a necessidade de um tipo de direito que atenda às múltiplas maneiras de se pensar essa pessoa – um direito igualmente múltiplo, plural ou de múltiplas percepções”.
Nesse passo, faço alusão à tese de ANA CAROLINA GRECO PAES, DIREITO, RELIGIÃO E ESFERA PÚBLICA: bases para discussão do ensino religioso nas escolas públicas. Tese de Doutorado. Orientador: Professor Dr. Eduardo Carlos Bianca Bittar. São Paulo: Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2020, 213 p. (https://estadodedireito.com.br/direito-religiao-e-esfera-publica/).
A tese interpela um questão que pode ser erigida a um critério relevante de mensuração da qualidade material da realização democrática: o quanto um retrospecto histórico da religião na esfera pública brasileira, pode considerar-se a relevância da religião no espaço público apesar da secularização do Estado.
E note-se que sequer estou fazendo alusão aquela estratégia de intervenção imperial, que Boaventura de Sousa Santos, denomina de “lógica de guerra”, quando sustenta que “a entrada dos evangélicos no Brasil, conservadores neopentecostais, que data de 1969, conforme um relatório de Nelson Rockfeller, que vai considera a teologia da libertação uma ameaça à segurança nacional dos Estados Unidos, e diz ‘é preciso uma resposta conservadora’, e a resposta religiosa conservadora são os envangélicos neopentecostais” (SANTOS, Boaventura de. Da Expansão Judicial à Decadência de um Modelo de Justiça. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo et. al. (org.). O Direito Achado na Rua, v. 10: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade. Brasília: OAB Editora, Editora Universidade de Brasília, 2021).
Na tese, a Autora sustenta que para a compreensão desse fenômeno, os conceitos de direito, modernidade, secularização, política, democracia e esfera pública se estudados à luz filosofia de Jürgen Habermas, pode levar à conclusão de que a religião tem muito a contribuir com o Estado Democrático de Direito. Contudo, para que o faça, deve ter seus conteúdos construídos de modo universal, a partir da tradução, que é feita de modo compartilhado por cidadãos crentes e não crentes. Essa uma exigência do Estado Secular Liberal que constitui o Estado Democrático de Direito. Sendo assim, o ensino religioso confessional nas escolas públicas só pode ser realizado através de conteúdos traduzidos, que podem ser cognoscíveis a todos os cidadãos”.
Assim é que tenho aferido, em minha própria experiência, certamente muito próxima de meus colegas de banca, sobre essa dimensão do debate quando ele se coloca racional e argumentativamente nos termos propostos por Habermas. E o tenho feito muito instigado pelo meu velho mestre Roberto Lyra Filho, desde suas leituras de mais ampla implicação interdisciplinar, conforme aparece em seu instigante estudo Filosofia, Teologia e experiência mística (Kriterion: Revista da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, vol. XXII, nº 69, jan-dez 1976, p, 136-145, sobre as fronteiras da imanência-transcendência: “O racionalismo acende a luz que não sabe que o seja; mas ela não ilumina o universo e, sim, o terreno de sua limitada incidência; sobretudo, não ilumina a si mesma, enquanto poder clarificante. O misticismo se embebeda de uma luz mais forte, porém, ao cabo, implica a fundamentação racional que validaria sua experiência de transrazão. Dessa maneira, a Filosofia, sendo insuficiente, permanece de todo indispensável, nela se preparando o terreno, através da decantação crítica das vivências. A rendição é o desfecho de uma busca e, não, a ingênua foi du charbonier ou o produto de uma graça, pura e simples, que se há de distinguir, em todo caso, como elucidações teológicas. A sugestão aqui proposta ao diálogo resume-se nisto que, pelas razões expostas, o filósofo, o teólogo e o místico, sem prejuízo da especificidade de suas órbitas de atuação, ainda e sempre permanecem unidos e hão de sustentar-se, reciprocamente, sob pena de se frustrar, ao limite radical, a própria busca a que se entregam. Não se trata de subordinação. Mas será possível negar a interdependência?”.
Volto a Roberto Lyra Filho, para inferir até o que se busca estabelecer como indispensável fio da meada histórica, “que o rumo do progresso permanece, contudo, nas coordenadas subjacentes do movimento em espiral cuja penetração é transempírica, não porque esteja acima, abaixo, aquém ou além do fenômeno, e sim porque o Ser, já disse com Tillich e repito, é ‘a força de ser em tudo o que é’, ainda que isto nos valha o rótulo de ‘panteístas’ (que confunde o Deus sive natura e a onipresença divina cá, não ‘lá’, ‘além’, ab extra: a separação cortante de imanência e transcendência é mais um dos vícios pré-dialéticos do pensamento). Deus ‘guia por dentro a universal marcha do Mundo (Teilhard du Chardin)”(conforme Lyra Filho, Roberto. Desordem e Processo: Um Posfácio Explicativo. In Lyra, Doreodó Araujo (organizador). Desordem e Processo. Estudos sobre o Direito em Homenagem a Roberto Lyra Filho. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1986).
Nos anos 2006 a 2009 integrei a coordenação, a partir de Grupos de Pesquisa da Faculdade de Direito da UnB, de um Observatório da Constituição e da Democracia, com uma edição mensal em modelo tablóide (de 24 páginas). O tema central da edição n. 23, de junho de 2008, foi “Religião e Estado Democrático”. Entre as seções propostas, pode-se encontrar “repensar a religião”, em texto de Boaventura de Sousa Santos, aludindo a colóquio ocorrido na Universidade de Coimbra, sobre o diálogo entre o islão e o cristianismo, no qual o Autor salienta as injunções do secularismo que afetam e sustentam limites de possibilidade para o diálogo intercultural e até interreligioso, em âmbito de esfera pública (p. 24).
Nesse mesmo número, discorrendo sobre Ensino Religioso nas Escolas Públicas, a partir de lei do Estado do Rio de Janeiro, Fábio Portela Lopes de Almeida (p. 06-07), levanta a preocupação de não crentes e também de crentes sobre o problema, para o risco de “uso religioso das instituições públicas sempre temido pelos membros de minorias religiosas”.
O trabalho de Emanuel Pinheiro, nas suas próprias e conclusivas palavras “fornece meios de ponderar sobre as diversas camadas de racismo e como tal infeliz fenômeno social afeta a todos direta ou indiretamente, por meio da percepção de suas características por um caminho histórico, desde a escravidão, seus princípios, fundamentos e suas consequências que, à época de seu início, eram inimagináveis; até a contemporaneidade com um campo de disputa mais alargado pela necessidade de coexistência entre minorias secularmente condenadas e que hoje se lançam como novos sujeitos de direito”.
Ele alia a essa conclusão, a “compreensão de termos cotidianamente utilizados em diversos discursos, como racismo estrutural e institucional, há que se voltar atrás e traçar um panorama de compreensão acerca de outros não tão populares, mas que são indispensáveis para que possamos entender o cenário atual, como colonialidade do poder, interseccionalidade, violência sistêmica, biopoder e biopolítica, cuja falta de entendimento obsta seu combate na superação de práticas racistas, sobretudo de cunho religioso”.
O Autor chama a atenção para as perspectivas de uma abordagem que opera para dar relevo ao conceito povo de rua, numa acepção que se aproxima essa categoria tal como estabelecida em O Direito Achado na Rua (concepção e prática).
Com essa categoria ele sustenta ser possível deslocar um movimento de encarnação, de tempos/espaços/práticas cotidianas para além de um mundo dividido entre flores e facas. Nos incita a lançarmos às inscrições das flores e facas cruzadas, na medida em que a encruzilhada, em que se acende a vela e se vela a vida, é a mesma onde se arreiam e se cruzam flores a facas. A rua tem dono que a guarda e a dinamiza. A rua, na inscrição de seu povo, é a da desobediência do caminhante, da gargalhada que destrona, das sapiências do corpo, da palavra cruzada, da astúcia, da transgressão, da antidisciplina. A rua é de quem nasce, vive e morre nela. Em suma, a rua é a porteira do mundo”.
Também em O Direito Achado na Rua têm-se procurado irradiar dessa espacialidade simbólica as várias percepções do alcance espacial-temporal das subjetividades (rua, águas, florestas, manicômios, cárceres, aldeia, noite), conforme o robusto repositório de teses, dissertações, monografias e ensaios que procedem dessa base teórica.
Sem aquele arranque epistemologicamente interpelante para barrar o epistemicídio, como está em Maurício Araújo, fortemente assimilado pelo Autor (cf. ARAÚJO, Maurício de Azevedo. Enegrecendo a teoria crítica do Direito: epistemicídio e as novas epistemologias jurídicas na diáspora. In: SOUZA JÚNIOR, José Geraldo et. al. (org.). O Direito Achado na Rua, v. 10: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade. Brasília: OAB Editora, Editora Universidade de Brasília, 2021.), até mesmo autores importantes mas não tão críticos, tem-se dado conta desse movimento a contrapelo.
Veja-se em IL DIRITTO DI AVERE DIRITTI, di minima&moralia pubblicato giovedì, 10 Ottobre 2013 • 3 Commenti (https://www.minimaetmoralia.it/wp/estratti/stefano-rodota-il-diritto-di-avere-diritti/), a observação do notável jurista (e político recém-falecido) Stefano Rodotà, que nos fala sobre “a necessidade inegável de direitos e do direito a manifesta-se em todo o lado, desafiando todas as formas de repressão e inervando a própria política. E assim, com a ação quotidiana, diferentes sujeitos encenam uma declaração ininterrupta de direitos, que tira a sua força não de alguma formalização ou reconhecimento de cima, mas da profunda convicção de mulheres e homens de que só assim podem encontrar reconhecimento e respeito pelos seus dignidade e pela sua própria humanidade. Estamos perante uma ligação sem precedentes entre a abstração dos direitos e a concretude das necessidades, que põe sujeitos reais a trabalhar”.
Para ele, certamente, “não os ‘sujeitos históricos’ da grande transformação moderna, a burguesia e a classe trabalhadora, mas uma pluralidade de sujeitos agora ligados entre si por redes planetárias. Não um “intelecto geral”, nem uma multidão indeterminada, mas uma multiplicidade laboriosa de mulheres e homens que encontram, e sobretudo criam, oportunidades políticas para evitar ceder à passividade e à subordinação”.
Mas, realmente, numa aferição que me surpreende porque ativa uma categoria metafórica com a qual instalamos toda uma linha de pesquisa (O Direito Achado na Rua, cf. Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq), ele prossegue: “Todos estes sujeitos ignoram o que, no final do século XVIII, começou em torno das duas margens do “Lago Atlântico”, não são dominados por alguma ‘tirania de valores’, mas interpretam, cada um à sua maneira, a liberdade e os direitos ao longo do tempo que vivemos. Aqui não é a ‘razão ocidental’ em ação, mas algo mais profundo, que tem as suas raízes na condição humana. Uma condição histórica, porém, não uma natureza da qual se possa extrair a essência dos direitos. Por que, de fato, só agora tantos condenados da terra os reconhecem, invocam, desafiam? Por que são eles os protagonistas, os adivinhos de um ‘direito achado da rua’? (‘diritto trovato per strada’)”.
Por isso é relevante a percepção que o Autor traz, ao dizer que “é precisamente na transgressão e antidisciplina das Encruzilhadas que podemos encontrar o Direito e a Justiça, pois “brotam nas oposições, no conflito, no caminho penoso do progresso, com avanços e recuos, momentos solares e terríveis eclipses” (Lyra Filho, 2012, p. 99). Aliás, a perspectiva de combate não vem das camadas minoritárias, ressalta-se, pois a nós não foi dada a oportunidade de escolha, pertencemos aos que foram aqui lançados, colocados no lugar do ‘outro’, onde o ‘Eu’ sempre será o lugar daqueles ao norte político-geográfico”:
O Direito Achado na Encruzilha não nos permite nos aquietar e nos manter condicionados em tal perspectiva, a experiência exuística na concepção de mundo impossibilita tal conformismo, ele nos movimenta, mesmo que a contragosto, faz-nos questionar e vislumbrar a realidade tal como é, afastando-nos do que é fácil e aparentemente bom, pensando bem, quem nos afastaria do bem se não fosse o diabo? Entre infinitas possibilidades, diversos caminhos, variados meios de alcançar a liberdade e a emancipação de um Direito que seja pautado na verdadeira Justiça Social, que façamos então dos sujeitos coletivos de direito, ora compondo a minoria do sul abissal, verdadeiros atores políticos e constituintes de um ordenamento que contemple a formalidade jurídica de modo também material e real. Não se sabe por qual dentre tantas vias, passarelas, avenidas e ruas passar, mas que tenhamos a certeza que os rumos darão numa Encruzilhada de luta, onde Exú estará nos esperando com sorriso no rosto e um copo de marafo na mão, pronto para gargalhar e esculhambar diante das adversidades encontradas, feliz em saber que por mais árdua que seja a caminhada e ainda que com os “pés sangrentos”, não nos deixamos sucumbir pela dissimulação de um caminho fácil, reto e calçado, pois temos a consciência que sob aquelas pedras restam os corpos e os saberes de nossos ancestrais.
O meu colega Douglas Pinheiro, em ensaio publicado no Observatório da Constituição e da Democracia já referido (p. 14-15), Liberdade religiosa à moda evangélica, traz um questionamento que pode ser dirigido a Emanuel Pinheiro e mais ainda, a partir dela, ao próprio tema: o debate atual, mobilizando a disputa argumentativa, num processo de evidente teocratização do social e do político, esvazia a esfera pública ou é uma abertura, mesmo que se ponha a questão em termos de uma religião civil, reocupada semanticamente e percebida como patriotismo constitucional podendo assim se mostrar uma alternativa mais que oportuna à reflexão da laicidade? Um direito achado na encruzilhada para além da laicidade, fornece lastro para uma disposição humanizadora, democratizante e emancipatória revestida de qualidade para instituir um projeto de sociedade com inscrição nos direitos humanos?
Ouça um bom conselho: povos-floresta, o caso da UHE Belo Monte (Monstro)
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
MATHEUS DE ANDRADE BUENO. Ouça um bom conselho: povos-floresta, o caso da UHE Belo Monte (Monstro) e práticas reconstituintes de direitos na Amazônia brasileira. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (CEAM), BANCA EXAMINADORA, Brasília, 2023, 176 fls.
Presidi, como Orientador da Dissertação, a Banca Examinadora da qual resultou a aprovação do trabalho. Também participaram da Banca, como leitor, o Doutor Luiz Henrique Eloy Amado, atualmente Secretário-Executivo do Ministério dos Povos Indígenas (que não pôde estar presente na arguição em face da agenda institucional) e os professores Cristiano Otávio Paixão Araújo Pinto Universidade de Brasília (UnB) e Miguel Gualano de Godoy, da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
O contexto integral da apresentação e da defesa, para além do que demarco na Coluna pode ser conferido pelo Canal Youtube de O Direito Achado na Rua, pelo qual o evento foi transmitido, em cujo repositório permanece catalogado para acompanhamento dos estudiosos do tema: https://www.youtube.com/watch?v=vGg_LvV4IZc&t=232s.
A Dissertação, conforme o seu resumo,
parte da fortuna crítica amealhada pela escola jurídica do Direito Achado na Rua, sobretudo das noções de sujeito coletivo, extralegalidade e de Rua, concebida como metáfora referente ao espaço público no qual se promove a invenção de direitos no contexto de uma legítima organização social da liberdade. Assim como o Direito Achado na Rua compreende viável a constituição (invenção) de direitos sem a necessidade de intermediação de textos normativos emanados do poder estatal, o trabalho foca na extralegalidade como um potencial campo de desconstituição de direitos, lançando mão das noções de “destruição por dentro” ou “cupinização” como fatores de erosão institucional. Tais aspectos decorrem centralmente de práticas desconstituintes, sem que o ataque a direitos fundamentais passe, necessariamente, por alterações normativas próprias da arena parlamentar, com a consequente redução dos espaços de transparência e deliberação. A hipótese da pesquisa é de que a reconstituição de direitos atacados na Amazônia brasileira pode ser promovida pela mobilização social, especialmente dos sujeitos coletivos afetados. Nesse contexto, emprega-se a categoria povos-floresta, cunhada por Eliane Brum, que traduz a relação indissociável entre povos tradicionais e a natureza, em oposição ao povo da mercadoria, a que alude Davi Kopenawa. O recorte da pesquisa volta-se à Amazônia brasileira, palco histórico, mas também recente, de práticas violadoras de direitos fundamentais e de sistemático silenciamento e racismo ambiental. Ainda mais especificamente, o trabalho realça o caso da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, emblemático episódio apto a retratar que visões autoritárias no contexto da Amazônia brasileira constituem aspectos que remontam à época colonial, percorrem a era da ditadura empresarial-militar e alcançam até mesmo governos progressistas e democráticos, a revelar a indispensabilidade de que a própria sociedade tenha meios de enfrentamento dessas práticas desconstituintes. A UHE Belo Monte motivou a instituição do Plano de Desenvolvimento Regional Sustentável do Xingu (PDRS-X), com a implantação de um colegiado composto paritariamente entre membros estatais e não estatais com atribuição para apreciação de projetos e destinação de 500 milhões de reais. A pesquisa analisa o arranjo institucional do colegiado e seu funcionamento, correlacionando as iniciativas (estatais, sociedade civil em geral e povosfloresta) e a destinação (interesse público primário geral, interesse público secundário e povos-floresta). Verificou-se que a atuação dos povos-floresta no órgão traduz a presença da própria natureza como sujeito coletivo no colegiado, o que se infere a partir das destinações dos projetos e da relação indissociável entre povos tradicionais e a natureza. Já os membros estatais desempenharam papel voltado ao próprio custeio da burocracia (interesse público secundário) ou, no muito, ao interesse público primário geral, utilizando-se do PDRS-X como simples fonte potencializadora de recursos sem vinculação necessária com a defesa dos povos-floresta. Dessa forma, o PDRS-X configuraria relevante episódio de experimentalismo institucional que poderia legitimar que os povos-floresta ocupem diretamente espaços de poder como forma de enfrentamento de práticas desconstituintes de direitos na Amazônia brasileira. Essa prática reconstituinte anterior corrobora que os povos-floresta sejam protagonistas na definição da vazão do rio Xingu no Trecho de Vazão Reduzida, de modo que a partilha das águas deve ser realizada com base em critérios ecossistêmicos que valorizem os conhecimentos tradicionais.
O Autor, que é também Procurador da República, com exercício em Altamira, no Pará, combina o conhecimento da realidade a partir de seu ofício, mas enquadra o seu agir desde uma perspectiva acadêmica que lhe abre ensejo para situar o tema de modo analítico, tal como se revela em roteiro transcrito para o sumário do trabalho:
INTRODUÇÃO
CAPÍTULO 1: Povos-floresta e a Amazônia brasileira
1.1. A categoria povos-floresta
1.2. A Amazônia brasileira: o histórico e sistemático silenciamento dos povos-floresta
1.3. Tragédia humanitária Yanomami: a necessidade de enxergar para escutar
CAPÍTULO 2: Pilares epistemológicos
2.1. O Direito Achado na Rua (DANR) e a Extralegalidade: invenção e instituição de Direitos a partir de reivindicações de sujeitos coletivos
2.2. A Constituição radical: um futuro estrutural e ancestral
2.3. A desconstituição de Direitos “por dentro”
2.4. Direitos fundamentais e conjunturas políticas
2.5. A proeminência do político sobre o jurídico na obra de Carl Schmitt: a UHE Belo Monte como suspensão da ordem jurídica
CAPÍTULO 3: Povos-floresta e a ativação de direitos
3.1. Breve histórico do processo de instalação e funcionamento da Usina Hidrelétrica Belo Monte (Monstro)
3.2. UHE Belo Monte (Monstro): a atual configuração do empreendimento e o
Hidrograma do “Dissenso”
3.3. O Plano de Desenvolvimento Regional Sustentável do Xingu (PDRS-X)
3.4. Critérios metodológicos para a análise do funcionamento do Plano de Desenvolvimento Regional Sustentável do Xingu (PDRS-X)
3.4.1. Classificação dos proponentes
3.4.2. Classificação quanto ao objeto do projeto
3.4.3. Classificação dos destinatários (interesse público primário, secundário e dos
povos-floresta)
3.4.4. Exemplos de classificação aplicada
3.5. Achados a partir da análise de funcionamento do Plano de Desenvolvimento Regional Sustentável do Xingu (PDRS-X)
3.6. Participação dos povos-floresta e o Hidrograma Piracema: voz à vida
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
O trabalho assenta em alguns pilares – o Autor indicou cinco pontos de ancoragem, para assentar a sua análise.
Segundo ele, chamou a sua atenção em primeiro lugar,
o fato da Usina Hidrelétrica Belo Monte (UHE Belo Monte) constituir um empreendimento econômico dissociado da ordem jurídica. Entre outras irregularidades, não foram observadas as exigências normativas de consulta livre, prévia e informada dos povos tradicionais. Também não foram concluídos previamente os estudos técnicos (indispensáveis, por força do princípio da precaução) aptos a dimensionar com segurança e integralidade o potencial dano ambiental e, por consequência, as respectivas medidas de compensação/mitigação. Mesmo as condicionantes identificadas e impostas como condição (a redundância é deliberada a fim de ressaltar o conteúdo até mesmo literal das condicionantes) no processo de licenciamento ambiental foram, em diversas oportunidades, flagrantemente descumpridas ou apenas parcialmente efetivadas, ignorando-se o seu caráter essencial e cujo inadimplemento deveria ensejar a paralisação da instalação e/ou operação da usina.
Ainda que diante desse quadro, a obra prosseguiu fundamentada em si mesma e em um suposto valor econômico superior que legitimaria o empreendimento de qualquer modo e a qualquer custo socioambiental.
Quando questionado em âmbito judicial, a solução para viabilizar o empreendimento, mesmo à margem de razões jurídicas, foi o uso do autoritário instrumento processual da Suspensão de Segurança, abrindo espaço para motivos e motivações políticas que justificariam a excepcional suspensão da ordem jurídica por razões de ordem e/ou economia públicas.
Atualmente, a UHE Belo Monte aposta em um contexto de fato consumado para se manter excluída da incidência da ordem jurídica, embora se trate de instituto sabidamente inaplicável à temática ambiental.
Em segundo lugar, ele esclarece,
o senso comum tende a gerar a imagem de que a UHE Belo Monte, já instalada e em operação, constitui um conflito superado no tempo e no espaço. No entanto, não se trata simplesmente da ocorrência de um dano passado e irreversível. Além das questões de instalação, que realmente são de difícil recomposição, o modo de formatação do empreendimento compreende uma disputa contínua e atual acerca do volume de água destinado à geração de energia e o destinado à viabilização da vida do e no rio Xingu, sobretudo no Trecho de Vazão Reduzida (TVR). Embora o Estado e a concessionária intitulem a vazão de água como fruto de um cognominado “Hidrograma de Consenso”, a realidade revela que se trata de questão objeto de disputa constnte e que traduz a atualidade do conflito (e não apenas a sua relevância histórica).
Isso sem mencionar as questões de responsabilidade fruto das ilegalidades perpetradas. Como bem sintetiza Thais Santi Cardoso da Silva, Procuradora da República com ampla e profunda atuação no combate às irregularidades do projeto, “Belo Monte não acabou. Se você tem responsabilidade, a sua responsabilidade não acaba porque a tragédia aconteceu”
Em seguida, ele vai dizer, num terceiro lugar, ser
nítida a batalha epistêmica sobre o significado da natureza . Para o povo da mercadoria, na expressão de Davi Kopenawa, tratar-se-ia de mera fonte de riqueza econômica e exploração. Já para os povos tradicionais, a natureza constituiria fonte de vida, de ancestralidade, de comunhão e até mesmo de parentesco. Não numa visão meramente folclórica, mas segundo uma sofisticada compreensão, prática e teórica, da ausência de plena divisão entre os mundos da cultura e da natureza, justificando a indissociável relação de verdadeira identidade entre povos tradicionais e a natureza.
A força dessa queda de braço epistêmica apenas é menos notada por conta do silenciamento de uma cosmovisão inferiorizada a partir de uma compreensão pautada no racismo ambiental estrutural construído desde a invenção do Brasil. Mas é importante que se diga, desde logo, com todas as letras: a cosmovisão dos povos tradicionais sobre a natureza não se trata de simples crença, mas de conhecimento.
Seu quarto assentamento diz respeito ao que ele considera ser
inexorável perceber o caráter suprapartidário da imposição da UHE Belo Monte. Trata-se de tema que reúne, ainda que com matizes e intensidades diferentes, ao menos os governos da ditadura empresarial-militar, Fernando Henrique Cardoso, Lula, Dilma Rousseff, Michel Temer, Jair Bolsonaro e novamente Lula.
Não seria adequado generalizar a ponto de imputar a todos esses governos idêntica responsabilidade pela tragédia gestada a partir do empreendimento. Mas também não seria adequado atribuir responsabilidade tão somente a um determinado programa político ou partidário. Se há algo que aglutina posições políticas tão diferentes é a prevalência de interesses econômicos sobre a proteção socioambiental da Amazônia .
Assim, mesmo em governos ditos progressistas, a pauta afeta à defesa da Amazônia tem se revelado contramajoritária frente aos interesses econômicos dominantes.
É curioso que a alternância do exercício do poder, própria de regimes republicanos e democráticos, não tenha sido suficiente para neutralizar o arraigado plano de converter a vida do rio Xingu em simples fonte de energia, cenário a evidenciar a importância de empoderar a própria sociedade e, mais especificamente, os povos da floresta, a fim de que seja possível promover essa necessária defesa socioambiental.
Nesse contexto ele vai inserir o que denomina o quinto pilar, para ele algo que se associa
à intensa e constante resistência dos povos tradicionais, verificada não apenas no enfrentamento do projeto da UHE Belo Monte, mas ilustrada a partir dele. Com efeito, as práticas reivindicatórias no ambiente da Amazônia brasileira, sobretudo a partir de mobilizações dos povos tradicionais, consistem efetivamente em práticas, não se exaurindo em atos episódicos.
Esse quinto pilar, focado nas lutas dos povos tradicionais na Amazônia, é o fio condutor de todo o trabalho. Parte-se do exemplo da UHE Belo Monte para ilustrar uma história de atuações que compreendem a Amazônia como um todo e os povos tradicionais em toda a sua complexidade e pluralidade.
Tais aspectos (mitigação da legalidade, atualidade do conflito, disputa epistêmica sobre a natureza, caráter suprapartidário de práticas violadoras da juridicidade e os movimentos de luta e resistência dos povos tradicionais) embasam, em todas as linhas, a pesquisa que ora se esmiúça. E, além disso, desvelam a importância da questão em debate e a centralidade que a defesa da natureza na Amazônia expressa sob a óptica jurídica e social.
O trabalho é pródigo na criação de categorias com as quais o Autor articula os elementos descritivo-explicativos de seu estudo, a partir daquela fundamental que ele retira de Eliane Brum, e que vai ser palavra-chave de sua dissertação: a categoria povo-floresta. Lendo Ailton Krenak e Davi Kopenawa, além de O Direito Achado na Rua, outras categorias, com arranque metafórico, vão demarcar o seu percurso analítico: povo de mercadoria, hidrograma de consenso, cupinização, destruição por dentro, prática desconstituinte, prática reconstituinte, desconstrução de direitos, racismo ambiental, também uma categoria forte deduzida de O Direito Achado na Rua, sua concepção e prática, caracteriza o texto: sujeito coletivo de direito. Sobre essa categoria, aliás, conferir em Lido para Você, https://estadodedireito.com.br/sujeitos-coletivos-so-a-luta-garante-os-direitos-do-povo/.
Pondo em relevo as duas primeiras anotações, a pesquisa, tal como considera o Autor, “permitiu reconhecer a distinção entre povos-floresta (Eliane Brum) e o povo da mercadoria (Davi Kopenawa), assentando a diferenciação de relação com a natureza que sustenta as bases do trabalho. A história dos povos-floresta é marcada por violência, assimilação e silenciamento, mediante compreensões racistas e pautadas em critérios de dominação e exploração. Em tais casos, as arbitrariedades praticadas contra tais grupos não são suficientemente noticiadas e não despertam a atenção de grande parte da sociedade que ignora as complexidades das relações sociais no contexto da Amazônia brasileira”.
O Autor também conclui que “a Constituição revela um território de disputa e que as ações de invenção de direitos podem ser realizadas independentemente de uma emanação estatal. Mais do que isso, as ações políticas podem ser mediadas diretamente pela Constituição, compreendida, nesse contexto, em um sentido radical. Mas, assim como os direitos podem ser instituídos sem previsão legal, tais interesses podem ser destruídos “por dentro”, vale dizer, a partir de práticas desconstituintes que, mesmo sem promover alterações de textos normativos, atacam a centralidade dos mandamentos constitucionais. A possibilidade de que práticas políticas desconstituam direitos, mesmo sem alterações normativas, revela o receio de uma excessiva proeminência da ordem política sobre a jurídica, comprometendo a diversidade e, em geral, os interesses que não se encontram resguardados pela política majoritária”.
Essa conclusão me conforta. De fato, tenho sustentado esse ponto de vista, vale dizer, que a Constituição não se revela pelo texto, mas pela disputa de posições interpretativas para a realizar.
Esse é o alcance de meu argumento, exposto em várias oportunidades e escritos, mais recentemente, em meu artigo Constituição Federal, 35 Anos: Ainda uma Disputa por Posições Interpretativas, que ofereci para a obra celebratória publicada neste ano – A constituição da democracia em seus 35 anos / (Orgs) Luiz Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Álvaro Ricardo de Souza Cruz. Belo Horizonte: Fórum, 2023 (sobre ela conferir: https://estadodedireito.com.br/a-constituicao-da-democracia-em-seus-35-anos/.
Finalmente, conclui o Autor, o estudo da imposição da Usina Hidrelétrica Belo Monte evidenciou que esse processo, em si, consistia em prática desconstituinte, na medida em que, mesmo sem alterar a ordem jurídica, promoveu a destruição da vida do e no rio Xingu:
A reconstituição “por dentro” de direitos violados no contexto da UHE Belo Monte é um caminho indispensável. A análise do funcionamento do PDRS-X possibilitou reconhecer o comprometimento dos povos-floresta na defesa da natureza, embora com voz e participação reduzidas. Por outro lado, a avaliação dos projetos propostos evidenciou a desconexão entre os atores estatais e a proteção socioambiental, com proposições que sequer dialogam com o barramento da vida do rio Xingu, fato gerador do próprio arranjo institucional.
Essa experiência prévia corrobora a asserção de que a participação direta dos povosfloresta é imprescindível para a retomada da vida do rio Xingu. Não apenas pela tradicionalidade de tais povos, mas, sobretudo, por considerar que é o caminho para dar voz ao Xingu em um processo que verdadeiramente priorize os critérios ecossistêmicos na definição da partilha das águas, conferindo ao Xingu não apenas a posição de objeto de exploração, mas de sujeito que expressa sua vontade pelos corpos dos povos que são natureza.
Por isso que chamei a atenção do Autor, durante a defesa, para instigante designação feita por Ailton Krenak autor de referência, para a sua percepção de que a Constituição é território a disputar, posicionamento que deve mobilizar o social para que essa conquista se realize democraticamente e com reconhecimento de projetos emancipatórios. Indiquei, de resto, que essa enunciação ele o fez em debate que entretivemos na EBC – TV Brasil, sobre os 35 anos da Constituição de 1988 e os direitos dos povos indígenas (https://www.youtube.com/watch?v=twZYJIe7vDs&t=2385s : Ponto de Vista – 35 Anos da Constituição Federal – Direitos Indígenas – 19/10/23).
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.5
O mercado de carbono e o direito dos povos xinguanos
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
Ewésh yawalapiti waurá. O mercado de carbono e o direito dos povos xinguanos. Dissertação de Mestrado defendida na Faculdade de Direito – Programa de Pós-Graduação em Direito. Brasília: UnB, 2023, 119 fls.
Participar da Banca Examinadora dessa dissertação, que teve a orientação do professor Antonio Escrivão Filho, representou para mim, a oportunidade de agregar ao repositório de temas sobre a questão indígena, camponesa, quilombola e de seus direitos autenticamente construídos, a amplificação da contribuição oferecida por O Direito Achado na Rua, sua concepção e prática.
A dissertação defendida por Ewésh Yawalapiti Waurá, vem juntar-se a relevantes trabalhos desenvolvidos sob a perspectiva de O Direito Achado na Rua (por isso mesmo uma expressão inscrita como palavra-chave no seu enunciado catalográfico.
Relaciono aqui, sem completar o rol, alguns desses trabalhos, indicando o modo como os resenhei a partir de minha Coluna Lido para Você, publicada semanalmente no Jornal Estado de Direito:
https://estadodedireito.com.br/29767-2/ (O RETORNO DE XAWARA NO TERRITÓRIO YANOMAMI: CONFLITO, LUTA E RESISTÊNCIA. SULIETE GERVÁSIO MONTEIRO (SULIETE BARÉ).
Incluo também, desde que fiz recensões no mesmo espaço crítico, outros estudos fundantes desse campo no contexto de O Direito Achado na Rua, que abrem perspectivas de localização conforme uma linha caracteristicamente singular de interpretação da realidade.
Não faltaram nesse catálogo, contribuições a partir de contexto continental, latino-americano, relevo para as iniciativas do IIDS – Instituto Internacional Derecho y Sociedad, dirigido por Raquel Yrigoyen Fajardo, cuja defesa dos direitos humanos internacionais dos povos originários a erigem em uma das vozes mais respeitadas nesse campo. Menciono, aliás, como testemunho e colaboração: https://estadodedireito.com.br/memoria-del-i-curso-internacional-interdisciplinario-e-intercultural-proteccion-internacional-de-los-derechos-humanos-de-pueblos-indigenas/; e https://estadodedireito.com.br/crisis-de-representacion-politica-y-demandas-indigenas-para-la-descolonizacion-del-estado/.
Menciono por fim, por se constituir uma abordagem que tal como Ewésh quer fundamentar os modos próprios de apropriação segundo seus direitos próprios dos bens econômicos e materiais no interesse dos direitos originários dos povos indígenas, dois importantes trabalhos, uma tese e uma dissertação, que tive a oportunidade de orientar.
A tese de Roberta Amanajás Monteiro. “Qual desenvolvimento? o deles ou o nosso?”: a UHE de Belo Monte e seus impactos nos direitos humanos dos povos indígenas. 2018. 375 f., il. Tese (Doutorado em Direito)—Universidade de Brasília, Brasília, 2018. A tese, conforme resumo lançado no repositório de teses da UnB (http://icts.unb.br/jspui/handle/10482/34052), “trata da tensão entre o desenvolvimentismo e os direitos humanos a partir do estudo de caso da usina hidrelétrica de Belo Monte e os seus impactos sobre os povos indígenas Arara da Terra Indígena (TI) Arara da Volta Grande e Juruna da TI Paquiçamba. A pergunta que norteia a tese interpela como ocorre a tensão entre projetos de desenvolvimento e os direitos humanos dos povos indígenas e se os conflitos se inscrevem na matriz colonial de poder. A análise do tema fundamenta-se na teoria da Colonialidade do Poder de Aníbal Quijano e nos autores do pensamento decolonial. A metodologia eleita implicou pesquisa empírica que forneceu os argumentos da incidência da ideia de raça no percurso do licenciamento ambiental do empreendimento. A partir dai são analisadas as tensões evidenciadas nas entrevistas que apontaram para a negação da condição de sujeito de direitos e de conhecimento aos povos indígenas e, consequentemente, do exercício dos seus direitos territoriais, à natureza, ao modo de vida e direito à participação e consulta prévia. Ao fim, são apresentados elementos a partir das narrativas dos indígenas e outros atingidos para pensar um outro desenvolvimento”.
Encontro o próprio Ewésh pontificando em estudos de alta relevância, envolvendo temas desafiadores para a afirmação desses direitos. Eu o encontro, em boa companhia jurídica e acadêmica, em Entender para implementar: Caminhos para uma hermenêutica segura quanto à consulta prévia aos povos e comunidades tradicionais Bruno Walter Caporrino; Ewésh Yawalapiti Waurá; José Heder Benatti; Felício Pontes Júnior, publicado em Tribunais brasileiros e o direito à consulta prévia, livre e informada. SILVA, Liana Amin Lima da et al (Coord.). São Paulo: Editora Instituto Socioambiental/CEPEDIS, 2023, 322 p. (para download: https://acervo.socioambiental.org/acervo/publicacoes-isa/tribunais-brasileiros-e-o-direito-consulta-previa-livre-e-informada).
Note-se que aqui apenas recortei abordagens que se referem ao tema indígena. Não aludi às que focalizam as perspectivas camponesas e quilombolas. Embora, nesse aspecto, considerando a questão estudada por Ewésh – questões de mercado de crédito carbono e sua incidência nos Territórios Indígenas – eu devesse por em relevo essa capacidade protagonista de novos sujeitos coletivos de direito – indígenas, quilombolas, camponeses – que se empoderam politicamente de força instituinte e simultaneamente constituinte para afirmação de direitos, em temas de radical convocação.
Tratei disso, em co-organização editorial, em livro da Série O Direito Vivo (O Direito Achado na Rua) https://estadodedireito.com.br/sujeitos-coletivos-so-a-luta-garante-os-direitos-do-povo/, aqui mencionado para chamar a atenção do artigo de pesquisador sem-terra egresso dos programas de educação do campo (Pronera) – O Dia em que o Sujeito Coletivo de Direito Ocupou a Bolsa de Valores: o Encontro Inusitado entre a CVM e o MST, no qual Diego Vedovatto, a partir dos pressupostos teóricos e metodológicos de O Direito Achado na Rua, descreve e analisa o “encontro inusitado” entre a Comissão de Valores Mobiliários – CVM e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra – MST, durante a emissão do primeiro título de crédito na modalidade de Certificado de Recebíveis do Agronegócio – CRA, aberto ao público geral na bolsa de valores brasileira, por cooperativas constituídas por agricultores sem-terra e sediadas em assentamentos de reforma agrária.
Chamo a atenção para o Resumo da Dissertação:
Esta pesquisa objetivou analisar as questões de mercado de crédito carbono e sua incidência nos Territórios Indígenas. Mercado esse que tem cobiçado cada vez mais a implementação de seus projetos nos territórios tradicionais como suposta solução para reduções de emissões de gases de efeito estufa. A problemática que se apresenta neste trabalho refere-se aos assédios crescentes das empresas de consultorias ou desenvolvedoras dos projetos Locais de REDD+, aqueles que incidem diretamente sobre os territórios ou comunidades. Isto porque está ocorrendo agora uma “segunda onda em contratos de carbono” nas comunidades indígenas, sem conhecer direito o que é mercado de carbono, os riscos que ele oferece, muito menos sobre conteúdo dos contratos que determinada comunidade está assinando. Em face disso, o presente trabalho buscou entender e compreender: 1) o que é mercado de carbono, quais as bases jurídicas e normas de sua regulamentação; 2 ) como se dá a prática com contratos de carbono envolvendo povos indígenas, quais os riscos, os requisitos e os tipos de contratos envolvidos; 3) como os povos indígenas vem se organizando para defesa dos direitos na temática de mercado de carbono, quais são os sistemas da Governança Geral do Território Indígena do Xingu e sua compreensão sobre o tema. Para tanto, metodologia para atingir os objetivos da proposta partiu de uma revisão bibliográfica sobre a temática do mercado de carbono no âmbito do direito, e para saber como se dá a celebração do contrato na prática foi realizado um estudo de caso do Projeto Florestal Carbono Suruí, dos povos Paiter Suruí, através de revisão bibliográfica e utilizando fontes secundarias como matérias jornalísticas e documentos de entidades que atuam no tema, além de fontes primárias como depoimentos dos envolvidos no projeto. Para análise do modo como os povos do Território Indígena do Xingu se organizam em relação ao tema foi utilizada essencialmente observação principalmente como o membro do mecanismo de Governança Geral do TIX, além de documentos produzidos no seu ambiente. Concluiu-se, finalmente, depois de tudo analisado sobre o tema do mercado de carbono, que os xinguanos estão no momento de entendimento melhor, ou seja, não é momento ainda de aderir ao projeto de carbono no Território Indígena do Xingu.
E logo o seu Sumário:
INTRODUÇÃO
CAPÍTULO 1. MERCADO DE CRÉDITO DE CARBONO
1.1 O que é crédito de carbono1.2 Mercado Regulado do Crédito de Carbono
1.3 Mercado voluntário do crédito de carbono
1.4 Histórico de Negociações do REDD+ e Conceito
1.4.1 Mercado de carbono e direito dos povos indígenas
1.4.2 Projetos de REDD+
1.4.3 REDD+ Jurisdicional
1.4.4 Projetos de REDD+ Local
CAPÍTULO 2 – O CASO DOS POVOS PAITER SURUÍ: PLANO DE VIDA PROJETO CARBONO SURUÍ
2.1 Os Paiter Suruí e suas organizações sociais antes de depois do contato oficial
2.1.1 Os Paiter Suruí e o pioneiro Projeto de Crédito de Carbono Local
2.1.2 Outras versões e opiniões sobre o REDD+ e o Projeto de Carbono Suruí
2.2 Noções gerais e tipos de contrato de carbono
2.2.1 Noções gerais para compreender os contratos de crédito de carbono
2.2.2 Algumas espécies de contrato de crédito de carbono
2.3 Espécies de contratos assinados pelos Paiter Suruí
CAPÍTULO 3 – GOVERNANÇA GERAL DO TIX EM FACE DO MERCADO DE CARBONO
3.1 Governança Geral do Território Indígena do Xingu
3.1.1 Estrutura da GGTIX
3.2 Plano de Gestão do Território Indígena do Xingu
3.3 Protocolo de Consulta dos Povos do Território Indígena do Xingu CONSIDERAÇÕES FINAIS
FONTES E REFERÊNCAIS BIBLIOGRÁFICAS
ANEXOS – ASSOCIAÇÃO DO TERRA INDÍGENA XINGU
Esclarecendo a motivação da pesquisa, o Autor parte da constatação de que “os povos indígenas têm recebido várias propostas das empresas de consultarias ou desenvolvedoras dos projetos de carbono, oferecem coisas e benefícios promissores. Mas o que é mercado de carbono? O que é preciso saber sobre o mercado de carbono no ponto de vista dos povos xinguanos? Quais os tipos de contrato e o que a comunidade precisa saber e fazer para se posicionar sobre o contrato de carbono na defesa dos seus direitos? Quais os riscos que esse cenário apresenta para a promoção e defesa dos direitos para os Povos Indígenas do Xingu, e como os povos do TIX vem se posicionando em relação ao tema?”. Por isso ele considera que essas são questões que deram ensejo a pesquisa.
Nesse passo, ele se posiciona estabelecendo como objetivos do seu estudos “entender e compreender: 1) o que é mercado de carbono, quais as bases jurídicas e normas de sua regulamentação; 2 ) como se dá na prática com contratos de carbono envolvendo povos indígenas, quais os riscos, os requisitos e os tipos de contratos de crédito de carbono; 3) como os povos indígenas vem se organizando para defesa dos direitos na temática de mercado de carbono, quais são os sistemas da Governança Geral do Território Indígena do Xingu e sua compreensão sobre o tema”.
Seguindo o seu roteiro para a Dissertação, no Capítulo 1 ele realiza uma revisão bibliográfica sobre a temática do mercado de carbono no âmbito do direito para saber como se dá a celebração do contrato, e foi utilizada a observação e participações em eventos especializados no tema, além de participar em reuniões em âmbito nacional sobre a temática e análise de fontes primárias, como os Contratos Florestal Suruí.
De acordo com a sua proposta, “para entender como se dá o contrato de carbono na prática, e para conhecer os riscos e compreender os tipos de contratos foi realizado o estudo de caso do Projeto Florestal Carbono Suruí, desenvolvido pelos povos Paiter Suruí, através da revisão bibliográfica e utilização de fontes secundarias como matérias jornalísticas e documentos de entidades que atuam no tema, além de fontes primárias como depoimentos dos envolvidos no projeto. Para análise do modo como os povos do TIX se organizam em relação ao tema, foi utilizada essencialmente observação participante, principalmente como membro do mecanismo de Governança Geral do TIX, e análise dos documentos produzidos no seu ambiente, além de revisão bibliográfica sobre direitos dos povos indígenas”.
Portanto, nesse primeiro capítulo procura o Autor “compreender sobre mercado de carbono em geral, nas perspectivas da Convenção-quadro das Nações Unidas sobre as Mudanças Climática (UNFCCC) e Protocolo de Quioto, bem como nos outros acordos firmados no âmbito da Convenção, Acordos de Paris entre outros, posteriormente sobre as modalidades dos mercados regulado e voluntário. Depois debruça-se um pouco sobre o histórico de negociação do REDD+, com a participação dos indígenas e trazer também conceito básico sobre REDD+. Em seguida aborda-se sobre programas de REDD+, como as metodologias dos programas de REDD+ jurisdicional e local”.
No Capítulo 2 apresenta o caso dos Povos Paiter Suruí. O Autor toma “o Plano de Vida Projeto Carbono Florestal Suruí, onde analisa-se suas organizações sociais antes e depois do contato oficial. Depois procura compreender do porquê deles serem os pioneiros no projeto local de REDD+, procura também entender sobre outras versões e opiniões sobre o REDD+ e o Projeto de Carbono Suruí. E depois procura compreender noções gerais sobre contrato de crédito de carbono, bem como das espécies de contrato de carbono. E por fim, espécies de contratos assinados pelos Paiter Suruí”.
Finalmente, no Capítulo 3 volta-se para a “Governança Geral do Território Indígena do Xingu (GGTIX) enquanto organização política dos povos xinguanos, abordando sobre Plano de Gestão Territorial como seu instrumento político e o Protocolo de Consulta do TIX como ferramenta para efetivação de direitos no que tange aos direitos de consulta livre, prévia e informada, por fim, para concluir abordar finalmente sobre o posicionamento do povo TIX em relação ao mercado de carbono”.
De toda a análise elaborada pelo Autor, destaco, nas suas conclusões, ainda seguindo a linha interpretativa do Autor:
Além de buscar compreender o mercado de carbono no aspecto geral como suposta solução das reduções emissões de gases de gases de efeitos estufa (GEEs) para conter a temperatura do planeta, era estudar sobre o projeto dos Paiter Suruí, como foi construído ou desenvolvido, se de fato deu certo, até onde esse projeto chegou, o que deu certo, então o que deu errado, quem financiou esse projeto, quem eram os parceiros, compradores, como ocorreu as vendas e compras dos créditos de carbono, quais os contratos foram firmados, se esse projeto ainda está funcionando atualmente, ou seja, compreender melhor como esse projeto Local de REDD+ incide nos territórios indígenas, sobretudo no TIX. Isso porque, como já explicitado em várias passagens do texto, os assédios das empresas desenvolvedoras de projetos estão mais fortes. E nós xinguanos precisamos compreender melhor o que é isso, nós representantes das nossas organizações e institucionais representativas, nós temos obrigação de alertar nossos caciques para não caírem na conversa desses assediadores.
Por isso, foi necessário trabalhar sobre a organização política dos povos xinguanos, abordando a Governança Geral ou interna dos xinguano enquanto espaço político, onde os xinguanos tomam decisões coletivas sobre temas sensíveis ao TIX, como mercado de carbono, se aquilo possa afetar a vida tradicional dos povos, Plano de Gestão Territorial como instrumento da GGTIX, nas orientações sobre convivências interna e/ou externa dos povos, e Protocolo de Consulta enquanto ferramenta de efetivação de direitos de participação e consultas nas tomadas de decisões dos governos ou terceiros.
A sua conclusão é radical: “depois de tudo analisado sobre o como esse mercado de carbono se comporta, dizer que os xinguanos estão no momento de entendimento melhor, ou seja, não é momento ainda de aderir o projeto de carbono no Território Indígena do Xingu”.
A conclusão de Ewésh coincide com o posicionamento formal dos caciques e lideranças do povo Suruí, em audiência promovida pela 6ª Câmara do Ministério Público Federal, pedindo “a suspensão imediata desse projeto de carbono, que está matando o povo Surui” (https://www.ihu.unisinos.br/540189-os-surui-e-o-projeto-carbono-para-que-o-mundo-saiba).
Sobre esse polêmico projeto Carbono Florestal Suruí, iniciado em 2007, considerado o primeiro do gênero implantado em terra indígena em nosso país, e para os Suruí e para a delegação dos povos indígenas de Rondônia, deveria ser o último, na expectativa de que nãonão se repita em nenhuma terra indígena.
Para o CIMI – Conselho Indigenista Missionário, presente na audiência, esse tipo de projeto é parte de uma política do capitalismo verde e neocolonialismo. O Cimi, em nota de fevereiro de 2012, denunciou veementemente a insistência de implantação de projetos de REDD nos territórios indígenas, a partir dos direitos e da visão desses povos “esses projetos transformam a natureza em mercadoria, a gratuidade em obrigação, a mística em clausula contratual o bem estar em supostos ‘benefícios do capital’. É a mercantilização do sagrado e a coisificação das relações humanas em interface com o meio ambiente” por isso “quer juntar-se aos demais setores organizados que dizem NÃO à financeirização da natureza, NÃO à economia verde e NÃO ao mercado de carbono” (Porantim, setembro de 2014).
Por isso que, tal como Ewésh, em sua conclusão, o documento entregue ao Ministério Público Federal é taxativo em seu apelo: “Nossa preocupação é dobrada quanto aos projetos de REDD (captura de gás carbono), que vem ameaçando a existência dos povos indígenas, em especial o povo Suruí, que já se encontra com projeto implementado, autorizado pela FUNAI, em parceria com a ONG Canindé que articula o projeto em terras indígenas, o IDESAN, que faz o levantamento do carbono, o ECAN, e a Forest Trand – organização norte-americana; Esses projetos ameaçam a vida e a existência dos povos que ficam impossibilitados de realizar a produção agrícola, a coleta de mel, a caça, a pesca, bem como a reprodução cultural. Esse projeto já em andamento no território Suruí e tem provocado uma divisão e uma fatal destruição da organização social do povo, acarretando inclusive riscos de violência entre os povos”
Tem lastro a fundamentação proposta na Dissertação? Os argumentos de Ewésh ancoram esses fundamentos? Creio que sim. Para tanto, valendo-me do mais recente livro do agudo Pedro Brandão – Colonialidade do Poder, Biodiversidade e Direito. Raça, classe e capitalismo na construção da legalidade. Pedro Brandão. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2023, tudo se arrima na densidade de uma afirmação de base política.
Com efeito, em seu livro (https://estadodedireito.com.br/colonialidade-do-poder-biodiversidade-e-direito-raca-classe-e-capitalismo-na-construcao-da-legalidade/) Pedro Brandão avança, tal como Ewésh, sobre uma questão que ele acentua, como hipótese para o caso concreto que estuda, retomando uma perspectiva que já havia sido proposta em trabalho seu anterior, entretanto, “numa deriva para uma leitura estrutural sobre a própria formação da legalidade, levando a uma conclusão que é resultado da reflexão central para os dois trabalhos: “a legalidade como fruto de uma disputa assimétrica e violenta de poder, articulada mutuamente pelos diferentes eixos da colonialidade, confrontando a leitura comum de que a legitimidade da legislação reside, necessariamente, na sua natureza ‘democrática’, ‘racional’, ‘legítima’ e ‘mediada’ entre os interesses em disputa”.
A minha questão acerca do lastro procede das nuances do que tem sido assimilável como condição de transição entre paradigmas de desenvolvimento. A ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, por exemplo, em manifestação recente, voltou a expressar preocupação, no caso, com a exploração de petróleo e gás na Bacia do Amazonas, pouco antes da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) leiloar 38 blocos exploratórios de 11 bacias sedimentares: Espírito Santo, Paraná, Pelotas, Potiguar, Recôncavo, Santos, Sergipe-Alagoas, Tucano, Santos e Campos, além da Amazonas.
E ela especificou sua preocupação (https://www.ihu.unisinos.br/635223-ministra-diz-que-exploracao-de-petroleo-na-amazonia-preocupa-indigenas), afirmando que os povos indígenas são “povos resistentes e vamos continuar lutando, fazendo a resistência que precisa ser feita para evitarmos a exploração dentro dos territórios indígenas”, acrescentou a ministra, destacando o fato do leilão ocorrer no último dia da Conferência das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas (COP28), evento realizado em Dubai, nos Emirados Árabes, e cujos participantes aprovaram incluir, no documento final, menção à importância do mundo alcançar a “neutralidade carbônica” até 2050, por meio de uma transição da era dos combustíveis fósseis, principais causadores das mudanças climáticas”.
Ela justificou que “Na Conferência do Clima [COP28], que termina hoje, acabaram de apresentar um documento em que a maioria dos países entende que é preciso fazer uma transição energética urgente ou não vamos conseguir evitar chegar ao ponto de não retorno [ponto a partir do qual os danos causados ao planeta serão irreversíveis, passando a ameaçar a vida humana e de outras espécies]”, afirmou a ministra, classificando como “lamentável que muitos países necessitem fazer esta transição energética a longo prazo”.
Para estabelecer o entendimento de que “Precisamos muito dessa consciência também por parte da sociedade, de entender esta emergência que vivemos para, inclusive, ajudar a pressionar os governos. Temos que sair deste modelo [energético, baseado no uso de combustíveis fósseis]; uma transição é realmente necessária.”
A questão é estabelecer as condições, as mediações, os limites, e as possibilidades dessa transição. No caso do mercado de carbono, isso está dado? Os povos xinguanos também assim se posicionam?
Tribunais brasileiros e o direito à consulta prévia, livre e informada
| Redação Jornal Estado de Direito
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
A publicação é composta por coletâneas de decisões relativas ao direito de consulta livre, prévia e informada obtida junto aos Tribunais Regionais Federais (TRFs) de todas as regiões do país, bem como em decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ), do Supremo Tribunal Federal (STF) e da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Além da coletânea de decisões, o livro traz um texto analítico por tribunal, onde especialistas avaliam a atuação dos tribunais no tema.
A notícia cuida de estabelecer a origem do projeto, a organização do livro e seu escopo (fundamentos e objetivos. Remeto a essa nota para guardar autenticidade relativamente à obra. Contudo, a versão digital do livro, está acessível para os interessados na jurisprudência brasileira no direito de consulta a povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais
Conforme essa nota, “a publicação é composta por coletâneas de decisões relativas ao direito de consulta livre, prévia e informada obtida junto aos Tribunais Regionais Federais (TRFs) de todas as regiões do país, bem como em decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ), do Supremo Tribunal Federal (STF) e da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Além da coletânea de decisões, o livro traz um texto analítico por tribunal, onde especialistas avaliam a atuação dos tribunais no tema”:
Cada capítulo, elaborado por um grupo dedicado de autores e autoras, mergulha em análises específicas, desde metodologias de pesquisa até discussões aprofundadas sobre jurisprudência socioambiental, racismo estrutural, efetividade do direito de consulta à luz da Convenção nº 169 da OIT, entre outros temas fundamentais para a compreensão desse direito no contexto do sistema jurídico da justiça federal no Brasil.
Assessora jurídica e coordenadora do Programa Xingu do ISA, Biviany Rojas conta que a arte de capa foi cedida pela artista Daiara Tukano e simboliza a força e a harmonia entre uma mulher indígena e a natureza, representando a luta coletiva e a união na defesa dos direitos humanos socioambientais.
“Este livro não apenas desvela o intrincado contexto das decisões judiciais relacionadas ao direito à consulta prévia, mas também aponta caminhos para promover decisões judiciais que contribuam com um futuro mais inclusivo e respeitoso aos direitos dos povos indígenas e as comunidades tradicionais”, ressalta a advogada.
Fernando Prioste, assessor jurídico do ISA, reforça que “sua importância transcende o campo jurídico, colocando em pauta um debate fundamental para o futuro da sociedade brasileira, instigando reflexões sobre diversidade, justiça socioambiental, participação social e garantia de direitos para as próximas gerações”.
A publicação desta obra não marca um ponto final, mas sim um convite para a continuidade desse diálogo, da busca por uma justiça mais ampla e inclusiva, em que a diversidade seja não apenas reconhecida, mas celebrada e protegida em todos os âmbitos da vida nacional.
Entre as propostas apresentadas no documento está o “aperfeiçoamento do marco regulatório do licenciamento ambiental”. Ou seja, o Governo quer mudar a forma de fazer o licenciamento ambiental. Entre essas medidas está a proposta de regulamentação do direito de consulta livre, prévia e informada.
A regulamentação da Consulta já existe em alguns estados, e em alguns órgãos do Governo Federal, como no caso do INCRA para quilombolas. Mas até agora não existe uma regulamentação nacional que se aplique igualmente para todos os casos. É justamente por isso que o Governo Federal disse que vai fazer a regulamentação do direito de consulta.
As experiências da Bolívia, Venezuela, Colômbia e Equador ensinaram que a regulamentação do direito à consulta prévia é feita através de decisões políticas que, na maioria dos casos, não garantem direitos a povos indígenas e povos e comunidades tradicionais.
Confira os principais riscos de uma possível regulamentação do direito de consulta:
Risco de retirar das comunidades tradicionais o direito à consulta;
Essa restrição poderia acontecer:
(I) Pelo reconhecimento de que apenas indígenas e quilombolas deveriam ser consultados, excluindo-se as comunidades tradicionais de todo o Brasil;
(ii) Pelo estabelecimento de critérios que impeçam ou limitem o direito de consulta, como fazer diferenças entre área diretamente afetada e área indiretamente afetadas nos casos de licenciamento de empreendimentos;
(iii) Pela desconsideração das várias formas de representação que cada povo indígenas, comunidade quilombola ou outras tradicionais tem;
Risco de alteração da responsabilidade de quem pode e deve conduzir o processo de consulta;
Este risco está relacionado com o fato do Governo poder:
(i) Colocar a responsabilidade pela realização da consulta a órgãos públicos que não são os responsáveis pela decisão que será tomada pelo Governo;
(ii) permitir que empresas privadas com interesses nos empreendimentos possam realizar os procedimento de consulta, indo contra o estabelecido pela Convenção 169 da OIT;
Risco de limitar as medidas e ações que devem ser objeto de Consulta;
Essa restrição poderia acontecer:
(i) Caso sejam criadas regras em que a consultas só devem ocorrer nos casos de empreendimentos de infraestrutura e mineração, excluindo outras decisões importantes, como projetos de lei e políticas públicas direcionadas a comunidades tradicionais e povos indígenas.
(ii) Pela definição de uma única consulta sobre um empreendimento que tem várias fases de licenciamento ambiental e de decisões de governo. Como, por exemplo, determinar que a consulta sobre empreendimentos ocorra uma única vez no licenciamento ambiental, ignorando as etapas de planejamento, ou vice-versa;
Risco de padronização ou generalização dos procedimentos de Consulta;
Esse risco pode acontecer:
(i) Pelo descumprimento dos Protocolos Autônomos de Consulta, substituídos pela regulamentação geral que se aplicaria de forma igual a todos os povos e comunidades;
(ii) Por imposição de prazos rígidos para a realização do processo de consulta, incompatíveis com os tempos necessários para a realização do procedimento por cada povo e comunidade tradicional;
Risco do Governo não considerar a decisão tomada no processo de consulta;
Esse risco poderia acontecer:
(i) Se não for respeitada a necessidade de que a tomada de decisão do Governo deve levar em consideração, obrigatoriamente, os resultados do processo de consulta;
(ii) Se o Governo alterar decisões sem considerar os processos de consulta, desrespeitando sua eficácia.
Folgo identificar entre os Coordenadores da publicação: Liana Amin Lima da Silva, Biviany Rojas Garzón (Assessora jurídica e coordenadora do Programa Xingu do ISA, que conheci em encontros para discutir a questão da salvaguarda dos direitos indígenas em face de impactos de empreendimentos econômicos e traçados rodoviários em território caiapó; revi Biviany por ocasião da defesa de dissertação de Ewésh Yawalapiti Waurá, agora ao final de dezembro na UnB). E ainda, Fernando Gallardo Vieira Prioste, Rodrigo Magalhães de Oliveira, a minha caríssima e competentíssima pesquisadora Isabella Cristina Lunelli, que também se incumbiu de traduzir o prefácio, preparado por César Rodríguez-Garavito, da Universidade de Nova York.
Rodríguez-Garavito, nesse prefácio, indica os desafios complexos para interpretar a Consulta Livre, Prévia e Informada, para a sua rigorosa aplicação, mesmo quando possa afetar, ou mesmo impedir, grandes projetos econômicos ou estratégicos de interesse inclusive governamental.
De fato, diz ele, “Como fazer a ponderação jurídica entre o princípio da participação dos povos indígenas e o direito à CLPI, de um lado, e princípios como a proteção da ordem econômica, de outro? Que tipo de recursos e ordens judiciais podem ajudar a conciliar esses imperativos conflitantes? Desde uma perspectiva internacional, é muito surpreendente que boa parte das decisões sobre CLPI no Brasil, incluindo as do STF, concluam sumária e categoricamente que o direito indígena à consulta deve ceder ante razões de ordem econômica ou de ordem pública. Ao invés de um exercício de ponderação cuidadosa destas considerações opostas uma à outra, é comum que as decisões estudadas nesse livro adotem uma interpretação expansiva da ordem econômica, segundo a qual tal ordem se vê afetada até mesmo por interrupções temporárias ou parciais de obras, como usinas hidrelétricas”.
Ele toma como referência para essa questão difícil, no Brasil, “o caso emblemático da Usina Hidrelétrica de Belo Monte”, para destacar o quanto “os juízes tenderam a afirmar a prevalência categórica da ordem econômica sobre os direitos indígenas, inclusive quando há estudos científicos que mostram que o projeto econômico questionado pode ser contraproducente ou destruir ecossistemas e comunidades inteiras”.
Para ele, sem dúvida, “as interpretações desequilibradas da CLPI têm sido facilitadas pelo uso da figura processual da suspensão de liminar. Sob a ótica do direito comparado de regimes democráticos, a suspensão de liminar é uma figura exótica, na medida em que permite ao titular de um tribunal superior revogar a decisão fundamentada de um juiz inferior simplesmente invocando, sem maior argumentação, a violação do interesse ou da ordem pública. Disso, os autores deste livro concluem que a suspensão de liminar tem sido o obstáculo jurídico mais interessante à proteção efetiva dos direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais no Brasil”.
Retenho essa observação de Garavito porque a propósito do que ele assinala, tenho aludido, por exemplo, à observação feita pelo notável jurista Antonio Augusto Cançado Trindade, por dois mandatos Presidente da Corte Internacional de Justiça, também juiz em Haia, recentemente falecido. Com efeito, Cançado Trindade se referia ao obstáculo epistemológico do positivismo jurídico, na sua versão mais vulgarizada e empobrecida, responsável por impedir relativamente à proteção dos direitos humanos, um entendimento jurisprudencial mais avançado contido em interpretações dinâmicas ou evolutivas dos tratados internacionais, baldas de respostas criativas da própria ciência do direito impossibilitada de libertar-se das amarras daquele pressuposto explicativo do conhecimento jurídico. Conferir em https://www.researchgate.net/publication/318077510_Concepcao_e_pratica_do_O_Direito_Achado_na_Rua_plataforma_para_um_Direito_Emancipatorio.
Por isso, ele diz no Prefácio, que o livro quer contribuir para oferecer uma “oportunidade e o desafio para o judiciário e a comunidade jurídica brasileira consiste em aprofundar e refinar as respostas a esse complexo embate de princípios constitucionais. Com esse fim, em vez da aplicação unilateral e sumária de mecanismos como a suspensão de liminar, os juízes e juristas encontrarão elementos de julgamento muito úteis na doutrina e na jurisprudência internacional discutida neste livro. Por meio de argumentos e decisões judiciais variadas e ajustadas a casos e contextos concretos, o direito internacional e comparado tem conseguido soluções equilibradas para tais choques de princípios e normas, que poderiam ser igualmente úteis no contexto brasileiro”.
Assim, ele arremata seu Prefácio, dizendo acreditar “que a lição que devemos aprender do que têm acontecido no Brasil e no mundo nos últimos dez anos é a seguinte: o que realmente está em jogo na consulta prévia não são os interesses particulares de povos ou comunidades específicas. No fundo, o que está em disputa é a própria vida: a dos indígenas e populações tradicionais, mas também a do resto do país, da humanidade e do planeta. Estou confiante de que este valioso livro dará aos juristas e aos juízes as ferramentas para estar à altura desse desafio nos próximos dez anos, antes que seja tarde demais”.
Outra boa surpresa foi identificar, o que já foi mencionado acima, na arte da capa, a criação de Daiara Tukano (A obra compõe um diptico de duas imagens: Bora Lutar e Bora Pra Roça. Pintadas no museu da República de Brasília para a exposição Brasil Futuro, curadoria de Lilia Schwarcz e Rogério Carvalho em 2023. Acrílica sobre alvenaria 2mx3m). Daiara, ex-aluna de arte na minha universidade, a UnB (quando fui Reitor ela era uma ativista sempre presente nas mobilizações que interpelavam o reitorado), já se afirma como uma artista nas artes plásticas, figurando em importantes mostras, inclusive internacionais, e catálogos.
Mas ela tem a densidade de uma intelectual leal a sua ancestralidade. Na UnB, no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania (CEAM-Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares), ela demonstrou essa autenticidade, ao desenvolver e defender sua dissertação de mestrado TUKANO, UKUSHE KITI NIISHE. Direito à memória e à verdade na perspectiva da educação cerimonial de quatro mestres indígenas. 2018. (Mestrado em Direitos Humanos e Cidadania), Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares, Universidade de Brasília, Brasília). Aliás, assisti a defesa e de certo modo, acompanhei o desenvolvimento do trabalho, professor que sou do Programa, tendo sido a orientação da dissertação conduzida por minha esposa a professora Nair Heloisa Bicalho de Sousa.
Na Apresentação, os coordenadores expõem o processo de elaboração da obra, destacando que ela pretende suprir “escassez de pesquisas e análises sobre decisões judiciais que contribuíssem para a consolidação da jurisprudência no que diz respeito ao direito de consulta e consentimento prévio, livre e informado como garantia dos direitos coletivos, territoriais e culturais dos povos e comunidades tradicionais no Brasil”, procurando atender “um dos escopos do Observatório de Protocolos”, qual seja: “demonstrar o caráter vinculante e a juridicidade dos chamados protocolos próprios, protocolos autônomos, protocolos comunitários de consulta prévia, que surgiram como exercício da livre determinação dos povos para apontar os caminhos da consulta prévia, mostrar como o Estado deve consultar os povos, em resposta à omissão estatal em garantir efetividade à Convenção n.º 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e demais instrumentos jurídicos”.
Em seguida, é apresentado o conteúdo do livro:
No primeiro texto, Isabella Cristina Lunelli e Fernando Gallardo Vieira Prioste apresentam didaticamente a metodologia utilizada na pesquisa jurisprudencial sobre o direito à consulta prévia, livre e informada em jurisprudência socioambiental. O capítulo seguinte, de Bruno Walter Caporrino, Ewésh Yawalapiti Waurá, José Heder Benatti e Felício Pontes Júnior, se dedica à extensa jurisprudência do Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª Região e busca caminhos para uma hermenêutica segura quanto à consulta prévia aos povos e comunidades tradicionais. No terceiro capítulo, Júlio José Araújo Junior e Maira de Souza Moreira analisam as decisões do TRF da 2ª Região e discutem a ausência tão presente do direito à consulta prévia nessa região.
No quarto capítulo, Andrew Toshio Hayama, Inês Virginia P. Soares e Maria Luiza Grabner analisam a efetividade do direito de consulta nos julgamentos do TRF da 3ª Região à luz da Convenção n.º 169 da OIT. Já o capítulo quinto, escrito por Carlos Frederico Marés de Souza Filho e Isabela da Cruz, discute o racismo estrutural nos estados do sul do Brasil e sua relação com a jurisprudência do TRF da 4ª Região. No capítulo seguinte, Jeferson Pereira, Clarissa Marques e André Carneiro Leão analisam a aplicação do direito à consulta prévia e do critério de autoatribuição em decisões do TRF da 5ª Região. O sétimo capítulo, escrito por Renan Sotto Mayor, Silvano Chue Muquissai, Loyuá Ribeiro Fernandes Moreira da Costa e Tiago Cantalice, apresenta uma análise decolonial da atuação do Superior Tribunal de Justiça no que diz respeito ao direito à consulta. e Prof. Dr. Joaquim Shiraishi. Agradecemos, especialmente, o apoio da Ford Foundation concedido ao Observatório de Protocolos Comunitários, que nos oportunizou o fomento de bolsas de pesquisa (convênio Ford Foundation/PUCPR) entre os anos de 2020 e 2022, fundamental para a concretização desta pesquisa.
No oitavo capítulo, Juliana de Paula Batista, Luiz Eloy Terena, Luiz Henrique Reggi Pecora e Vercilene Francisco Dias discutem a relação do Supremo Tribunal Federal com a consulta prévia, livre e informada. Daniel Lopes Cerqueira e Biviany Rojas Garzón, no nono capítulo, apresentam uma coletânea e sistematização analítica de decisões da Corte IDH sobre o direito à consulta e consentimento prévio, livre e informado de povos indígenas e tribais. Por fim, no capítulo conclusivo, Rodrigo Magalhães de Oliveira, Liana Amin Lima da Silva e Joaquim Shiraishi Neto tecem, juntos, a análise sistemática e um balanço crítico da jurisprudência brasileira.
A obra tem caráter único, enquanto repositório crítico de jurisprudência de tribunais. Atualmente há todo um esforço acadêmico, organizacional e funcional no sentido de dar evidência ao alcance da Convenção 169, da OIT, que trata da Consulta. Anoto, por exemplo, Convenção n. 169 da OIT e os Estados Nacionais/Organizadora: Deborah Duprat. – Brasília: ESMPU, 2015, resultado de seminário realizado em 2014, pela 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, e que dá origem à presente obra, teve por eixo os contextos nacionais na aplicação da Convenção n. 169. Seu propósito foi fazer avançar, no nosso âmbito interno, a concretização desse documento, colhendo da experiência de outros países os avanços obtidos e, com eles, exercitar uma reflexão que possibilite superar as dificuldades que nos são comuns.
Penso que todos esses esforços, incluindo o livro ora Lido para Você, vêm reforçar estratégias que contribuem para designar – eu o disse em outro texto (https://estadodedireito.com.br/povos-indigenas-no-brasil-2017-2022/), o alcance insurgente das lutas dos povos indígenas, para as quais chamo a atenção, para que sejam lidas em matérias, artigos, entrevistas e palavras indígenas que dão atualidade à obra, entre outras manifestações que logo procurei examinar: É a Hora de Ouvir: Protocolos Autônomos de Consulta e Consentimento, de Biviany Rojas Garzón e Luíz Donisete Benzi Grupioni; Retomar e Fortalecer a Funai, de Fernando Vianna (Fedola), Luana Almeida e Mitia Antunha; Protocolo de Consulta e Fortalecimento do Movimento Indígena no Rio Negro, de Renata Carolina Corrêa Vieira e Renato Martelli Soares; Comunidades Indígenas Engajam-se na Autodemarcação, de José Cândido Ferreira, Patrícia Carvalho Rosa e João Bento Ramos; “Autodemarcação é Ato Político. É a Nossa Forma de Dizer que essa Terra é Nossa”, Entrevista concedida à equipe de edição; Desintrusão da TI Pankararu (PE) e Covid-19 no Real Parque (SP), de Arianne Rayis Lovo; A Autodemarcação do Povo Nawa, de Fábio Pontes e Alexandre Noronha; Povo Pataxó Retoma Territórios Tradicionais, de Tiago Miotto; Território Insurgente – o Uso da Terra nas Retomadas Terena, de Carolina Perini de Almeida e Gilberto Azanha; O Conselho do Povo Terena como Instância de Consolidação das Retomadas, box; Os Avá Guarani e as Retomadas pela Terra e pela Vida, de Rafael Nakamura e Júlia Navarra.
Incluo ainda, como leitura necessária, o artigo de Eloy Terena e Roberta Amanajás – “O Direito Constitucional à Retomada de Terras Indígenas Originárias”. Este texto está lançado em obra coordenada pela FIAN Brasil e pelo Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua (O Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas: enunciados jurídicos / Organização Valéria Torres Amaral Burity, Antonio Escrivão Filho, Roberta Amanajás Monteiro, José Geraldo de Sousa Junior. 1ª edição. Brasília: FIAN Brasília; O Direito Achado na Rua, 2020). Para os autores, “as retomadas dos territórios tradicionais podem ser entendidas como atos de resistência em defesa dos direitos humanos” e por essa via, inseridos constitucionalmente e convencionalmente ao direito dos povos indígenas ao “Território tradicional, do Direito à Identidade Cultural e da inadequação ou omissão de políticas públicas articuladas e específicas”.
Além de Isabella Lunelli, autora e também co-coordenadora da edição, é uma satisfação pessoal encontrar na publicação expressões fortes do campo político-epistemológico, com os quais tenho partilhado pensamento e ações, em muitas circunstâncias, para o fortalecer.
Desde logo, por precedência, o caríssimo Carlos Frederico Marés Souza Filho. Também André Carneiro Leão, atual presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos, meu parceiro no Comitê Facilitador do Forum Social Mundial Temático Justiça e Democracia, que vem se empenhando em abrir perspectivas de avanço para o alargamento democrático do acesso à Justiça e sobre novos alcances para a Justiça a que se quer acesso. José Heder Benatti, professor e ativista. Tive o privilégio de participar como membro da Banca Examinadora de sua Titulação – coroamento de uma carreira brilhante – na UFPA (cf. https://estadodedireito.com.br/uma-trajetoria-academica-do-agrarismo-aos-direitos-socioambientais/).
Distingo ainda Luiz Eloy Terena, atual Secretário Executivo do Ministério dos Povos Indígenas. Brilhante intelectual, tive ensejo de participar de sua banca de doutoramento em Direito, na Universidade Federal Fluminense (sobre, cf. https://estadodedireito.com.br/o-campo-social-do-direito-e-a-teoria-do-direito-indigenista/).
Eloy foi responsável por um grande evento levado a cabo pelo MPI. Para marcar os 35 anos da Constituição Federal, o Ministério dos Povos Indígenas promoveu no dia 9 de outubro um seminário nacional para destacar e discutir a importância da constitucionalização dos direitos indígenas na carta promulgada sob grande participação popular após a redemocratização do país em outubro de 1988 e da construção de uma constituição pluriétnica, que reconhece o direito à diferença.
No entendimento da organização, “A Constituição Federal de 1988 foi a primeira a contar com a participação efetiva dos povos indígenas. À época, várias lideranças e caciques ficaram acampados em Brasília promovendo debates e articulações para apresentar propostas ao textos que estabeleceu pontos importantes relativo aos povos indígenas como o direito originário às terras que tradicionalmente ocupam, o direito à diversidade étnica e cultural, previstos no art. 231, e ainda o direito ao pleno exercício de sua capacidade processual para defesa de seus interesses, no art. 232. Os dois artigos alteraram a relação entre os povos indígenas e o Estado, rompendo com a lógica tutelar que considerava os indígenas incapazes para vida civil e para o exercício de seus direitos e os reconhecendo como sujeitos plenos de direito, inaugurando assim, um estado pluriétnico”.
A primeira mesa do seminário, coordenada pela presidenta da Funai Joenia Wapichana, reuniu os advogados Paulo Pankararu, Fernanda Kaingang, e Paulo Machado Guimarães para discutirem as perspectivas de construção e uma Constituição Pluriétnica. Fiz parte dessa mesa.
A segunda mesa, sob coordenação do próprio Eloy Terana, na qualidade de Secretário Executivo do MPI, debateu a Constitucionalização do Direito dos Povos Indígenas na CF/88, com o jurista Conrado Hubner, e as advogadas Melina Fachin e Samara Pataxó (ver https://estadodedireito.com.br/povos-indigenas-no-brasil-2017-2022/).
A rica discussão pode ser revista em Seminário Nacional Povos Indígenas e Direito Originário: 35 anos da Constituição Federal – Parte 1 (https://www.youtube.com/watch?v=a9PCnsmrZPA&t=1273s); e Parte 2 (https://www.youtube.com/watch?v=obSJ1wWQxOE&t=1134s).
Uma satisfação enorme encontrar entre os autores Felício Pontes Júnior, Procurador Regional da República, no livro em análise da extensa jurisprudência do Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª Região. Felício é meu colega na Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Brasília, onde exercita uma dimensão peculiar de sua militância pastoral, ele que foi auditor do Sínodo Panamazônico, no Vaticano.
E entre tantos, Vercilene Francisco Dias, minha orientanda no doutoramento em direito da Universidade de Brasília (Faculdade de Direito). Vercilene é co-autora no livro que co-organizei com pesquisadores do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua. Na obra, temas que ela desenvolve na obra do ISA, Vercilene com seus colegas desenvolve um interessante artigo: “O território achado na aldeia e no quilombo: a antítese da mercantilização neoliberal” de autoria de Carlos Henrique Naegeli Gondim, Joanderson Pankararu, Luís de Camões Lima Boaventura e Vercilene Francisco Dias, onde procuram abordar a complexidade de significados que o território tem na cultura indígena e quilombola, assumindo uma feição de condensador de direitos, “os territórios extrapolam a esfera meramente patrimonial, sendo indispensáveis à subsistência e reprodução das culturas e identidades coletivas desses grupos” (GONDIN, Carlos Henrique; PANKARARU, Joanderson; BOAVENTURA, Luis de Camões; DIAS, Vercilene Franscisco) e porque, diversos outros direitos humanos e fundamentais desses grupos étnicos guardam relação direta como território, tais como educação, saúde, liberdade de culto, e a própria identidade. (GONDIN, Carlos Henrique; PANKARARU, Joanderson; BOAVENTURA, Luis de Camões; DIAS, Vercilene Franscisco). Conferir para leituras relacionadas: https://estadodedireito.com.br/o-direito-achado-na-rua-questoes-emergentes-revisitacoes-e-travessias/.
Por fim, encontro Ewésh Yawalapiti Waurá, em texto publicado às vésperas da conclusão de seu mestrado em direito na UnB, entretanto, já assimilado em fundamento de conclusões que apresenta na dissertação, convocando a importância da Consulta para a determinação da questão limite que ele estuda na dissertação (O Mercado de Carbono e o Direito dos Povos Xinguanos), conforme páginas 101-102 da Dissertação) Participei como membro de sua banca examinadora realizada agora dia 15/12, trabalho plenamente aprovado, por sua pertinência e fundamentos, sobre a qual publicarei na próxima Coluna Lido para Você, minha arguição, já na forma de uma recensão para indicação a pesquisadores e a editores.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55
Direito à Alimentação em Pretuguês: a Práxis das Coordenadoras do MTST nas Cozinhas Solidárias do Distrito Federal
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Ingrid Gomes Martins. Direito à Alimentação em Pretuguês: a Práxis das Coordenadoras do MTST nas Cozinhas Solidárias do Distrito Federal. Dissertação apresentada para fins de exame de defesa, do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares, da Universidade de Brasília. Brasília, 2023, 128 fls.
Presidi, na qualidade de Orientador, a Banca Examinadora que avaliou e aprovou a Dissertação tema deste Lido para Você. O aval acadêmico ao trabalho foi proferido em juízo crítico e proficiente pelas integrantes da comissão avaliadora. As professoras Lívia Gimenes Dias da Fonseca (FD/UnB) avaliadora interna e Isis Dantas Menezes Zornoff Táboas (IDP/DF) avaliadora externa; tendo também feito a leitura da dissertação desde a etapa de qualificação, a professora Talita Tatiana Dias Rampin (FD/UnB) suplente da Banca Examinadora, no exame final do trabalho.
O resumo da dissertação é bem elucidativo:
Esta dissertação é resultado de pesquisa realizada sobre as práticas e saberes das Coordenadoras do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) para a promoção do direito humano à alimentação e nutrição adequadas (DHANA). Como lócus de pesquisa, foram eleitas as Cozinhas Solidárias do MTST-DF, tecnologias sociais de distribuição de almoços gratuitos e de realização de atividades de cuidado comunitárias. Para tanto, foram investigadas as percepções das mulheres sem-teto sobre as influências de gênero, raça e classe na vivência da fome e sua permeabilidade nas políticas públicas de promoção de segurança alimentar e nutricional. Neste trabalho, o MTST emerge como sujeito coletivo de direitos (SOUSA JUNIOR, 2011) e é representado pela maioria social que se organiza no movimento: mulheres negras, mães, avós, trabalhadoras do cuidado, trabalhadoras desempregadas ou informais. A partir da negação dos pressupostos materiais e imateriais para a fruição de vida digna pelas mulheres negras periféricas, sua organização e a luta social para conquistá-los são dotadas de capacidade instituinte de direitos. Uma vez que há prevalência da fome em famílias chefiadas por mulheres negras e estas também se consolidam como linha de frente da referida iniciativa comunitária para combatê-la, propõe-se observar a agência afrodiaspórica dessas sujeitas na construção dos direitos humanos, a partir da categoria de amefricanidade de Lélia Gonzalez (1988) e da proposta epistemológica de traduzir direitos humanos em pretuguês de Thula Pires (2017). O ponto de chegada da referida dissertação é a proposta de tradução do direito humano à alimentação e nutrição adequada em pretuguês a partir do protagonismo social das Coordenadoras do MTST no Distrito Federal.
Também conformam o quadro teórico da Autora as formulações afrodiaspóricas dessas sujeitas na construção dos direitos humanos, a partir da categoria de amefricanidade de Lélia Gonzalez e da proposta epistemológica de traduzir direitos humanos em pretuguês de Thula Pires, que esteve presente na banca de qualificação de Ingrid e é fortemente referida na base bibliográfica da Dissertação.
Eis o objetivo de Ingrid Martins em sua Dissertação:
A dissertação propõe realizar uma sistematização, a partir das falas das Coordenadoras do Movimento dos/as Trabalhadores/as Sem Teto (MTST), da práxis desse movimento social no enfrentamento à fome nas periferias urbanas do Distrito Federal. Quais as percepções das mulheres sem teto sobre as influências de gênero, raça e classe na vivência da fome a partir de seus saberes e fazeres comunitários? Haveria necessidade de a formulação de políticas públicas levar em conta esses marcadores sociais da diferença para a promoção de segurança alimentar e nutricional? Quais papéis o Estado e o MTST assumiram, durante a pandemia de covid-19, no enfrentamento à fome em Sol Nascente e Planaltina (DF)?
Inspirada em pesquisa de dissertação de Isis Táboas (2014), que investigou a práxis do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) no enfrentamento à violência doméstica e familiar, o sumário do presente trabalho reflete a troca de saberes realizada entre as lideranças comunitárias do MTST e a pesquisadora, sistematizando as dimensões de gênero, raça e classe que perpassam o ingresso das mulheres sem teto no movimento, os contextos de exploração e opressão por elas vivenciados e suas compreensões sobre a fome nas ocupações urbanas e nas Cozinhas Solidárias.
As Cozinhas Solidárias de Planaltina e do Sol Nascente, como se verá adiante, são uma das tecnologias sociais comunitárias que as mulheres sem teto lançaram mão durante a pandemia de covid-19 e que persistem em funcionamento, por meio da distribuição de refeições diárias prontas e da promoção de atividades relacionadas à saúde, à educação, à agroecologia e à qualificação profissional. Revelam-se verdadeiros centros do bairro ou centros da vida coletiva, que reconstituem vínculos de solidariedade social em meio ao avanço do hiperindividualismo neoliberal.
Neste trabalho, o MTST emerge como sujeito coletivo de direitos (Sousa Júnior, 2011) e é representado pela maioria social que se organiza no movimento: mulheres negras, mães, avós, trabalhadoras do cuidado, trabalhadoras desempregadas ou informais. A partir da negação dos pressupostos materiais e imateriais para a fruição de vida digna pelas mulheres negras periféricas, sua organização e a luta social para conquistá-los são dotadas de capacidade instituinte de direitos.
Uma vez que há prevalência da fome em famílias chefiadas por mulheres negras e estas também se consolidam como linha de frente da referida iniciativa comunitária para combatêla, propõe-se observar a agência afrodiaspórica dessas sujeitas na construção dos direitos humanos, a partir da categoria de amefricanidade de Lélia Gonzalez (1988) e da proposta epistemológica de traduzir direitos humanos em pretuguês de Thula Pires (2017).
O ponto de chegada da referida dissertação é a proposta de tradução do direito humano à alimentação e nutrição adequada em pretuguês, a partir do protagonismo social das Coordenadoras do MTST no Distrito Federal.
A referência ao trabalho de Ísis Táboas como inspiração, ao menos no tocante ao posicionamento metodológico, soa para mim evocativo. Não só porque orientei a Dissertação de Ísis no mesmo PPGDH, elaborei o prefácio do livro que dele resultou, como me rejubilei em compartilhar com Ísis a distinção que recebeu ao ter sua dissertação escolhida como a melhor dissertação da área interdisciplinar da Universidade de Brasília, no ano de sua defesa
É que o trabalho de Ísis, no qual Ingrid se inspira, proporciona a ambas, eu disse isso ao recensear o livro que dele se editou, alcançar, a meu ver, “a riqueza e a singularidade no diálogo, [que] a[s] autora[s] exterioriza[m] conceitualmente os achados constituídos ontologicamente, enquanto categorias com disponibilidade realizadora (o filosofar), para que os conteúdos, expondo-se pela práxis, se exibam (realizem-se)” (https://estadodedireito.com.br/e-luta-feminismo-campones-popular-e-enfrentamento-violencia/).
O Sumário proposto por Ingrid exibe essa força realizadora:
1 INTRODUÇÃO
2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
3 MULHERES EM MOVIMENTO: gênero, raça e classe na luta do MTST 3.1 O Movimento dos Trabalhadores Sem Teto
3.1.1 “Criar, criar poder popular”: movimento territorial anticapitalista
3.1.2 “Governo é igual feijão, só funciona na panela de pressão”: repertório e consolidação do MTST no Distrito Federal
3.2 “Eles não querem que pessoas pobres e pretas tenham direitos iguais, porque não vão ter pessoas pra escravizar, pra ir lá e dar mais-valia pra eles”: reflexões sobre o capitalismo brasileiro
3.3 Quem são as trabalhadoras sem teto do Distrito Federal?
3.3.1 “Ou pagava o aluguel ou colocava comida na mesa pros meus filhos”: o ingresso na luta por moradia
3.3.2 “Já entrei pela porta dos fundos de gente que ontem não me olharia e respeitaria”: trabalhos de cuidado e luta por moradia
3.3.3 “Esse movimento empodera as mulheres”: as mulheres sem teto como sujeito coletivo de direitos
4 COZINHAS SOLIDÁRIAS: enfrentamento à fome, cuidado e comunidade
4.1 “Atualmente somos escravos do custo de vida”: a racionalidade neoliberal e a precarização da vida das mulheres no Sul Global
4.2 “A horta pra mim é vida: eu planto alface e remédio também”: a racionalidade política dos comuns como contraponto à racionalidade neoliberal
4.3 “A Cozinha é o coração e o cérebro das ocupações”: a centralidade das Cozinhas na luta por moradia
4.4 “É a própria comunidade quem faz, quem come da mesma comida”: das Ollas e Comedores Populares às Cozinhas Comunitárias e Solidárias do MTST
4.4.1 Cozinhas Comunitárias: resistência ao desmonte social do Governo Temer
4.4.2 Cozinhas Solidárias: enfrentamento à pandemia e ao genocídio no Governo Bolsonaro
4.4.3 Solidariedade Sem Teto como ética do cuidado coletivo
5 DIREITO À ALIMENTAÇÃO EM PRETUGUÊS: o projeto de soberania alimentar periférica do MTST
5.1 “Quando a máscara de tecido incomoda, pensem o que a máscara de ferro não fez”: Colonialidade alimentar e o sistema mundo moderno-colonial de gênero
5.2 “Uma mãe que trabalha o dia inteiro, aí ela chega em casa cansada e faz miojo”: a fome na periferia é negra, mãe solo e infantil
5.3 “Comida sem sabor não alimenta também”: Equipamentos de Segurança Alimentar e Nutricional
5.4 “Pra que cada um tenha um pedaço de terra pra plantar e pra morar”: a Soberania Alimentar Periférica
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
APÊNDICE A– ROTEIRO DO GRUPO FOCAL
APÊNDICE B – ROTEIRO DAS ENTREVISTAS
ANEXO A – RESPOSTA VIA LEI DE ACESSO À INFORMAÇÃO – GDF
A presente dissertação desagua no Direito Humano à Alimentação em Pretuguês e desvela seus pressupostos a partir do protagonismo das Coordenadoras do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto. A realização desse direito requer, inicialmente, o acesso à terra por meio da efetivação de reformas agrária e urbana, para mitigar a dívida fundiária histórica do Estado brasileiro com a população negra e indígena de nosso país e possibilitar a territorialização das comidas a partir do resgate da territorialização dos povos.
A experiência das Coordenadoras do MTST-DF, portanto, é ilustrativa da importância da territorialização de suas comunidades para a produção de alimentos sem veneno e culturalmente adequados. São seus corpos-territórios, femininos e negros, que enfrentam o genocídio alimentar em curso em nosso país, com prevalência de fome, obesidade, diabetes e hipertensão entre a população negra. São elas que plantam e colhem hortaliças, legumes e ervas medicinais de suas Hortas Urbanas agroecológicas e temperam, com afeto, as refeições servidas de forma gratuita e diária nas Cozinhas Solidárias.
A pressão para que o Estado reconheça a iniciativa como política pública partiu do caráter territorial anticapitalista do MTST na reivindicação de tecnologias ancestrais amefricanas e da própria humanidade de quem as desenvolve. A valorização do trabalho comunitário feminino e negro, porém, não pode vir acompanhada da romantização ou naturalização das desigualdades de gênero, raça e classe que o fundam.
Razão pela qual, além de uma Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, as Cozinhas Solidárias do MTST deveriam servir de referência ao Estado para a construção de uma Política Nacional de Cuidados, que envolvesse os homens na distribuição dos trabalhos reprodutivos no seio das famílias e das comunidades, de forma que as mulheres negras periféricas fossem reconhecidas como sujeitas do cuidado para além de cuidadoras.
Ainda que o presente trabalho não tenha se proposto a aprofundar a reflexão sobre políticas públicas de cuidados, o diálogo com as lideranças, a observação participante e as reflexões formuladas a partir delas, permitem afirmar que o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto luta e cria condições para uma outra reprodução social negra e periférica.
O que as Cozinhas Solidárias possuem de “novo” é somente o reconhecimento estatal. O mesmo Estado que, a partir de suas heranças moderno-coloniais, produz a fome, foi pressionado a reconhecer a soberania alimentar produzida pela reconstrução do tecido comunitário realizada pelo maior movimento urbano brasileiro. Conclui-se que, em cada Cozinha Solidária, pulsa a resistência negra coletiva contra a escravização, o extermínio e a desumanização do povo negro, pobre e periférico, razão pela qual elas se apresentam como forma político-cultural da luta ancestral por libertação negra para plantar, morar, trabalhar e alimentar suas comunidades com dignidade.
A Dissertação de Ingrid Martins é apresentada no exato momento em que, no Brasil, por lei federal (LEI Nº 14.628, DE 20 DE JULHO DE 2023), se institui o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Cozinha Solidária) que, conforme seu artigo primeiro, tem “o objetivo de promover o acesso à alimentação, à segurança alimentar e à inclusão econômica e social”.
Para Lilian Rahal, secretária de Segurança Alimentar e Nutricional, do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, que se incumbe de fazer a gestão política dos Programas, “houve um papel muito importante de mobilização por parte da sociedade civil, que criou inúmeras cozinhas solidárias para ofertar alimentos, arrecadou cestas de alimentos para serem doadas a quem mais precisa e, agora, o PAA vai dialogar com essas estratégias”.
A secretária não faz mais que reconhecer que a função do Estado numa sociedade democrática é fazer essa mediação para aproximar as políticas dos enunciados sociais que se inscrevem nas agendas dos movimentos e das comunidades.
A lei aprovada decorre do Projeto de Lei 491/23, proposição do Deputado Guilherme Boulos, que inscreveu em seu mandato propugnar pela adoção dessa política. Pare ele, conforme matéria do Portal da Câmara dos Deputados, “As cozinhas solidárias serão equipamentos públicos voltados a atender de maneira imediata quem hoje passa fome no Brasil”. Conforme ele ainda explica, “atrelada às outras políticas públicas que estão sendo desenhadas pelo Poder Executivo, como a volta do Consea [Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional], fortalecimento da agricultura familiar e retomada do Bolsa Família, pretende-se acelerar o processo de enfrentamento à insegurança alimentar e nutricional mais grave hoje no Brasil”.(Fonte: Agência Câmara de Notícias).
Remeto ao que constata também o Papa Francisco: “Sabemos que, ‘enquanto não forem radicalmente solucionados os problemas dos pobres, renunciando à autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando as causas estruturais da desigualdade social, não se resolverão os problemas do mundo e, em definitivo, problemas algum. A desigualdade é a raiz dos males sociais’ (Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, n. 202). Por isso, disse e repito-o: ‘o futuro da humanidade não está unicamente nas mãos dos grandes dirigentes, das grandes potências e das elites. Está fundamentalmente nas mãos dos povos, na sua capacidade de se organizarem e também nas suas mãos que regem, com humildade e convicção, este processo de mudança” (In Eduardo Brasileiro, org. Realmar a Economia: a economia de Francisco e Clara. (Coleção Pastoral e Comunidade). São Paulo: Paulus, 2023).
Faço alusão ao Papa porque integro organismos pastorais de serviço no âmbito arquidiocesano (Comissão de Justiça e Paz) e porque faço parte da equipe de Análise de Conjuntura da CNBB, que contribui para o discernimento episcopal sobre a ação pastoral que lhe incumbe coordenar no Brasil. No mais recente documento de análise, entregue aos Bispos neste mês de novembro – Tempos e sinais – uma análise de conjuntura – a fome ainda convocou a nossa análise, diante do estiolamento da questão social afrontada pela opção neoliberal que nos subjugou nos anos recentes. Mas, na perspectiva conclusiva de nosso documento, já divisamos sinais de esperança em face de uma governança recuperada para um projeto democrático e popular, e pudemos inserir, nesses sinais, que “a preocupação com a fome tem revalorizado a política de apoio à produção de alimentos para consumo interno, priorizando a agropecuária da base familiar e a agroecologia”.
Penso que o trabalho de Ingrid, mais engajado na atenção ao processo político que o social engendra por seus movimentos, e sem qualquer proximidade com uma leitura teológico-missionária, em sua especificidade, se enquadra na perspectiva de construção, em metodologia ativa e participativa, que nós, os organizadores e animadores das oficinas e das reuniões conduzidas pela FIAN e pelo Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, para chegar ao conjunto autoral, que forma o volume O Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas: enunciados jurídicos. Organizadoras e organizadores Valéria Torres Amaral Burity, Antonio Escrivão Filho, Roberta Amanajás Monteiro, José Geraldo de Sousa Junior (Organizadores). Brasília: FIAN Brasil e O Direito Achado na Rua, 2021, 195 p.
Do que trata esse trabalho, cuidamos de esclarecer, é o “fomentar uma agenda de debates acerca do Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas em suas múltiplas e diferentes dimensões, sob o ponto de vista das suas experiências de (des)encontros com a via judicial e o sistema de justiça. Os enunciados e os textos que os explicam tratam dos limites e possibilidades de (i) proteção, garantia e reparação a direitos violados ou ameaçados; (ii) efetivação de direitos sonegados; (iii) implementação de políticas públicas e (iv) reconhecimento jurídico e institucional de modos de ser e viver relacionados ao Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas, com especial atenção para o modo como esses direitos – em suas dimensões de posse, territorialidades e agroecologia, considerando o protagonismo das mulheres, as perspectivas étnicas e raciais, além a incidência de tratados internacionais e o impacto da atuação de empresas – são efetivados ou negados, quando se deparam com a via judicial e as diferentes instituições do sistema de justiça”.(conferir em https://estadodedireito.com.br/28954-2/).
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Victor de Oliveira Martins. “A História da CPI é a História do Brasil”: Gestão da burocracia, crise democrática e pânicos morais na CPI do MST. Trabalho de conclusão de Curso apresentado ao Curso de Direito do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba, no Departamento de Ciências Jurídicas – Santa Rita, como exigência parcial da obtenção do título de Bacharel em Ciências Jurídicas, 2023, 99 fls.
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
Victor de Oliveira Martins. “A História da CPI é a História do Brasil”: Gestão da burocracia, crise democrática e pânicos morais na CPI do MST. Trabalho de conclusão de Curso apresentado ao Curso de Direito do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba, no Departamento de Ciências Jurídicas – Santa Rita, como exigência parcial da obtenção do título de Bacharel em Ciências Jurídicas, 2023, 99 fls.
Tive a satisfação, amplificada por razões que logo se verá o que as justifica, de participar da banca examinadora do trabalho de conclusão de curso de bacharelado em Direito apresentado por Victor de Oliveira Martins, para avaliação da banca examinadora constituída pelo orientador professor Roberto Cordoville Efrem de Lima Filho, e pelos estimados colegas e amigos professores Ana Lia Vanderlei de Almeida e Hugo Belarmino de Morais.
Do que trata o trabalho diz bem o seu resumo:
Neste trabalho, tenho por objetivo analisar a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) instituída com a finalidade de investigar a atuação do Movimento dos Trabalhadores e das Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST). A análise parte de uma observação discursiva, com inspiração etnográfica. Para tanto, utilizo-me de um diário enquanto instrumento de coleta das narrativas produzidas ao longo das atividades da CPI, suas reuniões deliberativas, audiências públicas e diligências. Uma vez reunido o corpus da pesquisa, há um esforço de compreensão sobre os mecanismos que atravessam e, de certa forma, legitimam a atuação dos(as) deputados(as) da comissão: 1) a defesa do discurso técnico; 2) a crise democrática e o contexto político-eleitoral brasileiro; e 3) o acionamento de pânicos morais. Nesse processo, importa compreender a relação dos sujeitos presentes da comissão com os diversos campos da vida social a que eles aduzem, evidenciando engrenagens discursivas, mobilizações políticas e relações de poder
E como ele se desenvolve, indica o seu sumário:
1 INTRODUÇÃO
1.1 A escolha do problema de pesquisa
1.2 Metodologia, instrumento e corpus de pesquisa
1.3 Estrutura do texto e divisão dos temas
2 O REGIMENTO E A POLÍTICA: FATOS (IN)DETERMINADOS, SUJEITOS E O
TERRAPLANISMO AGRÁRIO
2.1 O embate em torno do relator da CPI
2.2 O presidente da CPI enquanto sujeito regimental
2.3 “Essa CPI não tem fato determinado”
2.4 A verdade dos fatos, guerra cultural e o “terraplanismo agrário”
3 CPMI DO 8 DE JANEIRO, CRISE DEMOCRÁTICA E A FIGURA DO TERRORISTA
3.1 “A democracia. Isso eles estavam defendendo. Essa é a democracia dessas pessoas”
3.2 Lula e Bolsonaro: quem defende a “verdadeira” reforma agrária?
3.3 Outubro de 2022 e Janeiro de 2023: a CPI e suas linhas político-temporais
3.4 Paz, Terror e a Missão da CPI
4 PÂNICOS MORAIS NA CPI: FAMÍLIA, CRIANÇAS, COMUNISMO, TRÁFICO E ESCRAVIZAÇÃO
4.1 Em defesa das crianças e das famílias do Campo
4.2 Gênero, Classe e Raça na CPI
4.3 Trabalho análogo à de escravo
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
5.1 O relatório de Salles
5.2 O relatório paralelo
5.3 Zucco e Salles derrotados no fim trágico da CPI?
Devo por em relevo que o trabalho de Victor é a primeira elaboração acadêmica que se debruçou sobre a atuação da CPI do MST, com a perspectiva de uma análise crítica sobre suas motivações, escopo, contradições e resultados.
Eu próprio, em diversos momentos, fiz intervenções públicas, em espaços de opinião, mas para marcar posição, contribuir com a construção de narrativas que explicitasse assumir lado, nessa disputa, inclusive ideológica, de posicionamento.
Logo ao ser instituída na Câmara, mobilizei-me na intenção de caracterizar essa iniciativa parlamentar como uma estratégia que desde há muito venho caracterizando como uma atuação desdemocratizante e desconstituinte, lembrando que contra essas estratégias desconstituintes e desdemocratizantes já há acervo constitutivo para pensar outras possibilidades, em sede constitucional, de conferir “definição jurídica diferente”, descriminalizando e politizando no sentido instituinte, condutas que ampliam acesso a direitos. No volume 3, da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito Agrário. Brasília: Editora da UnB/Editora da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2002 organizado por mim, Mônica Castagna Molina e Fernando da Costa Tourinho Neto (então Presidente da Associação dos Juízes Federais), agora com uma astúcia que não disfarça a contrafação dos grupos que aparelham o institucional legislativo (cf. https://www.brasilpopular.com/nova-estrategia-do-latifundio-agronegocio-uma-cpi-para-confrontar-o-mst/).
Logo, no contraponto dessa tomada de posição, o ter podido, nas circunstâncias de ter sido convidado a prestar depoimento na CPI, não só esclarecer o ponto a partir do qual lanço minha vista sobre a questão mas, à luz do convite, o poder discorrer sobre a própria CPI, seu contexto, traçar um diagnóstico da situação agrária no Brasil, e a legitimidade dos protagonismos, o MST em destaque, e a legitimidade de sua ação política para fazer realizar a promessa constitucional da reforma agrária.
Esse foi o centro de minha exposição na CPI, aliás, sintetizada por Victor na monografia. Claro que, para prevenir reduções ou vieses, o que de fato aconteceu e Victor também registra revelando o modo sibilino como o Relator distorce meu depoimento para o apropriar de modo paradoxal em seu relatório, apresentei texto escrito que balizava minha manifestação requerendo – o que foi deferido – mas tendo sido sonegado o seu registro, nos anais da Comissão. Por isso que, cuidei de publicar seu inteiro teor em veículos independentes de comunicação (https://www.brasilpopular.com/cpi-do-mst-contexto-e-diagnostico-da-situacao-agraria-brasileira/).
Deveria me restringir a esses registros. Ocorre que conforme se tornou notório, o meu depoimento ganhou grande visibilidade comunicacional, vindo a se constituir um inusitado fenômeno de projeção do tema e de suas razões, trazendo para o social um outro modo de compreensão sobre a realidade da questão objeto da CPI.
Uma dimensão incidental, mas altamente midiática dessa ressonância que meu depoimento proporcionou, deriva do debate que se travou com a bancada agronegociante e seus aliados à direita do enfrentamento político, gerando um comentário muito agudo do escritor Muniz Sodré, sobre a miséria da cognição (https://www1.folha.uol.com.br/colunas/muniz-sodre/2023/08/a-miseria-da-cognicao.shtml), em sua coluna no Jornal Folha de São Paulo: “Nas redes, uma cena penosa do que se pode hoje chamar de miséria da cognição: a tentativa de diálogo entre um sênior professor de direito e uma jovem deputada na Câmara Federal. Ele procura explicar que toda compreensão implica um recorte da realidade, mas aferrar-se ao recorte com uma visão particular de mundo torna impossível o conhecimento. Ela reage, dizendo-se ofendida por ter ele ousado afrontar o plenário com “conceitos acadêmicos”. O incidente pode soar irrisório, mas é um caso sintomático do que Gramsci chama de “molecular”, isto é, o processo reflexivo sobre formação da subjetividade, em que se declina o problema político da compreensão crítica de si mesmo, e não apenas do social. Implica pesquisar mudanças psíquicas: “as pessoas de antes não são mais as pessoas de depois”, diz o pensador. Molecular, e não macrossocial com suas grandes categorias, é a base conceitual para se entender processos afetivos e protofascistas atuantes na quebra de contenções psíquicas, morais e cognitivas inerentes ao modo civilizatório”.
O que importa é ter logrado fixar um outro ponto-de-vista acerca dessa questão. Por isso que me tocou muito o comentário publicado originalmente no Jornal A Tarde de Salvador (https://www.brasilpopular.com/artigo-contra-o-terraplanismo-agrario/), assinado por Tiago Rodrigues Santos – Jornal Brasil Popular/DF em 4 de julho de 2023. professor do PPGEDUCAMPO/CFP/UFRB, pesquisador do GeografAR-UFBA, do NUCAMPO/UFRB e do LaPPa/CERES/UNICAMP. Para Tiago Santos:
Após um mês de atuação, a CPI do MST – que insisto, é uma CPI contra os povos do campo, das águas e das florestas – só confirma o propósito para que foi instalada: criminalizar a luta pela terra e territórios. Convenhamos, uma CPI que tem Ricardo Salles como relator, aquele que foi o ministro do desmatamento do Governo Bolsonaro, e convida para falar Ronaldo Caiado, um latifundiário e outrora presidente da UDR, não teria outro objetivo.
Mas chamou atenção numa das audiências da CPI a participação do professor José Geraldo de Sousa Júnior, ex-reitor da UnB . Nas quase quatro horas de conversa e embates, o que se viu foi um depoimento consistente e embasado, técnica e politicamente, que honrou todos os estudiosos da Questão Agrária Brasileira. O que se viu foi um depoimento contra o terraplanismo agrário que permeia a cosmovisão da maioria dos membros da CPI.
O professor lembrou aos membros da CPI que a democracia e a própria existência do Parlamento são frutos das lutas sociais que irromperam o Brasil no processo de redemocratização dos anos de 1980 e foi naquele contexto que MST se tornou um dos maiores e mais destacados movimentos do País. Explicitou que a questão agrária brasileira é marcada pela violência e pelos conflitos, que parte daqueles que temem uma reforma agrária ampla e popular, e, por isso, a questão agrária continua sendo um caso de polícia.
Lembrou a todos que o termo invasão não pode ser atribuído ao MST, pois o Movimento ocupa para fazer cumprir a Constituição e exigir a Reforma Agrária. E, como já disse neste espaço outras vezes: alguma reforma agrária só tem sido feita no País quando os movimentos sociais ousaram lutar e ocuparam áreas improdutivas e em desacordo com a legislação ambiental e trabalhista. Observou que o MST luta contra os cinco séculos de latifúndio, fonte contínua da nossa desigualdade socioterritorial. Lembrou que foi a luta do MST que permitiu a milhares de pessoas acesso à terra, educação e cidadania. Recordou que o MST, e outros movimentos, que durante a pandemia prestaram solidariedade à sociedade, distribuíram alimentos a quem tinha fome e, por este ato, foram lembrados e saudados pelo Papa Francisco. Lembrou a todos que nos países democráticos a reforma agrária se tornou fundamento da justiça social e da própria democracia, sobretudo da democracia participativa.
O depoimento do professor José Geraldo lavou a alma dos pesquisadores e grupos de pesquisa vinculados às causas populares, como o GeografAR-UFBA e o LaPPa/CERES/UNICAMP. Assim como o professor, estes e tantos outros grupos não desvinculam as ações acadêmicas do compromisso com o povo e da esperança de uma terra sem males e sem latifúndios.
Volto ao texto de Victor, para conferir a estrutura do texto que ele elaborou e a divisão metodológica dos temas antecipados no Sumário.
Tal como o próprio Autor indica, no primeiro capítulo do texto, intitulado “O Regimento e a Política: fatos (in)determinados, sujeitos e o terraplanismo agrário”, ele busca analisar a dinâmica estabelecida no interior da CPI do MST enquanto um processo constitutivo na produção de suas narrativas e diligências. Trata-se – diz ele – de um esforço analítico preocupado em levantar discussões acerca do “fato determinado” da CPI, requisito constitucional para seu processo de investigação, assim como das contradições que emergem em torno disso. Além disso, importa compreender a relação entre os sujeitos que compõem a CPI e as normas que condicionam a natureza de suas atividades, complexificando os discursos parlamentares em torno de categorias como “verdade”, “técnica” e “ideologia”. Nessa discussão, a sua preocupação, ele esclarece, está em analisar a gestão da burocracia, os métodos produtores da verdade e as fronteiras entre a fantasia e a norma.
No segundo capítulo, conforme o Autor, intitulado “CPMI do 8 de janeiro, crise democrática e a figura do terrorista”, ele situa o contexto histórico-político em que a CPI do MST está inserida, de modo a procurar compreender como o resultado das eleições presidenciais de 2022 e os atos golpistas praticados no dia 8 de janeiro de 2023 contribuem para uma conjuntura de crise democrática na comissão e no Brasil. A partir disso, emergem disputas em torno da defesa/ataque de Lula e de Bolsonaro, em torno da legitimação/deslegitimação da CPI do MST e da CPMI do 8 de janeiro, que se valem de um discurso salvacionista contra a figura do “terrorista”. Nesse passo, ele se vale de reflexões que, negando uma neutralidade valorativa ao tema, aponta que o terrorismo é um fenômeno político e socialmente construído que se inscreve em um processo de regulação e normatização da vida social.
Ainda neste capítulo, ele diz partir da análise na descrição do contexto agrário brasileiro, como forma de evidenciar os conflitos em torno da atuação do MST em relação à luta pela reforma agrária no Brasil. Ele esclarece que, em razão de o movimento ser alvo de investigação da CPI, as discussões travadas em reuniões e audiências públicas envolvem temas que vão desde o embate em torno das ocupações e dos assentamentos ou, como são denominados pelo grupo A, invasões, até quadros político-econômicos de produção agrícola por pequenos agricultores e pelo agronegócio. Ainda que tais questões possam, na dinâmica da comissão, ser consideradas enquanto background de um “revanchismo político”, elas importam na medida em que criam um terreno para o debate sobre a função social da propriedade (Sousa Filho, 2021), os conflitos no campo (CPT, 2023) e a defesa de direitos humanos.
Por fim, no terceiro capítulo, intitulado “Pânicos Morais na CPI: família, crianças, comunismo, drogas e escravização”, o Autor afirma querer descortinar os discursos de deputados e deputadas da comissão que, constitutivamente, atendem a pânicos morais atravessadores do tema da CPI, respaldados em convenções morais de gênero, sexualidade, conservadorismo e religião. Nesse sentido ele quer problematizar o processo de constituição de sujeitos, alguns situados enquanto vítimas, como se observa na defesa das crianças e da famílias, enquanto vetor de comoção e angústia para legitimação das narrativas e das atuações parlamentares na comissão.
O trabalho aponta para o fim melancólico da CPI com o fiasco de sequer ter logrado aprovar seu relatório, constrangida a bancada leal ao movimento ruralista de ter que improvisar em corredor – já não dispondo de plenário oficial para a leitura – um púlpito para seu estertor discursivo.
O Autor procura guardar uma distância prudente no sentido de aferir um ganha e perde que pudesse caracterizar esse fim melancólico. Tal como afirma na conclusão:
Com a multiplicidade de temas levantados pelos(as) deputados(as) que compõem a CPI, tanto no grupo A quanto no grupo B, não apenas nas entrevistas coletivas, mas ao longo de todo o funcionamento da comissão, parece-me simplista a noção de atrelar o desfecho da CPI do MST a uma vitória ou uma derrota. Busco me aproximar mais à perspectiva de Plínio Sampaio, à época Presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA), quando ele afirmou, na apresentação da publicação do relatório vitorioso da CPMI da Terra no início dos anos 2000, que “Relatórios de CPIs são documentos históricos. Registram a conjuntura política do momento, não obstante o fato de que uns falseiam a realidade e outros a desvendem.
Estou de acordo com o Autor. Mesmo que se considere uma vitória, o frustrar-se o movimento anti-povo que insistentes CPIs buscam criminalizar a luta social por democracia, direitos e outro projeto de sociedade (essa foi a 5ª CPI, incluindo a do CIMI, que buscou desqualificar o Movimento sem Terra), aqui apenas travou-se mais um round do pugilato tremendo que divide o país, entre exploradores e explorados, opressores e oprimidos.
Por isso, também concordo com o Autor quando diz em sua conclusão, aludindo ao relatório paralelo peça que também forma o acervo discursivo das posições em disputa:
Por fim, em seu tópico mais extenso denominado “Reforma Agrária e Movimentos Sociais”, o relatório paralelo reforça a posição de José Rainha, José Geraldo de Sousa Júnior e João Pedro Stédile, no intuito de defender a legitimidade dos movimentos sociais amparada na liberdade de organização, a ocupação enquanto um método reivindicatório de direitos e a participação social nas políticas públicas. As conclusões decorrentes são que, sem um fato determinado e com o objetivo de criminalizar movimentos sociais do campo, a CPI fracassou, por não comprovar factualmente irregularidades e crimes cometidos pelo MST. Ao contrário, a comissão serviu para evidenciar as desigualdades no campo e para fortalecer as lutas sociais. Nessa toada, o relatório realiza recomendações de fiscalização do PNRA por parte do TCU e da CGU, de recomposição orçamentária do INCRA e de outros órgãos/programas imprescindíveis à reforma agrária no Brasil, além de resolução efetiva dos conflitos fundiários a partir do Sistema de Justiça e do Poder Executivo.
Muito importante, no trabalho, recuperar o relatório alternativo que a articulação progressista atuante na CPI cuidou de elaborar. É certo não ter havido deliberação, nem sobre o relatório do Relator, nem sobre o relatório alternativo. Mas o evento, político no mais agudo sentido dessa expressão, opera não apenas para os anais do Parlamento mas, como indica o título da monografia, para os anais da História. Por isso o gesto performático de instalar um púlpito, mesmo nos corredores, já não havendo plenário para nenhum pronunciamento oficial. E daí a importância de visualizar o relatório alternativo, fortemente examinado na monografia. Pois, o que mais preocupava (preocupa) no Relatório de Salles não é o texto, frágil, falacioso e vulnerável. São os anexos, com muitas propostas de medidas legislativas, essas sim, altamente danosas para os movimentos sociais e para o MST. Se tivesse sido aprovado o relatório, com essa cauda, sem debate, sem exame de suas proposições, teria se dado o condão de repristinar todo o estoque de proposições criminalizadoras que hibernam nos escaninhos do processo legislativo, para se instalar, como parasitas, em qualquer matéria que vise a tipificar ações de movimentos sociais e sujeitos coletivos de direito*.
Do que se cuida, mostra o trabalho de Victor de Oliveira Martins, o que também eu procurei salientar em meu texto apresentado à CPI. Vale dizer, assim como a Academia leva a sério esse tema, também o Congresso que se constitui, pela força instituinte dos movimentos sociais que lhe deram feição e alcance constituinte, pode e deveria ser o promotor da valorização de um programa de atuação emancipadora que caracteriza o MST e que lhe angaria reconhecimento quase universal. Claro que o MST é conflito, mas insisto, também é projeto.
* Lista dos Projetos de Lei anexados ao Relatório (nº 2) de Ricardo Salles – CPI/MST:
1) PL do Capitão Alden (2023), que aumenta a pena do art. 161 (esbulho possessório)
2) PL do Capitão Alden (2023), que altera a Lei Antiterrorismo para caracterizar a “invasão armada de terras particulares, terrenos, lotes, casa ou imóvel rural” como crime de terrorismo
3) PL da Caroline De Toni (2023), que altera dispositivos na Lei 8.629 de 1993 (Lei da Reforma Agrária)
4) PL da Caroline De Toni (2023), que altera o art. 161 do CP para qualificar o crime de invasão e esbulho possessório (invasão de terreno) – reclusão de 12 a 30 anos
5) PL da Caroline De Toni (2023), que altera a Lei Antiterrorismo para tornar o crime de terrorismo o esbulho possessório
6) PL da Caroline De Toni e do Ricardo Salles (2023), que susta o Decreto nº 9.311 de 2018 que regulamenta e Lei da Reforma Agrária e a Lei que trata dos créditos concedidos aos assentados (Lei nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, e a Lei nº 13.001, de 20 de junho de 2014)
7) PL do Coronel Assis (2023), que determina que movimentos sociais adquiram personalidade jurídica (esse PL é assinado por outros 24 parlamentares). (“Os movimentos sociais e populares identificados e organizados em mais de três Estados, com destaque na imprensa local e nacional, enquadram-se como entidades do Terceiro Setor, devendo adquirir personalidade jurídica, nos termos disciplinados no Código Civil e na legislação especial, para o seu regular funcionamento e responsabilização civil e penal.”)
8) PL do Coronel Chrisóstomo (2023), que altera o art. 161 (esbulho) no CP para aumentar as penas para os crimes de esbulho possessório e usurpação de água
9) PL do Coronel Ulysses (2023), que altera a Lei do PAA para impedir que participantes de conflitos fundiários sejam beneficiários ou fornecedores no Programa
10) PL do Delegado Fabio Costa (2023), que Cria as Delegacias Especializadas em Conflitos Fundiários (esse PL é assinado por outros 41 deputados)
11) PL de 2003 (sem identificação de autoria no texto), que tipifica no CP o crime de terrorismo (inclusive por motivações políticas) – esse PL incorre em vícios formais, uma vez que em 2016 foi aprovada a Lei 13.260/2016, Lei Antiterrorismo)
12) PL do Marcos Pollon (2023), que dispõe que ocupantes e invasores de terra e os condenados pelo crime de esbulho possessório não podem ser beneficiários de programas do governo federal e/ou tomar posse em cargos públicos
13) PL do Evair de Mello que altera o CPC, o CP e a Lei Antiterrorismo para aumentar as penas contra turbação e esbulho possessório
14) Resgata o PL 1595, de autoria do Major Vitor Hugo, que dispõe sobre as ações antiterroristas
15) Regata projeto de Lei de 2014 de autoria do Jair Bolsonaro para ampliar a concessão de portes de armas
16) Resgata PL de 2018 do Jerônimo Goergen, que dispõe sobre o abuso do direito de articulação de movimentos sociais
17) PL do Kim Kataguiri (2023) que altera a Lei 13.465/2017 (regularização fundiária rural e urbana) para reduzir de 5 para 3 anos o tempo de posse mansa e pacífica no imóvel
18) PL do Kim Kataguiri (2023) que altera o art. 161 do CP (crime de esbulho possessório)
19) PL do Messias Donato (2023), que altera o art. 19 da Lei da Reforma Agrária para permitir a inscrição online no programa (confirmar que é só isso)
20) PL do Ricardo Salles (2023), que susta a Resolução nº 510 de 2023 do CNJ que regulamenta a expedição dos mandados de reintegração de posse (a partir da APDF dos Despejos) – “Art. 14 da Resolução. A expedição de mandado de reintegração de posse em ações possessórias coletivas será precedida por audiência pública ou reunião preparatória, na qual serão elaborados o plano de ação e o cronograma da desocupação, com a presença dos ocupantes e seus advogados, Ministério Público, Defensoria Pública, órgãos de assistência social, movimentos sociais ou associações de moradores que prestem apoio aos ocupantes e o Oficial de Justiça responsável pelo cumprimento da ordem, sem prejuízo da convocação de outros interessados”
21) PL do Rodolfo Nogueira (2023) que “proíbe o financiamento do poder público a organizações envolvidas em atividades ilegais”
22) PL do Rodolfo Nogueira (2023), que determina a criação do Cadastro de Invasores de Propriedades
23) PL do Rodolfo Nogueira (2023), que altera as penas para os crimes de esbulho e turbação
24) PL do Rodolfo Nogueira (2023), que altera a Lei 11.952 de 2009 para fixar tempo para o processo de titularização fundiária
25) PL do Zucco (2023), que susta a Resolução nº 510 de 2023 do CNJ que regulamenta a expedição dos mandados de reintegração de posse (a partir da APDF dos Despejos) (igual ao do Salles já listado acima, mas esse do Zucco está assinado por outros 46 deputados)
**Agradeço ao professor Pedro Brandão, assessor da bancada do PSOL na Câmara dos Deputados, a preparação da Lista de Projetos.
***A fera do latifúndio hiberna mas tem despertares intermitentes. O perigo não cessa. Me informa ainda o professor Pedro Brandão: [13:20, 03/12/2023] Pedro Brandao: Nesta última semana entrou em pauta o projeto do Pollon. Felizmente, por articulação dos líderes, não chegou a ser votado. Mas precisamos ficar atentos (“12)PL de Marcos Pollon (2023), dispõe que ocupantes e invasores de terra e os condenados pelo crime de esbulho possessório não podem ser beneficiários de programas do governo federal e/ou tomar posse em cargos públicos”).
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
Filosofia enquanto Poesia: Sete Cartas a um Jovem Filósofo, Conversação com Diotima, Filosofia Nova e Outros Escritos
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Agostinho da Silva. Filosofia enquanto Poesia: Sete Cartas a um Jovem Filósofo, Conversação com Diotima, Filosofia Nova e Outros Escritos. Organização, seleção e fixação de textos, posfácio e notas Amon Pinho; prefácio Eduardo Giannetti. (Biblioteca Agostinho da Silva, vol. 1 – 1ª edição – São Paulo: É Realizações, 2019, 432 p.
Agostinho da Silva. Educação, Reinvenção e Liberdade (Biblioteca Agostinho da Silva, volume 2, Tomo 1); organização do volume Romana Valente Pinho, Amon Pinho; prefácio Antônio Nóvoa. – 1ª edição. – São Paulo: É Realizações, 2023, 392 p.
Remeto às sinopses preparadas pela editora para a bela edição desses dois volumes que inauguram a Biblioteca Agostinho da Silva:
Vol. 1: Este livro é a primeira amostra de um tesouro: volume 1 da Biblioteca Agostinho da Silva, que publicará, em edição crítica, escritos desse grande pensador luso-brasileiro. Filosofia enquanto Poesia reúne as obras Sete Cartas a um Jovem Filósofo – uma das mais conhecidas do autor –, Conversação com Diotima e Parábola da Mulher de Loth, além de ensaios que Agostinho publicou em O Estado de S. Paulo – incluindo “Filosofia nova” –, na coleção Iniciação: Cadernos de Informação Cultural – sobre os pré-socráticos, Sócrates, Platão, Epicuro, o estoicismo, a escultura grega e a literatura latina – e como prefácios a traduções de Sófocles, Platão, Aristófanes, Lucrécio, Plauto e Terêncio. Trata-se de uma coletânea que apresenta o fazer desse filósofo e escritor. Com organização, posfácio e notas de Amon Pinho, este título conta também com prefácio de Eduardo Giannetti e com depoimentos de Eduardo Lourenço, Joel Serrão, Eugênio Lisboa e o ex-presidente de Portugal Mário Soares.
Vol. 2: Não bastasse a amplitude de seu pensamento, Agostinho da Silva fez história no Brasil e em Portugal com iniciativas educacionais ousadas. Aqui, ajudou a fundar universidades como a UFF, a UFSC, a UFG, a UFPB e a UnB. Lá, idealizou e coordenou coleções de livros educativos, e centros como o Núcleo Pedagógico de Antero de Quental. Dedicar-se ao ensino, afinal, é parte orgânica de uma reflexão que não se separa da vida: de uma obra que se entende como criação e ação. Depois de Filosofia enquanto Poesia, agora a Biblioteca Agostinho da Silva apresenta Educação, Reinvenção e Liberdade, dividido em dois tomos. Este primeiro, Educar para a vida, reúne tanto amostras de publicações didáticas de Agostinho como textos em que ele apresenta os expoentes da Escola Nova – movimento que motivava sua perspectiva educacional e que inspirou, no Brasil, figuras como Rui Barbosa, Roquette-Pinto, Anísio Teixeira e Cecília Meireles. O volume tem prefácio de Antônio Nóvoa, reitor honorário da Universidade de Lisboa.
Fui convidado a participar do ato celebratório promovido pela Cátedra Agostinho da Silva, atualmente compartilhada pelas Universidades de Brasília, onde originalmente se instalou e a Universidade Federal de Uberlândia, e que se incumbiu da iniciativa, juntamente com a Editora É Realizações, da publicação dos dois primeiros volumes da Obra.
Nessa solenidade de lançamento da Biblioteca Agostinho da Silva, a mesa de abertura contou com os organizadores Amon Pinho e Romana Valente Pinho. E ainda com o Embaixador de Portugal Luis Faro Ramos; o professor Carlos Henrique de Carvalho, Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação da Universidade Federal de Uberlândia; a professora Liliane Campos Machado, Diretora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, anfitriã da celebração, realizada no ambiente icônico da Sala Papiros, na FE; a vice-diretora da Faculdade de Educação da UnB, professora Daniele Pamplona Nogueira.
Na mesa, a Reitora professora Marcia Abrahão Moura, a Diretora da Cátedra Agostinho Silva da UnB, a professora Ana Clara Medeiros e, em registro especiaa a sensível apresentação do músico, compositor e cineasta André Luiz Oliveira que cantou poemas musicados de Fernando Pessoa, relevo para Mensagem.
Confesso a surpresa do convite para estar nessa seção, certamente grande cortesia do professor Amon Pinho, precedido de visita que recebi do Professor Roberto Pinho, que em companhia da minha colega Maria Luiza Pereira, o anteciparam e que me agraciaram com os exemplares dos dois volumes agora lançados, com eles compartilhei a mesa acadêmica, completada com a participação de meu colega de UnB professor Marcus Motta e da professora Romana Valente, também co-organizadora dos volumes que inauguram a Biblioteca.
Todos e todas os que compuseram a mesa acadêmica apresentaram comunicações marcantes, recolhidas em gravação de mídia para compor os anais da Cátedra e, espero, formar uma edição que organize as exposições muito densas dos convidados e convidadas.
De minha parte, tal como adverti na ocasião, por ser pouco versado nos fundamentos da obra de Agostinho, mais que com com isso a dizer da surpresa para estar nesta celebração, salientar ser consciente, na condição de integrante da comunidade que constitui a Universidade de Brasília, do dever de trazer um depoimento que honre a importância de Agostinho da Silva, muito em particular para a Universidade de Brasília.
Passados quase trinta anos de sua morte (1994), é ainda muito pertinente, não fugir à questão provocadora posta pela professora Romana Valente Pinho, sobre a trajetória desse grande humanista, “E agora?” (PINHO, Romana Valente. Agostinho da Silva: Quinze Anos Depois de sua Morte. E Agora?. In Nova Águia. Revista de Cultura para o Século XXI. Nº 3 – 1º Semestre de 2009. Tema: O Legado de Agostinho da Silva Quinze Anos Após a sua Morte).
Não me atrevo a seguir a provocação da professora Romana Valente: “ler Agostinho da Silva fria e cruelmente, disseca-lo até à minúcia e ao pormenor, volver-lhe as entranhas até nos depararmos com os variegados aspectos do seu pensamento, com as múltiplas fases intelectuais pelas quais passou” (op. cit. p. 92).
Antes, ou apenas, supondo que o convite que me foi feito se deveu ao fato de ser eu o Reitor da UnB, não no momento, de criação da Cátedra Agostinho da Silva na UnB, em 2006, mas no período de sua implantação, no UnB/IL/TEL o ter acompanhado as injunções para a edição da obra organizada pelo professor Henryk Siewierski, Agostinho da Silva. Universidade: testemunho e memória. Brasília: Universidade de Brasília, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, 2009.
É desse tempo que me vem o despertar para o que representou Agostinho da Silva, para a Filosofia, para a Literatura, para a Teologia, para os Estudos Portugueses, para o Brasil e para a UnB, ele que se constituía como descreveu Santiago Naud “uma alma oceânica”, e mais que isso, como dele ouvi em visitas que me fez várias vezes no Gabinete, referindo-se a Agostinho, “uma seminal presença no Brasil, confirmação iluminada de sua generosa teoria civilizatória”.
Do professor Henryk Siewierski, um polonês que diz ter ganho de Agostinho “o Brasil de presente” (Como ganhei o Brasil de Presente, Presença de Agostinho da Silva no Brasil, org. Amândio Silva e Pedro Agostinho. Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa/ Ministério da Cultura, 2007), é afirmação de que “a História tem o sentido e o plano que a move e a transcende. Um plano correspondente aos mais profundos desejos do homem, que ele gostava de exprimir através da linguagem parabólica do culto popular do Espírito Santo, próprio da cultura portuguesa. E procurava humildemente cumprir este plano em todos os campos da vida, na medida das suas próprias possibilidades, pois na medida de seu coração”. Por isso é aquele que ajuda: “ajudar os outros a carregar o peso e confiar no rumo, que estão seguindo o caminho certo – embora às vezes, sim, por linhas tortas -, leva Agostinho da Silva a atuar preferencialmente nas suas margens. Nas margens da História não quer dizer à margem, pois é nas margens que a História toma a sua forma. E são as margens, os barrancos da História, que precisam de mais cuidado, devido à sua fragilidade, que os pode facilmente levar à margem” (Uma Lembrança de Agostinho in Presença de Agostinho da Silva no Brasil, op. cit).
Então, procurei uma nesga dessa faixa, de um tema que talvez possa ser adequadamente desenvolvido em novos tomos da edição: o projeto da UnB como universidade necessária, tantas vezes interrompido, mas sempre retomado para se constituir universidade emancipatória.
No livro Presença de Agostinho da Silva no Brasil há uma entrevista com o Professor João Ferreira, realizada pela Professora Neila Flores, da qual recorto uma passagem: A pergunta: “E como foi a saída de Agostinho da Universidade de Brasília, em 1969?”.
O Professor João Ferreira certifica em relação a Agostinho uma nota de posicionamento, em geral desconsiderada nos demais estudos que se debruçaram sobre esse período sombrio. Não há registro no livro-referência de Roberto Salmeron – A Universidade Interrompida: Brasília 1964-1965, com depoimentos e dados históricos, da diáspora
Digo isso no prefácio que fiz para a edição comemorativa do cinquentenário da UnB (2012), no qual distingo as suas duas partes, a primeira que se concentra na reconstrução da memória de fundação da UnB, tratando dos acontecimentos que a cercam e da crônica dos fatos que caracterizaram as bases conceituais e políticas da proposta da nova universidade; a segunda, que descreve a crise e a violência com que o golpe se impôs sobre a universidade, intimidando alunos e professores, desorganizando-a, reprimindo seu poder criativo e ferindo antagonistas.
Tomo o pressuposto de que A Universidade Interrompida, nesse duplo aspecto, integra a antologia explicativa de criação da UnB, sua promessa utópica, as vicissitudes que sofreu, seu começo e permanente recomeços. Sustento que o livro tem lugar cativo na mesma estante na qual se classificam outras preciosidades, como os títulos de Darcy Ribeiro: Universidade de Brasília, editado em 1962 e reeditado pela UnB em 2011; A Universidade Necessária, de 1969; e UnB: Invenção e Descaminho, de 1978. A obra de Heron Alencar A Universidade de Brasília. Projeto Nacional da Intelectualidade Brasileira, comunicação que o Autor apresentou à Assembleia Mundial de Educação, no México, em 1964, que Darcy publicou como apêndice ao seu Universidade Necessária. Também Antônio Luiz Machado Neto, coordenador do Instituto Central de Ciências Humanas, no período de 1962-1965, quando da diáspora de 1965, em um ensaio sofrido publicado na antiga Revista da Civilização Brasileira, basta ver o título: A Ex-Universidade de Brasília (cf. SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Prefácio, in SALMERON, Roberto A. A Universidade interrompida: Brasília 1964-1965. Edição Comemorativa. Brasília: Editora UnB, 2012).
Não há referências diretas a Agostinho da Silva, nessas memórias Por isso o valor do depoimento de João Ferreira à indagação da professora Neila Flores:
Como fundador, como Coordenador do Centro Brasileiro de Estudos Portugueses em Brasília, e também por suas convicções políticas, sociais e humanitárias, Agostinho tinha uma linha da qual não se afastava. Democrata convicto, serviu em muitos projetos no Ministério da Educação, no tempo de Darcy Ribeiro, e foi um dos fundadores da Universidade de Brasília. Como a partir de 1964 surgiu o governo militar, Agostinho, embora sem partido político, lutava por uma sociedade livre em suas formas de organização e de expressão. Disso não abriu mão nunca. Na Universidade, tentou tocar seus projetos culturais enquanto pôde, apesar da ditadura. A partir de 1968, porém, a nova Reitoria via com desconfiança a liberalização política dos que frequentavam o Centro Brasileiro de Estudos Portugueses, e também o Centro de Estudos Clássicos, e foi pensando na extinção dos Centros a curto prazo…Agostinho sabia que, em determinada altura, a Reitoria começaria a fazer pressão, pegando pequenas coisas e tentando incomodar…o que ele rapidamente entendeu é que não teria ambiente de trabalho, sobretudo o ambiente de que precisava para seus projetos… foi para Portugal, onde rapidamente se transformaria num guru da juventude, e onde teria o apreço dos jovens, dos políticos e da sociedade..”.
Os elementos narrativos aqui encontrados, confirmam um dos achados da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB, em seu Relatório (https://www.comissaoverdade.unb.br/images/docs/Relatorio_Comissao_da_Verdade.pdf). A gravidade das violações não alcançaram apenas os indivíduos na sua integridade e dignidade, mas atingiram as estruturas institucionais democráticas, notadamente as universitárias. Aliás, essa percepção ficou sufragada pelo comentário de meu colega Marcus Motta, que em sua exposição, reagindo a esse pressuposto, levantou a hipótese de que a ação destituinte dos dois Centros – de Estudos Portugueses (Agostinho) e de Estudos Clássicos (Eudoro de Sousa), deveu-se não só a uma hostilidade política, mas a uma objeção epistemológica: a perspectiva de interdisciplinaridade que caracterizava os estudos e as pesquisas neles desenvolvidas, em face da resistência paradigmática do disciplinar tão confortável ao positivismo tout court e ainda atual.
Em artigo de memória, publicado para marcar 30 anos da UnB (UnB 30 Anos), no vol. 8, da Revista Humanidades, nº 4, 1992) e republicado para segunda leitura, no nº 65, dezembro de 2021, da mesma Revista, a professora Geralda Dias Aparecida, lembra que “a história da Universidade de Brasília precisa ser contada no plural. Encontram-se em suas formas arrojadas as aspirações de políticos e intelectuais encantados com o Brasil do futuro”. No texto ela sintetiza seu material de pesquisa que foi aplicado ao processo de anistia das vítimas do período autoritário, conforme a periodicidade inscrita na norma de remissão.
Nessa periodização ela localiza as ocorrências pela caracterização das situações de crise e de disciplinarização exercitadas nas formas mais exacerbadas. Mas ela recupera uma espécie de roteiro para o que fazer com a UnB. Para um desses setores interessados na Instituição, o Serviço Nacional de Informações (SNI), conforme um informe especial sobre a UnB, em setembro de 1965, um diagnóstico e possíveis soluções para reordenar a UnB trazia 11 orientações. Dessas, no aspecto administrativo, a) a mudança de reitor não era suficiente para garantir uma mudança de filosofia e objetivos da UnB; b) a equipe de Darcy Ribeiro era eficiente e envolvia a reitoria através de assessoramento técnico com a constituição de laços de amizade; c) havia necessidade de substituir os detentores de cargos-chaves e transformá-los em cargos de confiança; d) a reitoria deveria criar um órgão do tipo ‘Centro Social’ para centralizar as vantagens e benefícios concedidos aos alunos e pessoal docente e técnico-administrativo. Seguiam-se orientações para a área de pessoal e corpo discente.
Essa uma nova realidade que vai contrapor-se a tudo que pensava Agostinho e que se constituía seu ideário filosófico. Basta consultar suas Notas para uma posição ideológica e pragmática da Universidade de Brasília. Esse texto anteriormente publicado em pelo menos duas edições em Lisboa (1964-1965 e 1988), consta de Presença de Agostinho Silva no Brasil, citado.
Seus enunciados podem ser também encontrados em Agostinho da Silva: Filosofia e Espiritualidade, Educação e Pedagogia, de Luís Carlos Rodrigues dos Santos, Tese orientada pelo Prof. Doutor Paulo Alexandre Esteves Borges e pelo Prof. Doutor Jorge Manuel Bento Pinto, especialmente elaborada para a obtenção do grau de doutor em Filosofia, especialidade de Filosofia da Educação, Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Departamento de Filosofia.
Distingo-a, entre outros escritos sobre diferentes aspectos da vida e obra de Agostinho da Silva, porque nela há um capítulo (2.4) sobre a Universidade de Brasília e um capítulo (2.4.2) “Depoimento à Comissão Parlamentar de Inquérito”.
Aqui reporto ao texto na tese. O Autor registra que, “no final do Verão de 1967, depois de uma “viagem pela Europa Central (Suiça, Alemanha, Holanda, Bélgica, França)”, Agostinho passa por Portugal e as relações com a Universidade de Brasília, embora as desavenças registadas, ainda não se tinham extinguido. Ele veio com a missão que lhe fora dado pelo Reitor da Universidade de Brasília para recrutar novos professores. “Nessa altura, a Universidade estava abalada pela decisão, política, de autodemissão coletiva de uma grande parte dos seus professores, no ano de 1965, em sinal de protesto contra a ditadura militar. A Universidade precisava, entretanto, de retomar o seu caminho, e Agostinho trabalhava entusiasmado para isso. Para criar uma Universidade educada e livre, cujo sucesso passava por uma qualificação do corpo docente.”
Salmeron em seu livro dá relevo à Comissão Parlamentar de Inquérito instalada na Câmara dos Deputados em 1966. Claro, estando sua obra demarcada pela crise de 1964-1965, alude apenas aquele enquadramento de uma CPI que não chegou a aprovar seu Relatório. Mesmo assim ele reproduz seu próprio e lúcido depoimento e também o do Reitor Laerte Ramos de Carvalho. Ambos. No seu antagonismo, compõem um mosaico de interpretações sobre a condição da UnB e da universidade brasileira naquela conjuntura.
Entretanto, também Agostinho da Silva contribuiu para a interpretação dessa realidade. Conforme o professor Luiz Carlos dos Santos em sua tese,
Em Maio de 1968, ano anterior ao do regresso do Professor a Portugal, Agostinho da Silva ainda vai perante a Câmara dos Deputados Brasileiros que o convoca para conhecer a sua opinião sobre a organização do ensino superior no país.
Reteremos aqui o desenrolar sintético do seu testemunho que nos permitirá apreender sobre o modo como, para ele, deveria funcionar uma Universidade.
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Com o capitalismo, a partir do século XV/XVI, a Universidade começou tomando formas que traíram a sua origem. “Do que se queixam todas as Universidades ou todos os homens que pensam a Universidade em termos gerais é que está muito formando técnicos, está muito formando especialistas, está formando homens cuja linguagem deixa de ser inteligível para outros homens (…) A Universidade americana, a alemã, podem formar técnicos excelentes mas rarissimamente formam homens (…) A Universidade passa a ser alguma coisa que se frequenta para ter um diploma para poder exercer legalmente a profissão mas não alguma coisa que se frequenta para adquirir uma capacidade plenamente humana.”
Para Agostinho a Universidade passa, por vários motivos, a não consolidar a natureza humana, mas a formar técnicos com dificuldades de compreensões humanistas. Professores e alunos que, de alguma forma, estão divorciados dos reais problemas do seu país, como da fome, da doença, do abandono a que as pessoas estão votadas. É preciso que se construa uma Universidade que promova o desenvolvimento tecnológico, é certo, mas que ao mesmo tempo saiba utilizar esse desenvolvimento como um meio de progresso humano e pensar numa humanidade que seja mais compreensiva do que aquela que ia surgindo nos países mais industrializados.
As Universidades na Europa ficaram no século XIX e os alunos já estão, pela imaginação, pela energia, no século XXI. Quando um aluno sai da Universidade, por mais incrível que pareça, a verdade é que sai bastante amputado da sua capacidade de criação, de originalidade. Um dos pontos mais importantes porque uma Universidade deve vigiar é que, mais importante do que ensinar, é fazer com que os alunos descubram por si próprios, mais do que ensinar apostar na investigação. Há que se utilizar cada vez mais os métodos de uma “nova pedagogia”, em que o professor fala menos e o aluno pesquisa mais. Mais liberdade de pensamento, mais liberdade de crítica. “A Universidade não deve obedecer àquilo que (outrora) fez o seu fundador, deve obedecer àquilo que os estudantes querem”, ao mundo que querem construir
Não perderam fôlego as ideias de Agostinho da Silva sobre o tema. Elas ainda pavimentam o percurso que, ao menos na UnB, em suas interrupções e recomeços, ainda agora passamos por um período bem turbulento, conduz o seu projeto desde uma concepção de universidade necessária para se constituir plenamente, também emancipatória (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de (org). Da Universidade Necessária à Universidade Emancipatória. Brasília: Editora UnB, 2012).
Ainda estamos engolfado nesse processo que afeta a liberdade acadêmica, não só no Brasil mas em muitos âmbitos do hemisfério. No dia 9/11, aconteceu o lançamento formal do Free To Think 2023 ! O relatório, divulgado em 31 de outubro de 2023, analisa 409 ataques à comunidade do ensino superior em 66 países e territórios, entre 1 de julho de 2022 e 30 de junho de 2023. Destaca como os ataques à liberdade académica ameaçam ainda mais a sociedade democrática e o progresso social. de forma ampla e apela às partes interessadas para que criem proteções robustas para académicos, estudantes e instituições de ensino superior.
O lançamento aconteceu durante a Segunda Conferência Regional sobre Liberdade Acadêmica nas Américas, organizada pela Coalizão pela Liberdade Acadêmica nas Américas (CAFA). e sediado pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná-PUCPR em Curitiba, Brasil. O lançamento contou com um painel de especialistas apresentando perspectivas regionais sobre a liberdade acadêmica e discutirá respostas aos ataques.
Realizar esses princípios implica diria Agostinho da Silva, tal como ele lançou em seu texto Notas para uma posição ideológica e pragmática da Universidade de Brasília, do qual, muito que nele se contêm está em seu depoimento na Câmara dos Deputados, “um esforço de inteligência, temendo acima de tudo a imbecilidade que nos espreita”.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
Ciência & Saúde Coletiva Publicação de: ABRASCO. Condições de Trabalho e Saúde Mental dos Trabalhadores da Saúde no Contexto da COVID-19 no Brasil
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Título original: Ciência & Saúde Coletiva Publicação de: ABRASCO – Associação Brasileira de Saúde Coletiva. Volume: 28, Número: 10, Publicado: 2023. https://www.scielo.br/j/csc/i/2023.v28n10/.
Valiosa a edição deste número de Ciência & Saúde Coletiva, publicação da ABRASCO, dedicada ao tema “Condições de Trabalho e Saúde Mental dos Trabalhadores da Saúde no Contexto da COVID-19 no Brasil”.
Para lembrar, a ABRASCO – Associação Brasileira de Saúde Coletiva é uma organização de apoio ao ensino, pesquisa, cooperação e prestação de serviços no campo da Saúde Pública/Saúde Coletiva. Seu corpo social é formado por técnicos, profissionais, estudantes e professores da área, além de instituições de ensino, pesquisa e serviço.
Vem de longe minha ligação com a institucionalidade e o associativismo civil que se engaja na construção do conceito constitucional da saúde como direito social, não só em interação com a Abrasco, mas com o Cebes (https://www.youtube.com/watch?v=_aGQVP5yN-w – Seminário Cebes 4 anos – entrevista José Geraldo de Sousa Junior) e, sobretudo na interlocução com o sistema público de saúde. Basta ver, neste âmbito, a minha participação na 8ª Conferência Nacional de Saúde, cf. minha participação no painel: Saúde como Direito Inerente à Cidadania e à Personalidade, no qual apresentei o tema: A Construção Social da Cidadania (Anais da 8ª Conferência Nacional de Saúde 1986. Brasília: Centro de Documentação do Ministério da Saúde, 1987). Como se sabe, muito pelo protagonismo do Movimento Sanitarista brasileiro, essa Conferência praticamente desenhou o modelo de saúde que o Constituinte de 1988, aprovou na Constituição.
O acumulado desse processo se projeta em projetos acadêmicos, entre os quais o que se insere nos processos de pesquisa nesse campo, relevo para o que se sintetiza no Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua (Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq) publicado na série O Direito Achado na Rua, com dois volumes já publicados, em parceria com a Fiocruz e a OPAS – Organização Panamericana de Saúde: Introdução Crítica ao Direito à Saúde, vol. 4 e Introducción Crítica al Derecho a la Salud, vol. 6 (https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/handle/icict/39282/O%20Direito%20Achado%20na%20Rua.pdf?sequence=2).
A mais recente aplicação desse acumulado, tem sido no bem sucedido esforço programático docente contido no desenvolvimento da Disciplina: DIREITO À SAÚDE, DIREITOS HUMANOS E O DIREITO ACHADO NA RUA: A CONSTRUÇÃO SOCIAL DOS DIREITOS, Créditos: 2 (30h/a), já com três semestres integralizados, no Programa de Pós-Graduação – Escola Fiocruz de Governo (EFG/Direb/Fiocruz), com a participação dos professores SWEDENBERGER BARBOSA e MARIA FABIANA DAMASIO PASSOS ESTEVES (Diretora da Fiocruz Brasília), com os quais colaboro.
Neste Semestre/ano: 2º/2023, a disciplina, ainda em desenvolvimento, no momento em que escrevo esta Coluna Lido para Você, segue a seguinte Ementa:
O Direito como “expressão de uma legítima organização social da liberdade”, tal como formulado por Roberto Lyra Filho-marco conceitual original do projeto denominado O Direito Achado na Rua.
“Direitos Humanos como lutas sociais concretas da experiência de humanização,na trajetória emancipatória do homem. “
Democracia e Cidadania. Saúde como conquista social. e como direito humano fundamental Participação e Controle Social em Saúde, Papel do Estado e dos Movimentos Sociais.
Reforma Sanitária. Brasileira, Processo histórico de construção do Sistema Único de Saúde-SUS: arcabouço jurídico, princípios e diretrizes. Financiamento da saúde e Austeridade fiscal. Dilemas e desafios para a consolidação e o futuro do SUS.
O SUS e as respostas à pandemia do novo coronavírus-covid-19 nos diferentes níveis de governo.
Coordenação Federativa, Instrumentos e estratégia de integração entre :1)os três níveis de governo e2) governos e sociedade . . O Sistema Único de Saúde-SUS e sua relação com as demais políticas públicas de inclusão social.
Direitos Humanos e covid-19: impactos e respostas da sociedade civil e dos grupos vulnerabilizados à pandemia.
A ênfase programática, inferida da ementa e dos objetivos da disciplina foi assim definida: “Direito à Saúde, Direitos Humanos e o Direito Achado na Rua: Reflexões sobre o Futuro no Pós-Pandemia. Mundo do trabalho na saúde: repercussões no cenário pandêmico e pós-pandêmico e aspectos da gestão da ética pública”.
Além dos pressupostos político-epistemológicos que derivam do entendimento de O Direito Achado na Rua, sua concepção e prática, articulados ao tema da saúde e dos direitos humanos, no contexto programático no semestre letivo em curso, tomou como referência central para o seu desdobramento, definição de agendas de autores-convidados, seminários e análises (resenhas e ensaios) atribuídos aos participantes, duas referências bibliográficas centrais, que permitiram o encontro desses fundamentos:
Os livros (https://estadodedireito.com.br/direitos-humanos-e-covid-19/) Direitos Humanos e Covid-19. Grupos sociais vulnerabilizados e o contexto de pandemia. Organizadores: José Geraldo de Sousa Junior, Talita Tatiana Dias Rampin e Alberto Carvalho Amaral. Prefácio de Boaventura de Sousa Santos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2021; e (https://estadodedireito.com.br/direitos-humanos-covid-19-vol-2-respostas-sociais-a-pandemia/) Direitos Humanos & Covid-19, vol. 2. Respostas Sociais à Pandemia. José Geraldo de Sousa Junior, Talita Tatiana Dias Rampin, Alberto Carvalho Amaral (orgs.). Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2022, 918 p.
Nesses livros, alguns trabalhos, além de inscritos nos itens do programa da disciplina, permitiram direta ou indiretamente, correspondência ao número de Ciência & Saúde Coletiva objeto deste Lido para Você:
Pandemia da Covid-19 e profissionais da saúde no Brasil: desafios e violações de direitos vivenciados por trabalhadoras/es da linha de frente, LUCIANA LOMBAS BELMONTE AMARAL
Disputa de narrativas e hermenêutica constitucional: ADPF 822 e a declaração do “estado de coisas inconstitucional” na gestão da saúde pública na pandemia, JOSÉ EYMARD LOGUERCIO, MAURO DE AZEVEDO MENEZES e RICARDO QUINTAS CARNEIRO
Direitos Humanos e Covid-19: a Fiocruz e as respostas à pandemia, SWEDENBERGER DO NASCIMENTO BARBOSA, MARIA FABIANA DAMASIO PASSOS e LEANDRO PINHEIRO SAFATLE.
Volto a Ciência & Saúde Coletiva Publicação de: ABRASCO – Associação Brasileira de Saúde Coletiva. Volume: 28, Número: 10, Publicado: 2023. Registro para seu Sumário altamente urgente e convocatório:
Aprender com a pandemia – e não repetir os erros Editorial
Silva, Luiz Inácio Lula da
O olhar da Ética e da Bioética sobre o trabalhador e o trabalho em saúde no contexto da pandemia de COVID-19 no Brasil Debate
Barbosa, Swedenberger do Nascimento
O sujeito, sua práxis e suas consequências Debatedores
Sousa Junior, José Geraldo de
A bioética em tempos de emergência sanitária Debatedores
Costa, Humberto
Em defesa da vida, da ciência e da solidariedade Debatedores
Bezerra, Maria de Fátima
Transformações no mundo do trabalho em saúde: os(as) trabalhadores(as) e desafios futuros Artigo
Machado, Maria Helena; Campos, Francisco; Haddad, Ana Estela; Santos Neto, Pedro Miguel dos; Machado, Antônio Vieira; Santana, Vanessa Gabrielle Diniz; Marengue, Helena da Conceição Ouana; Santos, Renato Penha de Oliveira; Mauaie, Clara Cacilda; Freire, Neyson Pinheiro
Perfil e essencialidade da Enfermagem no contexto da pandemia da COVID-19 Artigo
Santos, Betânia Maria Pereira dos; Gomes, Antonio Marcos Freire; Lourenção, Luciano Garcia; Cunha, Isabel Cristina Kowal Olm; Cavalcanti, Aurilene Josefa Cartaxo de Arruda; Silva, Manoel Carlos Neri da; Lopes Neto, David; Freire, Neyson Pinheiro
A precarização jurídica das relações de trabalho como fator de sofrimento das(os) trabalhadoras(es) no setor da saúde durante a pandemia de COVID-19 Artigo
Militão, João Batista dos Santos; Maior, Jorge Luiz Souto; Silva, Luís Fernando; Barbosa, Swedenberger do Nascimento; Machado, Maria Helena; Gomes, Antônio Marcos Freire; Barreto, José Cláudio Silva; Aguiar Filho, Wilson
Condições de trabalho e biossegurança dos profissionais de saúde e trabalhadores invisíveis da saúde no contexto da COVID-19 no Brasil Artigo
Machado, Maria Helena; Coelho, Maria Carlota de Rezende; Pereira, Everson Justino; Telles, Alexandre Oliveira; Soares Neto, Joaquim José; Ximenes Neto, Francisco Rosemiro Guimarães; Guimarães-Teixeira, Eleny; Bembele, João Niquice; Silva, Luciana Guedes da; Vargas, Filipe Leonel
Comorbidades e saúde mental dos trabalhadores da saúde no Brasil. O impacto da pandemia da COVID-19 Artigo
Guimarães-Teixeira, Eleny; Machado, Antônio Vieira; Lopes Neto, David; Costa, Lilian Soares da; Garrido, Paulo Henrique Scrivano; Aguiar Filho, Wilson; Soares, Rayane de Souza; Santos, Beatriz Rodrigues dos; Cruz, Eliane Aparecida da; Contrera, Marina Athayde; Delgado, Pedro Gabriel Godinho
O Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS) como espaço estratégico para a modernização do SUS e para a geração dos empregos do futuro Artigo
Gadelha, Carlos Augusto Grabois; Gimenez, Denis Maracci; Cajueiro, Juliana Pinto de Moura; Moreira, Juliana Duffles Donato
Observatório Covid-19 Fiocruz – uma análise da evolução da pandemia de fevereiro de 2020 a abril de 2022 Artigo
Freitas, Carlos Machado de; Barcellos, Christovam; Villela, Daniel Antunes Maciel; Portela, Margareth Crisóstomo; Reis, Lenice Costa; Guimarães, Raphael Mendonça; Xavier, Diego Ricardo; Saldanha, Raphael de Freitas; Mefano, Isadora Vida
Carregando vidas e mortes: o cotidiano de trabalho de maqueiros hospitalares no contexto da COVID-19 Artigo
Araujo, Luísa Maiola de; Santos, Adriana Kelly
Análise da associação entre níveis de fadiga por compaixão e engajamento no trabalho com a COVID-19 em profissionais de enfermagem Artigo
Lourenção, Luciano Garcia; Penha, José Gustavo Monteiro; Ximenes Neto, Francisco Rosemiro Guimarães; Santos, Betânia Maria Pereira dos; Pantoja, Vencelau Jackson da Conceição; Ribeiro, Josias Neves; Cunha, Ludimila Magalhães Rodrigues da; Nascimento, Vagner Ferreira do
Associações entre as características sociodemográficas e de saúde dos trabalhadores do Ministério da Saúde e COVID-19 Artigo
Matielo, Etel; Artmann, Elizabeth; Costa, Mayara Suelirta da; Meneses, Michele Neves; Silva, Patrícia Ferrás Araújo da
Análise de situações de trabalho na fiscalização sanitária de medicamentos da agência reguladora federal Artigo
Martins, Mary Anne Fontenele; Scherer, Magda Duarte dos Anjos
Qualidade de vida e engajamento no trabalho em profissionais de enfermagem no início da pandemia de COVID-19 Artigo
Carvalho, Taisa Moitinho de; Lourenção, Luciano Garcia; Pinto, Maria Helena; Viana, Renata Andrea Pietro Pereira; Moreira, Ana Maria Batista da Silva Gonçalves; Mello, Leticia Pepineli de; Medeiros, Gilney Guerra de; Gomes, Antonio Marcos Freire
Fatores associados ao estresse ocupacional entre cirurgiões-dentistas do setor privado no primeiro ano da pandemia de COVID-19 Artigo
Pacheco, Elis Carolina; Avais, Letícia Simeoni; Ditterich, Rafael Gomes; Silva-Junior, Manoelito Ferreira; Baldani, Márcia Helena
Condições de trabalho e saúde mental de agentes comunitários de saúde na pandemia de COVID-19 Artigo
Fernandes, Tatiana Fróes; Lima, Clara Cynthia Melo e; Silva, Patrick Leonardo Nogueira da; Rossi-Barbosa, Luiza Augusta Rosa; Pinho, Lucineia de; Caldeira, Antônio Prates
Resiliência, depressão e autoeficácia entre profissionais de enfermagem brasileiros na pandemia de COVID-19 Artigo
Sousa, Laelson Rochelle Milanês; Leoni, Pedro Henrique Tertuliano; Carvalho, Raphael Augusto Gir de; Ventura, Carla Aparecida Arena; Silva, Ana Cristina de Oliveira e; Reis, Renata Karina; Gir, Elucir
Ansiedade e depressão em fisioterapeutas brasileiros durante a pandemia de COVID-19: um estudo transversal Article
COVID-19 e os sistemas de saúde do Brasil e do mundo: repercussões das condições de trabalho e de saúde dos profissionais de saúde Artigo
Machado, Antônio Vieira; Ferreira, Wagner Eduardo; Vitória, Marco Antônio de Ávila; Magalhães Júnior, Helvécio Miranda; Jardim, Letícia Lemos; Menezes, Marco Antônio Carneiro; Santos, Renato Penha de Oliveira; Vargas, Filipe Leonel; Pereira, Everson Justino
Condições de trabalho na atenção primária à saúde na pandemia de COVID-19: um panorama sobre Brasil e Portugal Artigo
Santos, Renato Penha de Oliveira; Nunes, João Arriscado; Dias, Nicole Geovana; Lisboa, Alisson Sampaio; Antunes, Valeska Holst; Pereira, Everson Justino; Barbosa, Swedenberger do Nascimento
¿Sistemas de salud resilientes para países ya resilientes? Los discursos de la pandemia en la era post COVID-19 Artigo
Arroyo-Laguna, Juan
Contratación de estudiantes de enfermería en el contexto de la pandemia por COVID-19 en México. Una respuesta rápida a la emergencia de salud Artigo
Aristizabal, Patricia; Martínez-Abascal, Alessandra; Macías-Romero, Julio Cesar; Nigenda, Gustavo
Trabajo, teletrabajo y salud mental en el contexto COVID-19 Artigo
Gallegos, Miguel; Martino, Pablo; Quiroga, Víctor; Bonantini, Carlos; Razumovskiy, Anastasia; Gallegos, Walter L. Arias; Cervigni, Mauricio
Alta responsável e relações interprofissionais na perspectiva e no agir da enfermagem em tempos de pandemia de COVID-19 Artigo
Andreazza, Rosemarie; Chioro, Arthur; Bragagnolo, Larissa Maria; Silva, Franciele Finfa da; Pereira, Ana Lucia; Mauri, Leonardo; Rodrigues, Elen Paula; Furtado, Lumena Almeida de Castro; Carapinheiro, Graça
Fatores de risco à saúde mental dos profissionais da saúde durante a pandemia de COVID-19: revisão sistemática Artigo
Silva, Mariane Alexandra Xavier da; Santos, Mairana Maria Angélica; Araújo, Angélica Barros; Galvão, Cláudia Regina Cabral; Barros, Márcia Maria Mont’Alverne de; Silva, Ana Cristina de Oliveira e; Souza, Marina Batista Chaves Azevedo de; Barroso, Bárbara Iansã de Lima
Impactos da infodemia sobre a COVID-19 para profissionais de saúde no Brasil Artigo
Freire, Neyson Pinheiro; Cunha, Isabel Cristina Kowal Olm; Ximenes Neto, Francisco Rosemiro Guimarães; Vargas, Filipe Leonel; Santiago, Bruna Karoline de Almeida; Lourenção, Luciano Garcia
A resposta de Itália e Vietnã à pandemia de COVID-19: análise de duas experiências internacionais à primeira onda da doença Artigo
Olha, você (não) está sozinho: a circulação da dádiva e a saúde mental de profissionais de saúde durante a pandemia de COVID-19 Artigo
Castro, Barbara da Silveira Madeira de; Camacho, Karla Gonçalves; Reis, Adriana Teixeira; Abramov, Dimitri Marques; Gomes Junior, Saint Clair dos Santos; Moore, Daniella Campelo Batalha Cox; Junqueira-Marinho, Maria de Fátima
Ensaio sobre estatísticas do crime e etnografias da insegurança Resenhas
Silva, Martinho
Desde logo devo demarcar, a nota de singularidade – e de prestígio – a demarcação ético-política que abre a edição, com característica editorial, pelo Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, dando a medida pedagógica de sua governança, marcada por uma política que humaniza e jamais mercadoriza a vida:
A pandemia da COVID-19 gravou no coração brasileiro um profundo reconhecimento aos trabalhadores e trabalhadoras da saúde.
Em meio a uma avalanche de desinformação sem precedentes, nossos mais de 4 milhões de profissionais de saúde – sendo 3,5 milhões deles ligados diretamente ao Sistema Único de Saúde (SUS) – formaram uma verdadeira barreira de proteção da vida contra o descaso e o negacionismo. E os artigos presentes nessa revista mostram que eles estão entre os que mais sofreram nos anos de pandemia.
Médicos, enfermeiros, farmacêuticos, fisioterapeutas e tantos outros profissionais lidaram com um volume gigantesco de atendimentos – muitas vezes, sem a estrutura de leitos e equipamentos necessários para atender os pacientes. E sem os equipamentos de segurança necessários para protegerem a própria saúde.
Agentes comunitários de saúde, motoristas de ambulâncias, profissionais da limpeza, da segurança ou da cozinha de unidades de saúde compartilharam a mesma carga extenuante de trabalho, os mesmos riscos, e papel igualmente fundamental na defesa da vida.
Em comum a todas essas pessoas, há o cansaço, a tensão e a certeza de que, mais cedo ou mais tarde, poderiam ser contaminadas – e muitas delas, de fato, contraíram a doença. Há o desgaste físico e psicológico. Há a tristeza pela perda de colegas.
Não bastasse isso, há também o desrespeito dos discursos de ódio gestados na internet contra quem defendeu a ciência, e não contra os objetivos políticos obscuros. E uma condição talvez até mais sofrida: o medo de levar o vírus para o seio de seus lares. A dor de negar um abraço e um carinho aos filhos, aos pais ou à pessoa amada.
O que as trabalhadoras e os trabalhadores de saúde passaram durante a pandemia não pode ser esquecido. Precisa ser estudado e ficar registrado. Precisa, sobretudo, servir de ensinamento para que nossas políticas públicas sejam aprimoradas e para que situações como as enfrentadas justamente por aqueles que salvam vidas nunca mais se repitam.
A verdade é que o Brasil tem todas as condições de fazer isso. O SUS é uma conquista democrática e um exemplo para o mundo, seja pelo seu gigantismo, pela sua organização federativa ou pela sua capacidade de atendimento. Nossa regulação de saúde, assim como nossa regulação trabalhista, é sólida e eficiente. E temos uma sociedade civil forte e organizada, capaz de defender os direitos das categorias profissionais.
Contamos, também, com a ciência. Com pesquisadoras e pesquisadores gerando e registrando o conhecimento, como o que está presente nesta revista. Conhecimento que nos ajudará a saber o que fazer para sempre garantir que todos – inclusive os profissionais da área – possam exercer seu direito à saúde.
Encontro nesse editorial, também a nota pedagógica que o vírus trouxe para desafiar nossas concepções de mundo, de sociedade e de existência. Nos livros que co-organizei sobre Direitos Humanos e Covid-19, destaco, nesse aspecto, recorte do Prefácio de Boaventura de Sousa Santos que é como uma senha para a sua compreensão: “Uma lição que a história pode nos ensinar se estivermos dispostos a aprender, nessa quadra em que a pandemia parece acentuar a deriva da participação da pertença, sobretudo no colapso que os governos autoritários e antipovo revelam, é a que encontramos nas respostas sociais, autogestionadas, comunitárias que os movimentos e organizações sociais estão a oferecer. Neste livro há uma boa mostra dessas respostas, que representam um alento para conter a deriva, extremamente dramática, na realidade brasileira”.
Felizmente voltamos a encontrar de novo na governança, com a retomada do projeto democrático-popular, cuja recuperação se inicia com as eleições de outubro de 2022. Por isso, detenho-me sobre o texto de Swedenberger do Nascimento Barbosa – O olhar da Ética e da Bioética sobre o trabalhador e o trabalho em saúde no contexto da pandemia de COVID-19 no Brasil Debate – ele participa co-autoralmente em outros trabalhos da edição – cujo resumo expõe o alcance ético da publicação:
O artigo versa sobre ética e bioética com foco no trabalhador e no trabalho em saúde no contexto da pandemia de COVID-19 no Brasil. Traz de forma inédita o debate sobre as desigualdades sociais e econômicas, evidenciadas no mundo, quanto ao acesso a vacinas, medicamentos, testes, EPIs, entre outros, que trouxeram sofrimento e morte. A disputa por esses produtos ocorreu em escala global e países produtores fecharam seus mercados e a dependência comercial levou a situações dramáticas. Durante a pandemia, diversas questões éticas foram evidenciadas: conflitos, dilemas e infrações éticas ocorreram em diferentes situações como nos ambientes de assistência à saúde, na relação entre gestores e trabalhadores de saúde, no âmbito das equipes de saúde e destas para com a sociedade. O artigo também traz o polêmico debate se as mortes ocasionadas pela COVID-19 no Brasil devem ser encaradas como fenômenos biológicos ou sociais: fatalidade, homicídio, mistanásia ou eutanásia social. O artigo conclui que na gestão pública é imperativo que seja aplicada a Ética da Responsabilidade e a Humanização do Cuidado. Nesse contexto de incertezas e desafios para a humanidade é fundamental a participação da sociedade em torno de uma agenda pautada por princípios éticos, dignidade humana, meio ambiente e democracia, com políticas públicas e econômicas inclusivas.
Um ganho para o programa da disciplina está em que além do texto de Swedenberger do Nascimento Barbosa, a edição tenha requisitado em relação a eles, comentários. O senador e ex-ministro da saúde Humberto Costa e a governadora Fátima Bezerra, o fizeram com brilho de gestores/legisladores e eu próprio recebi essa incumbência, pensando como professor. Reproduzo meu comentário, publicado na edição:
Recebi como uma convocação o encaminhamento que me fez Maria Helena Machado, coordenadora da equipe das pesquisas “Condições de Trabalho dos Profissionais de Saúde no Contexto da Covid-19 no Brasil” (pesquisa mãe)[Machado MH, coordenadora. Pesquisa: Condições de trabalho dos profissionais de saúde no contexto da Covid-19 no Brasil. Rio de Janeiro: ENSP/CEE-Fiocruz; 2020/2021] e “Os trabalhadores invisíveis da saúde: condições de trabalho e saúde mental no contexto da Covid-19 no Brasil” (subprojeto)[Machado MH, coordenadora. Pesquisa: Os trabalhadores invisíveis da saúde: condições de trabalho e saúde mental no contexto da Covid-19 no Brasil. Rio de Janeiro: ENSP/CEE-Fiocruz; 2021/2022] para comentar o texto “O olhar da Ética e da Bioética sobre o trabalhador e o trabalho em saúde, no contexto da pandemia de COVID-19 no Brasil”, do professor Swedenberger Barbosa, ciente de que o artigo integrará uma edição temática na Revista Ciência & Saúde Coletiva.
Desde logo reconheço no artigo a mesma disposição que o autor já projetara em anteriores que conheço e sobre os quais já tive oportunidade de opinar. Notadamente o livro A Bioética no Estado Brasileiro. Situação Atual e Perspectivas Futuras3 que se inscreve num campo político-epistemológico, presente também no texto que comento, no qual o autor estabelece uma relação cogente entre bioética e direitos humanos. Com efeito, depois que a UNESCO, em 2005, aprovou o teor da Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos, operou-se, inevitavelmente, essa relação, passando o campo a incorporar, além dos aspectos biomédicos e biotecnológicos tradicionais nos estudos da área, os temas da bioética social com foco na universalização dos direitos e do acesso aos serviços públicos de saúde e outros que dão concretude aos direitos de cidadania.
No livro, o autor aprofunda a abordagem interdisciplinar que já vinha fazendo ao uma mais estreita aproximação entre esses campos. Ali, ele começara a problematizar as questões que estão presentes no artigo, voltado para condições de trabalho de profissionais de saúde:
Como, por exemplo, avançar para que os direitos pessoais, morais, sociais sejam garantidos à luz das novas tecnologias biomédicas? Como gerar a interface entre os princípios constitucionais de cidadania e dignidade humana e as urgentes decisões que envolvem condutas e normas morais em sua dimensão bioética e que interferem na vida humana? Como a atual ordem jurídica e as decisões judiciais podem ser consideradas e atualizadas como ‘justas’ sob os aspectos dos princípios e fundamentos do direito e da bioética? Como lidar com recursos escassos em saúde e as decisões sobre a vida? Entendemos que estas e outras questões devam se constituir em uma agenda de discussões multidisciplinares, não restrita à Academia, em que estejam resguardados entre outros elementos, a dignidade humana e as liberdades fundamentais. Um importante instrumento para que se faça este estudo e debate é a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, avaliando-se a sua aplicação à realidade brasileira, sua relação com a legislação do país e eventuais contradições existentes, o que implica necessariamente numa profunda análise de nossa ordem jurídica e de nossas condutas éticas e morais [Barbosa SN. A Bioética no Estado Brasileiro. Situação Atual e Perspectivas Futuras. Brasília: Editora UnB; 2010].
Assim, pois, com Marilena Chauí, o autor assume no artigo que a ação ética é aquela que torna o sujeito inseparável de sua práxis e consequências. Isto remete à noção de consciência moral, ou seja, o sujeito ético é aquele que sabe o que faz, o que o motivou e responde pelo seu desejo e ação. E isso o remete ao pensador que é a sua referência na Bioética, Hans Jonas, com o qual considera ser necessário e urgente, assumir uma concepção de responsabilidade que opere como princípio ético para conduzir ações, sobretudo políticas, para preservar a integridade o humano que vai constituir as gerações vindouras.
Por isso que, uma outra importante contribuição do autor, sempre presente em suas obras, é atenção às exigências de realização dos direitos e da cidadania, numa sociedade complexa e desigual não é possível sem que se invente, construa e experimente novos paradigmas para a ação política transformadora, uma tarefa que, no estado de direito democrático passa pela sociedade organizada, mas que não pode prescindir da atuação dos agentes e das políticas públicas estatais. Esta dimensão, forte na abordagem de Swedenberger, vai aparecer, por exemplo, em livro que ele organizou para o Ipea, com base em Seminário do qual decorre a obra: Bioética em debate – aqui e lá fora [Barbosa SN, organizador. Bioética em debate – aqui e lá fora. Brasília: Ipea; 2011].
No artigo que examino, esses pressupostos estão presentes, sobretudo quando a pesquisa põe inteiramente a descoberto, em relação aos profissionais de saúde no contexto da pandemia, o que se passou no Brasil nos últimos quatro anos. Na contramão de todos os princípios morais e sanitários que recomendam esforços responsáveis, o que se viu, em meio à desorientação funcional e errática de autoridades das quais um mínimo de coordenação devesse ser esperada, concedendo que não se atenham a intenções dolosas, uma postura que ultrapassa “todos os limites” ao impulso da “estupidez assassina” que implica o próprio “presidente diante da pandemia de coronavírus” ao ponto de uma “irresponsabilidade delinquente”, que sequer finge “capacidade e maturidade para liderar a nação de 212 milhões de habitantes num momento dramático da sua trajetória coletiva”. É o que disse em editorial o Jornal Folha de São Paulo (“O que Pensa a Folha”, 12/12/2020), ao apostrofar: “Chega de molecagens com a vacina!”.
O artigo de Swedenberger Barbosa abre perspectivas atuais e futuras para orientar políticas públicas de concretização de direitos. E serve de referência para apontamentos posteriores no sentido de não perder de vista a relação necessária entre bioética e direito à saúde, incluindo os direitos dos trabalhadores de saúde e, a partir dessa relação identificar e confrontar os dilemas que se abrem para a discussão e a aplicação dos fundamentos éticos das ações e políticas de saúde pública.
Mas, com autenticidade, melhor diz sobre a publicação, seus pressupostos, contexto e alcance, um artigo visceral. Vou ao sumário da publicação para por em relevo esse artigo – Transformações no mundo do trabalho em saúde: os(as) trabalhadores(as) e desafios futuros –, assinado por Maria Helena Machado com a co-autoria, pode-se dizer, do núcleo duro que coordenou o processo de pesquisa e de edição. Confira-se o resumo do texto:
O artigo versa sobre o mundo do trabalho da saúde, especialmente no SUS no contexto da pandemia no Brasil. O artigo utilizou dados das pesquisas “Condições de trabalho dos profissionais de saúde no contexto da COVID-19 no Brasil” e “Os trabalhadores invisíveis da saúde: condições de trabalho e saúde mental no contexto da COVID-19 no Brasil”. A análise dos dados comprova que a pandemia evidenciou problemas estruturais existentes no âmbito do Sistema Único de Saúde, envolvendo a gestão da FTS o que pode ser interpretado como mais um dos reflexos das desigualdades socioeconômicas já existentes no país. Destacam-se: a reduzida oferta de educação permanente, a regulação do cuidado híbrido, precarização, desproteção no ambiente de trabalho, frágil biossegurança levando a trágicas taxas de adoecimento e mortes de trabalhadores da saúde. Conclui mostrando a importância de formulação de políticas públicas no âmbito da gestão da educação e do trabalho no SUS que assegurem a discussão sobre cuidado híbrido como nova forma de atuar sem perder qualidade, a necessidade de se rever questões referentes a: educação permanente, proteção, valorização e redução das desigualdades apontadas entre os contingentes profissionais analisados nesse artigo.
Em boa hora se dá a publicação, por todas as razões declinadas. Mas também por uma razão pragmática. A de poderem, as alunas e os alunos da disciplina DIREITO À SAÚDE, DIREITOS HUMANOS E O DIREITO ACHADO NA RUA: A CONSTRUÇÃO SOCIAL DOS DIREITOS, com a ênfase: “Direito à Saúde, Direitos Humanos e o Direito Achado na Rua: Reflexões sobre o Futuro no Pós-Pandemia. Mundo do trabalho na saúde: repercussões no cenário pandêmico e pós-pandêmico e aspectos da gestão da ética pública”, ainda a tempo, de uma interlocução muito substantiva, fazerem suas escolhas temáticas e seus enquadramentos na interpretação da realidade brasileira, em face de um de seus mais graves desafios: a saúde como um bem público, social, direito de todos, de todas e de todes.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
Democracia e Dignidade Humana: Aporofobia na Perspectiva Jurídico-Constitucional Brasileira
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Humberto Henrique Costa Fernandes do Rêgo. Democracia e Dignidade Humana: Aporofobia na Perspectiva Jurídico-Constitucional Brasileira. Tese apresentada ao curso de Pós-Graduação em Direito, Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Direitos Humanos e Democracia. Curitiba, 2023, 132 fls.
Filipe Luna Jucá de Castro. Casas de Papelão: o que é a Rua para Quem Vive Nela? Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, da Universidade de Brasília, como requisito obrigatório para obtenção do grau de Mestre em Direitos Humanos e Cidadania. Brasília, 2023, 246 fls.
Comecei a elaboração deste texto como arguição a Humberto Henrique Costa Fernandes do Rêgo, na defesa de sua tese Democracia e Dignidade Humana: Aporofobia na Perspectiva Jurídico-Constitucional Brasileira, na qualidade de membro da Banca Examinadora que a avaliou.
Coincidentemente, no dia anterior à defesa, numa articulação da qual faço parte, se instalava mais uma sessão dos Diálogos sobre a Justiça e Paz, que nesta ocasião (dia 06/11), pautara o tema – “Os pobres e o futuro da humanidade: o pedido de reconexão do Papa Francisco”. E para fomentar essa conversa, o DJP recebeu o Padre Júlio Lancellotti, pároco da Paróquia de São Miguel na Mooca (SP), Gilberto Carvalho, Secretário Nacional de Economia Popular e Solidária e o Padre Miguel Martins, responsável pelo Centro Cultural Brasília. Ana Paula Inglez Barbalho, membra da Comissão de Justiça e Paz de Brasília, é a responsável por mediar esse diálogo. Padre Júlio sempre com foco no seu serviço pastoral recuperou o fundamento da aporofobia nos termos propostos por Adela Cortina, recuperados pelo autor da tese (cf. as apresentações em https://www.youtube.com/watch?v=UhGl3e2Gzmw)
Participante do debate, o atual secretário nacional de Economia Popular e Solidária, Gilberto Carvalho, se mostrou preocupado com os rumos do governo, da esquerda e da Igreja Católica, da qual é membro. No seu entender, tanto a igreja a que pertence quanto as forças de esquerda se distanciaram da população mais carente, deixando o caminho aberto para uma direita, inclusive religiosa, com “uma militância ferrenha que se expressa de maneira absurda nas redes sociais e que faz a cabeça dos pobres”. Para ele “Só tem um jeito de dar governabilidade — investir na conscientização e na participação popular”.
Compartilhei com meus colegas de Comissão Justiça e Paz o momento comovente, depoimento emocionado do padre Júlio, dizendo de sua teologia da derrota, quase epifania, em face da objeção até de paroquianos sobre como ser fraterno, lembrou ao ajoelhar-se, cabeça sobre o altar, quase como um Paulo, se deixando esvaziar de sua individualidade para se realizar cristicamente, pela fé. Aproveitei para mencionar que o Henrique estaria no dia seguinte defendendo a tese de doutorado cujo empírico colhera na vivência pastoral com o povo de rua.
Ao preparar a arguição também tive em mente as inferências retidas do debate que se estabelecera, semanas antes, na apresentação e defesa na UnB, da Dissertação de Mestrado de Filipe Luna Jucá de Castro. Casas de Papelão: o que é a Rua para Quem Vive Nela?
Integrei ambas as Bancas Examinadoras. Da tese, juntamente com as professoras e professores Larissa Liz Odreski Ramina, Orientadora – Departamento de Direito Público, Universidade Federal do Paraná; Paulo Ricardo Opuszka, Coorientador – Departamento de Direito Privado, Universidade Federal do Paraná; Vera Karam de Chueiri, Departamento de Direito Público, Universidade Federal do Paraná; Priscila Caneparo dos Anjos, Departamento de Direito Público, Universidade Católica de Brasília. Da dissertação juntamente com a professora e professores Vanessa Maria de Castro (orientadora), David Sanchez Rubio, Universidade de Sevilha e Wellington Lourenço de Almeida, Universidade de Brasília.
Chamo a atenção para a proximidade temática entre os dois trabalhos, com a singularidade de tangenciamento que os autores estabelecem em suas abordagens, por seu enlace com os direitos e a dignidade humanas.
Os resumos dos respectivos trabalhos expõem esses tangenciamentos:
Resumo da tese: A democracia e a dignidade humana são fundamentos da ordem constitucional do Brasil e funcionam como elementos sensíveis na legitimação do ordenamento jurídico nacional. O objetivo da tese é examinar o sistema constitucional brasileiro, a partir do fenômeno da aporofobia. Visa, assim, identificar os instrumentos hábeis à concretização da dignidade humana e ao enfrentamento da violência aporofóbica. A aporofobia se caracteriza por ser um processo de violência discriminatória que exclui o pobre do debate público democrático. O ódio ao pobre é uma realidade histórica da sociedade brasileira e um desafio a ser superado pela democracia constitucional inaugurada com a Carta Magna de 1988. Os códigos segregatícios investigados neste trabalho – aporofobia, racismo, sexismo e xenofobia – se interseccionam, produzindo múltiplos processos de violência segregatícia, o que impacta, disruptivamente, na legitimidade de todo o sistema. Os objetivos fundamentais da República instituíram um planejamento estratégico e impositivo a ser concretizado pelo Estado, com vistas a implementar um modelo de sociedade baseado na inclusão e parametrizada na justiça social. A qualidade da democracia e a legitimidade do sistema dependem da materialização desses objetivosprincípios. Por ocasião da pesquisa empírica, foi possível demonstrar que a aporofobia e as demais categorias discriminatórias atuam na psiquê dos coletivos subalternizados, provocando privação de autoestima, perda de sentimento de pertencimento social, descrença no Estado e baixo interesse pelo debate público democrático. Os dados coletados também demonstram que os entrevistados mantêm sonhos de vida e perspectivas de reconhecimento social. A experiência de campo comprovou que a discriminação social é uma grave transgressora do princípio da dignidade humana, com consequência direta na qualidade da democracia e na legitimidade do ordenamento jurídico do país.
Resumo da dissertação: Este estudo de mestrado em Direitos Humanos busca compreender o fenômeno da população em situação de rua, focando na vida de pessoas que têm apenas a rua como espaço de moradia. O objetivo é analisar o significado da rua para esses indivíduos, suas estratégias de sobrevivência e como eles se percebem nesse contexto. A pesquisa destaca a necessidade de não universalizar as diversas situações que levam alguém a viver nas ruas, indo além das questões socioeconômicas, culturais ou de saúde mental. Com base em dados limitados sobre a população de rua no Brasil, o estudo argumenta que a ausência de estatísticas adequadas contribui para as múltiplas violências enfrentadas por essa população e para a negação de seus direitos humanos. A pesquisa enfatiza a importância de ouvir as histórias de vida das pessoas em situação de rua, permitindo que elas expressem não apenas suas dores, mas também suas vidas e potencialidades. O trabalho se baseia em experiências de campo, incluindo entrevistas com quatro pessoas em situação de rua no Bairro do Flamengo, no Rio de Janeiro. Essas experiências pessoais do autor, suas interações e relacionamentos com pessoas em situação de rua, bem como seu envolvimento em projetos sociais relacionados ao tema, moldaram sua abordagem de pesquisa. A dissertação segue uma abordagem interdisciplinar, indo além das perspectivas jurídicas e legais para compreender a complexidade do fenômeno da população de rua. O autor destaca a importância de uma escuta atenta e ativa para compreender as histórias e experiências dessas pessoas, contribuindo para uma visão mais abrangente dessa realidade. O trabalho é dividido em seis partes, que abordam dados, marco teórico, metodologia, resultados, análise e discussões sobre o tema.
Ambos os autores querem compreender o significado da rua como espacialidade para as interações sociais e como se constituem as subjetividades que se manifestam nesses espaços.
Ambos querem interpretar o fenômeno socio-histórico da situação de rua e apreender o imaginário social acerca dessa realidade. Enquanto Filipe, na Dissertação, em sua motivação sensível, busca se colocar em contato com os fóruns de rua, participar de reuniões do Movimento Nacional de População de Rua, no âmbito dos espaços que estuda e se aproximar dos sujeitos para a escuta de suas percepções; Henrique, também sensível, parte da inferência teórica para esquadrinhar o que denomina códigos segregatícios, decalca-los na completude de um enquadramento interseccional apreensível na moldura teórica da aporofobia conforme a desenhou Adela Cortina e definir sua condição subjetiva traduzida de suas próprias vozes (entrevistas) e vivências interpretadas no serviço pastoral promovido pelo padre Julio Lancelotti e voluntários, em condições de interpelar o sistema constitucional brasileiro.
Os roteiros descritivo-analíticos dos dois trabalhos demarcam o roteiro de suas proximidades-singularidades.
Sumário da Dissertação:
PARTE I – A QUESTÃO ESTATÍSTICA
I.I A Escassez de Dados – O Invisível Quantificado
I.II – A Situação de Rua Para Além dos Números
PARTE II – O FENÔMENO: PESSOAS VIVENDO NAS RUAS DA HISTÓRIA
II.I. A Construção Histórica da Situação de Rua
II.II. – A Situação de Rua no Brasil:
III. O Imaginário Social e a Violência Histórica
PARTE II.
Entre a Rua e a Lei:
V. Direitos Humanos em Situação De Rua:
PARTE III – ESPAÇOS E VIDAS: O QUE É A RUA?
III.I. A Cidade Pulsante:
III.II. Direito à Cidade: Direito de quem e para qual cidade?
III.III. Entre O Público e o Privado
III.IV. O Passado Visível no Presente – A vida privada de sentidos:
III.V. Casa e Rua/Rua e Casa:
PARTE IV. PESQUISA DE CAMPO E O CAMINHO METODOLÓGICO:
IV.I. Botafogo: Um bairro, um clube, uma vida.
IV.I.I. Um capítulo à parte: Um instante de felicidade chamado Dingo.
IV.I.II. Um dia após o outro: a Vida e o luto que na rua é verbo.
IV.II. Mineiro – “Eu tenho que sorrir mesmo sem o dente, porque o sorriso vem de dentro pra fora.”
IV.III. Barba: “O falar são como janelas que se abrem e formam frases no entender daqueles que ouvem” IV.IV. Sr. L. – “Porque ficção eu já tô cheio de ficção, eu sou uma ficção, né?”
PARTE V – OS RESULTADOS DA PESQUISA DE CAMPO:
V.I. O Perfil dos Entrevistados
V.II. Temas Emergentes nas Entrevistas
V.II.I. A questão da Violência: Ruas perigosas
V.II.II. Cansaços e Descansos:
V.II.III. Perdas, ausências e rupturas: os laços
V.II.IV. Companhias, amizades e conversas: Os novos laços na rua
V.II.V. O olhar “de fora”: As quatro paredes do preconceito .
V.II.VI. O álcool, as drogas e a rua: o que vem antes?
V.II.VII. O acolhimento público: A ordem sem progresso
V.II. VIII. A distância entre os direitos e os humanos na rua:
V.II.IX. A comida que nem sempre vem
V.II.X. Higiene x Limpeza: Por que não existem banheiros públicos?
V.II.XI. Alegrias e Felicidades, Palavras e Sorrisos: Nem tudo são lágrimas
V.II.XII. Os desafios da rua:
V.II.XIII. Rua: Os significados
PARTE VI – DISCUSSÕES E CONSIDERAÇÕES FINAIS
VI.I. Entre O Sujo E O Limpo: Uma População Sem Acesso A Banheiros
VI.II. Pessoas Em Situação De Fome No Rio De Janeiro
VI.III. Afinal, O Que É A Rua Pra Quem Mora Nela?
VI.IV. Considerações Finais
Sumário da Tese:
INTRODUÇÃO
2 APOROFOBIA: UM DESAFIO A SER VENCIDO
2.1 COMO ENTENDER A APOROFOBIA: O ÓDIO AO POBRE NUMA PERSPECTIVA MULTIDIMENSIONAL
2.2 INTERSECCIONALIDADE EM CÓDIGOS: APOROFOBIA, RACISMO, SEXISMO, XENOFOBIA
3 INCLUSÃO SOCIAL – A CHAVE DO PROBLEMA: UMA ANÁLISE JURÍDICA
3.1 OBJETIVOS DA REPÚBLICA COMO PLANEJAMENTO ESTRATÉGICO E IMPOSITIVO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL3.2 DIGNIDADE HUMANA E JUSTIÇA SOCIAL
3.3 QUALIDADE DA DEMOCRACIA E LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL
4 ILUSTRAÇÃO DO IMPASSE: ELEMENTOS DE COMPROVAÇÃO DA APOROFOBIA NA EXPERIÊNCIA COM A PASTORAL DO POVO DA RUA
4.1 PRESSUPOSTOS METODOLÓGICOS
4.2 ENTREVISTAS PROPRIAMENTE DITAS
4.3 ANÁLISE DE DADOS: O QUE DIZEM
CONCLUSÃO
Guardo profunda conexão motivacional e temática com os dois trabalhos acadêmicos objeto deste Lido para Você. Aliás, com alguma incidência, tenho oferecido opinião sobre a matéria que estudam.
Recupero, nessa constatação, matéria do Diário do Centro do Mundo (acesso em 11/12/2022), dando conta de um levantamento feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, revelando que a população em situação de rua no Brasil cresceu 38% desde 2019, chegando a 281,4 mil pessoas sem-teto, que foram afetadas diretamente pela pandemia de Covid-19. A pesquisa divulgada na última quinta-feira (8), ainda aponta que em uma década, o aumento foi de 211%, superior ao crescimento da população geral no Brasil, de 11%. (https://www.diariodocentrodomundo.com.br/populacao-de-rua-no-brasil-cresceu-38-apos-pandemia-diz-ipea/).
Esse é um aspecto de uma realidade que dá a medida das ações que o novo governo, de corte democrático-popular, precisará implementar para atribuir função social ao seu programa. A mobilização para aprovar a chamada PEC da “transição” dá a medida da responsabilidade social que o novo governo assume, depois do caos produzido pela necropolítica da gestão que melancolicamente se encerra.
Foi preciso, nesse descalabro, convocar a institucionalidade instalada noutros âmbitos do Estado, no Legislativo para encaminhar medidas que preservassem a população carente, sobretudo na fase aguda da pandemia, que ainda traz ameaças, sobretudo em defesa da moradia (cf. o artigo da Deputada Natália Bonavides em co-autoria com Lorena Cordeiro: A Defesa da Moradia na Pandemia: uma Análise sobre a Aprovação de Lei que Suspende Despejos Durante a Crise Sanitária da Covid-19, in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; RAMPIN, Talita Tatiana Dias; AMARAL, Alberto Carvalho (orgs) Direitos Humanos e Covid-19 vol. 2 Respostas Sociais à Pandemia. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2022), para aprovar a lei e para derrubar o veto imposto pelo Presidente da República. Cito o trabalho de Natália também porque, conterrânea de Henrique, apreende a realidade na mesma espacialidade (diz Paulo Freire “a cabeça pensa a partir do chão que pisamos”) desafiadora.
O próprio Supremo Tribunal Federal, como mostra Henrique, entre outras intervenções, acabou por estabelecer a salvaguarda dos direitos fundamentais e da cidadania, especialmente na ADPF 976-DF, que discute Estado de Coisas Inconstitucionais com a População em Situação de Rua. De fato, o Relator ministro Alexandre de Moraes, pediu informações ao presidente da República, aos governadores dos estados e aos prefeitos das capitais sobre a situação da população em situação de rua, para reunir dados para instruir a análise das medidas cautelares formuladas na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 976, em que são pedidas providências para minorar as “condições desumanas de vida” dessas pessoas. O pedido de informações, a serem prestadas no prazo legal de cinco dias, está restrito aos prefeitos de capitais por razões de viabilidade e da celeridade do rito. Em seguida, os autos devem ser remetidos, sucessivamente, à Advocacia-Geral da União (AGU) e à Procuradoria-Geral da República (PGR), para que se manifestem.
Na ADPF, a Rede Sustentabilidade, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) sustentam que há um estado inconstitucional de coisas em relação à população de rua, com violação de diversos preceitos fundamentais, entre eles o da dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais à vida, à igualdade, à saúde e à moradia. Pedem a concessão de medida cautelar para determinar que os Executivos federal, estaduais e municipais promovam ações para preservar a saúde e a vida dessa parcela da população e, no mérito, que seja determinada a adoção de providências legislativas, orçamentárias e administrativas a fim de auxiliar as pessoas em condição de vulnerabilidade.
O Ministro Alexandre de Moraes convocou audiência pública referente à Ação, tendo recepcionado propostas e denúncias para, escritas ou na própriaaudência, contribuírem para o encaminhamento da questão. Ele sugeriu três eixos para balizar as manifestações: 1. Evitar a ida para a situação de rua; 2. Tirar as pessoas em situação de rua e; 3. Respeitar os sujeitos vulnerabilizados e evitar violência.
Entre as contribuições tornadas possíveis com a Audiência, ponho em relevo as que foram levadas a conhecimento na ADPF pela sociólogaPaula Regina Gomes. Paula Regina éVice-Presidenta da Federação Nacional dos Sociólogos do Brasil.
Além disso, ou antes disso, ela desenvolve uma Dissertação de Mestrado, no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania da UnB, sob a orientação da professora Nair Heloisa Bicalho de Sousa (Rede Brasileira de Educação para os Direitos Humanos). A pesquisa da dissertação, prestes a ser defendida tem o sugestivo título “Rueira Brasília – Educação Popular em Direitos Humanos, Vulnerabilização Social e Luta por Direitos no Contexto da Violência”.
Pedi a Paula um resumo do trabalho que ela prontamente preparou:
“Rueira Brasília é uma pesquisa no campo dos direitos humanos orientada pela construção dialogal entre conhecimentos e saberes, que parte da realidade da violência e violação de direitos vivida pela população em situação de rua do Distrito Federal, pelos princípios da educação popular em direitos humanos, voltada para elaboração de propostas de melhorias das políticas públicas articulada com a promoção da participação social. Fundamentada na teoria crítica dos direitos humanos e na perspectiva metodológica da etnometodologia a partir do método etnográfico da técnica da pesquisa de campo, associou a pesquisa-ação à observação participante. Interpretativa e de intervenção social abrangeu dados qualitativos e quantitativos com a preponderância da análise qualitativa. A produção de dados aconteceu entre os anos de 2018 a 2022 com a aplicação de questionários, entrevistas, oficinas de aprendizado colaborativo, registro de denúncias, diários de campo e dados secundários em fontes oficiais, sendo recortada pela pandemia do novo coronavírus norteando uma análise comparativa. Com a sistematização dos dados foi traçado um perfil socioeconômico e da violência vivida pela população em situação de rua, com a categorização dos principais tipos definindo uma matriz de opressão interseccional. A partir daí temos a interpretação de soluções de melhorias construídas em diálogos de mundos fomentando o sujeito de direito no exercício cidadão. Assim, temos as principais contradições entre as políticas públicas concebidas e as praticadas a partir do conceito de violência institucional. As conclusões apontam os resultados da intervenção social com os avanços e desafios para a luta emancipatória por direitos humanos”.
Esses fundamentos, juntamente com um profundo conhecimento que a pesquisadora tem da realidade desse tema, ela levou para seu depoimento no STF. Na Audiência ela sustentou estarmos diante do “cenário do aumento da fome, segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19 no Brasil, com 33 milhões de pessoas que não tem garantido o que comer, representando 14 milhões de novos brasileiros nessa condição. O cenário do aumento da população em situação de rua consta na Nota Técnica 73 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA que aponta um aumento expressivo de 140% da população em situação de rua ao longo do período de setembro de 2012 a março de 2020. Somado ao efeito da invisibilidade social desse segmento no planejamento das políticas públicas por falta de dados quantitativos e quantitativos precisos e qualificados. Cabe reconhecer que as políticas públicas atualmente não estão preparadas para atender as necessidades desse grupo social”. Necessário, pois, “melhorar as políticas públicas para de fato abranger e promover condições efetivas para superar o quadro de violações e ausência de acessos que marcam a realidade da população em situação de rua. Trata-se de uma trajetória histórica de exclusão social e violências apontando para um processo de extermínio social. É de conhecimento notório daqueles que atuam e pesquisam diretamente com a população em situação de rua o cenário cotidiano de extrema violência e violação de direitos humanos que na maioria das vezes não são alcançados pelos instrumentos públicos oficiais devido a um processo de invisibilização social e de falta de mecanismos adequados para a especificidade dessa realidade que nega acessos e direitos. Assim, se faz fundamental a superação das assimetrias sociais garantindo a sua participação direta para mudar esse quadro inconstitucional de coisas qualificando as políticas públicas de forma territorializada”.
Em conclusão ela argumentou ser “imprescindível garantir uma política habitacional, com várias tipologias de moradia, que dê conta da complexidade de realidades sociais; uma política de soberania e segurança alimentar que dê condições para superação da fome e da desnutrição; uma política de assistência social que seja transformadora e norteada pelas melhores práticas de direitos humanos, adotando, inclusive renda básica; uma política pública de saúde que seja inclusiva e especializada, ampliando os consultórios na rua e garantindo celeridade para os pedidos de exames e cirurgias, com a construção de novos equipamentos voltados para a saúde mental; uma política pública de educação que garanta condições para o aprendizado; uma política pública de trabalho e renda que promova efetiva inserção no mercado de trabalho; uma política de segurança pública que seja inclusiva e garantidora de direitos humanos dos vulnerabilizados; uma política de direito a cidade que reconheça a condição de exclusão social e não promova a subtração dos poucos pertences daqueles que quase nada tem e que precisam desse pouco que é essencial para garantir da vida. A população em situação de rua representa um segmento social complexo recortado pela diversidade de minorias sociais que trazem o peso da opressão e da discriminação. É preciso que todas as políticas públicas e a atuação do sistema de justiça reconheçam e promovam ações reparatórias diante dos marcadores das diferenças sociais que reverberam as assimetrias sociais através do racismo, do machismo, do elitismo, da opressão contra LGBTQI +, dos idosos, dos jovens e das crianças, das mães e das mulheres em situação de pobreza extrema”.
Há, também no social, um engajamento consciente para dar cobro a essa situação e para superá-la. Naquela altura, o padre Júlio Lancellotti, numa ação do Observatório de Aporofobia com apoio da Pastoral do Povo de Rua, conduzia em São Paulo um Ato contra a Aporofobia, para a retirada de pedras da Biblioteca Cassiano Ricardo, “representando um marco da luta contra a aporofobia e a arquitetura hostil”.
Tenho dito, por isso, que a marreta do padre Júlio Lancellotti é uma símbolo real de atualização da Declaração Universal de Direitos Humanos. De minha parte e a propósito da recente aprovação da lei, celebrei o reconhecimento do Legislativo à exigência de prioridade desse tema central na agenda dos direitos humanos, com a aprovação da Lei que recebeu o seu nome (https://www.brasilpopular.com/lei-padre-julio-lancellotti-e-a-proibicao-de-obstaculos-contra-pessoas-em-situacao-de-rua/).
Padre Júlio é um exemplo vivo de ação pastoral social, seguindo o magistério do Papa Francisco. Agora em novembro, por ocasião do XXXIII Domingo do Tempo Comum – 13 de novembro de 2022 (https://www.vatican.va/content/francesco/pt/messages/poveri/documents/20220613-messaggio-vi-giornatamondiale-poveri-2022.html), ele lançou a mensagem para o VI Dia Mundial dos Pobres. Ele fala de duas dimensões da pobreza a que devemos estar atentos, distinguindo: “A pobreza que mata é a miséria, filha da injustiça, da exploração, da violência e da iníqua distribuição dos recursos. É a pobreza desesperada, sem futuro, porque é imposta pela cultura do descarte que não oferece perspectivas nem vias de saída. É a miséria que, enquanto constringe à condição de extrema indigência, afeta também a dimensão espiritual, que, apesar de muitas vezes ser transcurada, não é por isso que deixa de existir ou de contar. Quando a única lei passa a ser o cálculo do lucro no fim do dia, então deixa de haver qualquer freio na adoção da lógica da exploração das pessoas: os outros não passam de meios. Deixa de haver salário justo, horário justo de trabalho e criam-se novas formas de escravidão, suportada por pessoas que, sem alternativa, devem aceitar este veneno de injustiça a fim de ganhar o mínimo para comer”.
De outra parte, ao contrário, ele alude a uma outra dimensão da pobreza que requer discernimento político: “A pobreza libertadora[que] é aquela que se nos apresenta como uma opção responsável para alijar da estiva quanto há de supérfluo e apostar no essencial. De facto, pode-se individuar facilmente o sentido de insatisfação que muitos experimentam, porque sentem que lhes falta algo de importante e andam à sua procura como extraviados sem rumo. Desejosos de encontrar o que os possa saciar, precisam de ser encaminhados para os humildes, os frágeis, os pobres para compreenderem finalmente aquilo de que tinham verdadeiramente necessidade. Encontrar os pobres permite acabar com tantas ansiedades e medos inconsistentes, para atracar àquilo que verdadeiramente importa na vida e que ninguém nos pode roubar: o amor verdadeiro e gratuito. Na realidade, os pobres, antes de ser objeto da nossa esmola, são sujeitos que ajudam a libertar-nos das armadilhas da inquietação e da superficialidade”.
Seguindo a ética do Evangelho e de sua mensagem, conforme Francisco, o caminho que nos incumbe e que devemos escolher trilhar, é descobrir a existência duma pobreza que humilha e mata, e a outra pobreza que liberta e nos dá serenidade.
Essa perspectiva de pobreza como condição de libertação, repercute no impacto que essa disposição emancipatória, carrega, por exemplo, para o Supremo Tribunal Federal (https://www.brasilpopular.com/o-stf-e-a-acao-consciente-contra-a-aporofobia-oasco-a-pobreza/)
A decisão ainda é provisória, em sede liminar. O Relator, ministro Alexandre de Moraes determinou que os estados, o Distrito Federal e os municípios passem a observar, imediatamente e independentemente de adesão formal, as diretrizes do Decreto Federal 7.053/2009, que institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua. A decisão liminar, proferida na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 976, será submetida a referendo do Plenário.
Na decisão o ministro concedeu prazo de 120 dias para que o governo federal elabore um plano de ação e monitoramento para a efetiva implementação da política nacional para a população de rua, com medidas que respeitem as especificidades dos diferentes grupos familiares e evitem sua separação.
Ele também determinou que estados e municípios efetivem medidas que garantam a segurança pessoal e dos bens das pessoas em situação de rua dentro dos abrigos institucionais existentes, inclusive com apoio para seus animais. Além disso, devem proibir o recolhimento forçado de bens e pertences, a remoção e o transporte compulsório de pessoas em situação de rua e o emprego de técnicas de arquitetura hostil contra essa população.
Na decisão, o ministro observou que, embora exista desde 2009, a Política Nacional para a População em Situação de Rua contou com a adesão, até 2020, de apenas cinco estados e 15 municípios. Segundo o relator, apesar de passados mais de 13 anos desde a edição do decreto, os objetivos ainda não foram alcançados. “Esse grupo social permanece ignorado pelo Estado, pelas políticas públicas e pelas ações de assistência social. Em consequência, a existência de milhares de brasileiros está para além da marginalização, beirando a invisibilidade”, afirmou.
O ministro Alexandre ressaltou que análise efetuada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) constatou que, entre 2012 e 2020, ocorreu um aumento de 211% na população em situação de rua em todo o país, percentagem desproporcional ao aumento de 11% da população brasileira no mesmo período.
Segundo a decisão, o plano deverá conter um diagnóstico atual da população em situação de rua, com identificação de perfil, procedência e suas principais necessidades. Deverá prever, também, a criação de instrumentos de diagnóstico permanente desse grupo de pessoas, além de meios de fiscalização de processos de despejo e de reintegração de posse no país, e a elaboração de medidas para garantir padrões mínimos de qualidade de higiene e segurança nos centros de acolhimento.
Entre outras medidas, o ministro Alexandre de Moraes deu prazo de 120 dias para que governo federal elabore plano de ação e monitoramento referente à implementação da política nacional para a população de rua.
A manifestação do Ministro configura o estado de coisas inconstitucional que caracteriza a condição de absoluta redução do direito à dignidade a que incumbe ao Estado e às políticas públicas prover, conforme uma audiência pública que o próprio Ministro instalou em novembro de 2022, para debater o tema. Com duração de dois dias, a audiência teve a participação de 81 representantes do Executivo, do Legislativo, da Procuradoria-Geral da República (PGR), da Advocacia-Geral da União (AGU), de órgãos públicos e entidades da sociedade civil. A íntegra da decisão, pode ser conferida no sítio do STF https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF976MC1.pdf.
A decisão o ministro relator Alexandre de Moraes cita pontualmente o padre Julio Lancellotti como marcador de seu posicionamento (https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2023-07/padre-lancellotti-avalia-como-historica-decisao-sobre-moradores-de-rua), exatamente para se colocar na mesma disposição de combate à aporofobia, a aversão a pessoas pobres.
Em matéria da Agência Brasil, o padre Lancellotti, que sobre esse tema já foi referido por mim aqui no Brasil Popular – https://www.brasilpopular.com/humanizar-se-estando-ao-lado-dos-pobres/; https://www.brasilpopular.com/lei-padre-julio-lancellotti-e-a-proibicao-de-obstaculos-contra-pessoas-em-situacao-de-rua/ – se manifestou: “O Estado, em todos os níveis, sabe dar que resposta? Fazer albergue. Sabe dar que resposta? Higienismo. Retirar as pessoas e agredir. Então é preciso ter discernimento para encontrar respostas para uma população que é tão diversa”. Para Lancellotti,“a medida marca posição diante de governos hesitantes em assumir responsabilidades com essa população. “É uma decisão histórica, uma decisão que o STF toma em relação a uma população que nunca tem acesso à Justiça. Tornou-se uma questão de Justiça, de uma decisão do Supremo Tribunal Federal, de uma população completamente esquecida e descartada. É muito importante. Nasceu da decisão do ministro a partir da audiência pública em que todos foram ouvidos, por isso é muito boa”.
No meu texto cito o querido amigo Jacques Távora Alfonsin: “Essa é uma tarefa complicada ou impossível para os povos que o STF acaba de reconhecer como cidadãos, “sujeitos de direito”? Não é. Só não será se toda essa militância, livre de qualquer preconceito ideológico, perca a fé no que ensinava nosso querido e amado mestre Paulo Freire, quando ele desafiava nossa criatividade em pensar e agir: Há sempre um “inédito viável” à nossa disposição, dizia ele, que só depende da nossa ousadia em não se submeter a todo um sistema socioeconômico que nos oprime e aparenta ser “normal”, “natural”, inquestionável e invencível”.
Para esse inédito viável apontam os dois trabalhos. Na tese, Henrique, para além dos aspectos teóricos articulados no interseccional tão necessário à perspectiva aporofóbica, se orienta para identificar diz ele, o fio de Ariadne que percirra os meadros do constitucional para inserir no programa da Constituição, o objetivo de superação da pobreza.
Para o autor, “Esse núcleo ético-moral de proteção integral ao ser humano, que entende cada indivíduo como um ser dotado de capacidade jurídica, socialmente relevante e politicamente livre, independentemente da diversidade que o identifique, encontra nos direitos humanos sua quididade, seu furor existencial, o espaço axiológico através do qual está constituído e regulado seu ethos, tendo na Declaração Universal o grande projeto global de sociedade”.
Me reconheço na adequada citação que o Autor faz, me colocando no tema – p. 46-47 – “Acerca desse tema, José Geraldo de Souza Júnior entende “os direitos humanos como um programa que dá conteúdo ao protagonismo humanista”, cujo objetivo é orientar “projetos de vida e percursos emancipatórios”. Na visão do autor, esses direitos possibilitam a construção de sociedades resilientes, de representação jurídica destinada à “formulação de projetos de sociedade” com tessituras abertas, dialógicas e de lutas sociais por dignidade”.
Mas se o Autor me coloca nesse rol, junto com tantos e tão qualificados formuladores, é preciso que eu me distinga deles, no limite que me parece ser, mesmo em Armatia Sen e Martha Nussbaun e sua assimilação expressa a teorias de justiça, Ralls, entre elas, que se contêm, no arco da concepção liberal, ao fim e ao cabo, ao limite do estrutural, do funcional, do instrumental.
Diz o Autor:
Sousa Júnior fornece o mapa dessa trilha, que denomina de Direito Achado na Rua, ao propor uma nova compreensão do fenômeno jurídico, a partir da integração dos movimentos sociais e de suas práxis no interior do debate público. Com essa integração, essas representatividades passariam a funcionar como elemento estruturante e instituidor de direito.
Nessa dinâmica, os valores representados pelas causas sociais operariam como forças paradigmáticas, servindo de oriente para a construção de um direito emancipatório e resiliente, oposto à lógica de instrumento de subordinação. Para o autor, deve-se compreender o direito como uma “enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade”.
Observe-se, desde já, que Souza Júnior não se opõe ao sistema jurídico positivado, antes lhe reconhece validade e defende sua legitimidade, porém ressalva que tanto a legislação, quanto as ações estatais, devem ter como fonte a Constituição, que se encontra estruturada numa tessitura aberta, plural e dialógica que objetiva reconhecer e garantir lugar de fala aos mais variados segmentos que compõe o tecido social nacional e que representam, por excelência, a luta pluralista e democrática do projeto de desenvolvimento criado pela Carta Republicana de 1988.
E ele prossegue:
Ora, garantir lugar de fala aos grupos subalternizados e às suas representações sociais é, de per si, uma manifesta conformação da dignidade humana à realidade jurídica estabelecida pela Constituição, encaixando-se, portanto, dentro da lógica de liberdade e capacidade defendida por Sen e, mais especificamente, no rol de capacidades fixados por Nussbaum. Ademais, ao integrar os coletivos subalternizado, especialmente os pobres, no debate público sobre realização da dignidade humana e da justiça sócia, incorpora-se, por efeito gravitacional, esses grupos à agenda de desenvolvimento político, econômico e social instituído pela Constituição, ao tempo que se lança a pedra angular para o enfrentamento da violência discriminatória, com destaque para a aporofobia, pelo “cultivo da ética democrática” que, segundo Cortina (1), deve ser fundada numa liberdade sagrada e igual, “obtida por meio do diálogo e do reconhecimento mútuo da dignidade”.
Eles são os sujeitos e sujeitas periféricos, de que trata Tiaraju Pabblo D’Andrea (https://estadodedireito.com.br/a-formacao-das-sujeitas-e-dos-sujeitos-perifericos-cultura-e-politica-na-periferia-de-sao-paulo/) – Tiaraju Pablo D’Andrea. A Formação das Sujeitas e dos Sujeitos Periféricos. Cultura e política na periferia de São Paulo. São Paulo: Dandara Editora, 2022, sociologicamente sensíveis ao reconhecimento das novas identidades que se formam no processo jurídico-histórico de luta pela superação dos entraves à emancipação social e à construção de novas sociabilidades, ele está também política e culturalmente apto a não só definir a natureza jurídica do sujeito e da sujeita periféricos emergentes deste processo, como também, enquadrar os dados derivados de suas práticas sociais criadoras de sociabilidades e direitos nomeando as novas categorias que as representam.
Até se constituírem nos processos de luta por reconhecimento da dignidade material de que se querem investir, conforme Herrera Flores, que o Autor considera, e que, nessa luta instituinte vão reinvindicar e realizar, em ação coletiva, os direitos (cf. https://estadodedireito.com.br/sujeitos-coletivos-so-a-luta-garante-os-direitos-do-povo/: O Direito Achado na Rua. Sujeitos Coletivos: Só a Luta Garante os Direitos do Povo!, volume 7, Coleção Direito Vivo. Ana Cláudia Mendes de Figueiredo, Andréa Brasil Teixeira Martins, Edilane Neves, José Geraldo de Sousa Junior, José Roberto Nogueira de Sousa Carvalho, Luana Nery Moraes, Shyrley Tatiana Peña Aymara, Vítor Boaventura Xavier (Organizadores). Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2023).
No meu texto, parto do fundamento que a Constituição não é o texto no qual se representa, mas aqueles fatores que a promovem (conforme indicava no século XIX Ferdinan de Lassale) e que por isso ela se realiza ao impulso da “Disputa por Posições Interpretativas”. Tomei como referência o entendimento elaborado pelo constitucionalista Gomes Canotilho que reinvindica no campo da teoria da constituição e do direito constitucional, a necessidade de teorias de sociedade e de justiça que possibilite orientar as exigências do justo sob outros modos de considerar o direito, apontando para um constitucionalismo achado na rua: “Do outro lado da rua, ‘o direito achado na rua’ e, perante o sangue vivo que brota dos vasos normativos da realidade e a sedução de um direito outro, alternativo, ao direito formal das constituições, códigos e leis, compreende-se que o discurso hermenêutico dos juristas mais não seja que um manto ocultador do insustentável peso do poder” (CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Editora Almedina, 1988; Estudos sobre Direitos Fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora; São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008; Pela Necessidade de o Sujeito de Direito se Aproximar dos ‘Sujeitos Densos’ da Vida Real. Entrevista in C & D – Observatório da Constituição e da Democracia. Brasília: Faculdade de Direito da UnB/Sindjus, nº
24, junho, 2008).
Claro que pressuponho que essa disputa é movida diretamente no social, por isso constitucionalismo achado na rua, algo que procurei demonstrar recentemente, ao prestar depoimento, como convidado, na CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito), para examinar a questão agrária brasileira e os conflitos que dela decorrem. A propósito, para além do depoimento seguido de debates que pode ser recuperado nos arquivos de mídia da Câmara dos Deputados, requisitei a juntada de texto-base da minha apresentação, que também publiquei para evitar que fosse adrede recortado para servir a interpretações enviesadas, conforme já constatei no relatório lido na sessão convocada para esse fim. Remeto, pois, ao meu texto íntegro (cf. https://www.brasilpopular.com/cpi-do-mst-contexto-e-diagnostico-da-situacao-agraria-brasileira/).
Mas há, igualmente, interpretações construtivas, que expandem o alcance da promessa constitucional em sua disposição de realizar direitos e ter cumpridas as suas promessas. Certamente para a compreensão dessa possibilidade é indispensável abrir-se a exigências próprias à disputa narrativa de realização da Constituição e de categorias que dêem conta de aferir as aberturas que a política proporcione para projetar as disposições constitucionais para o futuro. É o que propõe a tese.
Como sair da redução sociológica (Guerreiro Ramos), no sentido de que já a perspectiva segundo a qual os objetos são tomados os constitui, senão elaborando possibilidades empírico-epistemológicas para divisar subjetividades que se movam ativamente. O empírico estabelecido para a pesquisa dá conta disso? A amostra é suficiente? Os sujeitos das entrevistas percebem um potencial emancipatório que não se confine num “grito de excluído”? O próprio grito pode ser um início de movimento para quer ser sujeito.
A tese, na individualização das percepções, não logra divisar uma consciência de emancipação, aquela perspectiva que designa uma autoreflexividade que leve ao salto que a consciência proporciona para se transformar em ação política que modifique a realidade. A tese parece deslocar esse salto no encontro entre a consciência da exclusão pelo grito de excluído, o pedido de ajuda, de acolhimento e, no caso pastoral, a resposta evangelizadora que compreende a política como dimensão sublime da caridade, como está na Evangelli Gaudium.
A tese destaca – p. 120 – que são “as ações da Pastoral do Povo da Rua têm servido não apenas de acolhimento às pessoas em vulnerabilidade social, mas, sobretudo, como instrumento de empoderamento desses grupos sociais hostilizados, na medida que ela estabeleceu uma pauta de debate público sobre a violência discriminatória, com especial ênfase, conforme dito anteriormente, na aporofobia. Um dos resultados alcançados pelo sacerdote, que tem na inclusão social, e na não discriminação, sua grande bandeira de luta, foi a aprovação da Lei nº 14.489, de 21 de dezembro de 2022, que leva seu nome e cujo objeto é o combate à aporofobia decorrente da arquitetura urbana hostil”.
Interessante que a Dissertação, também se completa na descrição de uma realidade que não gera protagonismo, confinando os objetivos da pesquisa, ainda que “não só por investigar os significados próprios de se morar nesse espaço para a população em situação de rua, como também analisar como as vidas dessas pessoas são afetadas pelas violações de seus direitos humanos e em que medida essas violações influenciam nas estratégias de sobrevivência”.
Alcança nesse aspecto um nível narrativo sofisticado que faz a descrição se tornar dimensão explicativa do real (lembrando Engels, para quem a descrição verdadeira do objeto é, simultaneamente, a sua explicação).
Mas e o lugar dos sonhos (pergunta da entrevista, na tese)? Quais são os seus sonhos (pergunta da entrevista, na dissertação)?
Uma variação de perspectiva para escapar à redução sociológica, talvez pudesse abrir variáveis. Penso na Revista Traços, um projeto cultural e de inclusão, que acolheu moradores de rua como “porta-vozes de cultura”, que não só fazem parceria para rendimentos econômicos, mas se expressam como subjetividade, no espaço editorial, como Priscila, a primeira Porta-Voz da Cultura a iniciar uma graduação, contando a sua história e seu sonho em ser juíza de Família:
A Revista Traços começou o ano com uma grande notícia para o time de Social da publicação, que há três anos mantém de pé o projeto de inclusão social de pessoas em situação de rua ou extrema vulnerabilidade. Com base na geração de renda e autonomia, a iniciativa oferece aos Porta-Vozes da Cultura, os vendedores da Traços, setenta por cento do valor de capa de cada exemplar. E foi assim que a Porta-Voz Priscila do Carmo Limoeiro, 29 anos, conseguiu se planejar para estudar, fazer a prova do ENEM e garantir, este ano, o ingresso na graduação em Direito do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). As aulas começaram no dia 12 de fevereiro, mas Priscila já tem planos e sonhos a longo prazo: quer ser juíza de Vara de Família” (https://estadodedireito.com.br/tracos-especial-5-anos/).
Projeto bem sofisticado, conduzido por uma equipe técnica e politicamente experiente e com clareza acerca da concepção gráfica e filosófica do empreendimento. A Traços, eles explicitam e reeditam neste número especial, “é uma publicação sobre arte e cultura, vendida nos espaços culturais e gastronômicos de Brasília pelas mãos dos Porta-Vozes da Cultura – pessoas que estavam em situação de rua ou em extrema vulnerabilidade financeira. Por meio da revista, o projeto contribui com a geração de renda e o ganho de autonomia dos Porta-Vozes (coordenados e orientados conforme um Código de Conduta), que ficam com 70% de valor de cada exemplar”
O modelo do projeto não é inédito. A Revista The Big Issue Japan ajuda e dá ofício para homeless. O projeto se inspira em experiência inglesa com uma proposta para ajudar moradores de rua. Está no país desde 2003 e oferece um ofício para quem não tem onde morar, como um incentivo para sair dessa situação, além de servir para que as pessoas voltem a socializar e aprendam um trabalho novo.
De certo modo essas experiências compõem o que já se designa como organização internacional dos moradores de rua –http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252005000100003. Uma das iniciativas mais bem-sucedidas internacionalmente são os chamados street papers, jornais e revistas elaborados ou vendidos por moradores de rua, e têm sido tema de debates em conferências, que já ultrapassaram mais de dez realizações da International Network of Street Papers (INSP), uma rede internacional que abrange as publicações do gênero.
Remeto aqui ao trabalho de minha colega de universidade, Arcelina Helena Públio Dias, atualmente entre seus retiros espirituais em mosteiros do mundo ou em Vila Boa de Goyaz, ou Goiás Velho, mas que na universidade e nos movimentos populares, desenvolveu projetos de formação em jornalismo comunitário.
Leia-se, a respeito o seu paradigmático texto O jornalismo comunitário como instrumento de mobilização social e gerador de renda para desempregados Uma experiência na formação de jornalistas populares (https://web.archive.org/web/20060502102245/http://www.eca.usp.br/nucleos/nce/pdf/019.pdf).
Para Arcelina, “Revistas de rua no mundo lutam contra a exclusão. Revistas e jornais voltados para os problemas dos excluídos podem ser encontrados em quase todas as metrópoles do primeiro mundo. Semanais ou mensais, esses periódicos são vendidos pelas ruas, bares e metrôs, por desempregados, organizados em associações, o que lhes garantem, como renda, no mínimo, metade do valor de cada exemplar. A tiragem ultrapassa, na maioria das vezes, cem mil exemplares. O Street News, de Nova Iorque, e o Big Issue, de Londres, chegam a tirar meio milhão”. Ela participou ativamente, em Brasília, do surgimento, em final de 1997, da primeira revista pela inclusão social, vendida na rua por desempregados: NÓS – resultado de um curso de formação de jornalistas comunitários.
Para Filipe, na Dissertação, o escopo é acicatar uma atenção intelectual e política que mobilize o pensar e o agir para uma realidade que interpela: “defendo que compreender a complexidade do fenômeno da população de rua passa por escutar as histórias de vida das pessoas que vivem a rua como única realidade possível para moradia e que reinventam seus usos diariamente para forjar sua sobrevivência no cotidiano das cidades. Dessa forma, promover pesquisas que se voltem a analisar as relações dessa população com os espaços e estratégias de vida, me parece central para que se avance na oferta de políticas públicas adequadas, que considerem as carências dessa população e que enfrentem a situação de rua efetivamente, possibilitando uma vida digna, com garantia de direitos humanos e onde, enfim, se possa pensar na ideia de lar. Assim, o viver nas ruas no que chamo de “casas de papelão”, nos remete a fragilidade de uma população que luta pela vida e por um espaço de existência digno, mas que hoje vive tendo seus direitos humanos violados e suas histórias desconsideradas nas várias esquinas, ruas e marquises do cotidiano das cidades. E pesquisar sobre essa realidade, reconhecendo suas complexidades, contornos e pulsações, é propor um debate necessário que requer respostas urgentes para promoção de direitos humanos historicamente negados”.
Para Henrique, na Tese, do que se trata, é constatar que “a violência aporofóbica exclui os pobres do debate público em razão de processos discriminatórios dos quais são vítimas, provocando, na psiquê de cada qual, consequências diversas, como, a exemplo, a privação de autoestima, a perda de pertencimento a uma sociedade, a descrença no Estado e em suas instituições, bem como o ceticismo à democracia, aos direitos humanos e à sociedade, de um modo geral. E essa figuração sensitiva, colhida no campo empírico, e nas observações teóricas registradas na tese, elementos segregatícios determinantes para a deslegitimação do ordenamento jurídico-constitucional brasileiro. Portanto, cumprir os objetivos fundamentais da República, a partir da perspectiva da universalização da dignidade humana, é um desafio necessário para combater a aporofobia – e as demais hostilidades discriminatórias – e legitimar o sistema democrático constitucional do Brasil”.
Em IL DIRITTO DI AVERE DIRITTI, di minima&moralia pubblicato giovedì, 10 Ottobre 2013 • 3 Commenti (https://www.minimaetmoralia.it/wp/estratti/stefano-rodota-il-diritto-di-avere-diritti/), notável jurista (e político recém-falecido) Stefano Rodotà, nos fala sobre “a necessidade inegável de direitos e de direito manifesta-se em todo o lado, desafia todas as formas de repressão e inerva a própria política. E assim, com a ação quotidiana, diferentes sujeitos encenam uma declaração ininterrupta de direitos, que tira a sua força não de alguma formalização ou reconhecimento de cima, mas da profunda convicção de mulheres e homens de que só assim podem encontrar reconhecimento e respeito pelos seus dignidade e pela sua própria humanidade. Estamos perante uma ligação sem precedentes entre a abstração dos direitos e a concretude das necessidades, que põe sujeitos reais a trabalhar”.
Para ele, certamente, “não os ‘sujeitos históricos’ da grande transformação moderna, a burguesia e a classe trabalhadora, mas uma pluralidade de sujeitos agora ligados entre si por redes planetárias. Não um “intelecto geral”, nem uma multidão indeterminada, mas uma multiplicidade laboriosa de mulheres e homens que encontram, e sobretudo criam, oportunidades políticas para evitar ceder à passividade e à subordinação”.
Mas, realmente, numa aferição que me surpreende porque ativa uma categoria metafórica com a qual instalamos toda uma linha de pesquisa (O Direito Achado na Rua, cf. Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq), ele prossegue: “Todos estes sujeitos ignoram o que, no final do século XVIII, começou em torno das duas margens do “Lago Atlântico”, não são dominados por alguma ‘tirania de valores’, mas interpretam, cada um à sua maneira, a liberdade e os direitos ao longo do tempo que vivemos. Aqui não é a ‘razão ocidental’ em ação, mas algo mais profundo, que tem as suas raízes na condição humana. Uma condição histórica, porém, não uma natureza da qual se possa extrair a essência dos direitos. Por que, de fato, só agora tantos condenados da terra os reconhecem, invocam, desafiam? Por que são eles os protagonistas, os adivinhos de um ‘direito achado da rua’? (‘diritto trovato per strada’)”.
Eis aí uma perspectiva que se insere no que temos chamado de constitucionalismo achado na rua. Com essas referências, alcança-se o patamar que, juntamente com Antonio Escrivão Filho (ESCRIVÃO FILHO, Antonio; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Para um Debate Teórico-Conceitual e Políticos sobre os Direitos Humanos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016), especialmente no Capítulo V – América Latina, desenvolvimento e um Novo Constitucionalismo Achado na Rua, páginas 123-150), enunciamos, vale dizer, que o Constitucionalismo Achado na Rua (a propósito: https://pt.wikipedia.org/wiki/Constitucionalismo_achado_na_rua; e, no prelo: SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al – orgs – Constitucionalismo Achado na Rua: uma contribuição à Teoria Crítica do Direito e dos Direitos Humanos Constitucionais. Coleção Direito Vivo vol. 8. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2024), vem aliar-se à Teoria Constitucional que percorre o caminho de retorno a sua função social. Uma espécie de devolução conceitual para a sociedade, da função constitucional de atribuir o sentido político do Direito, através do reconhecimento teórico-conceitual da luta social como expressão cotidiana da soberania popular. Um reencontro entre a Teoria Constitucional, e o Direito compreendido como a enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade (p. 149).
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
Constitucionalismo Achado na Rede: um (re)pensar sobre o Direito Humano à Comunicação
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Título original Constitucionalismo Achado na Rede: um (re)pensar sobre o Direito Humano à Comunicação e a proteção contra novas formas de submissão maquínica
Thaisa Xavier Chaves. Constitucionalismo Achado na Rede: um (re)pensar sobre o Direito Humano à Comunicação e a proteção contra novas formas de submissão maquínica. Brasília: Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, 2023, 94 fls.
Debruço-me sobre uma dissertação, que tive o prazer de orientar, mas que pelo protocolo acadêmico, embora me outorgue a presidência da Banca não permite que eu vote ou argua. Assim, nesta recensão, como que que exerço o meu ponto de vista sobre um trabalho valioso que oferece enorme contribuição para temas desafiadores.
Essa, de resto, o reconhecimento atribuído pela banca examinadora, que aprovou a Dissertação, por meio das locuções qualificadas das professoras: Fernanda de Carvalho Lage– Membra Interna, Nathália Vince Esgalha Fernandes – Membra Externa, Fundação Getúlio Vargas – FGV Rio e Talita Tatiana Dias Rampin, Faculdade de Direito, da Universidade de Brasília.
Como síntese do trabalho apresentado, transcrevo o resumo que o define no Repositório de Teses e Dissertações da UnB:
Esta dissertação é uma reflexão sobre a importância fundamental e urgente da proteção do direito à comunicação, como direito humano, irrevogável e instransponível, seja pelo ato comunicacional possibilitar as interações humanas mais simples desde os primórdios da civilização – caracterizando uma necessidade humana intrínseca, mas principalmente por ter se tornado hoje um instrumento especializado de controle de massas, por meio de uma rede dados articulada pelos detentores dos meios de produção informacional, e que, neste sentido, torna-se um grande obstáculo a ser analisado, compreendido, dissecado, e inúmeras vezes rediscutido, para colocar em ação o projeto da corrente epistemológica de O Direito Achado na Rua. Parte-se então da compreensão de que este direito carece de justificativa e reconhecimento jurídico, político e social, especialmente quando analisado no contexto do controle tecnológico dos processos comunicacionais no âmbito virtual, no que tange aos seus impactos coletivos, muitas vezes, à revelia da justiça. Inserido em uma arquitetura comunicacional em rede pensada e constituída em favor de um projeto de dominação das sociedades capitalistas modernas e que pode servir a vários propósitos, sejam ideológicos, políticos, mas principalmente mercadológicos. Trabalha-se, portanto, sob a perspectiva decolonial de uma nova compreensão da dinâmica informacional, para que os efeitos nocivos do controle da comunicação na rede mundial de computadores, que corrompem este direito humano ao promover o esvaziamento das subjetividades, diminuindo o poder de comando pessoal, por meio de recursos vários, entre eles a apropriação e o manejo de dados pessoais dos usuários da rede, possam ser desincentivados e combatidos, de modo que possa ser criado um arcabouço jurídico, de caráter teórico-prático, acompanhado de uma agenda política e econômica, que leve em conta a comunicação em uma abordagem centrada no ser humano, na sua diversidade cultural, identidade política e no controle social. Propõe-se, portanto, com o presente estudo, situar o direito à comunicação no campo virtual como dimensão dos direitos humanos sob uma perspectiva decolonial, considerando a teoria crítica do Direito Achado na Rua, como percurso político, teórico e pedagógico de resistência epistemológica.
Todo o arranjo propositivo-analítico sobre a matéria compreendida na promessa do resumo, vai se desdobrar, tematicamente, nos elementos enunciados pelo Sumário da Dissertação:
INTRODUÇÃO
A comunicação como direito humano emergente
1.1. Da rua à rede: o espaço do direito humano à comunicação
1.1.1. A sociedade digital e a transformação da territorialidade
1.1.2. Sociedades da informação, desafios e caminhos dos novos contextos comunicacionais
1.2. Internet: um direito fundamental
1.2.1. Direito de acesso à internet como paradigma humanístico da sociedade da informação
A ARQUITETURA DA REDE
2.1. Pilar colonial: as veias abertas do colonialismo digital
2.2. Pilar capitalista: as estratégias do capitalismo tecnológico na comunicação
2.2.1. Algoritimização e a modulação algorítmica como ferramenta exploratória
2.2.2.- Dados: o principal ativo econômico tecnoliberal
CAPÍTULO 3 – TECNOUTOPIAS COMUNICACIONAIS
3.1 Ambivalências digitais: problemas e oportunidades
3.1.1 O cenário
3.1.2 A luta
3.2 Constitucionalismo transformador: o Constitucionalismo Achado na Rede
3.3 Cartografia de um mar de monstros
CONSIDERAÇÕES FINAIS
BIBLIOGRAFIA
O tratamento da comunicação, no plano dos direitos, considerando que a Autora quer conferir à Comunicação, a caracterização de direito humano emergente, demanda, conforme propõe, “uma pesquisa de caráter transdisciplinar, de modo que a dissertação passa a ser construída a partir de temas considerados centrais, que coexistem de forma independente e entrelaçada, dividida em três momentos”.
Assim, indica a Autora, “o primeiro capítulo se desenvolve a partir da descrição do processo histórico-social de construção do conceito de comunicação como direito. É feita, portanto, nesta parte, uma abordagem decolonial sobre o discurso universalista e normativo dos direitos humanos, no qual se assentam os alicerces onde a comunicação passa a se desenvolver no espaço político da internet. Aborda-se, portanto, a metamorfose do espaço público, que passa a territorializar as redes como local de luta e expansão de direitos remodelando a experiência comunicacional quotidiana da sociedade”.
No segundo capítulo o que pretende a Autora é “contextualizar o sentido histórico da produção das novas tecnologias de comunicação, com foco no desafio crítico de entendimento sobre as origens, dinâmicas, práticas, significados, historicidade e efeitos que as tecnologias comunicacionais em rede trazem à construção da ordem social na contemporaneidade. Para este propósito, a pesquisa utiliza o recurso imagético dos pilares que sustentam a realidade estrutural da internet: o pilar colonial que determina a infraestrutura comunicacional que monopoliza a teoria científica da tecnologia da comunicação a partir da assimetria geopolítica do conhecimento localizadas no Norte e corpo-politicamente marcadas como brancas; e, o pilar capitalista que centraliza na comunicação/informação digital a principal fonte de desenvolvimento produtivo”.
Finalmente, no terceiro capítulo se interessa, “por delinear o cenário tecnológico atual e as emergências subjetivas e coletivas nascidas dessa dinâmica societária. Ao problematizar tal dinâmica, a pesquisa incita a análise da interface entre o direito e a tecnologia sob um viés constitucional reconhecedor de mobilizações emancipatórias em que o espectro tecnológico seja instrumento de processos políticos de liberdades e não determinantes sociais. Na busca pela aplicação didática freiriana dialógica e libertadora, utiliza-se elementos textuais que possam vir a provocar o leitor e a leitora através da arte e da poesia, conexões transversais com o tema proposto, para delinear uma proposta inicial para uma utopia do direito à comunicação conectada às dimensões práticas da técnica como ferramenta útil, apta a construir cidadanias ativas”.
A alusão a uma perspectiva utópica não é feita num sentido delirante ou alieneado mas no empoderamento de um pensamento transformador do real. Trata-se, diz a Autora, de “compreender a interface existente entre o Direito e tecnologia tendo o processo constitucional como fio condutor desta relação no sentido de trazer uma nova perspectiva na abordagem do direito humano à comunicação na discussão sobre os padrões de comunicação vigentes, seus marcos regulatórios e a relevância social das tecnologias informacionais”.
Assim é que ela propõe “um constitucionalismo transformador – achado na rede – como percurso teórico-conceitual e político, em uma reinterpretação do direito à comunicação de modo a garantir não somente a liberdade de expressão e de pensamento, mas também uma forma que assegure e proporcione os meios e suportes tecnológicos indispensáveis à efetivação de tais liberdades”.
Em uma de minhas recensões aqui neste espaço da Coluna Lido para Você, apresentei o livro Sociologia do novo constitucionalismo latino-americano: debates e desafios contemporâneos / [Organizadores], Gustavo Menon, Maurício Palma, Douglas Zaidan. –São Paulo: Edições EACH, 2022.1 ebook ISBN 978-65-88503-38-6 (recurso eletrônico) DOI 10.11606/97865885033861 Acesso: https://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/view/939/851/3088, com o intuito de identificar caminhos emancipatórios para o constitucionalismo, a partir do que vem sendo designado de novo constitucionalismo latino-americano, ao fim e ao cabo, um constitucionalismo transformador (http://estadodedireito.com.br/direito-constitucional-ambiental-e-teoria-critica-na-america-latina-recurso-eletronico/).
Pode-se dizer que nesse percurso se distingue, no sentido acolhido pela Autora, o que já se configura como um constitucionalismo achado na rua. Consulte-se, a propósito, agora ao final de 2022, a publicação da Revista de Direito do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da UnB que lançou edição especial inteiramente dedicada a O Direito Achado na Rua e sua Contribuição para a Teoria Crítica do Direito – (v.6 n. 2 (2022): Revista Direito. UnB |Maio – Agosto, 2022, V. 06, N. 2 Publicado: 2022-08-31. O Direito Achado na Rua. Contribuições para a Teoria Crítica do Direito. Edição completa PDF (https://periodicos.unb.br/index.php/revistadedireitounb/issue/view/2503). Sobre essa edição conferir em Jornal estado de Direito: http://estadodedireito.com.br/30425-2/.
Ali se verá, nesse e em outros trabalhos, como vai transparecendo um tanto da fortuna crítica dessa proposta teórica se concentra no cuidado de perceber os “achados” que têm permitido a atualização de suas linhas de pesquisa. O Constitucionalismo Achado na Rua pode ser considerado um desses achados. Chamo especial atenção, nesse sentido, para o bem elaborado verbete da wikipedia (https://pt.wikipedia.org/wiki/Constitucionalismo_achado_na_rua).
Em que pese o método de elaboração anônima, posso afiançar que a redação do verbete resulta de autoria coletiva de meus alunos de disciplina Pesquisa Jurídica, em seu exercício pedagógico de aprendizado por meio de pesquisa e de autoria. No verbete em questão a posição de saída é a de que o “Constitucionalismo achado na rua consiste em construções teóricas e práticas jurídicas resultantes de estudos do Grupo da linha de Pesquisa O Direito Achado na Rua, integrante do Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq. Tem entre seus objetivos conceber condições concretas de garantia e exercício de direitos por sujeitos coletivos, como grupos oprimidos e movimentos sociais. Tal concepção recebe influência da sociedade em diversos aspectos, como das lutas constituintes e da atuação de movimentos sociais, do novo constitucionalismo latino-americano e do pluralismo jurídico”.
Por isso que em SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al (orgs). O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática, volume 2, (Parte IV): O Direito Achado na Rua: Desafios, Tarefas e Perspectivas Atuais. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2015, inscrevemos uma anotação programática nessa direção, ao indicar (p. 224): que “Essas experiências refletem uma espécie de ‘Constitucionalismo Achado na Rua’, em que os atores constituintes, os protagonistas desses processos, que envolveram povos indígenas, feministas, campesinas e campesinos, trabalhadoras e trabalhadores e setores historicamente excluídos, arrancam do processo constitucional novas formas de pluralismo jurídico e conquistas de Direitos”.
Acompanhei com muito interesse o modo como a pesquisa de Thaisa Chaves foi ganhando consistência nessa mesma direção para alcançar, diz ela, de modo concreto, “a possibilidade de um desenho do pensamento jurídico que tenha em vista a comunicação enquanto bem público – fundada na percepção do ato comunicativo como elemento central da sociedade da informação – e que seja pautada na noção de soberania algorítmica como a capacidade estratégica de regulação e de produção tecnológicas sob condições emancipatórias”.
É desse modo, é ainda a Autora quem afirma, que se apresenta a necessidade de “compreender a interface existente entre o Direito e a tecnologia e usar o processo constitucional com seus princípios, objetivos e fundamentos como fio condutor desta relação, significa encarar a elaboração jurídica em seu dinamismo teórico-prático para que o Direito possa ser moldado em torno de novas categorias sociais em mutação, uma vez que não deve ser somente a legislação a única fonte jurídica apta a considerar toda a complexificação social decorrente do cenário de comunicação tecnológica” (P. 74).
A abordagem da Autora expressa na acepção de um constitucionalismo achado na rede, tal como se expressa no título de sua dissertação, vem se encontrar com esse movimento transformador que vai de O Direito Achado na Rua ao Direito Achado na Rede. Ela, de fato, menciona esse encontro ao fazer citação da entrevista do professor Paulo Rená, num dos programas da playlist O Direito Achado na Rua. Conforme se poderá confirmar, para esse percurso e conceitos apropriados pela Autora em – https://www.youtube.com/watch?v=aVgqu53dEic&list=PLuEz7Ct3A0Uj9NU2BYmgSIM0rWv7IRAjK&index=67. Trata-se do programa O Direito Achado na Rua que entrevista o professor Paulo Rená sobre seu projeto Direito Achado na Rede, uma derivação de O Direito Achado na Rua, o grupo de estudos da Universidade de Brasília (UnB), do qual Paulo Rená faz parte. Direito Achado da Rede é plataforma desenvolvida para instituir espaços críticos constituídos pelas comunidades de informação e de conhecimento, da questão das fake news e do “monopólio da verdade” e temas correlatos. O projeto do professor Paulo Rená derivou das pesquisas que ele empreendeu para sua dissertação de mestrado. Escrita em 2010, o livro “O Direito Achado na Rede: a concepção do Marco Civil da Internet no Brasil” (acessível em formato e-book e em papel (no site da @editoradialetica).
Para a Autora da dissertação, o Constitucionalismo Achado na Rua, vai se constituir como “percurso teórico-conceitual e político, ambicionando mapear diferentes formas de erosão do arcabouço democrático e propiciar a criação de uma rota alternativa voltada à reestruturação do modelo de organização estatal, “[…] devolvendo à sociedade o papel de atribuir sentido político do Direito […]”, restituindo sua função social. (SOUSA & FONSECA, 2017, p. 2896) Impulsionar o Constitucionalismo Achado na Rua para um Constitucionalismo Achado na Rede significa adentrar por meio de uma percepção consciente no processo de formação histórica dos direitos digitais, encarando a complexidade e o dinamismo das sociedades da informação”.
Para a Autora, “é necessário, reconhecer a urgência social que emerge dos meios técnicos e suas materialidades múltiplas neste momento histórico, em que empresas e Estado flexibilizam seus pontos de contato e seus interesses se fundem, como estratégia de manutenção da tradição colonialista que se perpetua nas mãos dos detentores do domínio do capital e da técnica. Portanto, os desafios de um Constitucionalismo Achado na Rede reconhecedor de mobilizações emancipatórias como recurso jurídico (SOUSA & FONSECA, 2017) e formulador de um desenho jurídico-institucional que minimize os riscos das redes sociais e potencialize suas vantagens, implica, categoricamente, na configuração de um direito constitucional aberto à fragmentação de sistemas sociais que fujam do modelo tradicional Estado-Nação”.
A Autora descortina o que ela denomina de tecnoutopias que possam ser conectadas às dimensões práticas da existência, valendo-se de referências minhas sobre a necessidade de multiplicidade dos movimentos sociais “[…] de natureza contestadora, solidarística e propositiva […]” que sejam comprometidos “[…] com a coletividade e a construção da esfera pública democrática, além de combinar a ética, a cultura e o conhecimento reflexivo da ciência […]”, ela afirma, como dimensões definidoras de projetos emancipatórios no cenário de homogeneização imposto pela globalização.
Em consequência, ter em conta que “o impacto sociotécnico da comunicação em rede demanda, portanto, um pensar crítico para além do consumo da informação/comunicação. É necessário considerarmos as implicações geradas a partir da produção e inovação tecnológica do meio comunicacional e o aprofundamento do esgarçamento da crise econômica, moral, política e ambiental pelas quais passa a humanidade. Nesse sentido, o capítulo que encerra esta pesquisa se destina a (re)pensar a comunicação enquanto um direito humano, investigado no locus social da internet, que, como já visitada neste estudo, reproduz o modelo colonizador de espaços e corpos e expressa todo o seu potencial no aprofundamento do capitalismo. O objetivo, portanto, é analisar o cenário informacional virtual, as práticas sociais de ação política decorrentes desta cena social e pensar uma construção alternativa de realidades (jurídicas, inclusive) plurais e até mesmo divergentes”.
Penso que a Autora encontra uma rota favorável para navegar entre os escolhos desse “território de dragões”, conforme a metáfora do navegar impreciso de que falava Luis Alberto Warat. Aliás, ela toma esse autor para tomar-lhe a metáfora do navegador de longo curso que não teme afastar-se da navegação costeira e enfrentar monstros.
No item 3.3 abre exatamente um recorte com o título Cartografia de um mar de monstros, para sinalizar uma ousadia de descobertas:
Na esteira das tecnologias de comunicação das redes sociais, o poder informacional orienta a construção de sociabilidades que repercutem novas formas de produção da vida, da natureza e do corpo, forjado em uma matriz sociocultural bem conhecida (colonialista), embora sua direção se oriente por caminhos ainda desconhecidos.
A incompreensão do percurso social da produção de informação mediada por computador permite a aplicação da alegoria construída por Luis Alberto Warat, ao que parece, adstrita ao campo da oralidade, conforme explica Gonçalves (2013), sobre a figura mitológica dos dragões usados nos mapas cartográficos como representação simbólica do inexplorado. O recurso imagético enquanto ação interpretativa é um facilitador, que revela o quanto as redes sociais de comunicação apontam para uma dinâmica societária que ainda não alcançou compreensão. (SODRÉ, 2021)
A incerteza, os perigos e as possibilidades de um mundo de intervenções tecnológicas nos lança “[…] à deriva em outro estranho e obscuro mar de novidades.” (SHOSHANA, 2020, p. 403) “Se quisermos que esses caminhos fluam para mares democráticos, teremos que aprender como fazer isso, com tecnologia.” (LAGE, 2019, p. 11-12)
Portanto, “Torna-se urgente encontrar alguma terra firme […]” (WARAT, 2003, p. 2) que nos ampare diante da fissura social aberta entre a promessa tecnológica de aumentar as capacidades humanas e servir aos seus propósitos em contraposição à dinâmica do poder extrativista das plataformas digitais. Mensurar a violência contida neste projeto é descortinar o drástico processo de apagamento das alteridades, demonstrado o quanto, cada vez mais, “a gente fica sem a gente”. (WARAT, 1990, p. 37)
Thaísa traz Warat à cena num momento em que ele recebe novas homenagens. Agora no dia 4 de agosto, organizado por TRAEPP – Grupo de Estudos em Trabalho, Economia e Políticas Públicas (PPGD/UFPR), tendo na Coordenação-Geral a participação do Professor Paulo Ricardo Opuszka (UFPR), realizou-se o 1º Warat Fest, com um amplo programa acadêmico compreendendo conferências e defesas de teses e dissertações, além de depoimentos. A pedido do professor Paulo Opuszka gravei um depoimento em homenagem ao meu orientador no doutoramento: https://www.youtube.com/watch?v=BNFNNjLdT1o.
Com Warat, Thaísa desbrava mares de monstros, para enfim desbravar novos territórios de cidadania, tecidos na rede, como direitos. O que ela chama de Constitucionalismo Achado na Rede. Justificando:
Sob esse aspecto, dar densidade ao valor epistêmico do Constitucionalismo Achado na Rede vai além do artifício retórico que emoldura teorias sobre positivação e operacionalização de direitos constitucionais em ambientes digitais. A relação ambivalente da internet com a teoria dos direitos fundamentais manifesta a ambição constitucional em rede, que almeja compreender a automação da vida como ameaça e promessa e também pretende oferecer molduras interpretativas que não possuam enquadramentos estagnados das dimensões dos direitos fundamentais na era digital, levantando questões sobre como as fontes de direito podem ser aplicadas e o quanto novas oportunidades para a realização de liberdades individuais e coletivas podem ser criadas no contexto de proteção constitucional.
As sociedades em processo de amadurecimento político-institucional precisam adentrar em camadas analíticas mais profundas do oligopólio tecnológico, para além das discussões sobre políticas de vigilância e armadilhas da desinformação. É fundamental ampliar o debate sobre quem e em quais condições estão os que desenvolvem as tecnologias da informação e da comunicação, como são implementadas e se estes questionamentos dão conta de responder às necessidades de aprofundamento democrático. (MOROZOV, 2021)
Nesse sentido, o campo de análise sobre o Direito à Comunicação nos meios digitais dever ter como enfoque a internet e as tecnologias informacionais como principais expoentes de transformação e modificação social, política e econômica. Para tanto, leva-se em conta duas conceituações jurídicas importantes para o desenvolvimento do pensamento de expansão de direitos em torno da luta pela democratização da informação no contexto de controle comunicacional das mídias sociais (SOUSA JUNIOR, et al., 2017): a comunicação enquanto bem público e a soberania algorítmica.
Superando a ideia da comunicação sob o viés único do acesso à informação, da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa, Spenillo (2008) agrega mais uma camada analítica à medida que a trata como bem público. A construção dessa noção de direito à comunicação se funda na percepção do ato comunicativo como elemento central das sociedades da informação, algo que perpassa dimensões políticas, sociais, culturais e econômicas, e que carece da criação de infraestruturas institucionais digitais que garantam o acesso, a participação e a fruição do espaço público digital, rigorosamente em condições de igualdade.
A comunicação encarada como bem público implica na luta pela garantia e pelo exercício da dignidade humana inseridas em um conjunto de direitos e liberdades estendidos para além do formato mercadológico e de produção de informações, mas como meio de impactar de forma significativa a construção da compreensão do direito humano à comunicação como bem social e universal. (PEREIRA, et al, 2021).
Em seguida à defesa, Thaisa compareceu ao Programa O Direito Achado na Rua que é produzido e exibido pela TV 61 (Jornal Expresso 61), sempre ancorado pelo jornalista João Negrão (https://www.youtube.com/watch?v=e-xKyIdtu-k&t=7s). Até aqui são já 84 programas que não só formam uma expressiva lista de vídeos, com essa retranca, mas um catálogo único de temas e pesquisadores que contribuem para adensar a fortuna crítica do projeto O Direito Achado na Rua.
Na sinopse do Programa, anota-se que a dissertação de Thaisa é uma reflexão sobre a urgência da proteção ao direito à comunicação, como direito humano, diante da mutação do espaço público para a rede que remodela a experiência comunicacional quotidiana da sociedade. Como instrumento especializado de controle de massas, por meio de uma rede de dados articulada pelos detentores dos meios de produção informacional, a comunicação digital torna-se um grande obstáculo a ser analisado, compreendido, e inúmeras vezes rediscutido, para colocar em ação o projeto da corrente epistemológica de O Direito Achado na Rua.
Parte-se então da compreensão de que este direito carece de justificativa e reconhecimento jurídico, político e social, especialmente quando analisado no contexto do controle tecnológico dos processos comunicacionais no âmbito virtual, no que tange aos seus impactos coletivos.
Por isso, a ênfase, conduzida pela edição de jornalismo, na necessidade de criação de um arcabouço jurídico, de caráter teórico-prático, acompanhado de uma agenda política e econômica, que leve em conta a comunicação em uma abordagem centrada no ser humano, na sua diversidade cultural, identidade política e no controle social. Propõe-se, portanto, com o presente estudo, situar o direito à comunicação no campo virtual como dimensão dos direitos humanos sob uma perspectiva decolonial, considerando a teoria crítica do Direito Achado na Rua, como percurso político, teórico e pedagógico de resistência epistemológica.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.5
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Povos Indígenas no Brasil 2017/2022. Autor: RICARDO, Fany Pantaleoni (Ed.), KLEIN, Tatiane (Ed.); SANTOS, Tiago Moreira dos (Ed.). São Paulo: Editora: Instituto Socioambiental, 2023, 828p.
Recebi de minha colega, também ex-aluna, cuja dissertação de mestrado orientei, Renata Carolina Corrêa Vieira (sobre sua Dissertação – Renata Carolina Corrêa Vieira. Povos Indígenas, Povos e Comunidades Tradicionais e Agricultores e Familiares: A Disputa pelo Direito no Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN). Brasília: CEAM-PPGDH (Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania), 2021, 169 f. – ver a recensão que fiz em Lido para Você:https://estadodedireito.com.br/povos-indigenas-povos-e-comunidades-tradicionais-e-agricultores-e-familiares-a-disputa-pelo-direito-no-conselho-de-gestao-do-patrimonio-genetico-cgen/ , incluindo a gravação da sessão de defesa, com a participação de Boaventura de Sousa Santos e Raquel Yrigoyen Fajardo examinadores estrangeiros), o magnífico exemplar, quase livro-de-arte, dessa obra enciclopédica.
A própria Renata, assessora jurídica do ISA, com atuação no Alto e Médio Rio Negro, noroeste amazônico, com base em São Gabriel da Cachoeira, encontrei artigos sobre Consulta Prévia, em co-autoria com Renato Martelli Soares – “Protocolo de Consulta e Fortalecimento do Movimento Indígena no Rio Negro”; com Marcio Santilli, Marivelton Barrosos e Renata Aparecida Alves – “Requerimentos de Lavra Garimpeira Loteiam Até o Rio Negro”; mais uma vez, com Renato Martelli Soares – “A Base da Foirn: Associações Indígenas e seus Atuais Desafios”.
Da página do ISA retiro informações sobre essa décima terceira edição da série Povos Indígenas no Brasil, referente ao período de 2017 a 2022:
Ela traz uma visão geral sobre 266 povos indígenas que vivem no Brasil, falantes de cerca de 160 línguas. O volume atual compreende um dos mais conturbados da história indígena pós-redemocratização e destaca, na capa, a liderança Watatakalu Yawalapiti, do Território Indígena do Xingu (MT), lembrando o protagonismo das mulheres indígenas na defesa dos direitos indígenas ante os retrocessos. Inclui um caderno especial de 32 páginas com imagens de destaques.
São mais de 266 povos, uma população que ultrapassa 1,5 milhão de pessoas, falantes de mais de 160 línguas e que vivem em 731 Terras Indígenas, de norte a sul do território nacional. Números que oferecem apenas uma pista da riqueza, da beleza e da diversidade dos povos deste país, e que mostram para as próximas gerações a força do Brasil indígena.
É no livro “Povos Indígenas no Brasil 2017-2022”, publicado pelo Instituto Socioambiental (ISA), que essa força se confirma. Em suas mais de 700 páginas, a publicação mostra que o Brasil indígena é uma história contemporânea que continua emergente, sendo vivida, escrita e recriada cotidianamente. A publicação traz informações completas sobre os povos indígenas que vivem no território brasileiro. Em 2022, a série completou 42 anos de existência e o novo volume cobre o período entre 2017 e 2022.
Acentuando motivações a página ilustra também o campo sobre Indígenas no mapa do Brasil, para destacar que
Colocar os povos indígenas no mapa e na linha histórica do Brasil foi o objetivo da criação da série “Povos Indígenas no Brasil”.
(CEDI), organização que deu origem ao ISA, a publicação nasceu dando visibilidade para a dizimação de diversos povos indígenas e a devastação de seus territórios, que na época era pouco conhecida, até mesmo pelos especialistas.
O CEDI, então, passou a entrar em contato com pessoas que tinham relações diretas com as comunidades indígenas e reuniu uma extensa rede de colaboradores para contribuir para o monitoramento e a visibilidade da luta dos povos indígenas.
o passar do tempo essa rede foi crescendo, agregando indígenas, incorporando mais pesquisadores, médicos, jornalistas, fotógrafos e outros especialistas que se uniram ao esforço de fornecer informações fundamentadas e atualizadas sobre os povos indígenas e seus territórios.
Os artigos que compõem o livro abordam temas como políticas e associações indígenas, legislação, territórios indígenas, gestão, manejo e proteção territorial e ambiental, pressões e ameaças impostas pelo avanço de grandes projetos de infraestrutura, desenvolvimento econômico e político, educação, saúde pública, cultura e patrimônio.
O livro sai num momento importante. O do debate sobre os procedimentos para assegurar o reconhecimento dos direitos originários dos povos indígenas, depois da decisão do Supremo Tribunal Federal que rechaçou a tese ruralista (latifúndio e agro-negócio) do exdrúxulo marco temporal. Repristinada pelo Senado, o tema ainda incomoda, mas tende à rejeição cabal, acumulando-se razões para fundamentar essa rejeição. A propósito, a minha coluna Lido para Você (As Teses Jurídicas em disputa no STF sobre Terras Indígenas .01 de setembro de 2021 | Redação Jornal Estado de Direito (https://terradedireitos.org.br/uploads/arquivos/Justica-e-o-marco-Temporal-de-1988-(final).pdf); https://bit.ly/tesesmarcotemporal), em síntese que foi tema de minha recensão: https://estadodedireito.com.br/as-teses-juridicas-em-disputa-no-stf-sobre-terras-indigenas/ .
A publicação em si, é dividida em duas partes. A primeira contêm seis capítulos com temas como línguas e demografia, legislação, demarcação e proteção das Terras Indígenas, política indigenista, protagonismo indígena e projetos de desenvolvimento. Na Apresentação, os organizadores, nesta parte, colocam como destaque, “o balanço negativo da política de demarcações no período e, também, um detalhamento do maior ataque da história aos direitos indígenas. A situação de vulnerabilidade dos povos indígenas à covid-19 e a inação do Governo Federal frente à pandemia são abordados”. Outro ponto de relevo nesta primeira parte “é a voz dos povos indígenas, na seção ‘Palavras Indígenas’, que apresenta depoimentos de lideranças indígenas sobre o tema Território e Pandemia”.
Na segunda parte, “os contextos regionais são desenhados por especialistas indígenas e não indígenas, com destaques para acontecimentos relevantes no período nas regiões”.
Há muitos encartes, gráficos, fotos, ilustrações, muitos em colorido, com a relevância de registros de lutas de resistência, movimentos, não só políticos mas também estéticos, além de notícias sobre violências e ações de resistência.
O livro lança expectativas marcadas por sinais de esperança, a começar pela instalação de um governo atento ao social e ao popular, com materializações importantes como a criação do Ministério dos Povos Indígenas e a designação de indígenas para a direção não só do Ministério, mas da FUNAI (agora designada Fundação Nacional dos Povos Indígenas) além de outros órgãos importantes para a gestão autêntica dessas políticas.
Um forte sinal de esperança é a vitória da tese de que os direitos indígenas, originários, pré-estatais, não podem sofrer restrições ou reduções ainda que legais. Conforme matéria publicada na página do Àwúre, (um projeto conjunto do Ministério Público do Trabalho (MPT), da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) -https://www.awure.com.br/lula-veta-trecho-sobre-marco-temporal-mas-sanciona-novas-regras-para-demarcacoes-indigenas/, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) vetou, nessa sexta-feira (20/10), trecho de um projeto de lei que estabelecia a promulgação da Constituição, em outubro de 1988, como marco temporal para demarcação de terras indígenas. O anúncio foi feito pelo ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha.
Segundo a matéria, “Lula, no entanto, sancionou trechos da proposta, aprovada pelo Congresso Nacional em setembro, que definem regras das demarcações. Segundo o ministro, entre os trechos vetados, estão os que previam a possibilidade de cultivo de produtos transgênicos e de atividade garimpeira em terras indígenas. Também foi vetado, segundo o integrante do governo, um ponto que possibilitaria a construção de rodovias em áreas indígenas”.
Os povos indígenas, por suas organizações, tinham a expectativa de veto total. Aliás, o Ministério Público Federal também havia promovido entendimento nesse sentido. O Ministério Público Federal (MPF) defendia o veto integral ao projeto. A nota, elaborada pela Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais (6ªCCR) do MPF, defende que a aplicação da tese do marco temporal não pode ser feita por meio de lei ordinária. A 6ªCCR também alegava que a aplicação da tese restringe garantidos aos indígenas em cláusulas pétreas da Constituição e, por isso, não poderiam ser alterados nem mesmo por uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) – https://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr2/2023/marco-temporal-mpf-defende-veto-a-projeto-de-lei-aprovado-pelo-congresso-nacional.
Muitos de nós. Eu próprio, em minha coluna O Direito Achado na Rua publicada no Jornal Brasil Popular, somei com essa posição. No meu argumento, escrevi (https://www.brasilpopular.com/45819-2/), “Quem luta por superar as desigualdades profundas do experimento capitalista-colonial, e a exigência política para vencer o abismo que esse experimento cria na forma de exclusão e de opressão, não deve ter dúvida do lado a tomar. O Presidente Lula, em fidelidade a seu discurso e da prática que ele traduz, não deve ter dúvida de seu lado político na História, para conduzir sua promessa de uma governança que enfrente a miséria, a pobreza e a fome e não se renda às injunções que afrontam a Constituição para criar obstáculos à reforma agrária e querer subtrair dos povos indígenas originários seu direito próprio e o reconhecimento desse direito a seus territórios e a seu modo de existir e de preservar seus usos e tradições sociais e culturais. O Presidente não deve ter dúvida e, se tiver, deve ficar ao lado dos pobres e dos povos indígenas. Deve vetar esse projeto emulativo de cizânia no plano institucional e extremamente perverso no plano político, em tudo antagônico ao conteúdo ético de sua proposta programática”.
A posição do Presidente pelo veto parcial, mantendo aspectos procedimentais do projeto do Senado, parece orientar-se para uma posição que sinaliza o desejo de arrefecer possíveis tensões entre os poderes. No essencial, o veto responde aos interesses dos povos indígenas. Segundo a matéria de Àwúre, o Presidente “tomou a decisão após se reunir, na residência oficial do Palácio da Alvorada, com os ministros Padilha, Jorge Messias (Advocacia-Geral da União) e Sônia Guajajara (Povos Indígenas)”.
Para marcar os 35 anos da Constituição Federal, o Ministério dos Povos Indígenas promoveu no dia 9 de outubro um seminário nacional para destacar e discutir a importância da constitucionalização dos direitos indígenas na carta promulgada sob grande participação popular após a redemocratização do país em outubro de 1988 e da construção de uma constituição pluriétnica, que reconhece o direito à diferença.
No entendimento da organização, “A Constituição Federal de 1988 foi a primeira a contar com a participação efetiva dos povos indígenas. À época, várias lideranças e caciques ficaram acampados em Brasília promovendo debates e articulações para apresentar propostas ao textos que estabeleceu pontos importantes relativo aos povos indígenas como o direito originário às terras que tradicionalmente ocupam, o direito à diversidade étnica e cultural, previstos no art. 231, e ainda o direito ao pleno exercício de sua capacidade processual para defesa de seus interesses, no art. 232. Os dois artigos alteraram a relação entre os povos indígenas e o Estado, rompendo com a lógica tutelar que considerava os indígenas incapazes para vida civil e para o exercício de seus direitos e os reconhecendo como sujeitos plenos de direito, inaugurando assim, um estado pluriétnico”.
A primeira mesa do seminário, coordenada pela presidenta da Funai Joenia Wapichana, reunirá os advogados José Geraldo de Sousa Junior, Paulo Pankararu, Fernanda Kaingang, e Paulo Machado Guimarães para discutirem as perspectivas de construção e uma Constituição Pluriétnica.
A segunda mesa, sob coordenação do Secretário Executivo do MPI, Eloy Terena, debateu a Constitucionalização do Direito dos Povos Indígenas na CF/88, com o jurista Conrado Hubner, e as advogadas Melina Fachin e Samara Pataxó.
Nesse seminário foi muito importante retomar temas que têm sido conteúdo de muitas discussões a partir de posicionamentos de estudiosos indígenas mas de aliados de sua causa legítima. Encontro no Seminário Eloy Terena, atual secretário-executivo do Ministério, um desses interpretes de sabida autenticidade. No livro ele trata do tema da ADPF 709 no STF e o Enfrentamento da Pandemia. Sobre esse tema, não só Eloy, cuja leitura sobre os direitos indígenas é das mais atualizadas (reporto-me a sua tese de doutoramento: Luiz Henrique Eloy Amado (Eloy Terena). O Campo Social do Direito e a Teoria do Direito Indigenista. Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2022, de cuja banca participei, tendo publicado minha arguição em minha coluna de resenhas: https://estadodedireito.com.br/o-campo-social-do-direito-e-a-teoria-do-direito-indigenista/).
Eloy também já publicara no volume 10 de O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade, um agudo ensaio – O Direito que Nasce da Aldeia, configurando a condição cogente dessa juridicidade precedente e sobredeterminante (cf. em https://estadodedireito.com.br/o-direito-achado-na-rua-volume-10-introducao-critica-ao-direito-como-liberdade/). Mas, em outras publicações sobre o marcador O Direito Achado na Rua, essas questões haviam sido lançadas para fundamentar um ponto-de-vista que ganha adensamento. Assim, em SOUSA Junior, José Geraldo de et al (orgs). O Direito Achado na Rua. Questões emergentes, revisitações e travessias. Coleção Direito Vivo nº 5. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2021, o artigo: O Constitucionalismo Achado na Rua, os Sujeitos Coletivos Instituintes de Direito e o Caso da APIB na ADPF nº 709, trabalho em co-autoria de Marconi Moura de Lima Burum, Mauro Almeida Noleto, Priscila Kavamura Guimarães de Moura e Renan Sales de Meira; e também, de Marivelton Barroso Baré e Renata Carolina Corrêa Vieira, o ensaio O Protagonismo Indígena na Defesa da Vida: a pandemia da Covid-19 em São Gabriel da Cachoeira, publicado em SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; RAMPIN, Talita Tatiana Dias; AMARAL, Alberto Carvalho (orgs.). Direitos Humanos & Covid-19. Respostas Sociais à Pandemia, vol. 2. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2022.
Em minha participação no Seminário promovido pelo Ministério dos Povos Indígenas, sobre os 35 anos da Constituição Federal de 1988, terçando argumentos que depois recoloquei em outro debate, desta feita dividindo a cena com Ailton Krenak (https://www.youtube.com/watch?v=twZYJIe7vDs&t=24s – Ponto de Vista – 35 Anos da Constituição Federal – Direitos Indígenas – 19/10/23, em programa especial produzido pela TV Câmara, que distinguem enunciados das lutas urgentes dos povos indígenas, derivados de seus direitos pré-estatais: a autodemarcação, a retomada, a desintrusão, o protocolo autônomo de consulta e consentimento.
São demandas que abrem alertas de preocupação. Basta ver a nota lançada pela Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns – Comissão Arns (https://www.ihu.unisinos.br/633615-sobre-as-pressoes-para-a-desintrusao-de-invasores-da-terra-indigena-apyterewa), denunciando que “desde o seu reconhecimento pelo Estado brasileiro, sempre houve forte campanha de estímulo à invasão e ao consequente loteamento da terra. Os invasores recorrem à artimanha de “fatos consumados” para impedir o direito fundamental dos povos indígenas ao usufruto exclusivo de suas terras tradicionalmente ocupadas, demarcadas e regularizadas conforme o artigo 231, § 1º da Constituição”. A nota se dirige à urgência de desintrusão da terra indígena apyterewa, mas pode se aplicar a todas as situações contidas nessa urgência.
São estratégias que, no livro, com muita convicção designam o alcance insurgente das lutas dos povos indígenas, para as quais chamo a atenção, para que sejam lidas em matérias, artigos, entrevistas e palavras indígenas que dão atualidade à obra, entre outras manifestações que logo procurei examinar: É a Hora de Ouvir: Protocolos Autônomos de Consulta e Consentimento, de Biviany Rojas Garzón e Luíz Donisete Benzi Grupioni; Retomar e Fortalecer a Funai, de Fernando Vianna (Fedola), Luana Almeida e Mitia Antunha; Protocolo de Consulta e Fortalecimento do Movimento Indígena no Rio Negro, de Renata Carolina Corrêa Vieira e Renato Martelli Soares; Comunidades Indígenas Engajam-se na Autodemarcação, de José Cândido Ferreira, Patrícia Carvalho Rosa e João Bento Ramos; “Autodemarcação é Ato Político. É a Nossa Forma de Dizer que essa Terra é Nossa”, Entrevista concedida à equipe de edição; Desintrusão da TI Pankararu (PE) e Covid-19 no Real Parque (SP), de Arianne Rayis Lovo; A Autodemarcação do Povo Nawa, de Fábio Pontes e Alexandre Noronha; Povo Pataxó Retoma Territórios Tradicionais, de Tiago Miotto; Território Insurgente – o Uso da Terra nas Retomadas Terena, de Carolina Perini de Almeida e Gilberto Azanha; O Conselho do Povo Terena como Instância de Consolidação das Retomadas, box; Os Avá Guarani e as Retomadas pela Terra e pela Vida, de Rafael Nakamura e Júlia Navarra.
Não integra a publicação mas se constitui uma leitura necessária, o artigo de Eloy Terena e Roberta Amanajás – “O Direito Constitucional à Retomada de Terras Indígenas Originárias”. Este texto está lançado em obra coordenada pela FIAN Brasil e pelo Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua (O Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas: enunciados jurídicos / Organização Valéria Torres Amaral Burity, Antonio Escrivão Filho, Roberta Amanajás Monteiro, José Geraldo de Sousa Junior. 1ª edição. Brasília: FIAN Brasília; O Direito Achado na Rua, 2020). Para os autores, “as retomadas dos territórios tradicionais podem ser entendidas como atos de resistência em defesa dos direitos humanos” e por essa via, inseridos constitucionalmente e convencionalmente ao direito dos povos indígenas ao “Território tradicional, do Direito à Identidade Cultural e da inadequação ou omissão de políticas públicas articuladas e específicas”.
Embora reconheço a procedência do mal-estar de Camões sobre os principais registros notadamente do STF relativamente ao reconhecimento da legitimidade das pretensões indígenas, principalmente tendo como paradigma a incidência decisória na demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Entretanto, vejo que a sua leitura comporta a possibilidade de “alternativas subversivas indígenas” para “emancipar coletivos historicamente oprimidos”. E gosto de pensar que há confiança política e epistemológica no referencial teórico e prático de O Direito Achado na Rua, para realizar essas alternativas, assentadas nas posições de “povos que sabem e decidem resistir”, qual tamanduá, tal como metaforicamente aludem os Munduruku, na 1ª carta de autodemarcação de seu território.
Elas encontram ressonância global em leituras que procuram sustentar a representação política de povos indígenas para a sua autonomia e para conduzir demandas indígenas para a descolonização do estado. Esse foi o enfoque de minha contribuição para o dossiê que Raquel Yrigoyen Fajardo preparou quando assessorou em seu país, o Perú, engolfado numa crise de governança, pensando os interesses legítimos dos povos orginários (Dosier Perú. Crisis de Representación Política y Demandas Indígenas para la Descolonización del Estado. Instituto Internacional de Derecho y Sociedad (IIDS). (2023). Lima, junio 2023). A respeito, em minha Coluna Lido para Você (https://estadodedireito.com.br/crisis-de-representacion-politica-y-demandas-indigenas-para-la-descolonizacion-del-estado/), pontos de minha consideração que pretendeu inserir essas demandas no âmbito constitucional que as deve abrigar:
Logo de caracterizar a Exclusão Histórica dos Povos e as Demandas para uma Assembleia Constituinte Plurinacional, o Dossiê, em pormenor, expõe as Graves Violações de Direitos Humanos e as Demandas para Cessar o Genocídio de Povos Indígenas. E logo as Propostas e Demandas de Participação Política de Povos Indígenas e Afroperuanos no Estado. O Dossiê se completa com uma Infografías: Cronologia dos Fatos e Referências Bibliográficas que documentam a narrativa e as Conclusões do Documento.
Sem hierarquizar as participações, detenho-me nas anotações que procedem de Raquel Yrigoyen Fajardo, com quem aprendi a aferir as mais eloquentes experiências constitucionais na América Latina, incluindo o Canadá, me valendo de seu modelo de classificação dos sistemas constitucionais latino-americanos. Ela alude a um primeiro ciclo caracterizado como “constitucionalismo multicultural” (Canadá, 1982), (Guatemala, 1985), (Nicarágua 1987) e (Brasil, 1988). O segundo ciclo referente ao “constitucionalismo pluricultural” (Colômbia, 1991), (México e Paraguai, 1992), (Peru, 1993), Bolívia e Argentina, 1994), (Equador, 1996 e 1998) e (Venezuela, 1999). E o terceiro ciclo, finalmente, é reconhecido pelo alcance de um “constitucionalismo plurinacional”, a partir das inovadoras Constituições do (Equador, 2008) e (Bolívia, 2009), nas quais, diz Raquel, já se trata de um ciclo pluricultural, plurinacional e ecológico, nas quais “se pluraliza a definição de direitos, a democracia e a composição dos órgãos públicos e as formas de exercício do poder”.
Raquel Yrigoyen, que já inscrevera em sua concepção a tese de um constitucionalismo plurinacional, tem avançado fortemente, desde seu diálogo com as cosmogonias e cosmovisões dos povos ancestrais, em direção a um constitucionalismo ecológico ou eco-constitucionalismo, sem contudo abdicar de suas teses originais sobre o pluralismo jurídico.
É assim, portanto, na direção dessa referência a um constitucional aberto a posições que reconheçam o alcance do social que o realiza que se pode compreender a decisão do Ministro Fachin para repensar a dimensão política da função judicial e reconhecer que “são os sujeitos coletivos que conferem sentido à soberania popular”, e que, afirmam uma ‘participação política da comunidade [indígena]’ expressão dessa subjetividade coletiva que se faz titular de direitos em perspectiva inter-sistêmica, juridicamente plural”, conforme seu voto no TSE (segundo semestre de 2022), por ocasião do julgamento do Recurso Especial Eleitoral (Processo Número: 0600136-96.2020.6.17.0055 – Pesqueira – Pernambuco.
Também na relatoria do julgamento sobre o marco temporal, em completar o seu entendimento, agora valendo-se de consideração sobre “a dimensão política da função judicial, apontada por Antônio Escrivão Filho e José Geraldo Souza Junior (Para um debate teórico-conceitual e político sobre os direitos humanos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016)” para, não só afastar “o mito de neutralidade e buscando processos de democratização da justiça a partir, inclusive, da sua reorientação aproximada da realidade brasileira”, mas para afirmar, nesse passo, que “são os sujeitos coletivos que conferem sentido à soberania popular”, e que, afirmam uma “participação política da comunidade [indígena]” expressão dessa subjetividade coletiva que se faz titular de direitos em perspectiva inter-sistêmica, juridicamente plural.
Sobre essa consideração remeto ao meu artigo Constituição Federal, 35 Anos: Ainda uma Disputa por Posições Interpretativas, publicado em FACHIN, Luiz Edson; BARROSO, Luís Roberto; CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza (Coordenadores). A Constituição da Democracia em seus 35 Anos. Belo Horizonte: Fórum, 2023. Entretanto, penso, que a obra publicada pelo ISA, com a autenticidade que remarca todas as contribuições e elementos nela reunidos, se constitui verdadeira plataforma para sustentar as melhores e mais bem posicionadas interpretações para realizar as promessas da Constituição, notadamente na questão indígena.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
O Apagão no Amapá: os Movimentos Sociais e o Direito Fundamental à Energia Elétrica
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
Lêda Simone Lima Rodrigues. O Apagão no Amapá: os Movimentos Sociais e o Direito Fundamental à Energia Elétrica. Dissertação de Mestrado. Brasília: Faculdade de Direito da UnB/Programa de Pós-Graduação em Direito, 2023, 99 fls.
Com muita satisfação participo de banca examinadora de dissertação de mestrado, a primeira que integro, no contexto do programa insterinstitucional que celebraram a UnB, sua Faculdade de Direito e o Programa de Pós-Graduação em Direito e a Escola de Magistratura do Tribunal de Justiça do Amapá. Compartilho a banca com o orientador, professor Antonio Sérgio Escrivão Filho (FD/UnB), Professora Adriana Nogueira Vieira Lima, da Universidade Estadual de Feira de Santana e Professora Roberta Amanajás Monteiro, do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP); Assessora Jurídica da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal (6ª CCR/MPF).
Participei de atividades docentes no projeto interinstitucional, desenvolvendo a disciplina O Direito Achado na Rua que certamente, trouxe muitas sugestões para os pesquisadores do projeto incluindo, explicitamente, a autora da Dissertação.
Não só por esse trabalho, agora submetido a escrutínio de validação acadêmica. Mas na medida de aceitação dos fundamentos político-teóricos que dão lastro à disciplina. Basta ver a criação, ao tempo de realização do projeto, da coluna Coluna: O Direito achado nas ruas, campos, rios e florestas amapaenses (http://odireitoachadonarua.blogspot.com/search?q=direito+achado+nos+campos+amapaenses), cujo texto inaugural – seguiram-se outros – com o mesmo título, foi publicado na Gazeta do Amapá, edição de 23/01/2022, chamada de capa e página 17, com a assinatura do Desembargador João Guilherme Lages Mendes.
Lembra o autor do artigo e responsável pela Coluna, também pesquisador do projeto interinstitucional, os seus objetivos e o propósito da Coluna:
O Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília (UnB) e o Instituto Federal do Amapá (IFAP), em parceria com a Escola Judicial do TJAP (EJAP) realizam, virtualmente, o curso de Mestrado Interinstitucional (MINTER), inaugurado por edital para preenchimento de 27 vagas, dentre as quais 25 de ampla concorrência e duas destinadas às cotas raciais e indígenas.
Lograram êxito na aprovação Marlucio de Sousa Nascimento; Esclepíades de Oliveira Neto; Marcos Daniel Colares Barrocas; Eliel Cleberson da Silva Nery; Dheyme Melo de Lima; Cássio Paraense Borges; Lucas Bitencourt de Souza; Ulisses Paulo Lobato Gomes Júnior; Paulo César do Vale Madeira; João Guilherme Lages Mendes; Emílio Balieiro de Souza; Lêda Simone Lima Rodrigues; Naif José Maués Naif Daibes; Moisés Ferreira Diniz; Fabiana da Silva Oliveira; Andressa Barbosa Silva Gurgel do Amaral; Antonio Jamerson Mendes da Rocha; Brenno Marlon Oliveira da Silva; Phylipe Marques Santiago; Joelma Veneranda de Carvalho; Sônia Regina dos Santos Ribeiro; Antonice Pinho de Melo; Adão Joel Gomes de Carvalho; Angela Do Socorro Paiva Ferreira; Antero da Gama Machado; Anibal dos Santos Dias e Lucien Rocha Lucien.
O curso organiza-se em uma área de concentração intitulada “Direito, Estado e Constituição”, com cinco linhas de pesquisa (MOVIMENTOS SOCIAIS, CONFLITO E DIREITOS HUMANOS; CONSTITUIÇÃO E DEMOCRACIA; INTERNACIONALIZAÇÃO, TRABALHO E SUSTENTABILIDADE; TRANSFORMAÇÕES NA ORDEM SOCIAL E ECONÔMICA E REGULAÇÃO e CRIMINOLOGIA, ESTUDOS ÉTNICOS-RACIAIS E DE GÊNERO), sendo ofertadas seis disciplinas 1) Prática Ensino e Formação em Direito (Prof.: Fabiano Hartmann Peixoto); 2) Filosofia Política e Direito Constitucional (Prof.: Guilherme Scotti Rodrigues); 3) O Direito Achado na Rua (Prof.: José Geraldo de Sousa Junior); 4) Direito e Análise de Políticas Públicas (Prof.: Ana Cláudia Farranha); 5) Direito internacional (Prof.: Inez Lopes) e 6) Justiça de Transição no Brasil (Prof.: Eneá de Stutz e Almeida), totalizando 24 créditos.
As aulas iniciaram-se em agosto/2021 e, até dezembro próximo passado, concluímos 8 créditos (duas disciplinas). No último dia 18 iniciamos a terceira denominada ‘O Direito Achado na Rua’, com o Professor Titular da UnB, o Doutor JOSÉ GERALDO DE SOUSA JUNIOR, que ensina, faz extensão e pesquisa na área de Direito, com ênfase em Teoria do Direito, principalmente nos seguintes temas: direito achado na rua, direito, cidadania, direitos humanos e justiça, cujo currículo pode ser visualizado na Plataforma Lattes (https://lattes.cnpq.br/).
A expressão “O Direito Achado na Rua” foi criada por Roberto Lyra Filho, a partir de seus estudos de teoria jurídica, social e criminológica, constituindo-se numa das mais antigas linhas de pesquisa da UnB (1987), certificada pelo CNPq. Com a morte de Lyra Filho, e sob coordenação dos professores José Geraldo Sousa Junior e Alexandre Bernardino Costa, o Direito Achado na Rua foi implementado em 1987 como curso à distância coordenado pelo Núcleo de Estudo para a Paz e Direitos Humanos (NEP) e pelo Centro de educação à distância (CEAD), da UnB.
A Dissertação de Lêda Rodrigues se apresenta ao impulso desse projeto e sob perspectiva declaradamente assumida, conforme o resumo do trabalho:
Esta pesquisa aborda a possibilidade de inclusão do acesso à energia elétrica no rol de direitos fundamentais da Constituição Federal do Brasil de 1988. Para tanto, promove-se uma análise, a partir do estudo de caso único, de um episódio na história recente do Amapá, que deixou 90% do estado sem o fornecimento de energia elétrica. Esse evento ficou conhecido como Apagão, ocorreu entre os dias 03 e 24 de novembro de 2020, e favoreceu uma série infortúnios no cotidiano daquela sociedade, inclusive influenciou diretamente no adiamento da data das eleições municipais. Narra-se o dia a dia do sinistro, o comportamento da população nas noventa horas de blecaute total, as providências e os encaminhamentos das autoridades e dos órgãos responsáveis pelo fornecimento de energia elétrica; o sistema de rodízio ineficaz no abastecimento de energia elétrica, assim como a ocorrência de outros cinco blecautes após o restabelecimento do fornecimento de energia elétrica. Na investigação, realiza-se um levantamento sobre a importância e a necessidade do acesso à energia elétrica no cotidiano da sociedade atual e como essa ausência viola os direitos humanos, identificando onde reside a dependência, quais os direitos que foram impactados negativamente pelo apagão energético e quais medidas judiciais foram tomadas para remediar a problemática. Discorre-se sobre a função social da energia elétrica e como ela contribui para o bem-estar social e para dignidade da pessoa humana. Apresentam-se as manifestações dos movimentos sociais em desfavor do apagão energético no Amapá e como eles, historicamente, contribuem para a evolução social. Alinha-se toda a abordagem à teoria d’O Direito Achado na Rua, desenvolvida a partir das ideias de Roberto Lyra Filho e coordenada pelo Professor José Geraldo de Sousa Júnior, para consubstanciar o entendimento de que os movimentos sociais são porta-vozes dos clamores populares por mudanças que se urgenciam na sociedade e que o Estado e os políticos precisam estar atentos para essas transformações históricas que ensejam atualização legislativa. Para então, compreender que o acesso à energia elétrica, na atual conjuntura mundial, é um direito genuinamente humano, portanto, passível de compor o rol dos direitos fundamentais.
Logo se percebe que o estudo vai além dos requisitos acadêmicos, teórico-metodológicos que organizam o estudo, a dissertação traz uma contribuição originalíssima, quanto ao tema, vale dizer, discorrer sobre a função social da energia elétrica e como ela contribui para o bem-estar social e para dignidade da pessoa humana, “para então, compreender que o acesso à energia elétrica, na atual conjuntura mundial, é um direito genuinamente humano, portanto, passível de compor o rol dos direitos fundamentais”. A pesquisa oferece também um inédito estudo de caso, localizado mas com potência globalizante, para se constituir efeito-demonstração do alcance expandível da pauta dos direitos fundamentais. Assim como, metaforicamente, diria Fernando Pessoa (Alberto Caieiro):
O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
Assim é que a Dissertação se organiza em três capítulos nucleares, definidos pela Autora (pp. 13-14):
No primeiro capítulo, intitulado “O caso do Amapá: a história de um apagão”, realizou-se a descrição do apagão energético que atingiu o estado do Amapá entre os dias 03 e 24 de novembro do ano de 2020, através de um diário. A narrativa dessa inesperada (talvez previsível) ocorrência particular, de natureza empírica, inaugurou uma nova situação, por meio de um perverso experimento realístico, que revelou a dependência da sociedade contemporânea por energia elétrica, assim como foi capaz de apontar as evidências, exibir as consequências e registrar os impactos maléficos causados pela falta desse serviço essencial no cotidiano das pessoas. Esse relato também apresentou as manifestações social (dos populares, das pessoas públicas, das entidades e das organizações pró sociedade de alcances nacional e internacional) e oficial (dos órgãos envolvidos, dos governos Federal, Estadual e Municipal, dos políticos, da polícia, das justiças comum e eleitoral) que movimentaram as ocorrências do antes, do durante e do depois do sinistro, no sentido de resolver, postular ou reivindicar sobre o imbróglio.
No segundo capítulo, denominado “Os direitos impactados pelo apagão”, apresentaram-se os efeitos negativos da ausência de energia elétrica no cotidiano dos consumidores (nas instituições públicas e privadas, no comércio e nas residências) e os mecanismos adotados para passar pela intempérie. Averiguaram-se as demandas judicializadas nas esferas estadual, nacional e internacional, que pela morosidade do judiciário ainda estavam tramitando até o fechamento desta pesquisa, e ainda analisaram-se os impactos nocivos do apagão sobre os direitos fundamentais da sociedade, a partir dos pressupostos conceituais e das categorias de indivisibilidade e de interdependência dos direitos humanos, com a finalidade de estabelecer uma fundamentação ao direito ao acesso à energia elétrica.
No terceiro capítulo, nomeado “A sociedade em mutação”, articulou-se sobre a evolução da sociedade e a participação dos movimentos sociais nesse processo; registrou-se a contribuição da teoria O Direito Achado na Rua no amparo e no anteparo dos movimentos sociais enquanto, também, legítimos autores de fontes de direito e, por derradeiro, abordou-se sobre as viabilidades do enquadramento constitucional do acesso à energia elétrica no rol de direito social. Na sequência, como arremate, as considerações finais do aprendizado e da compreensão resultantes da pesquisa.
O Sumário da Dissertação expande analiticamente o conteúdo proposto:
INTRODUÇÃO
CAPÍTULO 1 – O CASO DO AMAPÁ: A HISTÓRIA DE UM APAGÃO
1.1. SINT TENEBRAE! NOVENTA HORAS SEM ENERGIA ELÉTRICA
1.2. ROTATIONIS! REVEZAMENTO DESORDENADO GERA ONDA DE PROTESTOS
1.3. CONTINUOS BLACKOUTS! O SEGUNDO, O TERCEIRO, O QUARTO E O QUINTO APAGÃO.
O FIM DO RODÍZIO
CAPÍTULO 2 – OS DIREITOS IMPACTADOS PELO APAGÃO
2.1. A FALTA DE ENERGIA ELÉTRICA NO COTIDIANO
2.2. O PANORAMA DA JUDICIALIZAÇÃO SOBRE O APAGÃO
2.3. OS DIREITOS HUMANOS E O DIREITO À ENERGIA ELÉTRICA
CAPÍTULO 3 – A SOCIEDADE EM MUTAÇÃO
3.1. FIAT TENEBRAE! QUANDO OS MOVIMENTOS SOCIAIS ENXERGAM NA ESCURIDÃO
3.2. FIAT LUX! O DIREITO ACHADO NA ESCURIDÃO
3.3. O ACESSO À ENERGIA ELÉTRICA COMO DIREITO FUNDAMENTAL
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
ANEXO A: IMAGENS RELACIONADAS AO APAGÃO NO AMAPÁ
Percorrendo o texto do fim para o começo, ressalto das conclusões, a consideração segundo a qual “nesta pesquisa foi viável demonstrar que o acesso à energia elétrica tem um condão de ser enquadrado como um direito fundamental, pois a sua ausência macula à garantia das necessidades mais vitais dos indivíduos, aviltando os direitos humanos, que por sua vez, regem as relações entre indivíduos, entre estes a sociedade e o Estado. Pois foi justamente porque ocorreu uma sucessão de violação de direitos que inúmeras manifestações sociais se levantaram em desapreço pelos impactos maléficos que o apagão energético ocasionou no estado do Amapá no mês de novembro do ano de 2020. A população indignada foi às ruas para protestar. Pessoas públicas no país, fizeram campanhas de arrecadação de água potável e de alimentos. Onze entidades sociais manifestaram apoio a vítimas do blecaute no Amapá por meio de manifestos, publicações, campanhas de arrecadação e de cobrança das autoridades, protocolização de documento exigindo esclarecimento, interposição de medida cautelar e até disponibilização de modelo de petição para ressarcimento dos danos”.
Aliás, quando contribui para a obra Comentários Críticos à Constituição da República Federativa do Brasil. Gabriela Barreto de Sá, Maíra Zapater, Salah H. Khaled Jr, Silvio Luiz de Almeida (Coordenadores); Brenno Tardelli (Organizador). São Paulo: Editora Jandaíra (Carta Capital), 2020, obra da qual um dos organizadores é hoje ministro dos Direitos Humanos, lembrei (http://estadodedireito.com.br/comentarios-criticos-a-constituicao-da-republica-federativa-do-brasil/) que na linha de comentários celebratórios, não se deve ignorar a incompletude concretizadora do projeto ainda em construção da Constituição de 1988 e as tensões que ele vivencia, nesse contexto de retirada de direitos (http://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/7230-a-constituicao-e-ainda-projeto-de-construcao), numa publicação do IHU-Unisinos (IHU On-Line, Revista do Instituto Humanitas Unisinos, n. 519, ano XVIII, 9/4/2018, p. 67-71): o processo em curso teve início com o afastamento da presidenta da República eleita, se faz atentado à Democracia, à Constituição e, em última análise, aos trabalhadores, com a Constituição arguida contra a própria Constituição. Ou ainda com iniciativas de reformas constitucionais e legislativas, retirando direitos, transferindo ativos e reorientando o orçamento público para transferir o financiamento de políticas sociais para subsidiar a lucratividade financeira e industrial em nítido movimento de estrangeirização O que nos impõe postura de engajamento, resistir em face de ameaças e avançar sem temer enfrentamentos, sabendo que as energias utópicas acumuladas nessa experiência podem animar o protagonismo que mobilize, nas crises, as forças emancipatórias do social.
Desse modo, os direitos inscritos no art. 6º da Constituição de 1988, resumem e traduzem o grande programa social formulado pelos Movimentos Sociais (Populares e Sindicais). Agora, sob ataque direto justificando.cartacapital.com.br/2016/09/12/direitos-sociais-garantidos-pela-constituicao-estao-sob-ataque-de-um-governo-ilegitimo-2/, tal como conferido pelo professor Pedro Pulzatto Peruzzo, abre-se a perspectiva de que o próprio Judiciário, que sobre esse dispositivo pouco tivesse diretamente constrangido as promessas nele contidas, ao contrário, como mostra o professor Peruzzo, houvesse inclusive iniciado uma hermenêutica de proibição de retrocesso social, sustentando haver obstáculo constitucional à frustração e ao seu inadimplemento pelo poder público, ou em perspectiva de controle constitucional de políticas públicas, tenha afastado a dirimente da reserva do possível que não se constitui justificativa para que o Poder Público possa se eximir das obrigações impostas pela Constituição, renda-se ao movimento neo-liberal de desconstituição desses direitos e do programa social nele investido.
Mais que nunca descortina-se a preocupação já anunciada por Gomes Canotilho, acerca da multiplicidade de sujeitos que se movem no debate constitucional contemporâneo que tende a abrir expectativas de diálogo político estruturado na linguagem do direito, gerando na expressão dele, “posições interpretativas da Constituição” que emergem desse processo e formam uma luta por posições constituintes, luta que continua depois de aprovada a constituição (CANOTILHO, J. J. Gomes. Cf. Entrevista que me concedeu: Pela Necessidade de o Sujeito de Direito se Aproximar dos ‘Sujeitos Densos’ da Vida Real. Constituição & Democracia. Brasília: Faculdade de Direito da UnB, n. 24, julho de 2008, p.12-13) tal como se deu, por exemplo, no STF na decisão unânime em reconhecimento à constitucionalidade das cotas raciais para acesso à universidade (ADPF 186).
Em Trabalhadores pobres e cidadania, Nair Heloisa Bicalho de Sousa, apoiada em enunciados de Tradição, Revolta e Consciência de Classe (E. P. Thompson), trata exatamente do processo de formação do sujeito coletivo na construção civil a partir da vida em família, da experiência de trabalho nos canteiros de obra e da cidadania do protesto presente nos quebra-quebras, onde os trabalhadores usam a violência para garantir direitos até a vivência das greves operárias, momentos de configuração emergencial do sujeito coletivo. Com base nas suas experiências no mundo privado e nos conflitos vivenciados no cotidiano de trabalho, nos quebra-quebras, nas greves e nas representações sociais sobre justiça, lei e direito, a Autora constata a configuração de uma identidade de interesses compartilhados eu tornam possível a instrumentalização de uma luta coletiva pela criação de direitos.
A tese exposta no livro reforça o significado transformador presente na ideia de redescoberta democrática do trabalho, como condição para projetar um novo mundo possível. Ainda que empurrados para o limite da exclusão com a supressão dos direitos da cidadania, a luta operária e sindical, quando articulada à questão da justiça, abre um campo simbólico nas representações culturais da ação, para o autoreconhecimento de um sujeito coletivo, capaz de se tornar protagonista de estratégias de alcance público que garantem legitimidade e reconhecimento para suas demandas e seu projeto de sociedade e de mundo.
Penso que esse é o principal achado da pesquisa de Lêda, quando remarca a luta pela mediação da cidadania. Ela diz:
A energia elétrica é essencial para toda sociedade, mas a garantia de acesso a ela não é alcançada por todos os seus componentes, sobretudo, por conta do fator financeiro. Mas, o Estado tem obrigação de garantir minimamente esse acesso por meio de políticas públicas que assegurem o uso da energia elétrica, promovendo a justiça social. Aqui não há defesa para gratuidade sem parâmetro ou endosso para inadimplemento voluntário, mas, que o acesso seja garantido para todos indistintamente e, que as pessoas menos favorecidas sejam assistidas por ações estatais voltadas para o auxílio na manutenção eficaz desse acesso. Entretanto, na atual conjuntura, somente as políticas públicas não têm assegurado esse acesso, em virtude, sobretudo, dessa temática ser abordada por leis infraconstitucionais, o que permite um descaso de tratamento que não condiz com a real importância do assunto para o bem-estar das pessoas. Em vista disso, necessário se faz que o acesso à energia elétrica seja incluído ao rol de direitos fundamentais, e que seja tratado como um direito social, uma vez que todas as características e os requisitos para essa condição o acesso de energia elétrica preenche, pois a sua dimensão social está intrinsecamente relacionada à dignidade, ao bem-estar e à comodidade para o indivíduo viver em sociedade.
É desse modo que os direitos se expandem e se instituem. Por isso diz a professora Marilena Chauí que a democracia não é somente uma forma de governo. É também uma forma de sociedade. E se caracteriza por ser um sistema de criação permanente de direitos, pois os direitos não são quantidades, são relações.
Assim foi, por exemplo, com a criação por expansão de expectativas do Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas. Conforme pudemos destacar no livro Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas: enunciados jurídicos. Organizadoras e organizadores Valéria Torres Amaral Burity, Antonio Escrivão Filho, Roberta Amanajás Monteiro, José Geraldo de Sousa Junior (Organizadores). Brasília: FIAN Brasil e O Direito Achado na Rua, 2021, 195 p. (http://estadodedireito.com.br/28954-2/), inferimos pressupostos e intencionalidades que dão conta de pretensões políticas, agudamente interpelantes, que a FIAN Brasil (Organização pelo Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas) traduz numa expressão de lutas sociais inscritas na consigna “Exigir Direitos, Alimentar a Vida”.
Trabalhamos essa agenda de lutas, entre organizadores e autores, presentes na banca Antonio Escrivão Filho e Roberta Amanajás. Na obra, com Escrivão e Renata Carolina Correia Vieira trouxemos à reflexão o tema O Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas em tempos de expansão judicial.
Volto à Dissertação e a sua conclusão:
Assim, tem-se um pretexto para responder a problemática da pesquisa. O acesso à energia elétrica auxilia positivamente no cotidiano da sociedade, porque a sua função social na contemporaneidade é de contribuir para o alcance da qualidade de vida, para o bem-estar e para a comodidade das pessoas em sociedade.
Lêda, com forte e bem construída fundamentação, divisa o potencial interpelante da tragédia como uma possibilidade de expansão dos direitos fundamentais constitucionalizáveis. Concordo com ela. Mas abro um questionamento.
Em boa medida e com rápido acolhimento político, editorial e jurídico, a resposta judicial foi instantânea: interdições, ajustamentos de conduta, projetos legislativos, multas. O mundo assimilável do consumo.
Mas Lêda joga suas expectativas de alargamento dos direitos, como resultado de mobilizações da cidadania, dos movimentos sociais, do protesto, na perspectiva de uma pauta de reconhecimento dos direitos humanos e neles inscrita a função social da energia elétrica. Até de vale de nossos pressupostos, meus e do seu orientador, conforme o nosso Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos (Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2021).
Ela põe em relevo, nesse aspecto, as iniciativas de organismos de defesa de direitos humanos e da cidadania, como a ONG Terra de Direitos, a Intervozes, que por diferentes fundamentos levaram a demanda de reparação à Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Um lugar crítico para reconhecer os enunciados dessa formulação. Afinal, foi nesse lugar, notadamente sob a presidência do juiz brasileiro Antonio Augusto Cançado Trindade que se deu o alargamento criativo do alcance dos direitos humanos, assim por exemplo, o de reparação não apenas indenizatória mas de reposição da dignidade ofendida por violação de projetos de vida.
Mas o próprio Cançado Trindade, que define o projeto de vida (Sentencia de 19 de noviembre de 1999, Caso Villagrán Morales y Otros – Caso de los Niños de la Calle), como a disponibilidade das condições integráveis ao universo conceitual do direito de reparação quando violado, porquanto “el proyecto de vida se encuentra vinculado a la libertad, como derecho de cada persona a elegir su próprio destino. (…) El proyecto de vida envuelve plenamente el ideal de la Declaración Americana (de los Derechos y Deberes del Hombre) de 1948 de exaltar el espíritu como finalidade suprema y categoria máxima de la existência humana”, adverte para alguns obstáculos, com implicações na construção de aberturas hermenêuticas para a expansão de direitos.
Cançado Trindade se refere ao obstáculo epistemológico do positivismo jurídico, na sua versão mais vulgarizada e empobrecida, ainda hegemônica na formação jurídica e na atividade judicial, responsável por impedir relativamente ao reconhecimento e à proteção dos direitos humanos, um entendimento mais avançado contido em interpretações dinâmicas ou evolutivas dos tratados internacionais, baldas de respostas criativas da própria ciência do direito impossibilitada de libertar-se das amarras daquele pressuposto explicativo do conhecimento jurídico (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de (org). O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2015).
Como Lêda avalia esse obstáculo, para além de seus próprios argumentos criativos? Estarão o sistema institucional de justiça e seus operadores atentos aos direitos achados nas ruas, nas águas, nos campos amapaenses, conforme ela e seus colegas do programa que contribuiu para o desenvolvimento de sua dissertação, se deram conta ao criarem a Coluna na Gazeta do Amapá?
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
Da Justiça da Desigualdade à Justiça da Diversidade
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Lido para Você,
Da Justiça da Desigualdade à Justiça da Diversidade. Lenice Kelner (Org). [Livro Eletrônico]. 1ª edição. Blumenau-SC: Edição dos Autores, 2023.
Lançamento recentíssimo, no formato e-book (recurso eletrônico), eis o Sumário da obra, com os títulos e autores e autoras:
Prefácio
En la senda lascasiana
Eugenio Raúl Zaffaroni
O direito achado na rua: a desigualdade e a diversidade
José Geraldo de Sousa Júnior
Da (Des)Igualdade Histórica na Questão de Gênero e Raça
Roberta Duboc Pedrinha
O monitoramento eletrônico de pessoas noâmbito penal: gênese e regulamentação legal no Brasil
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth
O Direito da Cannabis no Brasil: medicina, guerra às drogas e manutenção do poder na sociedade capitalista
Marcia Dinis
Jurisdição constitucional (ADI), STF, direitos humanos e às diversidades: políticas públicas na pandemia de COVID-19
Fabricio Ricardo de Limas Tomio
O paradoxo das cidades inteligentes e a negligência da gestão pública em nossas vidas: o caso do saneamento
José Irivaldo Alves Oliveira Silva
Conquista da América: imposição da cultura moral e legal aos povos originários da América Latina
Jorge Henrique Schaefer Martins
A Lei 12.594/2012 (Lei do SINASE) dez anos depois: ensaio em defesa de uma perspectiva decolonial sobre a responsabilização infracional e a socioeducação no Brasil
Hamilton Gonçalves Ferraz; Wanda Muniz; Danilo Sardinha
Manifesto negro por uma educação jurídica antiracista
Luciano Góes
Vou ao Prefácio, elaborado pela Organizadora professora Lenice Kelner, Coordenadora do seminário e professora da FURB, que explica e situa a publicação:
É com imensa alegria que prefaciamos o livro Da Justiça da Desigualdade à Justiça da Diversidade, que foi fruto das pesquisas apresentadas no Seminário Da Justiça da Desigualdade à Justiça da Diversidade que aconteceu na Universidade Regional de Blumenau (FURB) de 22 a 25 de novembro de 2022, com verba da Fundação de Amparo à Pesquisa em Santa Catarina (FAPESC).
Esse seminário, que durou 4 dias, trouxe os debates tão necessários para a academia, e engrandeceu toda a graduação e pós-graduação do Curso do Direito da FURB, que teve o apoio do Centro de Ciências Jurídicas (CCJ), Programa de Pós-Graduação em Direito, especialmente o Mestrado em Direito (PPGD), e o Diretório Clóvis Bevilaqua (DACLOBE).
Os palestrantes apresentaram suas pesquisas com aderência a proposta do evento, articulando os estudos sobre as garantias fundamentais e os direitos humanos a partir de uma sensibilização e de uma crítica à realidade jurídica e social no Brasil e na América Latina. Territórios que convivem com a proliferação de sistemáticas crises que aprofundam às desigualdades sociais, econômicas e étnicas. Deste modo, a nossa proposta percorre os contornos das necessidades imediatas em torno da reflexão e da problematização dos elementos ligados a necessidade de superação de tais paradigmas a partir de um olhar das experiências ligadas aos estudos em torno do constitucionalismo homologado, desde a emergência da Carta Magna de 1988.
Os alcances sociais, econômicos e ambientais desta proposta refletem a necessidade de aproximar e tensionar o campo do direito com relação aos cenários contemporâneos de desigualdades – sociais, étnicas e econômicas – que atingem tanto a realidade latino-americana, quanto a realidade brasileira. Tal cenário de desigualdades constitui-se como um grande desafio para uma leitura crítica em torno do nosso tempo presente e, como tal, as ciências jurídicas e o próprio direito necessitam operacionalizar suas ferramentas conceituais e metodológicas na leitura em torno dos elementos ligados a defesa da Constituição, do pluralismo cultural e da diversidade.
Desse modo, o evento contribuiu para a sensibilização dos elementos críticos em torno dos direitos humanos e das garantias fundamentais, a partir das suas capilaridades e transversalidades. Os recursos envolvidos no desenvolvimento desta atividade compreendem à composição de palestrantes provenientes de instituições reconhecidas como espaços de formação intelectual no campo do direito e/ou das ciências jurídicas. Essas instituições são: a) Universidade de Buenos Aires (UBA); b) Universidade de Brasília (UNB); c) Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS); d) Universidade Federal do Paraná (UFPR); e) Universidade Federal Fluminense (UFF); f) IAB – Instituto dos Advogados Brasileiros; g) Universidade Federal de Campina Grande (UFCG); h) UNIJUÍ; i) Universidade Federal Santa Catarina (UFSC); j) UNILASALLE.
Destaca-se que as atividades propostas pensaram os contornos para o acesso a uma justiça amparada em um contexto de pluralidade cultural a partir de uma abordagem crítica e voltadas para à inclusão social, investigando a degradação dos direitos da pessoa humana, analisando o aumento da violência institucional das pessoas mais vulneráveis da sociedade brasileira, especialmente os empobrecidos, as mulheres, as crianças, os encarcerados, os negros, promovendo o respeito à diversidade cultural, a liberdade, e a Justiça, conforme as metas estabelecidas nos Objetivo 10 e 16 para o Desenvolvimento Sustentável (ODS) descrito na Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU).
Os objetivos foram alcançados, pois os debates foram sobre elementos estratégicos e interdisciplinares relacionados ao contexto da defesa da dignidade da pessoa humana, compreendendo os efeitos interdisciplinares em torno dos processos de desigualdades étnicas, de classe e sociais no contexto da realidade brasileira e correlacionando os efeitos da Convenção Americana de Direitos Humanos com os princípios constitucionais na sociedade brasileira, pois, buscou-se favorecer a sensibilização dos elementos ligados a uma justiça da diversidade no contexto brasileiro e promover, a nível nacional uma série de debates pertinentes aos campos das ciências jurídicas e/ou do direito.
Nesta obra você encontrará pesquisas dos professores Dr. José Geraldo de Sousa Junior, Dr. Eugênio Raul Zaffaroni, Dra. Roberta Duboc Pedrinha, Dr. Luciano Góes, Dr. Maiquel Dezordi Wermuth, Dr. Hamilton Gonçalves Ferraz, Dra. Wanda Muniz, Dr. Danilo Sardinha, Dr. Jorge Henrique Schaefer Martins, Dr. José Irivaldo Alves Oliveira Silva, Dra. Marcia Dinis e Dr. Fabricio Tomio.
Por fim, agradecemos a todos que contribuíram para o êxito deste evento, primeiramente a Fundação de Amparo à Pesquisa de Santa Catarina (FAPESC) e especialmente aos professores do Mestrado de Direito que foram mediadores das palestras, ao suporte técnico dos mestrandos em Direito e aos professores palestrantes que encaminharam seus artigos.
Em minha contribuição, tanto no Seminário, quanto no texto, quase ao modo da exposição que ali fiz, sob a perspectiva de O Direito Achado na Rua, revisito um tema sempre muito presente nas considerações que o Direito e a Justiça trazem para enfrentar o dramático problema da desigualdade, em si negação desses dois valores.
Assim, remeto aos livros Direito e Assistência Social, Organizado por Simone Aparecida Albuquerque, Karoline Ferreira Aires Olivindo, Sandra Maria Campos Alves. Brasília, DF: Fiocruz Brasília, Minstério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Série Direito e Assistência Social, 2014, 134 p.; e também, A Desigualdade no Brasil: deve e pode ser superda? Relatório sobre a dignidade humana e a paz no Brasil 2005-2007. Elaboração do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Francisco Whitaker Ferreira). São Paulo: Olho d’Água, 2007, 160 p., ambos lidos para indicar pontos relevantes no interesse de pesquisadores (http://estadodedireito.com.br/assistencia-social-e-a-desigualdade-no-brasil/).
E o que revelam esses livros, conforme a minha leitura? De um lado, perscrutar o que no social compõe o índice da indignação da população brasileira diante dos atentados à dignidade humana e à paz que ocorrem em nosso país. De outra parte, identificar por meio de qualificada pesquisa a medida da percepção da desigualdade persistente na sociedade, conformando atitudes de impotência que ou naturalizam as assimetrias da estratificação social ou confirmam que a quase totalidade das ações empreendidas permanece no nível de práticas assistenciais, sem efeito estrutural significativo. Vale dizer, subordinar-se a uma injunção da política que faz parecer que a desigualdade é fator endêmico de divisão em nosso país e não um chamado ao protagonismo na luta para a superação da injusta desigualdade.
Os livros conduzem uma abordagem portanto, para esse sentido protagonista e por meio dele expõe o quadro da desigualdade hoje no Brasil, confrontando os dados obtidos a um conjunto de reflexões que se irresignam com o conformismo naturalizador desse fato social: a desigualdade é mesmo natural?
É o que também distingo nas intenções do Seminário e da obra organizada pela professora Lenice Kelner, tanto quanto pude discernir em minha comunicação e no texto que a reflete, trazido para o livro: “O direito achado na rua: a desigualdade e a diversidade”.
Esses problemas, fecho o meu texto, desafiam a deflagrar hoje e em nome da democracia um movimento de mobilização permanente, de articulação e execução de ações concretas que transformem os sistemas de justiça, eliminando o caráter elitista, racista e patriarcal que historicamente foi tecendo a sua configuração.
Trata-se, antes de mais nada, de mirar a fraternidade e a solidariedade entre os povos como pilares necessários à construção de um mundo para todas, todos e todes.
Com essas atividades, alcançou-se o discernimento de que Democracia e Justiça não são resultado de lei ou regimento, mas estão inscritas no seio da sociedade e são impulsionadas pela avaliação e pela injunção crítica e contínua dos sujeitos coletivos que fazem a mediação entre sociedade e direito. São eles que constroem coletivamente a sua independência social com base nas interações permanentes no sentido de fazer a temática do nosso fórum: democracia e justiça, a nossa vida.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.5
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
Agenda Latino-Americana (Mundial) 2024. Entidade Organizadora: Comissão Dominicana de Justiça e Paz – Brasil (https://www.dominicanos.org.br/justica-paz). Goiânia (Secretariado), 2023, 312 p.
O folder notícia o lançamento brasileiro da Agenda Latino-Americana 2024. Além da entidade organizadora, contribuem para essa primorosa edição, uma rede de entidades parceiras, cujos logos aparecem na publicação, conforme figura a seguir inserida.
A iniciativa desse gênero de publicação é replicada em diferentes contextos pastorais. A propósito, veja-se a iniciativa mexicana – contacto@dabar.com.mx – que promove em seu sítio, um lançamento equivalente, com a designação de que:
En su género, el libro latinoamericano más difundido cada año dentro y fuera del continente. Signo de comunión continental y mundial entre las personas y las comunidades que vibran y se comprometen con las grandes causas de la Patria grande. Este año 2024 la Agenda Latinoamericana Mundial nos invita a reflexionar sobre nuestras propias raíces culturales, costumbres, forma de ver el mundo y todo ámbito de la vida que la colonización ha infectado, que nos hace partícipes de un modelo planetario que desde hace mucho es insostenible.
Em seu gênero, o livro latino-americano mais distribuído a cada ano dentro e fora do continente. Sinal de comunhão continental e global entre pessoas e comunidades que vibram e estão comprometidas com as grandes causas da grande Pátria. Neste ano de 2024, a Agenda Mundial Latino-Americana nos convida a refletir sobre nossas próprias raízes culturais, costumes, forma de ver o mundo e todas as áreas da vida que a colonização contagiou, o que nos torna participantes de um modelo planetário que há muito foi insustentável.
A edição mexicana traz um trecho da importante carta do Papa Francisco a juízes e juízas que há pouco se reuniram num seminário no Vaticano, sob o tema Colonização, Descolonização e Neocolonialismo, uma Perspectiva da Justiça e do Bem-Viver. O mesmo trecho está na edição em português (p. 158-159):
Já tive ensejo de comentar esse importante evento que contou com a participação de juízes e de juízas brasileiros, do que resultou, sob os fundamentos da convocação do Papa, instituir no Brasil, um capítulo brasileiro do Comitê Pan-Americano de Juízes e Juízas para os direitos sociais e Doutrina Franciscana – Copaju Brasil, tal como a minha ex-aluna Ananda Tostes Isoni, juíza do TRT 10ª região, integrante do Capítulo, ela própria falando no evento com uma belíssima exposição que a coloca, em sua perspectiva franciscana, no chamado então feito pelo Papa Francisco para a atuação judicante: “Vocês juízes, em cada decisão, em cada sentença, estão diante da feliz oportunidade de fazer poesia: uma poesia que cure as feridas dos pobres, que integre o planeta, que proteja a Mãe Terra e todos os seus descendentes. Uma poesia que repara, redime e nutre. Não renunciem a esta oportunidade. Assumam a graça a que têm direito, com determinação e coragem. Estejam ciente de que tudo o que contribuírem com sua retidão e compromisso é muito importante” (https://www.brasilpopular.com/vaticano-conferencia-sobre-colonialismo-descolonizacao-e-neocolonialismo/).
Ananda, suas colegas e seus colegas, já se integraram à agenda pastoral das Comissões de Justiça e Paz da Arquidiocese de Brasília – CJPDF e Comissão Brasileira de Justiça e Paz CBJP (https://www.brasilpopular.com/juizes-que-se-comprometam-a-realizar-as-promessas-democraticas-do-direito/), para uma atuação concertada segundo esses valores. Esse também é o teor de meu artigo na Agenda, ampliando esse enfoque que dialoga diretamente com a carta do Papa aos juízes e juízas da Conferência sobre Colonialismo.
Volto à Agenda Latino-Americana. A propósito, anoto não ser esta a primeira vez que trabalho na Coluna Lido para Você o tema agenda. Com efeito, sobre esse tema cuidei discorri fortemente conforme a minha apresentação de Agenda 2021. Cezar Britto e Advogados Associados/Advocacia Operária. Brasília: Projeto Gráfico 4Estaçõesestudio (http://estadodedireito.com.br/agenda-2021/).
Em meu comentário, sustentei que agendas e calendários, não são apenas brindes ou suporte para registro de compromissos. Algumas são catálogos de arte, espécie de breviários, manuais de uso. Reitor da UnB, entre 2008 e 2012, com o assessoramento da Secretaria de Comunicação e do Decanato de Graduação, então dirigido pela Professora Márcia Abrão, hoje Reitora em segundo mandato da universidade, dei especial atenção, inclusive acadêmica e comunitária a esses elementos.
Algumas das agendas anuais ou alusivas a efemérides, por exemplo, para marcar o cinquentenário da UnB, traziam inscrições: “Diálogo & Reflexão. Conversando ensinamos e aprendemos”; “Só se for agora! – os 50 anos da UnB” (Inovação. Rebeldia. Utopia. Diversidade. Modernidade. Pioneirismo. Coragem. Futuro. Ideologia. Conquista. Ruptura. Educação. Ebulição), chamamentos para o protagonismo, para ocupar os territórios acadêmicos, para percorrer as trilhas das muitas possibilidades que a universidade proporciona. Na agenda, mapas, lugares, orientações, tudo que cabe em boas-vindas.
Também os calendários não se constituem meras folhinhas. Em meu período reitoral, a atividade criativa fez desses elementos um atributo educador. A cada ano o calendário trazia arte e motivos educacionais em sua concepção. Nossos acervos arquitetônicos, artísticos, mobiliários.
Lembro, com saudade, de meu querido amigo e colega professor Luiz Gonzaga Motta, que faleceu neste ano. Tendo comentado com ele, que além de grande teórico da comunicação e referência em análise crítica da narrativa, sobre esse assunto, o Luiz que não esqueceu sua genealogia, sobrinho-neto de Dom Vasconcelos Motta, décimo quinto bispo de São Paulo, sendo seu terceiro arcebispo e primeiro cardeal, cuidou de lembrar a origem medieval do Livro das Horas que continha o calendário das festas e dos santos, as Horas da Virgem, da Cruz, do Espírito Santo e dos mortos, as orações comuns e os salmos penitenciais e que conforme a tradição e seu uso breviário, recebera ilustrações de grandes artistas do tempo.
O Professor Gonzaga Motta, mineiro de Santa Bárbara e atento cronista de suas tradições, recomendou-me anotar a célebre folhinha de Mariana. Conforme verbete – https://pt.wikipedia.org/wiki/Folhinha_Eclesi%C3%A1stica_da_Arquidiocese_de_Mariana (wikipedia) “a Folhinha Eclesiástica da Arquidiocese de Mariana, ou simplesmente Folhinha de Mariana, é um famoso calendário que é impresso anualmente. Diferentemente, porém, dos calendários convencionais, que mostram, normalmente, os dias do ano, os feriados nacionais e fases da Lua, a Folhinha de Mariana traz ainda orações, instruções religiosas, tabela do amanhecer e do anoitecer, datas das festas, dias de penitência, todos os santos católicos, horóscopo, feriados, época de plantio, resoluções da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e dados biográficos do Papa católico”.
A folhinha ainda hoje editada, teve a atenção de Carlos Drummond de Andrade, na crônica “A Boa Folhinha“: “Ela não quer iludir-nos com as pompas deste mundo. Adverte-nos que há dias de penitência, esta última comutada em obras de caridade e exercícios piedosos. Para cada dia do ano, o santo, a santa ou os santos que nos convém aceitar, como companheiros de jornada: breve companhia, companhia sempre variada, e o ano escoam sob luz tranqüila, mesmo que o tempo seja brusco e haja abundância de água. Vamos à boa, veraz, singela e insubstituível Folhinha de Mariana” (Jornal do Brasil, 27/12/1973, Primeiro Caderno, pág. 5).
A edição brasileira da Agenda Latino-Americana 2024 se estrutura conforme um índice enunciativo. Veja a seguir, dispondo sobre o alcance místico e pedagógico da proposta e as efemérides a que remete (incluindo o destaque martirológico do ano), a intenção fraterna da edição e as ligações com os serviços que dão sustentação aos pressupostos do livro-agenda.
Não percamos de vista que se trata, ao fim e ao cabo, de uma agenda-calendário, com os campos próprios para anotações e registros de compromissos. Mas, como agenda-livro reúne um repositório riquíssimo de contribuições de religiosos, teólogos, intelectuais leigos, acadêmicos leigos, missionários, ativistas de movimentos religiosos e de movimentos populares. Eles e elas procedem de 16 países, de todos os continentes, a maioria do Brasil. Seus textos, com a participação de 59 autores e autoras, individualmente ou em co-autoia. Incluo o Papa Francisco entre autores, mas também Leonardo Boff, Frei Betto, Ivone Gebara, Marcelo Barros, João Pedro Stedile, Lucas Araújo e Laura Leal Nosella (Levante Popular da Juventude, SP).
Os textos foram distribuídos conforme o arranjo metodológico do Ver (Analisar, Compreender); Julgar (Aprofundar, Discernir) e Agir (Mobilizar, Organizar). Eu próprio contribui com um artigo – Descolonizar o Mundo e a Vida, uma Missão Libertadora – valendo-me da exortação que orienta a linha suleadora da publicação.
Na apresentação Frei José Fernandes Alves, Mauro Kano e Sergio Ricardo Arcas de Abreu, salientam que a Agenda é “em seu gênero, o livro Latino americano mais difundido, cada ano, dentro e fora do Continente. Sinal de comunhão continental e mundial entre pessoas e comunidades que vibram com as Grandes Causas da Pátria Grande, como resposta aos desafios da Pátria Maior. Anuário da esperança dos pobres do mundo, a partir da perspectiva latino americana. Síntese da memória histórica da militância e do martírio da Nossa América. Ferramenta para a educação, comunicação e ação social. Da Pátria Grande para a Pátria Maior”.
A Agenda foi lançada em Brasília, conforme cartaz acima, na noite cultural do encontro de avaliação do Movimento Fé e Política. A vesperal teve a distribuição da Revista Casa Comum (Cuidar de Si, do Outro e do Planeta), nº 05, abr/mai/jun 2023 e o belíssimo livro Convite à Sociologia da Religião, de Pedro A. Ribeiro de Oliveira, que o apresentou (Daniel Seidel apresentou a Casa Comum). Enquanto Frei José Fernandes, OP, coordenador e Nazaré, secretária executiva da Rede da Agenda Latino-americana, a apresentou, rastreando a sua longa história editorial, seus eixos de interlocução pastoral, seus vínculos com as iniciativas congêneres no Continente. Convido que apreendam com mais profundidade, a conversa de Frei José Fernandes com Daniel Seidel, secretário executivo da CBJP sobre o tema da Agenda Latino-Americana 2024, que insistem em forjar a Rede Agenda. A Conversa pode ser conferida em Despertar com Justiça e Paz nº 120 – Agenda Latino-Americana 2024: decolonizar o mundo e a vida! (https://www.youtube.com/watch?v=VDT6RKYrCTc). Nela, animados por Daniel Seidel, Maria de Nazaré Carvalho Mendonça, da Secretaria Executiva do Secretariado Dominicano de Justiça e Paz do Brasil e Frei José Fernandes, relatam o origem da edição da Agenda, no Brasil, mobilizados por Dom Pedro Casaldáliga, e expõem os eixos prático-teóricos que balizam os temas e as abordagens que formam a agenda-livro, única em seu conceito.
Vejo no texto da Agenda, desde uma perspectiva de descolonização do mundo e da vida, disse isso em meu artigo, uma missão não só libertadora, no sentido de escapar dos reducionismos que a opressão e a espoliação produzem numa realidade de exclusão, mas a missão verdadeiramente emancipadora, aquela que não só liberta mas humaniza, pelo impulso daqueles elementos críticos, próprios dos espíritos livres, que se encharcam de humanismo e de esperança, e que aparecem com muita força na conversa que entretive com a teóloga Alzirinha Rocha de Souza, além de muitas outras lições, ela que é leiga, professora na PUC-MG (Doutora em Teologia pela Universidade de Louvain), num programa de Justiça e Paz, da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Brasília (https://www.youtube.com/watch?v=imN1sM2p3W4), sobre o tema “Ação, Missão e Liberdade. Aproximações entre Comblin e o Papa Francisco”.
Comblin não está evidenciado nos documentos da Agenda, mas a partir de Comblin, e sua teologia da missão (teologia da enxada ajustada ao contexto brasileiro e latino-americano), Alzirinha surpreende a função comunitária do trabalho do leigo e a importância do desenvolvimento de uma ação missionária em comunidade, impulsionada sim pelo Espírito, mas que traz a liberdade e a renovação da esperança: “o que movimenta a ação humana é a esperança de que essa ação transforme o mundo”. Isso que aparece como compreensão pastoral em Comblin (ação, comunidade, palavra, liberdade e espírito), ajuda a compreender uma ligação entre São Francisco(“evangelizar, se necessário, até com palavras” – não tenho a fonte, há até aquelas que negam tenha Francisco dito isso, mas ouvi a máxima do padre José Ernanne Pinheiro, conselheiro espiritual da CJP Brasília, amigo e estudioso de Comblin) e o Papa Francisco, combinando contemplação sim, como está em suas principais Encíclicas e Exortações, mas contemplação na ação, realizando-as em proposições sobre o que se pode construir a partir do agora, mas em conjunto, em comunidade, como povo de Deus, numa renovada louva-ação do cântico do irmão Sol.
Em estudo de altíssima profundidade – “A Experiência como Chave de Concretização e Continuidade da Igreja de Francisco” (Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 49, n. 2, p. 375-397, Mai/Ago. 2017), diz Alzirinha: “Destaco aqui uma característica do fazer de Francisco, a que julgo mais marcante e me parece essencialmente ligada a Aparecida, da qual, em minha opinião, decorrem todas as outras possíveis, que é a exigência da missionariedade e da proximidade para o anúncio do Evangelho. Ser missionário, como seus gestos demonstram, é estar ao nível do outro, olhar nos olhos, falar em condições de igualdade de uma Boa Nova, que talvez possa ser efetivamente boa para seu ouvinte. Essa é, de fato, a ‘nova evangelização’ esperada, que se representa por uma Igreja em saída que possa realmente ‘primeirear’ (cf. Papa Francisco: “tomar iniciativa”) nas ‘periferias existenciais e sociais’, anunciando esperança, caridade e misericórdia de Deus. Se, na inspiração de João XXIII, o Concílio (Vaticano II) seria um novo pentecostes, como nos lembra Galli, aos olhos daqueles que esperaram 50 anos para uma grande virada na Igreja, ele finalmente acontece neste papado…Os gestos de Francisco advêm de sua experiência e somente é capaz de dar testemunho aquele que faz primeiramente a experiência de Deus. Por isso realiza a forma mais alta da teologia prática ao fazer coincidir sua experiência de Deus, sua experiência pastoral, às exigências de homens e mulheres que demandam e esperam da Igreja uma resposta concreta às suas vidas”.
A Agenda permanece leal ao pensamento de Pedro Casaldáliga que a concebeu e lhe deu identidade: “É aqui que eu digo: malditos sejam o capitalismo e o colonialismo e a economia dependente e a ditadura!” (Na Procura do Reino), p. 307.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
Modo de aquisição: Todos RELATÓRIO DE EXEMPLAR. Processo de aquisição: Comodato Roberto Lyra Filho
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Título original: Modo de aquisição: Todos RELATÓRIO DE EXEMPLAR. Processo de aquisição: Comodato Roberto Lyra Filho seguido de Doação (Doador Daniel Bicalho de Sousa)
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
Universidade de Brasília, BCE – Biblioteca Central. Data de cadastro: 01/01/1962 a 23/05/2023 Modo de aquisição: Todos RELATÓRIO DE EXEMPLAR. Processo de aquisição: Comodato Roberto Lyra Filho seguido de Doação (Doador Daniel Bicalho de Sousa). Pergamum – Sistema Integrado de Bibliotecas. Conferência de materiais. Link para acesso ao catálogo:
Sobre o que representou a entrega do acervo à Universidade de Brasília, leia-se a matéria publicada no Boletim UnB, semana de 31/8 a 15/9 de 1988, “BCE ganha biblioteca de Lyra Filho”. Na edição se lê:
A biblioteca do professor Roberto Lyra Filho foi doada em testamento ao menor Daniel Bicalho de Souza, que representado por seu pai, o professor José Geraldo de Sousa Júnior, a cedeu em comodato à UnB. O contrato será renovado a cada três anos, no prazo máximo de 15 anos, até 30 de janeiro de 2003. Nesta data, Daniel alcançará a maioridade e decidirá o destino da biblioteca, podendo transformar o comodato em doação.
De fato, assim se deu, e ao cabo desse período, compreendendo o alcance de uma destinação que não poderia restar privatizada, o comodato foi, efetivamente transformado em doação.
O texto do Boletim teve caráter premonitório:
O novo acervo incorporado à Biblioteca Central da UnB permitirá a sua utilização coletiva e servirá como centro de documentação para jovens pesquisadores organizados no Núcleo de Estudos para a Paz e Direitos Humanos (NEP) da UnB. A universidade publicará catálogo visando a garantir a identidade da Biblioteca Roberto Lyra Filho, dele constando a transcrição do contrato de comodato, e na classificação do acervo indicará em cada um dos livros a propriedade de Daniel Bicalho de Sousa.
Inaugurando um modelo de cláusula contratual com conceitos, confira-se no fac-simile o enunciado desses conceitos, o ato de comodato e depois doação deveriam ter desdobramentos. Assim, por exemplo, para distribuir os livros no acervo geral da biblioteca, a cláusula quinta do Termo de Comodato previa que “A universidade publicará catálogo visando a garantir a identidade da ‘Biblioteca Roberto Lyra Filho’, dele constando a transcrição deste termo, e na classificação de acervo consignará em cada ítem, ex-libris…”. Devo dizer que o ex-libris, com todo o alcance que esse símbolo representa (cf. BERTINAZZO, Stela Maris de Figueiredo. Ex-Libris. Pequeno objeto de desejo. Brasília: Editora UnB, 2012), chegou a ser desenhado pelo pintor, artista gráfico, cenógrafo, desenhista, fotógrafo e professor, Charles Sebastião Mayer, do Instituto de Artes da UnB (https://noticias.unb.br/491-abertura-exposicao-charles-mayer-percurso-poetico), mas não chegou a ser aplicado.
Do mesmo modo, a iniciativa de criar na Editora da UnB, uma coleção emulativa, marcada pela inspiração criativa do grande professor, não passou da edição do primeiro e único volume que a constitui: Coleção Roberto Lyra Filho, FARIA, José Eduardo (org). A crise do direito numa sociedade em mudança (todos os artigos do mesmo autor). Brasília: Editora UnB, 1988. A concepção de capa que deveria servir ao primeiro volume e a todos os demais, também criação de Charles Mayer, a meu pedido. Até fiz um texto de apresentação da coleção que não saiu na edição mas que publiquei depois autonomamente como uma recensão.
Chama a atenção na primeira passada de olhos no Relatório (Catálogo), a polifonia: são obras em português, espanhol, italiano, inglês, francês, alemão. Ali estão 1028121 – Marx, Karl, Correspondance Correspondance Paris v. c1985 141.82 M392c =40 E. Cliente da Livraria Francesa em São Paulo, Roberto Lyra Filho, ele também um grande epistológrafo (veja a sua Carta Aberta a um Jovem Criminólogo. Teoria, práxis e táticas atuais. Revista de Direito Penal nº 28. Rio de Janeiro: Forense, 1980) e sobre seu lugar na Criminologia Crítica (cf. meu http://estadodedireito.com.br/criminologia-dialetica-50-anos-um-dialogo-com-o-legado-de-roberto-lyra-filho/), a propósito da obra celebratória de 50 anos da Criminologia Dialética de Roberto Lyra Filho. É uma obra completa, que serviu para pontuar posições interpretativas em sua leitura singular de Marx, como podemos ver nos roda-pés de Karl meu Amigo, Diálogo com Marx sobre o Direito (Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1983).
A babel polifônica está presente também nos títulos literários que fecundaram a verve do tradutor e do poeta vestido do pseudônimo Noel Delamare reverberação que ecoa no projeto Cancioneiro dos Sete Mares que pretendia reunir suas traduções de grandes poetas nos sete idiomas que dominava e que, curiosamente, se inicia com um poeta húngaro Endre Ady, em sua primeira edição em português a que deu o título Canção do Jacobino Húngaro (edição do Autor, 1979). Claro que a versão direta foi feita por seu dileto amigo, o húngaro Paulo Ronái (Escola de Tradutores, Não Perca o seu Latim: 35516 – Rónai, Paulo Não perca o seu latim coletânea de palavras e frases latinas… Não perca o seu latim Rio de janeiro 261 p. 1980 807.1-5 R768n), poeticamente reconstruída com o apoio das edições inglesas, francesas e italianas do grande poeta magiar. O trabalho trouxe para Roberto Lyra Filho um diploma concedido pela Academia de Letras da Hungria. Sobre essa sutileza linguística e criadora de Roberto Lyra Filho, que ilumina o repertório literário do catálogo, ver o meu In Memoriam: Indivíduo e Coletivo em Plena Harmonia (Revista Humanidades nº 11. Editora UnB, 1986/1987. Nesse número, dois textos: de Roberto Lyra Filho: A Nova Escola Jurídica Brasileira; de Noel Delamare: O Cancioneiro dos Sete Mares, p. 38-50).
Sobre idiomas no contexto de literatura e filosofia, é notável encontrar no Relatório (Catálogo), a descoberta do jovem quase adolescente, hoje celebrado, poeta brasiliense Nicolas Behr, nas suas primeiras edições ainda mimeografadas, que o próprio Autor, vencendo o cerco da censura da Ditadura (1964), vendia de mãos em mãos nas filas dos teatros e dos muitos cinemas ainda não transformados em templos, de Brasília: 1029177 – Behr, Nicolas Chá com porrada Chá com porrada Brasília; [32] p. 1978 869.0(81) B421ch; 10432989 1 22/12/2016 22/12/2016 Doação 40,00 Real Comodato Roberto Lyra Filho Normal Sousa, Daniel Bicalho de AGE FOLHETOS; 1029180 – Behr, Nicolas Iogurte com farinha Iogurte com farinha Brasília [42] p. 1977 869.0(81) B421io; 1029209 – Behr, Nicolas Caroço de goiaba Caroço de goiaba Brasília [34] p. 1979 869.0(81) B421ca.
E, grande preciosidade, das poucas disponíveis no Brasil, obras completas de Marx e Engels, nas edições alemãs da Werke: 52573 – Marx, Karl, Karl Marx , Friedrich Engels Werke Karl Marx , Friedrich Engels Berlin 46 v. 1956-[1989] 141.82 M392 SUPLEMENTO; 1027905 – Marx, Karl Opere di Marx ed Engels Opere di Marx ed Engels Roma v. c1980 141.82 M392 =50; e da italiana Einaudi: 1027905 – Marx, Karl Opere di Marx ed Engels Opere di Marx ed Engels Roma v. c1980 141.82 M 392 =50m10430037 1 02/08/2016 02/08/2016 Doação 40,00 Real Comodato Roberto Lyra Filho 49 Normal Sousa, Daniel Bicalho de ACERVO GERAL.
Não encontrei no rol os muitos dicionários que ele colecionava e visitava amiúde. Nem o Lalande andre – vocabulaire technique et critique de la philosophie (talvez porque me houvesse presenteado sua edição quase sabida de cór; nem Antonio Houaiss dicionario houaiss da língua portuguesa, de consulta cotidiana; nem os muitos dicionários técnico-filosóficos ou jurídicos, de rimas, de citações. Nem o Dicionário Analógico da Língua Portuguesa. Ideias Afins/Thesaurus, do Professor Francisco Ferreira dos Santos Azevedo (2ª ed. atualizada e revista. Rio de Janeiro: Lexikon, 2010).
Cito essa edição, lembrei esse fato em meu texto aqui para a Coluna Lido para Você-http://estadodedireito.com.br/dicionario-dos-antis-a-cultura-brasileira-em-negativo/-, a propósito do DICIONÁRIO DOS ANTIS: a cultura brasileira em negativo. Direção: Luiz Eduardo Oliveira / José Eduardo Franco (Orgs.). Campinas: Pontes Editores, 2021, 842 p (no qual minha editora Carmela Grüne escreveu um verbete), porque nele há um prólogo escrito por Francisco Buarque de Holanda, o Chico Buarque: Os Dicionários de Meu Pai. Claro que ele se refere a Sérgio Buarque de Holanda, o autor de Raízes do Brasil. Diz Chico, no prólogo:
“Pouco antes de morrer, meu pai me chamou ao escritório e me entregou um livro de capa preta que eu nunca havia visto. Era o dicionário analógico de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo. Ficava quase escondido, perto dos cinco grandes volumes do dicionário Caldas Aulete, entre outros livros de consulta que papai mantinha ao alcance da mão numa estante giratória. Isso pode te servir, foi mais ou menos o que ele então me disse, no seu falar meio grunhido. Era como se ele, cansado, me passasse um bastão que de alguma forma eu deveria levar adiante. E por um bom tempo aquele livro me ajudou no acabamento de romances e letras de canções, sem falar nas horas que eu o folheava à toa […]”.
Guardo com muito desvelo a minha edição, que recebi com uma dedicatória sensível de minha querida amiga Terezinha Ferreira Roller, me oferecendo para auxiliar meus estudos “o dicionário de meu saudoso pai…”. Terezinha me contou um fato curioso. O professor Francisco Ferreira levara os originais datilografados para a primeira edição, ainda antes de sua morte. O material, embrulhado num pacote, por alguma distração, foi esquecido num banco de jardim e perdeu-se. O professor não tinha cópia, teve que reescrever todo o texto e é essa dedicação que nos lega essa obra única.
Para minha surpresa só encontrei no catálogo um registro: 1028384 – Robert, Paul Le grand Robert de la langue française dictionnaire alphabétique et analogique de la langue française Le grand Robert de la langue française 2e éd., entièrement rev. Et enrichie Paris 9 v. c1985 801.3=40 R639d 2. Ed
Mas há muitas surpresas boas. Assim, encontrar, quando ninguém ainda mencionava, obras de Bauman já em português, além das obras em inglês, entre elas 163050 – Bauman, Zygmunt Por uma sociologia critica um ensaio sobre senso comum e emancipação Por uma sociologia critica Rio de janeiro 186 p. 1977 301 B347t =690 10431319 3 15/09/2016 15/09/2016 Doação 40,00 Real Comodato Roberto Lyra Filho Normal Sousa, Daniel Bicalho de ACERVO GERAL. E também, quando ainda pouco se falava em direitos indígenas, nesse sentido de direito originário, pré-cabralino, pré-estatal, pré-moderno, tal como agora se faz escorreitamente, graças ao protagonismo de intelectuais indígenas que estão sustentando esses direitos no Supremo Tribunal Federal, o estudo de meu querido amigo já falecido Julio Gaiger, da assessoria jurídica do CIMI – Conselho Indigenista Missionário, dos primeiros a levar essas teses para o debate constituinte em 1987-1988: 1029312 – Gaiger, Julio Marcos Germany Os índios podem viver a constituinte deve assegurar este direito Os índios podem viver Brasília 34 p. 1988 347.173(81) G137i.
Percorrendo os itens desse formidável acervo pode-se compreender a questão de método a que ele remete, quando se trata de colecionar as obras que o formam ou delas se valer para ensejar arranjos bibliográficos que sustentem campos de estudo ou de pesquisa. Seu antigo aluno, depois professor de alto reconhecimento e que alcançou a chefia do Ministério Público Federal, confessa emocionado a gratidão de um encontro fraterno e de aprendizagem, quando teve repartido consigo “os livros da sua biblioteca, o dinheiro do seu bolso e os pratos de sua mesa”, para haurir a sua filosofia, “reconhecidamente fecunda”, sem jamais ter sido “uma fragmentária apreensão de seu tempo com o pensamento, esgotando-se no próprio horizonte em que veio à luz”, mas que, ao contrário, “se mesmo contextualizada, como toda produção espiritual, ela continua viva e com energia bastante para preservar os seus antigos discípulos e ainda conquistar novos seguidores” (COELHO, Inocêncio Mártires. A Questão Roberto Lyra Filho. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2010). Por isso, ele diz, ainda que datadas muitas dessas obras, quando são outros os tempos e os problemas, “são sempre surpreendentes as novas leituras que fazemos de tudo quanto nos ocorre”; pois que “viver é descobrir, mas também reviver, revendo-as, as nossas próprias experiências; que todo reencontro é um novo encontro” (COELHO, Inocêncio Mártires. Roberto Lyra Filho e Miguel Reale: Duas Visões da Dialética Jurídica. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; SILVA FILHO, José Carlos Moreira da; CARVALHO, Salo de (Organizadores e Autores) Criminologia Dialética, 50 Anos. Um diálogo com o legado de Roberto Lyra Filho. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2022).
Outra não foi a consideração de Sara da Nova Quadros Côrtes (A ‘Dignidade Política do Direito’ e a ‘Dignidade Jurídica da Política’. No Caminho de Roberto Lyra Filho in Estudos de direito público: direitos fundamentais e estado democrático de direito / Alexandre Vitorino da Silva…[et al]. Porto Alegre: Síntese, 2003). Em seu estudo, procurando “expor as idéias principais de Roberto Lyra Filho acerca do direito, assim como, as bases filosóficas deste”, Sara fixa seus pressupostos de partida, para continuar a seguir a potência desses pressupostos, os seguintes pontos: “Continua o pensamento de Roberto Lyra Filho a ser marginal? Está ainda mais na periferia, hoje, do que no seu tempo ou conseguiu penetração na comunidade jurídica? A força da sua crítica foi aproveitada de forma autêntica no pensamento jurídico brasileiro?”.
E é a própria Sara que vai dar, vinte anos depois, respostas cabais a essa disposição interpelante. DIREITO ACHADO NA RUA: por que (ainda) é tão difícil construir uma teoria crítica do direito no Brasil?, Sara da Nova Quadros Côrtes, in O Direito Achado na Rua: Introdução crítica ao direito como liberdade / organizador: José Geraldo de Sousa Junior [et al.] – Brasília: OAB Editora ; Editora Universidade de Brasília, 2021. v. 10. 728 p. (p. 549-564):
No que nos cabe neste trabalho penso ser importante levantar agendas de pesquisa que possam perguntar sobre o sentido metodológico e político do elo “achado” do “Direito Achado na Rua”, não para, numa erudição estéril, criar questiúnculas metodológicas, mas sim para perguntar quem achou o que e onde? Esta questão alimenta um imaginário para dar vida longa a esta que, se configura, ainda hoje, como uma das mais potentes e permanentes escolas de pensamento crítico pois articula e orienta gerações na atuação da assessoria jurídica aos movimentos sociais. Em tempos de rupturas sociais e políticas profundas o questionamento sobre o “sujeito que acha” e qual o sentido do “achado” são tão importantes quanto o debate sobre o “direito” e a “rua” para alimentar uma vida longa para esta escola.
Roberto Lyra Filho já nos dava pistas ao tratar de ideologia, privilégios e arbítrios na formulação do direito e antidireito como concreto pensado, dialeticamente, afirmando que
Pense o leitor na energia com que o racista proclama a “superioridade” do branco sobre o negro; com que o machista denuncia a “inferioridade” da mulher diante do homem; com que o burguês atribui ao “radical” o rompimento da “paz social” (que é, na verdade, o sossego para gozar, sem “contestação”, os seus privilégios de classe dominante). (LYRA FILHO, 1982, p. 19-20).
Nesta sua obra “O que é Direito?” o autor afirma que
De qualquer maneira, em sistema capitalista ou socialista, a questão classista não esgota a problemática do Direito: permanecem aspectos de opressão dos grupos, cujos Direitos Humanos são postergados, por normas, inclusive legais. Já citamos a questão das raças, religião, sexos – que hoje preocupam os juristas do marxismo não-dogmático (LYRA FILHO, 1982, p. 19, grifo nosso)
Notável que o acervo foi a base empírica para a elaboração de um levantamento único preparado por Roberto Lyra Filho a que atribuiu o título de “Filosofia Jurídica. Pequena Bibliografia em Perspectiva Contemporânea”. Esse texto está acessível em Notícia do Direito Brasileiro, Nova Série nº 9. Universidade de Brasília/Faculdade de Direito, 2002, Parte IV – Memória, p. 381-403. Também, na Biblioteca Roberto Lyra Filho (digital) já mencionada, Página da Assessoria Jurídica Popular, acesso por meio do blog Diálogos Lyrianos (www.odireitoachadonarua.blogspot.com), e pelo link: http://assessoriajuridicapopular.blogspot.com/2012/07/biblioteca-roberto-lyra-filho.html.
O Autor justifica:
Esta bibliografia foi preparada por solicitação do chefe do Departamento de Direito, Faculdade de Estudos Sociais Aplicados, da Universidade de Brasília.
Estabeleceu-se o prazo de 15 dias para a elaboração, e o limite de 150 para o número de títulos.
Nessas condições, o autor teve de lançar mão de seus recursos pessoais, exclusivamente, sem vagar para consulta a outros especialistas ou, mesmo, uma pesquisa demorada.
A tarefa constitui, portanto, um estimulante desafio, pondo à prova o domínio da disciplina, em sua contextura e nas linhas fundamentais de sua expressão bibliográfica.
Se as restrições de extensão da lista impuseram cortes drásticos e extremo rigor seletivo, os critérios utilizados devem ser expostos a fim de que não se impute à arbitrariedade ou ao desconhecimento do material o que é, apenas, um esforço no sentido de reduzi-lo às proporções da encomenda.
Há lacunas conscientes, em grande parte supridas pelas próprias obras mencionadas com suas bibliografias suplementares.
De qualquer forma, o autor oferece o trabalho como uma espécie de aperitivo, sem maiores pretensões e, nada obstante, permanece convencido de sua utilidade, como exemplo de escolha e aplicação de processos depuradores, num plano coerente e executado com rigor técnico.
Nota-se, na elaboração do trabalho, o mesmo esmero que se propõe quando se trate de construir um acervo bibliotecário, sob o aspecto da correção técnica e das remições e classificação. O Autor agradece ao professor Edson Nery da Fonseca que o orientou no mister da elaboração da bibliografia, esse grande bibliotecário reconhecido como um dos fundadores da Biblioteca Central de Brasília. Fiz um pequeno aide-mémoire para registro de sua contribuição à Universidade de Brasília (http://estadodedireito.com.br/minhas-memorias-da-unb-edson-nery-da-fonseca/). Segue-se um estudo/ensaio jamais superado em sua pertinência e critérios, cujo objetivo, como indica o seu título, explica o Autor, “foi, em última análise, a apresentação dum elenco representativo da filosofia contemporânea do direito, antepondo-se uma seleção de periódicos iurisfilosóficos e duas outras, de panoramas históricos, quer setoriais, quer gerais”.
Em escala de grandeza não é isso que configura a Biblioteca Roberto Lyra Filho, na sua formação e no seu acervo completo conforme revela o catálogo?
Do que se trata, retomando o arranque epistemológico-metodológico, é trabalhar essas pistas, atentos ao sentido implícito do “filosofar”, para se dar conta, é ainda Lyra Filho quem o diz, que “qualquer tipo de saber (seja ele filosófico, científico ou tecnológico) adquire a configuração geral condicionada pela situação emergente na estrutura” LYRA FILHO, Roberto. Filosofia Geral e Filosofia Jurídica, em Perspectiva Dialética. In Carlos Palácio org. Cristianismo e História. São Paulo: Edições Loyola, 1982).
Enfeixadas no sujeito, em maior ou menor grau, mais frequente ou até circunstancialmente ausente, há atitudes que o movem para agir no mundo. Assim, “o poeta, o cientista, o filósofo, o cidadão dito comum, que mais se rende às crenças, do que se encrespa criticamente, em ideias, são, todos, homens imersos no mundo, suas arquiteturas fugazes, suas direções de processos, que hão de ser descobertos, para serem reorientados, no encalço dum fim, mal entrevisto, logo corrigido, mas inevitavelmente buscado” (LYRA FILHO, Roberto. A Concepção do Mundo na Obra de Castro Alves. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1972, v. p. 12-13).
Em qualquer hipótese, Lyra Filho arremata (“Filosofia Geral e Filosofia Jurídica em Perspectiva Dialética, cit. P. 158-159): “a marcha do conhecimento abre um leque de atitudes fundamentais que, em meio a todas as transformações, permitirá distinguir a especificidade do humano, em sua própria auto-experimentação”. Segundo ele, é possível distinguir seis aspectos atitudinais que variam a sua tônica: o “fazer (atitude técnica), explicar e compreender (atitude científica), fundamentar (atitude filosófica), intuir e mostrar (atitude artística), crer (atitude mística) e divertir-se (atitude lúdica).
Remeto ao texto completo citado (p. 147-169), para apreender o sentido em que essas atitudes se incrementam, se exprimem e se reorganizam intelectualmente e na práxis humana. O que aqui me interessa é dar-me conta de que racionalmente elas são como que chaves para compreender a formação e a organização da “Biblioteca Roberto Lyra Filho”, sobretudo quando ela se projeta para integrar-se à Biblioteca Central da UnB, afinando-se aquela disposição já assinalada de que cumpra “as perspectivas emancipatórias – da Biblioteca Central e da Editora da UnB – no projeto da universidade utópica”, conforme sustenta Ana Flávia Lucas de Faria Kama (A universidade sonhada por Darcy Ribeiro: o papel da Biblioteca Central da UnB e da Editora da UnB na busca pela utopia necessária. In CAMARGO, Murilo da Silva et al (Orgs). Darcy Ribeiro e a UnB. A universidade necessária no século XXI. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2022).
Em Roberto Lyra Filho, quando chamado a contribuir para categorizar um setor de artes, de ciência ou de filosofia, a questão que desafia – ainda que ao risco de arbitrariedade e conjectura – é encontrar um método, mesmo simples, que torne razoável estabelecer relevâncias e orientações.
Ele descreve essa condição em A Filosofia Jurídica nos Estados Unidos da América: Revisão Crítica (Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1977), quando a convite da UnB, do Instituto de Pesquisa e Assessoria Nacional e da Casa Thomas Jefferson, por ocasião do bicentenário da independência dos Estados Unidos da América, dissertou sobre a contribuição norte-americana para o tema.
Seu ponto de partida, desenvolvido no avançar da conferência:
Se quisermos ter a certeza de que os Estados Unidos da América pagaram, de fato, o preço do ingresso no panorama universal da Filosofia, e não ostentam, apenas, certos pensadores de porte secundário e alcance interno, isso pode ser verificado, sem maiores problemas. Basta compulsar um bom número de histórias da disciplina, escritas por diversos autores, com a preocupação de escolhê-los, entre os não americanos e os que também não tendam, por certas afinidades de idéias, a sobrestimar os filósofos considerados.
Com método, acrescido da preocupação de estabelecer certas ressalvas (que levaram a sacrificar as constelações limítrofes, notadamente a que se prende à doutrina político-jurídica do direito constitucional), conclui o Autor que há “presença americana, em particular, na Filosofia do Direito, (conclusão que) não sofre também contestação”.
Em Roberto Lyra Filho, pois, não há desarranjo que indique um ponto de clivagem. Mesmo tendo, com Borges (O Idioma Analítico de John Wilkins in Outras inquisições, Jorge Luis Borges, trad. Davi Arrigucci Jr., São Paulo: Companhia das Letras, 2007), que “sabidamente não há classificação do universo que não seja arbitrária e conjectural”, os modelos classificatórios de Lyra Filho, ou a organização de sua biblioteca, metodologicamente, não equivalem à classificação do conto alusiva à enciclopédia chinesa intitulada ‘Empório Celestial de Conhecimentos Benévolos’ e às 14 categorias de animais que ela divide.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
A constituição da democracia em seus 35 anos / (Orgs) Luiz Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Álvaro Ricardo de Souza Cruz. Belo Horizonte: Fórum, 2023, 656 p.
O lançamento dessa obra celebratória, aponta para um livro robusto e de uma rica pluralidade considerando os autores e autoras que dele participam. Uma mirada sobre o Sumário – aqui reproduzido somente na designação genérica sem o desdobramento analítico de conteúdo, já exibe a potência dessas contribuições e o fôlego autoral:
PREFÁCIO
Álvaro Ricardo da Souza Cruz
O ATESTADO TESTEMUNHADO POR 35 ANOS DA CONSTITUIÇÃO NO BRASIL: A INFLUÊNCIA DA METODOLOGIA DO DIREITO CIVIL NA LEGALIDADE CONSTITUCIONAL; DOUTRINA E JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRAS EM JULGAMENTOS DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Luiz Edson Fachin
TRINTA E CINCO ANOS DA CONSTITUIÇÃO DE 1988: AS VOLTAS QUE O MUNDO DÁ
Luís Roberto Barroso
FEDERALISMO COOPERATIVO ECOLÓGICO EFETIVO: COORDENAÇÃO, FINANCIAMENTO E PARTICIPAÇÃO
Rosa Weber
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO PROCESSO E OS SEUS REFLEXOS NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Luiz Fux
ERRADICAÇÃO DA POBREZA E COMBATE À FOME À LUZ DA CONSTITUIÇÃO DE 1988
Cristiano Zanin Martins
HANNAH ARENDT E A DEFESA DA DEMOCRACIA
José Antonio Dias Toffoli
AGREGAÇÃO E DESAGREGAÇÃO REGIONAIS – O FEDERALISMO BRASILEIRO
Paulo Dias de Moura Ribeiro
AS FRONTEIRAS DA NOÇÃO CONTEMPORÂNEA DA LEGALIDADE
Joel Ilan Paciornik, Valdir Ricardo Lima Pompeo Marinho
O PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA E SUA PREVISÃO EM NORMA
EXPRESSA NA CONSTITUIÇÃO DE 1988
Regina Helena Costa
ACESSO À JUSTIÇA E TRANSFORMAÇÃO DIGITAL: UMA PESQUISA SOBRE O AMBIENTE VIRTUAL EM QUE OCORRE A PRESTAÇÃO JURISDICIONAL
Luiz Alberto Gurgel de Faria, Rodrigo Maia da Fonte
REFLEXÕES SOBRE O DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE
Humberto Martins
OS 35 ANOS DA PROMULGAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E A
DEFESA DA DEMOCRACIA E DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Benedito Gonçalves, Camile Sabino
O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO ÂMBITO PENAL NOS 35 ANOS DE VIGÊNCIA DA CONSTITUIÇÃO DE 1988
Maria Thereza Rocha de Assis Moura, Marcelo Costenaro
RECLAMAÇÃO E CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE: UMA ANÁLISE EVOLUTIVA DO INSTITUTO A PARTIR DA RECLAMAÇÃO Nº 4.374/PE E À LUZ DO SISTEMA DE PRECEDENTES DO CPC/2015
Mauro Luiz Campbell Marques
OS 35 ANOS DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Luis Felipe Salomão, Mônica Drumond
O DIREITO À CONSULTA E PARTICIPAÇÃO DOS POVOS ORIGINÁRIOS E TRADICIONAIS NOS 35 ANOS DE CONSTITUIÇÃO
Álvaro Ricardo de Souza Cruz, Diogo Bacha e Silva, Guilherme Ferreira Silva
35 ANOS DA CONSTITUIÇÃO DE 1988: UM ACERTO DE CONTAS COM O NEOLIBERALISMO
Álvaro Ricardo de Souza Cruz, Bernardo Augusto Ferreira Duarte,
Bernardo Gomes Barbosa Nogueira
CONSTRUÇÃO DA INCLUSÃO SOCIAL E TRANSFORMAÇÃO PELA ALFABETIZAÇÃO: ANÁLISE DA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS NO BRASIL DESDE A PROMULGAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO DE 1988 E PERSPECTIVAS FUTURAS
Álvaro Ricardo de Souza Cruz, Julia Laureano Belan Murta,
Ebe Fernandes Carvalho
O ESTADO DE DIREITO E O ESTADO DE EXCEÇÃO: REFLEXÕES SOBRE A DEMOCRACIA BRASILEIRA
Álvaro Ricardo de Souza Cruz, Daniel Guimarães Medrado de
O AMICUS CURIAE ESPECIALISTA NO PROCESSO CONSTITUCIONAL
Sérgio Cruz Arenhart
CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 35 ANOS: AINDA UMA DISPUTA POR POSIÇÕES INTERPRETATIVAS
José Geraldo de Sousa Junior
“CONVÍVIO DEMOCRÁTICO”: UTOPIA INSTITUCIONAL E CHAVE HERMENÊUTICA DA CONSTITUIÇÃO DE 1988
José Rodrigo Rodriguez
A AUTONOMIA DO BANCO CENTRAL E A CONSTITUIÇÃO
Gilberto Bercovici, Viviane Alves de Morais
APONTAMENTOS SOBRE A CONSENSUALIDADE ADMINISTRATIVA NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1988
Leonardo de Araújo Ferraz, Daniel Martins e Avelar
A ATIVIDADE PARLAMENTAR E A REFORMA CONSTITUCIONAL: OS 35 ANOS DE ATUAÇÃO DO CONGRESSO NACIONAL COMO CONSTITUINTE DERIVADO
Bárbara Brum Nery, João Trindade Cavalcante Filho,
Bonifácio José Suppes de Andrada
A EVOLUÇÃO DO CONTROLE SOCIAL DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NOS 35 ANOS DA CONSTITUIÇÃO DE 1988: AMPLIAÇÃO E EFETIVIDADE
Gustavo Costa Nassif, Mariana Bueno Resende
A PUBLICIDADE NO PROCESSO DELIBERATIVO DOS TRIBUNAIS: UMA ANÁLISE CRÍTICO-COMPARATIVA ENTRE O TRIBUNAL CONSTITUCIONAL DA ESPANHA E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL DO BRASIL
Gláucio Maciel Gonçalves, Valber Elias Silva
A ERA DO ALGORITMO E IMPACTOS SOBRE AS DECISÕES HUMANAS: OS DESAFIOS À DEMOCRACIA E AO CONSTITUCIONALISMO
José Adércio Leite Sampaio, Ana Carolina Marques Tavares Costa
O QUE DEIXAMOS DE FAZER: CONSTITUIÇÃO, SEGURANÇA PÚBLICA E FORÇAS ARMADAS
Daniel Sarmento, João Gabriel Madeira Pontes
A TUTELA DOS DIREITOS HUMANOS NAS RELAÇÕES PRIVADAS
Gustavo Tepedino
SOBERANIA ECONÔMICA, DIREITOS HUMANOS E OS TRATADOS DE INTEGRAÇÃO: POR UMA NOVA INTERPRETAÇÃO DO ART. 4º, PARÁGRAFO ÚNICO DA CONSTITUIÇÃO DE 1988
André de Carvalho Ramos, Denise Neves Abade
O ART. 167, IV (NÃO AFETAÇÃO), EM 35 ANOS DA CONSTITUIÇÃO DE 1988
Fernando Facury Scaff
DESAFIOS PARA A DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS PELO MINISTÉRIO PÚBLICO NA CONSTITUIÇÃO DE 1988
Aurélio Virgílio Veiga Rios
O DIREITO FUNDAMENTAL À CIDADE, RAZÕES DE SUA (IN)EFETIVIDADE E CAMINHOS PARA A SUA CONCRETIZ(AÇÃO)
Cristiana Fortini, Maria Fernanda Veloso Pires
DEMOCRATIZAÇÃO DO ACESSO À PROPRIEDADE RURAL NA CONSTITUIÇÃO DE 1988: IMPASSE QUE PERMANECE
Ela Wiecko V. de Castilho
DERROTABILIDADE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS
José Arthur Castillo de Macedo
A CONSTITUIÇÃO, O STF E A DEMOCRACIA PARTICIPATIVA NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
Assusete Magalhães, Marco Túlio Reis
O Prefácio é assinado por Álvaro Ricardo de Souza Cruz, Pós-Doutor pela UFMG. Mestre e Doutor em Direito pela UFMG. Desembargador do Tribunal Regional Federal da 6ª Região. Professor Adjunto da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, também um dos co-organizadores da obra e, pelo menos no que me diz respeito, depois do convite que recebi diretamente do ministro Fachin, foi o diligente executivo para a finalização da edição, um trabalho que não é simples nem fácil, como sabemos os que já se dedicaram a esse mister editorial. A obra traz, a exemplo do que acabei de registrar relativamente ao desembargador Álvaro, uma suma biobibliográfica de todos os autores e de todas as autoras.
Detenho-me no prefácio, não obstante singelo, todavia apto a resumir o propósito e o alcance da obra:
Tempo é curso. Tempo é fluxo. Tempo é interrupção. Movimento e pulsão. Pausa e reflexão. Segundo Mia Couto, o tempo é um rio cujas margens transcendem quaisquer limites. Uma coisa suspensa que pende sobre nossas cabeças e sob nossos pés.
A pulsão de controle nos fez construir relógios e calendários. Cronos é a esperança de retê-lo na e pela episteme. “Compreendê-lo” em nosso cotidiano privado é “impossível”. Explicá-lo no plano coletivo e social é infinito (Kairós).
Cinco de outubro de 2023. Já se vão 35 anos. Como e onde estávamos no dia em que Ulisses Guimarães disparou seu nojo à ditadura erguendo em suas mãos o texto da nova Constituição do Brasil. Como e onde estamos hoje? Qual a gramática falada pelos brasileiros? A cacofonia da multidão é capaz de se tornar uma sinfonia? Há ordem em nosso caos?
Cada qual de nós (autores) ouviu um acorde. Cada autor recebeu uma fração da verdade que traduziu em seu texto. Vivemos tempos difíceis. Já vivemos tempos fáceis? Arbítrio. Polarização. Crispação. Limites aos/dos poderes. Inclusão de marginais/ marginalizados.
Após tantas voltas que o mundo deu, cada autor trouxe aqui o retrato que vê da nossa casa brasileira. Uma casa chamada Terra, insiste Mia Couto. Um retrato batido agora. Um flash que ilumina pontos cegos do outro. Uma fotografia que pretende parar o tempo para que possamos lembrar o presente (divino?) que é estar vivo. Lembrar o presente passado. Atestar um testemunho único. Sonhar com o presente futuro.
Novas/velhas palavras. Ativismo ou democracia militante? Devemos tolerar a intolerância? Devemos marcar o tempo do marco temporal das terras indígenas? Devemos visibilizar os invisíveis? O que dizer da propriedade e dos tributos? E do papel da Administração? E da tal liberdade de expressão?
Trinta e seis textos. Cada qual a partir de si projeta a sua visão aos outros. Ministros, professores, advogados, promotores e magistrados. Homens e mulheres que doam sua visão ao Outro/leitor. Um doar de si para o Outro. Verdadeira evasão para a alteridade.
Esse foi o projeto que ajustei com os amigos Fachin e Barroso. Amigos que sempre tiveram paciência em me ensinar. E que o fazem republicanamente aprendendo no dia a dia no ofício de magistrados supremos desse país. Uma alegria compartilhar com todos/todas o esforço de visão do momento do turbilhão desse rio chamado tempo e dessa casa chamada Brasil.
Tive muito gosto em participar da construção desse trabalho. Desde logo pelo convite que recebi de um amigo dileto, com quem partilhei experiências de interpelação ao Direito para encontrar um fio crítico que o pudesse conduzir a uma senda de mobilização emancipatória, em condição de poder dar dignidade jurídica à política como mediação da consciência que se realiza na história e se faz apta a transformá-la de modo democrático e em direção à justiça que humaniza.
Desde o final dos anos 1970 e ao longo dos anos 1980, essa disposição se manifestou no ambiente acadêmico (remeto a congressos em que se armou a agenda da abertura crítica ao positivismo jurídico), profissional (basta consultar diversos anais de conferências nacionais da Ordem dos Advogados) e social (não posso deixar de registrar, em muitas situações, discussões como a que pudemos estabelecer com Roberto Aguiar, Carlos Marés, Miguel Baldez, Paulo Lôbo, Alexandre Bernardino Costa para contribuir com movimentos sociais no esboço de uma proposta de currículo para as turmas especiais de direito do Pronera). Nem ocultar, mesmo depois de assumir a cátedra do Supremo Tribunal Federal, sua disposição imediata na concordância em sentar com as expressões jurídicas de movimentos sociais num encontro a que veio na UnB, a meu convite, para dialogar em tese, com expressões ativas de moimentos sociais da cidade e sobretudo, do campo.
Conforme diz o Ministro Fachin, na carta que me enviou, “a Constituição de 1988 é inequivocamente um marco histórico na trajetória do país em direção à democracia e à garantia dos direitos fundamentais. A partir da promulgação da Constituição, a sociedade brasileira conquistou avanços significativos no que diz respeito à consolidação de um Estado de Direito Democrático, da participação popular na gestão pública e do reconhecimento de direitos fundamentais como o acesso à educação, saúde e moradia. A celebração dos 35 anos da Constituição brasileira é uma oportunidade importante para refletir sobre a relevância desses avanços e sobre os desafios que ainda precisam ser enfrentados para que esses direitos sejam efetivamente garantidos a toda a população brasileira”.
Trata-se de um debate público atual sobre importantes questões sociais, econômicas e políticas em tempos de dissolução de direitos, que há três décadas foram garantidos pela aprovação da Constituição Brasileira. E fica a reflexão de qual papel estratégico e político devem os movimentos sociais assumir neste projeto ainda em construção para romper o atraso neocolonialista do País. De minha parte, ele é uma continuidade da avaliação que fiz, em evento semelhante, a propósito de celebrar os 30 anos da mesma Constituição, ocasião em que focalizei minha leitura, com uma perspectiva interpelante, inscrita na indagação: Constituição 30 anos: Uma Promessa Vazia?
Comecei, pois, meu texto levado para o livro, tomando como ponto de partida a reflexão iniciada por ocasião dos 30 anos da Constituição, mas tendo em vista a proposta comemorativa de seus 35 anos e o faço para confidenciar um sentimento. Cada vez mais, em novos auditórios, expor acerca desse tema – isto é, o processo constituinte que legou a Constituição Cidadã – vai deixando de ser um exercício de memória para se constituir também um registro de História. Boa parte desses auditórios, hoje, é formada por uma geração nascida muito depois dos acontecimentos que demarcam o período no qual a Constituinte se realizou. Sabe-se dela pelos livros, assim como outros eventos do passado ( SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Constituição 30 anos: Uma Promessa Vazia? In Revista Humanidades nº 62 (Dossiê 30 Anos da Constituição Cidadã). Brasília: Editora UnB, dezembro 2018).
Eu, entretanto, vivenciei esses acontecimentos, com ampla participação nos debates e nas avaliações na Universidade, como membro da Comissão de Estudos e de Acompanhamento da Constituinte que a UnB instalou à época e como integrante do Grupo Pedagógico para a preparação do Curso a Distância “Constituinte & Constituição” (Suplemento encartado por semanas, como tabloide, na edição de sábado do jornal Correio Braziliense. Ver a edição completa reunindo em fac-símile os textos publicados em ABREU, Maria Rosa ed. Constituinte e Constituição. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1987.
Esse projeto permitiu aos participantes do curso levarem ao Congresso Nacional propostas para discussão, em entrega solene ao presidente da Assembleia Nacional Constituinte Ulisses Guimarães, e devidamente consideradas no debate, conforme atesta o relatório de uma das subcomissões que as examinou. Participei ativamente também na Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) como membro da Comissão de Acompanhamento da Constituição que a entidade criou para assessorar seus dirigentes e seu Conselho Episcopal de Pastoral. Na Comissão Brasileira de Justiça e Paz, fui indicado para prestar depoimento numa das 24 subcomissões criadas para organizar o trabalho propositivo dos parlamentares constituintes. Depois, nos anos que se seguiram, tive participação em mais de uma audiência pública em comissões mistas, nas quais se discutiram projetos de emendas para revisão parcial ou total da Constituição aprovada.
Essa combinação de memória e de história dá uma vivacidade singular ao significado político da realização constitucional como expressão de momentos marcantes da historicidade de um país e da maturidade de seu projeto de sociedade. Contribuí para discernir os sinais que indicam a emergência constituinte desses momentos singulares, quando as crises aceleram o perecimento das formas arcaicas de organização da política e tornam possível desabrochar as formas novas que a própria crise fecunda. É o momento constituinte que vai pavimentar o movimento formidável que as contradições desencadeiam quando do esgotamento das motivações corporativas, elitistas, intolerantes, odiosas, discriminatórias que atingem as multidões e que fazem com que elas se transformem em povo. Entretanto, os elementos dessa combinação de memória e de história, estão em boa medida, documentados (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. A Nova Constituição e os Direitos do Cidadão. Revista de Cultura Vozes (Que Brasil Emerge da Constituição?). Ano 82, volume LXXXII, nº2. Petrópolis: Editora Vozes, julho-dezembro 1988; Estudos CNBB 60 – Participação Popular e Cidadania. A Igreja no Processo Constituinte/CNBB. São Paulo: Edições Paulinas, 1990; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Obstáculos à Efetivação da Democracia no Brasil. In CNBB: Sociedade, Igreja e Democracia. São Paulo: Edições Loyola, 1989; BACKES, Ana Luiza, AZEVEDO, Débora Bithiah, ARAÚJO, José Cordeiro (Orgs). Audiências Públicas na Assembleia Nacional Constituinte: A sociedade na tribuna. José Geraldo de Souza Junior: Cidadania. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2009, p. 107-108; e de modo mais analítico DULTRA, Eneida Vinhaes; MARQUES, Sabrina Durigon. O Legislativo Convida Professor José Geraldo de Sousa Jr – Tecendo o fio democrático da formação jurídica crítica no espaço política. In O Direito Achado na Rua. Contribuições à Teoria Crítica do Direito. v. 6 n. 2 (2022): Revista Direito.UnB |Maio – Agosto, nº 2. 2022).
No meu texto, parto do fundamento que a Constituição não é o texto no qual se representa, mas aqueles fatores que a promovem (conforme indicava no século XIX Ferdinan de Lassale) e que por isso ela se realiza ao impulso da “Disputa por Posições Interpretativas”. Daí o desdobramento que organizei para desenvolver o tema: “O que a Constituição ainda tem a oferecer? Impasses atuais: Reformas trabalhista e previdenciária – Como compreender essa mudança de rumo? Em direção a um constitucionalismo achado na rua”.
Claro que pressuponho que essa disputa é movida diretamente no social, por isso constitucionalismo achado na rua, algo que procurei demonstrar recentemente, ao prestar depoimento, como convidado, na CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito), para examinar a questão agrária brasileira e os conflitos que dela decorrem. A propósito, para além do depoimento seguido de debates que pode ser recuperado nos arquivos de mídia da Câmara dos Deputados, requisitei a juntada de texto-base da minha apresentação, que também publiquei para evitar que fosse adrede recortado para servir a interpretações enviesadas, conforme já constatei no relatório lido na sessão convocada para esse fim. Remeto, pois, ao meu texto íntegro (cf. https://www.brasilpopular.com/cpi-do-mst-contexto-e-diagnostico-da-situacao-agraria-brasileira/).
Mas há, igualmente, interpretações construtivas, que expandem o alcance da promessa constitucional em sua disposição de realizar direitos e ter cumpridas as suas promessas. Certamente para a compreensão dessa possibilidade é indispensável abrir-se a exigências próprias à disputa narrativa de realização da Constituição e de categorias que dêem conta de aferir as aberturas que a política proporcione para projetar as disposições constitucionais para o futuro.
É assim, portanto, que se pode compreender a decisão do Ministro Fachin um dos coordenadores esta obra, para repensar a dimensão política da função judicial e reconhecer que “são os sujeitos coletivos que conferem sentido à soberania popular”, e que, afirmam uma ‘participação política da comunidade [indígena]’ expressão dessa subjetividade coletiva que se faz titular de direitos em perspectiva inter-sistêmica, juridicamente plural”, conforme seu voto no TSE (segundo semestre de 2022), por ocasião do julgamento do Recurso Especial Eleitoral (Processo Número: 0600136-96.2020.6.17.0055 – Pesqueira – Pernambuco
E desse modo, completa o seu entendimento, agora valendo-se de consideração sobre “a dimensão política da função judicial, apontada por Antônio Escrivão Filho e José Geraldo Souza Junior (Para um debate teórico-conceitual e político sobre os direitos humanos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016)” para, não só afastar “o mito de neutralidade e buscando processos de democratização da justiça a partir, inclusive, da sua reorientação aproximada da realidade brasileira”, mas para afirmar, nesse passo, que são os sujeitos coletivos que conferem sentido à soberania popular”, e que, afirmam uma “participação política da comunidade [indígena]” expressão dessa subjetividade coletiva que se faz titular de direitos em perspectiva inter-sistêmica, juridicamente plural.
Direitos são promessas, mas não podem se tornar promessas vazias, e o apelo democrático do artigo 5o leva a essa consciência, ou seja, a de que é a cidadania protagonista, ativa, insurgente, achada na rua, o núcleo de uma subjetividade coletiva (sujeitos coletivos de direito), em movimento (movimentos sociais emancipatórios), a razão legitimadora do processo político e realizadora contínua do processo de afirmação de direitos já conquistados e de criação de novos direitos. E essa compreensão ficou ainda mais nítida, na relatoria do Ministro Fachin, acolhida com apenas duas defecções, no julgamento concluído no Supremo Tribunal Federal. Conforme consta da página oficial do STF, que traz um bom resumo dos elementos da decisão (https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=514552&ori=1#:~:text=O%20Supremo%20Tribunal%20Federal%20(STF,da%20terra%20por%20essas%20comunidades): “O Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitou, nesta quinta-feira (21), a tese do marco temporal para a demarcação de terras indígenas. Por 9 votos a 2, o Plenário decidiu que a data da promulgação da Constituição Federal (5/10/1988) não pode ser utilizada para definir a ocupação tradicional da terra por essas comunidades. A decisão foi tomada no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1017365, com repercussão geral (Tema 1.031”.
Revelo que me inspirei muito declaradamente na posição de J.J. Gomes Canotilho, em parte manifestada a partir de provocação que lhe fiz, quando o entrevistei para o Observatório da Constituição e da Democracia (nº 24, julho de 2008, UnB/SindjusDF, p. 12-13): “A multiplicidade de sujeitos que se movem no debate constitucional contemporâneo tende a abrir expectativas de diálogo político estruturado na linguagem do Direito. Para usar uma expressão sua, quais as principais “posições interpretativas da Constituição” que emergem desse processo?”.
A resposta completa e os instigantes aportes que o notável constitucionalista oferece podem ser seguidos no exame por inteiro na matéria. Vou direto ao recorte da resposta:
Boa pergunta! Em trabalhos anteriores demos conta de que a “luta constituinte” era (e é) uma luta por posições constituintes e de que a lógica do “pluralismo de intérpretes” não raro escondia que essa luta continuava depois de aprovada a constituição. A interpretação seria afinal um “esquema de revelações” de pre-compreensões políticas. Continuamos a considerar que a metódica jurídica reflecte todas as dimensões de criação e aplicação das normas jurídicas e a prova disso é a de que as diferenças entre legislação (legislatio), jurisprudência (jurisdictio) e doutrina (jurídica e política) surgem cada vez mais imbricadas e flexíveis. De qualquer forma, o elemento central da nossa posição reconduz-se ainda à ideia de conformação constitucional dos problemas segundo o principio democrático e não de acordo com princípios a priori ou transcendentais.
Se vemos bem as coisas, as dificuldades da metódica jurídica residem mais na sua rotina e falta de comunicação com outros horizontes de reflexão como as da sociologia e da filosofia do que nos seus pontos de partida quanto à investigação e extrínsecação do sentido das normas para efeito da sua aplicação prática.
Para concluir, agrego ao que enunciei num argumento celebratório, que é objetivo do meu texto, a mesma convicção que me conferiu o nosso patrono constitucional Paulo Bonavides, em entrevista que me concedeu também, para o Observatório da Constituição e da Democracia (nº 22, maio de 2008, UnB/SindjusDF, p. 13-14), sob o título: “Democracia, Sim, mas do Cidadão Participativo”.
Quando lhe propus a questão: “O senhor é, dentre os constitucionalistas mais destacados, quem trouxe para o Direito Constitucional a perspectiva da democracia participativa, constituindo-se no principal intérprete e defensor da democracia direta inscrita na Constituição de 1988. Após 20 anos da sua promulgação como avalia a “Constituição Cidadã”, a sua resposta foi quase epifânica: “É uma grande Constituição. É a mais formosa. Todos os reacionários deste país a combatem. Combatem-na porque ela tem as chaves de solução para problemas que eles não querem que sejam resolvidos. Pior para eles. Como ela própria prevê, é o povo que os vai resolver. A Constituição de 1988 é a primeira Constituição principiológica de toda a nossa história Constitucional. Mas, princípios com normatividade, com juridicidade, que podem ser, portanto, concretizados. Cabe ao povo tomá-la para si e lhe imprimir avanços, galgando degraus no patamar da democracia e do constitucionalismo”.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.5
Colonialidade do Poder, Biodiversidade e Direito. Raça, classe e capitalismo na construção da legalidade
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Colonialidade do Poder, Biodiversidade e Direito. Raça, classe e capitalismo na construção da legalidade. Pedro Brandão. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2023, 288 p.
Para compreender o alcance dessa bela obra, vale tomar da descrição que ela recebeu na página da Editora, dois comentários convocatórios. De Deise Benedito, colega de Pedro na Pós-Graduação em Direito da UnB, ela na área de Criminologia e também sua colega de assessoria parlamentar (PSOL) e de ativismo político. Diz ela:
O Prof. Pedro Brandão, ao analisar os conflitos na construção de novo marco legal de acesso à biodiversidade, propõe ao leitor refletir sobre as relações perversas entre colonialidade, racismo e a formação da legalidade. Ele detalha o padrão colonial de poder que rege o parlamento brasileiro para refletir sobre o papel do direito e das instituições em um capitalismo racializado. É nesse contexto que o autor retrata a importância das articulações dos movimentos de insurgência contra a exploração e propõe, através da luta política e jurídica, o combate ao racismo e à desigualdade para a garantia de uma vida plena e livre.
O segundo comentário, de Sonia Guajajara, atualmente ministra dos Povos Indígenas do Brasil, mas também ativista nesse campo que é demarcado pelo subtítulo da obra e que remete à questão da biodiversidade e o direito.
Para Sonia,
O trabalho de Pedro Brandão analisa as lutas dos povos indígenas e das comunidades tradicionais durante a tramitação do novo marco legal de acesso à biodiversidade. Participei dessa luta no Congresso Nacional, enquanto representante da APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), na mobilização em defesa da nossa biodiversidade e contra os interesses da bancada ruralista e de grandes empresas capitalistas. Durante as audiências, falei que a raiz de uma planta, a folha, a flor, o fruto, tudo isso tem um significado para nós. Como o livro mostra, denunciei os interesses do então Projeto de Lei: “[…] o que eu vejo aqui é essa preocupação total e exclusiva sobre a economia, sobre a mercantilização desse conhecimento. Como transformar tudo isso em dinheiro? Como ficam os nossos povos indígenas?”.
Ao demonstrar as relações coloniais que ainda imperam no parlamento brasileiro, o livro nos convida a refletir sobre novas imaginações jurídicas e políticas para pensar o nosso país e a urgente necessidade de aldear a política!
O livro de Pedro Brandão, ao avançar sobre uma questão que ele acentua, como hipótese para o caso concreto que estuda, retoma uma perspectiva que já havia sido proposta em trabalho seu anterior, entretanto, “numa deriva para uma leitura estrutural sobre a própria formação da legalidade, levando a uma conclusão que é resultado da reflexão central para o trabalho: “a legalidade como fruto de uma disputa assimétrica e violenta de poder, articulada mutuamente pelos diferentes eixos da colonialidade, confrontando a leitura comum de que a legitimidade da legislação reside, necessariamente, na sua natureza ‘democrática’, ‘racional’, ‘legítima’ e ‘mediada’ entre os interesses em disputa”.
Com efeito, em seu livro Novo Constitucionalismo Pluralista Latino – Americano – 2ª Tiragem – 2023, também pela Editora Lumen Juris, vamos encontrar a afirmação identificada por Fernando Antonio de Carvalho Dantas, professor titular da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás, ex-coordenador, no Brasil, da Rede para o Constitucionalismo Democrático Latino-Americano, segundo o qual, tomando a metáfora da Karibérica e Brasilíndia, que
A américa Latina é Brasil e o Brasil América Latina. Este é o sentimento do leitor ao se deparar com o texto de Pedro Brandão sobre o novo constitucionalismo pluralista latino-americano em perspectiva descolonial. Texto criativo e cientificamente denso que diz sim, temos culturas, histórias, identidades, experiências e possibilidades de trato, em dimensão jurídica, de formas de ser, fazer, viver, conhecer, organizar e regulamentar a complexa, porque muito plural, vida social no mundo do sul global . A lúdica referência inicial à América karib e ao Brasil índio mostra a disposição de parte da academia jurídica brasileira atual em romper com o senso comum preconceituoso do Brasil de costas para a América Latina e retomar o diálogo construtivo de um novo mundo com o resgate e a valorização das cosmovisões e processos culturais dos povos originários (em verdadeira e necessária antropofagia jurídica) bem como o pensar a relação entre povos e sociedades com mais simetria e democracia. Neste livro o autor sustenta que o novo constitucionalismo pluralista latino-americano é resultado de processos que reconhecem em sede constitucional e buscam concretizar, na prática, formas intensas de participação popular e mecanismos democráticos, bem assim dão visibilidade aos povos indígenas, cujas cosmovisões, culturas e subjetividades coletivas, outrora violentamente ocultadas, integram o pilar fundamental das novas constituições a exemplo do Equador e Bolívia. Isto se dá com a construção do Estado Plurinacional, com os direitos da pachamama que atribuem subjetividade à natureza e territorialidades específicas com formas diferenciadas de participação como a democracia comunitária, entre outras, que rompem e superam o modelo do constitucionalismo tradicional. Assim, se constitui em livro imprescindível para conhecer e sentir esse novo contexto constitucional latino-americano enquanto epistemologia constitucional do sul.
Disso sabia eu. O que eu ignorava, ao menos até a publicação do novo livro, é que aquela perspectiva de participação democrática comunitária para romper modelos de colonialidade, conduziria o Autor a também promover uma inflexão analítica para compreender as tensões próprias desse processo.
Fico feliz, ao ler o livro, que ele me credite um tanto dessa inflexão, na medida do que confirma, na Introdução (p. 9), que ano ênfase, em sua “investigação, reside exatamente nas relações de poder que guiam o processo jurídico/político. Na linha de Sousa Júnior, optamos pela transição de uma perspectiva normativista para uma investigação focada no conflito. Não se trata, assim, somente de uma análise legal da legislação, mas de um estudo da forma como ela foi construída a partir dos antagonismos em conflito”.
Talvez em retribuição ao posicionamento, tornado opção analítica, tenha me solicitado redigir a orelha do livro, uma maneira de ratificar o ponto-de-vista. Ali digo eu:
A Editora Lumen Juris nos brinda com um novo livro de Pedro Brandão Colonialidade do Poder, Biodiversidade e Direito: Raça, classe e capitalismo na construção da legalidade. Pela Lumen Pedro já havia publicado, em 2015, o livro O Novo Constitucionalismo Pluralista Latino-Americano, obra que eu categorizei como uma contribuição que abriu espaço editorial para o tema no Brasil, fortalecendo uma vertente do assim denominado Constitucionalismo Latino-Americano.
No novo livro, seguindo o fio condutor de realização de um constitucionalismo que emancipe, Pedro Brandão mergulha na trama violenta do encontro entre a colonialidade do poder e a possibilidade de abrir espaços políticos para o reencontro de humanidades que forjem uma latinoamericanidade apta a vencer os desafios de toda ordem.
Eis a novidade do novo livro de Pedro Brandão. Responder as exigências de libertação e de emancipação seguindo o fio condutor de sua aproximação constitucional político-epistemológica decolonial, naquela sua dimensão que mais aguda: raça, classe e capitalismo que formam a colonialidade do poder (Quijano) e desafiam a construção do novo marco legal de acesso à biodiversidade, na direção de um constitucionalismo achado na rua.
Os caminhos percorridos pelo Autor para confrontar tais e tamanhos desafios, o próprio Autor os indica ao resumir o escopo nuclear de seu livro:
No primeiro capítulo, desenvolvemos uma análise da colonialidade do poder, da formação do capitalismo racializado, das disputas de sentido sobre a modernidade, e do moderno sistema-mundo (Wallerstein). Destacamos que a colonialidade do poder afeta as diversas dimensões da vida e permeia todas as instâncias de poder. Tal conceito, na concepção de Quijano, é central para pensar a constituição e o desenvolvimento do capitalismo. Da formação da América até o presente momento, há um profundo entrelaçamento entre a “ideia de raça” e o processo de acumulação capitalista. A hierarquia racial é simultânea à divisão internacional do trabalho, de maneira que a “ideia de raça” está diretamente relacionada à história das relações de poder do capitalismo mundial.
Em seguida, revisitamos a concepção de totalidade heterogênea e seus eixos de poder, tema central na abordagem quijaniana. Na leitura do autor, esta totalidade assume um caráter fragmentário, articulada por meio da dominação/exploração/conflito e baseada na seguinte estruturação: i) o capitalismo, como o controle do trabalho estruturante das formas históricas de exploração sob o predomínio da relação capital-trabalho; ii) a autoridade coletiva (Estado-nação), como instituição hegemônica para centralizar a dominação, sendo a violência organizada o seu recurso permanente e principal; iii) o controle do sexo, sob a égide do patriarcado; e, iv) o controle da subjetividade, por meio da hegemonia do eurocentrismo e da colonialidade do saber. Buscamos desenredar essa complexa teia no segundo capítulo deste livro.
Na vertente do controle do trabalho, realçamos o questionamento da unidirecionalidade dos modos de produção no mundo capitalista. De acordo com a percepção quijaniana, em especial na periferia, os diversos modos de produção sempre estiveram coordenados e articulados. Já no campo da construção do Estado-nação, destacamos como a perspectiva eurocêntrica foi fundamental para estruturar o Estado na América Latina, permeada pela exclusão de povos indígenas, negros e negras e trabalhadores do poder, o que resultou numa lógica altamente funcional para a superexploração capitalista. Ainda, tendo em vista a conexão entre legalidade e colonialidade numa perspectiva do capitalismo mundial, e não apenas localizado no Estado nacional, a própria ideia de sistema-mundo é fundamental para entender a globalidade do poder capitalista, inclusive na construção da legalidade.
No eixo do controle do imaginário, refletimos sobre a expansão da economia capitalista – sempre atrelada à “ideia de raça” – e as formas de controle e de neutralização de outros conhecimentos e epistemicídios. Na parte sobre gênero, considerando a necessidade de revelar o papel do patriarcado na formação do capitalismo e da modernidade, analisamos as críticas, os limites e as insuficiências teóricas da colonialidade do poder apontadas por autoras feministas, considerando o papel central das mulheres nas disputas pela preservação da biodiversidade.
O fundamental, nesta primeira parte da investigação, para além das limitações dos institutos jurídico, é compreender a formação do capitalismo racializado, em especial na periferia do mundo. Discutir a teoria quijaniana e suas leituras sobre a modernidade não significa somente disputar as narrativas acerca do passado, mas, acima de tudo, pensar sobre as suas continuidades e resistências no presente – em especial, na nossa leitura, na política e no direito.
Para o professor Alexandre Bernardino Costa que orientou a tese que dá origem ao livro e o apresenta, o ponto central do trabalho de Pedro Brandão, é o de constatar “boa parte dos dilemas que vive a sociedade mundial sobre nosso futuro comum. Aborda as apropriações capitalistas da natureza, e sua utilização por uma pequena parcela da população, em benefício próprio, ao mesmo tempo em que a maior parcela da sociedade é condenada ao seu próprio destino fatal, ainda que o conhecimento tenha sido gerado a partir de suas tradições e sua cultura. Discorrer sobre biopirataria de bens comuns e coletivos da natureza é falar sobre qual modelo do direito, de política e de economia queremos seguir”.
Nesse sentido, no Prefácio, a professora Ela Wiecko V. de Castilho, ratifica que o marco teórico adensado que o Autor adora, permite que ele “problematize a Lei nº 13.123, de 2015, que normatizou o acesso à biodiversidade brasileira, analisando a participação nos debates legislativos de representantes de quatro setores: Estado, povos e comunidades tradicionais, empresas e ciência/tecnologia”.
Ao avaliar que “a lei aprovada é um ‘produto do conflito assimétrico de poder’ influenciado pela colonialidade, e não um resultado do “processo democrático”. Ou seja, é uma legalidade racista, classista, sexista e capitalista”.
Assim que, para ela, “a questão que se coloca é sobre a possibilidade real de descolonização. Não basta entender como se constituiu a colonialidade e como ela vem operando. Como quebrar a estrutura de dominação, exploração e conflito que se articula nos cinco âmbitos da existência social: o trabalho, a natureza, o sexo, a subjetividade e a autoridade? Para a pergunta, não temos respostas prontas e testadas. Pedro Brandão não desconsidera a utilização de instrumentos normativos para frear a estrutura predatória de dominação, exploração e conflito, mas afirma que a luta mais decisiva é a da mobilização popular”.
Folgo em constatar o extremo zelo e a lealdade de Pedro que ao fixar posicionamento, ainda quando se valha da melhor e mais qualificada base teórica para o fundamentar, não se descole de seu percurso em coletivo de pesquisa e tribute a seus companheiros e companheiras de percurso, os achados comuns que reuniram em seus diálogos político-epistemológicos. Essa forma ética de assentar posições interpretativas, por ele designadas na abertura do livro, está firmemente assinalada a cada etapa de elaboração do texto.
Note-se, por exemplo, no tocante ao arcabouço do modo decolonial de interpretar, a referência a achados de seus colegas, que percorrem os mesmos caminhos: “O conhecimento tido como tradicional ou local, na realidade, é plural, heterogêneo e cambiante, e não está ligado ao imobilismo ou a algo estático. São conhecimentos transmitidos e experimentados, transformados e inovados, a partir de práticas sociais que possuem uma diversidade de processos de produção que estão diretamente associadas aos modos de vida, territórios e visões de mundo desses povos”. Ainda que a enunciação seja autoralmente própria, a nota (395, p. 193), remete aos estudos de sua colega Renata Vieira (cf. VIEIRA, R. C. C. Povos indígenas, Povos e comunidades tradicionais e agricultores familiares: a disputa pelo direito no Conselho de Gestão do Património Genético. Dissertação (Mestrado). Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania. Universidade de Brasília – UnB. Brasília/DF, 2021. 168p.).
É claro que diviso nessa aliança acadêmica, a repercussão de um campo de investigação, embora não central ao seu núcleo de mais contundente referência, todavia forte na incidência constitutiva de seu próprio pensamento: O Direito Achado na Rua sua concepção e prática.
O Autor não esconde essa incidência. Em várias conexões de seu texto. Nas páginas 21/218, para focalizar, no que pertine a seu trabalho, “o percurso da sociologia jurídica crítica, com a qual analisar a construção sociopolítica da legislação – e todos os interesses capitalistas em jogo – e não simplesmente o direito positivado enquanto pretenso resultado do processo democrático”.
Mas, sobretudo, e até como pressuposto (p. 85), o relevo aos “estudos jurídicos que mostram a interseção entre o direito e a colonialidade, através de diferentes perspectivas: o monumental trabalho fortemente ancorado na crítica marxista ao direito em diálogo com a teoria quijaniana, a filosofia da libertação para pensar a reconstrução dos direitos humanos; além da proposta de uma ecologia de justiças baseada na ecologia de saberes. Também numa análise da aproximação entre o Direito Achado na Rua e o Direito Constitucional através de um Constitucionalismo desde la calle, há importantes reflexões sobre o os desafios contemporâneos do Constitucionalismo Achado na Rua diante da ascensão da extrema direita, passando pela investigação entre a descolonialidade e a dialética social do Direito de Roberto Lyra Filho e a crítica feminista decolonial”. Para a devida precisão as referências de situação contidas nas notas 182, 183, 184 e 185, notadamente para demarcar o plano no qual se pode afirmar, desde essa perspectiva, o que temos chamado de constitucionalismo achado na rua (aqui também uma nota de referência para o verbete que meus alunos da disciplina Pesquisa Jurídica – Graduação em Direito – para a wikipedia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Constitucionalismo_achado_na_rua.
A obra, abre, pois, o que Pedro Brandão designa de “imaginário de superação da sociabilidade capitalista”, para emancipar a democracia com “um contínuo sistema de negociação institucionalizada dos limites, das condições e das modalidades de exploração e de dominação” e assim, afirmar-se como eixo de um projeto de sociedade, na qual possam ser superadas todas as formas de opressão e de espoliação, que ainda persistem no espaço da política, para alienar os sujeitos de seu projeto de plena humanização.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
A teoria e práxis do coletivo O Direito Achado na Rua
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Eduardo Xavier Lemos. Teoria Crítica dos Direitos Humanos desde América Latina. A teoria e práxis do coletivo O Direito Achado na Rua. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2023, 476 p.
A descrição da obra lançada na página da Editora se apoia em depoimentos de intelectuais, aliás, membros examinadores da Banca de Doutoramento que validou a tese, origem do livro.
Assim, relevo para:
A tese realmente é importante e extremamente oportuna na medida em que ela é defendida no alvor de um novo período no Brasil, que esperamos que seja a recuperação da esperança, pois neste período anterior o direito no Brasil não teve nada que ver com esperança, teve muito que ver com medo, com opressão, com dominação, com exclusão, com arbítrio.
Boaventura de Sousa Santos – Tribunal de Tese (Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, 24 de fevereiro de 2023) (Universidade de Coimbra)
El trabajo propone una ruptura con todo el absolutismo ético y moral y con la ontología de lo dado, donde esta, evidentemente, el rechazo al positivismo, el trabajo hace una crítica a la fundamentación jusnaturalista y a la fundamentación positivista de la mesma manera, efectivamente no quiere ni una ni otra, hace una fundamentación sociohistórica, que muchas veces corrie el riesgo de caer en una tentación jusnaturalista y aquí se evita.
Maria Jose Fariñas-Dulce Tribunal de Tese (Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, 24 de fevereiro de 2023) (Universidad Carlos III de Madrid)
Tive, com esses notáveis acadêmicos, a oportunidade de compartilhar a banca examinadora da qual também fizeram parte Vicente Barragan Robles (Universidade de Sevilha), e meus colegas da Faculdade de Direito Alexandre Bernardino Costa, Lívia Gimenes Dias da Fonseca e Antonio Sergio Escrivão Filho, estes também membros do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua (Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPQ). Além disso, pude vivenciar a experiência de cotutela (UnB/Universidade de Sevilha e assim dividir a orientação com o professor David Sánchez Rubio (Universidade de Sevilha),
Anoto que todo o rico debate pode ser diretamente acompanhado pelo registro YouTube no canal de O Direito Achado na Rua (www.odireitoachadonarua.blogspot.com), conforme o link https://www.youtube.com/watch?v=i3q9-rlXZxQ, num registro valioso das quatro horas e meia de apresentação, arguição, defesa e deliberação, ao final, com a aprovação do trabalho.
Enquanto, de minha parte, realizei aqui neste espaço da Coluna Lido para Você, uma recensão da tese (http://estadodedireito.com.br/direitos-humanos-desde-e-para-a-america-latina/), base para compor a apresentação do livro, sem embargo que a composição gráfica tenha omitido a minha autoria, embora a escrita em primeira pessoa me revele e na quarta-capa o trecho destacado seja indicado como extraído da apresentação e esteja devidamente assinado:
Eduardo, com a metodologia lyriana de ler Marx a partir de seus paralogismos, tal como Roberto Lyra Filho em Karl, meu amigo. Diálogos com Marx sobre o Direito, notadamente no trânsito do invisível para o visível, do ausente para o emergente, do informal para o formal, do plural para o oficial, no relativo ao jurídico direito e antidireito, direito burguês e direitos dos trabalhadores, privilégios e direitos iguais, se opera logicamente pela mediação dialética, pois só se conhece efetivamente de modo sentipensante, corazonadamente.
Tudo isso conduzindo, segundo Eduardo a uma visão complexa, dialética e plural dos direitos humanos designados no sentido instituinte desde Lyra Filho, Joaquín Herrera Flores, David Sanchez Rubio, assim como em Antonio Escrivão Filho no debate que comigo propõe sobre o tema que se colocam como síntese da possibilidade humanizadora, não só como expressão conceitual-filosófica, do humanismo dialético que Lyra Filho formula, em sua leitura hegeliano-marxista-sartreana, mas também no processo de luta por reconhecimento de subjetividades coletivas emancipadas tituláveis de direitos, da própria constitutividade material dos sujeitos inscritos nos movimentos que conduzem essas lutas e que realizam politicamente o humano (cf. Hegel, o humano não é um decorrência de sua origem biológica, mas uma experiência na história; não se nasce humano, torna-se humano).
José Geraldo de Sousa Junior (Universidade de Brasília) Apresentação
No Prólogo elaborado para o livro, David Sanches Rúbio salienta as singularidades que distinguem a obra e a sua característica de um estudo em profundidade acerca da fortuna crítica que forma a base teória e política de O Direito Achado na Rua. O trecho a seguir está destacado na página da Editora:
Desde mi punto de vista, en este derrotero y en esta esfera están algunas de las originalidades, entre otras, de las reflexiones que aparecen en el libro, intentando articular necesarios y urgentes puentes de diálogo y profundizar en muchas de las líneas temáticas y experiencias, tanto teóricas como prácticas, del colectivo Direito achado na rua, concibiendo los derechos humanos desde una perspectiva periférica y marginal y vistos desde América Latina, a partir de una perspectiva crítica, intercultural, compleja, relacional, biocentrada, plural y articulada desde las luchas instituyentes de los movimientos sociales.
David Sánchez Rubio (Universidad de Sevilla) Prólogo
Esse, de fato, é um roteiro que já vinha sendo ensaiado por Eduardo Lemos, preocupado em forjar a sua contribuição à teoria crítica dos direitos humanos desde a América Latina, mas fazê-lo também como decorrência do acumulado crítico do campo teórico-político a que se vincula e que alcança, vê-se por suas referências e revisão bibliográfica, nítido adensamento.
Consulte-se, para tanto, em http://estadodedireito.com.br/30425-2/ – (v.6 n. 2 (2022): Revista Direito. UnB |Maio – Agosto, 2022, V. 06, N. 2 Publicado: 2022-08-31. O Direito Achado na Rua. Contribuições para a Teoria Crítica do Direito. Edição completa PDF (https://periodicos.unb.br/index.php/revistadedireitounb/issue/view/2503), um estudo como essa disposição, aludindo a Eduardo, o que está no Prefácio, assinado pelos professores e professoras O prefácio é assinado pelos professores Adriana Andrade Miranda, Adriana Nogueira Vieira Lima, Alexandre Bernardino Costa, Diego Augusto Diehl, Lívia Gimenes Dias da Fonseca e Talita Rampin, há relevo para a influência do humanismo dialético de Lyra Filho sobre as formulações que sustentam o Direito Achado na Rua e um registro para um ensaio de Eduardo Xavier Lemos que de algum modo antecipa seu posicionamento na tese e no livro que a ela se segue.
Dizem os autores e as autoras do Prefácio, nesse ponto:
A formulação do Direito Novo, proposto pela Nair é tratada no artigo “Do Direito Novo e a Nova Escola Jurídica Brasileira (NAIR) ao Direito Achado na Rua: anomia, poder dual, pluralismo jurídico e os direitos humanos”. Nele, Eduardo Xavier Lemos propõe uma ‘revisitação de temas estruturantes para o conceito de humanismo dialético, projeto da NAIR, retomamos os estudos de Roberto Lyra Filho, José Geraldo de Sousa Junior e os trabalhos escritos pelo coletivo’ e analisa a própria formação do movimento. O autor destaca, na proposta de tal escola de pensamento, ‘o combate fervoroso ao direito positivo e a dogmática jurídica que aprisiona o jurista à letra da lei positivada, ensejando o pluralismo jurídico’.
Atento às exigências que a realidade impõe, em especial, aos movimentos populares, José Geraldo de Sousa Junior, num movimento freireano, atendeu os chamados de movimentos sociais, de suas assessorias jurídicas, de construtores do direito e agentes de cidadania, e incorporou seus temas geradores para sulear o desenvolvimento da série. Em um movimento que é, ele próprio, uma inovação metodológica no campo da educação e do ensino jurídico. O acervo construído sob sua coordenação se constituiu como referência em temas nevrálgicos à defesa do direitos dos/as oprimidos/as: teoria crítica do direito, direito do trabalho, direito agrário, direito à saúde, direitos das mulheres, justiça de transição, direito à informação e à comunicação, direito urbanístico, direito à liberdade.
Localiza-se nessa passagem, o conjunto de categorias aplicadas por Eduardo e que o credenciam como contribuição antológica para demarcar o campo. Assim, remeto ao seu O Pluralismo Jurídico na Omissão Estatal. O direito achado no cárcere. Eduardo Xavier Lemos. Porto Alegre: Núria Fabris Editora, 2014 (conferir por igual minha recensão (http://estadodedireito.com.br/21321-2/):
O livro ora editado, sob os auspícios da sensibilidade editorial de Núria Fabris Editora, é originado da dissertação de mestrado defendida pelo autor na Faculdade de Direito, da Universidade de Brasília. Da apresentação original – “O Direito Achado na Rua, Pluralismo Jurídico, Teoria Crítica dos Direitos Humanos e a Luta por Direitos no Presídio Regional de Pelotas”- a obra conserva a estrutura de três capítulos, nos quais se propõe estudar a reivindicação de direitos no sistema prisional a partir das teorias pluralistas do direito e da teoria crítica dos direitos humanos.
Em seu trabalho, o autor percorre com precisão, o roteiro disciplinado sugerido por Roberto Lyra Filho, para orientar as tarefas do pensamento forte mas socialmente engajado: “ater-se ao ângulo prático, no sentido de prática científica e ligação com a prática social, de onde emerge o discurso epistemológico mais enfibrado”. É nessa condição que o trabalho escapa à derrapagem comum em estudos com o arranque que nele se surpreende, para não cair nos erros comuns advertidos pelo grande pensador na face criativa de suas análises criminológicas (Roberto Lyra Filho, Carta Aberta a um Jovem Criminólogo: Teoria, Práxis e Táticas Atuais, Revista de Direito Penal, vol. 28 Forense, Rio de Janeiro, 1980, págs. 5 a 25).
O estudo parte da análise do pluralismo jurídico, perspectiva teórica adotada pelo autor. Dessa forma, seu primeiro capítulo estrutura-se pelas definições das teorias pluralistas do direito, traçando as características gerais da gênese da teoria.
Registros esses que, ao meu ver, trazem proposições não pessimistas, mas sim reflexivas. Pois, não há qualquer outro caminho, em temas tão sensíveis e interpelantes, que não seguir os direitos e garantias fundamentais para todos os cidadãos e cidadãs do Brasil, até que as penas sejam mais justas, que cada vez o Estado recorra a menos presídios, que se adote um tratamento humanitário para pessoas apenadas, e que as prisões provisórias sejam devidas somente para casos extremos e necessários, de que a utilização das penas guarde proporcionalidade ao injusto, que seja posto fim ao subjetivismo judicial (do decisor), das arbitrariedades, dos casuísmos e que se imponha uma política criminal que vise diminuir progressivamente o aprisionamento no país, para que o cárcere apenas venha a atender casos pontuais, possibilitando uma condição digna para as pessoas que estiverem sob tutela e responsabilidade do estado, e assim alcancem a (re) inserção social para todos que venham a se desviar pelo caminho do crime.
Completo por absolutamente pertinente, com o Prólogo de David Sanches Rúbio:
la obra representa una admirable humildad llena de coraje y valentía. Frente a un sistema económico, institucional, simbólico y cultural capitalista, en el que el narcisismo, la arrogancia, la prepotencia, el cinismo, la agresividad, el egoísmo y la competitividad de los ganhadores frente a los perdedores son la norma, Eduardo Lemos apuesta por espacios relacionales y de convivencia donde predomina la horizontalidad, la reciprocidad, la mutualidad, la fraternidad, la ayuda y los reconocimientos mutuos. Si el capitalismo ecocida, globalifágico, globalifóbico, psicópata y sociópata fragmenta, divide y da buenas razones para matar en nombre del mercado y la generación de riqueza, nuestro querido iusfilósofo pelotense con su obra, desde el espíritu de los movimientos sociales anti-capitalistas y hermanados a partir de sociabilidades basadas en lo común y lo pro-común, propone caminos que puedan enfrentar un sistema que desprecia desde su complejo de superioridad y que clasifica la realidad bajo el par o el dualismo superior/inferior que concretiza desde el patriarcado, el racismo, el colonialismo y el desarrollo desigual.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.5
Secretaria de Reforma do Judiciário: uma experiência de política de justiça para democratização do acesso à justiça no Brasil
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
Kelly Oliveira de Araújo.Secretaria de Reforma do Judiciário: uma experiência de política de justiça para democratização do acesso à justiça no Brasil. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito, Universidade de Brasília. Brasília, 2023, 168 fls.
O trabalho destacado resulta de Dissertação de Mestrado apresentada, defendida e aprovada perante a Banca Examinadora assim formada: Professoras Talita Rampin, UnB/FD, Orientadora; Rebecca Lemos, Membra Interna, Universidade de Brasília; Márcia Pellegrini, Membra Externa (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). Também participei, como membro suplente, arguidor.
Conforme o resumo, a Dissertação “apresenta os resultados alcançados com o desenvolvimento de pesquisa de mestrado voltada à análise da Secretaria de Reforma do Judiciário, que foi criada em 2003 no primeiro ano de governo do Partido dos Trabalhadores no Brasil, sob a presidência de Luiz Inácio Lula da Silva. Vinculada ao Ministério da Justiça, órgão do Poder Executivo, essa Secretaria tinha como atribuição a formulação e a implementação de políticas e medidas voltadas para a modernização, eficiência e democratização da justiça no país. O objetivo geral da pesquisa foi compreender as contribuições da Secretaria para a reforma do judiciário”.
Com uma possibilidade de observadora participante, nas circunstâncias bem indicadas pela Autora, a Dissertação reúne um material bem documentado para favorecer aproximações analíticas diversas, para além daquela por ela oferecida na Dissertação, tanto mais valiosa porque a experiência objeto de estudo foi interrompida com a extinção da Secretaria de Reforma do Judiciário, junto com um período de desmantelamento das estruturas de cidadania, democracia, justiça e direitos por uma governança necropolítica, atualmente com sinais de retomada inclusive com a criação da Secretaria de Acesso à Justiça, cuja direção muito se beneficiará com os resultados do estudo ora apresentado.
Assim que, orientada por um sumário didaticamente analítico, a Dissertação oferece o seguinte conteúdo:
No primeiro capítulo dessa pesquisa, é apresentado o contexto político do surgimento da SRJ e uma introdução da revisão bibliográfica sobre acesso à justiça, além do conceito de políticas públicas, com objetivo de identificar a referência teórica utilizada desta pesquisa, bem como a contextualização do acesso à justiça a partir da Constituição de 1988. Em seguida, é realizado o estudo desde da criação da Secretaria de Reforma do Judiciário, analisando a sua competência, sua estrutura administrativa e a sua atuação até o final do segundo mandato do segundo Governo Lula, no ano de 2010.
O segundo capítulo da pesquisa tem como foco e marco temporal a atuação da Secretaria de Reforma do Judiciário no Governo Dilma Rousseff (2011-2015) até a sua extinção, em fevereiro de 2016. O objetivo aqui é identificar não só a atuação da Secretaria, mas também as políticas de justiça elaboradas, executadas e institucionalizadas por ela, bem como investigar os motivos da sua extinção, além de analisar as mudanças das competências para a Secretaria Nacional de Justiça e Cidadania.
Tratando do período após a extinção da Secretaria de Reforma do Judiciário, o terceiro capítulo tem como objetivo analisar e identificar a atuação dos órgãos do Ministério da Justiça, que assumiram as suas competências e projetos: Secretaria Nacional de Justiça e Cidadania e a Secretaria Nacional de Justiça (SENAJUS), nos respectivos governos dos ex-presidentes Michel Temer (2016-2018) e Jair Bolsonaro (2019-2022); trata também da secretaria que substituiria a então extinta SRJ, no início do terceiro mandato do presidente Lula, em 2023, a Secretaria de Acesso à Justiça (SAJU), criada no âmbito do Ministério da Justiça, seguindo uma mudança de direcionamento já prevista pelo último secretário da SRJ, e que tem como competência a promoção dos direitos e o acesso à justiça, apresentando sua base normativa, a sua estrutura administrativa e informações sobre a sua atuação da nova Secretaria, a fim de compreender o seu propósito e a sua relação com o legado da extinta Secretaria de Reforma do Judiciário.
Folgo em me ver apontado entre as referências epistemológicas que formam o marco teórico do estudo, orientado por designar as perspectivas democráticas sobre o acesso à Justiça.
Assim, com outros interlocutores da Autora, de resto todas e especialmente todas presentes na Banca, considero que o modo como estou posto no trabalho condiz bem com os esforços que venho fazendo para dar relevo ao conceito de acesso à justiça para além de sua funcionalidade burocrático institucional e mesmo procedimental.
Assim que me vejo bem inserido na formulação da Autora conforme o recorte que ela faz de minha consideração sobre o tema, que deu ensejo a nota 33 de seu trabalho, até porque me põe em associação com a sua orientadora professora Talita Rampin:
Segundo José Geraldo de Sousa Junior, a compreensão de acesso à justiça deve transcender o acesso ao Judiciário. Trata-se, de acordo com o autor, de uma forma de mediação que possibilita a criação de condições para a emancipação de grupos sociais. Para Talita Rampin, as teorias da justiça são resultantes de teorias de valores de justiça, resultados de escolhas guiadas por preferências, interesses, esquemas morais e processos culturais. E a alteração ou a concorrência pela mudança do conceito da “justiça” e sobre o acesso a ela é premissa necessária que recai na infraestrutura social. É importante observar, nesse sentido, que qualquer discussão sobre acesso à justiça deve conter o exercício de reflexão crítica acerca da infraestrutura, sob pena de apenas servir para contribuir para a sua manutenção.
A propósito, participando com a professora Talita Rampin de banca recente – apresentada por Verônica Fonseca de Resende – disse eu ali e repito aqui, considerar de muita pertinência o enquadramento do tema sob a perspectiva do alargamento não só funcional e modernizante mas também epistemológico do acesso à Justiça. Percebo que o bom diálogo com autores muito qualificados nesse tema. E que, a partir dessa interlocução na qual me reconheço, tenho que podemos nos entender sobre realizar a promessa democrática da Constituição que era e é ainda o desafio que se põe para o Judiciário e para responder a esse desafio precisa ele mesmo recriar-se na forma e no agir democrático. Mas o desafio maior que se põe para concretizar a promessa do acesso democrático à justiça e da efetivação de direitos é pensar as estratégias de alargamento das vias para esse acesso e isso implica encontrar no direito a mediação realizadora das experiências de ampliação da juridicidade. Com Boaventura de Sousa Santos podemos dizer que isso implica dispor de instrumentos de interpretação dos modos expansivos de iniciativas, de movimentos, de organizações que, resistentes aos processos de exclusão social, lhes contrapõem alternativas emancipatórias.
Com sua orientadora tenho discutido muito essa questão, inclusive ao tempo da elaboração de sua tese de doutoramento. Sobre esses temas, além das referências DAS NOTAS 33 E 34, remeto aos livros nos quais travamos uma boa parte desse diálogo: REBOUÇAS, Gabriela Maia; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; CARVALHO NETO, Ernani Rodrigues de (Organizadores). Experiências Compartilhadas de Acesso à Justiça: Reflexões teóricas e práticas. Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo, 2016, 281 p. Texto Eletrônico. Modelo de Acesso World Wide Web (gratuito). www.esserenelmondo.com.br; REBOUÇAS, Gabriela Maia; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; ESTEVES, Juliana Teixeira (Organizadores). Políticas Públicas de Acesso à Justiça: Transições e Desafios. Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo, 2017, 177 p. E-Book (gratuito). www.esserenelmondo.com.br. Sobre essas obras ver a minha recensão em http://estadodedireito.com.br/experiencias-compartilhadas-de-acesso-a-justica-reflexoes-teoricas-e-praticas/.
Aliás, nessa resenha, abro uma nota de identidade que se estabelece para aferir a coerência e o potencial utópico desse material, está na sua virtualidade, inclusive semântica (CORREIA, Ludmila Cerqueira, ESCRIVÃO FILHO, Antonio; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Exigências Críticas para a Assessoria Jurídica Popular: Contribuições de O Direito Achado na Rua. Coimbra: CesContexto, Debates n. 19, outubro de 2017), de se instalar como plataforma para um direito emancipatório (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Concepção e Prática do O Direito Achado na Rua: Plataforma para um Direito Emancipatório. Brasília: Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário, 6(1), abril/junho, 2017), para o exercício protagonista, crítico e criativo, operando novos e combinados mecanismos políticos e técnicas jurídicas, para o alargamento democrático do sistema de justiça.
Penso que a Dissertação dá bem conta dessa sofisticada tessitura de uma bem imaginada abertura institucional para a expansão do acesso nesses termos alargados. Sou testemunha disso em meus contatos sempre que o acadêmico foi convocado para contribuir com a gestão.
Anoto, por exemplo, para marcar um dos nós dessa tessitura, a construção do Atlas de Acesso à Justiça. Inscrevi no catálogo das matérias que documentam essa experiência, minha participação, juntamente com o então coordenador-geral de modernização da Administração da Justiça da SRJ.
Aqui o registro é para o programa da TV Brasil CENAS DO BRASIL – 23.10.14: O Atlas de Acesso à Justiça reúne informações úteis para contato da população com o Poder Judiciário. A publicação tem como objetivo democratizar a relação e facilitar a vida do cidadão. Sobre o assunto, no Cenas do Brasil conversei com a âncora do Programa, avaliando a iniciativa, conforme – https://www.youtube.com/watch?v=qG8PUC4XtJk.
Assim também e porque especialmente referido – p. 66 – “o espaço instituído pelo CEJUS para articulação de conhecimento e ações relacionadas aos diferentes atores do Sistema de Justiça era o projeto “Diálogos sobre a Justiça”, organizado em três eixos: revista periódica, pesquisas e seminários”. Registro para reforço a minha contribuição – A Cultura de Litígio e o Ensino Jurídico no Brasil – para o número 3, ano 1, setembro/dezembro de 2014, Brasília, de Diálogos sobre Justiça (a professora Talita Rampin, na qualidade de consultora PNUD compôs o Conselho Editorial da publicação).
Aproveito o ensejo dessa arguição e do fato que ela acaba sendo publicada no formato da Coluna Lido para Você que mantenho no Jornal Estado de Direito, um elemento de conhecimento e de utilidade para a pesquisa da Dissertação, que pelas circunstâncias se perdeu e não poderia ser conhecido. Refiro-me exatamente ao processo de institucionalização, no âmbito da Secretaria de Reforma do Judiciário, de um Centro de Estudos sobre o Sistema de Justiça (CEJUS) e, sobretudo, da proposta de Diálogo sobre Justiça, do qual a Revista “Diálogos sobre Justiça” foi a tribuna mais eloqüente, levou ao aprofundamento dessas diretrizes e logrou criar um repositório de estudos muito relevantes que mais evidenciaram a pertinência da formulação de alternatividades.
Com certeza, tendo contribuído para configurar aproximações metodológicas para protocolos de investigações, numa contribuição singular para fortalecer o enfoque empírico de pesquisa, modalidade de investigação a que se faz ainda relutante o campo jurídico, disso deu conta a entrevista que o CEJUS fez comigo e que as circunstâncias de desmonte do setor naquela conjuntura, acabaram por interditar. Por isso aqui, agora, o ensejo para compartilhar a ENTREVISTA, em tudo útil para mais completude à Dissertação:
1.Qual seu diagnóstico da pesquisa empírica em direito no Brasil? [Há mudanças significativas no interesse dos pesquisadores pelo uso de metodologias empíricas nos últimos anos? Se sim, a que você atribui esse maior interesse?
A criação dos cursos jurídicos no Brasil, no século XIX, em que pese o caráter retórico inscrito no seu modelo de origem, ainda muito colado à ideologia do jusnaturalismo idealista e da reprodução ideologizada do modelo coimbrão que o inspirou, se implantou num tempo epistemológico de mudança paradigmática orientada pelo positivismo cientificista da modernaidade. Assim, o Direito logo se viu inserido em seu contexto de ciência social e fortemente instigado pelo empirismo da abordagem sociologista que foi a expressão científica do jurídico nesse contexto.
Basta ver, nesse aspecto, já o mencionei em outro lugar(Sociologia Jurídica: Condições Sociais e Possibilidades Teóricas, Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 2002), não ser acaso que o movimento contraposto à idéia de sistema que serviu para constituir a ciência jurídica e que se realizou teoricamente no Século XIX, sob a epígrafe de jurisprudência dos conceitos, tenha arrancado, como anota Karl Larenz (Metodologia da Ciência do Direito, Fundação Calouste Gulbekian, Lisboa, 2ª edição, 1969), “não do terreno da filosofia, mas da recentemente surgida ciência empírica da realidade social, isto é, da sociologia”.
Cabe anotar, não obstante o desvio retórico e meramente abstrato da orientação que passou-se a imprimir na formação jurídica, a preocupação empírica presente no contexto da sistematização do ensino superior e do ensino jurídico no Brasil. Não é demais lembrar, também registrei em meu trabalho já mencionado, o Parecer de Rui Barbosa, afinal nunca aprovado em razão da queda do Gabinete em 1882, para a análise do Projeto de Reforma da Educação Superior e Primária no qual se propôs para a Faculdade de Direito, em substituição ao jusnaturalismo metafísico, o estudo da Sociologia: “(…) o princípio do progresso social que Comte enunciou, e que é o determinante de todos os deveres, pelo único meio de verificação que a ciência dispõe: aquele da relação visível das coisas; aquele da observação real dos fatos; aquele da sucessão natural das causas e efeitos. Esta é a base da Sociologia, enquanto o direito natural procura se apoiar na natureza: que a história não descobre em nenhuma época, em nenhuma reunião de criaturas pensantes…; ao direito natural, que é metafísica, nós preferimos a Sociologia”.
Sabe-se que até pelo 1994, com a mais recente reforma do ensino jurídico no Brasil, prevaleceu uma axiomatização retórica do jurídico movido pela ideoligização positivista e suas formas redutoras (conhecimento reduzido à ciência; política reduzida ao estatal e jurídico configurado como exclusivamente legal), infletindo, com as novas diretrizes, para o conhecimento do real pela mediação do empírico, com o retorno aos currículos das matérias sociologia, antropologia e história.
Todavia, aquela preocupação epistemológica de um conhecimento que não se evolasse em nefelibatismo abstrato manteve seu espaço de busca empírica do real, bastando registrar as pesquisas de Victor Nunes Leal (Coronelismo Enxada e Voto), de Cláudio Souto e Solange Souto (e suas pesquisas empíricas desenvolvidas na Universidade Federal de Pernambuco desde os anos 1970, O que é pensar sociologicamente; A explicação Sociológica, entre outras, todas resultado de pesquisas empíricas), de Joaquim Falcão (com seus trabalhos realizados com apoio do Departamento de Pesquisas da Fundação Joaquim Nabuco, de Pernambuco, entre outros Conflito de Direito de Propriedade – Invasões Urbanas; Pesquisa Científica e Direito). Sobre as características empíricas desses estudos, vale consultar o trabalho realizado por João Maurício Adeodato e Luciano Oliveira, a partir de edital do Conselho da Justiça Federal, O estado da arte da pesquisa jurídica e sócio-jurídica no Brasil, editado na Série Pesquisas do CEJ, 4, Brasília: CEJ – Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, 1996, exatamente para demarcar esse percurso.
Quero salientar que o projeto Pensando o Direito, instituído no âmbito da Secretaria de Assuntos Legislativos, do Ministério da Justiça, se insere nessa vertente e contribuiu e contribui para estimular grupos de pesquisa nas universidades e em outros centros de investigação, essa vertente fundamental para o conhecimento do Direito, seu ensino e a formulação de políticas públicas nesse campo.
2.Quais as dificuldades para a internalização da pesquisa empírica como um instrumento mais comum nas análises dos pesquisadores?
Mencionei que toda a questão está inserida num processo dramático de mudança paradigmática. Crise de modelo de conhecimento e de legitimação das racionalidades que o orientam, tal como vêm indicando os intérpretes dessa transição, marcante também no campo do Direito. Remeto aos estudos de Edgar Morin e de Boaventura de Sousa Santos, em geral e de Roberto Lyra Filho, especificamente, no Brasil. As interpelações radicais formuladas por Roberto Lyra Filho, propugnando precisamente o que configurou como O Direito Achado na Rua, estão em nosso horizonte atual de busca de localização, com todas as dificuldades que isso acarreta – teóricas e políticas. Penso aqui em seus textos-manifestos: O Direito que se ensina errado (mostrando o duplo equívoco que a expressão título pretende mostrar: inadequada percepção do objeto de conhecimento e os defeitos pedagógicos que disso derivam, o não ensinar bem o que se apreende mal); Para um direito sem dogmas (contra o fetichismo ideológico do jurídico na modernidade); O que é direito? (para acentuar que o Direito não é norma, antes a “enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade”; e, com relevo, Pesquisa em QUE Direito?, síntese das preocupações que são lançadas aqui nas questões desta entrevista, na medida em que procura “situar o papel e o trabalho do pesquisador em Direito”, com bem equilibrada articulação entre o teórico e o empírico, de modo a, diz ele, assegurar, valendo-se da metáfora de uma usina hidrelétrica que, na pesquisa, “a correnteza dos fatos sociais – isto é, a práxis jurídica inteira e sem mutilações – forma a energia esclarecedora das idéias, que logo regressam às mesmas águas potentes, estabelecendo a conexão com o fluxo da realidade móvel, sem a qual não há luz, nem se faz avançar o saber”.
Chamo a atenção, dada a preocupação exatamente de confrontar dificuldades e de procurar internalizar a pesquisa empírica como instrumento relevante para o conhecimento do Direito, porém, não sem as tensões a que alude Roberto Lyra Filho, a criação da Rede de Pesquisa Empírica em Direito, que reúne pesquisadores e grupos de pesquisa institucionalizados, tal como a sua denominação indica. Em seu último (IV) encontro nacional realizado em Brasília, na UnB, em setembro deste ano de 2014, todas essas preocupações estiveram presentes e foram abordas em diferentes painéis, como eu disse, não sem tensões e conflitos epistemológicos e técnicos. Participei do primeiro painel, logo após a abertura, com o tema “O direito achado na rua e a antropologia do direito”. Detalhe, o Encontro instalou-se com uma homenagem inscrita na convocatória: Roberto Lyra Filho: Pesquisa em (que) Direito?.
3.Você acredita que projetos como o Pensando ao Direito tem influência direta no incentivo a pesquisa empírica?
Certamente. Além de instalar um campo de fomento formidável, bastando ver a mobilização de grupos de pesquisadores para responder aos editais e, logo, a qualidade dos trabalhos apresentados, sabatinados e publicados no repertório criado pelo projeto. O impacto desse fomento é duplamente constatado. Primeiro, pelo incentivo á formação de grupos de pesquisa, mobilizando competências e gerando formas de integração de diferentes perfis de investigadores: iniciação científica, jovens talentos, bolsistas inscritos em grupos de pesquisa e investigadores seniores, líderes de projetos institucionalizados em diferentes plataformas (por exemplo, Plataforma Lattes de Grupos de Pesquisa, do CNPq); segundo, pela possibilidade, real, de implementação de políticas públicas inscritas nas projeções dos resultados das pesquisas. Cito a minha experiência, que levou à institucionalização de um Observatório da Justiça, numa interessante interinstitucionalidade acadêmico-funcional envolvendo o Ministério da Justiça, um centro internacional de estudos e pesquisas (CES da Universidade de Coimbra) e uma universidade pública (UFMG).
4.Como você descreveria sua experiência com o projeto Pensando o Direito, do Ministério da Justiça [métodos empregados na seleção e no acompanhamento das pesquisas, e.g]
Reporto-me aqui ao que já manifestei na Carta de apresentação da pesquisa, por mim assinada na qualidade de coordenador da pesquisa “Observatório do Judiciário”, volume nº 15/2009, da Série Pensando o Direito, já mencionado. A resposta que pudemos oferecer à convocação do Mistério da Justiça, nesse projeto, que também serve para descrever a minha própria experiência, pode se expressar de duas formas: Em primeiro lugar, identificar dimensões de análise e acompanhamento da Justiça com base na experiência de Observação da Justiça desenvolvida no âmbito do projeto. Em segundo lugar, o ter podido indicar arranjos para institucionalização dessas experiências e de suas lições aprendidas, com a expectativa de vê-las transformadas em atividade permanente. Sinto-me como realizado naquela orientação que Marx atribuiu aos pensadores, de não apenas nos conformarmos com a interpretação do mundo, mas contribuir para transformá-lo.
No trabalho pude exercitar estratégias de abordagem do objeto de estudo, combinar técnicas e instrumentos de pesquisa, incluindo entrevistas, articular teoria e prática e experimentar, com rigor, possibilidades inclusive de “transgressão”, como propõe Boaventura de Sousa Santos, lembrando que a racionalidade não reside num único modo de conhecer, mas na integração e no diálogo entre todos eles.
Mas pude, principalmente, participar de uma experiência riquíssima de construção de um protocolo de pesquisa que levou a concertar aproximações interinstitucionais (UnB/Faculdade de Direito e UFRJ/Faculdade de Direito) e agendas para o diálogo interpessoal, no sentido de colocar em um mesmo projeto, pesquisadores com trajetórias e aquisições muito distintas mas que lograram estabelecer um programa comum e uma carta de princípios para levar a cabo os consensos razoáveis que souberam manter num bem elaborado consenso.
Uma anotação. Na entrevista, conduzida no interesse do CEJUS, há incisiva referência ao projeto Pensando o Direito. Esse projeto foi conduzido e concluído pela Secretaria de Assuntos Legislativos. Mas o projeto nº 15/2009 – Observatório do Judiciário, teve seu protocolo e objetivos concertado pelos dois Secretários Pedro Abramovay (SAL) e Rogério Favreto (SRJ), atualmente desembargador federal. E nesse caso, sob a moderação do ministro Tarso Genro (com quem viajei a Portugal para apresentar seus resultados ao CES – Centro de Estudos Sociais de Coimbra), atendeu todos os marcadores estabelecidos pela SRJ que implementou suas proposições. Essas sobreposições e também o corte estrutural-temporal da pesquisa reduziu a visibilidade desse projeto.
No link acima, logo no cabeçalho que designa a publicação, a edição-síntese do relatório da pesquisa de que trata o volume 15 de 2009, é apresentada por seus coordenadores acadêmicos. Antes, em 2008, em texto mais analítico, esses resultados foram antecipados, conforme o artigo Por uma concepção alargada de Acesso à Justiça. José Geraldo de Sousa Jr., (Coordenador), representando a qualificada equipe que produziu o trabalho, todos e todas designados na edição do texto (Rev. Jur., Brasília, v. 11, n. 90, Edição Especial, Abr./Mai. 2008 www.planalto gov.br/revistajuridica; file:///Users/JoseGeraldo/Downloads/30-23-PB%20(1).pdf). Além do coordenador, integraram a equipe de pesquisa e nominalmente estão mencionados na edição. Integraram a equipe de pesquisa: Professores Coordenadores: José Geraldo de Sousa Junior, Menelick de Carvalho Netto, Alexandre Bernardino Costa, Alexandre Garrido da Silva, Cristiano Paixão, Fernando Gama Miranda Netto, José Ribas Vieira, Juliana Neuenschwander Magalhães, Marcus Firmino Santiago, Margarida Maria, Lacombe Camargo, Noel Struchiner. Pesquisadores: Adriana Andrade Miranda, Alexandre Melo Soares, Aline Lisboa Naves Guimarães, Beatriz Cruz, Bistra Stefanova Apostolova, Bruno Borges, Carolina, Martins Pinheiro, Carolina Pereira Tokarski, Daniel augusto Vila-Nova Gomes, Daniel Bartha, Daniel Pitangueiras de Avelino, Daniela Diniz, Denise Gisele de Brito Damasco, Diego Nepomuceno Nardi, Douglas Alencar Rodrigues, Douglas Rocha Pinheiro, Eduardo Gonçalves Rocha, Fabiana Gorenstein, Fabiana Perillo de Farias, Fabio Costa Morais de Sá e Silva, Fernanda Nathalí Carvalho Soares, Flávia Carlet, Gilsely Barbara Barreto Santana, Guilherme Cintra Guimarães, Guilherme Scotti, Jan Yuri Figueiredo de Amorim, João Gabriel Pimentel Lopes, João Paulo Santos, Jorge Luiz Ribeiro de Medeiros, José, Eduardo Elias Romão, Judithi Karine Cavalcanti Santos, Laís Maranhão, Leonardo Barbosa, Liana Lyrio, Lívia Maier, Luciana Ramos, Luisa de Marilac, Mariana Siqueira de Carvalho Oliveira, Mariana Veras, Marthius Sávio Cavalcante Lobato, Milena Pinheiro Martins, Paulo Henrique Blair de Oliveira, Paulo Rená da Silva Santarém, Paulo Sávio Peixoto Maia, Pedro Mahin, Raissa Roussenq Alves, Raquel Negreiros, Renan Dutra Labrea, Renato Bigliazzi, Ricardo Machado Lourenço Filho, Rosane Freire Lacerda, Saionara Reis, Silvia Regina Pontes Lopes, Soraia da Rosa Mendes, Tahinah Albuquerque Martins, Talitha Selvati Nobre Mendonça, Thiago Gabriel dos Santos, Vanessa Schinke, Vinicius Iglesias, Vítor Miguel Naked de Araújo, Vitor Pinto Chaves, Werlen Lauton de Andrade (p. 1).
A Série, dentro da qual por meio de chamada em edital o protocolo de pesquisa foi estabelecido, remonta a uma conjuntura de forte mobilização democrática dentro do princípio de inserção do Estado e de sua alta burocracia no paradigma de governança participativa, nos marcos da Constituição de 1988, uma condição que desde os acontecimentos de 2016 (afastamento da Presidenta da República), entra em refluxo, num claro processo de desconstitucionalização e de desdemocratização do País.
A Série, portanto, no âmbito do Ministério da Justiça, respondeu a esse protocolo, assim como a institucionalização, na Secretaria de Reforma do Judiciário, sob a lúcida direção de Flávio Caetano (infelizmente extinta já naquela ocasião), da Revista Diálogos sobre Justiça, produzida pelo Centro de Estudos sobre o Sistema de Justiça, da SRJ (tenho um texto publicado no número 3, ano I, setembro-dezembro de 2014, A Cultura de Litígio e o Ensino Jurídico no Brasil, p. 52-62).
Vou às considerações finais da Dissertação, naquilo que mais diretamente indica os pontos com os quais tenho concordância:
A percepção de que o acesso à justiça sempre esteve ligado ao conhecimento dos direitos e deveres de cada cidadão foi outra importante descoberta da SRJ, por meio de diagnósticos e registro de dados, modernização do aparato do sistema judiciário, que possibilitou a criação de cursos, oficinas, reuniões, debates, e agora até mesmo a formação de mediadores por meio de cursos à distância, mudando completamente o cenário, e fazendo com que a realidade brasileira estivesse mais condizente com o que instiui a Constituição de 1988, uma das melhores do mundo.
Em uma democracia, não se faz as reformas necessárias por meio de autoritarismos ou considerando o interesse de alguns que se acham privilegiados, e a equidade que a SRJ sempre promoveu demonstra o seu compromisso com a Constituição, que prevê a inclusão de todos no acesso à justiça também ao dar subsídios aos hipossuficientes, o que foi a marca da atuação da secretaria.
O mais impressionante foi ver as tronsformações serem possíveis por meio de esforços de muitos que acreditam na democracia brasileira precisa dar a devida importância à democratização do acesso à justiça a todas as pessoas, pois só assim se estaremos exercendo a plena liberdade.
Muitos viram a criação da Secretaria de Reforma do Judiciário pelo Poder Executivo como uma forma desse controlar, de certa forma, o exercício do trabalho do Poder Judiciário, o que, pelos balanços, acordos, conversas, que a SRJ promoveu ao longo dos anos de sua existência são suficientes para mostrar que este nunca foi o objetivo da secretaria.
A minha questão então como arguição necessária após o exame da Dissertação é a seguinte:
No trabalho de recensão sobre o que mais chamamos de observação da Justiça que que observação do Judiciário, acabamos por constatar ser possível estabelecer pesquisa com assessorias jurídicas de movimentos sociais e extrair de suas observações, a visão negativa dos modelos adjudicatórios do sistema legal e judiciário, presos às normas constituídas como unidade de análise das relações de conflito e incapazes de realizar até mesmo as promessas constitucionais de realização da Justiça, entre outros fatores, pela “resistência a trabalhar com o direito da rua”, pela “baixa sensibilidade para as demandas da comunidade”, pelos “limites culturais para a percepção de sujeitos e demandas inscritas nos conflitos sociais”, pela manutenção de “corpo com formação técnica desvinculada das experiências do mundo da vida”, pela “postura institucional burocrática” e pela “pouca permeabilidade ao controle social”.
Em contrapartida, pediam esses prestamistas de uma Justiça atualizada e modernizada para além do simplesmente funcional-burocrático-legal: “respeito às temporalidades democráticas”, “fortalecimento comunitário”, “educação em Direitos Humanos”, “uso dos meios de comunicação”, “conscientização e sensibilização” e, em síntese, “reconhecimento e acreditamento do protagonismo das experiências de mediação social realizadas fora das instâncias estatais”.
Estão esses marcadores inscritos no potencial democrático de uma secretaria de acesso à Justiça, no contexto de tudo que analisou e do marco teórico de seu trabalho – relembro: marco teórico do estudo, orientado por designar as perspectivas democráticas sobre o acesso à Justiça? Estamos os operadores de Direito e os agentes mediadores dos sistemas de justiça e judiciários em condições de compreender e operacionalizar estratégias e instrumentos para realizar uma Justiça atualizada e modernizada para além do simplesmente funcional-burocrático-legal?
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.5
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Na sala da justiça. Contos. Gabriela Jardon. Belo Horizonte: Caravana, 2023, 52 p.
Conforme a descrição da obra, na página da editora, Na sala da justiça, de Gabriela Jardon, traz os meandros da literatura e o dia a dia dos tribunais, a condição humana posta ao seu limite. É uma vibrante série de contos, escritos por uma juíza de direito cuja inteligência e sensibilidade não cabem no enquadramento asséptico dos processos e das audiências judiciais.
Mas mesmo nesse espaço contido que é o procedimento judicial, Gabriela já se revelara por inteiro, trazendo sutileza e elegância ao seu ofício e, nesse ofício, na expressão de uma justiça poética para aludir à caracterização proposta por Martha Nussbaun, para designar o juiz sensível, aquele que sabe se colocar no lugar do outro. Deixei essa condição mais detidamente assinalada em recensão sobre a obra da filósofa do direito da Universidade de Chicago – Justicia Poética. La Imaginación Literaria y La Vida Publica. Martha Nussbaun. Barcelona, Buenos Aires, Mexico DF, Santiago: Editorial Andrés Bello, 1997 – publicada aqui neste espaço da Coluna Lido para Você (http://estadodedireito.com.br/justicia-poetica-la-imaginacion-literaria-y-la-vida-publica/).
Essa perspectiva em Gabriela pode ser localizada em sua dissertação de mestrado que tive a satisfação de orientar – O Direito de Escuta das Partes Processuais, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, do CEAM – Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares. Brasília: Universidade de Brasília, 2021. Confira-se minha resenha em http://estadodedireito.com.br/o-direito-de-escuta-das-partes-processuais/. Numa atitude judicante que embala com sutileza, elegância e ritmo a sua escrita já se mostra marcantemente literária além de metafórica para tornar disponíveis à cognição mediações raras nesse ofício.
Tudo para vencer o obstáculo de um sistema e de um agente (o juiz), inaptos para o escutar: “provas de fatos, seguidas da subsunção silogística fato-norma-jurisprudência, são, pois, o centro insistente das práticas de trabalho da magistratura – e não deixa de ser curioso como, assim, vão se derretendo os sentidos originários da audiência e da sentença, etimologicamente, “atenção dada a quem fala” e “ato de sentir”, respectivamente. O juiz e a juíza brasileiros/as do século XXI, realizam centenas de audiências e exaram milhares de sentenças ao ano, mas, na maioria das vezes, fazem audiências sem ouvir e, por isso, acabam emitindo sentenças sem sentir” (p. 178, da Dissertação).
Na resenha, sob essa perspectiva, chego a supor que a Autora ensaia um manual de uso atenta a não permanecer no plano abstrato do desejo, mas a formular desenhos operativos que institucionalizem a escuta. Ela projeta procedimentos e diretrizes de formação. Tem educação esmerada para conhecer os entraves funcionais, burocráticos, regulamentares e até subjetivos. Leu Anatole France, leu Tolstoi, lei Proust, leu Balzac. Transcreveu páginas dramáticas dos três primeiros. Pensa como Balzac:
“Quando um homem cai nas mãos da Justiça, deixa de ser um ser moral, mas apenas uma questão de direito ou de fato, como aos olhos dos estatísticos se transforma um número” (BALZAC, Honoré de. O Coronel Chabert, Otto Pierre, Anatole France, pensou no juiz. Poderia também fazê-lo quando o grande escritor olha com os olhos do jurisdicionado (Da Submissão de Crainquebille às Leis da República. Crainquebille in FRANCE, Anatole. A Justiça dos Homens, Rio de Janeiro: Editora Civilização brasileira, 1978): “Crainquebille sentou-se na sua banqueta acorrentada, cheio de espanto e admiração. Ele mesmo não estava bem certo de que os juízes se houvessem enganado. O tribunal escondera-lhe as suas íntimas fraquezas sob a majestade das formas. Ele não podia acreditar que pudesse ter razão contra magistrados cujas razões não compreendera: era-lhe impossível conceber que alguma coisa claudicasse numa tão bela cerimônia”.
É instigante surpreender esse trânsito epistemológico enredado na interseção de linguagens, da arte, da ciência, da filosofia, do direito tão natural em Gabriela. Confirmando o que propõe o professor Eduardo Lourenço de Coimbra (A Mitologia da Saudade), que real pode ser apreendido por muitas linguagens. Aliás, tomando uma das referências de Gabriela – Anatole France – que vai lhe emprestar o tema de uma de suas crônicas – A lei é morta, o juiz é vivo – pode-se imediatamente configurar o Carrefour de suas múltiplas manifestações de sua potência de expressão.
Penso em Retratofalado. Ensaios em Estado de Imagem. Textos Danielle Martins, Gabriela Jardon, Mariana Carvalho. Fotografias Wanessa Montoril. Brasília: Edição das Autoras/Athalai Gráfica e Editora, 2019, obra que reúne contos de mulheres que atuam no mundo do Direito. Ali vai aparecer Gabriela Jardon e suas crônicas, dando vida a leis inanimadas: “Pela primeira vez na vida, fiz uma inspeção judicial. Inspeção judicial é um meio de prova previsto no Código de Processo Civil e praticamente morto. Este nosso novo mundo de números, estatísticas, massificação de processos, pressas e agonias não deixou mais espaço para que um juiz, na dúvida sobre alguma coisa, pegue seu bocadinho de tempo, desloque-se, vá até o local do problema, veja com seus próprios olhos, roce sua pele e sinta o cheiro das controvérsias, não se contentando só com as suas tão desconfiáveis narrativas. Pois outro dia fui. Dois prédios geminados de quitinetes nas setecentos da Asa Norte. Os moradores, com os anos, foram invadindo aqui, deixando o vizinho entrar ali, mudando as paredes internas, de modo que existe lá hoje o estranhíssimo fenômeno arquitetônico de haver quitinetes localizadas metade em um prédio e metade em outro. Um dos edifícios foi a leilão e arrematado. O arrematante quer que os moradores saiam do imóvel adquirido por ele. Devemos precisar então, exatamente, onde cada quitinete se localiza. Nomeei um perito engenheiro civil e ele orçou alto a perícia. As quitinetes são simplórias, as pessoas envolvidas não têm o dinheiro e estávamos nesse impasse. Sabe de uma coisa? Vou lá com minha trena – eu sempre gostei de uma reforma. Em 15 minutos, tive todas as respostas que precisava e voltei para a vara com uma noção do que estava em jogo poucas vezes alcançada por mim em outro processo”.
É esta juíza sensível que chega à pós-graduação em direitos humanos na UnB, depois de já ter completado um máster sobre o tema em Essex (Reino Unido) para abrir os debates sobre a escuta profunda tão necessária nos espaços de mediação institucional: “Não há dúvida de que o Judiciário tradicional, calcado quase que apenas na operação pretensamente matemática da subsunção do fato à norma estatal, dá conta, se é mesmo que dá, de uma parcela ínfima do que pode se entender por direito e distribuição de justiça. É urgente que se alarguem as possibilidades, que se trabalhe com outras racionalidades e caminhos de formação de decisão. Não se está falando, necessariamente, de direito alternativo ou de ativismo judicial. Sem descartá-los, a apologia a estas inclinações também seria encerrar o fenômeno do direito e da justiça em quadrantes menores do que sua real natureza. O Judiciário precisa se fazer permeável aos fenômenos sociais de uma maneira ampla, aguçando sua escuta e levando em consideração em seus processos decisórios argumentos que não sejam estritamente os do direito positivado”. (Gabriela Jardon, Um “tribunal achado na rua”: seria possível? Seria útil? Ou não passa de uma quimera?. Revista da Defensoria Pública do Distrito Federal, v. 1 n. 2 (2019): Ordenamentos jurídicos, monismos e pluralismos: O Direito Achado na Rua e as possibilidades de práticas jurídicas emancipadoras).
Aqui vemos os contos selecionados como expressão literária. Não é um acontecimento inédito como mostrei acima. Gabriela já debutara em coluna de um jornal de Brasília – https://www.metropoles.com/author/gabriela-jardon. Mas os que a conhecemos sabemos que ela é cronista em tempo integral, literalizando o seu alredor. Toda a sua estada recente em Portugal onde finaliza doutoramento é comunicada nessa forma literária. É um verdadeiro diário de viagem (ainda espero uma carta de viagem para a seção Cartas de Viagem do Blog Diários Lyrianos, cartas do Douro ou do Mondego). Mas seu próprio cotidiano é assim vivenciado. Quem passear em seu perfil no facebook poderá encontrar perolas de seu modo de perceber o mundo e o outro. Como essa que colhi deslumbrado:
Ela me pediu pra passar batom. “Mas vai melecar a chupeta”, disse eu. Olhou pra mim, olhou pra chupeta, resolveu: “não vou mais usar chupeta”.
Varada pelo tiro do tempo (como ocorre de sentir tanto), fiquei ali, de mão boba no ar, abanando chupetas, fraldas, mamadeiras e infinitos objetos e desobjetos passados.
E aí corri, corri depressa, tentando não olhar muito pra trás, a colocar os meus bebês no berço úmido das memórias sagradas da vida da gente. Nesse baú, o mais antigo, doce e doído de todos. E ali passar a niná-los ao me ninar também (como ocorre de precisar tanto).
Esse poderia ser um conto de um livro futuro: No meu berçário. Assim como agora ela nos brinda com esse Na Sala de Espera. Além de A lei é morta, o juiz é vivo, vamos encontrar: Quer voe, quer julgue; Dona Carlota; Kátia; Bola de Cristal; Seu Daniel; Getúlio; Lindo é pouco; Mais pai, impossível; Revéillon; Seu Jarbas; Rotina, só que não.
Com este último conto, fecho a resenha, e pareço compreender tudo. Talvez como o juiz de Tostói (A morte de Iván Ilitch): “Não sabia como eu o sei agora”. Com Gabriela, simplesmente Gabriela, também se possa dizer, “É trabalho.É rotina. Mas às vezes não é nada disso”.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.5
Violência de gênero – aportes conceituais e estratégias de enfrentamento
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Violência de gênero – aportes conceituais e estratégias de enfrentamento / Leônia Cavalcante Teixeira, Leonardo José Barreira Danziato, Danielle Maia Cruz, Jerzuí Mendes Tôrres Tomaz, Jean-Luc Gaspard (organizadores.). – Curitiba : CRV, 2022. 248 p. – https://drive.google.com/file/d/1-HOOJXZMViHywizjhbEzPBpD9V41Z5Rr/view
Na apresentação da obra os seus organizadores e organizadoras caracterizam o material nela reunido como Enfrentamentos à Violência de Gênero como uma Ética do Cuidado.
Conforme pode ser encontrado na página da Editora: a obra que contempla as vicissitudes da violência de gênero no coletivo e no singular. Com aportes teóricos multidisciplinares, a psicanálise nos seus litorais ratifica o compromisso ético e político no enfrentamento da violência no cenário contemporâneo a partir da consideração da história da construção das subjetividades no Brasil. Também na página é possível baixar livremente o livro.
Explicam os organizadores e as organizadoras: a “obra é mais um produto oriundo de uma pesquisa intitulada “Violência de gênero no contexto da pandemia do covid-19: uma proposta de intervenção em urgência subjetiva com mulheres em situação de vulnerabilidade e risco” realizada pelo Laboratório de Estudos sobre Psicanálise, Cultura e Subjetividades (LAEpCUS), vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza (UNIFOR)”.
São apresentadas experiências de enfrentamento à violência de gênero, recuperadas por pesquisas acadêmicas e registros de práticas institucionais. “Obviamente que – esclarecem – os saberes envolvidos e produzidos por essas experiências devem servir como aportes conceituais que nos permitam pensar, enfrentar e dissolver as práticas e os discursos que sustentam esse fenômeno devastador que é a violência de gênero”.
O livro está organizado em capítulos e seções, de modo que a obra compreende, conforme o Sumário com o seguinte conteúdo:
APRESENTAÇÃO
ENFRENTAMENTOS À VIOLÊNCIA DE GÊNERO COMO UMA ÉTICA DO CUIDADO
Leônia Cavalcante Teixeira
Leonardo José Barreira Danziato
Danielle Maia Cruz
Jerzuí Mendes Tôrres Tomaz
Jean-Luc Gaspard
1a SEÇÃO
VIOLÊNCIA DE GÊNERO E INSTITUIÇÕES
CAPÍTULO 1
DECLINAÇÕES DAS VIOLÊNCIAS E SEUS ENFRENTAMENTOS: crônica de um (des)caso Cristina Moreira Marcos
Edwiges de Oliveira Neves
Bruna Hallak
CAPÍTULO 2
PARADOXOS NA ESCUTA PSICANALÍTICA DE MULHERES EM SITUAÇÃO DERUA
Sandra Djambolakdjian Torossian
Luísa Susin dos Santos
Daniel Araujo dos Santos
CAPÍTULO 3
PSICANÁLISE E JUSTIÇA: articulações sobre uma práxis que se ocupa do imundo
Aline Lima Tavares
Sonia Alberti
2a SEÇÃO
ESTRATÉGIAS SUBJETIVAS, SOCIOCULTURAIS E POLÍTICAS DE ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA DE GÊNERO
CAPÍTULO 4
A CONSTRUÇÃO DE UM COLETIVO DE MULHERES QUE SOFREM VIOLÊNCIA DE GÊNERO: uma escolha política pela vida Cláudia Maria Perrone
Rose Gurski
Gabriela Gomes da Silva
Flávia Tridapalli Buechler
CAPÍTULO 5
RECONHECIMENTO COMO CATEGORIA DE COIBIÇÃO DA VIOLÊNCIA
Rafael Kalaf Cossi
CAPÍTULO 6
COMO A VIOLÊNCIA DE GÊNERO APARECE NO MATERIAL ONÍRICO E NOS PROCESSOS ASSOCIATIVOS EM UM GRUPO DE PARTILHA DE SONHOS
Jaquelina Maria Imbrizi
Jussara de Souza Silva
Gabriela Corrêa Ramos
Luísa Segalla de Carvalho
Juliana Teixeira Gomes
Raquel Baptista Spaziani
CAPÍTULO 7
INSCRIÇÕES SINGULARES E O ESPAÇO DE ESCUTA COMO FORMA DE ELUCIDAÇÃO DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO CONTRA A MULHER
Leonardo Danziato
Gabriela Ferreira Barbosa
Victor Temoteo Pinto
Luciana Ribeiro Lira
Ana Gabriela Braga Gonçalves Torres
João Pedro Almeida Bezerra
Bruna Estrela Andrade Braga Rocha
3a SEÇÃO
VIOLÊNCIAS DE GÊNERO, SEXUALIDADE E PATRIARCALISMO
CAPÍTULO 8
A OUTRA: o sujeito não universal do liberalismo
Ecila Meneses
CAPÍTULO 9
“GÊNERO LOCAL”: retratos da história das mulheres no Ceará e sua alta intensidade patriarcal
Daniele Ribeiro Alves
Antônio Cristian Saraiva Paiva
CAPÍTULO 10
“A VIOLÊNCIA CONTRA A VAGINA É DISSEMINADA NO
COTIDIANO”: uma análise dos impactos da violência de gênero na autopercepção corporal e sexual de mulheres cis
Marcelle Jacinto da Silva
Antônio Cristian Saraiva Paiva
CAPÍTULO 11
“DORMINDO COM O INIMIGO”: violência de gênero e disponibilidade psíquica materna
Ângela Sousa de Carvalho
Karla Patrícia Holanda Martins
4a SEÇÃO
RACISMO, VIOLÊNCIAS DE GÊNERO E PERSPECTIVAS DECOLONIAIS
CAPÍTULO 12
VICISSITUDES DOS ESTUDOS DECOLONIAIS E DE GÊNERO NA CLÍNICA DE URGÊNCIA SUBJETIVA
Jerzuí Mendes Tôrres Tomaz
Danielle Maia Cruz
Leônia Cavalcante Teixeira
Janara Pinheiro Lopes
Luciana Ribeiro Lira
CAPÍTULO 13
O SUJEITO DAS RELAÇÕES ABUSIVAS E SUAS SUJEIÇÕES
Ana Carolina B. Leão Martins
Anne Beatriz Nogueira Saraiva
Vanessa Cunha Santiago
CAPÍTULO 14
MULHERES E TRABALHO DOMÉSTICO NA PANDEMIA RACIALIZADA “À BRASILEIRA”: (re)encontros narrativos Luciana Martins Quixadá
Jaileila de Araújo Menezes
Lisandra Espíndula Moreira
ÍNDICE REMISSIVO SOBRE AS/OS AUTORAS/ES
Entre tantos e tão qualificados ensaios do livro me detenho muito interessado no estudo “A outra: o sujeito não universal do liberalismo” de Ecila Meneses. Nas referências autorais Ecila vem biografada modestamente “atriz, professora e feminista”. Os que a conhecem sabem que essas designações não traduzem a intensidade de seu protagonismo impulsionado pela vis atractiva dessa tripla expressão de seu perfil intelectual, profissional e existencial.
Ativista da articulação de juristas pela democratização do sistema de justiça que se formou para a instalação de um Fórum Social Mundial Temático Justiça e Democracia, que depois de se realizar em Porto Alegre, em abril de 2022, permanece em pauta propositiva para radicalizar esse tema fundacional, Ecila se destaca como formuladora e mais que isso, como autora de uma narrativa cultural que proporciona o Carrefour das inteligibilidades necessárias ao mais cabal discernimento dessa questão central no debate atual em curso na sociedade brasileira.
Anote-se, a propósito, a convocação para a Semana Universitária da Universidade de Brasília, em setembro próximo (dia 25), da mesa-redonda “Diálogo para um Novo Sistema de Justiça”, na verdade, mais uma roda-de-conversa com múltiplos participantes, mas que se colocarão em interlocução conduzidos pelo fio condutor da narrativa artístico-cultural, coordenada por Ecila, num evento universitário marcado pelo reconhecimento de que “o futuro é feminino”, já que a temática geral da Semana “está relacionada ao protagonismo feminino na construção de um futuro melhor para o país e para o mundo”.
Também me detive no ensaio de Ecila porque tenho me dedicado ao estudo da titularidade subjetiva dos sujeitos coletivos inscritos nos movimentos sociais, protagonistas do processo instituinte de direitos. Confira-se nesse sentido ao livro que co-organizei O Direito Achado na Rua. Sujeitos Coletivos: Só a Luta Garante os Direitos do Povo!, volume 7, Coleção Direito Vivo. Ana Cláudia Mendes de Figueiredo, Andréa Brasil Teixeira Martins, Edilane Neves, José Geraldo de Sousa Junior, José Roberto Nogueira de Sousa Carvalho, Luana Nery Moraes, Shyrley Tatiana Peña Aymara, Vítor Boaventura Xavier (Organizadores). Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2023. E sobre essa obra a Coluna Lido para Você (Jornal Estado de Direito) http://estadodedireito.com.br/sujeitos-coletivos-so-a-luta-garante-os-direitos-do-povo/.
No livro Ecila apresenta, em seu capítulo, pontos centrais de debate quando se pensa a luta de mulheres diante do cenário de enfrentamento do avanço do projeto anticivilizatório do Capitalismo Tardio. Chama a atenção sobre a imprecisão da face do novo sujeito histórico-político que surge no século XXI, pois este pode ter diversas orientações sexuais e ser de diversas etnias. Aponta para a importância do olhar atento que se precisa ter para a periferia do mundo, pois este desvela a feição não universal de um sistema que, mesmo diante de crises e calamidades, sempre se portou de forma insensível diante dos vulneráveis. Argumenta, portanto, que o Estado Moderno Liberal Burguês traz, em suas linhas institucionais, uma interdição da mulher como sujeito, sedimentando e perpetuando séculos de desigualdade, de enclausuramento e de hostilidade.
O texto encaminha, desta forma, tal como consta de seu resumo para a edição, “uma discussão que questiona sobre os caminhos de alcance da igualdade universal e a inclusão de todas, todos e todes no sentido de que sejam pessoas vistas como sujeitos detentores de direitos, no qual o respeito ao meio ambiente seja também entendido como um respeito a si mesmo e à condição de um ser da natureza”.
Penso que a contribuição de Ecila para esse tema interpelante constituído pela mediação da categoria sujeito coletivo de de direito, colabora para esclarecer o alcance de uma capacidade instituinte, que se faz apta, como no caso estudado por Ecila as mulheres, a vencer “as interdições perpetuadas por formas seculares de desigualdade, de enclausuramento e de hostilidade” redutoras de um protagonismo transformador.
Essa contribuição se enquadra naquele conjunto de formulações, lembram os meus alunos de graduação da disciplina Pesquisa Jurídica, que preparam um verbete com essa designação para a wikipedia (https://pt.wikipedia.org/wiki/Sujeito_coletivo_de_direito) no qual eles afirmam com convicção que o sujeito coletivo de direito, por meio dos movimentos sociais, ocupa ambientes antes restritos a classes dominantes, transforma a rua em um novo espaço político, capaz de expressar a vontade popular, e permite a reivindicação e concretização de novos direitos.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
O Acesso à Justiça para a População em Situação de Rua
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Eu acabara de publicar em minha Coluna O Direito Achado na Rua, no Jornal Brasil Popular, um artigo – https://www.brasilpopular.com/o-stf-e-a-acao-consciente-contra-a-aporofobia-oasco-a-pobreza/ – em comentário à decisão liminar proferida pelo Ministro Alexandre de Moraes, determinando que os estados, o Distrito Federal e os municípios passem a observar, imediatamente e independentemente de adesão formal, as diretrizes do Decreto Federal 7.053/2009, que institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua. A decisão liminar, proferida na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 976, será submetida a referendo do Plenário.
Na decisão o ministro concedeu prazo de 120 dias para que o governo federal elabore um plano de ação e monitoramento para a efetiva implementação da política nacional para a população de rua, com medidas que respeitem as especificidades dos diferentes grupos familiares e evitem sua separação.
Ele também determinou que estados e municípios efetivem medidas que garantam a segurança pessoal e dos bens das pessoas em situação de rua dentro dos abrigos institucionais existentes, inclusive com apoio para seus animais. Além disso, devem proibir o recolhimento forçado de bens e pertences, a remoção e o transporte compulsório de pessoas em situação de rua e o emprego de técnicas de arquitetura hostil contra essa população.
No artigo avanço em meus comentários, aludindo à repercussão que logo se seguiu à decisão, afirmando, porém, que “essa disposição precisa ser ampliada por todas as esferas federadas, por impulso do protagonismo do Governo Federal, no qual pontua um ministro que tem clareza sobre os limites da ação política numa realidade funcional que opera sob o emperramento do que ele próprio conceitua como racismo estrutural. Amplificado num sistema permeado pelo que se denomina aporofobia, que designa a aversão à pobreza”.
Vali-me de posicionamentos fortes da Comissão Justiça e Paz de Brasília, de militantes da luta pelo reconhecimento da população em situação de rua, do meu caríssimo advogado e jurista popular Jacques Alfonsin, do Padre Júlio Lancellotti e até do Papa Francisco, de cuja homilia retirei parte do título do artigo.
Pena que ao escrever o artigo ainda não me tivesse chegado às mãos, embora já tivesse lido o trabalho acadêmico do qual o livro deriva, e que me serviu para elaborar, a pedido do Autor, um prefácio à obra publicada. Do que trata o prefácio é o que exponho a seguir neste Lido para Você.
O acesso à justiça para a população em situação de rua: perspectivas frente às práticas autoritárias aporofóbicas e a atuação da Defensoria Pública, de Gustavo de Assis Souza, que a Editora Lumen Juris publica, deriva de sua dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em Direito, da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, em 2022, lançada no Repositório de Dissertações e Teses da Universidade de Brasília, com o título Tutela Estratégica dos Coletivamente Vulnerabilizados numa Concepção Alargada de Acesso à Justiça.
A pesquisa que resultou na publicação “investigou o (in)acesso à justiça para a população em situação de rua. Mais especificamente foi problematizado como (re)pensar o acesso à justiça para essa população, em um contexto de emergência de práticas autoritárias aporofóbicas, e frente aos desafios impostos à Defensoria Pública. Para jogar luz a essa questão, inicialmente, e por meio da pesquisa bibliográfica, investigou-se a imbricação entre acesso à justiça e o princípio da dignidade humana, bem como este último tem sido violado atualmente, por meio das práticas autoritárias aporofóbicas que são gestadas em detrimento aos pobres”.
No primeiro capítulo, o Autor estabelece como o cerne do acesso à justiça (princípio da dignidade da pessoa humana) no campo dogmático e, posteriormente, por meio da literatura interdisciplinar, como esse princípio tem sido violado na contemporaneidade, o que foi denominado de práticas autoritárias aporofóbicas, empreendidas pelo estado e sociedade em face da população, especialmente, pobre; conceito esse criado a partir da literatura no campo da ciência política e filosofia.
No capítulo 2, a análise focaliza em um grupo em específico, a População em Situação de Rua e o seu (in)acesso à justiça, tendo em vista que é uma população pobre ainda mais vulnerável, apresentando desafios semelhantes aos que foram identificados no primeiro capítulo, mas outros tantos que lhe são próprios.
No capítulo 3, a investigação volta-se para a instituição que, muitas vezes, é a primeira porta de acesso à justiça para esses indivíduos em situação de rua, chamada de Defensoria Pública. Cuida-se de examinar desde a missão institucional e organização, bem como suas prerrogativas judiciais e extrajudiciais para defender os grupos invisibilizados tanto por meio da legislação quanto pela literatura específica relativa à instituição.
Por fim, a proposta do Autor, orientada para “uma nova forma de (re)pensar o acesso à justiça para a população em situação de rua, de modo a expandi-lo. Foi identificado a Educação em/para os Direitos Humanos, como o veículo necessário para o estímulo ao surgimento de comportamentos fraternos, de acolhimento do outro e, por conseguinte, como uma arma para o rompimento das práticas autoritárias aporofóbicas. Com uma educação nesses moldes, formal e informal, haverá uma tendência maior do afloramento de políticas públicas plurais, bem como da democratização da justiça, a partir da manifestação de diferentes atores que reverberará diretamente no funcionamento das instituições e, consequentemente, no acesso à justiça dos invisibilizados em situação de rua”.
O livro de Gustavo de Assis Souza avança com muita intensidade temática e compromisso funcional, numa senda que, mesmo institucionalmente, tem procurado orientar a ação da Defensoria Pública para um âmbito mais definido de sua atribuição constitucional, no sentido de envolver a sua tutela de modo estratégico, na defesa dos coletivamente vulnerabilizados, com o alcance político-epistemológico de alargamento do acesso à Justiça.
Essa orientação transparece na ação editorial que resultou, por exemplo, no livro Defensoria Pública e a Tutela Estratégica dos Coletivamente Vulnerabilizados. (Orgs): Lucas Diz Simões, Flávia Marcelle Torres Ferreira de Morais, Diego Escobar Francisquini. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019, 948 p.
Lançamento primoroso da Editora D’Plácido, este livro, conforme a nota de seus organizadores “aborda temas sensíveis à atuação das defensoras e defensores públicos na seara transindividual, pautando-se pela narrativa doutrinária atrelada a casos práticos relevantes”.
As suas 948 páginas compreendem uma apresentação, a cargo de Maria Tereza Aina Sadek, um prefácio assinado por Boaventura de Sousa Santos uma nota dos organizadores, seguindo-se doze partes. Além desses, 62 autores e co-autores assinam textos, distribuídos nessas doze partes, examinando-se no seu conjunto: 1 – diversos ramos do direito material – liberdades (religiosa, de expressão etc), infância e juventude, idoso, mulher, populações de rua, imigrantes, quilombolas, indígenas, direito à cidade, trabalho, moradia, saúde, pessoas com deficiência, em privação de liberdade, consumidor, meio ambiente etc; 2 – atuação judicial e extrajudicial via projetos de educação em direitos, de mediação, grupos de trabalho, requisições administrativas, recomendações, audiências públicas, TAC e outras formas de resolução consensual de conflitos, acordos de cooperação, atuação em rede, ações civis públicas, mandado de injunção coletivo, HC’s coletivos etc; 3 – Defensoria como parte e também 3ª interveniente via amicus curiae, custos vulnerabilis, custos plebis, amicus communitas, ombudsman (defensor del pueblo) e 4 – concepção das vulnerabilidades e sua organização coletivizada.
Para a apresentadora os artigos que compõem a obra “apresentam teses inovadoras e práticas que demonstram não apenas a preocupação de defensores públicos, professores e operadores do direito com questões relevantes, mas sobretudo evidenciam como suas atuações, em diferentes áreas, têm concretizado direitos, contribuindo para superar situações vividas por vulnerabilizados”.
O livro, conforme o prefácio de Boaventura de Sousa Santos, mostra de modo eloquente como “um conjunto notável de juristas profissionalmente bem preparados e com um sentido extraordinariamente vincado de compromisso com mandato da Constituição, se manteve firme na defesa dos direitos das classes e dos grupos sociais coletivamente vulnerabilizados”.
Com Alberto Carvalho Amaral, Defensor Público em Brasília e como minha colega professora na Universidade de Brasília Talita Tatiana Dias Rampin, contribuímos para a obra com o artigo “Exigências críticas para a assessoria jurídica popular: contribuições de O Direito Achado na Rua”, p. 803-826.
Na nossa abordagem, colocadas as questões pressupostas, focalizamos dois aspectos destacados para atender o plano da obra, que pede enfoque teórico e também prático: 1- A Defensoria Pública como necessário ator qualificado para o alargamento e a democratização do acesso à justiça; 2 – O projeto “Defensoras e Defensores Populares do Distrito Federal”: ação difusora e conscientizadora sobre direitos humanos, cidadania e ordenamento jurídico
No primeiro aspecto, para nós, o acesso à justiça constitui-se direito fundamental garantido pela Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada aos 5 de outubro de 1988 – CF/88 e não significa, necessariamente, acesso ao Judiciário. Partimos de uma visão axiológica da expressão “justiça”, que representa uma determinada ordem de valores e direitos fundamentais para o ser humano. Esse tema tem sido pesquisado por juristas e sociólogos, como Mauro Cappelletti e Bryant Garth , que consideram que o acesso à justiça pode ser encarado como o mais básico dos direitos humanos inseridos no contexto de um sistema jurídico moderno e igualitário, comprometido com a garantia (e não apenas com a proclamação) do direito de todos .
Com o ascenso da luta social e a conquista da CF/88, foram criados ou fortalecidos novos mecanismos de garantia de direitos e redesenhadas institucionalidades que prometiam um potencial democrático, como os conselhos gestores de políticas pública e a Defensoria .
Como uma espécie de síntese histórica entre as estratégias de luta social e a opacidade da institucionalidade de justiça, sobretudo em relação às violações e à agenda política de direitos carregada e instituída na práxis dos movimentos sociais populares, surge no Brasil o que viria a ser reconhecida como a assessoria jurídica e advocacia popular, uma espécie de subcampo político-jurídico no interior da advocacia brasileira, orientado por princípios humanitários, pedagógicos e políticos de compromisso e o diálogo com comunidades e movimentos de base organizados em torno da luta por direitos (como sindicatos, comunidades e movimentos de luta pela terra), e incumbidos de uma tarefa histórica de tradução jurídica da luta política por direitos .
Cuidei de distinguir esse processo em entrevista que concedi ao Boletim DPU Escola Superior Fórum DPU Defensoria Pública e Acesso à Justiça, para por em relevo a emergência de uma agenda relevante de temas estratégicos, nos planos teórico e de aplicação, que logo se fez interpelante para prosseguir em análises que aprofundem a relação entre o sentido institucional-funcional da Defensoria Pública e a questão desafiante do acesso à justiça. Apesar de inicialmente pensados na articulação da Defensoria Pública da União e de suas atribuições específicas, dada a própria temática da entrevista, esses temas são instigantes para a atuação de todas as Defensorias Públicas estaduais e do Distrito Federal, emergindo como vórtices para uma atuação para além dos fixos quadros de processualização formal (papelização) das violações a direitos.
Uma primeira questão para organizar essa agenda se coloca quase intuitivamente: quais seriam os principais desafios institucionais, econômicos e sociais de acesso à justiça?
Uma forte consideração nesse tema e, sobre ele, registros e reflexões que estão contidas em trabalhos nos quais as aproximações desde O Direito Achado na Rua, sua concepção e prática vem acumulando, sempre pensando um modo alargado de concepção do tema que leve em conta exatamente confrontar e superar esses obstáculos. O pressuposto para tal é apostar na democratização da sociedade e da justiça, abrindo-as à crescente participação da cidadania de modo a reduzir as barreiras econômicas, institucionais e sociais por meio de reconhecimento de sujeitos coletivos e de protagonismos que desindividualizem as demandas, pela afirmação das dimensões políticas que ordenam os conflitos mais agudos em nossa sociedade. Esse é um modo para deslocar a questão dos entraves burocráticos que pedem medidas modernizadoras – novos códigos, mais agentes, novos procedimentos – quando a questão é o questionamento da Justiça a que se tem acesso e o modo democrático de ampliar esse acesso.
Em resumo desse acumulado, o que baliza uma aproximação, que nos caracteriza, é conceber a assessoria jurídica popular como uma estratégia para promover o acesso ao direito e à justiça dos cidadãos, especialmente os subalternizados, na medida em que atua para que estes conheçam seus direitos e não se resignem em relação às suas violações bem como tenham condições para superar os obstáculos econômicos, sociais e culturais a esse acesso. Tomando os pressupostos da assessoria jurídica popular, na perspectiva de O Direito Achado na Rua, trata-se de acentuar a relação de compromisso político com os sujeitos coletivos organizados e movimentos sociais cuja atuação expressa práticas instituintes de direitos, e a combinação de instrumentais pedagógicos, políticos e comunicacionais com a dimensão jurídica. O que significa realizar um exercício analítico que desloca a centralidade e prioridade da norma estatal enquanto referencial de legitimidade e validade do direito, para encontrar como referencial os processos sociais de lutas por libertação e dignidade.
Assim, em tal perspectiva, considerar o tema do acesso à justiça é fazê-lo desde uma certa perspectiva: a compreensão do direito como um instrumento de transformação social; a noção ampliada sobre o direito de acesso à justiça; a defesa da existência de um pluralismo jurídico comunitário-participativo; e a educação popular como abordagem pedagógica para educação jurídica emancipatória .
Critérios como esse reduzem o espaço de negociação, abreviam as possibilidades de ampla defesa e favorecem os mais bem posicionados econômica e culturalmente. Boaventura de Sousa Santos, um autor de referência na obra de Gustavo Souza, notadamente em Para uma Revolução Democrática da Justiça. São Paulo: Cortez Editora, 3ª edição, 2011, abrindo horizontes para o impulso de se pensar em sentido alargado o acesso à justiça e mais ainda a própria justiça a que se quer acesso, numa mobilização que pôde ser conduzida em resposta a demandas de formulação de política públicas, a partir de convocações do poder público ao pautar esse tema.
Assim é que, respondendo a edital do Ministério da Justiça, sobre elaborar uma concepção de observação do sistema de justiça e judiciário, que chegamos a uma formulação que levasse em conta essa concepção alargada. A propósito, in https://revistajuridica.presidencia.gov.br/index.php/saj/article/view/223, vol 10, n. 90, 2008, o meu texto Por uma concepção alargada de Acesso à Justiça, representando todo o Coletivo que elaborou a proposta, se traduz num resumo pode ser assim lido: “Este trabalho tem o intuito de mapear a atual situação dos meios de acesso à justiça no Brasil, abordando o modo como as relações Estado-sociedade se fazem presente nas esferas públicas de construção do direito e até que ponto os movimentos sociais são reconhecidos como fonte criadora de direitos. Para tanto, propõe-se uma discussão acerca de temas levantados pela sociologia da pós-modernidade, discussão esta decorrente da ação dos movimentos sociais na dinâmica própria do direito plural por eles fundado. Ao fim, propõem-se mudanças na postura das estruturas jurídicas de ensino, pesquisa e aplicação para que haja um reconhecimento da construção social do direito”.
Aferindo os resultados alcançados com a pesquisa vê-se o quanto foi possível estabelecer diálogo com assessorias jurídicas de movimentos sociais e extrair de suas observações, a visão negativa dos modelos adjudicatórios do sistema legal e judiciário, presos às normas constituídas como unidade de análise das relações de conflito e incapazes de realizar até mesmo as promessas constitucionais de realização da Justiça, entre outros fatores, pela “resistência a trabalhar com o direito da rua”, pela “baixa sensibilidade para as demandas da comunidade”, pelos “limites culturais para a percepção de sujeitos e demandas inscritas nos conflitos sociais”, pela manutenção de “corpo com formação técnica desvinculada das experiências do mundo da vida”, pela “postura institucional burocrática” e pela “pouca permeabilidade ao controle social”.
Constatando-se também, o quanto em contrapartida, pediam esses prestamistas de uma Justiça atualizada e modernizada para além do simplesmente funcional-burocrático-legal: “respeito às temporalidades democráticas”, “fortalecimento comunitário”, “educação em Direitos Humanos”, “uso dos meios de comunicação”, “conscientização e sensibilização” e, em síntese, “reconhecimento e acreditamento do protagonismo das experiências de mediação social realizadas fora das instâncias estatais”.
Voltei a empregar essa expressão ao produzir o prefácio “Uma concepção alargada de acesso e democratização da justiça”, para o livro editado pela Terra de Direitos e pela Articulação Justiça e Direitos Humanos, com a organização de Antonio Escrivão Filho, Darci Frigo. Érica de Lula Medeiros, Fernando Gallardo Vieira Prioste, Luciana Furquim Pivato, “Justiça e Direitos Humanos: Perspectivas para a Democratização da Justiça, vol. 2, Curitiba: Terra de Direitos, 2015, procurando corresponder às expectativas postas na publicação sobre “o aumento do interesse das organizações do campo popular pelo papel social do Poder Judiciário (que) aponta para necessidade de construir ações coletivas e estruturantes, que estejam além da litigância reativa e incidam sobre a agenda política de justiça, com uma perspectiva estratégica que vá muito além da busca de soluções para situações concretas e pontuais”.
Por isso que sempre estou retornando a esse tema e sempre que posso volto a ele, como agora neste Prefácio, conforme minha leitura de REBOUÇAS, Gabriela Maia; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; CARVALHO NETO, Ernani Rodrigues de (Organizadores). Experiências Compartilhadas de Acesso à Justiça: Reflexões teóricas e práticas. Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo, 2016, 281 p. Texto Eletrônico. Modelo de Acesso World Wide Web (gratuito). www.esserenelmondo.com.br, no qual, na dupla perspectiva proposta no conjunto da obra ressalto o que em meu texto no segundo trabalho destacado denominei Por uma Concepção Alargada de Acesso à Justiça. Que Judiciário na Democracia?
Sustentei que realizar a promessa democrática da Constituição era e é ainda o desafio que se põe para o Judiciário e para responder a esse desafio precisa ele mesmo recriar-se na forma e no agir democrático. Mas o desafio maior que se põe para concretizar a promessa do acesso democrático à justiça e da efetivação de direitos é pensar as estratégias de alargamento das vias para esse acesso e isso implica encontrar no direito a mediação realizadora das experiências de ampliação da juridicidade. Com Boaventura de Sousa Santos podemos dizer que isso implica dispor de instrumentos de interpretação dos modos expansivos de iniciativas, de movimentos, de organizações que, resistentes aos processos de exclusão social, lhes contrapõem alternativas emancipatórias.
Por isso que, em procedimentos de pesquisa, ou em análises como a que oferece Gustavo, que intentem operar a partir dessa visão de alargamento, pensando o tema do acesso democrático à justiça, não pode descuidar-se da designação cartográfica das experiências que se fazem emergentes. Sob tal perspectiva, diz Boaventura de Sousa Santos, as características das lutas são ampliadas e desenvolvidas de maneira a tornar visível e credível o potencial implícito ou escondido por detrás das acções contra-hegemônicas concretas. Isso corresponde, completa Sousa Santos, a atuar “ao mesmo tempo sobre as possibilidades e sobre as capacidades; a identificar sinais, pistas, ou rastos de possibilidades futuras naquilo que existe” (SANTOS, Boaventura de Sousa, Poderá o direito ser emancipatório?, Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 65, CES, Coimbra, maio de 2003. p. 35).
Voltando à questão síntese desenvolvida na entrevista referida, são valiosas as iniciativas da Defensoria Pública, quando põe em foco como mostra Gustavo, a existência de grupos específicos para os quais a atuação merece destaque. De fato, a atuação da instituição é especialmente relevante quando se trate de grupos vulnerabilizados, dentre os quais, pessoas idosas, pessoas com deficiência, crianças e adolescentes, mulheres em situação de violência doméstica e familiar, população em situação de rua. Vulnerabilizados porque, em um contexto de profundos processos de desigualdades – sociais, econômicas, culturais, dentre outras -, são sujeitos subalternizados, alvos de relações de opressão e dominação, e para os quais o Estado, assim como a sociedade, deve envidar esforços para fornecer a tutela adequada de direitos e dignidade.
Essa é uma tarefa que ganha alento com o conjunto de análises que obras de referência, agora entre elas a de Gustavo Souza. Para Boaventura de Sousa Santos, “neste momento histórico pleno de incertezas, a Defensoria Pública afirma-se como uma firme voz de esperança, de compromisso com a Constituição, de confiança na convivência democrática e na resolução pacífica e ordeira dos conflitos. Não lhe compete transformar por si só a sociedade brasileira no sentido de a tornar mais justa e menos discriminadora. Mas certamente, dá o seu contributo imprescindível, como bem atesta este livro”.
Matéria do Diário do Centro do Mundo (acesso em 11/12/2022), dá conta de um levantamento feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, revelando que a população em situação de rua no Brasil cresceu 38% desde 2019, chegando a 281,4 mil pessoas sem-teto, que foram afetadas diretamente pela pandemia de Covid-19. A pesquisa divulgada ainda aponta que em uma década, o aumento foi de 211%, superior ao crescimento da população geral no Brasil, de 11%. (https://www.diariodocentrodomundo.com.br/populacao-de-rua-no-brasil-cresceu-38-apos-pandemia-diz-ipea/).
Esse é um aspecto de uma realidade que dá a medida das ações que o novo governo, de corte democrático-popular, precisará implementar para atribuir função social ao seu programa. A mobilização para aprovar a chamada PEC da “transição” dá a medida da responsabilidade social que o novo governo assume, depois do caos produzido pela necropolítica da gestão que melancolicamente se encerra.
Foi preciso, nesse descalabro, convocar a institucionalidade instalada noutros âmbitos do Estado, no Legislativo para encaminhar medidas que preservassem a população carente, sobretudo na fase aguda da pandemia, que ainda traz ameaças, sobretudo em defesa da moradia (cf. o artigo da Deputada Natália Bonavides em co-autoria com Lorena Cordeiro: A Defesa da Moradia na Pandemia: uma Análise sobre a Aprovação de Lei que Suspende Despejos Durante a Crise Sanitária da Covid-19, in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; RAMPIN, Talita Tatiana Dias; AMARAL, Alberto Carvalho (orgs) Direitos Humanos e Covid-19 vol. 2 Respostas Sociais à Pandemia. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2022), para aprovar a lei e para derrubar o veto imposto pelo Presidente da República.
Também o Supremo Tribunal Federal, entre outras intervenções de salvaguarda dos direitos fundamentais e da cidadania, especialmente na ADPF 976-DF, que discute Estado de Coisas Inconstitucionais com a População em Situação de Rua. De fato, o Relator ministro Alexandre de Moraes, pediu informações ao presidente da República, aos governadores dos estados e aos prefeitos das capitais sobre a situação da população em situação de rua, para reunir dados para instruir a análise das medidas cautelares formuladas na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 976, em que são pedidas providências para minorar as “condições desumanas de vida” dessas pessoas. O pedido de informações, a serem prestadas no prazo legal de cinco dias, está restrito aos prefeitos de capitais por razões de viabilidade e da celeridade do rito. Em seguida, os autos devem ser remetidos, sucessivamente, à Advocacia-Geral da União (AGU) e à Procuradoria-Geral da República (PGR), para que se manifestem.
Na ADPF, a Rede Sustentabilidade, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) sustentam que há um estado inconstitucional de coisas em relação à população de rua, com violação de diversos preceitos fundamentais, entre eles o da dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais à vida, à igualdade, à saúde e à moradia. Pedem a concessão de medida cautelar para determinar que os Executivos federal, estaduais e municipais promovam ações para preservar a saúde e a vida dessa parcela da população e, no mérito, que seja determinada a adoção de providências legislativas, orçamentárias e administrativas a fim de auxiliar as pessoas em condição de vulnerabilidade.
O Ministro Alexandre de Moraes convocou audiênciapública referente à Ação, tendo recepcionado propostas e denúncias para, escritas ou na própriaaudência, contribuírem para o encaminhamento da questão. Ele sugeriu três eixos para balizar as manifestações: 1. Evitar a ida para a situação de rua; 2. Tirar as pessoas em situação de rua e; 3. Respeitar os sujeitos vulnerabilizados e evitar violência.
Entre as contribuições tornadas possíveis com a Audiência, ponho em relevo as que foram levadas a conhecimento na ADPF pela socióloga Paula Regina Gomes. Paula Regina é Vice-Presidenta da Federação Nacional dos Sociólogos do Brasil.
Além disso, ou antes disso, ela desenvolve uma Dissertação de Mestrado, no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania da UnB, sob a orientação da professora Nair Heloisa Bicalho de Sousa (Rede Brasileira de Educação para os Direitos Humanos). A pesquisa da dissertação, prestes a ser defendida tem o sugestivo título “Rueira Brasília – Educação Popular em Direitos Humanos, Vulnerabilização Social e Luta por Direitos no Contexto da Violência”.
Pedi a Paula um resumo do trabalho que ela prontamente preparou:
Rueira Brasília é uma pesquisa no campo dos direitos humanos orientada pela construção dialogal entre conhecimentos e saberes, que parte da realidade da violência e violação de direitos vivida pela população em situação de rua do Distrito Federal, pelos princípios da educação popular em direitos humanos, voltada para elaboração de propostas de melhorias das políticas públicas articulada com a promoção da participação social. Fundamentada na teoria crítica dos direitos humanos e na perspectiva metodológica da etnometodologia a partir do método etnográfico da técnica da pesquisa de campo, associou a pesquisa-ação à observação participante. Interpretativa e de intervenção social abrangeu dados qualitativos e quantitativos com a preponderância da análise qualitativa. A produção de dados aconteceu entre os anos de 2018 a 2022 com a aplicação de questionários, entrevistas, oficinas de aprendizado colaborativo, registro de denúncias, diários de campo e dados secundários em fontes oficiais, sendo recortada pela pandemia do novo coronavírus norteando uma análise comparativa. Com a sistematização dos dados foi traçado um perfil socioeconômico e da violência vivida pela população em situação de rua, com a categorização dos principais tipos definindo uma matriz de opressão interseccional. A partir daí temos a interpretação de soluções de melhorias construídas em diálogos de mundos fomentando o sujeito de direito no exercício cidadão. Assim, temos as principais contradições entre as políticas públicas concebidas e as praticadas a partir do conceito de violência institucional. As conclusões apontam os resultados da intervenção social com os avanços e desafios para a luta emancipatória por direitos humanos.
Esses fundamentos, juntamente com um profundo conhecimento que a pesquisadora tem da realidade desse tema, ela levou para seu depoimento no STF. Na Audiência ela sustentou estarmos diante do “cenário do aumento da fome, segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19 no Brasil, com 33 milhões de pessoas que não tem garantido o que comer, representando 14 milhões de novos brasileiros nessa condição. O cenário do aumento da população em situação de rua consta na Nota Técnica 73 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA que aponta um aumento expressivo de 140% da população em situação de rua ao longo do período de setembro de 2012 a março de 2020. Somado ao efeito da invisibilidade social desse segmento no planejamento das políticas públicas por falta de dados quantitativos e quantitativos precisos e qualificados. Cabe reconhecer que as políticas públicas atualmente não estão preparadas para atender as necessidades desse grupo social”. Necessário, pois,
melhorar as políticas públicas para de fato abranger e promover condições efetivas para superar o quadro de violações e ausência de acessos que marcam a realidade da população em situação de rua. Trata-se de uma trajetória histórica de exclusão social e violências apontando para um processo de extermínio social. É de conhecimento notório daqueles que atuam e pesquisam diretamente com a população em situação de rua o cenário cotidiano de extrema violência e violação de direitos humanos que na maioria das vezes não são alcançados pelos instrumentos públicos oficiais devido a um processo de invisibilização social e de falta de mecanismos adequados para a especificidade dessa realidade que nega acessos e direitos. Assim, se faz fundamental a superação das assimetrias sociais garantindo a sua participação direta para mudar esse quadro inconstitucional de coisas qualificando as políticas públicas de forma territorializada.
Em conclusão ela argumentou ser
imprescindível garantir uma política habitacional, com várias tipologias de moradia, que dê conta da complexidade de realidades sociais; uma política de soberania e segurança alimentar que dê condições para superação da fome e da desnutrição; uma política de assistência social que seja transformadora e norteada pelas melhores práticas de direitos humanos, adotando, inclusive renda básica; uma política pública de saúde que seja inclusiva e especializada, ampliando os consultórios na rua e garantindo celeridade para os pedidos de exames e cirurgias, com a construção de novos equipamentos voltados para a saúde mental; uma política pública de educação que garanta condições para o aprendizado; uma política pública de trabalho e renda que promova efetiva inserção no mercado de trabalho; uma política de segurança pública que seja inclusiva e garantidora de direitos humanos dos vulnerabilizados; uma política de direito a cidade que reconheça a condição de exclusão social e não promova a subtração dos poucos pertences daqueles que quase nada tem e que precisam desse pouco que é essencial para garantir da vida. A população em situação de rua representa um segmento social complexo recortado pela diversidade de minorias sociais que trazem o peso da opressão e da discriminação. É preciso que todas as políticas públicas e a atuação do sistema de justiça reconheçam e promovam ações reparatórias diante dos marcadores das diferenças sociais que reverberam as assimetrias sociais através do racismo, do machismo, do elitismo, da opressão contra LGBTQI +, dos idosos, dos jovens e das crianças, das mães e das mulheres em situação de pobreza extrema.
A obra de Gustavo de Assis Souza, se coloca nesse escopo, confiar na disposição de superar a aporofobia, e é nesse sentido, isto é, para vencer esse obstáculo de acesso à Justiça da População em Situação de Rua, que defende “a educação em/para direitos humanos, uma vez que ela tem a potencialidade, inclusive, para remodelar as instituições e estimular o surgimento de comportamentos fraternos para o acolhimento do outro, seja em espaços formais como o sistema de justiça ou mesmo em outros espaços não institucionais, como na família e na vizinhança. Somente com uma educação nesses moldes será possível romper com a cegueira social do senso comum aporofóbico e, por conseguinte, assegurar o acesso à justiça para a PSR”.
Para o Autor, esse o fecho da obra, “uma vez que o acesso à justiça para essa população deve ir além das instituições formais e se expandir para o corpo social, com o aperfeiçoamento e expansão não só da Defensoria Pública, mas em um contexto democrático mais amplo com o compromisso social contínuo para o rompimento das práticas autoritárias aporofóbicas, por parte da sociedade e instituições, utilizando como veículo uma educação em/para direitos humanos”.
Há, sim, no social, é o que afirma Gustavo em seu livro, um engajamento consciente para dar cobro a essa situação e para superá-la. Recentemente, numa ação carregada de simbolismo militante, o padre Júlio Lancellotti, numa ação do Observatório de Aporofobia com apoio da Pastoral do Povo de Rua, conduziu em São Paulo um Ato contra a Aporofobia, para a retirada de pedras da Biblioteca Cassiano Ricardo, “representando um marco da luta contra a aporofobia e a arquitetura hostil”.
Tenho dito (https://www.brasilpopular.com/populacao-em-situacao-de-rua-estado-de-coisas-inconstitucional/) que a marreta do padre Júlio Lancellotti é um símbolo real de atualização da Declaração Universal de Direitos Humanos, nos seus 74 anos de aprovação, tanto que a atenção às populações em situação de rua, já se definiu exigência de prioridade desse tema central na agenda dos direitos humanos, com a aprovação da Lei que recebeu o seu nome (https://www.brasilpopular.com/lei-padre-julio-lancellotti-e-a-proibicao-de-obstaculos-contra-pessoas-em-situacao-de-rua/).
Padre Júlio é um exemplo vivo de ação pastoral social, seguindo o magistério do Papa Francisco. Agora em novembro, por ocasião do XXXIII Domingo do Tempo Comum – 13 de novembro de 2022 (https://www.vatican.va/content/francesco/pt/messages/poveri/documents/20220613-messaggio-vi-giornatamondiale-poveri-2022.html), ele lançou a mensagem para o VI Dia Mundial dos Pobres. Ele fala de duas dimensões da pobreza a que devemos estar atentos, distinguindo: “A pobreza que mata é a miséria, filha da injustiça, da exploração, da violência e da iníqua distribuição dos recursos. É a pobreza desesperada, sem futuro, porque é imposta pela cultura do descarte que não oferece perspectivas nem vias de saída. É a miséria que, enquanto constringe à condição de extrema indigência, afeta também a dimensão espiritual, que, apesar de muitas vezes ser transcurada, não é por isso que deixa de existir ou de contar. Quando a única lei passa a ser o cálculo do lucro no fim do dia, então deixa de haver qualquer freio na adoção da lógica da exploração das pessoas: os outros não passam de meios. Deixa de haver salário justo, horário justo de trabalho e criam-se novas formas de escravidão, suportada por pessoas que, sem alternativa, devem aceitar este veneno de injustiça a fim de ganhar o mínimo para comer”.
De outra parte, ao contrário, ele alude a uma outra dimensão da pobreza que requer discernimento político: “A pobreza libertadora[que] é aquela que se nos apresenta como uma opção responsável para alijar da estiva quanto há de supérfluo e apostar no essencial. De facto, pode-se individuar facilmente o sentido de insatisfação que muitos experimentam, porque sentem que lhes falta algo de importante e andam à sua procura como extraviados sem rumo. Desejosos de encontrar o que os possa saciar, precisam de ser encaminhados para os humildes, os frágeis, os pobres para compreenderem finalmente aquilo de que tinham verdadeiramente necessidade. Encontrar os pobres permite acabar com tantas ansiedades e medos inconsistentes, para atracar àquilo que verdadeiramente importa na vida e que ninguém nos pode roubar: o amor verdadeiro e gratuito. Na realidade, os pobres, antes de ser objeto da nossa esmola, são sujeitos que ajudam a libertar-nos das armadilhas da inquietação e da superficialidade”.
Seguindo a ética do Evangelho e de sua mensagem, conforme Francisco, o caminho que nos incumbe e que devemos escolher trilhar, é descobrir a existência duma pobreza que humilha e mata, e a outra pobreza que liberta e nos dá serenidade.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
Narradores não confiáveis: o discurso do exército brasileiro sobre memória, verdade e justiça encontrado nos relatórios periódicos mensais
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Barbara Guilherme Lopes. Narradores não confiáveis: o discurso do Exército Brasileiro sobre memória, verdade e justiça encontrado nos Relatórios Periódicos Mensais (RPMS) entre 1989 e 1991. Dissertação de Mestrado apresentada Programa de Pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), 2023, 108 fls.
Uma alegria compartilhar a Banca Examinadora formada pela Professora Eneá de Stutz e Almeida (Orientadora – Faculdade de Direito UnB); pelo Professor Lucas Pedretti Lima (Examinador externo titular) e por mim Professor (Examinador interno titular – Faculdade de Direito UnB), responsável por validar esta singular dissertação, dado o seu enfoque e o interlocutor político que põe em causa.
Veja-se o seu resumo:
Esta pesquisa remete a uma disputa narrativa histórica: o discurso sobre a ditadura civil-militar no Brasil. De um lado, o lançamento do livro Brasil: Nunca Mais, em 1985, que denuncia as violações aos direitos humanos durante a ditadura e, como resposta, o Projeto Orvil, encabeçado pelo Centro de Informações do Exército (CIE), com a intenção de contar a versão dos militares da história. O Orvil não foi autorizado para publicação, mas continuou a circular nas Forças Armadas como narrativa de variadas formas. Em 2021, foram divulgados os Relatórios Periódicos Mensais (RPMs), informativos elaborados pelo CIE pelo menos de 1989 a 1991, que perpetua o discurso do Orvil como política no sistema de informações do Exército para doutrinação de militares. Damos a isso o nome de discurso Orviliano e questionamos: qual o discurso do Exército sobre memória, verdade e justiça da ditadura civil-militar? Para isso, partimos da hipótese de que há um discurso Orviliano sobre memória, verdade e justiça no Exército Brasileiro que obstaculiza a justiça de transição. É proposta uma análise de discurso, de acordo com Orlandi (2000), nos Relatórios Periódicos Mensais, que são capazes de fornecer uma delimitação temporal que representa a redemocratização, em um período pós promulgação da Constituição Federal de 1988. Dessa forma, codificamos os textos presentes nos Relatórios através da análise de conteúdo categorial, elaborado a partir da revisão de literatura sobre o pensamento político dos militares, que demonstra a centralidade da Doutrina de Segurança Nacional como fundamento. Foi possível compreender que o discurso dos RPMs traz os elementos argumentativos fundamentais do Orvil, sendo assim, foi caracterizado como um discurso Orviliano sobre memória, verdade e justiça. Sendo estes os pilares da justiça de transição, um discurso atravessado sobre a ditadura civil-militar, que apresenta uma narrativa que inverte heróis e vilões, criando inimigos, é um entrave para sua concretização. A tarefa da justiça de transição, portanto, é trabalhar os usos políticos do passado no presente a fim de se posicionar sobrea memória a ser construída
Transcrevo o Sumário do trabalho para a percepção da distribuição analítica dos temas correlacionados pela Autora do trabalho:
1INTRODUÇÃO
2 PENSAMENTO POLÍTICO DOS MILITARES: DOUTRINA DE SEGURANÇA NACIONAL E A VERDADE VIRADA DO AVESSO
2.1 Doutrina de Segurança Nacional e as relações civis-militares no Brasil: ordem e progresso
2.2 Guerra nas colinas: a narrativa militar sobre a ditadura
2.3 O avesso do avesso do avesso: o CIE, o Orvil e o Orvilianismo
3 “COMANDANTE, MANTENHA SEUS HOMENS BEM-INFORMADOS!”:
UMA ANÁLISE DE CONTEÚDO DOS RELATÓRIOS PERIÓDICOS MENSAIS ELABORADOS PELO CENTRO DE INFORMAÇÕES DO EXÉRCITO ENTRE 1989 E 1991
3.1 Método e metodologia de pesquisa: como analisar o que eles dizem?
3.2 Os Relatórios Periódicos Mensais (RPMs) e o Centro de Informações do Exército (CIE)
3.3 O que diz o Exército Brasileiro? Uma análise de discurso dos Relatórios Periódicos Mensais (1989 – 1991)
4 O PASSADO É UM PAÍS ESTRANGEIRO: O CAMINHO DA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO PELA HISTÓRIA E OS PERCALÇOS DA MEMÓRIA
4.1 Inventário da Justiça de Transição: Considerações sobre memória, verdade e história
4.2 “E que me esqueçam!”: Tempo e usos do passado, entre memória e esquecimento
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
6 REFERÊNCIAS
7 FONTES PRIMÁRIAS
Já pelo resumo e pelo sumário, mas ao longo de todo o trabalho, são muitas as siglas – algumas logo identificadas na extensão de seu significado, outras entretanto, mesmo que assim designadas, muitas vezes aparecem distante de seu primeiro descritivo o que dificulta saber o que designam. Assim, já que a Autora abriu uma página para uma Lista de Imagens, sugiro que abra uma também para uma Lista de Siglas. Do mesmo modo, adotando um processo quase arqueológico de termos e expressões muito significativos para a compreensão do discurso militar, talvez fosse conveniente compor um Tesauro ou Thesaurus ou ao menos uma lista de palavras, termos e expressões com significados muito próprios, dentro do domínio específico, quase restrito, de denotações desse campo, v. g.: orvil, pensamento orviliano, relatórios periódicos mensais (RPMs), Plano Cohen, livros filo-orvilianos, revanchismo, anos de chumbo, distenção e abertura política lenta e gradual, Agência Pública, análise de conteúdo categorial, justiça de transição reversa, perdão, poder terapêutico da verdade etc.
Essas são as indicações formais que faço ao trabalho, de resto, muito bem escrito, por meio de um discurso elegante, harmonioso, entremeado de epígrafes e sonoridades, às vezes musicais outras poéticas. O que já se inicia com as partes pré-textuais, incluindo os agradecimentos e as dedicatórias. A autora tem estilo e seu texto desliza. Pressentir, mais que analisar, se as palavras, tal como diz John Steinbeck sobre o seu ofício, se deixam escorrer e se arrastar para o texto, como que movidas por sua própria vontade. Para ele (A Rua das Ilusões Perdidas, Rio de Janeiro: BestBolso, 2019), talvez essa seja a maneira de escrever certos livros, abrir a página e deixar que as palavras fluam, livres, espontaneamente, transferindo-as para o texto, no arranjo da própria narrativa.
Claro que logo me acudiu a metáfora da narração como modo peculiar de construir uma memória que realize uma perspectiva convincente e credível de uma realidade com versões em disputa incluindo a sua própria existência. Assim, lembrei do filme Narradores de Javé. Produção de Eliane Caffé. Riofilme, 2003. DVD (100min), widescreen, color. Conforme Alexandra Gomes dos Santos Matos (https://www.nucleodoconhecimento.com.br/lei/memoria-e-direito), “busca da memória como meio científico de se fazer história, o processo de construção da identidade de um povo e a indiferença da classe dominante aos anseios dos povos desfavorecidos econômica e socialmente. Desse modo, a relevância de preservar a tradição de uma sociedade ágrafa depara-se com um pormenor: a viabilidade da modernização que não considera os interesses do homem sertanejo, morador de Javé”.
Narradores de Javé, ela diz, “pode ser representativo de um clamor das classes marginalizadas socialmente, o que possibilita a reflexão sobre assuntos urgentes que nem sempre são pautas de discussão em uma sociedade capitalista. Javé se submete ao progresso, ao avanço tecnológico, à escrita, ao poder de uma elite minoritária, preocupada com seus interesses individuais”.
Ainda sob essa perspectiva, antagônica aquela que será tomada como referente na Dissertação, penso nas narrativas de Pedro Tierra (aliás, Hamilton Pereira), em Pesadelo. Narrativas dos Anos de Chumbo. São Paulo: Autonomia Literária: Fundação Perseu Abramo, 2019, que deixam marcas da memória, sobretudo quando a mentira política (Hanna Arendt), produzindo deliberadamente o ocultamento, tripudia sobre o pesadelo que se vivencia nos instantes em que o perigo relampeja, e volta a assombrar à custa de uma perversa ação de usurpação cultural da memória e da história.
Aqui um pretexto para encontrar um fio duplamente dilacerante, de memória da memória (conforme Santo Agostinho, em Confissões), ao fim e ao cabo, um caleidoscópio que embalam o que o que se viveu e que não pode deixar de contar, ou ao menos do modo como, se não viveu propriamente, é como lembra para contar (Garcia Marquez, Viver para Contar: “A vida não é o que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la”). Um processo que se aproxima da perspectiva formulada por François Ost, tomado como referência pela Autora, nos termos dos paradoxos que organizam os entendimentos de reinterpretação coletiva, seja no sentido de política de memória, ou no sentido de política de esquecimento, distinções fortes na fundamentação da Autora da Dissertação e de sua orientadora (p. 93).
Lembramos eu e Nair Heloisa Bicalho de Sousa, em nosso texto de apresentação ao volume 7, da Série O Direito Achado na Rua (Justiça de transição: direito à memória e à verdade, bastante referido pela Autora da Dissertação), “um esforço para vencer a tendência a deixar no esquecimento os fatos reveladores das práticas políticas do regime autoritário. Vê-se, assim, com Pollack (1989), que memória e esquecimento são eixos fundamentais da esfera do poder, disputando o modo como a memória coletiva constrói-se em cada sociedade”. Em outro texto (Direito à memória e à verdade, Observatório da Constituição e da Democracia. Brasília: Faculdade de Direito da UnB, n. 17, outubro e novembro de 2007), avançamos esse ponto para reafirmar que há “uma memória coletiva em processo de construção necessitando que as diferentes gerações tenham conhecimento da verdade. É tempo de reivindicar a verdade. É tempo de reivindicar a verdade e de resgatar a memória, como referências éticas para conter a mentira na política, pois, como lembra Hanna Arendt, ‘uma das lições que podem ser apreendidas das experiências totalitárias é a assustadora confiança de seus dirigentes no poder da mentira e na capacidade de reescreverem a história para a adaptar a uma linha política’”.
Bárbara faz a defesa de sua dissertação no momento em que o Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas divulga o relatório resultado da primeira revisão periódica do Brasil em 10 anos, realizada nos dias 26 e 27 de junho em Genebra, apontando uma série de recomendações ao Brasil com o objetivo de promover a igualdade, justiça e proteção dos direitos humanos.
Dentre as principais recomendações, destaca-se o pedido de revisão da Lei da Anistia, do período da ditadura militar, com o intuito de assegurar a responsabilização por violações de direitos humanos e proporcionar a devida reparação às vítimas. O comitê da Organização das Nações Unidas (ONU) expressou preocupação com a falta de implementação das recomendações da Comissão da Verdade nesse contexto.
O Trabalho de Bárbara Guilherme Lopes é, pois singular porque, desenvolvido nesse contexto de problematização de discursos sobre um tema difícil, é uma tentativa de decifrar a motivação orviliana – “não confiável” – do “discurso do exército brasileiro sobre memória, verdade e justiça” e por ele produzido “nos relatórios periódicos mensais (RPMS) entre 1989 e 1991”.
É singular porque se debruça analiticamente sobre a discursividade produzida, independente da realidade dos fatos a que se refere. É diferente, por exemplo, da representação desses fatos na descrição de sua ocorrência, em situações concretas e não só enunciadas. Menciono o livro BORBOLETAS E LOBISOMENS: Vidas Sonhos e Mortes dos Guerrilheiros do Araguaia, de Hugo Studart. Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 2018, que inclusive prefaciei e a propósito publiquei uma recensão (http://estadodedireito.com.br/21677-2/).
O livro de Hugo Studart colabora para por em relevo a exigência de memória e verdade como um caminho a ser necessariamente percorrido na senda de construção e de reconstrução democrática. Ele levanta, com seu trabalho artesão, de pesquisador diligente, fragmentos de registros, na maior parte pessoais e voluntários de um enorme baú de ossadas. Contudo, os arquivos oficiais da repressão, a despeito dos esforços da Comissão de Memória e de Verdade (mas não de Justiça) ainda permanecem restritos à sociedade civil, em parte por se manterem deliberadamente ocultados e em parte pela objeção sonegadora de agentes ainda resistentes e insubordinados ao comando legal e das autoridades constituídas e isso retrata, de certa maneira, uma tendência a deixar no esquecimento os fatos reveladores das práticas políticas do regime autoritário. Vê-se, assim, que memória e esquecimento são eixos fundamentais da esfera do poder, disputando o modo como a memória coletiva se constrói em cada sociedade.
Essa é a contribuição deste livro que vem precedido de um de natureza acadêmica. Antes da tese, Studart desenvolveu também como resultante de um trabalho de mestrado – o livro A Lei da Selva com foco no mesmo tema – a Guerrilha do Araguaia – (Geração Editorial, São Paulo, 2006), um estudo inédito, na medida em que se debruçou, como antes ainda não havia sido feito, sobre as “estratégias, imaginário e discurso dos militares sobre a guerrilha do Araguaia”. A experiência deu prumo à capacidade narrativa e mais que isso, permitiu um mergulho prospectivo sobre esse episódio sensível, permitindo cartografar o ambiente geo-político do “teatro de operações”e mergulhar nos caracteres dos personagens, num ensaio que lembrou a mesma disposição sociológica (Euclides) e literária (Vargas Llosa), para desvendar mais uma “guerra do fim do mundo”. Com a circunstância de que se valeu de documentos, depoimentos e interpretações oferecidas pelos próprios agentes de segurança e de militares que participaram das expedições.
Terá sido possível apelar para a verdade, conforme a diretriz do pensamento da grande filósofa Hannah Arendt, e assim recuperar um “hiato de credibilidade” para resgatar a verdade como dimensão da política, em condições de estabelecer base para a confiança desejada entre governo e cidadãos. Atende-se à questão posta por Walter Benjamin, – o historiador referência da Autora para a fundamentação teórica de seu trabalho – para designar o processo da memória histórica que segundo ele, implica articular historicamente o passado sem que isso signifique conhecê-lo “como ele de fato foi”, mas antes, apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo?
A imagem elaborada por Benjamin, serviu a sua interpretação da realidade de um tempo de paroxismo totalitário, ao qual ele próprio sucumbiu, e que marcou o mundo por uma referência de brutal irracionalidade, e assim, “reconstruir memórias que permitam ressignificar as experiências de outros sujeitos do passado e, com eles, estabelecer um diálogo no tempo presente”.
Benjamin não explica como a história humana pode dar o que o homem não tem. O objeto da memória não é um passado morto, mas uma linha tênue cujo desenrolar pode provocar novos emaranhados. O que não se tem hoje ao seu alcance de nosso discernimento ativo a história animada por esse passado pode ter”.
Tomando o texto de Bárbara e seu tremendo esforço de desemaranhar o novelo narrativo, a partir do que designa como discurso orviliano, é um enredamento numa espécie de “globo da morte” dos antigos espetáculos circenses, com os malabaristas condenados a rodar todo o tempo no interior de um espaço do qual não têm como sair e dentro do qual podem a qualquer momento sucumbir.
Podem mudar os personagens mas ainda são, no Brasil, opostos que se completam, tal como no último ciclo geracional de uma militarização politizada, com Lentz, que situa, de um lado, os moderados, castelistas ou grupo da Sorbonne (ala ligada ao presidente Castelo Branco e que via o regime como um processo de transição relativamente rápido e pretendiam o retorno à democracia, incluindo eleições diretas para presidente já em 1966) e, de outro, o grupo linha-dura, que temia o retorno ao governo dos quadros políticos civis pré-golpe militar de 1964 e que defendiam, assim, a prorrogação do regime militar, enquanto a função “salvadora” da “revolução” não tivesse sido completamente realizada.
Todos golpistas, ainda que aparentemente divididos em duas correntes político-ideológicas: aquela sob a orientação do general Golbery do Couto e Silva, que achavam necessário combater o “comunismo”, o PTB e as esquerdas pela repressão, e ao mesmo tempo desenvolver um projeto modernizador da economia à custa do capital estrangeiro, mesmo apostando que, com a estabilidade de volta, o regime devesse voltar aos civis. 2-grupo linha-dura, liderado pelo general Artur da Costa e Silva, voltado para o combate ao comunismo e aos subversivos – como ficaram conhecidos os que se colocaram contra a ditadura – deveria ser mais duro, pregando a continuidade dos militares no poder – numa espécie de “revolução permanente”.
E que no suceder-se das “ondas de estudos sobre a dominação política dos militares”, como classifica Lentz, em esquema seguido pela Autora, estamos agora longe do que se pode chamar em algum momento de alguma “expressão de um movimento político-militar brasileiro para afirmar reivindicações modernizadoras como a exigência do voto secreto, a defesa do ensino público e a obrigatoriedade do ensino secundário para toda a população, além de acabar com a miséria e a injustiça social no Brasil”, jamais entreguista ou canibalizador do orçamento público, conforme eu próprio já sugeri, distinguindo algumas biografias notáveis antes do declínio apequenador que parece caracterizar o estamento ou a casta em que se encrustam (https://www.brasilpopular.com/morrer-se-necessario-for-matar-nunca/).
Por isso, é tão urgente institucionalizar um sistema de transparência sobre os arquivos e as informações dessa conjuntura histórica. Não se trata apenas de resgatar a memória e a verdade, mas de completar a transição, sair do “globo da morte” e abrir-se à experiência plena da democracia, da cidadania, da justiça e da paz e de procurar realizar confiança nas relações de governança. Alcançar uma forma de conceber o passado vivo e prenhe de possibilidades, para chegar, conforme Benjamin, a um tempo, que ele chama de tempo pleno, tempo democrático eu diria.
A Autora tem absoluta clareza sobre as incidências, subjetivas e objetivas, que recaem sobre seu trabalho, tal como ressalva nas conclusões:
esta pesquisa também é um convite para que os estudos da memória sejam colocados no debate científico atual, para pensar justiça de transição de forma continuada, como política pública e para estabelecer de forma concreta as narrativas da história que baseiam decisões políticas. Pois, se mais narradores estiverem comprometidos com memória, verdade e justiça, menos confiáveis se tornam os Orvis: os que já existiram e os que ainda estão por vir. É um convite para repensar as Forças Armadas, a militarização da política institucional, a memória militar sobre a ditadura e as relações civis-militares. É um convite para a justiça de transição: construir a memória politicamente, promover justiça das vítimas, e reformar instituições que preservam o pensamento de segurança nacional. É um convite para repensar segurança e nação.
Em Comblin (Joseph), conforme o seu Ideologia de Segurança Nacional Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979) – lembrando que essa forma de interpretar valeu sua expulsão do Brasil até que a redemocratização pós-85 permitisse seu reingresso no país -, na onda atrelada a essa concepção, os militares ficaram reduzidos a um papel tão somente instrumental para o atendimento do interesse do capital internacional norte-americano, valendo-se sobretudo das escolas militares para difundir uma perspectiva sobre o mundo político, na qual caberia às Forças Armadas uma função de proeminência.
Será possível a partir desse papel secundário, e do rebaixamento institucional provocado pela adesão a um projeto de assalto ao orçamento público (ao preço de concessões, comissionamentos funcionais e adereços burocráticos a exemplo do artificialismo de investir-se em atividades “pedagógicas” em um sistema educacional “militarizado”, conceber-se qualquer papel confiável das Forças Armadas por seus quadros, investidos de atribuições políticas institucionais? A pesquisa Ipec que avalia confiança social com 20 instituições, divulgada neste mês de julho, ainda mantem as Forças Armadas, na mediana de confiabilidade social, mas superadas pelo Corpo de Bombeiros em primeiro lugar e atrás da Polícia Federal, das Igrejas e, felizmente, das Escolas Públicas. A participação canhestra de muitos de seus agentes nos acontecimentos antidemocráticos recentes (8 de janeiro), não podem ser um indicador do encolhimento de confiança? Que sua narrativa, incredível, continue à sombra, como orvil, em seu próprio lado da colina? (aqui valendo-me da expressão que Bárbara escavou por significar, no vocabulário dos militares, o seu intento de disputar pela memória, a sua versão dos fatos).
Essa sucessão de procedimentos direta ou indiretamente atribuídos às Forças Armadas, estariam a se revelar tal como diz a Autora, “um modo de operar por meio de engodos que já justificam práticas percebidas como impedimentos a consolidação da democracia levando ao questionamento das forças armadas no país?
Surpreende a orientação da pesquisa, com todo o cuidado de estabelecer parâmetros qualificados para a análise de discurso, que o exame do seu corpus (RPMs editados entre 1989 e 1991), encontrem ativa e operante uma concepção de segurança nacional estruturada para conter inimigos internos em face de uma disposição de defender as funções constitucionais militares numa projeção insinuante que extrapola o âmbito secreto da informação e da interpretação de diretrizes militares por meio de uma circulação não restrita ao interior da instituição e que projete informações (e desinformações) para consumo de terceiros de acordo com o interesse do Exército (p. 53) isso mesmo depois do advento da Constituição de 1988 e de implantação de um regime civil de enunciado democrático? A quem serve esse Exército e a que interesses ele responde?
Há acúmulo para se abrir uma agenda para esses questionamentos e tornar possível instituir finalmente políticas de Memória, Verdade e Justiça aplicáveis a condutas das Forças Armadas ou pelos menos de seus membros, incluindo os mais proeminentes, já “não confiáveis” como pressupõe e ratifica a Autora em seu trabalho? Há horizonte para se completar a transição, abrindo-se conforme as condicionantes presentes no trabalho que coincidem em boa parte com aquelas que eu próprio menciono (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Anistia, compromisso da liberdade. In Revista Humanidades, nº 13, Editora UnB, 1987; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Memória e Verdade como Direitos Humanos. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Idéias para a Cidadania e para a Justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor/Sindjus – Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário do Ministério Público da União do DF, 2008, pp. 99-100)?
Num texto recentíssimo (https://www.meer.com/pt/74590-a-divisao-social-do-sofrimento) Boaventura de Sousa Santos insere questões interpelantes e traumáticas, entre elas as que se revestem de violência política, que resultam em escalas ao limite do insuportável, de sofrimento. Daí que, para ele, “de um ponto de vista da teoria crítica, a questão principal é a de saber que tipos de sociedade tendem a produzir que tipos de sofrimento e que impacto isso tem na produção do conhecimento e na transformação progressista da sociedade”. Nessa escala ele demarca:
O sofrimento tem de ser integrado numa teoria mais ampla de realidade. Dizia Adorno que a separação entre as disciplinas constitui o grande obstáculo para ver as relações entre o sofrimento individual e o sofrimento colectivo. Este último é concebido como uma patologia social ou como uma experiência social negativa, muitas vezes invisibilizada, competindo à teoria crítica dar-lhe visibilidade e indicar caminhos para o minimizar. Mas reconhece-se que este esforço analítico pode redundar em reproduzir o silenciamento. Talvez por isso, Bourdieu salientou, num livro fundamental sobre o sofrimento do mundo, que o seu papel era o de ser, acima de tudo, um porta-voz.
São questões que o texto de Bárbara suscita. Dito poeticamente, já que ela abriu seu trabalho com Walt Whitman – “eu confesso que o incitei a ir em frente comigo e que ainda o incito sem a mínima ideia de qual venha a ser o nosso destino ou se vamos sair vitoriosos ou totalmente sufocados e vencidos” – eu termino a minha arguição com Milan Kundera, para o homenagear, há poucos dias de seu falecimento (11/07): “Para liquidar os povos, começa-se por lhes tirar a memória. Destroem-se seus livros, sua cultura, sua história. E uma outra pessoa lhes escreve outros livros, lhes dá outra cultura e lhes inventa uma outra história” (O Livro do Riso e do Esquecimento, 1978).
Narradores não confiáveis: o discurso do exército brasileiro sobre memória, verdade e justiça encontrado nos relatórios periódicos mensais
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Barbara Guilherme Lopes. Narradores não confiáveis: o discurso do Exército Brasileiro sobre memória, verdade e justiça encontrado nos Relatórios Periódicos Mensais (RPMS) entre 1989 e 1991. Dissertação de Mestrado apresentada Programa de Pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), 2023, 108 fls.
Uma alegria compartilhar a Banca Examinadora formada pela Professora Eneá de Stutz e Almeida (Orientadora – Faculdade de Direito UnB); pelo Professor Lucas Pedretti Lima (Examinador externo titular) e por mim Professor (Examinador interno titular – Faculdade de Direito UnB), responsável por validar esta singular dissertação, dado o seu enfoque e o interlocutor político que põe em causa.
Veja-se o seu resumo:
Esta pesquisa remete a uma disputa narrativa histórica: o discurso sobre a ditadura civil-militar no Brasil. De um lado, o lançamento do livro Brasil: Nunca Mais, em 1985, que denuncia as violações aos direitos humanos durante a ditadura e, como resposta, o Projeto Orvil, encabeçado pelo Centro de Informações do Exército (CIE), com a intenção de contar a versão dos militares da história. O Orvil não foi autorizado para publicação, mas continuou a circular nas Forças Armadas como narrativa de variadas formas. Em 2021, foram divulgados os Relatórios Periódicos Mensais (RPMs), informativos elaborados pelo CIE pelo menos de 1989 a 1991, que perpetua o discurso do Orvil como política no sistema de informações do Exército para doutrinação de militares. Damos a isso o nome de discurso Orviliano e questionamos: qual o discurso do Exército sobre memória, verdade e justiça da ditadura civil-militar? Para isso, partimos da hipótese de que há um discurso Orviliano sobre memória, verdade e justiça no Exército Brasileiro que obstaculiza a justiça de transição. É proposta uma análise de discurso, de acordo com Orlandi (2000), nos Relatórios Periódicos Mensais, que são capazes de fornecer uma delimitação temporal que representa a redemocratização, em um período pós promulgação da Constituição Federal de 1988. Dessa forma, codificamos os textos presentes nos Relatórios através da análise de conteúdo categorial, elaborado a partir da revisão de literatura sobre o pensamento político dos militares, que demonstra a centralidade da Doutrina de Segurança Nacional como fundamento. Foi possível compreender que o discurso dos RPMs traz os elementos argumentativos fundamentais do Orvil, sendo assim, foi caracterizado como um discurso Orviliano sobre memória, verdade e justiça. Sendo estes os pilares da justiça de transição, um discurso atravessado sobre a ditadura civil-militar, que apresenta uma narrativa que inverte heróis e vilões, criando inimigos, é um entrave para sua concretização. A tarefa da justiça de transição, portanto, é trabalhar os usos políticos do passado no presente a fim de se posicionar sobrea memória a ser construída
Transcrevo o Sumário do trabalho para a percepção da distribuição analítica dos temas correlacionados pela Autora do trabalho:
1INTRODUÇÃO
2 PENSAMENTO POLÍTICO DOS MILITARES: DOUTRINA DE SEGURANÇA NACIONAL E A VERDADE VIRADA DO AVESSO
2.1 Doutrina de Segurança Nacional e as relações civis-militares no Brasil: ordem e progresso
2.2 Guerra nas colinas: a narrativa militar sobre a ditadura
2.3 O avesso do avesso do avesso: o CIE, o Orvil e o Orvilianismo
3 “COMANDANTE, MANTENHA SEUS HOMENS BEM-INFORMADOS!”:
UMA ANÁLISE DE CONTEÚDO DOS RELATÓRIOS PERIÓDICOS MENSAIS ELABORADOS PELO CENTRO DE INFORMAÇÕES DO EXÉRCITO ENTRE 1989 E 1991
3.1 Método e metodologia de pesquisa: como analisar o que eles dizem?
3.2 Os Relatórios Periódicos Mensais (RPMs) e o Centro de Informações do Exército (CIE)
3.3 O que diz o Exército Brasileiro? Uma análise de discurso dos Relatórios Periódicos Mensais (1989 – 1991)
4 O PASSADO É UM PAÍS ESTRANGEIRO: O CAMINHO DA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO PELA HISTÓRIA E OS PERCALÇOS DA MEMÓRIA
4.1 Inventário da Justiça de Transição: Considerações sobre memória, verdade e história
4.2 “E que me esqueçam!”: Tempo e usos do passado, entre memória e esquecimento
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
6 REFERÊNCIAS
7 FONTES PRIMÁRIAS
Já pelo resumo e pelo sumário, mas ao longo de todo o trabalho, são muitas as siglas – algumas logo identificadas na extensão de seu significado, outras entretanto, mesmo que assim designadas, muitas vezes aparecem distante de seu primeiro descritivo o que dificulta saber o que designam. Assim, já que a Autora abriu uma página para uma Lista de Imagens, sugiro que abra uma também para uma Lista de Siglas. Do mesmo modo, adotando um processo quase arqueológico de termos e expressões muito significativos para a compreensão do discurso militar, talvez fosse conveniente compor um Tesauro ou Thesaurus ou ao menos uma lista de palavras, termos e expressões com significados muito próprios, dentro do domínio específico, quase restrito, de denotações desse campo, v. g.: orvil, pensamento orviliano, relatórios periódicos mensais (RPMs), Plano Cohen, livros filo-orvilianos, revanchismo, anos de chumbo, distenção e abertura política lenta e gradual, Agência Pública, análise de conteúdo categorial, justiça de transição reversa, perdão, poder terapêutico da verdade etc.
Essas são as indicações formais que faço ao trabalho, de resto, muito bem escrito, por meio de um discurso elegante, harmonioso, entremeado de epígrafes e sonoridades, às vezes musicais outras poéticas. O que já se inicia com as partes pré-textuais, incluindo os agradecimentos e as dedicatórias. A autora tem estilo e seu texto desliza. Pressentir, mais que analisar, se as palavras, tal como diz John Steinbeck sobre o seu ofício, se deixam escorrer e se arrastar para o texto, como que movidas por sua própria vontade. Para ele (A Rua das Ilusões Perdidas, Rio de Janeiro: BestBolso, 2019), talvez essa seja a maneira de escrever certos livros, abrir a página e deixar que as palavras fluam, livres, espontaneamente, transferindo-as para o texto, no arranjo da própria narrativa.
Claro que logo me acudiu a metáfora da narração como modo peculiar de construir uma memória que realize uma perspectiva convincente e credível de uma realidade com versões em disputa incluindo a sua própria existência. Assim, lembrei do filme Narradores de Javé. Produção de Eliane Caffé. Riofilme, 2003. DVD (100min), widescreen, color. Conforme Alexandra Gomes dos Santos Matos (https://www.nucleodoconhecimento.com.br/lei/memoria-e-direito), “busca da memória como meio científico de se fazer história, o processo de construção da identidade de um povo e a indiferença da classe dominante aos anseios dos povos desfavorecidos econômica e socialmente. Desse modo, a relevância de preservar a tradição de uma sociedade ágrafa depara-se com um pormenor: a viabilidade da modernização que não considera os interesses do homem sertanejo, morador de Javé”.
Narradores de Javé, ela diz, “pode ser representativo de um clamor das classes marginalizadas socialmente, o que possibilita a reflexão sobre assuntos urgentes que nem sempre são pautas de discussão em uma sociedade capitalista. Javé se submete ao progresso, ao avanço tecnológico, à escrita, ao poder de uma elite minoritária, preocupada com seus interesses individuais”.
Ainda sob essa perspectiva, antagônica aquela que será tomada como referente na Dissertação, penso nas narrativas de Pedro Tierra (aliás, Hamilton Pereira), em Pesadelo. Narrativas dos Anos de Chumbo. São Paulo: Autonomia Literária: Fundação Perseu Abramo, 2019, que deixam marcas da memória, sobretudo quando a mentira política (Hanna Arendt), produzindo deliberadamente o ocultamento, tripudia sobre o pesadelo que se vivencia nos instantes em que o perigo relampeja, e volta a assombrar à custa de uma perversa ação de usurpação cultural da memória e da história.
Aqui um pretexto para encontrar um fio duplamente dilacerante, de memória da memória (conforme Santo Agostinho, em Confissões), ao fim e ao cabo, um caleidoscópio que embalam o que o que se viveu e que não pode deixar de contar, ou ao menos do modo como, se não viveu propriamente, é como lembra para contar (Garcia Marquez, Viver para Contar: “A vida não é o que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la”). Um processo que se aproxima da perspectiva formulada por François Ost, tomado como referência pela Autora, nos termos dos paradoxos que organizam os entendimentos de reinterpretação coletiva, seja no sentido de política de memória, ou no sentido de política de esquecimento, distinções fortes na fundamentação da Autora da Dissertação e de sua orientadora (p. 93).
Lembramos eu e Nair Heloisa Bicalho de Sousa, em nosso texto de apresentação ao volume 7, da Série O Direito Achado na Rua (Justiça de transição: direito à memória e à verdade, bastante referido pela Autora da Dissertação), “um esforço para vencer a tendência a deixar no esquecimento os fatos reveladores das práticas políticas do regime autoritário. Vê-se, assim, com Pollack (1989), que memória e esquecimento são eixos fundamentais da esfera do poder, disputando o modo como a memória coletiva constrói-se em cada sociedade”. Em outro texto (Direito à memória e à verdade, Observatório da Constituição e da Democracia. Brasília: Faculdade de Direito da UnB, n. 17, outubro e novembro de 2007), avançamos esse ponto para reafirmar que há “uma memória coletiva em processo de construção necessitando que as diferentes gerações tenham conhecimento da verdade. É tempo de reivindicar a verdade. É tempo de reivindicar a verdade e de resgatar a memória, como referências éticas para conter a mentira na política, pois, como lembra Hanna Arendt, ‘uma das lições que podem ser apreendidas das experiências totalitárias é a assustadora confiança de seus dirigentes no poder da mentira e na capacidade de reescreverem a história para a adaptar a uma linha política’”.
Bárbara faz a defesa de sua dissertação no momento em que o Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas divulga o relatório resultado da primeira revisão periódica do Brasil em 10 anos, realizada nos dias 26 e 27 de junho em Genebra, apontando uma série de recomendações ao Brasil com o objetivo de promover a igualdade, justiça e proteção dos direitos humanos.
Dentre as principais recomendações, destaca-se o pedido de revisão da Lei da Anistia, do período da ditadura militar, com o intuito de assegurar a responsabilização por violações de direitos humanos e proporcionar a devida reparação às vítimas. O comitê da Organização das Nações Unidas (ONU) expressou preocupação com a falta de implementação das recomendações da Comissão da Verdade nesse contexto.
O Trabalho de Bárbara Guilherme Lopes é, pois singular porque, desenvolvido nesse contexto de problematização de discursos sobre um tema difícil, é uma tentativa de decifrar a motivação orviliana – “não confiável” – do “discurso do exército brasileiro sobre memória, verdade e justiça” e por ele produzido “nos relatórios periódicos mensais (RPMS) entre 1989 e 1991”.
É singular porque se debruça analiticamente sobre a discursividade produzida, independente da realidade dos fatos a que se refere. É diferente, por exemplo, da representação desses fatos na descrição de sua ocorrência, em situações concretas e não só enunciadas. Menciono o livro BORBOLETAS E LOBISOMENS: Vidas Sonhos e Mortes dos Guerrilheiros do Araguaia, de Hugo Studart. Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 2018, que inclusive prefaciei e a propósito publiquei uma recensão (http://estadodedireito.com.br/21677-2/).
O livro de Hugo Studart colabora para por em relevo a exigência de memória e verdade como um caminho a ser necessariamente percorrido na senda de construção e de reconstrução democrática. Ele levanta, com seu trabalho artesão, de pesquisador diligente, fragmentos de registros, na maior parte pessoais e voluntários de um enorme baú de ossadas. Contudo, os arquivos oficiais da repressão, a despeito dos esforços da Comissão de Memória e de Verdade (mas não de Justiça) ainda permanecem restritos à sociedade civil, em parte por se manterem deliberadamente ocultados e em parte pela objeção sonegadora de agentes ainda resistentes e insubordinados ao comando legal e das autoridades constituídas e isso retrata, de certa maneira, uma tendência a deixar no esquecimento os fatos reveladores das práticas políticas do regime autoritário. Vê-se, assim, que memória e esquecimento são eixos fundamentais da esfera do poder, disputando o modo como a memória coletiva se constrói em cada sociedade.
Essa é a contribuição deste livro que vem precedido de um de natureza acadêmica. Antes da tese, Studart desenvolveu também como resultante de um trabalho de mestrado – o livro A Lei da Selva com foco no mesmo tema – a Guerrilha do Araguaia – (Geração Editorial, São Paulo, 2006), um estudo inédito, na medida em que se debruçou, como antes ainda não havia sido feito, sobre as “estratégias, imaginário e discurso dos militares sobre a guerrilha do Araguaia”. A experiência deu prumo à capacidade narrativa e mais que isso, permitiu um mergulho prospectivo sobre esse episódio sensível, permitindo cartografar o ambiente geo-político do “teatro de operações”e mergulhar nos caracteres dos personagens, num ensaio que lembrou a mesma disposição sociológica (Euclides) e literária (Vargas Llosa), para desvendar mais uma “guerra do fim do mundo”. Com a circunstância de que se valeu de documentos, depoimentos e interpretações oferecidas pelos próprios agentes de segurança e de militares que participaram das expedições.
Terá sido possível apelar para a verdade, conforme a diretriz do pensamento da grande filósofa Hannah Arendt, e assim recuperar um “hiato de credibilidade” para resgatar a verdade como dimensão da política, em condições de estabelecer base para a confiança desejada entre governo e cidadãos. Atende-se à questão posta por Walter Benjamin, – o historiador referência da Autora para a fundamentação teórica de seu trabalho – para designar o processo da memória histórica que segundo ele, implica articular historicamente o passado sem que isso signifique conhecê-lo “como ele de fato foi”, mas antes, apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo?
A imagem elaborada por Benjamin, serviu a sua interpretação da realidade de um tempo de paroxismo totalitário, ao qual ele próprio sucumbiu, e que marcou o mundo por uma referência de brutal irracionalidade, e assim, “reconstruir memórias que permitam ressignificar as experiências de outros sujeitos do passado e, com eles, estabelecer um diálogo no tempo presente”.
Benjamin não explica como a história humana pode dar o que o homem não tem. O objeto da memória não é um passado morto, mas uma linha tênue cujo desenrolar pode provocar novos emaranhados. O que não se tem hoje ao seu alcance de nosso discernimento ativo a história animada por esse passado pode ter”.
Tomando o texto de Bárbara e seu tremendo esforço de desemaranhar o novelo narrativo, a partir do que designa como discurso orviliano, é um enredamento numa espécie de “globo da morte” dos antigos espetáculos circenses, com os malabaristas condenados a rodar todo o tempo no interior de um espaço do qual não têm como sair e dentro do qual podem a qualquer momento sucumbir.
Podem mudar os personagens mas ainda são, no Brasil, opostos que se completam, tal como no último ciclo geracional de uma militarização politizada, com Lentz, que situa, de um lado, os moderados, castelistas ou grupo da Sorbonne (ala ligada ao presidente Castelo Branco e que via o regime como um processo de transição relativamente rápido e pretendiam o retorno à democracia, incluindo eleições diretas para presidente já em 1966) e, de outro, o grupo linha-dura, que temia o retorno ao governo dos quadros políticos civis pré-golpe militar de 1964 e que defendiam, assim, a prorrogação do regime militar, enquanto a função “salvadora” da “revolução” não tivesse sido completamente realizada.
Todos golpistas, ainda que aparentemente divididos em duas correntes político-ideológicas: aquela sob a orientação do general Golbery do Couto e Silva, que achavam necessário combater o “comunismo”, o PTB e as esquerdas pela repressão, e ao mesmo tempo desenvolver um projeto modernizador da economia à custa do capital estrangeiro, mesmo apostando que, com a estabilidade de volta, o regime devesse voltar aos civis. 2-grupo linha-dura, liderado pelo general Artur da Costa e Silva, voltado para o combate ao comunismo e aos subversivos – como ficaram conhecidos os que se colocaram contra a ditadura – deveria ser mais duro, pregando a continuidade dos militares no poder – numa espécie de “revolução permanente”.
E que no suceder-se das “ondas de estudos sobre a dominação política dos militares”, como classifica Lentz, em esquema seguido pela Autora, estamos agora longe do que se pode chamar em algum momento de alguma “expressão de um movimento político-militar brasileiro para afirmar reivindicações modernizadoras como a exigência do voto secreto, a defesa do ensino público e a obrigatoriedade do ensino secundário para toda a população, além de acabar com a miséria e a injustiça social no Brasil”, jamais entreguista ou canibalizador do orçamento público, conforme eu próprio já sugeri, distinguindo algumas biografias notáveis antes do declínio apequenador que parece caracterizar o estamento ou a casta em que se encrustam (https://www.brasilpopular.com/morrer-se-necessario-for-matar-nunca/).
Por isso, é tão urgente institucionalizar um sistema de transparência sobre os arquivos e as informações dessa conjuntura histórica. Não se trata apenas de resgatar a memória e a verdade, mas de completar a transição, sair do “globo da morte” e abrir-se à experiência plena da democracia, da cidadania, da justiça e da paz e de procurar realizar confiança nas relações de governança. Alcançar uma forma de conceber o passado vivo e prenhe de possibilidades, para chegar, conforme Benjamin, a um tempo, que ele chama de tempo pleno, tempo democrático eu diria.
A Autora tem absoluta clareza sobre as incidências, subjetivas e objetivas, que recaem sobre seu trabalho, tal como ressalva nas conclusões:
esta pesquisa também é um convite para que os estudos da memória sejam colocados no debate científico atual, para pensar justiça de transição de forma continuada, como política pública e para estabelecer de forma concreta as narrativas da história que baseiam decisões políticas. Pois, se mais narradores estiverem comprometidos com memória, verdade e justiça, menos confiáveis se tornam os Orvis: os que já existiram e os que ainda estão por vir. É um convite para repensar as Forças Armadas, a militarização da política institucional, a memória militar sobre a ditadura e as relações civis-militares. É um convite para a justiça de transição: construir a memória politicamente, promover justiça das vítimas, e reformar instituições que preservam o pensamento de segurança nacional. É um convite para repensar segurança e nação.
Em Comblin (Joseph), conforme o seu Ideologia de Segurança Nacional Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979) – lembrando que essa forma de interpretar valeu sua expulsão do Brasil até que a redemocratização pós-85 permitisse seu reingresso no país -, na onda atrelada a essa concepção, os militares ficaram reduzidos a um papel tão somente instrumental para o atendimento do interesse do capital internacional norte-americano, valendo-se sobretudo das escolas militares para difundir uma perspectiva sobre o mundo político, na qual caberia às Forças Armadas uma função de proeminência.
Será possível a partir desse papel secundário, e do rebaixamento institucional provocado pela adesão a um projeto de assalto ao orçamento público (ao preço de concessões, comissionamentos funcionais e adereços burocráticos a exemplo do artificialismo de investir-se em atividades “pedagógicas” em um sistema educacional “militarizado”, conceber-se qualquer papel confiável das Forças Armadas por seus quadros, investidos de atribuições políticas institucionais? A pesquisa Ipec que avalia confiança social com 20 instituições, divulgada neste mês de julho, ainda mantem as Forças Armadas, na mediana de confiabilidade social, mas superadas pelo Corpo de Bombeiros em primeiro lugar e atrás da Polícia Federal, das Igrejas e, felizmente, das Escolas Públicas. A participação canhestra de muitos de seus agentes nos acontecimentos antidemocráticos recentes (8 de janeiro), não podem ser um indicador do encolhimento de confiança? Que sua narrativa, incredível, continue à sombra, como orvil, em seu próprio lado da colina? (aqui valendo-me da expressão que Bárbara escavou por significar, no vocabulário dos militares, o seu intento de disputar pela memória, a sua versão dos fatos).
Essa sucessão de procedimentos direta ou indiretamente atribuídos às Forças Armadas, estariam a se revelar tal como diz a Autora, “um modo de operar por meio de engodos que já justificam práticas percebidas como impedimentos a consolidação da democracia levando ao questionamento das forças armadas no país?
Surpreende a orientação da pesquisa, com todo o cuidado de estabelecer parâmetros qualificados para a análise de discurso, que o exame do seu corpus (RPMs editados entre 1989 e 1991), encontrem ativa e operante uma concepção de segurança nacional estruturada para conter inimigos internos em face de uma disposição de defender as funções constitucionais militares numa projeção insinuante que extrapola o âmbito secreto da informação e da interpretação de diretrizes militares por meio de uma circulação não restrita ao interior da instituição e que projete informações (e desinformações) para consumo de terceiros de acordo com o interesse do Exército (p. 53) isso mesmo depois do advento da Constituição de 1988 e de implantação de um regime civil de enunciado democrático? A quem serve esse Exército e a que interesses ele responde?
Há acúmulo para se abrir uma agenda para esses questionamentos e tornar possível instituir finalmente políticas de Memória, Verdade e Justiça aplicáveis a condutas das Forças Armadas ou pelos menos de seus membros, incluindo os mais proeminentes, já “não confiáveis” como pressupõe e ratifica a Autora em seu trabalho? Há horizonte para se completar a transição, abrindo-se conforme as condicionantes presentes no trabalho que coincidem em boa parte com aquelas que eu próprio menciono (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Anistia, compromisso da liberdade. In Revista Humanidades, nº 13, Editora UnB, 1987; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Memória e Verdade como Direitos Humanos. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Idéias para a Cidadania e para a Justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor/Sindjus – Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário do Ministério Público da União do DF, 2008, pp. 99-100)?
Num texto recentíssimo (https://www.meer.com/pt/74590-a-divisao-social-do-sofrimento) Boaventura de Sousa Santos insere questões interpelantes e traumáticas, entre elas as que se revestem de violência política, que resultam em escalas ao limite do insuportável, de sofrimento. Daí que, para ele, “de um ponto de vista da teoria crítica, a questão principal é a de saber que tipos de sociedade tendem a produzir que tipos de sofrimento e que impacto isso tem na produção do conhecimento e na transformação progressista da sociedade”. Nessa escala ele demarca:
O sofrimento tem de ser integrado numa teoria mais ampla de realidade. Dizia Adorno que a separação entre as disciplinas constitui o grande obstáculo para ver as relações entre o sofrimento individual e o sofrimento colectivo. Este último é concebido como uma patologia social ou como uma experiência social negativa, muitas vezes invisibilizada, competindo à teoria crítica dar-lhe visibilidade e indicar caminhos para o minimizar. Mas reconhece-se que este esforço analítico pode redundar em reproduzir o silenciamento. Talvez por isso, Bourdieu salientou, num livro fundamental sobre o sofrimento do mundo, que o seu papel era o de ser, acima de tudo, um porta-voz.
São questões que o texto de Bárbara suscita. Dito poeticamente, já que ela abriu seu trabalho com Walt Whitman – “eu confesso que o incitei a ir em frente comigo e que ainda o incito sem a mínima ideia de qual venha a ser o nosso destino ou se vamos sair vitoriosos ou totalmente sufocados e vencidos” – eu termino a minha arguição com Milan Kundera, para o homenagear, há poucos dias de seu falecimento (11/07): “Para liquidar os povos, começa-se por lhes tirar a memória. Destroem-se seus livros, sua cultura, sua história. E uma outra pessoa lhes escreve outros livros, lhes dá outra cultura e lhes inventa uma outra história” (O Livro do Riso e do Esquecimento, 1978).
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
Direito constitucional ambiental e teoria crítica na América Latina [recurso eletrônico]
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Pedro Curvello Saavedra Avzaradel, Gladstone Leonel Júnior e Enzo Bello (Organizadores).Direito constitucional ambiental e teoria crítica na América Latina [recurso eletrônico]. – Niterói : UFF ; Rio de Janeiro : MC&G , 2022. – 6,58 kb. : il. Dados eletrônicos (pdf) clique aqui:
Recebi de meu colega Gladstone Leonel Silva Junior a importante indicação dessa publicação. Me diz Gladstone: “A conjuntura atual nos permite desaguarmos formulações represadas nos últimos anos. Pudemos assim organizar e publicar nesse momento a obra “Direito Constitucional Ambiental e Teoria Crítica na América Latina” organizada pelos professores da UFF, Gladstone Leonel Jr., Pedro Curvello e Enzo Bello. Replicar essas temáticas e as formulações de pesquisadores/as é fundamental. Por isso estamos circulando o livro gratuitamente! Neste link é possível baixá-lo! https://www.academia.edu/104885458/Direito_Constitucional_Ambiental_e_Teoria_Cr%C3%ADtica_na_Am%C3%A9rica_Latina”. E ele continua, em nossa familiaridade: “Zé, boa parte do capítulo 2 tem como marco pesquisas relacionadas ao direito achado na rua, a partir da disciplina do mestrado aqui na UFF. Vale conferir pra ver a turma replicando o DANR aqui no Rio”.
A Nota dos organizadores explica o alcance da edição e sintetiza o núcleo articulador das contribuições que dão conteúdo à obra:
Essa publicação traz uma amostra qualitativa, em certa medida também representativa, da produção discente voltada para a temática socioambiental a partir das disciplinas que abordaram a temática entre os anos de 2019 e 2021, cada qual com a sua perspectiva. Reúne trabalhos dos hoje mestrandos e mestrandas, alguns já egressos e egressas do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional (PPGDC/UFF), alguns professores/pesquisadores de outras universidades, bem como de alunos de outras instituições que cursaram as disciplinas: Direito Constitucional Ambiental Ibero-Americano, Constitucionalismo Achado na Rua e epistemologias do Sul e TeoriaConstitucional Crítica.
No Eixo I estão reunidos alguns dos artigos escritos como parte da avaliação na disciplina Direito Constitucional Ambiental Ibero Americano, oferecida nos anos de 2020 e 2021 pelo prof. Pedro Avzaradel. Este eixo reúne também alguns artigos assinados por professores que contribuíram para a disciplina, fosse participando diretamente de algum encontro, fosse viabilizando o êxito da mesma. De início, citamos a professora Giulia Parola, que fez seu pósdoutorado no PPGDC e lecionou disciplinas voltadas para a temática ambiental entre os anos de 2016 e 2018. A professora Parola participou, de forma remota, nos anos de 2020 e 2021, apresentando às turmas suas pesquisas recentes sobre o legal design, os povos originários e a democracia ambiental.
é o caso de citar a participação do prof. Víctor Rafael HernándezMendible, que participou de forma remota em 2021, apresentando sua pesquisa sobre o direito à energia como um direito humano. Por fim, participam, com os justos agradecimentos, os professores Talden Farias e José Irivaldo Alves de Oliveira Silva. Ambos colaboraram com a divulgação e o êxito da disciplina para além dos muros virtuais da UFF, uma vez que, graças a eles, foi possível receber alunos e alunas de outras partes do Brasil, sobretudo da Região Nordeste.
Podemos dizer sobre os artigos selecionados que, além da consistência acadêmica, relevam o recorte dado à disciplina, visto que privilegiam, na sua imensa maioria, uma abordagem voltada para a compreensão das questões socioambientais a partir da perspectiva, das análises e dos referenciais latino-americanos. Direito Constitucional Ambiental e Teoria Crítica na América Latina
Por sua vez, no Eixo II, estão reunidos artigos das disciplinas Teoria Constitucional Crítica – lecionanda em conjunto por nós três em 2019 – e Constitucionalismo Achado na Rua e Epistemologias do Sul – ministrada em 2019, 2020 e 2021 pelo professor Gladstone Leonel Jr. Além de mestrandas(os) e egressos do PPGDC/UFF, contamos com artigos de professores de outras instituições, que gentilmente cederam artigos relacionados às suas pesquisas para a publicação, como é o caso dos professores Alexandre Araújo Costa, da Universidade de Brasília, e Douglas Zaidan, da Universidade Católica de Salvador.
Convidamos todas e todos a compulsar o escrito, na esperança que possam contribuir para o avanço da pesquisa nas temáticas que abordam.
Folgo encontrar no livro elementos que me foram dados contribuir para construir com os organizadores, sentido expandido para alavancar um tema em contínua elaboração.
Remeto, conforme os enlaces a seguir, um registro midiático dessa interlocução:
https://www.youtube.com/watch?v=ORDRHwx17cg “América Latina e Crise do Progressismo”. Aula de encerramento da disciplina Constitucionalismo Achado na Rua e Epistemologias do Sul (UFF) com os professores Gladstone Leonel Silva Junior (Responsável) e Juliano Medeiros (Convidado).
Com Gladstone Leonel da Silva Junior, principalmente, de resto por sua vinculação ao Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, e por seus vínculos com a UnB onde, aliás, exercitou estágio pós-doutoral (CAPES), a perspectiva do Constitucionalismo Latino-Americano em sua variante de Constitucionalismo Achado na Rua, sob o arranque das Epistemologias do Sul, tenho percorrido um caminho de demarcação e de enunciação, no sentido empírico, mas também teórico.
Chamo especial atenção para a coluna na qual faço uma recensão de Sociologia do novo constitucionalismo latino-americano: debates e desafios contemporâneos / [Organizadores], Gustavo Menon, Maurício Palma, Douglas Zaidan. –São Paulo: Edições EACH, 2022.1 ebook ISBN 978-65-88503-38-6 (recurso eletrônico) DOI 10.11606/97865885033861 Acesso: https://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/view/939/851/3088.
O que posso acrescentar é que fiquei muito contente de ter um texto meu em co-autoria com Gladstone Leonel da Silva Junior, nessa coletânea. O texto, aliás, abre a edição afinado com o recorte sociológico que foi o seu fio condutor. Os Organizadores se empenharam na Apresentação em atribuir relevo ao nosso enfoque, reconhecendo a consistência que O Direito Achado na Rua já logrou estabelecer, a partir da fortuna crítica de suas contribuições para a teoria do direito em 30 anos de construção de formulação teórico-política.
Não é emulativa essa distinção. Agora ao final de 2022 a Revista de Direito do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da UnB lançou edição especial inteiramente dedicada a O Direito Achado na Rua e sua Contribuição para a Teoria Crítica do Direito – (v.6 n. 2 (2022): Revista Direito. UnB |Maio – Agosto, 2022, V. 06, N. 2 Publicado: 2022-08-31. O Direito Achado na Rua. Contribuições para a Teoria Crítica do Direito. Edição completa PDF (https://periodicos.unb.br/index.php/revistadedireitounb/issue/view/2503). Sobre essa edição conferir em Jornal estado de Direito: http://estadodedireito.com.br/30425-2/.
Nesse e em outros trabalhos vai transparecer que muito da fortuna crítica dessa proposta teórica se concentra no cuidado de perceber os “achados” que têm permitido a atualização de suas linhas de pesquisa. O Constitucionalismo Achado na Rua pode ser considerado um desses achados.
Realmente Gladstone Leonel Junior trouxe essa designação, ainda sem a aprofundar em seu livro de 2015, reeditado – Novo Constitucionalismo Latino-Americano: um estudo sobre a Bolívia, 2a. Edição. SILVA JUNIOR, Gladstone Leonel. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, (SILVA JUNIOR, 2018).
Na segunda edição, novas questões ensejam novas análises para a construção de um projeto popular para a América Latina a partir do que a experiência na Bolívia e em outros países nos apresenta. Das novidades dessa edição, a Editora e o Autor destacam: Um capítulo a mais. Esse quarto capítulo debate “O Constitucionalismo Achado na Rua e os limites apresentados em uma conjuntura de retrocessos”. A importância do mesmo está na necessidade de configurar um campo de análise jurídica que conjugue a Teoria Constitucional na América Latina com o Direito Achado na Rua, situando então, o Constitucionalismo Achado na Rua.
O livro, a meu ver, pavimenta o caminho para estudos e pesquisas nessa dimensão do constitucionalismo e o próprio professor Gladstone Leonel, em sua docência na Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense, criou a disciplina “O Constitucionalismo Achado na Rua e as epistemologias do Sul”, ofertada no programa de pós-graduação em Direito Constitucional na UFF. O programa da disciplina e maiores informações podem ser obtidos no seguinte site: http://bit.ly/2NqaABn.
Resenhei esse percurso em http://estadodedireito.com.br/novo-constitucionalismo-latino-americano-um-estudo-sobre-bolivia/. Claro que em O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática, volume 2, cit., no capítulo (Parte IV): O Direito Achado na Rua: Desafios, Tarefas e Perspectivas Atuais, já inscrevemos uma anotação programática nessa direção, ao indicar (p. 224): que “Essas experiências refletem uma espécie de ‘Constitucionalismo Achado na Rua’, em que os atores constituintes, os protagonistas desses processos, que envolveram povos indígenas, feministas, campesinas e campesinos, trabalhadoras e trabalhadores e setores historicamente excluídos, arrancam do processo constitucional novas formas de pluralismo jurídico e conquistas de Direitos”.
Com Gladstone eu também trabalhei o tema, procurando fixar a sua mais precisa enunciação. Assim, em Revista Direito e Práxis, On-line version ISSN 2179-8966 (http://old.scielo.br/scielo.php?pid=S2179-89662017000201008&script=sci_abstract&tlng=pt). LEONEL JUNIOR, Gladstone and GERALDO DE SOUSA JUNIOR, José. A luta pela constituinte e a reforma política no Brasil: caminhos para um “constitucionalismo achado na rua”. Rev. Direito Práx. [online]. 2017, vol.8, n.2, pp.1008-1027. ISSN 2179-8966. https://doi.org/10.12957/dep.2017.22331, valendo o resumo: “A crise política brasileira, evidenciada a partir de junho 2013, enseja novas reflexões para a conjuntura recente. A reforma do sistema político é necessária e um das formas de viabilizá-la é por meio de uma Assembleia Constituinte. Sobretudo, se observado os movimentos político-jurídicos dos últimos 15 anos nos países da América Latina. Cabe refletir sobre o momento e as possibilidades dessa aposta pautando-se em um ‘constitucionalismo achado na rua’”.
Quase que simultaneamente, também com Gladstone publicamos em La Migraña… Revista de Análisis Político, nº 17/2016. Vicepresidencia del Estado Plurinacional de Bolívia: La Paz, o artigo La lucha por la constituyente y reforma del sistema político em Brasil: caminhos hacia um ‘constitucionalismo desde la calle’.
Penso que não obstante a síntese é importante reproduzir o Sumário para estimular o interesse e a visualização do catálogo de temas e de autores e autoras que foram reunidos e reunidas para a publicação:
EIXO I
DIREITO CONSTITUCIONAL AMBIENTAL NO CONTEXTO LATINO-AMERICANO
1 A Diversidade de técnicas de Democracia Ambiental na América Latina
2 Terras tradicionalmente ocupadas no Brasil: propriedade, terra e território
Marcus Fabiano | Regina de Paiva Alban
3 Racismo religioso: a utilização da legislação ambiental como instrumento de proteção das religiões de matriz africana
Fernando Luis de Assis Oliveira Barbosa
4 Racismo religioso e racismo ambiental: duas faces do mesmo problema
Fernando Luis de Assis Oliveira Barbosa
5 Meio ambiente e Direitos Humanos na Corte Interamericana
Paulo Henrique Lopes Vaz de Melo
6 Transição energética e neoextrativismo na América-Latina: contradições do modelo de implantação de parques eólicos no Brasil
Rárisson Jardiel Santos Sampaio
7 Descomissionamento de plataformas de produção de petróleo offshore: análises sobre a alternativa do programa rigs-to-reefs
Thales Pamplona Barroso Meireles
8 Implicações da manutenção do modelo econômico linear nos conflitos extrativistas da América Latina
Wilson Danilo de Carvalho Eccard
9 Legados do especismo colonial: pensando caminhos libertários aos animais
Rafael Van Erven Ludolf
10 A “vulnerabilidade” da política ambiental brasileira: exame crítico acerca do rompimento das barragens de mineração em Mariana (MG) e Brumadinho (MG) a partir de um contexto Ibero-Americano
Cinthia da Silva Barros
11 Crise climática e mobilidade humana: os deslocados ambientais no Brasil
Aline Gomes Mendes
12 A balança e o termômetro: finalidades e características de um direito ambiental em tempos de mudança climática
Marcelo Bruno Bedoni de Sousa | Talden Farias | José Irivaldo Alves de Oliveira Silva
13 O litígio climático como meio de tutela dos direitos fundamentais
Víctor Rafael Hernández-Mendible
EIXO II
TEORIA CRÍTICA SOCIOAMBIENTAL NA AMÉRICA LATINA
14 Limites da autonomia das instituições jurídicas indígenas no Brasil
Alexandre Araújo Costa | Alexandre Douglas Zaidan de Carvalho | Gladstone Leonel Júnior
15 O direito achado nos povos indígenas: instrumentos constitucionais de proteção às línguas indígenas
Isabella Carvalho
16 A Constitucionalização dos direitos indígenas:
um olhar para o passado e possíveis caminhos para um constitucionalismo achado nas ruas e aldeias
Caroline Matias Gabriel
17 A reforma agrária na constituição federal, a PEC n. 80/2019 e a exigência de um constitucionalismo achado na rua
Geraldo Neto
18 Imperialismo: Agronegócio e colonialismo molecular
Júlio César Moreira de Jesus
19 Ecofeminismo: a autonomia do corpo da mulher no que tange aos direitos sexuais e reprodutivos em um meio ambiente equilibrado
Flaiza Sampaio
20 Mulheres e Pachamama, mães exploradas pelo capitalismo e patriarcado
Izabelle Patitucci
21 Os fluxos migratórios de indígenas venezuelanos Warao para o Brasil: uma análise decolonial e perspectivas do novo constitucionalismo latino-americano
Christiana Sophia de Oliveira Alves
Organizadores e Autores da Obra
Nem preciso dizer o quanto me motiva encontrar na obra uma incidência que demarca a contribuição de O Direito Achado na Rua para o adensamento crítico das teorias críticas do Direito e do Direito Constitucional. Porque, insisto em repetir o que já disse, a propósito da edição de v.6 n. 2 (2022): Revista Direito. UnB |Maio – Agosto, 2022, V. 06, N. 2 Publicado: 2022-08-31. O Direito Achado na Rua. Contribuições para a Teoria Crítica do Direito. Edição completa PDF (https://periodicos.unb.br/index.php/revistadedireitounb/issue/view/2503), conforme http://estadodedireito.com.br/30425-2/.
É nos trabalhos cotidianos, do fazer acadêmico e político, o contínuo desse projeto que se realiza permanentemente, atento à emergências, revisitações e discernimentos próprios de uma travessia que responde a urgências de discernimento sobre as três perspectivas que o balizam: determinar o espaço social e político de sociabilidades vivas; compreender e reconhecer os protagonismos que se movem nesses espaços, seus movimentos e os sujeitos coletivos de direito que neles se manifestam; e aferir os achados que desafiam inteligibilidade como categorias de um direito vivo. Nem preciso dizer sobre o que de contribuição para ampliar a fortuna crítica do que vem sendo demarcado como O Direito Achado na Rua, notadamente aqueles encontrados nos ensaios que formam o Eixo II, da Coletânea, nos quais se divisa, no sentido dessa ampliação, novas inteligibilidades forte em demarcar caminhos possíveis e exigências político-epistemológicas para um constitucionalismo achado nas ruas, nos campos e nas aldeias.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
Educação Jurídica: da Aderência ao Sistema de Avaliação à Formação por Competências
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Título original – Educação Jurídica: da Aderência ao Sistema de Avaliação à Formação por Competências – uma Experiência de suas Possibilidades de Inovação na Faculdade de Direito da UnB
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
Jailson Alves Nogueira. Educação Jurídica: da Aderência ao Sistema de Avaliação à Formação por Competências – uma Experiência de suas Possibilidades de Inovação na Faculdade de Direito da UnB. Tese de doutorado em Direito. Faculdade de Direito/Universidade de Brasília, 2023, 178 fls.
Começo celebrando o candidato/autor e a Banca Examinadora, da qual fui membro interno, constituída pelas professoras e professores Loussia P. Musse Felix (FD/UnB), orientadora; José Garcez Ghirardi (FGV/SP); Rodolfo de Carvalho Cabral (MEC); e Fernanda de Carvalho Lage (FD/UnB). Saúdo a orientadora com quem tenho um bom percurso lado a lado na construção do modelo de diretrizes curriculares e de avaliação dos cursos jurídicos, na OAB (Comissão de Ensino Jurídico), no MEC (Comissão de Especialistas de Área) e na própria UnB (Faculdade de Direito). Saúdo também o professor Ghirardi da FGV/Direito (SP). Fui o relator do projeto de criação do curso na OAB, reconhecido então como um projeto portador de grande novidade. Registro com uma memória pedagógica a apresentação, defesa e debate sobre o projeto pela equipe completa do curso proposto, naquela ocasião presidida pelo ilustre professor Ary Oswaldo Mattos Filho, que foi o primeiro diretor do curso, hoje soba qualificada direção do querido amigo Oscar Vilhena – do sistema financeiro empresarial aos direitos humanos.
Continuei em orgânica relação conceitual com a FGV/Direito, São Paulo, e carrego com apreço duas premiações (menção honrosa) no seu prestigioso Prêmio Esdras de Ensino do Direito que tem por objetivo fortalecer a metodologia de ensino de cursos jurídicos que adotam o protagonismo do aluno como base de todo o processo de aprendizagem, por meio da identificação de experiências semelhantes em outras instituições de ensino de Direito no Brasil. No Banco de Materiais do Prêmio (http://ejurparticipativo.direitosp.fgv.br/material-de-ensino), há um bom descritivo de duas experiências que coordenei: Pesquisa em (qual) direito e Hermenêutica – Sociedade de Debates da Universidade de Brasília, ambas desenvolvidas a partir da disciplina e com a participação de seus monitores e monitoras Pesquisa Jurídica ministrada no primeiro semestre do Curso na Faculdade de Direito da UnB.
A tese, conforme seu resumo, busca compreender:
a formação baseada em competências pode contribuir para o aperfeiçoamento da educação jurídica brasileira, historicamente, alvo de críticas e geradora de “crises” do Direito. No primeiro capítulo, descrevemos o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (SINAES) e seus três procedimentos de avaliação, bem como seus respectivos indicadores. No segundo capítulo, estudamos as resistências epistemológicas e metodológicas que circundam os cursos de Graduação em Direito, e como esses aspectos tem contribuído para o avanço qualitativo da educação jurídica brasileira. Por fim, no terceiro capítulo, analisamos, a partir da observação participante na disciplina de Pesquisa Jurídica, na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), em que medida a formação por competências pode ser desenvolvida nos cursos de graduação em Direito. Para tanto, a nossa pesquisa foi de cunho bibliográfico, com abordagem qualitativa, e do tipo descritiva, exploratória e explicativa, lançando mão do método dialético, dentro de uma visão interdisciplinar dos fenômenos sociojurídicos. A técnica de observação participante foi utilizada no terceiro capítulo da pesquisa, considerando a nossa experiência de assistente docente, dialogando com documentos inerentes à disciplina. Evidenciamos que a formação por competências potencializa a formação jurídica em nível de graduação e contribui para o aperfeiçoamento da educação jurídica, com foco na materialização de competências gerais e específicas do Direito, atualmente pouco desenvolvidas. Dentre as competências fomentadas com os estudantes durante a disciplina de Pesquisa Jurídica, podemos citar: capacidade para identificar, colocar e resolver problemas, capacidade de analisar criticamente e propor soluções a demandas jurídicas e capacidade de raciocinar, argumentar e decidir juridicamente, pesquisa empírica, capacidade de praticar a interdisciplinaridade, respeito à democracia e aos direitos humanos e trabalho em equipe.
O Sumário enuncia o contexto da tese, cuja chave de leitura talvez se encontre no seguinte descritivo: “Apesar de todos esses processos de avaliação da educação superior, sobretudo os focados nos cursos de graduação em Direito, o atual sistema avaliativo tem se mostrado insuficiente para enfrentar as “crises” contemporâneas da educação jurídica. A educação não só sofre com problemas de outrora, como se deparou com novos problemas sociais contemporâneos, não demonstrando capacidade para dar uma resposta a esses problemas, que se expressam por sua natureza técnica e metodológica (formativa)” (p. 14).
Confira-se:
INTRODUÇÃO
1 O SINAES E A LUTA POR UMA EDUCAÇÃO SUPERIOR DE QUALIDADE 1
1.1 O SINAES e seus três procedimentos: AI, ACG e ENADE
1.1.1 Avaliação Institucional
1.1.2 Avaliação dos Cursos de Graduação
1.1.3 Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes – ENADE
1.2 Indicadores Oficiais
1.2.1 Conceito Preliminar de Curso – CPC
1.2.2 Indicador da Diferença entre os Desempenhos Observados e Esperado – IDD
1.2.3 Índice Geral de Cursos – IGC
1.2.4 Conceito ENADE
1.2.5 Selo OAB Recomenda: indicador sui generis
2 ASPECTOS EPISTEMOLÓGICOS E METODOLÓGICOS DA EDUCAÇÃO JURÍDICA BRASILEIRA: DA TRADIÇÃO À (IN)SUFICIÊNCIA CONTEMPORÂNEA
2.1 Da crise global as micro crises da educação jurídica
2.2 Diretrizes Curriculares Nacionais: do momento de ruptura à (nova) esperança de mudança
2.3 Resistências às mudanças epistemológicas e metodológicas
3.4 Considerações acerca da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão nos cursos de graduação em Direito
3 A FORMAÇÃO POR COMPETÊNCIAS COMO PROPOSTA DE APERFEIÇOAMENTO DA EDUCAÇÃO JURÍDICA: UMA EXPERIÊNCIA NA FD/UNB
3.1 A formação baseada em competências: a possibilidade para um novo momento de ruptura na educação jurídica brasileira
3.2 Formação por competência no campo do Direito: uma experiência na FD/UnB
3.3 Formação por competências nos cursos de graduação em Direito em tempos de educação remota: dificuldades e possibilidades
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
Na explicitação do Autor, do que trata o núcleo da tese é o que ele propõe nos três capítulos em que ela se desdobra.
No primeiro capítulo, descreve o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (SINAES) e seus três procedimentos de avaliação, bem como seus respectivos indicadores. Além do SINAES, sistema oficial de avaliação da educação superior, também descreveremos indicadores não-oficiais de avaliação. No campo do Direito, o indicador não-oficial a ser descrito será o Selo OAB Recomenda.
No segundo capítulo, estuda os aspectos epistemológicos e metodológicos que circundam os cursos de Graduação em Direito, e sua insuficiência para o atual modelo avaliativo. O nosso ponto de partida será a aula inaugural dos cursos da Faculdade Nacional de Direito, ministrada por Francisco Clementino de San Tiago Dantas, em 1955. Foi nessa aula que a “crise” da educação jurídica começou a vir à tona, chamando a atenção para o anacronismo entre a estruturação pedagógica dos cursos de Direito e os problemas sociais e políticos da época.
No terceiro capítulo, analisa, a partir da observação participante na disciplina de Pesquisa Jurídica, como a formação por competências pode ser desenvolvida nos cursos de graduação em Direito. Dentro desse capítulo intercruza-se as observações feitas na disciplina com categorias teóricas da formação por competências. Além disso, analisa-se as competências adquiridas pelos estudantes durante a disciplina: Capacidade para identificar, colocar e resolver problemas, capacidade de raciocinar, argumentar e decidir juridicamente, Cenários futuros para as profissões jurídicas, tripé universitário, fomento à pesquisa empírica e interdisciplinaridade, capacitação discente em nível de pós-graduação e domínio das novas tecnologias, sobretudo após o período pandêmico, em que houve uma maior utilização das plataformas digitais. Importante destacarmos que as competências destacadas não se esgotam entre si, devendo ser observadas como rol exemplificativos e recorte metodológico. Numa disciplina ou curso baseado em competências, podem emergir capacidades estudantes até então não planejadas ou almejadas pela docente, por isso a importância da flexibilização e abertura pedagógica, aceitando conhecimentos diversos e abordagens múltiplas.
Em Kant, que compreende a razão sob a perspectiva categorial do que ele denomina imperativos (categóricos e hipotéticos), para orientar a ação humana, tem-se que todos os imperativos ordenam, e são fórmulas para exprimir as relações entre as leis objetivas do querer em geral, e a discordância subjetiva da vontade humana. Mas em permeio a esses atributos racionais, um requisito que é a habilidade na escolha dos meios para atingir o maior bem-estar próprio pode-se chamar sagacidade. Algo que, no limite, também se constitui como um imperativo que se expõe sob a forma, até podemos dizer, de uma educação prática para o agir que nos revela seres humano hábeis, prudentes e moralmente orientados.
O catalizador da leitura de Jailson é o discurso de San Tiago Dantas (1955), para marcador da “crise” como ponto de clivagem paradigmática na educação jurídica, contrapondo o discurso pedagógico de confirmação de uma ordem político-jurídica e as tensões de um social que se dá conta da condição alienada e subalterna de sua posição entre uma cultura colonial de favor enquanto se interpela mudanças nessa estrutura (descolonização) para instituir e universalizar direitos. A partir do discurso de San Tiago Dantas Jailson vai adotar o seu posicionamento analítico em relação ao conhecimento do direito, suas formas de difusão e seu lugar instituinte no social e na política.
Se se pudesse encontrar um parâmetro de contemporaneidade para ajustar esse posicionamento em face das interpelações do campo, eu quase poderia indicar, a partir de autores que Jailson adota, que aqui se tem, de certo modo, a advertência feita por Joaquim Falcão, Sérgio Ferraz e José Lamartine Correa em seu relatório sobre a crise do ensino jurídico no Brasil, apresentado à reunião de 1990 do Colégio de Presidentes da OAB, e que motivou a criação da Comissão de Ciência e Ensino Jurídico pela OAB (ato de Marcello Lavénère Machado) e que tive a honra de integrar como membro. Conforme transcrito no primeiro volume da Série Ensino Jurídico OAB: Diagnóstico, Perspectivas e Propostas, a crise do ensino de Direito devia-se “à praga do positivismo que assola o ensino jurídico”.
Claro que, em qualquer acepção, em Jailson ou em minha consideração, a expressão “crise” é tomada sempre em sentido epistemológico, hegelianamente, como tensão de transição co-implicada entre o velho que reluta em morrer e o novo que luta para nascer. Do ponto de vista econômico e até político (em contexto neoliberal), não há que se falar em crise, porque tudo está muito bem, em estoque de artefatos e rentabilidade do negócio da educação.
Participei da banca de qualificação da tese e fiz várias sugestões a Jailson para retomar essa atualização, não só em seu enfoque pedagógico, como em seu enfoque epistemológico. Embora possa considerar que elementos dessas sugestões estão contidos nos enunciados propostos por Jailson, notadamente quanto aos aspectos dos fundamentos, não os divisei explicitamente no texto ou nas referências.
Anoto o livro ENSINO JURÍDICO. A Descoberta de Novos Saberes para a Democratização do Direito e da Sociedade, de Fábio Costa Morais de Sá e Silva. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2007. Orientei a tese e fiz o prefácio.
Assinalo que o foco das diretrizes da área jurídica, conforme aparece em Fábio, reflete uma visão de crise do Direito e procurava iluminar reflexões sobre suas determinações. Em perspectiva epistemológica esta reflexão articulou elementos: 1) de representação social relativa aos problemas identificados, 2) de conhecimento do Direito e suas formas sociais de produção, 3) de cartografia de experiências exemplares sobre a autopercepção e o imaginário dos juristas e de suas práticas sociais e profissionais. Ao fim e ao cabo, condições para superar a distância que separa o conhecimento do Direito de sua realidade social, política e moral, possibilitando a edificação de pontes sobre o futuro através das quais pudessem transitar os elementos novos de apreensão e compreensão do Direito e de um novo modelo de ensino jurídico. Tratava-se, como se vê, de empreender um trabalho crítico e consciente, apto a afastar o jurista das determinações das ideologias, quebrar a aparente unidade ou homogeneidade da visão de mundo constitutiva de um pensamento jurídico hegemônico produzido por essas ideologias e romper, em suma, com a estrutura do modo abstrato de pensar o direito, inapto para captar a complexidade e as mutações das realidades sociais e políticas.
Este trabalho representou, pode dizer-se, uma espécie de superação do mal-estar de uma cultura jurídica convertida em caleidoscópio de ilusões e de crenças responsáveis pelo estiolamento de modelos e paradigmas de racionalidades fundantes de certeza e segurança, adquiridas ao preço do imobilismo científico e da eliminação do espírito crítico na formação intelectual do jurista e do profissional do Direito. Propunha-se, então, articular o ensino jurídico com a exigência científica de identificação de parâmetros para a legitimidade epistemológica de conceitos permanentemente reelaboráveis e de ampliação crítica para a apreensão de categorias aptas a organizar uma prática de ensino na qual a disponibilidade de artefatos científicos operacionais e de hipóteses relevantes de conhecimento não viessem a funcionar como substitutivos de visões globais acerca dos fenômenos estudados, ao risco de condicionar todo o procedimento, a produção de seus resultados e a própria transmissão dos conhecimentos desse modo gerados.
Nesse ponto, presente também em Jailson, está a advertência feita por Roberto Lyra Filho, para o que ele indicava o direito que se ensina errado. Lembrei por isso, em estudo anterior (Movimentos Sociais e Práticas Instituintes de Direito: Perspectivas para a Pesquisa Sócio-Jurídica no Brasil in OAB Ensino Jurídico – 170 Anos de Cursos Jurídicos no Brasil. Brasília: Comissão de Ensino Jurídico e Conselho Federal da OAB, 1997). Segundo Roberto Lyra Filho, essa acepção “pode entender-se, é claro, em pelo menos dois sentidos: como o ensino do direito em forma errada e como errada concepção do direito que se ensina”. Se o primeiro aspecto “se refere a um vício de metodologia; o segundo à visão incorreta dos conteúdos que se pretende ministrar”, ambos permanecem vinculados, “uma vez que não se pode ensinar bem o direito errado; e o direito, que se entende mal, determina, com essa distinção, os defeitos da pedagogia” (O Direito que se Ensina Errado. Brasília: Editora Obreira, 1980).. Por isso recomendava o mesmo Roberto Lyra Filho a necessidade, tanto no ensino quanto na pesquisa, de se estar atento a que eles visam a uma definição de posicionamento: “o simples recorte do objeto de estudo pressupõe, queira ou não o cientista (o professor ou o estudante), um tipo de ontologia furtiva. Assim é que, por exemplo, quem parte com a persuasão de que o Direito é um sistema de normas estatais, destinadas a garantir a paz social ou a reforçar o interesse e a conveniência da classe dominante, nunca vai reconhecer, no trabalho de campo, um Direito praeter, supra ou contra legem e muito menos descobrir um verdadeiro e próprio Direito dos espoliados e oprimidos. Isto porque, de plano, já deu por ‘não-jurídico’ o que Ehrlich e outros, após ele, denominaram o ‘direito social’” (Pesquisa em que Direito? Brasília: Edições Nair Ltda, 1984). Este mesmo autor pôde, assim, falar em “Direito Achado na Rua”, apreendendo-o “não como ordem estagnada, mas positivação, em luta, dos princípios libertadores, na totalidade social em movimento”, onde o Direito se constitui como enunciação dos princípios de uma “legítima organização social da liberdade” (O Que é Direito. Coleção “Primeiros Passos”. São Paulo: Editora Brasiliense, 1ª edição, 1982).
Nestas condições, o conhecimento do Direito opera exatamente na consciência das interações que toda atividade intelectual e prática constitui historicamente, articulando condições sociais e teóricas (SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela Mão de Alice. O Social e o Político na Pós-Modernidade. Porto: Edições Afrontamento, 1ª edição, 1994). O mundo jurídico não pode, com efeito, ser propriamente conhecido, senão, diz Michel Miaille, “em relação a tudo o que permitiu a sua existência e o seu futuro possível. Este tipo de análise desbloqueia o estudo do Direito do seu isolamento, projeta-o no mundo real onde encontra o seu lugar e a sua razão de ser, e, ligando-o a todos os outros fenômenos da sociedade, torna-o solidário da mesma história social” (Uma Introdução Crítica ao Direito. Lisboa: Livros de Direito Moraes Editores, 1a edição, 1979).
Nos seus antecedentes e nos seus pressupostos, os caminhos percorridos visando à reforma do ensino do Direito no Brasil tiveram como leito as condições sociais e as condições teóricas que sustentam ainda agora o debate acerca da função, do sentido e dos modos de produção do próprio conhecimento, no contexto das múltiplas transições que determinaram e determinam ainda o seu valor para as práticas sociais. Enquanto reflexão sobre as condições de possibilidade da ação humana projetada nessas práticas sociais, este debate remonta à consideração, mesmo quando se cuide de designar o que é aí propriamente jurídico, destacada por Boaventura de Sousa Santos, de que “nenhuma forma de conhecimento é, em si mesma, racional; só a configuração de todas elas é racional e é, pois, necessário dialogar com outras formas de conhecimento, deixando-se penetrar por elas” (Um Discurso sobre as Ciências. Porto: Edições Afrontamento, 1987).
Tratava-se, pois, de abrir uma perspectiva de futuro acerca da função do Direito e do papel do jurista na sociedade, buscando condições para ultrapassar a fase de estagnação burocratizante e medíocre a que chegara o ensino do Direito. Para Álvaro Melo Filho, estas eram as condições para: “a) romper com o positivismo normativista; b) superar a concepção que só é profissional do Direito aquele que exerce atividade forense; c) negar a auto-suficiência disciplinar do Direito; d) superar a concepção de educação como sala de aula; e) formar um profissional com perfil interdisciplinar, teórico, crítico, dogmático e prático” (Inovações no Ensino Jurídico e no Exame de Ordem. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 1996).
Essa perspectiva vai se espraiar em Ensino Jurídico, Diálogos com a Imaginação. Construção do projeto didático no ensino jurídico. Inês da Fonseca Pôrto. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2000.
O livro de Inês da Fonseca Pôrto – que assessorou a Comissão de Ensino Jurídico da OAB em seu período de implantação estatutária – se coloca também como “tarefa e promessa” de “espionamento do real pela imaginação”, capturando ângulos em que ele não se percebe observado e, desde a perspectiva de testemunho (“testemunho da construção do projeto didático-pedagógico na reforma do ensino jurídico”), avalia “o modelo central do ensino jurídico” e indica, na medida em que “a imaginação dê forma à vontade de transformação”, as possibilidades que ele comporta de abrir-se “a novas experiências – não vividas, mas possíveis”, como projeto de futuro.
Configurado a partir dos seus elementos característicos – a descontextualização (negação do pluralismo jurídico), o dogmatismo (exclusão das contradições e preservação dos processos unívocos de seu pensamento constitutivo) e a unidisciplinaridade (exclusividade de um modo de conhecer) – a Autora demonstra o impasse crítico a que chegou o modelo central de ensino jurídico e o esgotamento paradigmático de sua matriz positivista e formalista.
A abordagem de Inês Pôrto, fruto de seu protagonismo no processo, apreende nitidamente o foco de intervenção dos sujeitos nele engajados, principalmente o da Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e interpreta, fielmente, a visão de crise do Direito que iluminou as reflexões sobre suas determinações e os elementos nucleares que ela articulou. Esses elementos, a meu ver (Anais da XVI Conferência Nacional da OAB) são, em sua dimensão epistemológica: 1) de representação social relativa aos problemas identificados; 2) de conhecimento do Direito e suas formas sociais de produção; 3) de cartografia de experiências exemplares sobre a autopercepção e imaginário dos juristas e de suas práticas sociais e profissionais. É por meio deles que se dá o balizamento para a superação da distância que separa o conhecimento do Direito de sua realidade social, política e moral, possibilitando a edificação de pontes sobre o futuro, através das quais possam transitar os elementos novos de apreensão e compreensão do Direito e de um novo modelo de ensino jurídico.
Daí o apelo à imaginação como método de interpelação do novo. Luiz Alberto Warat, o primeiro a propor uma didática do imaginário para o ensino jurídico (Manifesto do Surrealismo Jurídico), vale-se de Bachelard para indicar a imaginação como uma forma de interpelação, na medida em que nos propõe que “a possibilidade de pensar e sentir sem censuras, nos revela os segredos da singularidade, o ponto neurológico da diferença: o homem novo, aquele que não tem seus sonhos, seu imaginário censurado pela instituição e que organiza seus afetos sem desejos alugados”.
O trabalho de Inês Pôrto localiza na cartografia dos problemas definidos pela Comisão da OAB, conforme a coletânea de textos por ela coordenados (OAB Ensino Jurídico), a construção de “figuras de futuro” aptas a traduzir as perspectivas paradigmáticas para a edificação desse futuro, o qual não pode configurar-se, eu já o disse, senão sobre a consciência da responsabilidade que tem o ensino jurídico para a constituição das categorias novas apreendidas na leitura atenta da realidade social. Percebidas como demandas ao ensino jurídico, essas categorias constituem um novo imaginário que se nutre, diz Roberto Aguiar (O Imaginário dos Juristas), do diferente, do ousado e da recusa: 1) demandas sociais; 2) demandas de novos sujeitos; 3) demandas tecnológicas; 4) demandas éticas; 5) demandas técnicas; 6) demandas de especialização; 7) demandas de novas formas organizativas do exercício profissional; 8) demandas de efetivação do acesso à justiça; 9) demandas de refundamentação científica e de atualização dos paradigmas.
A meu ver, livro de Inês da Fonseca Pôrto – que deriva da dissertação que também orientei na UnB – é a mais criativa leitura até agora sobre os caminhos e instrumentos que estruturam a reforma do ensino jurídico sintetizada nas diretrizes curriculares inauguradas na Portaria n. 1886\94, do MEC.
O eixo de sua leitura é a noção de exemplaridade enquanto, diz ela, “instrumento que criou condições para que cada curso jurídico refletisse sobre sua função social (diálogo com a realidade contextual em que se inseria), sobre suas experiências, através de outros cursos (o diálogo pela diferença, através dos referenciais comuns) e sobre as relações que definem o processo de ensino\aprendizagem (diálogo consigo mesmo)”.
Por exemplaridade entenda-se o singular. Contrariamente a uma renitente vocação funcionalista agarrada ao conforto de requisitos de objetividade, o trabalho de Inês sugere o risco do diálogo, o ouvir antes de predicar, a aposta qualitativa na promessa, sem condições a priori, a partir do projeto didático-pedagógico.
Também apresentei a Jailson o trabalho de Thiago Fernando Cardoso Nalesso. EDUCAÇÃO JURÍDICA BRASILEIRA: entre as Diretrizes Curriculares Nacionais e o Exame de Ordem. Doutorado em Direito. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2021.
Participei de sua banca de doutoramento e acabei fazendo o prefácio da obra. Ali indico uma preocupação relevante nesse campo. Basta ver que apenas no âmbito da OAB, à luz de suas Conferências Nacionais, a primeira realizada em 1958, a XXIV convocada para 2021 mas adiada por causa da pandemia, o tema do ensino jurídico, juntamente com o do acesso à justiça, são os dois recorrentes, em todas as Conferências. Em 1958, com Ruy de Azevedo Sodré, ao lado da preocupação com a “proliferação” dos cursos de direito (não deviam ser mais que 20 em comparação aos mais de 1700 atuais), o zelo para que a advocacia não fosse considerada apenas uma profissão, mas uma função social, um múnus público, de fato constitucionalmente reconhecida como atividade essencial à administração da justiça.
Penso que reside nessa preocupação o cuidado com que o Autor assenta já na página 11, o exame das questões que traz para seu estudo: “Dessa maneira a pesquisa realizada passou pelo campo: a) do Direito Educacional, no que se refere ao conjunto normativo que orienta o processo de autorização, funcionamento e definição curricular e metodológica dos cursos de Direito, b) pela sociologia jurídica, ao buscar compreender o papel exercido pela entidade corporativa mais representativa das profissões jurídicas no Brasil, a OAB, na educação jurídica brasileira e, c) da Filosofia do Direito, na medida em que toda definição curricular elege um recorte e uma perspectiva vinculados a uma certa forma de concepção do fenômeno jurídico, mesmo que se busque ocultar tal escolha, que, para ser descortinada, depende de um processo analítico de base filosófica. De outro, a análise crítica do ensino jurídico e de suas crises, em grande parte, é realizada por meio de estudos no campo da epistemologia, ou metodologia jurídica, o que reforça a perspectiva de análise filosófica”.
Nessa ordem de consideração acrescentei que, conquanto os sinais já lançados exibam tremendos retrocessos epistemológicos, pedagógicos e políticos, com movimentos de clara intervenção (até aqui contido, com as salvaguardas constitucionais, pelo Supremo Tribunal Federal, em face a ataques à autonomia das universidades e à liberdade de ensinar), e também em operações hostis à vocação crítica e livre da educação em geral (leis de mordaças, escola sem partido), que já feriram gravemente a própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), no tocante a fundamentos como flexibilidade curricular, interdisciplinaridade e redução dos elementos reflexivos do manejo pedagógico, é certo que na Revisão (Parecer n. 635/2018), apreende-se um vínculo não rompido como o movimento crítico e plural instaurado em 1994, com a Portaria n. 1886, conferido em 2004, com a Resolução n.9, guardando fidelidade a esses elementos estruturantes de uma orientação curricular, ainda que acessíveis a indicações de mais detida qualificação (conferir, nessa direção, o artigo de Horácio Wanderlei Rodrigues, ainda inédito no momento de redação deste comentário, mas já circulando restritamente, em seu esboço inicial – para depois se integrar ao volume 8 da Coleção Caminhos Metodológicos do Direito, coordenada pelos Professores Fabrício Veiga Costa, Ivan Dias da Motta e Sérgio Henriques Zandona Freitas, Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de Direito: Análise do Parecer CNE/ N. 635/2018.
Como se percebe é inevitável uma certa nostalgia presente em minhas leituras do tema em razão do engajamento nessas ações que levaram às grandes modificações no campo do ensino jurídico e no sistema de avaliação da educação superior no Brasil. Incluindo o SINAES, de cuja comissão formuladora participei, representando o MEC, na qualidade de Diretor do Departamento de Política do Ensino Superior do MEC/SESu. E posso dizer que, se na questão do ensino jurídico o enlace do epistemológico com o funcional se fez muito forte – não se ensina bem o que se apreende mal – no campo da avaliação a ênfase acabou por se focar nos imperativos de habilidade, que caracterizam todo o procedimento. Não é pouco, se considerarmos os impactos do paradigma no arranjo do funcional e se nos dermos conta de que o só deslocamento do modelo bancário (Paulo Freire) para o modelo interpelante da pedagogia movida por habilidades e competências já é si, o avanço extraordinário.
Chego a pensar, lendo a tese de Jailson, que a educação centrada nos requisitos de competências e de habilidades, elementos que formam o arcabouço dos sistemas de avaliação da educação superior no Brasil hoje, incluindo naturalmente a formação em Direito, respondem sem o enunciar ao que Kant poderia designar de imperativo de habilidade ou destreza.
Não se trata aqui de simplesmente aludir aos imperativos já definidos por Kant, como imperativos de habilidade ou de destreza, como o que se tem de fazer para alcançar uma finalidade razoável e boa (Fundamentação da Metafísica dos Costumes).
Em Kant, tal como Michel Villey já observara (Leçons D’Histoire de la Philosophie du Droit), de nada valem tais imperativos, ainda que se leve em conta que “todas as ciências têm uma parte prática, que se compõe de problema que estabelecem que uma determinada finalidade é possível”, se na clivagem por ele estabelecida (Le Conflit des Facultés), o ensino jurídico exclui do jurista a discussão de fundo acerca do justo (quid sit ius), objeto de análise do filósofo (na Faculdade de Filosofia), restando-lhe apenas (na Faculdade de Direito), estabelecer se um determinado fato ou ato seja lícito ou ilícito sob o ponto de vista jurídico (quid sit iuris).
Convenhamos. Como afirma Jailson nas suas conclusões, “a cultura pedagógica tradicional, que acaba por criar uma resistência à pesquisa e extensão por parte dos cursos de Direito, seja por meio de discurso discente, docente ou até mesmo institucional, também é um fator a ser apontado. Foi somente a partir da década de 1990, com as diretrizes curriculares nacionais que a pesquisa e extensão passaram a ser concebidas como perspectivas formativas essenciais à formação do bacharel em Direito, o que não significa a perda de espaço do ensino. Pelo contrário, o ensino foi incentivado a ser desenvolvido de forma articulada com pesquisa e a extensão, formando o que denominamos de tripé universitário. As Diretrizes curriculares de 2004 e 2018 ratificaram a necessidade de os cursos de Direito fomentarem a pesquisa e extensão, com o objetivo de oferecer outras modalidades pedagógicas além do ensino”.
Não é só isso. Tenho dito que mesmo os mais qualificados estudiosos do campo, mal arranham a crosta que encobre o miolo substantivo do núcleo formador das diretrizes tal como elas foram pensadas, debatidas em auditórios sofisticados e ampliados país a fora, e os experimentos metodológicos ativos realizados com imaginação e ineditismos em muitos belos projetos propostos na conjuntura. Um que de inércia, de indolência e de resistência conteve muito e ainda contêm, o melhor potencial do que se formulou nesses debates: sair do encadeado das disciplinas para expandir a matéria que dá identidade ao projeto acadêmico e de curso; descolonizar os currículos; estimular a autonomia do estudante para seu autor de sua formação abrindo-se ao seu próprio currículo gerado pela sua autônoma e transdisciplinar gestão de atividades complementares que não se confinem ao burocrático de “gincana” de eventos; entender o significado epistemológico da prática e o alcance da teoria convertida em práxis transformadora.
Por isso diz o Autor, concluindo, com apoio no trabalho de sua orientadora que abriu um horizonte de compreensão para o que representam competências e habilidades (Projeto Tuning America Latina), algo que sequer é alcançado pelas proposições oficiais ou não oficiais do sistema de formação superior no Brasil. Diz Jailson, aliás, cujo esforço classificatório representa um dos mais bem cuidados de divulgação de todos os achados do projeto, “é notório que há resistência às atividades de pesquisa, sobretudo a empírica, e à extensão universitária. A interdisciplinaridade é outra prática não muito concebida nos cursos de graduação em Direito, restringindo à formação discente às categorias dogmáticas e ao direito positivo. Portanto, resta nítido que a resistência epistemológica e metodológica no campo do Direito deve ser superada, sendo urgente adotarmos outras formas de aprendizagem além do ensino, com a pesquisa e extensão fazendo parte da formação dos juristas do Brasil, não só do ponto de vista formal, com previsão em diretrizes curriculares, mas do ponto de vista prático, com projetos sérios desenvolvidos nos cursos de graduação, almejando uma formação sólida, crítica e emancipatória. Diante desse contexto de crises e deficiências formativas nos cursos jurídicos, analisamos, no terceiro capítulo, que a formação estudantil baseada em competências emerge como alternativa para o melhoramento qualitativo dos cursos de graduação em Direito. Os cursos deverão focar seus processos pedagógicos baseado em competências, o que pode possibilitar um momento de ruptura metodológica e epistemológica no campo da educação jurídica, abrindo espaço para fomentar abordagens até então prejudicadas pela perspectiva tradicional”.
Assim que, cumprimentando Orientadora e orientando, devolvo, sobretudo ao doutorando, a questão que fecha o trabalho:
Adotar a formação por competência, abre a possibilidade para “novas propostas pedagógicas capazes de fomentar na capacitação até então não desenvolvidas pela formação tradicional. Não se trata apenas de mudar a metodologia, mas é preciso criar estratégias de enfrentamento às crises jurídicas e formar bacharéis com foco nas demandas sociais contemporâneas, rompendo com o anacronismo que predomina nos cursos de graduação em Direito, com os conteúdos e abordagens deslocadas dos fatos socio-jurídicos”. Quais os limites e possibilidades para vencer esse anacronismo, para ultrapassar o fosso entre projetos e os fatos sócio-jurídicos e que estratégias de enfrentamento às crises jurídicas divisa? Não precisa avançar na completude dessas possibilidades e limites, mas indicar uma síntese enunciativa para questões que possam emergir, para alguma revisitação a experiências não plenamente completadas e para permitir a continuidade de uma travessia sem fim.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
Proposta dialógica para tratar temas contemporâneos e superar a intolerância
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Coleção Diálogos em Construção. Proposta Dialógica para Tratar Temas Contemporâneos e Superar a Intolerância. Edla Lula. 5 volumes: 1º Sobre Política; 2º Sobre Pandemia; 3º Sobre Sociedade; 4º Sobre Economia, Ecologia e Questão Agrária; 5º Sobre Fé e Ensino Social da Igreja. São Leopoldo: Casa Leiria, 2021. Para acesso ao material digital: https://olma.org.br/textos-e-artigos/
Em abril deste ano, em evento que se realizou no Auditório do Centro Cultural de Brasília – Centro Cultural de Brasília, ligado à Província dos Jesuítas de Brasília, tiveram início os Diálogos de Justiça e Paz, uma ação coordenada pelo Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida – OLMA, a Comissão Justiça e Paz de Brasília – CJP-DF, o Centro Cultural de Brasília – CCB e a Comissão Brasileira de Justiça e Paz – CBJP da CNBB.
Os Diálogos de Justiça e Paz são inovadores. Realizado desde então, sempre na primeira segunda-feira de cada mês, às 19h, eles abordam temas sensíveis à sociedade brasileira serão tratados em um formato de roda de conversa. A inovação surge da parceria entre os organismos coordenadores reunindo as “Conversas e Justiça e Paz “, protagonizadas pela CJP-DF – Comissão Justiça e Paz de Brasília, e os “Diálogos em Construção”, desenvolvido pelo OLMA, trazendo neste contexto uma homenagem ao Padre Thierry Linard de Guertechin SJ, belga que vivia no Brasil desde 1975, e cuja obra é fecunda na promoção do diálogo e do bem comum.
Conforme artigo publicado na Coluna Justiça e Paz, do Jornal Brasil Popular (https://www.brasilpopular.com/dialogos-de-justica-e-paz/), assinado por Eduardo Xavier Lemos, presidente da Comissão Justiça e Paz de Brasília, e Ana Paula Daltoé Inglêz Barbalho, vice-presidente da Comissão Justiça e Paz de Brasília, com a adesão da Comissão Brasileira de Justiça e Paz, da CNBB, que também desenvolve um projeto com discernimento semelhante – Despertar com Justiça e Paz –essasatividades acabaram por construiruma tradição: palestrantes convidados de destaque no cenário nacional, em diálogossobre temas importantes e urgentes como a Ecologia Integral, a Justiça Socioambiental,o Apostolado Social da Igreja e suas interfaces com temas referentes a economia, política, ambientalismo e sociedade civil, com aportes significativos na construção de análise de conjuntura da atualidade. O resultado configura um diagnóstico de riqueza intelectual e técnica, de leitura da realidade e necessidade de transformação da sociedade brasileira, além de substantivo repositório midiático e editorial disponível para consulta.
Do mesmo modo, as Conversas de Justiça e Paz, promovidas pela CJP-D e iniciadas em 2014, no dia 04 de agosto, ocorrendo sempre às primeiras segundas-feiras de cada mês, no Auditório Dom José Freire Falcão da Cúria Metropolitana, Anexo da Catedral de Brasília – onde circulam os homens e mulheres de boa vontade com os quais se tem a expectativa de um contínuo diálogo, considerando que, apesar da laicidade, a catedral é o primeiro edifício da Esplanada dos Ministérios -, integram iniciativas de ampliação do diálogo entre diferentes setores da sociedade, com especialistas da academia e movimentos sociais, a população e interessados nos mais diferentes temas cujo diálogo é necessário e muitas vezes viabilizado nesses encontros, seguindo a tradição da Comissão, voltada à Justiça e à Paz.
A matéria deste Lido para Você, remete `”Coleção Diálogos em Construção”, desenvolvido pelo OLMA, que resultaram na Coleção Diálogos em Construção (https://olma.org.br/2022/04/01/lancamento-da-colecao-dialogos-em-construcao/), lançada pelo Observatório de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida (OLMA) e o Centro Cultural de Brasília (CCB). A coleção foi estruturada a partir dos encontros: proposta dialógica para tratar assuntos relevantes para a sociedade brasileira, cujo debate foi praticamente interditado pelo clima de intolerância que tem marcado o país.
São 5 volumes, com os títulos acima designados, todos organizados pela jornalista Edla Lula, que posteriormente passou a integrar a Comissão Justiça e Paz de Brasília. Os livros fazem uma análise em 360º das principais questões que envolvem o Brasil recente, a partir da ótica de especialistas em cinco eixos temáticos que pontuaram o programa Diálogos em Construção entre 2016, a partir do impeachment da presidente Dilma Rousseff e 2021: Política; Economia, Ecologia e Reforma Agrária; Fé e Doutrina Social da Igreja; Sociedade e Pandemia.
Conforme a introdução da Coleção, o filósofo Manfredo de Oliveira; os juristas Gilmar Mendes, Carol Proner, Jacques Alfonsin e Eugênio Aragão; os teólogos Dom Leonardo Steiner e Pastor Ariovaldo Ramos; os ecologistas Leonardo Boff e Moema Miranda; o cientista Osvaldo Aly Júnior; os diplomatas Celso Amorim, Paulo Roberto de Almeida e Samuel Pinheiro Guimarães; os economistas Guilherme Costa Delgado, Paulo Nogueira Batista Junior, Roberto Piscitelli e José Celso Cardoso Filho; os jornalistas Tereza Cruvinel, Luís Nassif, Helena Chagas e Venício Artur de Lima e os políticos Erika Kokay, Raul Jungmann, Alessandro Molon e Patrus Ananias são alguns dos personagens presentes na coleção que expõem a sua visão sobre assuntos que pautaram a política e a sociedade brasileira após o impeachment.
Eu próprio participo do projeto, tendo estado presente no segundo evento temático (conforme registro no primeiro volume) que tratou do tema “Dilemas da democracia e a reforma política”. Compartilhei a mesa de debate com o então deputado, ex-prefeito de Belo Horizonte, ex-Ministro do Desenvolvimento Agrário e com ex-Procurador-Geral da República Cláudio Fonteles. Para Guilherme Delgado e Luciano Fázio que fazem a Introdução a esse primeiro volume, “o consenso dos convidados é no sentido do apelo aos aspectos mais doutrinais da reforma política, caminhando a argumentação para que a reforma política se faça comprometida com a justiça social, pois não pode haver prática da virtude, em sentido de virtude democrática, sem o atendimento das necessidades básicas ou o mínimo da condição humana”.
Na apresentação, comum a todos os cinco volumes, a organizadora Edla Lula, explica o projeto:
Ele surgiu (o livro) da avaliação feita entre os integrantes da equipe que organiza os ‘Diálogos’ de que seria necessário revisitar os quarenta eventos realizados entre os anos de 2016 e 2020. A ideia tinha dois propósitos básicos: o primeiro era o de não deixar dissolver pelas nuvens do ciberespaço os conteúdos apresentados pelos especialistas, criteriosamente convidados a nos ajudar a pensar aquele momento crítico pelo qual passava – e ainda passa – a história do Brasil. O segundo, verificar em que medida o propósito inicial dos seminários foi contemplado, alcançando o seu objetivo de buscar respostas que explicassem os acontecimentos políticos e os meandros do processo que culminou no impeachment da presidente Dilma Rousseff, com seus desdobramentos nos anos seguintes.
A mera transcrição das palestras não seria opção, pois, embora trouxesse em detalhes a riqueza de tudo o que foi dito, resultaria em um calhamaço de mais de quinhentas páginas, além do fato de que vários assuntos ali tocados teriam perecido. A frieza de um relatório também não comportava, pois, diante de tantas confirmações que evidenciaram o que foi dito, seria necessário atualizá-lo e dinamizá-lo.
Tornou-se necessário, então, compilar os assuntos e agrupá-los em volumes temáticos, lançando, assim, o olhar crítico, à luz dos acontecimentos que se sucederam e o que, em quase tudo, confirmaram as teses trazidas pelos especialistas.
É importante ressaltar que as falas aqui registradas são editadas e retextualizadas para que se cumpra a transposição da oralidade, com as suas peculiaridades e vícios, para a linguagem escrita. Precisaram ser editadas ainda para que pudessem transmitir a informação com menor número de caracteres, preservando-se, evidentemente, com fidelidade, o conteúdo do que se disse.
Para que o leitor possa conhecer a integralidade das falas, o livro dá acesso direto aos eventos, através do QR Code colocado na abertura de cada capítulo, que levará às palestras registradas no canal do OLMA no Youtube.
O projeto é também um preito de memória e homenagem ao Padre Thierry Linard de Gueterchin SJ, falecido em 30/01/2022. Como registram Eduardo Lemos e Ana Paula Barbalho, no artigo citado, Padre Thierry integrou a Comissão Justiça e Paz de Brasília (CJP-DF) e foi o inspirador do OLMA e do projeto Diálogos em Construção, tendo se tornado amado irmão, amigo, companheiro, como os seus colegas nesses projetos o consideravam, mas que são também prova dessa fraternidade, amizade e companheirismo a esse belga que veio para o Brasil com 31 anos e daqui não mais saiu – a não ser em viagens sazonais, para se encontrar com a família, para estudos e serviços de sua Ordem –, [conforme] as inúmeras mensagens, depoimentos, necrológios que, logo que se teve a notícia de sua páscoa definitiva, começaram a circular intensamente.
Para o padre José Ivo Follmann, S. J., outro grande inspirador e condutor da proposta, no Prefácio,
‘Diálogos em Construção’ veio ocupando, desde 2016, determinados tempos e espaços de um valente grupo de pessoas, que se debruçou, mensalmente, sobre temas identificados como mais preocupantes de dentro dos múltiplos processos de degradação que estamos vivendo. Foram pautas envolvendo múltiplas problemáticas econômicas, políticas, sociais, éticas, culturais e ambientais. A publicação sistematizada dos ‘Diálogos em Construção’ visa a ampliação dos diálogos e da sua construção para outras instâncias e grupos, para além dos públicos que estiveram diretamente envolvidos em momentos dados em um espaço e tempo bem delimitados, em cada mês. A publicação talvez faça parte do processo de paciência e dos esforços consistentes na ‘construção’. ‘Diálogos em Construção’ pulsa com vigor renovado, vendo, assim, o seu esforço reverberado e multiplicado com a possibilidade de novas qualificações das mesmas vozes, em círculos mais avançados.
Padre Ivo que muito contribuiu para formular o projeto “Diálogos em Construção”, foi também um dos principais incentivadores e formuladores da versão concertada dos “Diálogos de Justiça e Paz”, na sua forma atualmente divulgada, na associação entre as entidades de justiça e paz.
Infelizmente para nós padre Ivo retornou a sua São Leopoldo para retomar suas atividades presenciais no Instituto Humanitas, da Unisinos, a universidade jesuíta do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Mas ainda se faz presente pela plataforma virtual. Na edição do último dia 3, sobre o tema das migrações e refúgio, por meio de mensagens nas nossas plataformas do Youtube e do Facebook, lá estava ele, dialogando, contribuindo para o melhor discernimento dos temas.
Isso lembra que a distancia não impedirá sua contínua e esclarecedora participação em nossos debates, tal como ainda nos cuidados de distanciamento, sempre contamos com a sua palavra de orientação. Confira-se: Rerum Novarum 130 Anos. O Mundo do Trabalho e os Direitos Sociais https://www.youtube.com/watch?v=58-7MxGxGSg” https://www.youtube.com/watch?v=58-7MxGxGSg; Homenagem ao Padre Thierry Linard. Orar, Discernir e Trabalhar: Analisar a Realidade Social e Contribuir para a Superação do Abismo da Injustiça Social https://www.youtube.com/watch?v=gzxfFf39hac; a rica conversa sobre a Páscoa e a conversão cristã e sobre o papel de reflexão da campanha da Fraternidade 2023 para a caminhada do cristão brasileiro no tempo quaresmal. No segundo bloco, abordamos a sinodalidade e o retorno ao Evangelho, vivo em nossa caminhada. https://www.youtube.com/watch?v=ck3CjlHrp2I .
Pois, até como lembram os Organizadores, “presencialmente ou no ambiente on-line, a participação [sobretudo] de cidadãos e cidadãs é a marca principal do evento e, neste livro, ela se faz presente a partir dos comentários às colocações dos palestrantes, sempre dois convidados. Como se trata de ‘diálogo’ e não de ‘debate’, as visões aqui colocadas quase nunca são antagônicas, mas complementares”.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
Jacobin Brasil. Esquerda e poder. Autores: Juliane Furno, Ailton Krenak, Rodrigo Nunes, Maria Carlotto, Rafael Grohmann, Rosa Amorim, Vladimir Safatle, Sérgio Silva, Paíque Santarém, Daniel Santini, Daniela Mussi, Mayara Vivian, Marcos Queiroz, Bruna Pereira, Breno Altman, Cristina Cavalcante, Daniel Santini, Adriana Erthal Abdenur, João Telésforo, Beatriz Caminha, Derê Gomes, Fábio Felix, Felipe Freitas, Fernanda Lima da Silva, Gabriel Lazzari, Gercyane Oliveira, Ian Viana, Lucas Gesser, Marília Closs, Pedro Abelin, Pedro Barbosa, Rafael Costa, Rayane Andrade, Talita São Thiago Tanscheit e Vinicius Januzzi. CAPA: Kel; DIRETOR EDITORIAL: Marcos Queiroz; ASSISTENTE EDITORIAL: Rodrigo Gonsalves e Sofia Schurig; DIRETOR DE CRIAÇÃO: Giovani Castelucci / Estúdio Daó; DIREÇÃO DE ARTE: Guilherme Vieira / Estúdio Daó; DIAGRAMAÇÃO: Juliana Briani e Tiago Araújo; REVISÃO: Lígia Marinho e Marcia Ohlson. ISSN: 2675-0031-6. Edição 6/Inverno: 2023; 176 p.
A revista Jacobin é uma voz destacada da esquerda mundial. Agora, em português, oferece um ponto de vista socialista sobre política, economia e cultura. Sobre ela, alguns depoimentos:
“O surgimento da revista Jacobin tem sido uma luz em tempos obscuros. Cada traz debates vivos, profundos e análises de temas candentes, de uma perspectiva lúcida, oxigenada e rara de ser vista na esquerda. Uma contribuição realmente impressionante à sanidade — e à esperança.”
— Noam Chomsky
“A Jacobin é a melhor revista socialista publicada hoje no mundo. A Jacobin Brasil tem tudo pra se firmar como uma grande referência para a esquerda brasileira nesses tempos sombrios.”
— Ruy Braga
“Como socialista e como comunicadora social em formação é com muito entusiasmo que vejo a Jacobin Brasil sendo veiculada. Além de se contrapor ao modelo hegemônico de mídia a concepção da Jacobin é uma grande contribuição para o acúmulo dos debates mais necessários entre os socialistas brasileiros. Vida longa, que seja muito bem-vinda ao Brasil!”
— Malu Nogueira
“A revista Jacobin já é um sucesso internacional, pelo menos para aqueles que se recusam a parar de pensar. Saber que temos agora a edição brasileira da Jacobin é uma notícia e tanto, num tempo de notícias sempre tão ruins por aqui.”
— Leda Paulani
“No combate, presente e global, entre formas renovadas de autoritarismos e criações democráticas e libertárias, a jacobin irrompe e se firma rapidamente como um dos principais polos de debates da esquerda anglo-saxã. sua chegada ao brasil é uma excelente nova, num país em que a revolução haitiana (que inspira o nome da revista) sempre inspirou temor nos poderosos e chamados à rebelião para os de baixo”.
— Jean Tible
“O lançamento da Jacobin no Brasil é um acontecimento alvissareiro para todos os que pensam numa perspectiva anticapitalista”.
— André Singer
O sítio da publicação abre com uma frase de Chico Science e Nação Zumbi: “O medo dá origem ao mal. O homem coletivo sente a necessidade de lutar.”
As palavras de saudação, entusiastas, não eclipsam uma disposição crítica, própria de pensamento radical, sempre desconfiado, ao menos pessimista no sentido dialético, como convêm à razão diligente.
Em nota do Comitê Internacional da Quarta Internacional, a publicação, que passou a ser editada também em português, é vista como glorificação de Lula: “uma fachada pseudoesquerdista à guerra e reação”. A matéria, assinada porTomas Castanheira (https://www.wsws.org/pt/articles/2023/03/03/tchk-m03.html), não é nada cordial:
A erupção da crise capitalista global, expressa na escalada da guerra e em choques econômicos, está expondo a falência política das organizações da pseudoesquerda, representantes de seções privilegiadas da classe média umbilicalmente ligadas ao capitalismo e seus Estados nacionais.
A revista Jacobin é altamente representativa da resposta política dessas camadas da classe média alta ao colapso global do capitalismo e a guinada à guerra mundial.
Impulsionada pelo Democratic Socialists of America (DSA), uma facção pseudoesquerdista do Partido Democrata dos Estados Unidos, a Jacobin buscou se projetar na última década como um órgão ideológico oficial da pseudoesquerda. Recentemente, investiu fortemente na expansão de sua influência sobre a América Latina, inaugurando em 2019 uma edição regional em espanhol e uma edição brasileira em português.
Todas as forças que a Jacobin promoveu como exemplos da “renovação do socialismo” no século XXI se provaram como instrumentos da reação capitalista, a começar pelo próprio DSA. Os membros do DSA no parlamento estão votando ao lado dos demais representantes do imperialismo americano para expandir a guerra contra a Rússia na Ucrânia e, internamente, reprimir as lutas crescentes da classe trabalhadora.
Não entro nessa diatribe. Lembro apenas que devemos examinar os fatos e suas interpretações à luz de nosso próprio ponto de vista e buscar nos distanciarmos das questões que mobilizam os diferentes quando se contrapõem.
Ainda hoje temos que prorrogar um debate nascido da 2ª Internacional, depois da implantação de um socialismo real num único país, que celebrou-se por marcar duas distinções, pertinentes aos problemas vivenciados naquelas circunstâncias dramáticas: a separação da democracia (burguesa) do socialismo, que levou a opor o socialismo à democracia, como se pudesse haver socialismo sem democracia; e o antagonismo entre reforma e revolução, como se fosse impossível a transformação do real pelo modo até mencionado por Marx de uma possível “evolução-revolucionária”, às vezes mais verossímil do que um socialismo que não seja humanizador (que o diga o MST que pede reforma agrária e propõe um programa de sociedade com uma boa pegada socialista e revolucionária). O fato é que a tendência majoritária acabou reduzindo Karl Kautsky (escolhido por Engels para editar o volume inédito de O Capital) passasse a ser o renegado; e Rosa (Luxemburgo), a galinha que queria voar como águia.
Sem renunciar ao que divisa o horizonte revolucionário, há como antecipar o fim de todo domínio de classe e de privilégios que o revestem (Programa de Gotha), e arrancar direitos iguais para todos (naturalmente o direito do trabalho e não o direito do capital, cf. Roberto Lyra Filho. Direito do Capital e Direito do Trabalho. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 1982) e vislumbrar essa dimensão transformadora nas ações que podem mobilizar a consciência emancipadora: “A fixação de uma jornada de trabalho normal escreve Marx — é o resultado de uma guerra civil prolongada, mais ou menos encoberta, entre a classe capitalista e a classe proletária. Para libertar-se da víbora que provoca os seus sofrimentos (Heine) os trabalhadores devem unificar-se como classe, e arrancar a lei que, poderosa barreira social, os impede de se venderem livremente ao capital, condenando-os, e a seus descendentes, à escravidão e à morte.” (O Capital). Naquele momento, revolucionário foi lutar pela jornada de oito horas.
Em Karl, Meu Amigo: Diálogo com Marx sobre o Direito (Porto Alegre: Co-edição Sergio Antonio Fabris Editor e Instituto dos Advogados do RS, 1983), Roberto Lyra Filho anota o cuidado que é preciso ter ao ler um autor que polariza, ainda hoje, com sua presença gigantesca, tanto a ira dos reacionários, que previu e suportou, a seu tempo, quanto o fanatismo dos seguidores, que também repeliu, com ironia, e chegou a denunciar, com veemência, advertindo contudo, que o vespeiro permanece ameaçador e fervente.
Em a Nova Escola Jurídica Brasileira– Nair (Revista Direito & Avesso. Boletim da Nova Escola Jurídica Brasileira. Brasília: Edições Nair, ano 1, nº 1), vai lembrar a rica pluralidade que deve presidir um engajamento associativo, no plano da política e do conhecimento, ao limite de contradições todavia, não antagônicas. Ainda aí o modelo de Marx.
Ao menos o Marx de 1844, no desfecho de circunstancial tensão intelectual que resultou no livro (com Engels) “A Sagrada Família ou a Crítica da Crítica Crítica. Contra Bruno Bauer e consortes.”, antigos amigos tidos com intelectuais “Livres” ou “Críticos”, que vinham se expressando principalmente no periódico Gazeta Geral Literária (1843-4). Até a década seguinte, mais engajados nos compromissos de solidariedade intelectual à classe operária, Marx ainda estava satisfeito com a polêmica travada ainda que muitos de seus correligionários pudessem pensar diferente desde que não é incomum a perda de relevância de discussões que antes parecessem guardar mais relevância.
Assim me deparei com esse número 5 de Jacobin Esquerda e Poder. Uma surpresa como leitura boa leitura. Logo feliz por encontrar nomes que me dão gosto ler, independentemente de suas filiações. Sem vínculo partidário não hesitei em contribuir para uma excelente publicação de esquerda, que nem sei se me aceitaria como membro, mas que acolheu texto para cuja redação alguém, já nem lembro quem, do Conselho, me convidou. Revista Esquerda Petista, nº 5, junho/2016, editada por Articulação de Esquerda, tendência petista. A serviço de um PT democrático, socialista e revolucionário. Meu texto, um desafio: Estado Democrático da Direita?, (pp. 52 a 54).
Entre os bons autores e autoras encontro Fábio Felix, deputado distrital em Brasília, coordenador do DCE da UnB, quando assumi a reitoria. Fábio, do PSOL, preside a Comissão de Direitos Humanos da CLDF; encontro Felipe Freitas, hoje na Bahia, secretariando a área de direitos humanos, cuja pós-graduação acompanhei na Faculdade de Direito da UnB. O querido amigo – desde a Constituinte de 1988 e a criação da UNI, agora doutor honoris causa da UnB. Ailton aqui com seus temas – Pisar leve sobre a terra – falando de outros mundos dentro do mesmo mundo. Ainda em projeção do debate que ele animou com Boaventura de Sousa Santos e Helena Silvestre, a partir do livro O Sistema e o Antissistema: Três Ensaios, Três Mundos no Mesmo Mundo, conforme live promovida pela Editora Autêntica, que moderei e que teve ainda a participação de Cláudia Carvalho – https://www.youtube.com/watch?v=9gRuSpR8l7I. Sobre livros de Krenak conferir aqui em Lido para Você minhas recensões: http://estadodedireito.com.br/ideias-para-adiar-o-fim-do-mundo/; e http://estadodedireito.com.br/futuro-ancestral/; além de http://estadodedireito.com.br/o-sistema-e-o-antissistema-tres-ensaios-tres-mundos-no-mesmo-mundo/.
Neste número 5 de Jacobin, p. 146 – 149, em entrevista conduzida por Gercyane Oliveira, Ailton conversa sobre como reverter a destruição do governo Bolsonaro e os desafios da luta indígena e socioambiental neste início de Lula III. Enquanto escrevo o TSE está proclamando o resultado de julgamento que declara a inelegibilidade desse devatador. Já é um bom movimento de reversão. O mais é pisar leve sobre a terra, senão a terra vai responder não suavemente.
Também nessa linha, numa interpelação mais política que filosófica é a abordagem de João Telésforo quem, aliás, me apresentou Jacobin. Venho acompanhando com interesse a formação intelectual de Telésforo desde que o conheci na UnB (Faculdade de Direito. Por isso me detive mais em seu artigo: Profanar a República contra a ameaça Fascista, p. 152-159. E não só por causa do tema, que muito me interessa, sobre como a esquerda deve retomar a crítica do Poder Judiciário das mãos da direita e a avançar na democratização do sistema de justiça.
Mas o que mais que tudo me mobilizou para a leitura do artigo de Telésforo, foi a sua expressa referência ao eixo enunciativo da consideração dada ao tema a partir das contribuições do Grupo de Pesquisa que co-lidero (Diretório de Grupos de Pequisa do CNPQ): O Direito Achado na Rua.
Com efeito, para fundamentar sua tese, Telésforo abre um entre-título: O Direito Achado na Rua: a Profanação Democrática da Justiça. Do que cuida Telésforo nesse ítem?
Para ele, “à agressão fascista ao Poder Judiciário, devemos opor a profanação da justiça: a construção democrática do direito na rua, segundo a concepção de Robereto Lyra Filho, referindo-se às práticas dos movimentos sociais que não apenas enunciam direitos, mas se organizam para lhes garantir eficácia, inclusive de modo extralegal ou contra legem”.
A maneira como Telésforo percebe a proposta de O Direito Achado na Rua, é em tudo compatível com toda a construção político-teórica que vem embasando esse movimento/concepção. Basta conferir para o ratificar, as mais recentes sínteses que informam esses fundamentos, com a inteira autenticação dos pesquisadores que formam essa escola de pensamento/práxis emancipadora. Remeto aos mais recentes achados de síntese, também tema de colunas neste espaço Lido para Você. Sobre o balanço de 30 anos de construção da proposta, link para Acesso Livre na Plataforma de Livros Digitais da Editora da UnB: https://livros.unb.br/index.php/portal/catalog/view/116/106/467-1, conferir ainda http://estadodedireito.com.br/o-direito-achado-na-rua-volume-10-introducao-critica-ao-direito-como-liberdade/; sobre uma perspectiva compartilhada, conferir v.6 n. 2 (2022): Revista Direito. UnB |Maio – Agosto, 2022, V. 06, N. 2 Publicado: 2022-08-31. O Direito Achado na Rua. Contribuições para a Teoria Crítica do Direito. Edição completa PDF (https://periodicos.unb.br/index.php/revistadedireitounb/issue/view/2503), conforme http://estadodedireito.com.br/30425-2/.
Na mais incisiva atualização do tema, conforme O Direito Achado na Rua. Sujeitos Coletivos: Só a Luta Garante os Direitos do Povo!, volume 7, Coleção Direito Vivo. Ana Cláudia Mendes de Figueiredo, Andréa Brasil Teixeira Martins, Edilane Neves, José Geraldo de Sousa Junior, José Roberto Nogueira de Sousa Carvalho, Luana Nery Moraes, Shyrley Tatiana Peña Aymara, Vítor Boaventura Xavier (Organizadores). Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2023; cf. http://estadodedireito.com.br/sujeitos-coletivos-so-a-luta-garante-os-direitos-do-povo/, Telésforo é incisivo:
O direito legítimo não é necessariamente aquele aquele que emana emana do Estado, diz Lyra Filho, mas o que ‘nasce na rua, no clamor dos espoliados e oprimidos’ – que assim se autoconstituem como ‘sujeitos coletivos de direito’, segundo a formulação de José Geraldo de Sousa Junior.
Basta olhar para as lutas sociais e se verá a sua incessante dimensão instituinte de direitos, na concepção de Lyra. É o que acontece, por exemplo, quando trabalhadores realizam greves, ou movimentos sem-terra e sem-teto ocupam latifúndios e terrenos para avançar na luta pelas reformas agrária e urbana populares, para garantir a materialização dos direitos à alimentação, à moradia, à cidade e ao trabalho, entre outros…
É o que procurei mostrar por ocasião de convite para prestar depoimento na CPI instalada na Câmara dos Deputados, a pretexto de inquirir a prática do MST na reivindicação de reforma agrária prevista na Constituição. A direita hegemônica na Comissão sequer disfarça o objetivo de criminalização do movimento social. Algo que penso ter logrado desmascarar ao reconhecer que a ação do MST é sim, conflito porque é realiza um processo radical de cumprimento de sua agenda de defesa da função social da terra e do território, mas é também projeto, projeto autêntico porque propõe um modelo de sociedade e de produção que satisfaça a expectativa de segurança alimentar e de gestão democrática de sua forma de produção econômica. Assim, ao menos, entendeu o próprio MST quando publicou em sua página web e fez tradução do texto para o espanhol para internacionalizar o seu alcance, o texto-base de minha comunicação na Comissão Parlamentar, a cujo debate completo se pode ter acesso: https://mst.org.br/2023/06/22/cpi-do-mst-contexto-e-diagnostico-da-situacao-agraria-brasileira/; https://www.youtube.com/watch?v=ZxQQxGBrF3M.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.5
Continuidades e Descontinuidades da Posse e Apropriação da Terra/Território na Região Oeste da Bahia
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Cloves dos Santos Araújo. Continuidades e Descontinuidades da Posse e Apropriação da Terra/Território na Região Oeste da Bahia. Tese de Doutorado em Geografia. Salvador: Universidade Federal da Bahia. Programa de Pós-graduação em Geografia do Instituto de Geociências, 2023, 301 fls.
Trata-se de tese de doutoramento, apresentada e defendida perante a Banca Examinadora constituída pelas professoras e pelos professores Guiomar Inez Germani – Orientadora, Universidade Federal da Bahia; Stella Rodrigues dos Santos, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Universidade do Estado da Bahia (UNEB); Celso Antonio Favero, Universidade do Estado da Bahia (UNEB); Valney Dias Rigonatto, IESA/UFG, Universidade Federal do Oeste da Bahia, UFOB; Iremar Barbosa de Araújo; Coletivo de Comunidades de Fundos e Fechos de Pasto da Bacia do Rio Corrente (Membro Externo); Gilca Garcia de Oliveira (Suplente), Universidade Federal da Bahia (UFBA). Também eu tive a honra de integrar, essa banca singular, para a defesa de uma tese que articula geografia e direito.
A tese, a partir de sua abertura, já coloca a banca num espaço delimitado pelo Autor, epistemologicamente geo-referenciado. Diz ele:
Esta pesquisa surge de um processo que compreende a articulação de quatro espaço-tempos fundamentais: i) o espaço-tempo da minha vivência com a conflitualidade socioterritorial, que é mais alargado e se encontra com os demais no meio do caminho; ii) o espaço-tempo da minha formação acadêmica, cujos debates em seminários e grupos de estudo e pesquisa exerceram papel crucial para a problematização e a apreensão dos conceitos e categorias de análise, tais como os de espaço, território e renda da terra; iii) o espaço-tempo de minha participação na extensão, que articula os dois primeiros no contato e na troca de saberes com comunidades camponesas e das periferias urbanas e, iv) o espaço-tempo de minha atuação profissional como advogado de movimentos sociais urbanos e rurais.
Portanto, a tese começa e termina com uma consideração que equivale a uma licença epistemológica para estabelecer um Carrefour entre racionalidades e mapas cognitivos que permitam o trânsito entre a Geografia e o Direito.
Na conclusão, aliás, Cloves justifica essa opção (p. 284):
Abrimos o caminho ou reavivamos caminhos já abertos por pesquisas anteriores, entendendo que os problemas da espacialização (da produção histórico-social dos espaços e dos territórios) e da produção/transformações dos campos político-jurídicos, e das suas inter-relações, estão situados dentre os principais desafios desta Tese. Em outros termos, na condição de pesquisador em Geografia, com a trajetória percorrida no campo do Direito, o propósito inicial foi olhar essa conflitualidade e identificar como se dão os processos de espacialização e de produção do político-jurídico de forma articulada. Essa articulação entre a Geografia e o sistema Político-Jurídico está na base da formação histórica do sistema-mundo, desde a fundação do Estado Moderno no Século XVI, com o processo de colonização da América que se inicia naquele contexto, com a Filosofia e a Ciência a serviço deste projeto de mundo cartografado e regulado, conforme já dissemos em outro lugar (ARAÚJO, 2019).
Justificativa até desnecessária, em boa medida. Basta ver Boaventura de Sousa Santos em sua emblemática aula maior proferida na Universidade de Coimbra na abertura do ano letivo 1985/1986, posta depois amplamente em circulação no formato de Um Discurso sobre as Ciências (Porto: Edições Afrontamento, 1987).
Nesse texto que teve o alcance de um protocolo para o estabelecimento de um paradigma emergente para um conhecimento emancipatório e humanizador, Boaventura vai caracterizar um mal-estar no racional cognitivo (hoje ele já fala em império cognitivo agonizante), para identificar o desconforto de campos mal dispostos nas dicotomias impotentes do paradigma dominante fundado no positivismo científico (natureza/cultura; mente/matéria; observador/observado; subjectivo/objetivo; colectivo/individual; animal/pessoa). E, para superar essas distinções dicotômicas nas disciplinas científicas, ele vai localizar mobilizações internas a alguns desses campos para se reverem em seus protocolos epistemológicos, e nesse passo, considerar a exemplaridade…da Geografia (p. 40):
Sempre houve ciências que se reconheceram mal nestas distinções e tanto que se tiveram de fracturar internamente para se lhes adequarem minimamente. Refiro-me à antropologia, à geografia e também à psicologia. Condensaram-se nelas privilegiadamente as contradições da separação ciências naturais/ciências sociais. Daí que, num período de transição entre paradigmas, seja particularmente, do ponto de vista epistemológico, observar o que se passa nessas ciências.
Pode-se, sim, mesmo em recorte mais disciplinar, chegar-se a modelos em que o pluralismo de sistemas geográficos e jurídicos (urbano, rural, ambiental, energético, transportes, saneamento etc.) seja percebido em limite que “inviabilize a compreensão da Geografia de Estado e do Direito Administrativo como um todo, sem uma governança que possibilite a produção de informações espaciais que sejam oficiais e confiáveis, e tampouco o emprego de uma tecnologia que impeça a ausência de padronização, de sobreposição de mapas com conceitos antagônicos, bem como de espaços territoriais não cartografados”, conforme Luiz Ugeda, em Direito administrativo geográfico : fundamentos na geografia e na cartografia oficial do Brasil. Brasília: Geodireito, 2017, p. 388, originada de tese de doutorado defendida na UnB, em 2014, no Departamento de Geografia, quando tive a oportunidade de examinar o trabalho, na banca examinadora, formada por mim e pelos professores Alcindo José de Sá, Marilia Luiza Peluso, Ricardo Mendes Antas Júnior e do orientador Rafael Sanzio Araújo dos Anjos.
Mas, para mim, primeiro território epistemológico demarcado por Cloves é o da subjetividade, posição que o Autor assume de saída. O que me leva também a me posicionar sobre a legitimidade dessa perspectiva, e o faço, repetindo ponto de vista que externei há poucos dias no exame de outro trabalho com características epistemológico-metodológicas de igual estirpe.
Refiro-me a Dissertação de Carlos Henrique Naegeli Gondim, cuja defesa Cloves acompanhou “É LIVRE: o Direito Achado nas terras coletivas de Quebradeiras de Coco Babaçu, de Quilombolas e de assentados da Reforma Agrária em Monte Alegre – Olho d’Água dos Grilos, Maranhão”. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2023, 199 fls.:
Uma subjetividade, contudo, convertida em rigor teórico-metodológico, que não se deixa refletir em subjetivismo enviesado. Mas que repercute todo esse enlace de saber-sentimento tecido por racionalidades sensíveis (Maffesoli) ou poéticas (Martha Nussbaum), que possam animar compromissos de solidariedade, em linguagem inclusive pastoral própria dos seus engajamentos com a ação emancipatória, libertadora, agora se reencontrando depois de um purgatório pontifício, com a teologia poética do Papa Francisco, que a mim também me tem tocado, não fosse eu membro ativo da Comissão Justiça e Paz de Brasília, para preservar a formação pastoral e missionária que o Autor revela, numa referência a sua adesão a uma teologia posta a serviço do mundo e da história, feita de libertação.
Epistemologicamente preservado o distanciamento que o científico positivista tanto valoriza, mesmo num campo de conhecimento que admite juízos de valor e não somente juízos de fato, a Dissertação felizmente mantem, no estilo, na estrutura, nas metáforas, o arranjo co-razonado, senti-pensante (Fals Borda), de forte aplicação nas abordagens de O Direito Achado na Rua. Para uma referência de aplicação, ver PEÑA AYMARA, Shyrley Tatiana. A Subjetividade do Sujeito Coletivo de Direito: Senti-pensar e Co-razonar, in FIGUEIREDO, Ana Cláudia Mendes de et al (organizadores)O Direito Achado na Rua: sujeitos coletivos. Só a luta garante os direitos do povo! Coleção Direito Vivo volume 7. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2023.
Também o trabalho de Cloves se reveste dessa licença autorizada para literalizar a narrativa, inserindo biografia e projeto de vida, afetos que trazem amorosidade para o enredo da Dissertação, com histórias, em primeira pessoa (Boaventura de Sousa Santos. Sociologia na Primeira Pessoa: fazendo pesquisa nas favelas do Rio de Janeiro. Revista da Ordem dos Advogados do Brasil, nº 49, São Paulo: Editora Brasiliense, primavera/1988), de amizades e de afetos, também de referências acadêmicas eletivas.
Essa subjetividade, contudo, não é um delírio, mas como lembra Eduardo Lourenço, no âmbito literário falando dos heterônimos de Fernando Pessoa, para designar a apropriação do real por meio de outra linguagem (Eduardo Lourenço. A Mitologia da Saudade. São Paulo: Companhia das Letras, 1999). Não é essa a mediação que aparece em Itamar Vieira Junior, em seu Torto Arado, literalizando os mesmos temas? Sobre esses sujeitos que ele diz ser: “gente forte que atravessou um oceano, que foi separada de sua terra, que deixou para trás sonhos e forjou no desterro uma vida nova e iluminada. Gente que atravessou tudo, suportando a crueldade que lhes foi imposta” (VIEIRA JUNIOR, Itamar. Torto arado. [s.l.]: Leya, 2019, p. 261). Gente que, “graças as suas crenças [fez vigorar] uma ordem própria, [para] atravessar o tempo até o presente” p. 196.
O propósito da tese, ou antes, a sua motivação, voltado para “compreender a atuação do sistema políticojurídico nos conflitos fundiários coletivos e de que modo essa atuação contribui com o processo de produção do espaço agrário. Entendia, e continuo entendendo, que os problemas da espacialização (da produção histórico-social dos espaços e dos territórios) e da produção/transformações dos campos político-jurídicos, e das suas inter-relações”, logo se orientou para designar “as mudanças e permanências (como continuidades/descontinuidades) que acontecem nos processos de valorização do espaço, sobretudo na área desta pesquisa, visto que se trata de região de fronteira agrícola; e, igualmente, de como essas mudanças e permanências repercutem no campo político-jurídico”.
O Autor, originado do campo do Direito, encontrou na Geografia e sobretudo nas ações de extensão, notadamente no Geografia Pés no Chão, ambiente para aprofundar “estudos da formação do espaço agrário e da teoria da renda da terra, abordada no século XIX por Marx (2017) e revisitada por autores contemporâneos, como David Harvey (2013)” e com esse aporte dar-se conta de que “o processo de valorização do espaço provocou e provoca mudanças profundas na região Oeste da Bahia, no conjunto contraditório de sujeitos sociais que a habitam e na vida das pessoas; provoca, sobretudo, conflitos cada vez mais complexos em torno do apossamento e da apropriação da terra, nas suas diversas formas, com repercussões ambientais irreversíveis. Em outros termos, o que se percebe com o processo de valorização do espaço é a intensificação dos conflitos fundiários na região, e, ao mesmo tempo, a reconfiguração dos sujeitos sociais envolvidos nesses conflitos. Se, inicialmente, tínhamos os camponeses, e se, nesse contexto, a posse era a relação quase exclusiva dos mesmos com a terra, tudo isso passou por profundas transformações nessas últimas décadas”.
Tal como ele explica, p. 31-32:
ante esse processo de valorização do espaço que provoca a intensificação dos conflitos, e, concomitantemente, o surgimento de novos sujeitos sociais e da reconfiguração dos sujeitos tradicionais neles envolvidos, a preocupação segue no sentido de entender como ocorrem as mediações entre esses sujeitos, inclusive as de caráter político e jurídico que entranham os conflitos. Nesse sentido, pergunta-se, o Estado, em sua função enquanto um dos mediadores, como é que ele atua nesses conflitos? Como atuam o agronegócio, o empresário e o latifundiário, com as suas diversas expressões? E como os camponeses resistem e enfrentam nos conflitos decorrentes das mudanças introduzidas na região? Aqui reside uma das preocupações deste pesquisador. Os modos de mediação são diversos, pois os conflitos socioterritoriais são complexos. São diversos os mediadores nos tempos e nos espaços. Ou seja, não só o Estado é mediador, e a mediação acontece não só por intervenção/decisão judicial.
Por isso, na medida em que o processo de apreensão do objeto e do método foi se tornando mais claro, na qualificação e no diálogo com os sujeitos sociais em conflito, e com pesquisadores do tema, percebi a necessidade de dar visibilidade a sujeitos sociais diversos (camponeses/posseiros, geraizeiros, agricultores familiares, latifundiários, empresários, agronegociantes, mineradores, Estado) que participam direta ou indiretamente do processo de produção do espaço e das relações nos conflitos em estudo.
Deste modo, não se trata de focar apenas no Judiciário, mas, principalmente, nos sujeitos sociais diversos que participam e estruturam as teias, com suas fraturas, das relações sociais em estudo.
Conforme propõe o Autor, o eixo da sua tese é o estudo da atuação dos diversos e contraditórios sujeitos sociais em conflito e seus mediadores. Seguindo em certa medida o enunciado nos objetivos específicos, o trabalho foi desenvolvido em quatro capítulos. Da Introdução extrai-se os pressupostos já indicados. No segundo capítulo, ao lado da revisão da literatura (teórico/conceitual) sobre os processos sociais de produção e valorização do espaço e dos conflitos socioterritoriais, são ununciados os conceitos centrais que estruturam a tese: produção e valorização do espaço, conflitos socioterritoriais que produzem espaços e os sujeitos sociais que se relacionam nos processos de produção do espaço.
O terceiro capítulo é dedicado à identificação dos conflitos agrários coletivos, dos sujeitos sociais e das suas ações nos processos de apossamento e apropriação da terra/território no Oeste da Bahia. A abordagem neste capítulo concentra-se, como primeiro passo, na espacialização dos conflitos socioterritoriais nos Territórios de Identidade Bacia do Rio Corrente e Bacia do Rio Grande, Oeste da Bahia, buscando alargar os caminhos da pesquisa. Na sequência, aborda-se os processos sociais de apropriação e produção do espaço, buscando identificar as suas contradições e múltiplas formas de superações.
No quarto capítulo a abordagem é centrada na análise do processo de produção e valorização do espaço agrário no Oeste da Bahia, suas contradições e implicações na emergência dos conflitos socioterritoriais coletivos. Retoma-se, para essa finalidade, a base teórica e analítica definida no primeiro capítulo, e, igualmente, o conteúdo do segundo capítulo, onde são apresentados os conflitos e os múltiplos sujeitos neles envolvidos, através das suas ações. Esta análise é focada em dois conflitos socioterritoriais inscritos em diferentes bacias hidrográficas: a) o conflito que tem, de um lado, as Comunidades Geraizeiras do Alto Rio Preto, e, de outro, o Condomínio Cachoeira do Estrondo, localizado na Bacia do Rio Grande; b) o Conflito da “Larga” de Porteira de Santa Cruz, localizado na Bacia do Rio Corrente.
A tese é um precioso exercício de articulação dessas possibilidades, as quais, em seus desdobramentos são examinados em profundidade pelas diferentes formas de aproximação propostas pelos membros da Banca.
De minha parte, em relação a esses aspectos, quero me cingir aqueles que mais diretamente tocam o marco teórico cuja base o Autor confirma ter sido um encontro potente para ancorar sua análise, notadamente quando ela se aproxima da formulação de Roberto Lyra Filho, em sua concepção dialética do direito pautada no pluralismo jurídico. Daí que adota a proposta não dogmática do Direito Achado na Rua, nos sentidos de legitimidade atribuídos ao direito a partir das práticas sociais, da rua, para a construção de uma rede urbana popular e para a própria criação do direito à cidade, em movimento, bem como no seu objetivo central de (i) determinar o espaço político no qual se desenvolvem as práticas sociais que enunciam direitos ainda que contra legem; (ii) definir a natureza jurídica do sujeito coletivo capaz de elaborar um projeto político de transformação social e elaborar a sua representação teórica como sujeito coletivo de direito; e (iii) enquadrar os dados derivados destas práticas sociais criadoras de direitos e estabelecer novas categorias jurídicas.
São esses referenciais que vão lhe dar confiança para aventar categorias fundantes de sua análise, a de espaço e a de sujeito, retiradas da fortuna crítica que em O Direito Achado na Rua, que tem levado a alargar, na ação dos sujeitos coletivos de direitos e suas práticas instituintes de novos direitos, a demarcação de novos espaços sociais, para além da metáfora da rua, e assim discernir, ressignificando, espaços críticos como direitos achados na rede, nas águas, nas aldeias, nas florestas, no campo, no cárcere, no manicômio, no armário, no gueto…na noite. Uma construção que dialoga com os sujeitos em seu protagonismo inter-subjetivo quando assumem a titularidade coletiva de direitos.
O próprio Cloves e seus co-organizadores da obra O direito para além do capital: janelas e trilhas / Paulo Rosa Torres, Carlos Eduardo Soares de Freitas, Cloves dos Santos Araújo, Celso Antonio Favero, organizadores. – Feira de Santana: UEFS Editora, 2023, 488 p., entre eles Celso Antonio Favero presente aqui nesta Banca, já havia sinalizado para essa aproximação, quando incluíram nesse livro e o justificaram, meu ensaio elaborado com Sara da Nova Quadros Côrtes, “Direito achado na rua e perspectivas para além do capital”. Sobre esse trabalho conferir minha recensão em Lido para Você: http://estadodedireito.com.br/o-direito-para-alem-do-capital-janelas-e-trilhas/.
Com efeito, tal como anotaram, o ensaio, após contextualizar o momento da escrita acerca das reflexões aqui correntes afetadas pelo quadro geral de “intenso sofrimento na Pandemia do COVID-19 e agudização da crise nacional brasileira” e, mais especificamente, pelo balanço “autorreflexivo da crítica coletiva que ocorreu no evento internacional realizado entre 11 e 13 de dezembro de 2019 na Universidade de Brasília, denominado o Direito como Liberdade: 30 Anos de O Direito Achado na Rua”, propõem a abertura de um diálogo crítico e autorreflexivo para interrogar sobre o lugar da experiência do Direito Achado na Rua, no sentido “propor projetos de vida para a humanidade em geral. Aludem a três eixos discursivos que situam, justificam, refletem e abrem janelas para o agir emancipatório: fundamentos e possibilidades; retomada da travessia e as questões emergentes; o “‘achado’ como ‘elo fraco’ do Direito Achado na Rua.” E, nesse passo, o relevo para as dimensões imperativas na base do Direito Achado na Rua, como: assumir o sujeito coletivo como central nos movimentos de luta, interpelar os sistemas formais estatais e burocráticos do direito para humanizar a formação jurídica, promover a coparticipação, dentre outras.
Eis que o próprio Cloves, agora em co-autoria com Sara Côrtes, antecipando o que se põe na tese, vêm a falar em espaço político, como o território no qual “sujeitos podem adquirir consciência coletiva, estabelecer redes, operar afetos, desenvolver práticas sociais, visibilizar e consolidar direitos, conduzir transformação social emancipadora, estruturar solidariedade e materializar alternativas contra-hegemônicas, como sugere o percurso de O Direito Achado na Rua”. Espaços que se afiguram, ontologicamente, como eu com meu colega co-autor Antonio Escrivão Filho (Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos. Belo Horizonte: Editora D‘Plácido, 2016), sugerimos se constituirem lugares de criação e realização do direito, apresentado e posto à disposição do povo na qualidade de sujeito histórico com capacidade criativa, criadora e instituinte de direitos, e, metaforicamente, como a esfera pública onde se reivindica a cidadania e os direitos, onde se agregam cidadãos, onde se lhes protege da dispersão e da desmobilização.
Esses são os espaços de cidadania, como sustenta Milton Santos, enquanto compreendem territórios como lugares em disputa na construção das cidades, quando se envolve relações humanas e suas produções materiais, formando uma geografia cidadã e ativa, conforme lembram Sara da Nova Quadros Cortes e Cloves Araújo, em belo texto – “Dialética Social no Rastro dos Pensamentos de Roberto Lyra Filho e de Milton Santos: aportes teóricos no campo do direito e da geografia” – também publicado nesse dia 1º de setembro, na Revista Direito.UnB (volume 6, número 2 – maio/agosto 2022), com um dossiê em homenagem a O Direito Achado na Rua e a Contribuições para a Teoria Crítica do Direito.
Aplicadas essas noções à cidades ou à territorialização que se dá no campo, para Cloves, na tese, as obras públicas e as outras ações dos sujeitos sociais no processo de valorização do espaço contribuem para mudar a localização do lugar em relação aos outros lugares. A relação entre lugar e localização, como coisas diferentes, na abordagem de Milton Santos, é relevante para a compreensão do que acontece no âmbito desses processos sociais de reconfiguração territorial da região e da produção de novos espaços. Para este autor, “O lugar pode ser o mesmo, as localizações mudam. E lugar é o objeto ou conjunto de objetos. A localização é um feixe de forças sociais se exercendo em um lugar”.
Mas a minha atenção mais definida na tese de Cloves se dá sobre a designação da categoria sujeito de direito e, mais distinguidamente, a categoria sujeito coletivo de direito. Essa é uma categoria fundante de O Direito Achado na Rua enquanto concepção político-teórica.
A tese já estaria depositada e portanto sem que tivesse acessível obra que já está publicada mas que ainda não foi lançada: O Direito Achado na Rua. Sujeitos Coletivos: Só a Luta Garante os Direitos do Povo!, volume 7, Coleção Direito Vivo. Ana Cláudia Mendes de Figueiredo, Andréa Brasil Teixeira Martins, Edilane Neves, José Geraldo de Sousa Junior, José Roberto Nogueira de Sousa Carvalho, Luana Nery Moraes, Shyrley Tatiana Peña Aymara, Vítor Boaventura Xavier (Organizadores). Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2023, 428 p.
Penso que a Apresentação, para cuja redação colaborei como co-autor expõe e situa a obra. Dela se vê que o livro, O Direito Achado na Rua. Sujeitos Coletivos: Só a Luta Garante os Direitos do Povo!, volume 7, da Coleção Direito Vivo, da Editora Lumen Juris, é o resultado do esforço continuado de reflexão teórico-prática sobre o Direito, promovida por pesquisadores e pesquisadoras, estudantes, professores e professoras, em atividades de ensino, pesquisa e extensão, que formam o acervo crítico que dá identidade à Coleção Direito Vivo.
A obra reúne ensaios preparados por participantes do programa acadêmico de O Direito Achado na Rua – que é a designação geral dos seis volumes já publicados e que tem continuidade no trabalho desenvolvido no segundo semestre de 2022, na Universidade de Brasília (nas Pós-graduações em Direito – Faculdade de Direito e Direitos Humanos e Cidadania – Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares), sob a coordenação do professor José Geraldo de Sousa Junior, também regente da disciplina O Direito Achado na Rua, vinculada à linha de pesquisa com a mesma denominação.
Deste modo, apesar das múltiplas trajetórias dos autores e das autoras, o elemento aglutinador dentre suas histórias é o fato de sua participação num programa comum e de assumirem o compromisso autoral de elaboração narrativa sobre uma questão também compartilhada, definida para mobilizar a disponibilidade analítica de sua atuação no coletivo assim constituído. O componente que mantém a coesão do livro, portanto, não é a formação dos autores e das autoras, mas, sim, a temática da obra, as estratégias para a sua composição, com etapas preparatórias de leituras e recensões sobre textos previamente discutidos, de modo individual num primeiro momento e em seminários numa etapa subsequente.
Assim, os artigos do livro tratam, cada um do seu modo, da categoria jurídica do sujeito coletivo de direito. Com cerca de três décadas desde a formulação do conceito, tal como indicado nessas leituras preparatórias, a obra em questão serve como uma espécie de compêndio que promove balanços, inovações e direcionamentos acerca da fortuna crítica dessa categoria e de seu alcance nos âmbitos da teoria e da práxis.
A identidade política dos movimentos sociais e a possibilidade de que eles venham a se investir de uma titularidade jurídica coletiva, ou seja, de atuarem como um sujeito coletivo de direito, são questões caras para a política e para o ensino jurídico. Assim, as reflexões com o pano de fundo teórico do Humanismo Dialético e d’O Direito Achado na Rua são, por sua vez, uma referência para a leitura crítica da realidade.
Os textos foram organizados em quatro eixos, tendo em vista o modo como os ensaios foram construídos em sua elaboração autoral ou co-autoral, processo que acabou por pautar os diferentes enfoques e as aproximações que as leituras lograram trazer para a atualização, a revisitação, as aplicações de um protagonismo do sujeito coletivo de direito, na pluralidade de múltiplos desafios para o seu reconhecimento teórico e político no movimento complexo do social.
Nessas condições, coube às autoras e aos autores e às organizadoras e aos organizadores desta obra enunciar 4 eixos, que, conforme o seu descritivo, permitiram agrupar e aproximar os ensaios que formam o sumário:
Eixo 1 – Discussões teórico-filosóficas sobre a categoria sujeito coletivo de direito;
Eixo 2 – Aproximações sobre a noção de sujeito coletivo de direito;
Eixo 3 – Sujeitos coletivos de direito achados nos territórios indígenas e no campo;
Eixo 4 – Lutas dos movimentos das pessoas com deficiência, negros, mulheres e contra a ditadura.
Embora o desenho editorial do livro, no balizamento da Coleção e na linha teórica que decorre da concepção e da prática de O Direito Achado na Rua, tenha indicado um fio diretor para “validar” as opções temáticas e os enfoques de cada autor ou autora ou grupos de autores ou autoras – portanto, um compromisso político-teórico inafastável que quer se inscrever na síntese conceitual que designa O Direito Achado na Rua, vale dizer, conceber o Direito, seguindo a diretriz formulada por Roberto Lyra Filho, como “a enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade” –, é possível encontrar num texto ou noutro alguma singularidade autoral que não seja acordo unânime da edição sobre a fidelidade a esse enunciado.
Contudo, todos os textos, produzidos segundo o protocolo da autonomia subjetiva de quem os assina, vieram para a edição porque neles, em contexto, esse protocolo, na linha dos princípios, foi lealmente seguido, guardando os ensaios o objetivo de contribuir para a emancipação do humano, contra todas as formas de opressão ou de espoliação, no engajamento para a construção de uma sociedade democrática que se realize enquanto projeto de reconhecimento dos direitos humanos que designam o protagonismo instituinte dos sujeitos coletivos de direito.
No meu ensaio de Introdução, entretanto, recupero o itinerário dessa categoria cara, em seus registros antecedentes, discorrendo sobre O Sujeito Coletivo de Direito: uma Categoria Fundante de o Direito Achado na Rua que, na condição de texto de Introdução à Obra, localiza e rastreia o percurso de um conceito forte, sua concepção e prática como contribuição à teoria crítica do Direito, de seus primeiros enunciados nos anos 1980 ao seu protagonismo, inscrito nos movimentos sociais, e sua ação democrática e instituinte atual para criar direitos. Aliás, os estudantes de graduação em Direito da UnB, na disciplina Pesquisa Jurídica, têm desenvolvido verbetes para a wikipedia, articulados à perspectiva crítica de O Direito Achado na Rua, e um desses verbetes é exatamente Sujeitos Coletivos de Direito, por eles caracterizado como “aquele que adquire fundamento jurídico por meio da ação coletiva dos movimentos sociais. Esse conceito envolve o entendimento da atuação dos movimentos sociais, os quais conciliam a bagagem histórica e o conhecimento prático de suas reivindicações no contexto político e social em que se encontram. Dessa forma, os movimentos sociais coletivos são protagonistas nos processos de transformação social” (https://pt.wikipedia.org/wiki/Sujeito_coletivo_de_direito).
Note-se que o Eixo 3 – Sujeitos coletivos de direito achados nos territórios indígenas e no campo, reúne ensaios que guardam proximidade com a tese de Cloves e que podem ser úteis para agregar sobretudo referências bibliográficas que contribuam para a bem posta tese, no seu contexto, prescindindo desses elementos para a sua completude.
Até porque, e esse é o ponto da tese que foco para justificar minha participação na Banca, em que localizo uma significativa contribuição de Cloves. De resto, por ele próprio posta em relevo, com uma convicção que dá como pressuposta a relevância do achado de sua pesquisa: os sujeitos sociais em conflito.
Na conclusão Cloves reafirma a centralidade do “conceito de sujeitos sociais diversos e contraditórios que se relacionam nos processos sociais de produção e valorização do espaço”.
E é categórico ao afirmar, também em conclusão, p. 292, até me trazendo para apoio de suas considerações, que
É na totalidade dialética em movimento permanente que deparamos com as contradições decorrentes das relações socioterritoriais que produzem espaços hegemônicos ou espaços de opressão, através dos grandes projetos direcionados à produção capitalista, nas diversas conjunturas que mudam as localizações dos lugares. Mas é também neste mesmo movimento que são produzidos contraespaços ou espaços de liberdade, através dos diversos levantes populares identificados nos diversos momentos históricos da formação espacial brasileira (MOREIRA, 2014). E é também neste mesmo movimento dialético da história que os levantes populares conseguem impulsionar a produção do Direito como Liberdade (SOUSA JUNIOR, 2011).
Contudo, de minha leitura da tese restou uma ligeira impressão de ambiguidade o que Cloves formula na p. 31:
na medida em que o processo de apreensão do objeto e do método foi se tornando mais claro, na qualificação e no diálogo com os sujeitos sociais em conflito, e com pesquisadores do tema, percebi a necessidade de dar visibilidade a sujeitos sociais diversos (camponeses/posseiros, geraizeiros, agricultores familiares, latifundiários, empresários, agronegociantes, mineradores, Estado) que participam direta ou indiretamente do processo de produção do espaço e das relações nos conflitos em estudo.
Deste modo, não se trata de focar apenas no Judiciário, mas, principalmente, nos sujeitos sociais diversos que participam e estruturam as teias, com suas fraturas, das relações sociais em estudo.
O próprio Cloves, na sua condição de intelectual orgânico do Coletivo (Grupo de Pesquisa) O Direito Achado na Rua, e nessa atribuição, durante o Seminário Internacional Direito como Liberdade – 30 anos do Projeto O Direito Achado na Rua (2019), se distinguiu como garante de uma posição em plano de relatoria – Seção VIII – Movimentos Sociais e os Desafios da Assessoria Jurídica e Advocacia Popular, in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al (orgs). O Direito Achado na Rua – volume 10: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade. Brasília: Editora UnB/Editora OAB Nacional, 2021. Texto de síntese da Seção: Assessoria Jurídica Popular em Tempos de Barbárie: resistência, luta e memória histórica. Cloves dos Santos Araújo, Érika Lula de Medeiros, Helga Martins de Paula, Ludmila Cerqueira Correia e Pedro Teixeira Diamantino (p. 599-609; em destaque p. 607).
E nesse texto, está afirmado:
Dessas experiências repletas de abordagens com os pés no chão, o direito revela-se uma criação sociopolítica, econômica, cultural e, decisivamente, intersubjetiva, coletiva, pluralista, conflitiva, processual. Nas experiências trazidas, o direito passa a ser refletido com corpos e olhares deslocados dos gabinetes para as lutas e conflitos, criando-se um espaço de diálogo horizontal em torno de O Direito Achado na Rua como referência, justamente por ser uma concepção forjada no seio da teoria crítica no Brasil e que gravita em torno da atuação jurídica dos novos sujeitos coletivos e das experiências sociojurídicas de criação e defesa de direitos por estes desenvolvidas.
Minha questão para o Cloves, assim, é para que esclareça essa promiscuidade que põe na mesma identificação de subjetidade ativa coletiva – camponeses/posseiros, geraizeiros, agricultores familiares, latifundiários, empresários, agronegociantes, mineradores, Estado .Tal como os estudantes na wikipedia, indicam, a caracterização de sujeito coletivo de direito, a partir de O Direito Achado na Rua, não permite essa extensão descaracterizadora.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
Crisis de Representación Política y Demandas Indígenas para la Descolonización del Estado
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Dosier Perú. Crisis de Representación Política y Demandas Indígenas para la Descolonización del Estado. Instituto Internacional de Derecho y Sociedad (IIDS). (2023). Lima, junio 2023, pp. 282.
No final do ano passado (2022), foi publicado, em formato e-book, o livro Sociologia do novo constitucionalismo latino-americano: debates e desafios contemporâneos / [Organizadores], Gustavo Menon, Maurício Palma, Douglas Zaidan. –São Paulo: Edições EACH, 2022.1 ebook ISBN 978-65-88503-38-6 (recurso eletrônico) DOI 10.11606/97865885033861 Acesso: https://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/view/939/851/3088.
Contribui em co-autoria com meu colega professor da Universidade Federal Fluminense do Rio de Janeiro, Gladstone Leonel da Silva Junior, com um artigo que abre essa obra e traz reflexões realizadas há alguns anos cujo título é: Constitucionalismo Achado na Rua a Partir da América Latina: Elementos Iniciais. O livro foi publicado numa conjuntura interpelante, que em toda a América Latina expõe momentos tensos, no embate entre o horizonte histórico de descolonização e as recrudescências autoritárias do processo capitalista de acumulação, que em sua exacerbação neoliberal, fomenta a emergência de radicalismos políticos ao extremo da direita ideológica.
No Brasil, felizmente, e em método democrático movido pelo sufrágio, estamos agora na transição para o resgate da democracia e dos direitos humanos ao impulso utópico da emancipação. Na Argentina, que mais cedo encaminhou-se para esse movimento, há ainda sobressaltos e a vice-presidenta Cristina Kirchner acaba de ser sentenciada com o acréscimo de “inabilitação perpétua” de seus direitos políticos, em outra extravagância do lawfare, que embora desmascarado em sua ocorrência no Brasil para impedir o Presidente Lula de participar de eleições, e não tenha podido impedir sua eleição para um terceiro mandato presidencial, ainda produz consequências graves.
A publicação do livro também coincidiu com reflexos dessa conjuntura no Peru, com a destituição do Presidente Pedro Castillo e logo a sua prisão, num primeiro momento, a partir da comunicação corporativa e muitos analistas, entre eles progressistas, convirjindo para uma interpretação que desabona Castillo, caracterizando-o como protagonista de um auto-golpe. Conquanto, na América Latina outras vozes sugeriam que se podia identificar mais um movimento da direita para arrancar da governança um dirigente de extração popular.
Nesse diapasão a manifestação do presidente mexicano Andrés Manuel López Obrador que via na crise política do Peru “los intereses de las élites económicas y políticas” que, desde el inicio del Gobierno de Pedro Castillo, han mantenido “un ambiente de confrontación y hostilidad” en su contra” (https://elpais.com/mexico/2022-12-07/lopez-obrador-achaca-la-crisis-en-peru-a-los-intereses-de-las-elites-economicas-y-politicas.html).
Assim que, pondo sob suspeição uma difundida convergência de posicionamentos que se associaram para afastar o presidente, numa orquestração de hostilidades, logo começaram a crescer las protestas en Perú que piden disolver el Congreso y liberar a Pedro Castillo (https://actualidad.rt.com/actualidad/451329-crecen-protestas-peru-piden-disolver-congreso-liberar-castillo): “Los seguidores de Castillo demandan que lo liberen y lo restituyen en la Presidencia, que Dina Boluarte salga de la jefatura de Estado tras su designación como mandataria por el Parlamento, que el Congreso sea disuelto, que se convoque a una Asamblea Nacional Constituyente para reformar el país y se realicen elecciones generales”.
Entre essas manifestações também as Rondas Campesinas, a mais autônoma e representativa organização de base popular, pela voz do presidente da CUNARC-Perú Santos Saavedra Vasquez, também pediram Assembleia Constituinte Plurinacional.
O fato é que o País ficou convulsionado e com um acumulado de mortes devido à repressão policial e militar. Nesse contexto, o Congresso aprovou parecer para antecipar as eleições, conforme proposta do Executivo, para abril de 2024, mas a consulta para Assembleia Constituinte não foi aprovada. Finalmente, o Congresso não aprovou nenhuma eleição antecipada.
O comentário acima, feito no calor dos tumultos que se seguiram ao afastamento de Castillo, é de minha cara amiga Raquel Yrigoyen Fajardo, diretora do IIDS – Instituto Internacional de Derecho y Sociedad (www.derechoysociedad.org), a mais engajada instituição de sociedade civil que assessora os povos originários no Perú, na defesa intransigente dos direitos humanos já ao largo de vinte anos. Ela o fez em mensagem particular que me dirigiu, quando procurei me socorrer de sua interpretação sobre os acontecimentos, na confiança de seu alto discernimento. O IIDS, em seguida, publicou, com o apoio de todas as entidades organizativas desses povos, uma “Agenda de los Pueblos para el Bicentenário”. A minha questão posta para foi “Qué está pasando en el Perú?
Na verdade, naquela semana, em dezembro de 2022, Raquel esteve em Brasília participando de um círculo de reflexões sobre os direitos dos povos indígenas e quilombolas, e os desafios da descolonização, no Bicentenário da sua independência, em Simpósio organizado pela OIT e o Ministério Público do Trabalho.
Então, tive o privilégio de ouvir dessa acadêmica e militante, consultora da OEA e das Nações Unidas, que acabava de ser convidada pelo Papa Francisco para um colóquio sobre Colonialismo, Descolonização e Neocolonialismo (colóquio a que esteve presente no Vaticano agora em março de 2023, juntamente com os mais destacados juristas da América Latina e da África, sobretudo e cuja conferência brilhante pude assistir virtualmente), uma completa e precisa avaliação sobre o que está se passando no Perú, algo que interessa a toda a Região.
De memória retive, do que me disse Raquel, naquela altura. O que está acontecendo e o que fazer no Peru? Nesta hora no Peru, é necessária uma reflexão-ação participativa sobre vários assuntos prioritários como estes:
1) sobre o tema imediato da violência:
– ao Estado, exigimos que cesse a violência e proíba o uso de armas letais; que investigue e sancione responsáveis e instaure o diálogo;
– à sociedade, pedimos-lhe: solidariedade imediata com familiares de mortos, feridos; aconselhamento a detidos e acolhimento-apoio a organizações sociais e indígenas em mobilização pacífica;
2) Sobre a crise do executivo e a rejeição do Congresso:
– encontrar saídas legais já para as eleições gerais, onde as organizações de povos possam participar e os seus direitos sejam garantidos; isto requer acordos políticos e modificações legais e uma disposição final transitória da Constituição. titulação que o habilite.
– Vale lembrar que existe, por exemplo, o Art. 191 da Constituição que garante a participação mínima de género bem como de povos originários, CC e CN nos governos regionais e locais, e não foi aplicado, e o Art. 6 b da Convenção 16. 9 da OIT exige a participação dos povos em todas as instâncias eletivas e administrativas susceptíveis de os afetar, mas nunca foi implementada! ,
Sobre este tema, urge o apoio da academia, para formular as saídas legais para estas exigências políticas;
3) sobre a nova Constituição:
É necessária a convocação de um referendo para consultar por uma Assembleia Constituinte Paritária e com a participação de organizações de povos indígenas ou originários e afroperuanos e organizações sociais.
– Isso poderia ser feito através de uma disposição final transitória da Constituição, o que requer a aprovação da lei pelo Congresso e um referendo, que pode ser convocado no mais curto prazo possível, para que as eleições gerais sejam e aproveite para esta consulta.
Aqui também urge o apoio da Academia e das organizações irmãs de outros países para considerar as melhores experiências da região.
4) Concertar uma agenda mínima de transição. – Enquanto a agenda consensual estiver sendo executada, promover um acordo de paz e adotar medidas que viabilizem essa participação e direitos.
– que seja acordado que nenhum ator político (executivo ou congresso) tome decisões que comprometam o futuro do país, como aprovar a prorrogação de concessões mineiras ou petrolíferas por mais 20-30 anos, etc.; que não se aproveite estas reformas constitucionais para “colar” outras já rejeitadas pela população e que exigem ser matéria da discussão constituinte (como a bicameralidade ou a reeleição de congressistas; outras medidas ou reformas que generalizam mais indignação social.
Convidamos a continuar procurando saídas! E agora que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos anuncia a sua visita ao Peru, esperamos que desta vez sim, se reúna com as organizações de povos e não apenas com as organizações que o Estado lhe encaminha.
Eis que agora, o IIDS publica esse Dosier Perú. Crisis de Representación Polítca y Demandas Indígenas para la Descolonización del Estado, um alentado e circunstanciado documento de análise, memória e proposições, produzido pelo esforço mobilizado de um dos mais importantes centros de estudos e pesquisas do continente, mas realizado por uma equipe de investigação e de redação coordenada pelas irmãs Yrigoyen Fajardo Raquel e Soraia: Waldo Alor Loayza, Yasser Benancio Vásquez, Brian Colonia Mendoza, Renato León Mazza; contando com a coordenação de impressão da estimada Araceli H. Guillermo Ybárcena. Anoto também a destacada ilustração da portada da edição, em reprodução do óleo sobre lienzo (40x 30 cm) – La marcha de los pueblos originários – de mais um irmão Yrigoyen Fajardo, o prestigiado pintor Mauro, autor muito presente em outras ilustrações de publicações do IIDS, além das galerias de arte do Perú.
Do que trata o Dossiê, cuida o seu resumo:
Actualmente, el Perú vive una enorme convulsión política, desatada desde el 7 de diciembre del 2022 a raíz de una secuencia de actos inconstitucionales de todos los poderes públicos; con el resultado de la violación de la voluntad popular y la alteración del orden democrático constitucional y hemisférico.
Ello fue contestado con movilizaciones indígenas a nivel nacional, que hicieron demandas políticas.
Las manifestaciones iniciaron en las regiones del Sur del Perú, donde se concentra el mayor porcentaje de población indígena (76-91%) y donde Pedro Castillo obtuvo el mayor porcentaje de votos (83-89%). En vez de respuestas políticas, el Gobierno de Dina Boluarte respondió com represión. Las regiones indígenas son las que concentran el 82% de víctimas fatales, como consecuencia de la represión policial y militar.
Este Dosier analiza, desde un enfoque jurídico-político, los hechos que han dado lugar a la crisis de representación y alteración del orden democrático en el país, y que explican la demanda de los pueblos indígenas por respeto y restitución de derechos políticos.
Asimismo, analiza la historia de exclusión constituyente de los pueblos indígenas y fundamenta la demanda de los pueblos de participar en una Asamblea Constituyente con base en los derechos que el derecho internacional ya reconoce a los pueblos indígenas y tribales. También da cuenta de uma propuesta normativa de los pueblos al respecto.
Y, finalmente, analiza las graves violaciones a los derechos humanos que se han producido a raíz de la represión de las movilizaciones indígenas y que explican la demanda de cese del genocidio, la criminalización y la estigmatización de los indígenas como “terroristas” por hacer reclamos políticos.
Em suas 270 páginas, conforme um índice geral desdobrado em um analítico repertório, que parte de um prólogo e de uma apresentação das professoras coordenadoras, o Dossiê apresenta o mais completo panorama da crise atual ou atualizada que vive o Perú e formula um programa para a superação da Crise de Representação Política e as Demandas de Restituição de Direitos Políticos que desafiam as forças democráticas do país.
Logo de caracterizar a Exclusão Histórica dos Povos e as Demandas para uma Assembleia Constituinte Plurinacional, o Dossiê, em pormenor, expõe as Graves Violações de Direitos Humanos e as Demandas para Cessar o Genocídio de Povos Indígenas. E logo as Propostas e Demandas de Participação Política de Povos Indígenas e Afroperuanos no Estado. O Dossiê se completa com uma Infografías: Cronologia dos Fatos e Referências Bibliográficas que documentam a narrativa e as Conclusões do Documento.
Sem hierarquizar as participações, detenho-me nas anotações que procedem de Raquel Yrigoyen Fajardo, com quem aprendi a aferir as mais eloquentes experiências constitucionais na América Latina, incluindo o Canadá, me valendo de seu modelo de classificação dos sistemas constitucionais latino-americanos. Ela alude a um primeiro ciclo caracterizado como “constitucionalismo multicultural” (Canadá, 1982), (Guatemala, 1985), (Nicarágua 1987) e (Brasil, 1988). O segundo ciclo referente ao “constitucionalismo pluricultural” (Colômbia, 1991), (México e Paraguai, 1992), (Peru, 1993), Bolívia e Argentina, 1994), (Equador, 1996 e 1998) e (Venezuela, 1999). E o terceiro ciclo, finalmente, é reconhecido pelo alcance de um “constitucionalismo plurinacional”, a partir das inovadoras Constituições do (Equador, 2008) e (Bolívia, 2009), nas quais, diz Raquel, já se trata de um ciclo pluricultural, plurinacional e ecológico, nas quais “se pluraliza a definição de direitos, a democracia e a composição dos órgãos públicos e as formas de exercício do poder”.
Raquel Yrigoyen, que já inscrevera em sua concepção a tese de um constitucionalismo plurinacional, tem avançado fortemente, desde seu diálogo com as cosmogonias e cosmovisões dos povos ancestrais, em direção a um constitucionalismo ecológico ou eco-constitucionalismo, sem contudo abdicar de suas teses originais sobre o pluralismo jurídico.
Ainda com foco da leitura do pluralismo jurídico, desde as indicações de Raquel Yrigoyen, é que se torna possível compreender propriamente o que tem sido designado como pluralismo jurídico igualitário (consulte-se entre outros estudos, os escritos fundamentais com aberturas inéditas para a aplicação dessa categoria, de Boaventura de Sousa Santos – sempre presente nas atividades do IIDS -, até o mais recente de Antonio Carlos Wolkmer e de Maria de Fatima S. Wolkmer, se dirija aos povos indígenas e originários, essa acepção, orientada “por uma racionalidade jurídica diferente”, que nela, alcança também os ronderos campesinos, em enfoque autoral bem conhecido, pois como afirma Bettina Sonza, um “claro ejemplo de racionalidade jurídica diferente, resulta em palavras de Raquel Yrigoyen, la de las Rondas Campesinas, que si bien nacen em uma primera etapa, como respuesta a uma demanda de seguridade, frente al robo y el abigeato se traduce finalmente, em prácticas sociales de auto administración de justicia” (SONZA, Bettina. El outro Derecho ‘Rondas Campesinas’ em la Selva y Sierra Peruana. In ETHOS. Boletin de Antropologia Juridica, ano 2 – número 4. Lima: Universidad de Lima/Facultad de Ciencias Humanas/Facultad de Drecho y Ciencias Políticas/Centro de Investigación Jurídica, 1993).
Agradeço a confiança da equipe do IIDS ao me pedir um comentário que pudesse compor a obra no Prefácio e assim, de me associar a outros interpretes da conjuntura político-constitucional latino-americana: 1. Roberto Gargarella (Argentina); 2. Silvina Ramírez (Argentina); 3. Ramiro Ávila Santamaría (Ecuador); 4. Carlos F. Marés de Souza Filho (Brasil); 5. María Elena Attard (Bolivia).
O que encontro no Dossiê, ali tomando o seu pulso pela diretriz senti-pensante que lhe imprime Raquel Yrigoyen Fajardo, é o que pude acompanhar pela transmissão dos painéis, importantes participações, entre elas, de convidados pelo Papa Francisco, pela Pontifícia Academia de Ciências Sociais do Vaticano e pelo Comitê Pan-Americano de Juízes para os Direitos Sociais e Doutrina Franciscana, da exposição dessa estimada amiga, diretora do IIDS – Instituto Internacional Derecho y Sociedad, de Lima (Peru), com o qual e com ela temos importante intercâmbio de cooperação a partir da Faculdade de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, da UnB. Raquel apresentou elogiada exposição sobre “Pluralidade jurídica igualitária e descolonização da justiça, desde a perspectiva dos direitos dos povos indígenas”, tema que tem sido a base de nosso intercâmbio. Segundo ela própria, discorrer sobre esse tema permitiu“trazer reflexões que vêm dos povos originários do Peru e de outros lugares, e da equipe do Instituto Internacional de Direito e Sociedade-IIDS”.
Com ela, sigo considerando o quanto é importante “recordar que o constitucionalismo é permanente tentativa de se instaurar e se efetivar concretamente a exigência idealizante que inaugura uma modernidade no nível da organização de uma sociedade complexa, incapaz de lançar mão de fundamentos absolutos e que, por isso, só pode legitimar seu próprio sistema de direitos na medida em que os potenciais podem se reconhecer como coautores e autoras das normas que os regem. Ou seja, ou o direito é constitucionalmente achado na rua e nas ruas, e com as ruas, é construído e reconstruído de forma plural e inclusiva, ou, sem dúvida, tende-se a privatizar o próprio Estado, mediante a colonização do direito por uma lógica simplista binária de cunho plebiscitário e nada democrática, pois infensa a qualquer eficaz debate”.
O que se assiste no Perú, conforme mostra o Dossiê, é uma situação de risco. A mesma situação que em sua recente visita ao Brasil disse ter encontrado a subsecretária-geral das Nações Unidas e Assessora Especial para Prevenção do Genocídio Alice Wairimu Nderitu.
Sua declaração, ao final da visita ela foi contundente e adverte para o que se passa em nossos países. De fato, esses fatores, agravados pela redução de povos e comunidades, podem chegar a caracterizar crimes de genocídio e atrocidades em relação à situação dos povos indígenas e afrodescendentes e outros grupos de risco, pois há registros de graves violações do direito internacional dos direitos humanos contra esses grupos; situações de instabilidade, principalmente no que se refere ao conflito entre indígenas e fazendeiros; uso excessivo da força pelas agências de segurança, especialmente contra pessoas negras; tensões intergrupais entre comunidades indígenas e outros grupos; e uma série de políticas que facilitaram a discriminação e o abuso desses grupos protegidos com base em sua identidade.
No Brasil, como no Perú, a seguir a preocupação da Sub-Secretária, ou aquelas ocorrências identificadas no Dossiê, exigem-se medidas urgentes por parte das autoridades, da sociedade civil, da mídia, das Nações Unidas e de outros atores relevantes para corrigir, para as prevenir, para estabelecer responsabilidades e para promover reparações.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
Sujeitos Coletivos: Só a Luta Garante os Direitos do Povo!
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
O Direito Achado na Rua. Sujeitos Coletivos: Só a Luta Garante os Direitos do Povo!, volume 7, Coleção Direito Vivo. Ana Cláudia Mendes de Figueiredo, Andréa Brasil Teixeira Martins, Edilane Neves, José Geraldo de Sousa Junior, José Roberto Nogueira de Sousa Carvalho, Luana Nery Moraes, Shyrley Tatiana Peña Aymara, Vítor Boaventura Xavier (Organizadores). Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2023, 428 p.
No card, com a notícia de que em breve se fará o lançamento, se apresenta a nova obra da Coleção Direito Vivo, volume 7: O Direito Achado na Rua: Sujeitos Coletivos. Só a Luta Garante os Direitos do Povo!. Também no card, a nominata dos organizadores e organizadoras-autores e autoras e o rol de todos e todas que contribuíram como autores e autoras com artigos e ensaios para a edição.
E logo a seguir, o chamado para o primeiro lançamento presencial, dia 15/6, no Café Utopia, no Beijódromo (Memorial Darcy Ribeiro), no campus da UnB. Veja-se o chamado que fiz, a pedido da Editora Lumen Juris, para esse lançamento: https://www.youtube.com/watch?v=ggg45G4bpFg.
Penso que a Apresentação, para cuja redação colaborei como co-autor expõe e situa a obra. Dela se vê que o livro, O Direito Achado na Rua. Sujeitos Coletivos: Só a Luta Garante os Direitos do Povo!, volume 7, da Coleção Direito Vivo, da Editora Lumen Juris, é o resultado do esforço continuado de reflexão teórico-prática sobre o Direito, promovida por pesquisadores e pesquisadoras, estudantes, professores e professoras, em atividades de ensino, pesquisa e extensão, que formam o acervo crítico que dá identidade à Coleção Direito Vivo.
A obra reúne ensaios preparados por participantes do programa acadêmico de O Direito Achado na Rua – que é a designação geral dos seis volumes já publicados e que tem continuidade no trabalho desenvolvido no segundo semestre de 2022, na Universidade de Brasília (nas Pós-graduações em Direito – Faculdade de Direito e Direitos Humanos e Cidadania – Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares), sob a coordenação do professor José Geraldo de Sousa Junior, também regente da disciplina O Direito Achado na Rua, vinculada à linha de pesquisa com a mesma denominação.
Deste modo, apesar das múltiplas trajetórias dos autores e das autoras, o elemento aglutinador dentre suas histórias é o fato de sua participação num programa comum e de assumirem o compromisso autoral de elaboração narrativa sobre uma questão também compartilhada, definida para mobilizar a disponibilidade analítica de sua atuação no coletivo assim constituído. O componente que mantém a coesão do livro, portanto, não é a formação dos autores e das autoras, mas, sim, a temática da obra, as estratégias para a sua composição, com etapas preparatórias de leituras e recensões sobre textos previamente discutidos, de modo individual num primeiro momento e em seminários numa etapa subsequente.
Assim, os artigos do livro tratam, cada um do seu modo, da categoria jurídica do sujeito coletivo de direito. Com cerca de três décadas desde a formulação do conceito, tal como indicado nessas leituras preparatórias, a obra em questão serve como uma espécie de compêndio que promove balanços, inovações e direcionamentos acerca da fortuna crítica dessa categoria e de seu alcance nos âmbitos da teoria e da práxis.
A identidade política dos movimentos sociais e a possibilidade de que eles venham a se investir de uma titularidade jurídica coletiva, ou seja, de atuarem como um sujeito coletivo de direito, são questões caras para a política e para o ensino jurídico. Assim, as reflexões com o pano de fundo teórico do Humanismo Dialético e d’O Direito Achado na Rua são, por sua vez, uma referência para a leitura crítica da realidade.
Os textos foram organizados em quatro eixos, tendo em vista o modo como os ensaios foram construídos em sua elaboração autoral ou co-autoral, processo que acabou por pautar os diferentes enfoques e as aproximações que as leituras lograram trazer para a atualização, a revisitação, as aplicações de um protagonismo do sujeito coletivo de direito, na pluralidade de múltiplos desafios para o seu reconhecimento teórico e político no movimento complexo do social.
Nessas condições, coube às autoras e aos autores e às organizadoras e aos organizadores desta obra enunciar 4 eixos, que, conforme o seu descritivo, permitiram agrupar e aproximar os ensaios que formam o sumário:
Eixo 1 – Discussões teórico-filosóficas sobre a categoria sujeito coletivo de direito;
Eixo 2 – Aproximações sobre a noção de sujeito coletivo de direito;
Eixo 3 – Sujeitos coletivos de direito achados nos territórios indígenas e no campo;
Eixo 4 – Lutas dos movimentos das pessoas com deficiência, negros, mulheres e contra a ditadura.
Embora o desenho editorial do livro, no balizamento da Coleção e na linha teórica que decorre da concepção e da prática de O Direito Achado na Rua, tenha indicado um fio diretor para “validar” as opções temáticas e os enfoques de cada autor ou autora ou grupos de autores ou autoras – portanto, um compromisso político-teórico inafastável que quer se inscrever na síntese conceitual que designa O Direito Achado na Rua, vale dizer, conceber o Direito, seguindo a diretriz formulada por Roberto Lyra Filho, como “a enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade” –, é possível encontrar num texto ou noutro alguma singularidade autoral que não seja acordo unânime da edição sobre a fidelidade a esse enunciado.
Contudo, todos os textos, produzidos segundo o protocolo da autonomia subjetiva de quem os assina, vieram para a edição porque neles, em contexto, esse protocolo, na linha dos princípios, foi lealmente seguido, guardando os ensaios o objetivo de contribuir para a emancipação do humano, contra todas as formas de opressão ou de espoliação, no engajamento para a construção de uma sociedade democrática que se realize enquanto projeto de reconhecimento dos direitos humanos que designam o protagonismo instituinte dos sujeitos coletivos de direito.
A seguir apresentam-se os resumos dos textos que compõem esta obra:
Em O Sujeito Coletivo de Direito: uma Categoria Fundante de o Direito Achado na Rua, na condição de texto de Introdução à Obra, o professor José Geraldo de Sousa Junior localiza e rastreia o percurso de um conceito forte, sua concepção e prática como contribuição à teoria crítica do Direito, de seus primeiros enunciados nos anos 1980 ao seu protagonismo, inscrito nos movimentos sociais, e sua ação democrática e instituinte atual para criar direitos.
Em Três Décadas do Sujeito Coletivo de Direito: um Panorama Crítico, José Roberto Nogueira de Sousa Carvalho faz um balanço crítico acerca da produção acadêmica sobre o conceito de Sujeito Coletivo de Direito. Nesse diapasão, na primeira parte do ensaio, o autor delimita um possível diálogo entre a produção d’O Direito Achado na Rua e o Humanismo Dialético com a noção de subjetividade jurídica proposta por Pachukanis; e, na segunda parte, por sua vez, observa que, no contexto político do Século XXI, a dimensão materializadora dos direitos deve ser aquela a ser mais ressaltada ao se dissertar sobre o Sujeito Coletivo de Direito.
Em O Direito Achado na Rua e o Positivismo Jurídico: Um Diálogo Possível, Andreza Alves de Souza, Helen Rose Carlos Rodrigues Guimarães e Henrique Porto de Castro enfrentam a tensão entre o positivismo jurídico e O Direito Achado na Rua, a partir das bases teóricas de Lyra Filho, Sousa Junior e Hart. Neste desafio, estabelecem a compatibilidade entre ambos os projetos, pois o projeto fundamentado no pensamento de Lyra Filho (1993; 2000; 2003) e Sousa Junior (1993; 2008) instrumentaliza o direito descritivo (identificado pelo positivismo) em uma concepção moral de justiça social.
Em A Subjetividade do Sujeito Coletivo de Direito: Senti-pensar e Co-razonar, Shyrley Tatiana Peña Aymara analisa a categoria de subjetividade e como ela funciona nos Sujeitos Coletivos de Direito. Assim, faz uma leitura a partir das contribuições críticas dos estudos decoloniais latino-americanos ao desenvolver os conceitos de senti-pensar e co-razonar como legado do movimento indígena sistematizado por autoras e autores a partir da América Latina. Com isso, dialoga com a categoria de Sujeitos Coletivos de Direito vindo do projeto epistemológico-político O Direito Achado na Rua.
Em Os Sujeitos Coletivos de Direito e a Representação Pluralista: os Mandatos Coletivos como Experimento Emancipatório, Gigliola Ansiliero pauta que a crise da democracia e dos modelos de representação política contemporâneos tem feito surgir novas práticas que mobilizam a participação social e convocam à construção de um modelo de cidadania mais participativa. No caso específico dos mandatos coletivos no Brasil, observa-se como uma prática política concebida pela experimentação, sem qualquer base legal, converte-se em mecanismo de resgate da legitimidade democrática. Trata-se de construção essencialmente pluralista, que se constitui a partir de novos Sujeitos Coletivos de Direito situados nos órgãos legislativos brasileiros e inaugura um modelo emancipatório e comunitário de representação política.
No ensaio O Direito Achado no Território Negro das Águas: o Caso da Comunidade Pesqueira e Quilombola de Graciosa (BA), Andréa Souza Bomfim tem como objetivo apresentar os quilombos como Sujeitos Coletivos de Direito, destacando esse fenômeno como experiência de resistência histórica e política. Também, evidencia-se o processo de constitucionalização ao destacar a importância da Constituição Federal de 1988 e do art. 68 da ADCT na definição dos direitos territoriais quilombolas. E, por fim, reflete sobre como os processos de controle social, em contexto de conflito territorial envolvendo agentes do hidronegócio e a comunidade quilombola e pesqueira de Graciosa (Taperoá/BA), obstam a efetivação de direitos territoriais.
Em Os Povos de Terreiro como Sujeito Coletivo de Direito: da Resistência às Perspectivas Emancipatórias, César de Oliveira Gomes identifica os povos de terreiro como Sujeitos Coletivos de Direito, na perspectiva do projeto O Direito Achado na Rua. O racismo religioso aparece como um elemento central para compreender a histórica perseguição da qual são alvos os povos de terreiro. Emerge a Defensoria Pública da União como a instituição do sistema de justiça com legitimidade democrática para afirmar os direitos emancipatórios desse grupo social perante o sistema de justiça.
No ensaio O Acesso à Justiça dos Sujeitos Coletivos de Direito na Perspectiva dos Núcleos de Prática Jurídica nas Faculdades de Direito, Élida Camila e Silva Ximenes Pinheiro, Luísa Caroline Gomes e Thâmylla da Cruz Nunes analisam os Sujeitos Coletivos de Direito e o acesso à justiça por meio do trabalho desenvolvido pelas faculdades e universidades durante as atividades práticas realizadas pelos estudantes do curso de Direito, com o objetivo de verificar e encontrar soluções para problemas estruturais e sociais que envolvem os sujeitos de direito que precisam garantir a efetividade de direitos fundamentais previstos no ordenamento jurídico.
Em Agentes Penais: Sujeito Coletivo de Direito?, Renata Keli Marinho Duarte e Vítor Boaventura Xavier têm como objetivo apresentar o conceito de Sujeitos Coletivos de Direito e analisar essa categoria emergente a partir das informações obtidas em visita de campo ao Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), originada da seguinte pergunta: podem os agentes penais federais serem considerados um Sujeitos Coletivos de Direito? Dentre os elementos que consubstanciam a análise, está a formação desses agentes penais para exercerem as suas funções profissionais.
Em Do Maracá ao Martelo: as Contribuições do Sujeito Coletivo de Direito Indígena para a Democratização do Currículo das Escolas Judiciais, Andréa Brasil Teixeira Martins e Kleber Karipuna se propõem a refletir sobre o protagonismo dos Povos Originários na abertura da matriz curricular das Escolas de Magistratura, integrantes da estrutura organizacional do Poder Judiciário, aos conhecimentos e direitos indígenas e indigenistas. Para tanto, o ensaio é composto de três partes fundamentais, necessárias para a compreensão do tema proposto, mais introdução e considerações finais, e será conduzido pela simbologia do Maracá, expressão de luta, resistência e sensibilidade dos Povos Indígenas no processo de constituição e emancipação como Sujeito Coletivo de Direito.
Em O Dia em que o Sujeito Coletivo de Direito Ocupou a Bolsa de Valores: o Encontro Inusitado entre a CVM e o MST, Diego Vedovatto, a partir dos pressupostos teóricos e metodológicos de O Direito Achado na Rua, descreve e analisa o “encontro inusitado” entre a Comissão de Valores Mobiliários – CVM e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra – MST, durante a emissão do primeiro título de crédito na modalidade de Certificado de Recebíveis do Agronegócio – CRA, aberto ao público geral na bolsa de valores brasileira, por cooperativas constituídas por agricultores sem-terra e sediadas em assentamentos de reforma agrária.
Em A Educação do Campo como Instrumento de Luta e Resistência de Sujeitos Coletivos de Direito, Clarice Nader Pereira, Guilherme Oliveira Silva e Isabelle Feitosa Oliveira Mesquita objetivaram ressaltar a luta pela educação do campo dos sujeitos coletivos. Diante da negligência do Estado, esses sujeitos combatem o distanciamento entre o Direito posto e a realidade social na qual vivem. Encontram na educação do campo uma forma de luta, buscando maneiras alternativas de construir um caminho educativo que seja emancipatório.
No ensaio O Reconhecimento dos Direitos Humanos das Pessoas com Deficiência: Resultados Provisórios de Lutas do Movimento Social, Ana Cláudia Mendes de Figueiredo aborda a trajetória das lutas do movimento social e político das pessoas com deficiência pelo reconhecimento jurídico dos direitos humanos desses sujeitos de direito, bem como alguns resultados provisórios de tais lutas. À luz da teoria crítica dos direitos humanos, analisa os processos para tal reconhecimento e o cenário de não efetivação ainda dos direitos daquela população, reveladores da imprescindibilidade de criação de condições que viabilizem a esses sujeitos o acesso igualitário aos bens necessários a uma vida digna.
Em A Dimensão Emancipadora dos Movimentos Sociais Negros: um Olhar sobre a Luta pelo Reconhecimento Protagonizada pelo Movimento Negro Unificado, Edilane Neves propõe um estudo etnográfico documental sobre o caráter emancipador empreendido pelos movimentos sociais negros por meio da análise da atuação do Movimento Negro Unificado – MNU. Para tanto, o texto apresenta uma reflexão de elementos que envolvem a temática, considerando em especial as contribuições teóricas de O Direito Achado na Rua.
Em A Resistência e a Luta das Mulheres pela Não Violência, Luana Nery Moraes objetiva apresentar o percurso das mulheres para a aquisição de direitos e, consequentemente, pela não violência. Por um viés histórico, na primeira parte, delineia a imagem da mulher no sistema patriarcal a partir do Brasil colônia; a longevidade da opressão sofrida pelas mulheres; o surgimento dos movimentos sociais e dos novos Sujeitos Coletivos de Direito; e a teoria feminista; na segunda seção, perpassa pela reflexão e conceituação da violência e da violência contra a mulher.
Em Resistir para Existir: Notas sobre a Luta dos Sujeitos Coletivos de Direito em Busca da Reparação, Isabella Arruda Pimentel e Zilda Letícia Correia Silva refletiram sobre o direito e os valores da sociedade de transição através da participação dos Sujeitos Coletivos de Direito. Por meio de uma pesquisa bibliográfica, tendo como base teórica O Direito Achado na Rua, a teoria crítica do direito e a Justiça de Transição, foi analisada a importância da mobilização social do Movimento Negro e dos(as) Anistiandos(as) Políticos, como Sujeitos Coletivos de Direito que reivindicam, constroem e atualizam os direitos de transição, em especial, a reparação em face das graves violações de Direitos Humanos.
Este volume 7, O Direito Achado na Rua: Sujeitos Coletivos. Só a Luta Garante os Direitos do Povo! Vem dar continuidade a Coleção Direito Vivo. A Coleção teve início, com o Volume 1 – Direito Vivo: Leituras sobre Constitucionalismo, Construção Social e Educação a Partir do Direito Achado na Rua, org. Alexandre Bernardino Costa, com o selo da Editora UnB, em 2013.
Já na Lumen seguiram-se: volume 2 – O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática, 2015; Volume 3 – O Direito Achado na Rua: Nossa Conquista é do Tamanho da Nossa Luta, 2017; Volume 4 – O Direito Achado na Rua: Lendo a Contemporaneidade com Roberto Aguiar, 2019; Volume 5 – O Direito Achado na Rua: Questões Emergentes, Revisitações e Travessias, 2021. E logo, volume 6 – O Direito Achado na Rua. Do Local ao Universal – A Proximidade Solidária que Move o Humano para Reagir e Vencer a Peste. Organizadores: Alexandre Bernardino Costa, José Geraldo de Sousa Junior, Sabrina Cassol. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2022.
Uma nota sobre o zelo editorial da Lumen, dirigido aos gerentes e técnicos – Cristiano Mabilia, que nos acolhe e apoia na atualização da Coleção Direito Vivo, Rebecca Ramos, Angel Cabeza, Rômulo Lentini, e com eles suas equipes sempre atentas e disponíveis para as sugestões dos organizadores e das organizadoras.
Em registro nesta nota, é notável a abertura gráfica que a equipe trouxe para a edição. Explico. Logo que completada a diagramação, na fonte usual da Lumen, Times New Roman. Todavia, entre nós autores e autoras há militantes da causa da inclusão que reivindicaram a possibilidade de uma abordagem gráfica com essa condição de inclusão.
Apresentamos o pleito ao Rômulo Lentini, Designer Editorial, nos termos seguintes:
Visando garantir o mínimo de acessibilidade à obra, optamos por uma fonte sem serifa – Arial, tamanho 12, por ser mais fácil a leitura para diversos grupos de pessoas, como aquelas que apresentam algum tipo de neurodiversidade, como a dislexia. Acreditamos que a acessibilidade amplia o público leitor e agrega valor à publicação. Ademais, é um direito e um princípio constitucional, presente na Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que é uma norma constitucional, em outras normas.
Esse direito concretiza-se mediante práticas que viabilizam a participação plena e efetiva de todas as pessoas, em igualdade de condições com as demais, constituindo ferramenta essencial à construção de um país inclusivo e que tem compromisso com a equiparação de oportunidades.
A acessibilidade comunicacional é imprescindível no mundo contemporâneo, em que a informação é um valor e o acesso a ela uma dádiva.
A promoção do acesso igualitário à informação a todas as pessoas é sem dúvida um desafio que nos obriga a deslocar o olhar para além de nós mesmos e a perceber novas formas de escutar, de enxergar e de ler o mundo. É, de outro lado, também uma oportunidade de contribuir para uma sociedade em que a diversidade nos ensina a mudar os processos educacionais, culturais e editoriais, para que a vida em sociedade seja minimamente equânime e justa, os impedimentos corporais sejam vistos apenas como uma das muitas características da diversidade humana e as singularidades encontrem espaço para existir com dignidade.
Como alternativa, caso não seja possível seguir a propostas, ao menos, pedem os Organizadores: Solicitamos que considerem o pedido dos organizadores e organizadoras, de que fosse usada na obra uma fonte sem serifa, com vista à garantia do direito constitucional à acessibilidade a todas as pessoas. Sugerimos a adoção de uma fonte Arial, tamanho 12, mas pode ser outra fonte sem serifa da escolha da editora.
Eis que, para nossa satisfação, recebemos a seguinte mensagem do Rômulo: “O Cristiano me liberou de mudar a fonte do livro de acordo com nossas padronizações editoriais, mas precisaremos realizar uma nova diagramação pois a mudança da fonte irá alterar tudo. Retornei semana que vem com uma nova diagramação do livro”.
A edição afinal publicada traz essa singularidade, com a diagramação totalmente refeita incluindo acréscimo significativo de número de páginas, mas com o alcance amplificado de valorização da cidadania e dos direitos humanos.
Bravo, pessoal! Com muitos agradecimentos e homenagens.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
Acaba de ser publicado pela Editora Dialética, em coedição com o Jornal Estado de Direito, o primeiro volume de Lido para Você. Direito, Cinema e Literatura, coletânea de textos de minha Coluna, com a mesma denominação (Lido para Você), que sai no Jornal, semanalmente.
Um primeiro lançamento da obra está programado para o dia de junho, no Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB (evento virtual), dentro do projeto Saindo do Prelo, com abertura conduzida pelo Presidente do IAB Sydney Sanches, Marcia Dinis, Diretora da Biblioteca do IAB e as participações especiais de Carmela Grüne, Cristina Zackzeski e Nara Ayres Brito, membros do Instituto, contando também com a participação de autores e de autoras das obras comentadas no livro:
Logo, com Carmela Grüne, minha editora no Jornal Estado de Direito, iremos organizar um cronograma subsequente de lançamentos e também, pela página do Jornal, o modo de aquisição do livro, cujos direitos autorais servirão ao objetivo de contribuir para a manutenção da plataforma do Jornal Estado de Direito.
O livro é o primeiro volume de uma coleção que reúne, por seleção temática, os temas da Coluna. Neste primeiro volume – outros três estão sendo preparados – o tema é Direito, Cinema e Literatura.
Na minha Introdução – Lido para Você. O Real Apreendido por Muitas Narrativas e Diferentes Linguagens – explico o processo de criação da obra e a seleção dos textos.
Tal como digo nessa Introdução, aqui reproduzida, artigos de opinião e a sua expressão no estilo de interpretação de conjuntura passaram a compor uma característica de minha intervenção intelectual. É um estilo opinativo que experimento desde os anos 1980.
Primeiro, no Jornal da Ordem, da OAB do Distrito Federal, nas sucessivas direções editoriais de Luiz Carlos Sigmaringa Seixas, Jarbas da Silva Marques e Galba Menegale. Depois na Rádio Cultura FM, do Governo do Distrito Federal, durante a gestão do Governador Cristovam Buarque, no Programa Música e Informação, com uma participação semanal, sempre atenta, a partir da leitura matinal dos jornais, feita pelo âncora, e meu comentários articulados pelo eixo interpretativo da democracia, da cidadania, da justiça e dos direitos.
Esse eixo, aliás, balizam um plano mais geral que se orienta pela disposição dupla: contribuir para uma contínua democratização da democracia e uma constitucionalização atualizada pela estratégia de atualização permanente de direitos, já que esses não são quantidades, são relações, daí que a professora Marilena Chauí sustente ser a democracia uma forma de sociedade e não apenas uma forma de governo.
Por isso também, que entre os anos 2006 e 2008, na Universidade de Brasília, com a coordenação dos Grupos de Pesquisa O Direito Achado na Rua e Sociedade, Tempo e Direito, publicamos um tabloide mensal denominado Observatório da Constituição e da Democracia, com colunas e entrevistas mensais para o acompanhamento criativo do experimento de realização da Constituição e da Democracia, já que seus fundamentos não se instalam uma vez para sempre mas são sempre o resultado de disputas e posições interpretativas que prosseguem no movimento legitimado da política.
Uma nota de relevo atribuo à série de artigos publicados mensalmente na Revista do Sindjus-DF, Sindicato dos Servidores do Judiciário e do Ministério Público no Distrito Federal, por quase dez anos, entre 2001 e 2011.
Tudo começou quando o Coordenador-Geral do Sindjus Roberto Policarpo propôs para o 3º Congresso da categoria, o tema central: “A sociedade pode ser democrática com um Judiciário conservador”, realizado nos dias 7, 8 e 9 de dezembro de 2001, e me incumbiu de proferir a conferência inaugural sobre o tema.
Trazendo para os servidores do Judiciário e do Ministério Público, sindicalizados, a responsabilidade de pensar esse tema, o Sindjus mostrava claramente que a promessa constitucional de edifi car uma sociedade justa e solidária implicava em dinamizar o protagonismo participativo já presente em várias dimensões da sociedade e do Estado, mas ainda tênue no espaço do Ministério Público e, principalmente, do Poder Judiciário. E nesse passo, trazer para a ação sindical o compromisso de não só conduzir lutas que implicassem acumular conquistas orientadas por demandas corporativas, mas igualmente engajar-se em frentes políticas que abrissem perspectivas de desenvolvimento democrático pleno para toda a sociedade. Logo a seguir, Policarpo me convidou para manter uma coluna permanente na Revista, nascendo aí uma colaboração que durou até 2011, quando deixou de circula, mudando a direção sindical, já alcançada pelo arranhar da política, com o roer das entranhas democráticas, a fera proto-fascista que recentemente saiu de sua hibernação, com o golpe desdemocratizante e desconstituinte desencadeado em 2016.
Meu querido editor e amigo Sergio Antonio Fabris publicou em Idéias para a Cidadania e para a Justiça. Porto Alegre, 2008, uma coletânea dos 50 primeiros artigos da Coluna. O mesmo Sérgio Fabris que me apresentou a Carmela Grüne, a motivada editora do Jornal Estado de Direito, e de outros belos e engajados projetos nas áreas do direito e da cidadania, conforme ela própria relata na apresentação deste 1º volume, de Lido para Você.
Carmela conta como ela ao recompor o projeto editorial do Jornal Estado de Direito, um projeto com dezoito anos (lançado em 15 de novembro de 2005) de contínua edição, então passando do formato impresso para o digital, me convidou para tornar permanente uma colaboração eventual e como, assim, surgiu a ideia da Coluna.
O Jornal já mantinha uma agenda de colunistas permanente, ocupando cada um e cada uma um dia da semana e acertamos que eu cobriria a quarta-feira. Foi aí que me ocorreu transformar em rotina uma experiência de ofício, a de orientar leituras para meus alunos, especialmente de graduação, estimulando-os tal como eu próprio o fazia com empenho metodológico, resenhas dessas leituras. Por outro lado, muito dessas leituras eram pautadas não só por necessidade de atualização pedagógica de bibliografias, mas pelo ofício de examinar monografias, relatórios, dissertações e teses, além de livros. Portanto, naturalmente, sugestões de leituras para pesquisadores e, por que não, para editores, considerando o ineditismo e a relevância de muitos desses trabalhos.
Assim, a coluna logo se exibiu para a imaginação: Lido para Você. Anoto que a inspiração veio de coluna mantida pelo notável jurista André-Jean Arnaud, diretor de pesquisa do CNRS (França), editor de Droit et Société – Revue Internationale de Th eorie du Droit et de Sociologie Juridique. Essa revista, vale dizer, foi fundada em 1926, por Hans Kelsen, León Duguit e Franz Weyer. Claro que Arnaud, com seus colaboradores, investidos de uma perspectiva crítica, imprimiu ao periódico uma outra orientação para os estudos críticos de teoria do direito e de sociologia.
A Droit et Société tinha uma seção Nouvelles du Monde, e nela em registro permanente, dois tópicos: Chronique bibliographique e Lu pour vous. Nesta, comentários indicativos de edições recomendadas pelos editores/convidados/subscritores. Para minha “glória”, no nº 9, edição e 1988, o próprio Arnaud (sobre Arnaud disse-me Michel Miaille certa vez, “nous parlons d’une institution”) publicou uma nota sobre O Direito Achado na Rua (pp. 328-329): “Le droit qu’on trouve dans la rue, comme cours de Faculté de droit, ce n’est pas mal! Décidément, nous avons, em France, bien du chemin à faire…”.
Assim nasceu a coluna Lido para Você, já com mais de duzentos textos já publicados. Eles abrangem um amplo arco de referências, modos paradigmáticos de apreensão do real, pelas aproximações filosóficas, teológicas, científicas, literárias, jurídicas, todos discursos interpretativos expressos em diferentes linguagens, mas sempre pelos eixos que orientam minha leitura de mundo: a democracia, a cidadania, a justiça e o direito.
Neste primeiro volume, com a apresentação de Carmela Grüne, e não poderia ser outra a apresentadora dado o seu acolhimento editorial à Coluna, são publicados 40 títulos que se caracterizam por articular os temas de fundo, formadores do eixo, pela mediação cultural e literária.
São leituras que desvendam no discurso artístico o intuir que não precisa fundamentar, explicar ou revelar o real, o expõe em compreensão direta e sem mediações. Conforme lembra o grande acadêmico de Coimbra Eduardo Lourenço (Mitologia da Saudade. São Paulo: Companhia das Letras, 1999), “a literatura não é um delírio, mas a apropriação do real por meio de uma outra linguagem”.
Neste volume I, colecionados a partir da temática que distingue a obra, são destacados os seguintes textos, além da minha Introdução e do Prefácio de Carmela Grüne, os artigos conforme o Sumário:
Coluna Lido para Você: Direito no Cinema Brasileiro
Cartas de Viagem: Histórias de caminhos não contados
Olhos de Madeira. Nove Reflexões sobre a Distância, de Carlo Ginzburg
Meninos do Rio Vermelho e Uma Senhora Pelada
Criminologia e Cinema: Semânticas do Castigo
Comunicação e música
Memória e Perspectivas. 50 Anos de Letras da Universidade de Brasília
(1962-2012)
Pesadelo. Narrativas dos anos de chumbo
Retratofalado
A Rua de Todo Mundo
Justicia Poética. La Imaginación Literaria y La Vida Publica
Agenda 2021
Traços – Especial 5 Anos
Por Que Ler os Clássicos
Justiça Indeferida
Literaturas Munduruku. As Histórias Contadas e a Justiça Cognitiva
Deu Nisso! Cláudio Almeida
Agradeço a Júlia Noffs, Produtora Editorial, cujo zelo garantiu que o livro pudesse alcançar a qualidade de edição com que se apresenta. Chamo a atenção para a capa, criação de Larissa Brito. Agradeço a Larissa ter acolhido para o esboço do desenho do trabalhador que representa o Direito na iconografia do tema, a sugestão de tomar como inspiração a arte de nossa colega pesquisadora do Coletivo O Direito Achado na Rua e artista reconhecida Judith Cavalcanti. Por isso, nos créditos a nota seguinte: “A imagem do trabalhador com os cestos para representar o Direito se inspira na ilustração criada por Judith Cavalcanti, Têmis, como representação da Justiça para ilustrar a capa do volume 10, da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade, co-organizado pelo autor deste primeiro volume de Lido para Você”.
Encerro com um trecho do prefácio elaborado por Carmela Grüne: “Realmente é uma grande honra poder apresentar essa obra que é o resultado da sua generosidade com o Jornal Estado de Direito e seu público leitor, antes impresso, agora na edição eletrônica semanal, as quartas-feiras, onde o professor José Geraldo publica a Coluna “Lido para Você”, a qual apresenta um universo de pessoas através de suas obras sejam elas monografias, teses, pesquisas, livros, nos presenteando com a fonte que fortalece a nossa consciência crítica: o conhecimento. Neste prefácio, também, além de contar um pouco sobre a história do professor José Geraldo com o Jornal Estado de Direito é importante destacar o papel da obra “O Direito Achado na Rua”, mencionar os pesquisadores e autores que trouxeram grandes ideias para a sua elaboração. O livro, organizado por José Geraldo Souza Júnior, quebra paradigmas, ao colocar o Direito de forma prática, não o distanciando do coletivo, mas o aproximando daquele que está na rua. Dá voz e vez a população pelo protagonismo, com vistas a transformação da sociedade e o empoderamento da cidadania. Como referi a Coluna “Lido para Você”, o professor José Geraldo, nesse primeiro volume, apresenta os estudos de pesquisadores e autores, assim, também agradeço publicamente a eles pela dedicação nas áreas que são tão sensíveis e necessárias o olhar social”.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
A Cooperação Humanitária Internacional em Saúde no Brasil
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Raquel da Silva Machado. A Cooperação Humanitária Internacional em Saúde no Brasil: realizações e desafios no período de 2017 a 2020. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Políticas Públicas em Saúde. Escola Fiocruz de Governo. Fundação Oswaldo Cruz, 2023, 71 fls.
Integrei com satisfação e interesse, na qualidade de membro externo, a Comissão Examinadora formada pela professora e professores Roberta de Freitas – Orientadora; Swedenberger do Nascimento Barbosa – Membro interno; José Nogueira Paranaguá de Santana – Membro interno suplente, que avaliou a Dissertação de Raquel da Silva Machado.
Sobre a Dissertação transcrevo o seu resumo:
Partindo do pressuposto de que a cooperação humanitária internacional em saúde – CHIS é uma política pública de saúde – PPS, pois tem embasamento legal no Art. 6º da Constituição Federal de 1988 dentre os quais, destacamos o apoio à população nas áreas da saúde, alimentação, segurança e assistência aos desamparados, fatores imprescindíveis para o desenvolvimento de uma população e é uma ação que fortalece a Política Externa Brasileira – PEB, a presente dissertação propõe realizar uma análise da política de cooperação humanitária internacional em saúde, desenvolvida pelo Ministério da Saúde e operacionalizada pela Assessoria Especial de Assuntos Internacionais. São apresentados conceitos da Política Externa Brasileira de forma não exaustiva e realiza um levantamento das ações executadas pelo MS no período de julho de 2017 a dezembro de 2020, com informações de acesso livre, coletadas no Sistema de Informações Eletrônicas do MS. Finalizamos com a apresentação dos desafios a serem superados identificados pela autora e sugestões de estratégias para a melhoria do trabalho e para o reconhecimento da cooperação humanitária internacional em saúde como política nacional e de importância para a política externa brasileira.
Os resultados do trabalho são apresentados em três capítulos, assim designados pela Autora:
No capítulo 1, abordamos a política externa brasileira, aqui chamada de PEB, apresentando conceitos de alguns autores da área das relações internacionais e um breve histórico sobre seu surgimento e desenvolvimento até os dias atuais; em seguida, são apresentadas uma lista de legislações que amparam as ações da CHIS e buscamos, de forma despretensiosa, apresentar os primeiros registros oficiais das ações desenvolvidas pelo país, identificados na pesquisa; por último, apresentamos a base legal brasileira, que caracteriza a CHIS como uma política nacional.
No capítulo 2 explicamos como é desenvolvida a CHI brasileira, as atribuições e responsabilidades dos órgãos do governo federal envolvidos nessa política; apresentamos os resultados do levantamento de dados coletados no SEI e tabulados em planilhas e gráficos, de forma a justificar a importância dessas ações para a PEB.
No capítulo 3, procuramos retratar os desafios encontrados na execução do trabalho de CHIS para seu aprimoramento e desenvolvimento, de forma a trazer benefícios reais às populações beneficiadas por essas ações, tanto no âmbito nacional, quanto no internacional.
Os demais elementos, que eu diria pré-textuais, se integram ao trabalho para referenciar seus objetivos, para designar suas referências e para agregar notas e anexos próprios à circunscrever o núcleo fundamental da abordagem necessário à análise desenvolvida na Dissertação.
Gosto de identificar desde logo que essa análise, conduzida com a força de larga experiência funcional sobre a gestão de políticas públicas, não se enreda na funcionalidade burocrática, mesmo se essa responde aos requisitos de racionalidade, em acepção weberiana, para caracterizar um dos fundamentos da modernidade.
O enfoque de Raquel é de que “as políticas públicas são feitas para todos os cidadãos, sem distinção de escolaridade, gênero, raça, religião, nacionalidade ou nível social [mas conforme suas fontes] o fundamento mediato das políticas públicas e o que justifica o seu aparecimento, é aprópria existência dos direitos sociais – aqueles, dentre o rol de direitos fundamentais dohomem, que se concretizam por meio de prestações positivas do Estado, ou seja, o Estadodesenvolve ações e programas com o objetivo de pôr em prática e garantir tais direitos” (fls. 17).
Esse parti pris em Raquel já era por mim esperado, considerando o que cotidianamente testemunhei em nosso contato acadêmico, ao longo do Mestrado, durante o desenvolvimento da disciplina Direito à Saúde na Perspectiva de O Direito Achado na Rua, na qual colaborei com seu titular, presente aqui na Banca, professor Swendeberger Barbosa.
Portanto, não foi surpresa, localizar no trabalho de Raquel, os Direitos Humanos como um ponto de arrimo, quando ela toma, a partir de obra que co-organizei em co-edição da Editora da UnB e da Fiocruz (Dallari, D. Módulo 4 – Ética Sanitária. In Série O Direito achado na rua: Introdução crítica ao direito à saúde. Vol. 4 / Alexandre Bernardino Costa … [et al.] (organizadores) – Brasília: CEAD/ UnB, 2009) a referência a Dalmo Dallari, na passagem que ele “defende que o direito à saúde não é apenas um imperativo moral, mas também uma obrigação legal sob o direito internacional dos direitos humanos, uma vez que a saúde é um direito humano fundamental que está consagrado no direito internacional e reconhecido pela maioria dos países, inclusive no Brasil”.
Sob a perspectiva humanitária ou técnica, há um boa bibliografia, a qual de modo representativo Raquel arrola em seu trabalho. Mas, em perspectiva teórica, a sua incidência é mais restrita. Fiz esse registro em recensão que publiquei em minha Coluna Lido para Você (Jornal Estado de Direito), a propósito do livro Direito Sanitário. Coletânea em Homenagem à Profa. Dra. Maria Célia Delduque. Sandra Mara Campos Alves, Amanda N. Lopes Espiñeira Lemos (Organizadoras). Brasília: Matrioska Editora, 2020, 278 p. Disponível para download gratuito: https://www.cadernos.prodisa.fiocruz.br/LIVRO_PDF_Direito_Sanitario_digital_link_ajustado-1.pdf. (cf. http://estadodedireito.com.br/direito-sanitario/). Aliás, fiz uma busca ativa em Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário (CIADS) a publicação trilíngue (português, espanhol e inglês), trimestral, de acesso livre, editada pelo Programa de Direito Sanitário da Fundação Oswaldo Cruz/Brasília, com a aplicação dos termos que designam o tema da Dissertação, sem sucesso. Penso que, como membro do Conselho Científico dessa valiosa publicação, dirigida por professores, pesquisadores e estudantes de Direito, Ciências da Saúde e Ciências Sociais; operadores do Direito; profissionais de saúde e gestores de serviços e sistemas de saúde, com o objetivo de difundir e estimular o desenvolvimento do Direito Sanitário na região ibero-americana, promovendo o debate dos grandes temas e dos principais desafios do Direito Sanitário contemporâneo, devo cuidar de propor pautas editoriais a partir desses termos.
Por isso, a Dissertação de Raquel ganha ainda mais relevância ao abrir o tema para o debate acadêmico, nos termos em que ela propõe: trazer para “além do plano doméstico, o princípio da solidariedade abarca o plano internacional e instar o país ao compromisso de que somos todos responsáveis uns pelos outros e temos o dever de ajudar aos necessitados e de trabalhar pelo bem comum. As relações internacionais vêm ganhando destaque no cenário mundial desde o advento da Segunda Guerra Mundial, promovendo a expansão da cooperação internacional como prática institucionalizada pelos governos. Em um mundo cada vez mais interdependente, a paz, a prosperidade e a dignidade humana não dependem apenas de ações em âmbito nacional e a cooperação para o desenvolvimento internacional é peça-chave para o estabelecimento de uma ordem internacional mais justa e pacífica”. Tal como afirma (fls. 17), nesse passo seguindo a Constituição brasileira: “é legítimo afirmar que o Brasil se preocupa com o bem-estar, não apenas de seus nacionais quando o Estado brasileiro estende ações de políticas de saúde aos países parceiros, visando garantir a prevalência dos direitos humanos e a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade”.
É certo que essa dimensão de solidariedade implica abrir a governança para uma dimensão humanitária que não reduza seus procedimentos a um jogo concertado de uma troca de interesses. Mas que represente estruturar sua base institucional e burocrática para valores que insiram a saúde numa perspectiva dessa solidariedade.
Pense-se, por exemplo, em face do fato de que “o mundo se encontra atualmente num processo de emergência de um Direito mundial para além das ordens políticas do tipo nacional e internacional a preocupação com a necessária regulação por parte do Estado das relações que envolvem consumo de bens e serviços de saúde, a fim de garantir que não ocorram violações a esse direito fundamental. Adicione-se a isto que há, atualmente, uma ordem econômica internacional, alicerçada sobre o liberalismo pensado em Bretton Woods (mas redimensionara ao longo das décadas), e que não apenas afeta comércio, finanças e moedas, mas que também se desenvolve como ideologia internacional transfronteiriça que influencia o cotidiano do cidadão comum” (RDIET, Brasília, V. 14, nº 2, p. 584– 643, Jul-Dez, 2019. O Direito à Saúde e o Licenciamento Compulsório de Medicamentos Frente à Mercantilização da Saúde no Brasil, artigo de Mateus de Oliveira Fornasier e Carolina Andrade Barriquelo, fundado na a hipótese básica de que o direito à saúde é, por um lado, essencial para a garantia do direito à vida; por outro, é considerado um bem do mercado de consumo, necessitando, por conta disso, da proteção do Estado para garantia e efetivação desses direitos. Essa é exatamente a situação, lembram Marcio Iorio Aranha, em Propriedade Intelectual e Patente Farmacêutica (In Série O Direito achado na rua : Introdução crítica ao direito à saúde. Vol. 4 / Alexandre Bernardino Costa … [et al.] (organizadores) – Brasília: CEAD/ UnB, 2009), assim como Carol Proner, in Saúde Pública e Comércio Internacional: a Legalidade da Quebra de Patentes “quando resta ameaçado o interesse público, neste caso a saúde pública e a sobrevivência do Programa Nacional de tratamento e prevenção de HIV/AIDS. Os direitos empresariais sofridos pelo laboratório estão garantidos juridicamente, ao mesmo tempo em que encontra respaldo legal e legítimo a medida em prol dos direitos humanos e da soberania do Estado” (file:///C:/Users/Jos%C3%A9%20Geraldo/Downloads/admin,+9-20-1-SM+-+OK.pdf).
Claro que para fortalecer essas possibilidades solidárias é fundamental organizar o sistema em todas as suas dimensões. Em 2007, no espaço de debate do Observatório da Constituição e da Democracia que os Grupos de Pesquisa Sociedade, Tempo e Direito e O Direito Achado na Rua, editavam na Faculdade de Direito da UnB, em edição dedicada ao Direito e Saúde, a entrevista desse número foi conduzida pelas pesquisadoras Maria Célia Delduque e Mariana Siqueira de Carvalho Oliveira, que ouviram a Professora Sueli Gandolfi Dallari, num “Balanço da Saúde no Brasil: SUS, Participação Social, Formação Sanitária e Agências Reguladoras” (C&D Constituição e Democracia, nº 13, maio de 207, p. 12-13). Temas amplos, mas ao final uma dramática antevisão: “O ponto frágil do sistema de saúde brasileiro é o olhar para as questões de vigilância sanitária e epidemiológica. Trabalhar com estruturas separadas não funciona. Não se pode ter um emaranhado de estruturas burocráticas, que precisam dialogar. O fato é que a vigilância sanitária ainda hoje é uma estrutura pouco privilegiada no nosso sistema de saúde e é a mais importante. Se nós fizermos isso bem, inclusive a visão da assistência será outra”.
A racionalidade gestora certamente contribuirá para isso. Raquel oferece no caso específico que estuda, sugestões muito interessantes. Mas ela adverte para um plano mais difícil de ultrapassar, o da ideologia.
No último período governamental, a propósito de vigilância sanitária, medidas internacionais e pandemia, avalia a jurista Deisy Ventura, um quadro de tragédia. Para ela: “Não houve omissão, mas uma ação deliberada para disseminação do vírus”, ela que é especialista na relação entre pandemias e direito internacional, afirma que atos normativos ao longo da pandemia evidenciam que o governo federal trabalhou contra as medidas de isolamento para não afetar a economia. Além disso, fez propaganda para o tratamento preventivo claramente ineficaz. Com isso, a jurista acredita que autoridades devem responder a mais ações na Justiça e até em tribunais internacionais. Pois são muitas as evidências aliás, externalizadas, com farta gravação por meios de comunicação que não avançam na análise crítica da impudência mais ainda que imprudência, ao afiançar que a melhor contenção seria o máximo de contaminação para o arrefecimento “natural” do contágio (https://cbn.globoradio.globo.com/media/audio/328980/nao-houve-omissao-mas-uma-acao-deliberada-para-dis.htm?fbclid=IwAR0gBBwGC0enx-PpyZNuqv_DAlOV8T72ASzPTcf0HCtye3Tgm6fjLhKIsmE). Na mesma direção, tomando por base pesquisa levada a efeito sob a direção da professora Deisy, a sua conclusão de que “Pesquisa revela que Bolsonaro executou uma ‘estratégia institucional de propagação do coronavírus’” (https://brasil.elpais.com/brasil/2021-01-21/pesquisa-revela-que-bolsonaro-executou-uma-estrategia-institucional-de-propagacao-do-virus.html?fbclid=IwAR0V2HWwuXbFBgGg8xIXK5daR0V6A9v-iyTq9lucsdeorgo-nzFa7xezBRY).
Por estas razões, tomo uma consideração final do trabalho de Raquel: Atesta-se a importância do tema da PNCHIS (Política Nacional de Cooperação Humanitária Internacional em Saúde) não apenas como política pública doméstica na área de saúde, mas também como instrumento fundamental da política externa brasileira. É necessário que a PNCHIS se solidifique enquanto uma política de Estado, para que ela não volte a sofrer no futuro, com mudanças de governos e volte a incorrer na violação dos Direitos Humanos, como ocorreu com o impedimento de envio de doações de medicamentos, alimentos e outros insumos à Venezuela, por ideologia política” (fls. 60).
A inserção dessa política num programa solidário e internacionalizado de Direitos Humanos, pressupõe, tal como se registra na monumental Enciclopédia Latino-Americana dos Direitos Humanos (Antonio Sidekum, Antonio Carlos Wolkmer e Samuel Manica Radaelli, organizadores. Blumenau: Edifurb; Nova Petrópolis: Nova Harmonia, 2016), que se tenha, tal como dizem os seus organizadores a propósito da construção desse belo repositório, em sua concepção, o intuito de “construir – esse intuito presente nas 108 entradas (verbetes ou expressões temáticas que formam a Enciclopédia), desde o conceito de Acesso à Justiça até o fenômeno do Zapatismo – uma gramática fundamental dos direitos humanos latino-americanos, com a intenção de expressar em sua essência uma atitude integracionista, buscando refletir uma experiência intercontinental e realizada por autores dos diversos países latino-americanos”.
Em David Sánchez Rubio, professor sevilhano convocado para contribuir, oferecendo exatamente o verbete – Intervenção Humanitária (p. 485-490) – há nesse tema a exigência de um desdobramento ético, não obstante o limite regulatório desse instituto no direito internacional humanitário, de tal modo que deva cingir-se ao princípio segundo o qual “a vida se gera desde a vida e não desde a morte” (cf. http://estadodedireito.com.br/enciclopedia-latino-americana-dos-direitos-humanos/).
Muito bem. Aqui trago a consideração para um enfoque que procure aproximar os pressupostos humanitários firmados pela Autora da Dissertação e a perspectiva de O Direito Achado na Rua que foi a base de nossa disciplina – Swedenberger e eu – no Mestrado da Fiocruz. Refiro-me a uma publicação que acabei não fazendo circular porque coincidia em grande parte com o volume 4, da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito à Saúde, fartamente citado por Raquel na Dissertação.
Ocorre que a boa acolhida a essa publicação levou a que a UnB, a Fiocruz e a OPAS, com a recomendação do caro José Nogueira Paranaguá de Santana também presente na Banca, buscassem internacionalizar a proposta e chegássemos a uma edição em espanhol daquela publicação que não fosse a mera tradução de seus textos mas uma modificação que buscasse desbrasileirar e mais continentalizar o tema. A OPAS para isso promoveu uma oficina em sua sede, com participantes do Continente, que resultou no volume 6 da Série O Direito Achado na Rua, com o título Serie El Derecho Desde la Calle: Introdución Critica al Derecho a la Salud, os mesmos organizadores, novas ilustrações, a tradução de alguns textos, supressão de outros muito específicos da realidade brasileira e a inclusão de novos títulos e autores sugeridos pela Oficina – https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/handle/icict/39193/Derecho%20desde%20la%20Calle.pdf?sequence=2&isAllowed=y.
Dentre esses novos textos menciono, no Módulo VI, la unidad 2 – Desastres, viulnerabilidad, equidade y salud em la región de América Latina, de Aderita Sena, Mara Oliveira e Ciro Ugarte; la unidad 4 – Derecho a la salud de las poblaciones migrantes y fronterizas, de Sandra Regina Martini Vial; e la unidad 6 – La cooperación internacional em salud: Es posible hablar em ‘cooperación’ desde la calle?, de Rodrigo Pires de Campos, Marco Aurélio A. Torronteguy e Manoel Araújo Amorim.
Nesse texto, em face da questão por eles propostas, os autores afirmam:
“la cooperación internacional desde la calle es posible y no se impone por medio de una visión unilateral, y extranjera, de la problematización y la preconización de las cuestiones sociales, sean ellas tocantes a las políticas públicas, los servicios públicos o, más genéricamente, la vida en sociedad. La cooperación internacional desde la calle no se manifesta por el juicio indebido de ese o aquel local, país o cultura, como ‘atrasado’, no ‘civilizado’, ‘beneficiario’, o incluso ‘en quiebra’. La cooperación internacional hallada em la calle no fornece tecnologías de punta que meramente equipan instituciones sin el debido respeto a los movimientos internos legitimadores de aquellas instituciones y sin la debida compensación a la población en general.
La cooperación internacional desde la calle sería aquella realizada a partir del reconocimiento mutuo de procesos sociales vigentes como fuente de la propia práctica y de la transformación social e institucional en cuestión. Por lo menos tres caminos fortalecieron esa visión: la emergencia de los países en desarrollo y su papel fundamental de acercamiento de democratización de los procesos de cooperación internacional visible a partir de emergência de nuevos actores, sobretodo organizaciones no gubernamentales, en el sistema internacional; y la cooperación internacional reflexiva” (pág. 320).
Minha questão de arguidor é saber o que a Autora pensa dessa assertiva e em que medida seu trabalho a ela corresponde?
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
Miradas Críticas en Torno al Derecho y la Lucha Social: Confluencias con América Latina
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
David Sánchez Rubio. Miradas Críticas en Torno al Derecho y la Lucha Social: Confluencias con América Latina. Madrid/España: Editorial Dykinson, 1ª edición, 2023, 186 p.
O livro, resumido pelo próprio Autor para se expor no catálogo da Editora,
é uma espécie de reivindicação do paradigma crítico no campo do Direito e dos direitos humanos na América Latina, mas tem a particularidade de usar, como pretexto, a análise que seu autor realizou sobre o pensamento do advogado mexicano e o filósofo jurídico Jesús Antonio de la Torre Rangel, e os juristas brasileiros Antonio Carlos Wolkmer, Amilton Bueno de Carvalho, José Geraldo de Sousa Júnior e Roberto Lyra Filho. Ainda, em defesa de uma perspectiva multidisciplinar, acrescenta-se a reflexão sobre outros quatro pensadores que possuem forte afinidade epistêmica de compromisso com a justiça social: o educador brasileiro Paulo Freire, o economista e filósofo alemão Franz Hinkelammert, o filósofo chileno Helio Gallardo e o pensador mexicano Leopoldo Zea, que fazem parte desse movimento interdisciplinar, especificamente latino-americano, denominado pensamento de libertação. Abrange o pedagógico, o político, o filosófico, o psicológico, o teológico, o econômico e o literário. Cada um dos pensadores tem em comum não apenas uma visão crítica das instituições políticas, econômicas e jurídicas ligadas às relações de poder, mas também o fato de apostarem naqueles processos de libertação cujos principais protagonistas são os movimentos sociais que lutam por seus direitos e pela um mundo inclusivo onde cabemos todos. A maioria das obras foi realizada em homenagem a cada um deles. Suas contribuições são reconhecidas e são destacados os quadros categóricos que podem nos ajudar a construir um planeta com uma Humanidade plural e multicolorida.
David Sánchez Rubio é Professor Catedrático e Diretor do Departamento de Filosofia do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de Sevilha. Foi coordenador e diretor de vários cursos de mestrado e doutorado na Universidade Pablo Olavide de Sevilha e na Universidade Internacional da Andaluzia. Ele foi e é membro diretor e pesquisador de vários projetos de Excelência e P&D. Professor visitante em várias universidades na Espanha, Bélgica, Portugal, México, Equador, Colômbia, Costa Rica, Argentina e Brasil. Autor de mais de 110 artigos e vários livros sobre teoria crítica dos direitos humanos, democracia, educação para a cidadania, migração, tráfico de pessoas, poder constituinte e pensamento de libertação latino-americano. Dentre outros, destacam-se: Repensando os direitos humanos (2007); Encantos e Desencantos dos Direitos Humanos (2011); Instituindo os direitos humanos. Pensamento crítico e práxis libertadora (2018). É também autor e coordenador dos livros Poderes Constituintes, Alteridade e Povos Indígenas (2020) e Direitos Humanos e Transformação Social (2021).
Pessoalmente, gosto de poder integrar ao rol de obras destacadas pela biobibliografia publicada com a edição, ainda outros estudos viscerais, publicados em espanhol e também em português que dão uma medida de continuidade e de atualização ao pensamento interpelante do Autor: desde Filosofía, Derecho y Liberación en América Latina (1999), lançado pela Desclée de Brouwer, de Bilbao; passando por Contra una Cultura Anestesiada de Derechos Humanos (2007), publicado no México, pela Facultad de Derecho de la Universidad Autómoma de San Luis Potosí; Fazendo e Desfazendo Direitos Humanos (2010), publicado pela EDUNISC de Santa Cruz do Sul, Rio Grande do Sul; com Juan Antonio Senet de Frutos, Teoria Crítica del Derecho. Nuevos Horizontes (2013), também publicado no México, em Aguascalientes/San Luis Potosí/San Cristóbal de Las Casas; até se reconfigurar no paradigmático livro Derechos Humanos Instituyentes, Pensamiento Crítico y Praxis de Liberación (2018), da Akal/Inter Pares, Argentina/España/México. Dessa edição, uma parte, saiu em português em 2022, com o título Direitos Humanos Instituintes, pela Editora Lumen Juris, do Rio de Janeiro, tendo valido como credencial para a inclusão de David no Conselho Editorial Internacional da Editora, juntamente com os portugueses António José Avelãs Nunes, Boaventura de Sousa Santos e Diogo Leite de Campos.
Incluo na formulação biobliográfica de David Sánchez Rubio a sua atenção às mobilizações críticas que geraram o alternativismo jurídico, notadamente no Brasil, contribuindo para distinguir suas vertentes e nesse passo situar as juridicidades autônomas, emergentes do pluralismo jurídico, insurgentes, achadas na rua (SÁNCHEZ RUBIO, David. Sobre o Direito Achado na Rua. Absolutização do Formalismo, Despotismo da Lei e Legitimidade, in CARVALHO, Amilton Bueno e CARVALHO, Salo de. Direito Alternativo Brasileiro e Pensamento Jurídico Europeu. Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora, 2004).
Terá sido nesse intercâmbio que Amílton Bueno de Carvalho, autor de uma bem elaborada categorização dos elementos que envolvem o denominado direito alternativo, a saber, o uso alternativo do direito, com raízes na Magistratura Democrática Italiana, o positivismo de combate, para concretizar as aquisições de conteúdos prometidos pela legislação às maiorias sociais e o direito alternativo, em sentido estrito, que emerge do pluralismo jurídico em arranque instituinte de direitos (CARVALHO, Amilton Bueno. Flexibilização X Direito Alternativo, in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de e AGUIAR, Roberto A. R. de. Introdução Crítica ao Direito do Trabalho, Série O Direito Achado na Rua, vol. 2. Brasília: CEAD/Editora UnB, 1993: 99), a perspectiva democrática abre um horizonte expansivo para a realização dos direitos enquanto afirmação de direitos humanos. Confira-se minha Coluna Lido para Você (http://estadodedireito.com.br/para-alem-do-direito-alternativo-e-do-garantismo-juridico/). A propósito dessa obra que é homenagem, mas é também balanço de uma mirada crítica no Brasil que desaguou na criação de um entorno para situar abordagens de teorias críticas do Direito no Brasil – Para Além do Direito Alternativo e do Garantismo Jurídico: Ensaios Críticos em Homenagem a Amilton Bueno de Carvalho. Organizadores Salo de Carvalho, Diego de Carvalho, Gabriela de Carvalho e Renata Almeida da Costa, 2ª. Edição. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2017 – para a qual também contribui (Juízes à Frente de seu Tempo: Amilton Bueno de Carvalho (ou Cultura de Litígio, Ensino Jurídico e Direitos Humanos na Refuncionalização da Prática dos Operadores de Direito no Brasil), vamos encontrar David Sánchez Rubio registrando uma interlocução iniciada desde longa data e que tem continuidade até esta edição de Miradas Críticas.
De minha parte, desde quando o conheci em Sevilha, então jovem doutor não obstante as enormes responsabilidades acadêmicas, então compartilhadas com seu orientador Joaquín Herrera Flores, fui cada vez mais estreitando vínculos epistemológicos, também no campo das teorias críticas em direito e em direitos humanos. Ali, no antigo Mosteiro de Santa Maria de La Rábida, o mosteiro franciscano instalado em Palos de la Frontera, na província andaluza de Huelva, serviu para abrigar, no século XV a companhia de Colombo para organizar a expedição de conquista ao Novo Mundo; em Palos ainda é mantido o Muelle de las Carabelas, com as réplicas de la Niña, de la Pinta e de la Santa Maria, também a plataforma com o livros que Colombo lia – entre eles Santo Tomás, Avicenas, Averróis; ao lado, o velho monastério agora abrigando, no século XX, a Univesidade Internacional da Andaluzia, e seu programa de mestrado em direitos humanos, que Herrera e David conduziram, por sinal, num movimento contrário, o de recepcionar os estudantes latino-americanos movidos pelas teses decoloniais e de libertação, num processo recíproco de emancipação. Testemunhei todo esse intercâmbio em minha visita docente ao programa, nos final dos anos 1990.
Se há um fio condutor material no sentido epistemológico para caracterizar esse intercâmbio, esse é o que tece o percurso dos processos de luta por liberdade e dignidade, e que nos entrelaça como companheiros de viagem na rota da emancipação: desde Roberto Lyra Filho que lançou a pedra fundante da Nova Escola Jurídica Brasileira – NAIR. David o distingue como interlocutor em Miradas Críticas, mas já antecipara elementos desse diário de viagem quando ele veio a contribuir, a meu convite, de Salo de Carvalho e de José Carlos Moreira da Silva Filho, para a obra que organizamos: Criminologia Dialética, 50 Anos. Um Diálogo com o Legado de Roberto Lyra Filho – http://estadodedireito.com.br/criminologia-dialetica-50-anos-um-dialogo-com-o-legado-de-roberto-lyra-filho/.
Releio para esta recensão Teorias Críticas e Direitos Humanos. Contra o sofrimento e a injustiça social. Organizadores David Sánchez Rubio, Liziane Paixão Silva Oliveira e Carla Jeane Helfemsteller Coelho. Curitiba: Editora CRV, 2016. Meu texto com Nair Heloisa Bicalho de Sousa – Direitos Humanos e Educação: questões históricas e conceituais – na primeira parte do livro: Teoria Crítica: história, educação, libertação, insurgências e lutas, vem na sequência de nossa interlocução. O que pretendemos, Nair e eu, nesse texto, é articular a relação entre Direitos Humanos e educação, tal como David Sánchez Rubio indica “de [que]los nuevos sujetos colectivos [são] capaces de elaborar un proyecto político de transformación social y en donde se construyen nuevas sociabilidades y se establecen reconocimentos recíprocos a partir de una ciudadania popular activa y autónoma” (SÁNCHEZ RUBIO, David. Derechos Humanos Instituyentes, Pensamiento Crítico y Praxis de Liberación. Argentina, España e Mexico: Akal/Inter Pares, 2018, p. 150.
Não é circunstancial, pois, que a monumental Enciclopédia Latino-Americana dos Direitos Humanos (Antonio Sidekum, Antonio Carlos Wolkmer e Samuel Manica Radaelli, organizadores. Blumenau: Edifurb; Nova Petrópolis: Nova Harmonia, 2016), tal como dizem os organizadores, tenha, em sua concepção buscado “construir – por meio de suas 108 entradas (verbetes ou expressões temáticas), desde o conceito de Acesso à Justiça até o fenômeno do Zapatismo – uma gramática fundamental dos direitos humanos latino-americanos, com a intenção de expressar em sua essência uma atitude integracionista, buscando refletir uma experiência intercontinental e realizada por autores dos diversos países latino-americanos”.
No rol dos verbetes ou expressões temáticas, são designados elementos do debate acumulado histórica e politicamente na formação econômica, social, política e jurídica da região, muitos deles localizáveis em outros repertórios críticos ou não. Mas a obra põe em relevo um elenco de categorias novas emergentes do processo histórico de construção de um outro mundo possível desde o sul latino-americano.
Assim, verbetes singulares, inéditos, coligidos com a acuidade e o discernimento crítico da equipe liderada pelo professor Antonio Carlos Wolkmer, são destaques da obra: assessoria jurídica popular, bem-viver, bolivarismo, constitucionalismo emancipatório, constitucionalismo pluralista, criminalização dos movimentos populares, direito alternativo, educação jurídica popular, Fórum social mundial, jurisdição indígena, justiça comunitária, tempo emancipado.
Entre essas expressões distingo, para minha consideração mais interessada, o verbete Direito Achado na Rua (pp. 209-215), elaborado por Ricardo Prestes Pazello. Já se localiza em sentido dicionarizável um verbete bem elaborado alusivo a O Direito Achado na Rua, localizado em Enciclopédia de construção anônima (http://bit.ly/2MNa3cV), fruto de exercício acadêmico (disciplina Pesquisa Jurídica do Curso de Direito da UnB), o verbete da Wikipédia é uma excelente exposição, que cumpre mais o objetivo de divulgação do projeto O Direito Achado na Rua. Oferece um desenvolvimento histórico (com linha do tempo) da proposta, seus desafios (epistemológicos e institucionais, aludindo à criação de um constitucionalismo achado na rua, à criminalização dos movimentos sociais; políticos, educacionais e meios de concretização; identifica as principais críticas e indica referencias midiáticas e bibliográficas) relativas ao campo teórico e político que configura esse, pode-se dizer, movimento.
Também David Sánchez Rubio foi convocado para contribuir, oferecendo um verbete muito interessante – Intervenção Humanitária (p. 485-490) – cujo desdobramento ético, não obstante o limite regulatório desse instituto no direito internacional humanitário, deva cingir-se ao princípio segundo o qual “a vida se gera desde a vida e não desde a morte” (cf. http://estadodedireito.com.br/enciclopedia-latino-americana-dos-direitos-humanos/).
Parceiro engajado nos programas de pós-graduação da Universidade de Brasília (em Direito – Faculdade de Direito; e em Direitos Humanos e Cidadania – Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares), David estará em Banca Examinadora (participação virtual) – qualificação doutoral, no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania – PPGDH, de Maria Inês Adjuto Ulhôa, com o tema: teoria crítica, marxismo e direitos humanos – Compreendendo a emancipação humana. Oportunidade para rever o amigo pois também integro a Banca, que se realizará, por coincidência, no mesmo dia em que esta Coluna Lido para Você será publicada.
Digo rever porque há poucos meses, tivemos na UnB, com participação presencial do professor David, na Banca Examinadora de Eduardo Xavier Lemos. Direitos Humanos Desde e Para a América Latina: Uma Proposta Crítico Dialética a Partir de O Direito Achado na Rua. Tese em cotutela apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília e ao Programa de Doctorado en Derecho de la Universidad de Sevilla. Brasília, 2023, 436 fls.
Conforme sintetizo em http://estadodedireito.com.br/direitos-humanos-desde-e-para-a-america-latina/, Eduardo, com efeito, traz como singularidade em seu texto, examinar a passagem teórico-política entre a concepção epistemológica inscrita na Nova Escola Jurídica Brasileira – NAIR (Roberto Lyra Filho), para o âmbito da práxis, tornado possível pela concepção e pela prática de O Direito Achado na Rua (Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua; Movimento O Direito Achado na Rua (conforme J.J. Gomes Canotilho), pela mediação crítico-dialética, instituinte de Direitos, conforme formula seu co-orientador David Sanchez Rubio, e também em Alexandre Bernardino Costa, sobretudo em sua concepção de poder constituinte permanente.
Aqui se associa a percepção sociológico-filosófica de Fariñas-Dulce, com o enunciado de Ellacuría, uma indicação forte de Sanchez Rubio:
Se trata, por tanto, de un proceso negativo, crítico, y dialéctico, que busca no quedarse en la negación, sino que avanza hacia una afirmación nunca definitiva, porque mantiene en sí misma, como dinamismo real total más que como dinamismo lógico, el principio de superación. Siempre sigue el elemento de desajuste, injusticia y falsedad, aunque en forma cada vez menos negativa, al menos en los casos de avance real en lo ético personal y en lo político social. Y esta continuidad negativa, acompañada por el deseo general de cambiar y mejorar, mantiene activo el proceso. (ELLACURÍA in SENENT , 2012,. 366)[p. 204].
Vou ao Sumário do livro que David Sánchez Rubio acaba de publicar. Nele, além da Introducción. Confluencia de Voces e da Bibliografia, o Autor desenvolve nove capítulos demarcando exatamente as vozes confluentes da viva interlocução que o Autor vem mantendo nesse complexo território da saberes e humanidades que se designa América Latina:
CAPÍTULO PRIMERO. EL PENSAMIENTO DE JESÚS ANTONIO DE LA TORRE RANGEL. EL DERECHO QUE NACE DEL PUEBLO (COMO DERECHO INSURGENTE)
CAPÍTULO SEGUNDO. ALGUNOS APORTES DEL PENSAMIENTO DE FRANZ HINKELAMMERT SOBRE LA IDEA Y LA PRÁCTICA DE DERECHOS HUMANOS
CAPÍTULO TERCERO. EL PENSAMIENTO DE HELIO GALLARDO SOBRE DERECHOS HUMANOS, PRAXIS DE LIBERACIÓN, TRAMAS SOCIALES Y MULTIGARANTÍAS
CAPÍTULO CUARTO. HOMENAJE A ANTONIO CARLOS WOLKMER: UNA VIDA COMPROMETIDA CON LA JUSTICIA SOCIAL Y CON LOS EXCLUIDOS DESDE LA COHERENCIA ACADÉMICA Y EPISTÉMICA
CAPÍTULO QUINTO. ROBERTO LYRA FILHO: DIALÉCTICA HUMANISTA, PLURALISMO JURÍDICO Y PROCESOS DE LUCHA POR LA LIBERTAD Y LA DIGNIDAD
CAPÍTULO SEXTO. EL PUEBLO HACE DERECHO, ABRIENDO ESPACIOS DE LIBERTAD (HOMENAJE A JOSÉ GERALDO DE SOUSA JÚNIOR)
CAPÍTULO SÉPTIMO. AMILTON BUENO DE CARVALHO: UN DERECHO DE OPCIONES CON NARANJAS DULCES Y AMARGAS
CAPÍTULO OCTAVO. PAULO FREIRE, TOMA DE CONCIENCIA Y DIGNIDAD HUMANA: LA LUCHA Y EL GOCE DE LOS DERECHOS DESDE LO INSTITUYENTE
CAPÍTULO NOVENO. EL HUMANISMO Y LO UNIVERSAL EN EL PENSAMIENTO DE LEOPOLDO ZEA
Para David, cada um dos pensadores tem em comum não apenas uma visão crítica das instituições políticas, econômicas e jurídicas ligadas às relações de poder, mas também o fato de apostarem naqueles processos de libertação cujos principais protagonistas são os movimentos sociais que lutam por seus direitos e pela um mundo inclusivo onde cabemos todos. Estou feliz de me ver entre os Autores com os quais considerou relevante fazer interlocução. Não é um episódio, é o fortalecimento de laços, entrelaçados com fios de inteligência e de amizade, algo sentipensante, corazonado, tal como David já revelara em sua participação em 2019, no Seminário Internacional realizado na Universidade de Brasília para celebrar 30 anos do Projeto O Direito Achado na Rua (http://estadodedireito.com.br/o-direito-como-liberdade-30-anos-de-o-direito-achado-na-rua/), com uma comunicação marcante e mobilizadora: O Direito Achado na Rua, Entre lo Constituyente, lo Insituyente y las Praxis de Liberación.
Ao cabo de minha leitura de Miradas Críticas en Torno al Derecho y la Lucha Social: Confluencias con América Latina, uma nota de relevo. É que David Sánchez Rubio vai se tornando cada vez com mais organicidade intelectual e política um pensamento estruturante da emancipação e da libertação, pela mediação teórica crítica no Direito e nos Direitos Humanos.
Em 2014, nesse sentido orgânico, vale registrar sua passagem por Brasília, na UnB, onde participou de Banca de Mestrado no Programa de Mestrado em Direitos Humanos e Cidadania, no CEAM/NEP (Banca de Isis Táboas), ocasião em que concedeu entrevista a Professora Nair Heloisa Bicalho de Sousa, Coordenadora do PPGDH: Direitos Humanos Constituintes e Processos de Luta. Este o título da entrevista publicada em http://odireitoachadonarua.blogspot.com/search?q=david+sanchez+rubio&updated-max=2021-07-28T13:59:00-03:00&max-results=20&start=4&by-date=false. Um trecho, deduzido da questão – Tendo em vista as experiências de diferentes movimentos sociais que lutam por direitos, as quais se combinam com diversas formas de violação de direitos humanos no campo e na cidade, como o senhor avalia as perspectivas futuras dos direitos humanos Brasil? – dá a medida dessa compreensão comum assentada na confiança instituinte que tem sido o campo de interesse de nossas preocupações:
La fuerza de los derechos humanos en eficacia y reconocimiento garantizado se incrementará cuando el poder constituyente popular y democrático, que también puede decantarse a la creación de espacios de dominación y destructores de dignidades, se complemente con los derechos humanos instituidos, que concretizan las luchas instituyentes y emancipadoras populares y que permiten a todo ser humano ser tratado como sujeto actuante e instituyente y no como objeto manipulable, victimizado y prescindible. Desde esta dimensión instituyente y como proceso de lucha, los derechos humanos con su dimensión política, socio-histórica, procesual, dinámica, conflictiva, reversible y compleja, nos permitirá de manera sinestésica espabilarnos de la anestesia en la que estamos sumergidos, con la que los cinco o los seis sentidos actúan simultáneamente las veinticuatro horas del día y en todo lugar. Son prácticas que se desarrollan diariamente, en todo tiempo y en todo lugar y no se reducen a una única dimensión normativa, filosófica o institucional, ni tampoco a un único momento histórico que les da un origen. Derechos humanos guardan más relación con lo que hacemos en nuestras relaciones con nuestros semejantes de manera individual y colectiva, ya sea bajo lógicas o dinámicas de emancipación o de dominación, que con lo que nos dicen determinados especialistas lo que son (aunque también repercute en nuestro imaginario y en nuestra sensibilidad sobre derechos humanos). Lo instituido está siempre afectado por lo instituyente tanto popular como oligárquico o poliárquico. Y debe ser el primer poder desde un prisma emancipador, el que debe primar. Todo esto tiene mucha relación con los derechos humanos militantes que desde hace años ya señalara Roberto Lyra Filho y desarrollara José Geraldo de Sousa Jr., junto a esa capacidad de la sociedad de producir derechos de manera liberadora.
Traduzindo
A força dos direitos humanos em termos de efetividade e reconhecimento garantido aumentará quando o poder constituinte popular e democrático, que também pode optar pela criação de espaços de dominação e destruidores da dignidade, for complementado pelos direitos humanos instituídos, que concretizam as lutas fundadoras e popular emancipatório e que permitem que todo ser humano seja tratado como um sujeito atuante e instituinte e não como um objeto manipulável, vitimizado e dispensável. A partir desta dimensão instituinte e como processo de luta, os direitos humanos com sua dimensão política, sócio-histórica, processual, dinâmica, conflituosa, reversível e complexa, nos permitirão despertar sinesteticamente da anestesia em que estamos submersos, com os quais os cinco ou seis sentidos atuam simultaneamente vinte e quatro horas por dia e em todos os lugares. São práticas que se desenvolvem diariamente, em todos os tempos e em todos os lugares e não se reduzem a uma única dimensão normativa, filosófica ou institucional, nem a um único momento histórico que lhes dá origem. Os direitos humanos estão mais relacionados com o que fazemos em nossas relações com nossos semelhantes, individual e coletivamente, seja sob lógicas ou dinâmicas de emancipação ou de dominação, do que com o que certos especialistas nos dizem o que são (embora também afete nosso imaginário e em nossa sensibilidade para com os direitos humanos). O instituído é sempre afetado pelo instituinte, tanto popular quanto oligárquico ou poliárquico. E deve ser o primeiro poder de um prisma emancipatório, aquele que deve prevalecer. Tudo isso tem muito a ver com os direitos humanos militantes que Roberto Lyra Filho já aponta há anos e que José Geraldo de Sousa Jr. vem desenvolvendo, junto com essa capacidade da sociedade de produzir direitos de forma libertadora.
Trata-se, parafraseando David e recuperando sua reflexão na entrevista concedida a Professora Nair Bicalho já indicada, de realizar – e para tanto vale as perspectivas abertas por essas Miradas Críticas – luchas sociales colectivas e individuales, en forma de procesos de resistencia de movimientos sociales por espacios de libertad y de una vida digna de ser vivida y acciones cotidianas de reivindicación, por sociabilidades y relaciones de reconocimiento de la dignidad en todas las esferas de lo social que sepan convocar y articular, tomando conciencia de la dimensión pre-violatoria de los derechos humanos y que dependen de nuestras acciones concretas diarias con las que unos a otros nos tratamos como sujetos y no como objetos, desde dinámicas de reconocimiento mutuo, horizontales y no verticales y jerárquicas bajo el patrón de superiores/inferiores (lutas sociais coletivas e individuais, na forma de processos de resistência dos movimentos sociais por espaços de liberdade e uma vida digna e ações cotidianas de reivindicação, por sociabilidades e relações de reconhecimento da dignidade em todas as esferas do social que saibam convocar e articular, tomando consciência da dimensão pré-violação dos direitos humanos e que dependem de nossas ações concretas cotidianas com as quais nos tratamos como sujeitos e não como objetos, a partir de dinâmicas de reconhecimento mútuo, horizontais e não verticais e hierárquicas sob o comando superior /padrão inferior).
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
El Derecho Que Nace Del Pueblo Como Derecho Insurgente
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Este já é um terceiro livro em que se argumenta que a lei nasce do povo. O Autor, Jesús Antonio de la Torre Rangel, acrescenta que essa produção jurídica do povo é direito insurgente. Neste volume, seu autor toma como base a exposição do pluralismo jurídico e uma melhor compreensão das propostas e recolhe várias das experiências analisadas em El derecho que se naciendo del pueblo, numa atualização fruto de suas pesquisas continuadas e da forte interlocução com outros pesquisadores, latino-americanos, entre esses pesquisadores brasileiros. O que é novo é que o pluralismo jurídico o reforça teoricamente; analisa outras novas experiências sócio-jurídicas e propõe outros pressupostos teóricos, onde se destaca a categoria de direito insurgente (derecho insurgente) desenvolvida por militantes juristas brasileiros na assessoria jurídica popular, para analisar as experiências do direito nascido do povo que expõe.
A convite do Autor preparei um prólogo que abre a edição, na bem cuidada tradução que sua equipe cuidou de fazer e que se reveste de um enunciado que o título que proprus sugere: Ser Sujeito de Sua Própria Experiência de Humanização e de Emancipação.
Vou ao prólogo porque, de certo modo, ele traduz a minha apreensão da obra desde quando li o seu original. Aqui ele tem o sabor de uma degustação do livro. Conservo a estrutura de artigo, com as referências bibliográficas. Um arranjo útilo para quem se interesse pelo tema ou, como foi o meu caso, o retome para orientar outra ordem de reflexão. O material que elaborei, nesse sentido, foi apropriado na preparação de obra que co-organizei e que já está no prelo para publicação prevista no dia 31 de maio: O Direito Achado na Rua. Sujeitos Coletivos: Só a Luta Garante os Direitos do Povo!, volume 7, da Coleção Direito Vivo, Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2023.
Para a vertente crítica que pensa o Direito como emancipação e o compreende como criação do social, a hipótese do pluralismo jurídico e a condição da insurgência, são critérios constitutivos do campo, das referências possíveis de teorias de sociedade e de justiça, e de qualquer consideração que se elabore sobre o tema.
Assim, por exemplo, em minhas leituras, articulando questões sociais e possibilidades teóricas, com esse objetivo, quando tratei de esboçar a minha crítica sobre o processo de formação, conforme por exemplo, meus primeiros estudos (SOUSA JUNIOR, 1984), se mostrou inafastável abrir um capítulo sobre a pluralidade de ordenamentos e, simultaneamente, na sequência, situar a questão nas articulação entre as condições sociais e as possibilidades teóricas que abrem ensejo para a materialização do jurídico, na tensão dialética entre o instituinte e o instituído (SOUSA JUNIOR, 2002).
Algo, anota Marilena Chauí, que abre a perspectiva para a “apreensão do Direito no campo das relações sociais e políticas entre classes, grupos e Estados diferentes [que] permite melhor perceber as contradições entre as leis e ajustiça e abrir a consciência tanto quanto a prática para a superação dessas contradições [o que] significa abrir o Direito para a História e, nessa ação, para a política transformadora” (CHAUÍ, 1982).
Na consideração dessas interpelações, tanto políticas quanto epistemológicas, nenhum estudo terá sido desenvolvido sob a perspectiva da crítica jurídica e dos direitos humanos, sem que se estabeleça um vínculo de interlocução com a precedência de pesquisas e de análises de Jesús Antonio de la Torre Rangel, na sua sofisticada e engajada concepção de Derecho que Nasce del Pueblo como Derecho Insurgente.
De fato, no plano teórico, considerando as principais abordagens, todos os autores e autoras (pelo menos aqueles com os quais mais proximamente mantenho diálogo) – Boaventura de Sousa Santos, Carlos Maria Cárcoca, Oscar Correas, Raquel Yrigoyen Fajardo, David Sanches Rubio, Miguel Pressburger, Miguel Baldez, Luiz Edson Fachin, Amilton Bueno de Carvalho, Edmundo Lima de Arruda Junior, Lédio Rosa de Andrade, Antonio Carlos Wolkmer, Salo de Carvalho, José Carlos Moreira Silva Filho conformaram suas aproximações, em diálogo constante e intenso com o professor de la Torre Rangel.
Na articulação dos fundamentos do pluralismo e da insurgência enquanto filosofia e teoria do Direito que nasce do povo, assertivamente, “uma nova teoria do Direito”, desde 1986, com El Derecho que nasce del pueblo, depois, em 2012, com El Derecho que sigue nascendo del pueblo. Movimientos sociales y pluralismo jurídico; e agora. 2022, com El Derecho que Nasce del Pueblo como Derecho Insurgente, de la Torre Rangel percorre um caminho disciplinado, imaginativo e criativo que consolida uma referência para o campo.
Nas suas próprias palavras, sempre atualizando “la exposición del pluralismo jurídico como base y mejor entendimento de la propuesta y recogemos varias de las experiências analizadas” nesse formidável percurso, com a novidade que se estriba “em que el pluralismo jurídico lo reforzamos teoricamente; analizamos otras nuevas experiências sociojurídicas” e, com mais pressupostos teóricos, “destacando la categoria de derecho insurgente – direito insurgente – desarrolhada por juristas brasileños militantes em la asesoría jurídica popular, para analizar las experiências de Derecho que nace del pueblo”.
Folgo em me encontrar junto com colegas brasileiros, nesse diálogo interpretativo. Esse diálogo estabelecido desde antes, nas reflexões sobre o tema do pluralismo jurídico, já me inscrevera entre as referências do professor De la Torre Rangel, sob a perspectiva de minha abordagem enquanto direito achado na rua (SOUSA JUNIOR, 2007). Agora, nesta nova obra, o professor De la Torre Rangel me inscreve em suas referências com um ítem de seu livro O Direito Achado na Rua, como fundamento teórico y su relación com otras miradas críticas al Derecho. E o faz, fico satisfeito, porque ele percebe a utilização de uma racionalidade analógica (categoria hermenêutica fundamental na concepção do Autor), que expressa “no una visión unívoca, que pretenda uniformar las posiciones críticas del Derecho desde los empobrecidos em sus derechos, podemos decir que El Derecho Hallado em la Calle es estrictamente derecho alternativo, es outro derecho respecto del derecho positivo, expressión éste muchas veces de injusticia; parte, además, de aceptar um pluralismo jurídico comunitário participativo, que constituye su base, al aceptar el Derecho como uma producción social em processo; tabién pude identicarse com el derecho insurgente, ya que em ciertos momentos los sujetos sociales oponen al Estado y a las clases sociales hegemónicas um derecho em resistência y lucha política”.
Uma mais estendida e circunstanciada aproximação entre O Direito Achado na Rua e o Direito Insurgente, foi apresentada pelo professor De la Torre Rangel, durante o Seminário Internacional O Direito como Liberdade 30 Anos do Projeto O Direito Achado na Rua, em sua contundente comunicação Constitucionalismo Achado na Rua em México: de los acuerdos de San Andrés al concejo indígena de gobierno (De la TORRE RANGEL, 2021).
As experiências registradas no México, tendo como base as lutas sociais por emancipação, têm o caráter de uma revisão crítica da historiografia do país, na percepção da insurgência e do processo instituinte de direitos, repondo o tema do constitucionalismo desde baixo, nas anotações de planos e acordos estabelecidos nos embates para estabelecer projetos de sociedade. Relevo para os acordos de San Andrés, pela conformação constitucional que os caracterizam.
Como anota a peruana Raquel Yrigoyen Fajardo (YRIGOYEN, 2011), aferindo as experiências constitucionais na América Latina, incluindo o Canadá, há um primeiro ciclo caracterizado como “constitucionalismo multicultural” (Canadá, 1982), (Guatemala, 1985), (Nicarágua 1987) e (Brasil, 1988). O segundo ciclo referente ao “constitucionalismo pluricultural” (Colômbia, 1991), (México e Paraguai, 1992), (Peru, 1993), Bolívia e Argentina, 1994), (Equador, 1996 e 1998) e (Venezuela, 1999). E o terceiro ciclo, finalmente, é reconhecido pelo alcance de um “constitucionalismo plurinacional”, a partir das inovadoras Constituições do (Equador, 2008) e (Bolívia, 2009), nas quais, diz Raquel, já se trata de um ciclo pluricultural, plurinacional e ecológico, nas quais “se pluraliza a definição de direitos, a democracia e a composição dos órgãos públicos e as formas de exercício do poder”.
Raquel Yrigoyen, que já inscrevera em sua concepção a tese de um constitucionalismo plurinacional, tem avançado fortemente, desde seu diálogo com as cosmogonias e cosmovisões dos povos ancestrais, em direção a um constitucionalismo ecológico ou eco-constitucionalismo (YRIGOYEN, 2021), sem contudo abdicar de suas teses originais sobre o pluralismo jurídico.
Ainda que nessa passagem o foco da leitura do pluralismo jurídico, desde a leitura de Raquel Yrigoyen, compreendido propriamente como pluralismo jurídico igualitário (consulte-se entre outros estudos, os escritos fundamentais com aberturas inéditas para a aplicação dessa categoria, de Boaventura de Sousa Santos – sempre presente nas atividades do IIDS -, até o mais recente de Antonio Carlos Wolkmer e de Maria de Fatima S. Wolkmer, (WOLKMER; WOLKMER, 2020), se dirija aos povos indígenas e originários, essa acepção, orientada “por uma racionalidade jurídica diferente”, que nela, alcança também os ronderos campesinos, em enfoque autoral bem conhecido:
“Outro claro ejemplo de racionalidade jurídica diferente, resulta em palavras de Raquel Yrigoyen, la de las Rondas Campesinas, que si bien nacen em uma primera etapa, como respuesta a uma demanda de seguridade, frente al robô y el abigeato se traduce finalmente, em prácticas sociales de auto administración de justicia” (SONZA, Bettina. 1993).
Tal como dissemos eu e meu colega Antonio Escrivão Filho (ESCRIVÃO FILHO; SOUSA JUNIOR, 2019), mais que reconhecimento de direitos, tais ciclos tratam do grau de abertura à efetiva participação constituinte das distintas identidades, aliado à efetiva incorporação de seus valores sociais, econômicos, políticos e culturais não apenas no ordenamento jurídico, mas no desempenho institucional dos poderes, entes e entidades públicas e sociais.
Ou seja, a partir do que atualmente, com as experiências constituintes em curso na América Latina, com as novidades trazidas pela proposta de Constituição do Chile, aprofundam-se temas emergentes de um constitucionalismo em chave decolonial, que para Antonio Carlos Wolkmer em texto publicado há poucos dias – Notas para Pensar la Descolonización del Constitucionalismo en Latinoamérica in Constitucionalismo en clave descolonial / Amélia Sampaio Rossi … [et al.].; Liliana Estupiñán- Achury, Lilia Balmant Emerique, editoras académicas. — Bogotá: Universidad Libre, 2022.
A novidade agora vem do Chile, e aponta para o que Wolkmer identifica como propostas de um constitucionalismo crítico na ótica do sul global referida a aportes do constitucionalismo transformador de que fala Boaventura de Sousa Santos, do constitucionalismo andino, pluralista, horizontal decolonial, comunitário da alteridade, ladino-amefricano e, ainda, do constitucionalismo achado na rua.
É a partir dessa perspectiva, algo que deixo como sugestão ao autor para suas pesquisas futuras considerando que o que vou dizer não se colocava quando o trabalho foi publicado. Ou seja, a partir do que atualmente, com as experiências constituintes em curso na América Latina, aprofundar temas emergentes de um constitucionalismo em chave decolonial.
Disso cuida Antonio Carlos Wolkmer em texto publicado há poucos dias – Notas para Pensar la Descolonización del Constitucionalismo en Latinoamérica in Constitucionalismo en clave descolonial / Amélia Sampaio Rossi … [et al.].; Liliana Estupiñán- Achury, Lilia Balmant Emerique, editoras académicas. — Bogotá: Universidad
Para Wolkmer, “la propuesta de un constitucionalismo crítico bajo la óptica del sur global puede ser contemplada en los aportes innovadores de la propuesta del consti tucionalismo transformador de Sousa Santos, B. de y de las variaciones presentes que tienen en cuenta las epistemologías del sur y, más directamente, del constitucionalismo andino, ya sea en la vertiente del constitucionalismo pluralista (Yrigoyen Fajardo, 2011; Wolkmer, 2013, p. 29; Brandão, 2015), del constitucionalismo horizontal descolonial (Médici, 2012), constitucionalismo comunitario de la alteridad (Radaelli, 2017), constitucionalismo crítico de la liberación (Fagundes, 2020), constitucionalismo ladino-amefricano (Pires, 2019) o aún del constitucionalismo hallado en la calle (Leonel Júnior, 2018)”.
Realmente Gladstone Leonel Junior trouxe essa designação, ainda sem a aprofundar em seu livro de 2015, reeditado – Novo Constitucionalismo Latino-Americano: um estudo sobre a Bolívia, 2a. Edição. SILVA JUNIOR, Gladstone Leonel. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, (SILVA JUNIOR, 2018).
Na segunda edição, novas questões ensejam novas análises para a construção de um projeto popular para a América Latina a partir do que a experiência na Bolívia e em outros países nos apresenta. Das novidades dessa edição, a Editora e o Autor destacam: Um capítulo a mais. Esse quarto capítulo debate “O Constitucionalismo Achado na Rua e os limites apresentados em uma conjuntura de retrocessos”. A importância do mesmo está na necessidade de configurar um campo de análise jurídica que conjugue a Teoria Constitucional na América Latina com o Direito Achado na Rua, situando então, o Constitucionalismo Achado na Rua.
O livro, aliás, pavimenta o caminho para estudos e pesquisas nessa dimensão do constitucionalismo e o próprio professor Gladstone Leonel, em sua docência na Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense, criou a disciplina “O Constitucionalismo Achado na Rua e as epistemologias do Sul”, ofertada no programa de pós-graduação em Direito Constitucional na UFF. O programa da disciplina e maiores informações podem ser obtidos no seguinte site: http://bit.ly/2NqaABn.
Resenhei esse percurso em http://estadodedireito.com.br/novo-constitucionalismo-latino-americano-um-estudo-sobre-bolivia/. Claro que em O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática, volume 2, cit., no capítulo (Parte IV): O Direito Achado na Rua: Desafios, Tarefas e Perspectivas Atuais, já inscrevemos uma anotação programática nessa direção, ao indicar (p. 224): que “Essas experiências refletem uma espécie de ‘Constitucionalismo Achado na Rua’, em que os atores constituintes, os protagonistas desses processos, que envolveram povos indígenas, feministas, campesinas e campesinos, trabalhadoras e trabalhadores e setores historicamente excluídos, arrancam do processo constitucional novas formas de pluralismo jurídico e conquistas de Direitos”.
Com Gladstone eu também trabalhei o tema, procurando fixar a sua mais precisa enunciação. Assim, em Revista Direito e Práxis, On-line version ISSN 2179-8966 (http://old.scielo.br/scielo.php?pid=S2179-89662017000201008&script=sci_abstract&tlng=pt). LEONEL JUNIOR, Gladstone and GERALDO DE SOUSA JUNIOR, José. A luta pela constituinte e a reforma política no Brasil: caminhos para um “constitucionalismo achado na rua”. Rev. Direito Práx. [online]. 2017, vol.8, n.2, pp.1008-1027. ISSN 2179-8966. https://doi.org/10.12957/dep.2017.22331, valendo o resumo: “A crise política brasileira, evidenciada a partir de junho 2013, enseja novas reflexões para a conjuntura recente. A reforma do sistema político é necessária e um das formas de viabilizá-la é por meio de uma Assembleia Constituinte. Sobretudo, se observado os movimentos político-jurídicos dos últimos 15 anos nos países da América Latina. Cabe refletir sobre o momento e as possibilidades dessa aposta pautando-se em um ‘constitucionalismo achado na rua’”.
Quase que simultaneamente, também com Gladstone publicamos em La Migraña… Revista de Análisis Político, nº 17/2016. Vicepresidencia del Estado Plurinacional de Bolívia: La Paz, o artigo La lucha por la constituyente y reforma del sistema político em Brasil: caminhos hacia um ‘constitucionalismo desde la calle’.
Com essas referências, alcança-se o patamar que, juntamente com Antonio Escrivão Filho (ESCRIVÃO FILHO; SOUSA JUNIOR, 2016), especialmente no Capítulo V – América Latina, desenvolvimento e um Novo Constitucionalismo Achado na Rua, páginas 123-150), enunciamos, vale dizer, que o Constitucionalismo Achado na Rua vem aliar-se à Teoria Constitucional que percorre o caminho de retorno a sua função social. Uma espécie de devolução conceitual para a sociedade, da função constitucional de atribuir o sentido político do Direito, através do reconhecimento teórico-conceitual da luta social como expressão cotidiana da soberania popular. Um reencontro entre a Teoria Constitucional, e o Direito compreendido como a enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade (p. 149).
Com pesquisadores do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua (Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq), organizamos o livro O Direito Achado na Rua: questões Emergentes, revisitações e travessias (SOUSA JUNIOR, 2021), um capítulo é dedicado ao tema: Constitucionalismo Achado na Rua, com os temas A Democracia Constitucional e a Proposta para um Constitucionalismo Inclusivo no Brasil, de Bárbara R. R. C. de Oliveira, Jean Patrício da Silva, João Paulo Santos Araújo, Samuel Barbosa dos Santos e Betuel Virgílio Mvumbi; e O Constitucionalismo Achado na Rua, os Sujeitos Coletivos Instituintes de Direito e o Caso APIB na ADPF nº 709, de Marconi Moura de Lima Barum, Mauro Almeida Noleto, Priscila Kavamura Guimarães de Moura e Renan Sales de Meira.
É sempre estimulante poder construir com os compromissos de engajamento, sobretudo epistemológico, escoras teóricas para anaçar nessas emergências, revisitações e travessias, em arcos de cooperação não apenas orgânicos – os Grupos de Pesquisa – mas nos encontros conjunturais com aliados acadêmicos nos eventos, disciplinas e projetos que nossos coletivos de ensino, extensão e pesquisa proporcionam.
É nesse ambiente que podemos localizar abordagens instigantes que acolhem os achados desse processo, assimilando-os as suas estruturas de análise e de aplicação, e prorrogando seu alcance heurístico para novos níveis de discernimento. Assim, nesse recorte aqui realizado, o texto de Antonio Carlos Bigonha (Subprocurador-Geral da República, atua na 2a. Seção do Superior Tribunal de Justiça, proferindo pareceres em Direito Privado. Foi presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (2007/2011) e coordenador da 6a. Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais da PGR (2019/2021), além de destacado compositor, pianista e mestre em Música pela Universidade de Brasília. O texto, originalmente publicado na página do IREE, Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa, foi reproduzido pelo Expresso 61 (https://expresso61.com.br/2022/02/17/darcy-ribeiro-a-unb-e-o-constitucionalismo-achado-na-rua/), com o título Darcy Ribeiro, a UnB e o constitucionalismo achado na rua:
“A interpretação constitucional que setores retrógrados da magistratura e do Ministério Público adotaram para o exercício arbitrário de suas prerrogativas e atribuições, ao longo dos últimos 30 anos, faria corar monges de mármore, para usar uma expressão muito referida pelo ministro Gilmar Mendes, em sessões de julgamento no STF. Desconheço em que fonte foram beber seu fundamento teórico, fruto talvez de uma corrupção semântica, resultado da leitura equivocada da matriz germânica ou estadunidense. Neste contexto, o Direito Achado na Rua afirma-se como um poderoso vetor hermenêutico, uma abertura capaz de barrar os exageros do neoconstitucionalismo e oferecer novas epistemologias que conduzam à interpretação da Constituição e das leis do País para a afirmação e o fortalecimento dos direitos humanos, segundo uma agenda comprometida com os interesses do nosso povo. E ouso supor que Darcy Ribeiro e Machado Neto subscreveriam, novamente, esta virada hermenêutica”.
Em comunicação oral realizada no GT 12- Constitucionalismo achado na rua, por ocasião do Seminário Internacional O Direito como Liberdade – 30 Anos do Projeto O Direito Achado na Rua, Menelick de Carvalho Netto e Felipe V. Capareli, com o título “O Direito Encontrado na Rua, a Luta por um Constitucionalismo Plural e Inclusivo, e a necessidade de enfrentar o risco autoritário de uma política simplista e privatizante. Visão dicotômica do Estado e do Direito” (Revista da Defensoria Pública do Distrito Federal (RDPDF, 2019, vol. 1, n. 2) – Dossiê Ordenamentos jurídicos, monismos e pluralismos: O Direito Achado na Rua e as possibilidades de práticas jurídicas emancipadoras), também extraem consequências dessa dimensão constitucional estabelecida na rua.
É com esse acumulado que chegamos ao Seminário Internacional O Direito como Liberdade: 30 Anos do Projeto O Direito Achado na Rua, realizado em Brasília, na UnB, em dezembro de 2019. No programa toda uma seção (Seção III) para o tema Pluralismo Jurídico e Constitucionalismo Achado na Rua. Esse material veio para o volume 10 da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade. Brasília: Editora UnB/Editora da OAB Nacional, 2021. Na seção podem ser conferidos os textos: Pluralismo Jurídico Comunitário-Participativo: processos de descolonização desde o Sul, de Antonio Carlos Wolkmer; A Contribuição do Direito Achado na Rua para um Constitucionalismo Democrático, de Menelick de Carvalho Netto; Constitucionalismo Achado na Rua em México: de los acuerdos de San Andrés al concejo indígena de gobierno, de Jesús Antonio de la Torre Rangel; O Direito à Alimentação como um Direito Humano Coletivo dos Povos Indígenas, de Raquel Z. Yrigoyen Farjado; e Constitucionalismo Achado na Rua: reflexões necessárias, de Gladstone Leonel Júnior, Pedro Brandão, Magnus Henry da Silva Marques (SOUSA JUNIOR, 2021).
É importante “recordar que o constitucionalismo é permanente tentativa de se instaurar e se efetivar concretamente a exigência idealizante que inaugura uma modernidade no nível da organização de uma sociedade complexa, incapaz de lançar mão de fundamentos absolutos e que, por isso, só pode legitimar seu próprio sistema de direitos na medida em que os potenciais podem se reconhecer como coautores e autoras das normas que os regem. Ou seja, ou o direito é constitucionalmente achado na rua e nas ruas, e com as ruas, é construído e reconstruído de forma plural e inclusiva, ou, sem dúvida, tende-se a privatizar o próprio Estado, mediante a colonização do direito por uma lógica simplista binária de cunho plebiscitário e na da democrática, pois infensa a qualquer eficaz de bate”.
Para o constitucionalista português J. J. Gomes Canotilho, em sede de debate que envolve teorias de sociedade, teorias de justiça e teorias constitucionais, cuida-se de ter atenção à multiplicidade de sujeitos que se movem no debate constitucional contemporâneo que tende a abrir expectativas de diálogo político estruturado na linguagem do direito, gerando na expressão dele, “posições interpretativas da Constituição” que emergem desse processo e formam uma luta por posições constituintes, luta que continua depois de aprovada a constituição (CANOTILHO, J. J. Gomes. Cf. Entrevista que me concedeu: Pela Necessidade de o Sujeito de Direito se Aproximar dos ‘Sujeitos Densos’ da Vida Real. Constituição & Democracia. Brasília: Faculdade de Direito da UnB, n. 24, julho de 2008, p.12-13), luta travada pela disposição a ir para o meio da rua, pois “do outro lado da rua, o ‘direito achado na rua’ e, perante o sangue vivo que brota dos vasos normativos da realidade e a sedução de um direito outro, ao direito formal das constituições, códigos e leis, compreende-se que o discurso hermenêutico dos juristas mais não seja que um manto ocultador do insustentável peso do poder” (CANOTILHO, 2008a).
Ao final uma nota para novas aproximações a partir do diálogo que a instigante reflexão do professor Jesús Antonio de la Torre Rangel provoca, considerando que a sua obra atual, em ser uma continuidade adensadora de pressupostos epistemológicos para a crítica jurídica, é um completo catálogo de experiências confirmadoras do direito alternativo, do uso alternativo do Direito, do pluralismo jurídico e, ao fim e ao cabo, do direito insurgente, que surge do povo, pela emergência de sujeitos coletivos de direitos (SOUSA JUNIOR, 1990), que se inscrevem nos movimentos sociais, protagonistas de sua própria experiência de humanização e de emancipação, já que o humano é projeto, experiência na história (ESCRIVÃO FILHO; SOUSA JUNIOR, 2019a): “El derecho insurgente, del que trata este libro, forma parte de um processo de liberación de la alienación u opresión; se opone a la legalidade de la injusticia. Em el texto hemos destacado, sobre todo, las luchas indígenas y campesinas, por la autonomia y la defensa del território, como uma práctica jurídico-política de pueblos índios y campesinos; práctica en que [se materializa] el derecho que nace del pueblo como derecho insurgente”.
Referências
BIGONHA, Antonio Carlos. Darcy Ribeiro, a UnB e o constitucionalismo achado na rua. IREE, Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa, foi reproduzido pelo Expresso 61 (https://expresso61.com.br/2022/02/17/darcy-ribeiro-a-unb-e-o-constitucionalismo-achado-na-rua/), com o título Darcy Ribeiro, a UnB e o constitucionalismo achado na rua.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Pela Necessidade de o Sujeito de Direito se Aproximar dos ‘Sujeitos Densos’ da Vida Real. Entrevista. Observatório da Constituição e da Democracia, nº 24. Brasília: Faculdade de Direito da UnB, 2008.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estudos sobre Direitos Fundamentais. Coimbra; São Paulo: Coimbra Editora/Editora Revista dos Tribunais, 2008ª.
CAPARELI, Felipe V.; CARVALHO NETTO, Menelick. O Direito Encontrado na Rua, a Luta por um Constitucionalismo Plural e Inclusivo, e a necessidade de enfrentar o risco autoritário de uma política simplista e privatizante. Visão dicotômica do Estado e do Direito”. Revista da Defensoria Pública do Distrito Federal (RDPDF, 2019, vol. 1, n. 2) – Dossiê Ordenamentos jurídicos, monismos e pluralismos: O Direito Achado na Rua e as possibilidades de práticas jurídicas emancipadoras.
CHAUÍ, Marilena. Roberto Lyra Filho ou da Dignidade Política do Direito. In Direito e Avesso. Boletim da Nova Escola Jurídica Brasileira. Ano I, nº 2. Brasília: Edições Nair, 1982
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Eduardo Xavier Lemos, em Direitos Humanos Desde e Para a América Latina: Uma Proposta Crítico Dialética a Partir de O Direito Achado na Rua, tese em cotutela apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília e ao Programa de Doctorado en Derecho de la Universidad de Sevilla. Brasília, 2023 (cf. minha recensão na Coluna Lido para Você que publico semanalmente no Jornal Estado de Direito (http://estadodedireito.com.br/direitos-humanos-desde-e-para-a-america-latina/), anota a passagem em que Marilena Chauí (Roberto Lyra Filho ou da Dignidade Política do Direito, Revista Direito & Avesso, Ano I, nº 2. Brasília: Edições Nair, 1982) chama à compreensão da gênese da própria justiça e do direito em sua apreensão dialética, vale dizer, ou como ela própria diz, a apreensão do direito no campo das relações sociais e políticas entre classes, grupos e Estados diferentes permite melhor perceber as contradições entre as leis e a justiça e abrir a consciência tanto quanto a prática para a superação dessas contradições. Isso significa abrir o Direito para a História e, nessa ação, para a política transformadora.
Na tese Eduardo assimila a dialeticidade inscrita nesse processo propriamente histórico, em diálogo com uma de suas referências teóricas presente na Banca:
Pero, además, se trata de un proceso no acabado, sino abierto en su evolución hacia la aparición de nuevos derechos y hacia la reinterpretación y transformación de los existentes. Ahora bien, tras dicho proceso evolutivo o de formación de los derechos humanos, encontramos también una dimensión -parafraseando a Ferrari- «exquisitamente sociojurídica»*, en cuanto se trata de un proceso prelegislativo y de un proceso espontáneo de reivindicación de «derechos» -no reconocidos todavía por el derecho oficial- frente a conflictos sociales o a necesidades humanas. (FARIÑAS DULCE, Maria Jose. 2003, p. 358 [p. 224].
Eduardo, com efeito, traz como singularidade em seu texto associa a percepção sociológico-filosófica de Fariñas-Dulce, com o enunciado de Ellacuría, uma indicação forte de Sanchez Rubio, autor que conserva profunda afinidade e parceria com de la Torre Rangel::
Se trata, por tanto, de un proceso negativo, crítico, y dialéctico, que busca no quedarse en la negación, sino que avanza hacia una afirmación nunca definitiva, porque mantiene en sí misma, como dinamismo real total más que como dinamismo lógico, el principio de superación. Siempre sigue el elemento de desajuste, injusticia y falsedad, aunque en forma cada vez menos negativa, al menos en los casos de avance real en lo ético personal y en lo político social. Y esta continuidad negativa, acompañada por el deseo general de cambiar y mejorar, mantiene activo el proceso. (ELLACURÍA in SENENT , 2012,. 366)[p. 204].
Tudo isso conduzindo, segundo Eduardo a uma visão complexa, dialética e plural dos direitos humanos – designados no sentido instituinte desde Lyra Filho, Joaquín Herrera Flores, David Sanchez Rubio, assim como em Antonio Escrivão Filho no debate que comigo propõe sobre o tema – que se colocam como síntese da possibilidade humanizadora, não só como expressão conceitual-filosófica, do humanismo dialético que Lyra Filho formula, em sua leitura hegeliano-marxista-sartreana, mas também no processo de luta por reconhecimento de subjetividades coletivas emancipadas tituláveis de direitos, da própria constitutividade material dos sujeitos inscritos nos movimentos que conduzem essas lutas e que realizam politicamente o humano (cf. Hegel, o humano não é um decorrência de sua origem biológica, mas uma experiência na história; não se nasce humano, torna-se humano).
Mas nem é necessário ir radicalmente a uma perspectiva de libertação para encontrar a insurgência. Basta ter a cognição disponível, aberta às emergências que a realidade gesta, ainda que a partir de leituras mais funcionais e atentas à dinâmica da vida privada, como se pode constatar em autores desse campo, dotados de lúcida apreensão do real.
Veja-se, em destaque, Stefano Rodotà, grande civilista mas que teve na política o vislumbre progressista para inferir o acicate das transformações que marcam o social. Falecido em 2017, pouco antes, em 2013, ganhou a quinta edição do Prêmio De Sanctis de ensaios com O direito a ter direitos (Laterza).
Este é o novo mundo dos direitos. Um mundo não pacificado, mas atravessado ininterruptamente por conflitos e contradições, por negações muitas vezes muito mais fortes que reconhecimentos. Um mundo muitas vezes e muitas vezes doloroso, marcado pela opressão e pelo abandono. E assim “os direitos falam”, são o espelho e a medida da injustiça, e uma ferramenta para combatê-la. O registro minucioso das infrações não autoriza conclusões de liquidação. Só porque sabemos que existe um direito violado é que podemos denunciar a violação, revelar a hipocrisia de quem o proclama no papel e o nega na prática, fazer coincidir a negação com a opressão, agir para que as palavras correspondam aos factos.
Para ele, uma realidade que deriva do protagonismo de múltiplos sujeitos, que acabam por afirmar “uma inegável necessidade de direitos, e de direitos, manifesta-se por toda a parte, desafia todas as formas de repressão, enerva a própria política”.
É o movimento que ele caracteriza como condição para afirmar direito a ter direitos:
com sua ação cotidiana, diferentes sujeitos encenam uma ininterrupta declaração de direitos, que tira sua força não de alguma formalização ou reconhecimento de cima, mas da profunda convicção de homens e mulheres que só assim podem encontrar reconhecimento e respeito pela sua dignidade e pela sua própria humanidade. Estamos diante de uma conexão inédita entre a abstração dos direitos e a concretude das necessidades, que põe em funcionamento sujeitos reais. Certamente não os “sujeitos históricos” da grande transformação moderna, a burguesia e a classe trabalhadora, mas uma pluralidade de sujeitos agora conectados entre si por redes planetárias. Não um “intelecto geral”, nem uma multidão indeterminada
Mas que ainda que “todos estes sujeitos ignoram o que, no final do século XVIII, teve o seu início em torno das duas margens do “Lago Atlântico”, não sucumbem a alguma “tirania de valores”, mas interpretam, cada um à sua maneira, a liberdade e direitos ao longo do tempo que vivemos”. Trata-se de “algo mais profundo, que tem suas raízes na condição humana”.
Em última análise, completa Rodotà: “Uma condição histórica, porém, não uma natureza da qual extrair a essência dos direitos. Por que, de fato, só agora tantos malditos da terra os reconhecem, os invocam, os desafiam? Por que eles são os protagonistas, os rabdomantes de um “direito achado na rua” “«diritto trovato per strada»?”.
É o que vem demonstrando Jesús Antonio de la Torre Rangel em sua trilogia do Direito Insurgente, que a presente edição representa um capítulo de interpelante atualização.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
Nossa história não começa em 1988: o direito dos povos indígenas à luz da justiça de transição
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
MAÍRA PANKARARU. “Nossa história não começa em 1988”: o direito dos povos indígenas à luz da justiça de transição. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília. Brasília: Faculdade de Direito da UnB, 2023, 84 fls.
Agradeço vivamente a Professora Eneá de Stutz e Almeida, orientadora e Presidenta da Banca Examinadora, a honra de poder participar, juntamente com as professoras Roberta Amanajás Monteiro e Ana Catarina Zema, da arguição da Dissertação de Mestrado, de Maíra Pankararu.
A Dissertação, destaca o seu resumo, aborda um tema ancestral que remete a afirmação de reconhecimento de modos de ser e existir, de usos de bem viver ancestrais, portanto de direitos atemporais.
Eis a síntese da Dissertação, do que ela se propõe e do que ela trata:
Em tempos de luta pelo direito de existir e diante dos sucessivos ataques aos direitos dos povos indígenas no Brasil, evidenciando a fragilidade da democracia e a falta de segurança jurídica, crescem as demandas por justiça, reparação e garantias de não-repetição. O governo Jair Bolsonaro trouxe de volta duras lembranças do período da ditadura militar, mostrando que o legado das graves violações de direitos humanos continua ativo. Essa dissertação se justifica, primeiro, pela necessidade de não deixarmos cair no esquecimento esse legado e, segundo, pela importância que a temática da justiça de transição assume para os povos indígenas. O estudo teve como objetivo geral a análise do lugar conferido aos povos indígenas durante o processo de transição brasileira e identificação dos limites e os desafios para criar uma justiça de transição que leve em consideração esses povos. O trabalho foi estruturado em cinco capítulos. O Capítulo I traz os contornos teóricos e conceituais sobre justiça transicional, explica os quatro eixos da justiça de transição e, por último, aponta alguns dos desafios dessa justiça para os povos indígenas. O Capítulo II recupera alguns dos eventos mais importantes sobre a perseguição e o genocídio dos povos indígenas durante a ditadura civil-militar. No Capítulo III foram delimitados os marcos da justiça de transição no Brasil. O Capítulo IV discorre sobre o contexto de ataques aos direitos indígenas durante o governo Bolsonaro e discute a tese do marco temporal. O Capítulo V conta um pouco do momento atual de aldeamento da política brasileira como uma estratégia de sobrevivência dos povos indígenas. Conclui-se que a transição brasileira pouco avançou na efetivação de mecanismos de reparação e não-repetição em relação às violências sofridas pelos povos indígenas e que o novo governo precisa assumir um compromisso sério para que as medidas de justiça transicional sejam de fato implementadas.
Assim se justifica o simbólico que abre a Dissertação, na imagem da Carta da Arpin Sul aos Ministros do Supremo Tribunal Federal, na altura em que se iniciava o julgamento do que eu próprio já designei como lide do século (cf. minha coluna no Jornal Brasil Popular: https://www.brasilpopular.com/agrobanditismo-que-mata-e-fere/):
Por enquanto, o social vai construindo sua agenda e sua narrativa de reprovação a esse descalabro. Agora, mesmo, no dia 22, às vésperas do que seria o julgamento do século, não só por que se consumaria o debate mais importante do direito hoje, mas porque se julgaria a própria capacidade do Supremo Tribunal Federal demonstrar sua capacidade de guardião da Constituição, o Tribunal, mais uma vez suspendeu sua deliberação.
Entretanto, os indígenas e seus aliados no mundo acadêmico se reuniram num grande seminário realizado no Auditório Esperança Garcia, da Faculdade de Direito da UnB, para demonstrar a falácia da tese adrede engendrada pelo agronegócio do marco temporal e para sustentar, com sólidos fundamentos, que os direitos dos povos indígenas e quilombolas são originários, cogentes, instituintes, pré-estatais, pré-legislativos, pré-constituintes, achados na rua, nas aldeias, nos campos, nas águas, nas florestas.
A Carta certamente inspira a Dissertação de Maíra: “Os Direitos dos Povos Indígenas não Nascem em 05 de Outubro de 1988. Nascem Antes do Estado Brasileiro”:
Para nós, Povos Indígenas, está bem clara a norma, pois estamos neste Brasil, muito antes da constituição do Estado brasileiro, portanto, nosso direito é originário, e dizer o contrário, é institucionalizar a política genocida, é dizer que não existíamos antes de 05 de outubro de 1988, é jogar no esquecimento 520 anos de sobrevivência, de luta, de história, de conquistas. Relembrando que nestes mais de 500 anos de história, a grande maioria dos Povos Indígenas, do Norte ao Sul, de Leste ao Oeste deste Brasil tiveram que sair de suas moradas, FORÇADAMENTE, muitas vezes expulsos a bala, outras pelas próprias ações do Estado, por isso em 05 de outubro de 88, muitas de nossas Terras já estavam invadidas por colonizadores. Dizer que nossos Direitos nascem em 05 de outubro de 1988, é compactuar com a ideia colonialista, que chegou ao Brasil em 1500, exterminando, matando, roubando terra, ouro, filhos e filhas para escravizar. A tese do marco temporal é isto, por isso não serve para nós Povos Indígenas.
Nós, Povos Indígenas, somos desta Terra, temos nossas raízes fixadas muito antes da chegada dos europeus colonizadores, então nossos direitos também estão com as raízes cravadas na história de cada Povo Indígena, por isso DECLARAMOS, NÃO AO MARCO TEMPORAL. Nossos antepassados lutaram, viveram e morreram pelo nosso direito à terra, e a política do agronegócio, do desmatamento, tenta tornar Lei a forma de nos retirar a Terra. Hoje será a Terra, amanhã a educação, depois a saúde, por fim o nosso direito de existir. Dessa forma que DECLARAMOS, VEEMENTEMENTE, NÃO AO MARCO TEMPORAL. SIM AO DIREITO ORIGINÁRIO SOBRE AS TERRAS INDÍGENAS. NÃO AO MARCO TEMPORAL. SIM A VIDA. NÃO AO MARCO TEMPORAL. SIM A CULTURA. NÃO AO MARCO TEMPORAL. SIM AO DIREITO DE EXISTIR.
Assinada pelo indígenas reunidos na ARPIN da Região Sul, a Carta traduz atualmente uma compreensão compartilhada por povos de todo o País. Não será coincidência que Maíra tenha acertado com a Banca Examinadora fazer a defesa de sua Dissertação exatamente no dia 24 de abril (2023), quando se instala em Brasília, na Esplanada dos Ministérios, o ATL – Acampamento Terra Livre, grande encontro de todos os povos para reafirmarem sua agenda cultural e política e dialogarem com a sociedade e o governo.
Do Povo Pankararu, da região Nordeste, Maíra encarna essa percepção de povo-raiz inscrita na Carta. Com Maíra compartilhei a experiência de co-organização de um livro (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al (Orgs). O Direito Achado na Rua: Questões emergentes, revisitações e travessias: Coleção Direito Vico: volume 5. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021), resultado de curso realizado no Programa de Pós-Graduação que agora certifica a sua maestria.
Na obra, Maíra, com colegas indígenas e quilombolas participantes da Turma – Joanderson Gomes de Almeida Pankararu, Maíra de Oliveira Carneiro Pankararu (seu nome completo), Mairu Hakuwi Kuady Karajá e Vercilene Francisco Dias – arrebataram o Prefácio (normalmente reivindicado pelo professor nos livros da Coleção) e nele, juntamente com seu parente Pankararu, lavrou essa referência ancestral:
Nós Pankararu nascemos da terra, somos filhos da terra. Sã Sé nos enterrou no chão e brotamos como árvores. Também somos guardadores de sementes, onde chegamos preparamos o chão e deixamos um pouco do que é nosso germinar e tomar seu ciclo de vida. Foi assim com o Direito Achado na Rua.
Logo, com seus colegas co-autores e co-autoras – Larissa Carvalho Furtado, Luana Bispo de Assis, Maíra de Oliveira Carneiro Pankararu, Natália Albuquerque Dino e Solange Ferreira Alves – se incumbiram de capítulo – Manifesto por um Direito Achado nas Aldeias (págs. 71-96), no qual estabeleceram um entendimento (reconheço a mão de Maíra na redação), de que É Preciso Sentir o Chão da Aldeia para Falar da Aldeia modo pelo qual se passa Do Direito Achado na Rua ao Direito Achado na Aldeia. Ponho em relevo a passagem:
O Direito Achado na Rua prega que teoria e prática caminhem juntas, o que mais uma vez reforça que a luta indígena também pode ser vista sob a ótica lyriana. Não à toa, é que se lembra da movimentação de Ailton Krenak e a criação da União das Nações Indígenas (UNI) e a inserção do capítulo “dos índios” na Carta Cidadã de 1988. Mas não apenas. A título de exemplo, cita-se aqui também como os povos indígenas vêm se organizando para reivindicações urgentes no Acampamento Terra Livre, surgido em 2004, que desembocou na criação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). É essa peleja constante, promovida pelos povos originários, que racha a estrutura burguesa muito bem sedimentada e abre caminhos para uma autodeterminação político-sociológico-jurídica.
Tal ruptura perpassa pelo direito à autodeterminação, reconhecendo o direito à autonomia indígena e representando a pedra fundamental intrínseca aos direitos indígenas. Diante disso, a autodeterminação, ou livre determinação, denota a liberdade de coexistência com outros cidadãos em um Estado. Em nível constitucional, caracteriza-se pela liberdade de desenvolvimento econômico, cultural, social e espiritual com dignidade. Além disso, deve-se ressaltar a dualidade de significados como o direito de estar livre e o direito de ter controle e escolher seu próprio governo.
Estou certo que o imaginário de Maíra já se fazia pronto para germinar nos fundamentos que ela lança na dissertação, antes mesmo de começar a escrevê-la e enquanto não obstante ela não se encerra porque o ponto final não significa que o esforço de apreender a questão tenha terminado dadas as perspectivas que se abrem para continuar a escritura política de uma história que não começa em 1988 e não termina em 2023. Em todo caso, sugiro que quem venha a ler o trabalho de Maíra Direito Achado na Rua, confira a entrevista que ela concedeu para o Programa O Direito Achado na Rua que é produzido pela TV Expresso61: Ditadura Militar e as Violações Contra Povos Indígenas (https://www.youtube.com/watch?v=lKrwTiLKFxQ&list=PLuEz7Ct3A0Uj9NU2BYmgSIM0rWv7IRAjK&index=7).
Para melhor conhecimento do leitor a dissertação está estruturada em cinco capítulos. A própria Autora os sumaria:
O Capítulo I traz os contornos teóricos e conceituais sobre justiça transicional, explica os quatro eixos da justiça de transição e, por último, aponta alguns dos desafios da justiça de transição para os povos indígenas. O objetivo deste primeiro capítulo foi trazer esclarecimentos de ordem teórica e conceitual para uma melhor compreensão dos limites e desafios que se apresentam quando pensamos na aplicação da justiça de transição e de seus mecanismos para os povos indígenas.
O Capítulo II é um capítulo histórico que recupera alguns dos eventos mais importantes sobre a perseguição e o genocídio dos povos indígenas durante a ditadura contra os povos indígenas porque é necessário definir o que foi essa violência e conhecer os danos causados para pensar a justiça de transição e compreender que reparação querem esses povos.
No Capítulo III são delimitados os marcos legais da justiça de transição no Brasil. Primeiro, abordamos a Lei de Anistia, a Constituição Federal de 1988 (CF/88), a Lei de Mortos e Desaparecidos, a Lei da Comissão de Anistia, a Lei de Reparação e a Lei de Informação. Depois, tratamos da Lei nº 12.528/2011 que cria a Comissão Nacional da Verdade (CNV). O capítulo conclui com uma análise da discussão das lideranças indígenas no eixo 6 sobre memória e verdade durante a 1ª Conferência Nacional de Políticas Indigenistas (1CNPI). O objetivo deste capítulo foi mostrar como os marcos legais da transição no Brasil não incluíram os povos indígenas.
O Capítulo IV discorre sobre o contexto de ataques aos direitos indígenas durante o governo Bolsonaro e discute a tese do marco temporal. Veremos como o governo Bolsonaro atacou insistentemente os povos indígenas usando o órgão indigenista, a até então denominada Fundação Nacional do Índio (FUNAI), e promulgando uma série de medidas e decretos anti-indígenas. Este capítulo busca mostrar a relação entre a tese do marco temporal e a justiça transicional para os povos indígenas. A polêmica em torno da tese do marco temporal é explicada como uma injustiça de transição, visto que essa tese legitima os esbulhos territoriais, funcionando como uma espécie de anistia oficial para um histórico de violências.
Este trabalho, quando teve o sumário rascunhado em 2021, contava com quatro capítulos. O tom da pesquisa era mais denso, ansioso, guardando o luto daqueles que se foram pelos atos dos homens fardados entre 1964-1985 e entre 2019-2022, neste último período, sobretudo em razão da desastrosa condução política que se operou durante a pandemia de COVID-19, bem como do engendramento de uma anti-política em relação aos grupos em situação de vulnerabilidade, dentre os quais, povos indígenas, pelo governo de extrema-direita que esteve à frente do executivo federal. Nesse ínterim, aconteceram muitos fatos importantes que julguei necessário inseri-los aqui, em um novo capítulo. Um dos principais e que mais me empolgou foi a nomeação de Sônia Guajajara como Ministra de Estado dos Povos Indígenas. Ao ouvi-la, em seu pronunciamento de posse, dizer “NUNCA MAIS O BRASIL SEM NÓS”, uma onda de esperança tomou conta de mim.
O Capítulo V conta um pouco desse momento histórico da política brasileira descrevendo o processo de aldeamento da política como uma estratégia de sobrevivência dos povos indígenas. Também comenta a organização do Ministérios dos Povos Indígenas (MPI) e o importante papel do Departamento de Línguas e Memória. Por último, trata das mudanças da FUNAI, especialmente do processo de desmilitarização de seu quadro e do retorno de políticas vitais para os povos indígenas. Nas considerações finais se comenta o movimento “Sem Anistia!” e avançamos alguns prognósticos apontando para a construção da Comissão Nacional Indígena da Verdade
Estas questões candentes que Maíra traz à discussão estão na agenda de debates do Grupo de Pesquisa coordenado por sua Orientadora, do qual faz parte. Elas aparecem, por exemplo, no livro organizado por Eneá de Stutz e Almeida, ex-integrante da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, retirada por conta de seu esvaziamento na governança anterior, mas que agora retorna para a presidir e para recuperar seu fundamento teórico e seu papel político. Confira-se a obra conforme – http://justicadetransicao.org/a-transicao-brasileira-memoria-verdade-reparacao-e-justica-1979-2021/ (A transição brasileira: memória, verdade, reparação e justiça (1979-2021), Salvador: Soffia10 Editora, uma publicação do Grupo de Pesquisa Justiça de Transição, da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília).
Do que me coube inferir, o livro, dizem os organizadores (Eneá de Stutz e Almeida) “atualiza, complementa e sistematiza ideias e conceitos iniciados em textos anteriores. A autora analisa a anistia política implementada a partir de 1979 no Brasil: uma anistia da memória, que não impede a responsabilização dos violadores de direitos humanos. Estuda os mecanismos da justiça de transição brasileira até o ano de 2021, concluindo que o País vive uma justiça de transição reversa”.
Para contribuir para estancar essa reversidade, Maíra agora terá assento na Comissão e de sua dissertação, como se fora uma carta de intenções, quero me deter na Introdução porque ali, com linguagem elegante e profundamente encarnada a Autora fixa o seu pressuposto que é fundamentar-se em “políticas de memória, justiça e reparação [que] são necessárias para permitir a transição democrática após regimes ditatoriais, conflitos armados ou outras situações de graves violações de direitos humanos, por permitirem a assimilação do significado dessas violências, a devida responsabilização dos envolvidos, a justa reparação às vítimas e a conscientização ampla acerca do ocorrido, a fim de que não haja nem esquecimento, nem repetição”, porém, na medida em que “identificam e tratam de casos de violência contra os Povos Indígenas”, e que permitam organizar estratégias como justiça de transição, embora conforme ela designe – pág. 18 – “a justiça transicional [que] não se reduz a uma cartilha de mecanismos para tratar de violações sistêmicas dos direitos humanos: é também o reconhecimento de que uma nação está passando por uma mudança monumental ou que precisa fazê-lo. Por isso, para o novo governo, a justiça de transição para os Povos Indígenas deve ser uma prioridade”.
Ela considera esse processo necessário ao “momento histórico da política brasileira, descrevendo o processo de aldeamento da política como uma estratégia de sobrevivência dos povos indígenas” (pág, 19), embora constate que “os estudos de justiça de transição são um campo novo e em processo de maturação. A literatura especializada não se dedicou às questões da justiça de transição para os povos indígenas e desconhece a temática dos direitos indígenas. O meu interesse com esse trabalho é contribuir com o debate e avançar na conquista dos direitos transicionais para os povos indígenas” (pág. 17).
De fato, é nesse ponto que Maíra define seu tema de estudo. Segundo ela, desenvolvido para responder duas perguntas: “1) como a ausência de implementação dos mecanismos de justiça de transição para os povos originários do Brasil legitima a continuidade de graves violações dos direitos humanos? 2) Quais são os obstáculos para a implementação dos mecanismos da justiça de transição para os povos indígenas no Brasil?”, a partir das quais formula o “objetivo geral da pesquisa [que] consistiu em avaliar a transição brasileira desde 1988, uma vez que pouco avançou na efetivação de mecanismos de reparação e não-repetição em relação às violências sofridas pelos povos originários durante a ditadura militar, mostrando as insuficiências da justiça de transição para os povos indígenas no Brasil e criticando o caminho que a reparação brasileira percorreu”.
Questões bem postas e que confrontam a Autora com duas perspectivas. A primeira, originária de sua posição político-epistemológica – ser indígena e querer contribuir de modo teórico para a disputa hermenêutica que o tema comporta. A segunda, circunstancial. Entre a admissão no Mestrado e a conjuntura atual de retomada democrática da governança com um projeto de sociedade emancipatório e descolonizador, com a contenção do autoritarismo de modelo fascista (ao menos na acepção de Umberto Eco que o caracteriza numa perenidade que não se isola no passado factual que conturbou o mundo ocidental na segunda metade do século XX), que promove a exceção e que nega titularidade subjetiva de direitos aos povos indígenas e na exceção realiza verdadeira necropolítica no limite do genocídio, a condição peculiar de que Maíra passa a se investir da qualidade de membro integrante indígena da Comissão Nacional de Anistia.
Há uma questão que a interpela no duplo plano com o qual essas perspectivas se confrontam. Diz a própria Maíra (pág. 17-18): “A anistia brasileira após o fim do regime ditatorial civil-militar que vigorou entre 1964 e 1985, da forma como foi feita, não deu conta de reparar os povos indígenas Para que isso acontecesse seria necessário ampliar ou mesmo criar nova legislação e novas formas de reparações coletivas. Insuficiente para os povos indígenas, a justiça de transição gera como consequência violências bastantes claras, a exemplo da tese do marco temporal, que propõe que só sejam reconhecidos os direitos aos territórios que estivessem ocupados na data da promulgação da Constituição Federal de 1988, desconsiderando as expulsões e os esbulhos praticados contra os povos indígenas, inclusive durante o período da ditadura”.
Ou seja, como ela, diz, não deu conta nem no sentido estrito da anistia propriamente dita, atribuída a uma Comissão especial para conferi-la às situações inscritas no estatuto que a institucionalizou; nem no sentido ampliado de memória, verdade e justiça, que permitiria um alcance expandido de seus enunciados.
Maíra tem percepção clara desses limites. Basta ver, a sua análise do percurso problemático e tenso de realização desse fundamento. Transcrevo uma passagem esclarecedora de sua dissertação (pág. 15):
O processo de superação dos erros e traumas do passado apenas começou com o trabalho realizado pelas comissões da verdade, mas a reconciliação com o passado não se esgota com os esforços de uma comissão que funciona por um tempo limitado e sob um mandato específico. O dano associado às injustiças históricas continua hoje. Infelizmente, os crimes cometidos contra os povos indígenas nas Américas não pertencem apenas ao passado.
É preciso reconhecer que muitos dos desafios contemporâneos enfrentados pelos povos indígenas estão enraizados em erros do passado e que as injustiças e violências históricas de longa data, inclusive em relação à colonização, à invasão e à apropriação das terras, territórios e recursos dos povos indígenas que permanecem sem solução, constituem uma afronta contínua à nossa dignidade.
No contexto atual, os povos indígenas enfrentam uma série de desafios não apenas para lidar com o legado e a continuidade das violações de seus direitos humanos, mas também para promover o acerto de contas, a busca da verdade, a reparação e a construção de instituições confiáveis recomendadas pelas CVR. Mesmo tendo as CVR reconhecido, em seus relatórios finais, a responsabilidade dos Estados pelos crimes cometidos e tendo afirmado o direito à memória, verdade, justiça, reparação individual e coletiva e à garantia de não-repetição como parte da reparação integral a que têm direito os povos indígenas, as condições sociais, políticas e econômicas dos povos indígenas não mudaram muito e muitos povos continuam sendo alvos de violências.
Ora, Maíra transcreve em nota (pág. 16), o tremendo esforço que a Comissão Nacional da Verdade realizou para definir e recomendar treze proposições, muito razoáveis e todas indispensáveis para, na transição, reparar as violências, as negações infligidas em todos os planos, inclusive no plano civilizatório.
Para Maíra, o governo, e não só o governo, todo um arcabouço ideológico e institucional, confina o horizonte de possibilidades para qualquer movimento em direção a posições reparatórias, compensatórias e justas. Diz ela (pág. 16): “Em vez de se avançar no processo de reparação para os povos indígenas, após golpe político que culminou na destituição da presidenta eleita Dilma Rousseff, o governo que assumiu o poder passou a repetir ideologias, métodos e práticas comuns na ditadura civil militar, agindo contra os povos indígenas”.
Maíra vê possibilidades efetivas para seu agir na Comissão de Anistia, para a criação de políticas com o recém criado Ministério dos Povos Indígenas ou para a atuação emponderada do Movimento Indígena para avançar nesse campo. O seu capítulo V mostra confiança. Eu também sou confiante, na medida de conquistas que vençam o pessimismo da razão com o entusiasmo da vontade.
Mas confesso que me preocupam mais os aliados que os adversários. O juiz Cançado Trindade, por duas vezes Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, exemplar em seus votos de valorização das exigências de reparação para restaurar a dignidade de projetos de vida e projetos sociais, lembrava que o principal obstáculo para integrar os direitos humanos nos sistemas nacionais de direito é o obstáculo do positivismo – o científico e o jurídico – que reduzem o humano na hierarquia da evolução (será o indígena gente como nós?) e o direito ao legal que desconsidera a dimensão antropológica de outras sociabilidades em dinâmica de pluralismo jurídico (aliás, já acolhidas no voto do relator Ministro Fachin no exame da ADPF que repercute na dissertação). Será o direito positivo, legal, capaz de abrir-se a esse reconhecimento?
Com efeito, comentando o evento e seus debates, o juiz Andres Gallardo, presidente do Comité Pan-Americano de Juízes e Juízes pelos Direitos Sociais e pela doutrina Franciscana, um dos coordenadores da Cimeira sobre Justiça e Descolonização no Vaticano, afirma que “Não há mais espaço para leis injustas, pois para travar leis injustas, aqui estamos os juízes”
A relatoria e leitura da Declaração Final, ficou a cargo de meu dileto amigo o ítalo-argentino Alberto Filippi – observe que ele escreve no volume 7 da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica à Justiça de Transição na América Latina (Os direitos nas ruas da resistência e nos caminhos do exílio entre América e Europa), investido da antiga proximidade com Jorge Mario Bergoglio, nas tertúlias portenhas. Com a epígrafe Colonialismo, Descolonização e Neocolonialismo: uma Perspectiva de Justiça Social e do Bem Comum, o documento aprovado por aclamação na Casina Pio IV nella Città del Vaticano. O teor da Declaração (https://www.youtube.com/live/gt_YQWiwXJg?feature=share&t=35520), é uma síntese da rica discussão, unânime em que “as perspectivas decolonial e descolonizadora são a base necessária da cultura jurídico-política para a formação de magistrados e defensores do direito e daqueles que concebem e promovem o acesso à Justiça dos mais débeis e desassistidos”.
De novo a afirmação constante da Declaração final dos participantes: “Apreciamos a Declaração da Santa Sé, de 30/4/2023, segundo a qual, a chamada ‘Doutrina do Descobrimento’ afirmada nas “Bulas papais desde o século XV”, não é parte do ensinamento da Igreja Católica”.
De fato, tratou-se de um evento que transcorreu numa atmosfera que traz esclarecimento sobre outros temas próprios do colonialismo. Nele, inclusive, veio a discussão, o posicionamento pontifício há poucos dias noticiado sobre o que se tem chamado de “doutrina da descoberta” (https://www.ihu.unisinos.br/627642-a-doutrina-da-descoberta-repudiada-por-roma), que se prestou por séculos, apoiada pelo papado, “para justificar as empreitadas colonialistas dos soberanos católicos europeus – mas que foi repudiada pelo magistério da Igreja, e há muito tempo não representa mais o seu pensamento”. Isso é afirmado em um documento de dois órgãos do Vaticano (os dicastérios de Cultura e do Desenvolvimento Humano Integral)”, que tem levado o Papa Francisco a pedir perdão aos indígenas pela violência catequizante, enquanto extrai ensinamentos derivados do debate de Valladolid expressos na Bula Sublimis Deus com reconhecimento de que os indígenas são “gente como nós têm alma e podem dispor de seus bens”. O Papa Francisco até estende essa acepção e tem pregado uma teologia humanizadora, não apenas em relação aos indígenas, mas com o propósito de um realmar as gentes.
Acolho a dissertação como um percurso que une a forte disposição dos povos indígenas entre o que está no título, mote do ATL de 2021 – “Nossa história não começa em 1988, passando pela mediação propositiva de “Retomar o Brasil para demarcar territórios e aldear a política” (ATL de 2022), enquanto não se realize o reconhecimento dos direitos que reivindicam no presente para que se consume o que propõe o mote da campanha deste ano (ATL de 2023) “O futuro indígena é hoje. Sem demarcação, não há democracia!”.
Em complemento a essa indagação, lembro a Maíra que participei da Banca Doutoral de Eloy Terena citado fortemente por ela. Aliás, escrevi a arguição depois também publicada em forma de recensão em minha Coluna Lido para Você (a tese: Luiz Henrique Eloy Amado (Eloy Terena). O Campo Social do Direito e a Teoria do Direito Indigenista. Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2022) – http://estadodedireito.com.br/o-campo-social-do-direito-e-a-teoria-do-direito-indigenista/.
Ao finalizar a arguição, considerei que a tese, tal a conclusão de seu Autor, “trouxe um somatório de reflexões forjadas a partir da experiência. No caso dos povos indígena esta experiência é a resistência qualificada pelo contínuo processo de fricção jurídico estatal. Pois mesmo sendo povos autônomos, detentores de sistemas próprios, trava-se diariamente um árduo processo de entender e se fazer entender. Do lado dos povos indígenas a abertura dialógica cultural, mas do lado do Estado, o autoritarismo racional. Um dos desafios postos na atualidade mundial é entender as identidades culturais, saber lidar com a diferença, respeitando as cosmovisões do outro. Neste quesito os povos indígenas têm muito a oferecer e ensinar. Ao se propor entender o direito imposto e produzido para os povos indígenas e como manejá-los, mesmo ciente que esta estrutura jurídica foi projetada para atender os interesses do capital, estamos chamando atenção para a dimensão indígena de se relacionar com os mundos e eleger projetos políticos no único intuito de continuar existindo enquanto povo diferenciado e capaz de transitar entre diversos sistemas. Portanto, este esforço reflexivo individual de um advogado demonstra de igual modo um ganho coletivo, baseado na insistência em entender e fazer seus símbolos serem entendidos”.
Não é pouco, considerando o acervo corrente de poderosos enunciados que os povos indígenas, por seus advogados, Eloy Amado com grande capacidade de locução, lograram fixar na mentalidade dos principais agentes em fóruns nacionais e internacionais que discutem os direitos constitucionais, fundamentais, convencionais e das gentes. Não obstante o obstáculo do positivismo, mencionado por Antonio Augusto Cançado Trindade para que os enunciados internacionais de direitos humanos sejam inseridos nos ordenamentos nacionais; ou, a própria abertura cognitiva dos magistrados, demarcava o ministro Lewandowiski na presidência do STF, para assimilarem matérias relativas a direitos humanos ou decisões de cortes internacionais nesse campo, que não aprenderam nas escolas, as primeiras, ou solenemente desconhecem para poder aplicar. Condição para o reconhecimento do direito que nasce na aldeia, a avançada formulação que o próprio Eloy Terena fez por ocasião do Seminário Internacional O Direito como Liberdade: 30 Anos do Projeto O Direito Achado na Rua.
É por isso – diz Eloy – que a tese “parte da análise situacional do desenvolvimento da política indigenista, passando pela constitucionalização dos direitos e defende-se uma teoria do direito indígena. Na verdade todo esse esforço intelectual é para fazer os brancos entenderem o que nossas lideranças estão há muito tempo dizendo. Não se trata de privilegiar os dogmas jurídicos em detrimento das categorias indígenas, mas sim, de reduzir a dimensão indígena a rótulos do mundo ocidental com o único objetivo de estabelecer diálogo, se fazer entender, e quem sabe, ser correspondido”. Nem se render, eu acrescento, à elegância mistificadora, encantatória, cântico de sereias, dos neo-constitucionalismos e pós-positivismos, a cujo embalo temos assistido adormecer altas reputações da crítica jurídica, para júbilo gratificante do agro-negócio. Vimos isso acontecer agora no debate em curso no STF.
Essa é uma pergunta implícita que poderia ser feita ao Autor da Tese, mas que nos fazemos a nós próprios todos e todas nós. A resposta não será a que se possa oferecer aqui ao cabo da arguição. Mas a que virá, vitoriosa ou não, ao final do julgamento da tese hoje apresentada no STF sobre a precedência do direito originário dos povos ao direito do Estado e também na Dissertação defendida por Maíra Pankararu. A alternatividade abriu possibilidade para a emergência desse direito? E virá também do Tribunal Penal Internacional quando julgue a questão já apresentada, em face de violações de direitos dos povos originários, que caracterizam a atuação do presidente da República por violação de seus direitos pré-estatais, pré-colombianos, pré-cabralinos, numa ação que se caracteriza como crime de lesa humanidade. Poderá vir da Comissão de Anistia?
E é também a pergunta derradeira que faço a Maíra. Não sei se o sistema político está em condições de oferecer respostas criativas e avançadas para as exigências da transição. Maíra parece divisar mudanças atuais nos vários eixos que articulam o processo de justiça de transição no Brasil, principalmente reparação, reforma das instituições e justiça. Estaremos em condições de incrementar esses avanços? Como será que Maíra, hoje, membro indígena titular na Comissão de Anistia, percebe suas reais possibilidades, em seus pontos fortes e em seus pontos fracos, para inscrever em nossa experiência democrática um futuro que seja indígena?
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
Comissão Pastoral da Terra. Conflitos no Campo Brasil 2022
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Comissão Pastoral da Terra. Conflitos no Campo Brasil 2022. Centro de Documentação Dom Tomás Balduino (Cedoc-CPT). Goiânia: CPT Nacional, 2023, 254 p.
No dia 17 de abril, às 9 horas, na Universidade de Brasília (UnB), foi lançada a publicação “Conflitos no Campo Brasil 2022”, que traz dados alarmantes sobre a violência no campo no país, no último ano. De acordo com o Centro de Documentação Dom Tomás Balduino (Cedoc-CPT), em 2022 foram registrados 47 assassinatos por conflitos no campo, um aumento de 30,55% em relação ao ano anterior. O lançamento tomou o formato de um Seminário, que se desenvolveu no Auditório Esperança Garcia, da Faculdade de Direito, numa programação com mesas de debate.
A sessão inaugural, com a emoção da mística, plástica, coreográfica e mobilizadora, pode ser acompanhada pela transmissão midiática da abertura, que pode ser conferida no Canal YouTube do Grupos de Pesquisa O Direito Achado na Rua, com a gravação das manifestações de mesa: https://www.youtube.com/watch?v=ldnvbo9s2bI.
Conforme o resumo preparado pelos organizadores, além do alto número de assassinatos, os conflitos por terra no Brasil aumentaram 16,7% em relação a 2021. Os dados da 37ª edição do relatório também dão destaque para as mortes de Yanomamis em decorrência de conflitos, para os registros de violência na Amazônia e no Matopiba e apresenta números de casos de trabalhadores resgatados de condição análoga à escravidão, que correspondem ao mais alto índice dos últimos dez anos.
Também para os Organizadores, o lançamento da publicação foi uma oportunidade para a imprensa destacar esses números e trazer à tona a discussão sobre a violência no campo no Brasil, que tem sido cada vez mais frequente e preocupante.
Relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT), divulgado nesta segunda-feira (17), mostra que o ano de 2022 foi marcado pelo elevado crescimento nos dados sobre violência contra a pessoa em decorrência de conflitos no campo. Ao todo, foram 553 ocorrências, que vitimaram 1.065 pessoas, 50% a mais do que o registrado em 2021 (368, com 819 vítimas). Nesse cenário, que inclui assassinatos, tentativas de assassinato, ameaças, agressões, tortura e prisões, povos tradicionais despontam como as principais vítimas.
Em 2022, 38% das 47 pessoas assassinadas no campo eram indígenas, o que totaliza 18 casos. Em seguida, aparecem trabalhadores sem-terra (9), ambientalistas (3), assentados (3) e trabalhadores assalariados (3). Além desses, as mortes do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, no Vale do Javari, no Amazonas, somam-se ao cenário crítico de vítimas dos conflitos agrários 2022.
O número de assassinatos por conflitos no campo no ano passado representou crescimento de 30,55% em relação a 2021 (36 mortes) e 123% em comparação com os dados registrados em 2020 (21 mortes).
Entre os assassinatos, destacam-se os casos ocorridos em Mato Grosso do Sul, em territórios de retomada dos indígenas Guarani-Kaiowá. Foram seis indígenas vitimados entre maio e dezembro, colocando o estado como o terceiro do país que mais registrou assassinatos decorrentes de conflitos no campo. Três dessas mortes ocorreram em ação de retomada da Tekoha Guapoy, no interior da Reserva Indígena de Amambai. No local, emboscadas e perseguições resultaram na morte de Vitor Fernandes, em 24 de junho de 2022, durante despejo ilegal executado pela Polícia Militar do estado, em ação que deixou mais 15 pessoas feridas. As outras vítimas foram Márcio Moreira e Vitorino Sanches, o segundo uma liderança assassinada no centro de Amambai e que já havia sobrevivido a outra investida similar enquanto dirigia pela estrada que dá acesso a Tekoha.
“Temos visto uma queda das ocupações de terra e avanço dos conflitos para dentro de comunidades ocupadas por populações tradicionais. Há um ataque efetivo contra as comunidades indígenas, de forma específica”, diz Isolete Wichinieski, da Coordenação Nacional da CPT.
Outro número divulgado pelo relatório é o de tentativas de assassinatos. Em 2022 foram notificadas 123 ocorrências desse tipo de violência, um número 272% maior que os 33 registrados em 2021. Em seguida estão os dados de ameaça de morte, que também aumentaram na comparação entre 2022 e 2021, passando de 144 para 206, com crescimento de 43,05%.
Boa parte dessas violências por conflitos no campo atingiram especificamente mulheres. Foram seis assassinatos, número que se iguala aos ocorridos em 2016 e 2017. Os demais tipos de violência sofrida pelas mulheres em 2022 foram a ameaça de morte (47, resultando em 27% do total), intimidação (32, com 18%), criminalização (14, com 8%), tentativa de assassinato (13, com 7%) e agressão e humilhação (9 cada uma, com 5%).
Crianças e adolescentes passaram a estar na mira desse tipo de violência durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro. De 2019 a 2022, segundo os números levantados pela CPT, foram nove adolescentes e uma criança mortos no campo. Desses, cinco eram indígenas. Entre os dados de violência contra a pessoa, a morte em consequência de conflito registrou 113 casos, sendo 103 na Terra Indígena Yanomami, com 91 vítimas crianças, representando 80,5% dos casos. O povo Yanomami viveu, nos últimos anos, um agravamento da crise humanitária de saúde e segurança em meio à invasão de suas terras por garimpeiros.
“O futuro das comunidades indígenas está ameaçado, não só pela invasão de suas terras e o assassinato de lideranças, mas por impedir a existência das próximas gerações”, afirma Isolete. A dirigente da CPT cobra do novo governo que cumpra a promessa de resgatar as políticas de proteção territorial e de reforma agrária, que demanda orçamento e pessoal. Ela também cobra a reforma e ampliação do programa de defensores de direitos humanos, para enfrentar as graves ameaças e impedir o assassinato recorrente de lideranças comunitárias no campo.
O relatório anual da CPT referente a 2022 apontou um total de 2.018 ocorrências de conflitos no campo, envolvendo 909,4 mil pessoas e mais de 80,1 milhões hectares de terra em disputa em todo o território nacional, o que corresponde à média de um conflito a cada quatro horas.
Chamou-me a atenção matéria do sítio do IHU – Instituto Humanitas, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), mural que sigo cotidianamente por ser para mim um dos mais qualificados e seletivos sobre os temas que coleciona. Com a chamada Lançado Caderno de Conflitos no Campo Brasil 2022: memória, histórias, análises, resistências (https://www.ihu.unisinos.br/627988-lancado-caderno-de-conflitos-no-campo-brasil-2022-memoria-historias-analises-resistencias), expôs o IHU, com reportagem de Luis Miguel Modino:
Sobre a violência, algo contrário à vontade de Deus, o vice-presidente da CPT destacou, seguindo a Doutrina Social da Igreja, que “a violência nunca constitui uma resposta justa, a Igreja proclama, com a convicção de sua fé em Cristo e com a consciência de sua opção, que a violência é má, que a violência como solução para os problemas é inaceitável, que a violência é indigna do homem. A violência é uma mentira, pois é contrária à verdade da nossa fé, à verdade da nossa humanidade”, fazendo ver a necessidade no mundo atual dos profetas não armados.
A Comissão Pastoral da Terra lançou nesta segunda-feira 17 de abril na Universidade de Brasília o “Caderno de Conflitos Brasil 2022”, que já está na 38ª edição, dentro de um dia de seminários em que tem sido discutido a partir das propostas dos povos, como ter vida digna. Um caderno que mais do que um relato sobre a violência no campo, “ele traz memória, ele traz histórias, e muito além dos dados inúmeros que são apresentados aqui, ele traz análises das realidades do campo, e ele traz também as resistências e ele traz a identidade desses povos”, um caderno que “simboliza muito mais do que simplesmente números”.
Em 2022 foram 47, 6 mulheres, os assassinatos no campo, o que faz ver que essa realidade tem que ser mudada, ainda mais no dia em que o Brasil faz memória do Massacre de Eldorado dos Carajás. Um caderno que quer fazer também memória de Dom Tomás Balduino, no ano do centenário de seu nascimento.
“Com amor e com temor”, disse estar presente no lançamento pela primeira vez Dom Silvio Dutra, amor pela causa e temor por não ter muita familiaridade com esse tipo de encontros. O Bispo da Diocese de Vacaria/RS ressaltou “aquilo que está sendo feito aqui baseado, sedimentado em aquilo que cremos, nas verdades que cremos, nos valores que cremos, nas lutas que cremos”. Algo que o Bispo fundamentou no relato do Livro do Êxodo, na Gaudium et Spes e na Doutrina Social da Igreja, que anuncia e denúncia realidades que existem. Dom Silvio Dutra chamou a não ser sentinelas mudas e sim alguém que como Deus está sensível, desce e vai libertar o seu povo.
Sobre a violência, algo contrário à vontade de Deus, o vice-presidente da CPT destacou, seguindo a Doutrina Social da Igreja, que “a violência nunca constitui uma resposta justa, a Igreja proclama, com a convicção de sua fé em Cristo e com a consciência de sua opção, que a violência é má, que a violência como solução para os problemas é inaceitável, que a violência é indigna do homem. A violência é uma mentira, pois é contrária à verdade da nossa fé, à verdade da nossa humanidade”, fazendo ver a necessidade no mundo atual dos profetas não armados.
Antes de apresentar os dados recolhidos no Caderno de Conflitos, José Geraldo de Souza Junior, professor da Universidade de Brasília, fez uma reflexão em torno a essas temáticas, desde uma perspectiva histórica e antropológica, recolhendo histórias de luta no Brasil.
O Caderno é fruto de um trabalho conjunto, segundo lembrou Tales Pinto, do Centro de Documentação Dom Tomás Balduino, que começou mostrando um aumento de 10,39 por cento nos conflitos no campo em relação a 2021, superando os dois mil, que vem acontecendo em diferentes modos, como foi relatado, mostrando onde se localizam esses conflitos no país. Uma violência que é contra as pessoas, vítimas de assassinatos e ameaças, o que o levou a reclamar a necessidade de políticas de proteção. São conflitos por terra, por água, conflitos trabalhistas, que se fazem presentes na vida dos povos do campo no Brasil.
Uma violência presente no Vale do Javari, na fronteira entre o Brasil e o Peru, uma região com maior número de povos isolados no mundo, segundo relatou Beto Marubo, liderança Univaja. Ele foi detalhando o que acontece na região e o trabalho realizado por Bruno Pereira, sobretudo empoderando os indígenas, assassinado naquela região em 2022. Por isso foi destacado a necessidade de o Governo Brasileiro fazer a proteção desses indígenas. Um Caderno de Conflitos que tem uma enorme importância para os trabalhos de pesquisa nas universidades brasileiras, como foi mostrado no lançamento.
Além da divulgação de dados e análises sobre a realidade dos territórios, atividade de lançamento da 38ª edição do Caderno Conflitos no Campo Brasil traz depoimentos dos povos do campo, das águas e das florestas.
Na manhã desta segunda-feira, 17, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) lançou a publicação Conflitos no Campo Brasil 2022, em seminário realizado no Auditório Esperança Garcia, na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB). O livro apresenta dados dos conflitos no campo registrados pelo Centro de Documentação Dom Tomás Balduino, da CPT, no último ano, além de artigos de pesquisadores(as) convidados(as).
Isolete Wichinieski, da Coordenação Nacional da CPT, abriu a atividade dizendo que a publicação, em sua 38ª edição, não apresenta apenas dados de conflitos e violência no campo, mas também traz memórias e histórias dos territórios, das resistências e da identidade desses povos e comunidades. “Esse Caderno traz muito mais que números. É fundamental nós conhecermos quem são esses povos, onde estão, o que sofrem, aquilo que trazem em seus modos de vida,” destacou Isolete.
A atividade é realizada no Dia Nacional de Luta pela Reforma Agrária, Dia Internacional da Luta Camponesa e na data em que se completam 27 anos do massacre do Eldorado dos Carajás. “Hoje é dia de fazermos memória dos 19 trabalhadores que foram assassinados na Curva do S, em Eldorado dos Carajás, no Sul do Pará, e de tantos outros camponeses e camponesas que foram mortos. No ano passado, foram 47 assassinatos no campo, seis foram mulheres. Para muitos, pode parecer pouco. Mas, para nós, significa muito. Enquanto uma pessoa estiver sendo violentada, enquanto estiver ocorrendo violência e morte no campo, é nossa tarefa enquanto Igreja denunciar e dizer que essa realidade precisa ser mudada”, reafirmou Isolete.
O bispo da Diocese de Vacaria e vice-presidente da CPT, Dom Sílvio Guterres, relembrou que, de acordo com a Doutrina Social da Igreja, é necessário denunciar o pecado da injustiça e da violência, que atravessam a sociedade e nela tomam corpo, em defesa dos direitos ignorados e violados dos mais pobres. “O mundo atual precisa do testemunho dos profetas não armados. Devemos repetir isso nos nossos encontros, em nossas igrejas, neste tempo em que o armamento foi proclamado, patrocinado, incentivado e defendido em nome de Deus”, disse Dom Silvio.
Representando a Universidade de Brasília (UnB), José Geraldo de Sousa Júnior, professor da Faculdade de Direito, relembrou que a UnB, sem perder a laicidade, sempre esteve aberta ao diálogo com os movimentos populares, construindo o pensamento acadêmico junto com os povos em sua lida com a realidade.
Ao apresentar tabelas e gráficos comparativos das ocorrências de conflitos e das violências no campo, Tales Pinto, coordenador do Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno (CEDOC – CPT), afirmou que os assassinatos no campo não ocorrem de maneira isolada, mas sim como resultado de uma escalada de violência que atinge as comunidades e os territórios. Ele apontou ainda que, entre 2016 e 2022, período que vai do golpe que deu início ao governo de Michel Temer ao final governo Bolsonaro, 27,36% dos territórios onde ocorreram os assassinatos também sofreram pelo menos uma ação de pistolagem, 15% sofreu pelo menos uma ameaça de expulsão, 9% sofreu pelo menos uma ação de invasão e 13% uma ação de grilagem.
No mesmo período, em 59% dos territórios onde ocorreram assassinatos, houve também pelo menos uma tentativa de assassinato e, em 52%, houve registro de ameaça de morte. “Isso mostra que são necessárias políticas de proteção às pessoas ameaçadas nos territórios”, apontou o coordenador do CEDOC.
Adriano Rodrigues de Oliveira, professor do Instituto de Estudos Socioambientais (IESA) da Universidade Federal de Goiás (UFG), que contribuiu na análise dos dados do Caderno Conflitos no Campo Brasil 2022, ressaltou a importância da publicação para pesquisadores e pesquisadoras da Universidade. “Eu sempre tenho destacado a importância desse Relatório, tão brilhantemente elaborado pelo CEDOC-CPT. É instrumento vital para as nossas pesquisas”, considerou Adriano.
O professor falou sobre a intensificação dos processos de apropriação dos territórios indígenas, comunidades camponesas e áreas legalmente protegidas. “As corporações de commodities influenciam o Estado e conflitam com as pautas ambientais, sócio-trabalhistas, culturais, agrárias, acadêmicas, dos povos tradicionais, da relação campo-cidade”, afirmou.
A mesa de abertura também contou com depoimento de Beto Marubo, da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), que falou sobre a importância do trabalho de capacitação técnica realizado pelo indigenista Bruno Araújo Pereira, assassinado em 2022, para que os indígenas da região pudessem ter mais respaldo em suas denúncias sobre invasões aos territórios.
“Bruno ensinou mapas, programação de computadores, georreferenciamento e pilotagem de drones para termos relatórios técnicos. Antes, o que acontecia? A gente chegava no Ministério Público Federal e na Polícia Federal, e nossas mensagens eram inócuas. Diziam: precisamos de provas, vocês têm que comprovar”, relembrou. A partir dessa capacitação, houve o empoderamento dos indígenas na região. Segundo Beto, cerca de 30 indígenas foram capacitados para fazer a vigilância do território e elaborar subsídios e relatórios técnicos das violações contra as invasões no território. Hoje, outras lideranças são capacitadas para levarem adiante o trabalho deixado por Bruno, contou Beto.
Ao encerrar a mesa, Isolete Wichinieski convocou os representantes do governo e das instituições de justiça presentes a olharem para o livro Conflitos no Campo Brasil 2022 como instrumento de análise da realidade dos povos e comunidades do Brasil, para elaboração de políticas de garantia de seus direitos, incluindo o Plano Nacional de Reforma Agrária. “Para aqueles e aquelas que estão ao lado desses povos e comunidades, e que ainda não olharam para esta realidade, que a publicação seja instrumento para auxiliá-los a cumprirem seu papel de profeta”, disse a Coordenadora Nacional da CPT.
Na Apresentação, do Caderno, assinada por toda a Comissão Pastoral da Terra, dizem os Organizadores que a edição do caderno “traz análises sobre os dados que indicam esse acirramento da violência”, enquanto expõe a metodologia do levantamento realizado e sintetiza as contribuições trazidas por analistas que com seus textos explicam os números, os quadros, as tabelas, desde a abertura com o tema Conflitos no Campo, assinado por Julianna Malerba, seguindo-se pelos eixos temáticos – terra, água, trabalho, violência contra a pessoa, manifestações – os tópicos e seus desdobramentos.
No eixo terra, Jéssyca Tomaz de Carvalho e Adriano Rodrigues de Oliveira balizam a discussão com o tema A Marcha de Apropriação dos Territórios Bloqueados e os Novos Componentes da Questão Agrária, enquanto Luis Ventura Fernández o recorta problematizando O Papel do Estado na Violência nos Territórios.
No eixo água, Joice Silva Bonfim formula o tema Privatização das águas, produção da escassez e violência: intensificação e agravamento dos conflitos por água. As tabelas e mapas contidos nesse tópico exibem os números críticos que exibem os conflitos pela água.
No eixo trabalho o texto de elucidação – De 1995 a 2022: o trabalho escravo contemporâneo a partir dos dados sistematizados pela Comissão Pastoral da Terra – escrito por Carolina Motoki, Brígida Rocha dos Santos e Waldeci Campos de Souza, é uma mostra do enorme de trabalho de equipe que ainda se organiza para conferir em tabela os conflitos trabalhistas e em mapa o número de pessoas libertadas.
No eixo violência contra a pessoa, o tema gerador é violência contra a pessoa em conflitos no campo na Amazônia Legal: breves considerações, propostas por Igor Rolemberg e Paula Lacerda. As tabelas e mapas registram as situações de violência contra a pessoa, violência contra a pessoa no Brasil e assassinatos. Antônio Canuto discorre sobre comemorações [que] mantêm acesa a luz na escuridão. Enquanto, finalizando a obra, Flávio Marcos Gonçalves de Araújo e Marcelo Rodrigues Mendonça organizam registros de várias manifestações que organizam sob a chave de Mutações na Forma de Existir e (Re)existir: a Natureza das Resistências no Brasil Contemporâneo e as Perspectivas Políticas.
A publicação, com a metodologia que aplica, oferece um material valioso para o conhecimento de uma situação que é gravíssima e que se constitui num dos principais desafios para o Brasil recuperar seu curso de democratização. A violência, não só a que se revela nos conflitos do campo, a violência como experiência de uma sociedade desigual que busca superar as reduções segregadoras de um processo colonial racista, patriarcal, espoliativo, impregna as relações políticas, sociais e interpessoais no contexto de nossas sociabilidade.
O Relatório não trata como eixo mas penso que teria sido importante incluir esse tema em novos estudos. Me refiro ao que já está sendo identificado, por exemplo, na Amazônia, como “agromilicianismo”, ancorado na situação flexibilizadora do armamentismo sob o disfarce “legal” de clubes de tiro.
Tratei desse tema em coluna que mantenho no Jornal Brasil Popular (https://www.brasilpopular.com/agrobanditismo-que-mata-e-fere/). Acrescento, a propósito, ao que mostra a bem desenvolvida e documentada matéria de Carol Castro (https://theintercept.com/2022/11/16/clubes-de-tiro-cercam-indigenas-e-municiam-agromilicias-na-amazonia/) Clubes de Tiro Cercam Indígenas e Facilitam Agromilícias na Amazônia, com mapas que revelam todos os pontos de localização caracterizando esse cerco.
Ela mostra, além disso, como a “flexibilização torna mais fácil a atuação de empresas de vigilância armada em regiões já marcadas pela violência rural”. Agora, “as agromilícias se formam no mesmo modus operandi, mas com dois facilitadores: os CACs e os clubes de tiro. ‘Você não precisa mais abrir uma empresa, basta ir lá e tirar um registro de caçador’.A lei mudou mesmo o cenário no campo. Em 2019, Bolsonaro aprovou uma lei de posse de arma estendida no campo. Ou seja, desde então, os fazendeiros podem andar armados por toda sua propriedade – e não apenas na sede, como era antes. “Essas propriedades na Amazônia são do tamanho da região metropolitana de São Paulo. Então essa pessoa pode andar por milhares de quilômetros armada. Ela agora pode botar um fuzil legal dentro da sua propriedade”. Ver ainda, no mesmo jornal, o meu artigo https://www.brasilpopular.com/artigo-armamentismo-uma-estrategia-miliciana-assumida-como-metodo-de-governo/.
Todos esses documentos são divulgados num momento de agravamento da violência contra os povos indígenas e seus territórios e sobre os conflitos no campo. Mas também quando uma virada democrática acontece no Brasil, com a volta de uma governança de base popular, participativa e radicalmente democrática que se abre à elaboração de políticas sociais e públicas que podem se valer desses estudos para orientar essas políticas.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
O Direito contra os Direitos: Reconstruir e concretizar a dignidade da pessoa humana frente ao apagamento memorial e à brutalidade da reforma trabalhista no Brasil
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Bruno Louis Maurice Guérard. O Direito contra os Direitos: Reconstruir e concretizar a dignidade da pessoa humana frente ao apagamento memorial e à brutalidade da reforma trabalhista no Brasil.Dissertação apresentada à Coordenação do Programa de Mestrado em Direito das Relações Sociais e Trabalhistas do Centro Universitário do Distrito Federal – UDF, sob a orientação da Professora Dra. Cristina Aguiar Ferreira da Silva. Brasília: 10/04/2023.
Recolho do resumo da Dissertação o roteiro para o exame da sustentação de seus pressupostos, forma de análise e conclusões base para o debate na banca nela presente também como examinadora a professora Cecília Lemos, membro interno do Programa.
De fato, diz o Autor, a partir de seu percurso existencial, de uma arqueologia do saber, de uma interdisciplinaridade, assim como da constatação de uma crise normativo-constitucional, que a sua disposição é a de analisar o seguinte problema: como e por que a dignidade da pessoa humana e os Direitos Humanos de todas as dimensões estão sendo instrumentalizados pelo Direito e a cúpula do Poder Judiciário, para reforçar uma subcidadania e um Estado Democrático de insegurança permanente. Num primeiro capítulo, com o intuito de se evitar distorções estatísticas e/ou ideológicas, construiu-se um arcabouçou fenomenológico escorado sobre elementos específicos da “Metodologia de Análise de Decisões” jurídicas. Ademais, após ter afastado possíveis críticas quanto a um idealismo e uma mistificação ligados a uma incapacidade em se corporificar conceitos jurídicos no mundo físico dos homens, revelou-se o uso do Direito contra os direitos através da apresentações de fatos reais complexos, únicos capazes de trazer à tona a naturalização da reificação da pessoa empreendida pela Ordem Neoliberal de Uniformização Cibertransumanista.
Essa disposição, ele continua, trouxe à tona a incompatibilidade existente entre o sistema econômico hodierno e a concretização da dignidade e capabilidade da pessoa, por causa da junção dos dogmas neoliberal e do management empresarial definido pelos nazistas; aos quais, sobretudo no Brasil, o Poder Judiciário submeteu-se, deixando de ser um defensor do bem comum e do equilíbrio social. No capítulo seguinte, ciente da necessidade de se repensar a história político-jurídica, não de forma linear, mas a partir da dignidade e capabilidade da pessoa, estudou-se duas decisões paradigmáticas do STF: as ADPF 153 e 324. De fato, compreendeu-se que ambas representam julgamentos fundados sobre postulados legais e extralegais de justificação de uma superestrutura de manutenção de um status quo histórico-social de subserviências, amnesia coletiva e destruição da ordem constitucional. Por último, analisou-se a atomização da pessoa sob o enfoque da reforma trabalhista e da terceirização ampla e irrestrita empreendidas no Brasil; o que revelou a existia de uma forte ligação entre o apagamento memorial, individual e coletivo, da população brasileira e as decisões em tela.
E que assim, finalmente, após ter explicado o que se entendia por brutalidade da terceirização, enquanto estrutura bio-psicopolítica, aprofundou-se três elementos: a atomização da pessoa e a sua reconstrução nos moldes da exploração e reificação atual; a servidão feliz dos dominados como solapamento da capabilidade e da dignidade; e, a corrosão dos Direitos Humanos e Fundamentais através de julgamentos insustentáveis e desmembradores do Judiciário. Nesse último ponto, graças ao estudo de 18 casos levantados em relação ao Brasil, no âmbito do sistema interamericano dos Direitos Humanos, comprovou-se que a supremocracia brasileira e o arcanum dominationis hodierno reforçavam uma subcidadania e desigualdades históricas de forma incontestável. Em conclusão, apresentou-se duas propostas de mudança de perspectiva histórico-jurídico-social que haverão de levar a uma refundação da questão laboral e trabalhista, como alicerce de uma reconstrução memorial, histórica e jurídica autonomizante, emancipadora e única capaz de garantir uma solidariedade, equidade e liberdade em prol da dignidade e capabilidade concreta das pessoas.
Note-se que o Autor aplica uma série de conceitos e categorias, singularmente recortados, que exigiram a elaboração de um glossário ao final da Dissertação, para compartilhar o sentido de seus enunciados. Desde a referência metodológica (MAD, como está no glossário), outras que são o seu acúmulo de percurso – capabilidade, bio-psicoplítica, ONUC – Ordem Neoliberal de Uniformização Cibertransumanista. Me pergunto se essa sofisticação basta para validar o seu estudo. Vale dizer, se sua análise e conclusões não poderiam ser estabelecidos também segundo outros pressupostos e modelos de análise.
Estou pensando que contribuiria para demarcar o trabalho, e essa alternativa de abordagem, o exame da dissertação de Delaíde Alves Miranda Arantes. Trabalho Decente: Uma Análise na Perspectiva dos Direitos Humanos Trabalhistas a Partir do Padrão Decisório do Tribunal Superior do Trabalho. Dissertação de Mestrado. PPGD-Programa de Pós-Graduação em Direito. Brasília: Universidade de Brasília/Faculdade de Direito, 2022, como um marcador para o seu alcance interpretativo.
O estudo de Delaíde, com o acréscimo de seu manejo familiar porque ministra em exercício no Tribunal, Parte da ideia de que a pessoa humana se constitui como a centralidade do trabalho, os fundamentos da República, a elaboração e aprovação de normas de direitos humanos trabalhistas pelas Organizações Internacionais (OIT) e o Judiciário Trabalhista brasileiro buscam concretizar o objetivo de justiça social na perspectiva dos direitos humanos trabalhistas. O seu estudo toma como eixo balizador o conceito e a evolução do Trabalho Decente. E pretende aferir como o Tribunal Superior do Trabalho projeta, em seus acórdãos, as normas internacionais de direitos humanos trabalhistas, em especial a Agenda do Trabalho Decente, de 1999. Sua hipótese é a de que a dignidade da pessoa humana, alçada ao status de princípio na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, e o Trabalho Decente, constante da agenda da Organização Internacional do Trabalho, acentuaram o protagonismo dos direitos humanos trabalhistas. É certo que alguns movimentos da esfera global, com reflexos em todas as nações, serviram de incentivo e pressão para as ações dos organismos internacionais. Mas constata que o crescimento do projeto neoliberal para o estabelecimento do Estado mínimo, a ofensiva do mercado impondo suas regras de precarização do trabalho e o aumento desmedido dos lucros, limitam essa possibilidade.
Também já anotei que esses temas são trabalhados em livro objeto de resenha que publiquei em minha Coluna Lido para Você (Renata Queiroz Dutra. Direito do Trabalho: Uma Introdução Político-Jurídica. Belo Horizonte: RTM, 2021 (http://estadodedireito.com.br/direito-do-trabalho-uma-introducao-politico-juridica/)).
Temas interperlantes para que, no Brasil, a exemplo do que está a se passar em outros espaços no mundo, se organizem as forças sociais para a necessária reversão das perdas de direitos e sobretudo dos direitos trabalhistas, escopo da agenda neoliberal desdemocratizante e desconstituinte que se implantou no país. É o que, por exemplo, indica João Gabriel Lopes, advogado, coordenador da Unidade Salvador do escritório Mauro Menezes & Advogados e mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília – UnB, ele escreve, “Diante do fracasso das políticas implantadas desde 2017 no Brasil, é indispensável que se pensem estratégias de reversão da perda de direitos, ampliando a participação dos trabalhadores na renda nacional” (https://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/615981-a-necessaria-reversao-da-perda-dos-direitos-trabalhistas-no-brasil).
São tomadas de posição, que desde o momento constituinte brasileiro instaurado com a processo de redemocratização depois do período de exceção implantado com o Golpe de 1964, apontam para o protagonismo dos movimentos sociais, populares e sindicais que definiram o projeto de sociedade desenhado na Constituição de 1988.
Na Introdução do volume 2, da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito do Trabalho, Roberto A. R. de Aguiar e eu, que o organizamos, procuramos convocar um coletivo crítico de pesquisadores e de militantes, motivados por essa perspectiva: “o Direito do Trabalho não pode ser estudado ou praticado sem a constante interligação com o todo social. Isso significa a necessidade de ser abordado de forma interdisciplinar, pois a relação de trabalho é histórica, econômica, cultural, antropológica, psicológica e sobretudo política. Sem a construção de pontes com as ciências que tratam dessas facetas do fenômeno humano corre-se o risco de um reducionismo empobrecedor, que só servirá para enfraquecer a constante busca de relações de trabalho mais livres, mais justas e socialmente mais distributivas em termos de retribuição de salário e acesso aos produtos”.
Avancei um pouco mais na problematização dessas questões, de modo interrogante, quando fui chamado a contribuir para uma obra de celebração da Constituição Comentários Críticos à Constituição da República Federativa do Brasil. Gabriela Barreto de Sá, Maíra Zapater, Salah H. Khaled Jr, Silvio Luiz de Almeida (Coordenadores); Brenno Tardelli (Organizador). São Paulo: Editora Jandaíra (Carta Capital), 2020, com comentário ao artigo 6º da Constituição, a que dei o título de “Direitos Sociais sob Ameaça de Retrocesso?” (conferir a respeito em http://estadodedireito.com.br/comentarios-criticos-a-constituicao-da-republica-federativa-do-brasil/) e constatar que Silvio de Almeida nesse momento tem a oportunidade de construir mediações protetivas desde seu lugar privilegiado de Minsitro dos Direitos Humanos e Cidadania, no governo instalado.
Num tempo de globalização econômica, de permanente revolução tecnológica, em que a criação de emprego e o próprio emprego perdem, aparentemente, o seu vínculo finalístico com o processo de criação social de riqueza, a ideia do trabalho como centralidade do sistema de produção e eixo da solidariedade democrática, passou a ser uma ideia vulnerável.
O trabalho havia sido, durante a construção da modernidade capitalista e do consenso liberal, o fator ético do próprio contrato social e a condição de acesso à cidadania e aos direitos. De fato, ao longo do século XIX e durante a segunda metade do século XX, as lutas operárias se constituíram um catalisador de conquistas sociais e o protesto operário foi, em grande parte, o garantidor da universalização de direitos civis e políticos e de conquista de novos direitos, não somente vinculados ao mundo do trabalho, mas também econômicos e sociais. Não apenas específicos para os coletivos de trabalhadores, mas universalizáveis, na sua expressão própria de direitos humanos.
Num sistema de produção e distribuição da riqueza social globalizados, com mercados livres de controles e com tecnologias que criam riquezas, mas não empregos, o trabalho entrou num nível de segmentação e de fragilização organizativa, comprimido num sistema regulatório que o fragiliza e enfraquece suas formas de organização. Estas condições, diz Boaventura de Sousa Santos, levam a uma lógica de exclusão, facilitada por mecanismos lenientes de flexibilização de garantias, levando a que, em muitos países, a maioria dos trabalhadores entrem no mercado de trabalho já desprovidos de qualquer direito.
Por essa razão, Boaventura de Sousa Santos indica que o direito e a redescoberta democrática do mundo do trabalho são fatores cruciais para a construção de novas sociabilidades, resgatando a globalização para a solidariedade e a produção da riqueza social para uma lógica de distribuição inclusiva.
É claro que essa tarefa não se realiza sem se conceber círculos amplos de alternativas e de estratégias, como por exemplo, o Fórum Social Mundial, realizado em Porto Alegre, com a realização temática neste ano de 2022, na forma de um Forum Social Mundial Justiça e Democracia, ainda com a sua projeção para um novo mundo possível. Mas não se realiza, também, sem um repensar das estratégias sindicais, mais politizadas na configuração de seus antagonismos sociais, mais conscientes do alcance internacional de suas reivindicações, mais engajadas na condição civilizatória das lutas que devam ser travadas por um mundo melhor, no qual, como diz Sousa Santos, nada que tenha a ver com a vida dos trabalhadores, mas também dos que não são trabalhadores de outros grupos ou movimentos sociais, seja deixado de fora de sua pauta de direitos.
A questão se coloca, atualmente, quando se trata de saber se os operadores e os agentes políticos estarão à altura das expectativas civilizatórias que os desafiam, no plano constitucional e no plano convencional (para a salvaguarda de direitos)? Nessa quadra dramática de interpelação a um paradigma civilizatório, serão alcançados nos seus misteres para, com a tempestade que desaba sobre o mundo, limpar “a maquilhagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso «eu» sempre preocupado com a própria imagem; (e deixar) a descoberto, uma vez mais, aquela (abençoada) pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos”, como exorta o Papa Francisco em sua Homilia Adoração do Santíssimo e Benção Urbi et Orbi, pronunciada em seu exemplar distanciamento social na grande praça de São Pedro, totalmente vazia, em 27 de março de 2020?
Será o Direito, realmente Direito se, como exortou Francisco, não for “capaz de resgatar, valorizar e mostrar como as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns (habitualmente esquecidas), que não aparecem nas manchetes dos jornais e revistas, nem nas grandes passarelas do último espetáculo, mas que hoje estão, sem dúvida, a escrever os acontecimentos decisivos da nossa história: médicos, enfermeiros e enfermeiras, trabalhadores dos supermercados, pessoal da limpeza, curadores, transportadores, forças policiais, voluntários, sacerdotes, religiosas e muitos – mas muitos – outros que compreenderam que ninguém se salva sozinho”, e operar para realizar e ser instrumento por meio da eficácia horizontal dos direitos humanos nas relações justrabalhistas, quando o horizonte civilizatório sempre se moveu pela concretização dos ideais de igualdade material, de democracia e de justiça social, com a consolidação do valor trabalho (digno) ancorado na centralidade da pessoa humana e sua dignidade.
Uma resposta já se apresenta de imediato, procedente daquela mesma fonte bi-centenária que expressamente inspirou a constituição do campo dos direitos sociais e do trabalho e a formação da OIT, a Rerum Novarum. Em Carta aos Movimentos Sociais no domingo de Páscoa (12/4) exortou o Papa Francisco: “Talvez seja a hora de pensar em um salário universal que reconheça e dignifique as tarefas nobres e insubstituíveis que vocês realizam; capaz de garantir e tornar realidade esse slogan tão humano e cristão: nenhum trabalhador sem direitos. Também gostaria de convidá-los a pensar no “depois”, porque esta tempestade vai acabar e suas sérias consequências já estão sendo sentidas. Vocês não são uns improvisados, têm a cultura, a metodologia, mas principalmente a sabedoria que é amassada com o fermento de sentir a dor do outro como sua. Quero que pensemos no projeto de desenvolvimento humano integral que ansiamos, focado no protagonismo dos Povos em toda a sua diversidade e no acesso universal aos três T que vocês defendem: terra e comida, teto e trabalho”.
Que tarefa! Se a Constituição não é só o texto, mas como diz Canotilho, a disputa narrativa para a sua concretização, ao fim e ao cabo, é estabelecer disposição de posicionamento crítico para que não nos deixemos enredar nas armadilhas de qualquer tipo que permeiam essa disputa, contrapondo hostes conservadoras e hostes progressistas pelo menos. No campo do Judiciário uma dessas armadilhas pode ser incidir numa inversão qual seja, tomar a perspectiva dos direitos humanos trabalhistas a partir do padrão decisório do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ao invés de circunscrever o padrão decisório a partir dos direitos humanos, ainda que balizados pelos estandares das cortes internacionais, algo que pode estar presente nos casos paradigmas examinados, mesmo nas duas ADPFs que norteam a hermenêutica da dissertação.
Em qualquer caso, é o que já se começa a constatar em rearranjos políticos que buscam frear a voragem neoliberal, conforme exorta o Papa Francisco, na sua atitude contra essa descartabilidade do humano nas relações de trabalho. Na mensagem do Papa ao IV Encontro Mundial dos Movimentos Populares, 16 de outubro de 2021, ele afirma de modo contundente: “Este sistema, com sua lógica implacável de ganância, está escapando a todo domínio humano. É hora de frear a locomotiva, uma locomotiva descontrolada que está nos levando ao abismo. Ainda estamos em tempo.” – (https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2021-10/papa-francisco-mensagem-movimentos-populares.html).
Mas também no plano político. Assim é que na Espanha, nesse começo de 2022, foi revogada a reforma trabalhista que precarizou trabalho e não criou empregos. Conforme amplamente divulgado, entre outros – https://www.brasildefato.com.br/2022/01/03/espanha-revoga-reforma-trabalhista-que-precarizou-trabalho-e-nao-criou-empregos – “a reforma trabalhista da Espanha de uma década atrás foi uma das “inspiradoras” da “reforma” feita no Brasil em 2017, sob o governo de Michel Temer. Lá como aqui, o pretexto de baratear as contratações para se criarem mais empregos fracassou. Isso porque, a principal consequência foi a precarização do trabalho e a criação de vagas mal remuneradas, com menos direitos e condições ruins de trabalho. Dez anos depois, a Espanha volta atrás. O decreto de 30 de dezembro atende ainda a um compromisso do primeiro-ministro Pedro Sánchez com a Comissão Europeia, para garantir a próxima parcela de fundos da União Europeia. Atualmente, o país conta com taxa de desemprego de 14,5%, uma das mais altas do bloco econômico. O principal objetivo da nova reforma espanhola é acabar com abuso de contratações temporárias, que hoje responde por mais de um quarto das ocupações no país. A ideia é estimular a contratação por prazo indeterminado, que dão mais segurança aos trabalhadores e, portanto, à economia. Além disso, a nova regra extingue a chamada contratação “por obra ou serviço”, equivalente ao “trabalho intermitente” da reforma de Temer”.
Voltei a me defrontar com essas interpelações quando fui chamado a participar da banca e depois, a pedido do Autor elaborar a Apresentação do livro NEOLIBERALIZAÇÃO DA JUSTIÇA NO BRASIL: MODO GOVERNAMENTAL DE SUBJETIVAÇÃO, DISPOSITIVO JURISDICIONAL DE EXCEÇÃO E A CONSTITUIÇÃO COMO UM CUSTO. THIAGO ARRUDA QUEIROZ LIMA. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2020.
Tal como está na Dissertação de Bruno, o livro de Thiago Lima também foi escrito num cenário de exceção já delineado, mas sem que se fizesse tão agudo quanto no contexto da pandemia que passou a assolar o mundo, e sem que o trabalho pudesse sequer imaginar tal cenário, o livro se abre, a partir de um conjunto de enunciados oriundos de atores pertencentes ao campo jurídico brasileiro, com a problematização acerca dos influxos que pressionam, hoje, o Poder Judiciário do país.
O Autor admite não ser possível, diante que foi exposto ao longo do trabalho, desprezar ou ignorar o que está em jogo. Discorrendo, em meio a uma guerra epistêmica, e agora em meio a uma crise total, estão a ser, ele diz, definidos os destinos do direito nacional. O que emergirá após o cenário de crise, que já não é só política? Esse é o ponto, e é toda a nossa cultura jurídica que está em questão. A revolução jurídica que se anuncia, indissociável de uma “reforma dos juristas”, tem alcance muito maior do que eventuais mudanças legislativas. Ao se remodelar o comportamento dos que decidem quanto à própria aplicação – ou desaplicação – da lei, altera-se algo muito mais profundo e relevante, que é o modo de produção de verdades jurídicas estabelecido no país.
No fundo, me deslocando um tanto para uma outra perspectiva que não aquela focalizada pelo Autor para enquadrar a mesma ordem de problemas, o que está em causa, não é só reivindicar, a modernidade de um sistema, inclusive de acesso à justiça, mas um repensar e reorientar a própria concepção de justiça para a qual ter acesso, o que modifica muito a percepção sobre modernidade e governamentabilidade. E isso não pode ocorrer sem que se abra o tema, não só aos sujeitos econômicos no mundo dos negócios, mas à participação popular porque, como eu próprio já afirmei, as Reformas do Judiciário em curso atingem o núcleo central, funcional, organizativo do sistema de justiça como estrutura de poder mas não o abre à participação social democrática. O tipo de acesso à justiça que tem sido debatido é ainda o “acesso a um sistema de justiça patrimonialista, sexista, patriarcalista, que criminaliza os movimentos sociais”. Uma reforma do judiciário de raiz precisa ser construída pelos movimentos sociais, e, neste sentido, requer abrir espaços de articulação das grandes pautas que envolvem a democratização da justiça (http://www.jusdh.org.br/2014/12/19/reforma-do-judiciario-precisa-de-participacao-popular/).
É nessa linha de interpelação que se localiza, por exemplo, o trabalho Porteiro ou Guardião? O Supremo Tribunal Federal em Face aos Direitos Humanos, estudo coordenado e redigido por Antonio Escrivão Filho (Porteiro ou Guardião? O Supremo Tribunal Federal em Face aos Direitos Humanos. Antonio Escrivão Filho. São Paulo: Friedrich-Ebert-Stiftung (FES) Brasil/Articulação Justiça e Direitos Humanos (JusDh), maio de 2018).
Com efeito, na mesma linha de sua tese de Doutorado, a que se pode ter acesso pelo Repositório de Teses da UnB – Mobilização social do direito e expansão política da justiça: análise do encontro entre movimento camponês e função judicial. 2017. 315 f., il. Tese (Doutorado em Direito)—Universidade de Brasília, Brasília, 2017 – Escrivão Filho oferece o resultado de uma pesquisa que tem por objeto o fenômeno de encontro entre o movimento social e a função judicial no Brasil, analisando a experiência do movimento camponês a partir da década de 1980, com foco empírico (primário e secundário) e bibliográfico nos conflitos fundiários e no MST, observando a sua capacidade de reivindicação e mobilização constitutiva (criação) e instituinte (efetivação) de direitos.
Neste cenário, segundo o resumo do trabalho, observa-se um fenômeno de expansão política da sociedade brasileira, e com ela uma dialética de expansão política do direito, no bojo da ativação social dos direitos fundamentais. De modo complementar, neste período observa-se ainda a densificação das funções de controle judicial sobre a sociedade e os entes estatais, o que, por via de consequência, proporciona uma potencial transferência da deliberação de assuntos de elevada intensidade política para a arena judicial – como a relação ‘Estado-sociedade’ inscrita nos direitos fundamentais- culminando, enfim, no fenômeno identificado pela noção de expansão política da justiça. Identifica-se, assim, que a análise da mobilização social do direito realizada pelo movimento camponês, e o respectivo padrão de enfrentamento judicial com proprietários, tanto pode ser melhor analisada sob o enfoque da expansão política da justiça, como fornece elementos para a própria compreensão do fenômeno da expansão judicial no Brasil, a partir do regime de enunciado democrático.
Esse é o mesmo cenário, embora alargado em alcance histórico e político, no qual Escrivão, aqui denominando contexto, instala sua análise sobre o Supremo Tribunal Federal em face dos direitos humanos. Trata-se, diz ele (pp. 5-6) de reconhecer a política como o campo constitutivo (de criação) e instituinte (de efetivação) de direitos, a partir do que antigos e novos movimentos sociais, urbanos e rurais, comunitários e eclesiais, locais e nacionais, de gênero e étnico-raciais entram em cena, primeiro deslocando o lócus da ação política dos espaços institucionais para achá-la na rua, espaço público por excelência, depois, ocupando também os espaços institucionais para então disputar a participação no próprio processo constituinte de 1987-88. Assim que, se não parece possível afirmar a existência de um regime democrático sem direitos fundamentalmente referidos à cidadania – ou seja, às garantias de dignidade, bem estar social e participação ativa na vida política da sociedade – não soaria lógico conceber um regime de direitos sem identificar que, por detrás da sua conquista, traduzida em reconhecimento jurídico-institucional, estão os sujeitos que irromperam a história, superando violências, exploração e opressões cotidianas para, a cada novo momento, a cada nova emergência em luta social, afirmar novos direitos.
O tema, a que remete abordagens quais a de Antonio Escrivão, cuida de conferir a ocorrência de uma expansão política do judiciário em face de sua interação com o sistema político e a sociedade civil. E de modo mais preciso, a necessidade de considerar nesse processo, não bastar compreender a ideologia que compromete a ação individual de juízes sem entender o fluxo de interação ideológica entre tribunais e academia, mídia, grupos sociais organizados e outras instituições políticas.
Não é difícil estimar, adverte Escrivão, um potencial curto-circuito, quando se constata a súbita sobrecarga política sobre uma estrutura destreinada a participar democraticamente da deliberação sobre conflitos de elevada intensidade política, econômica e social, na medida da Formula que alia expansão política e blindagem institucional e em oposição à sua abertura democrática ao dialogo nos termos da participação e controle social.
De certo modo, eu já havia antecipado essa sobrecarga, ao examinar esse tema a partir de uma questão política que me havia sido formulada por um sindicato de servidores do judiciário como tema de um de seus congressos: é possível uma sociedade democrática com um poder judiciário conservador? Minha resposta, à altura, trilhou a mesma senda que Escrivão Filho percorre agora em seu estudo (Que Judiciário na Democracia?, in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Ideias para a Cidadania e para a Justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008): A resposta, obviamente, é não. Não é possível uma democratização plena da sociedade se uma de suas instituições essenciais se conserva como modelo instrumental resistente porque ele se tornará obstáculo à própria mudança. Esta é sem dúvida a questão candente hoje, em nosso pais, quando se coloca em causa o problema de sua democratização e se identifica no judiciário a recalcitrância que é social e teórica para a realização de mudanças sociais, conferindo à regulamentação jurídica das novas instituições o seu máximo potencial de realização das promessas constitucionais de reinvenção democrática.
Para Escrivão Filho, voltando ao texto de sua pesquisa, ao contrário da disposição de fomentar noções de autonomia e independência concebidas como princípios políticos próprios da função judicial diretamente referentes à garantia da sociedade contra a arbitrariedade do Estado, as alianças então construídas sobretudo durante a mediação constituinte (1988), ao invés de forjar requisitos de neutralização do sistema – reconhecimento ontológico da condição política da justiça – deixou que esse se visse permeado pela ideologia da neutralidade – enredando-o em injunções a serviço da reprodução das tradições de uma cultura institucional acostumada e orientada à manutenção do status quo.
Eis o tamanho do desafio que se coloca para a sociedade na qual se constitui a expressão de soberania popular que deve designar o perfil do Judiciário no desenho da institucionalidade em construção.
Claro que a salvaguarda do Autor é dar-se conta de que há uma tensão entre direitos, tal como sugere o título da dissertação, mas não estou certo se há, com efeito, na sua formulação, mesmo sustentadas por uma bem postada fundamentação teórica, notadamente, no caso do jurídico, aludindo a Ost e a Catoriadis, se temos convicção desse antagonismo, que não seja uma troca de sinais entre porosidades normativas, por que não estou certo, a partir da dissertação, do que falamos quando falamos em direito, em direitos humanos e tensão entre direito e direitos.
Pense-se se isso não estará, por exemplo, tomando uma anotação entre várias, aquela que é lançada à pág. 71:
Destarte, não há como não se afirmar que as duas apontam para uma mesma direção, a desconstrução, a submissão e a instrumentalização do Direito contra os direitos, isto é, uma negatividade para com aqueles que não têm mais voz, os desaparecidos, torturados e perseguidos no caso da ADPF 153, assim como os trabalhadores sem amarras, desinformados, abandonados frente à força de um sistema mercadológico todo poderoso.
Apesar das suas especificidades e peculiaridades, o terceiro ponto de convergência entre essas duas decisões do STF deriva do fato que elas, sempre em nome de uma necessidade ‘política’, tendem a reforçar a invisibilidade dos já invisíveis a partir de uma leitura sempre favorável à superestrutura de poder político-econômicocultural que, in fine, a própria Corte representa e reforça.
Certamente que o autor percebe a movimentação em curso num social agitado, lembrando à pág. 74-75, com Castoriadis, a necessidade de dar-se conta da heteronomia que afeta instituições compostas por incidências que se sobrepõem “à ordem constitucional, [que] não consegue realizar in concreto o movimento autonomizante” que esse autor enxerga como “a sociedade em autocriação”: “Sua instituição é autocriação, até o momento ocultada. Essa auto ocultação é precisamente a característica fundamental da heteronomia das sociedades. Nas sociedades heterônomas, isto é, na maioria das sociedades que existiram até hoje – quase todas –, encontra-se, institucionalmente estabelecido e sancionado, a representação de uma fonte instituinte da sociedade que se encontraria fora da sociedade: nos deuses, em Deus, entre os ancestrais, nas leis da Natureza, nas leis da Razão, nas leis da História”.
Algo próximo às interconexões entre os grandes projetos e as qualificações que ativam os percursos de indivíduos e de coletivos, lembra Musil em O Homem sem Qualidades quando relaciona o grande projeto cívico para marcar o mundo descrito na metáfora da grande ação patriótica (o Reich?), e as incertezas que abrem vácuo na vida interior, como “ausência de formas que é a perpétua mudança de forma, lenta mas inquieta revolução, que arrasta todas as coisas no seu curso” num agir em que “quase toda a existência é feita, não só dessas ações, mas de discursos de que assimilamos o ponto de vista, as opiniões e as contra-opiniões, numa acumulação impessoal de tudo quanto sabemos ou ouvimos”.
Na Dissertação, caminhando na senda de uma aplicação estendida de um gatopardismo assimilável ao que propôs Lampedusa, para acentuar, com José Murilo de Carvalho, pág. 50 da Dissertação, ser preciso considerar “essa ‘ambiguidade’, essa ‘relação tensa’, não é nada mais que a expressão infernal da não concretização dos conceitos, que, em tese, todos defendem, mas não aplicam de fato; da não compreensão que o importante não é o princípio em si, mas a efetividade do resultado da sua aplicação no mundo como ele é, e não como se imagina que ele poderia ser! Essas distorções são explicadas e denunciadas como “[…] um jogo de aparências, de falsas realidades, de ficção” por Murilo de Carvalho, graças a uma metáfora teatral, isto é, a imagem da sombra, que, aqui, retomou, além de Cícero, o discurso de 1882 de Ferreira Viana que denunciava um parlamento “[…] espectro, sombra de outra sombra, porque não há país constituinte nem país constituído”. Aliás, o Autor não resiste a uma paráfrase: (pág. 73) “romper sem quebrar para seguir sem mudar!”.
O certo é que, de um lado, há o limite cultural que circunscreve, em modo hegemônico, o paradigma do positivismo jurídico que está na base da formação dos operadores do Sistema (de Justiça), o que levou o então presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o brasileiro Cançado Trindade, professor aposentado da UnB, a considerá-lo o principal obstáculo à integração no direito nacional das normas cogentes de direitos humanos inscritas nas convenções e nos tratados (Caso Vllagrán Morales y Otros – Caso de los Niños de la Calle, 19/11/1999), conforme anotamos Antonio Escrivão Filho e eu em nosso Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2015, p. 199-200), texto, aliás, constante do rol da excelente bibliografia consultada pela Autora.
Do mesmo modo o projeto constituído em ítem programático do Ministro Lewandowisk para sua gestão na presidência do Supremo Tribunal, vencer o atraso de formação dos magistrados brasileiros no tema direitos humanos raramente observado nas escolas de direito e de magistratura e a espantosa ignorância de decisões de cortes internacionais de direitos humanos, conhecida por menos de 6% dos juízes brasileiros. No TST, pelo menos, sempre se notou, ao menos em diretrizes de deus mais ilustrados dirigentes, uma atenção não apenas protocolar aos ditames dos direitos humanos trabalhistas. Fico feliz em poder registrar nesse aspecto, a gestão do meu estimado amigo e primo, ao menos por afinidade derivada de sua esposa a Promotora de Justiça, a querida Tania Marinho. Refiro-me ao Ministro e ex-Presidente Francisco Fausto Paula de Medeiros, firme no enfrentamento ao trabalho escravo no Brasil.
De outro lado, o difícil posicionamento do próprio sistema de justiça, quando todos os esforços funcionais de seu aparelhamento, incluindo o financiamento para reformas pensa o aparato mais como garante de negócios do que propriamente de mediadores para a expansão política dos direitos contidos entre os interesses econômicos da acumulação e a difícil afirmação das conquistas sociais por distribuição a partir dos protagonismos desencadeados desde o mundo do trabalho. Também dissemos algo a respeito disso Escrivão e eu. Mas para bem documentar as diretrizes neoliberais nesse campo, vale examinar em pormenor a tese de nossa colega Talita Rampin (Estudo sobre a Reforma da Justiça no Brasil e suas Contribuições para uma Análise Geopolítica da Justiça na América Latina. Brasília: UnB/Faculdade de Direito, 2018), aliás, escolhida como a melhor tese da Faculdade de Direito da UnB, no período 2017/2018, conforme o comitê institucional de seleção.
Serão excessivas essas preocupações? Nos anos sombrios do período autoritário aberto em 1964, não foram incidentais as intervenções do Judiciário para legitimar uma regulação de exceção e destituintes de Direitos. Em Direito do Capital e Direito do Trabalho (Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 1982, p. 41), Roberto Lyra Filho recupera voto escoteiro do Ministro Victor Nunes Leal, no Supremo, em manifestação divergente de disposição da ditadura restritiva ao direito de greve, com base em enunciados de atos institucionais e da lei de segurança nacional, para afirmar a inexigibilidade de outra conduta própria de dirigente sindical, por não poder a lei exigir do operário ser herói ou soldado a serviço do patronato (no livro citado de Roberto Lyra Filho uma curiosidade, a dedicatória impressa “Para Jessé José Freire de Souza, discípulo dileto, com as bênçãos do velho professor”; então, o jovem ainda estudante de Direito que viria a se tornar o notável sociólogo integrante da bibliografia da Dissertação para calçar o conceito de sub-cidadania). E agora, o que se vê, em tempos de flexibilização, de precarização, de prevalência do contratado sobre o legislado? Recente decisão do TRT do Maranhão (16ª Região) determinou a prisão de toda a diretoria do Sindicato dos Trabalhadores em Transportes Rodoviários no Estado do Maranhão (STTREMA) em virtude do não atendimento do percentual mínimo de funcionamento determinado pela Justiça do Trabalho durante o movimento grevista. Diante desse fato, os Debates REMIR-ABET nesse ano de 2022 já pautam discutir a *escalada autoritária do Poder Judiciário contra o direito de greve*, com evento marcado para o próximo dia *2/3, às 17h00*. Foram convidados para discutir o tema Marcelo Alves de Brito, Presidente do STTREMA; José Eymard Loguércio, advogado; Cristiano Paixão, professor da UnB e membro do Ministério Público do Trabalho; e Valdete Severo, professora da UFRGS e juíza do trabalho. Convidamos a REMIR e a ABET para participar da discussão, que será transmitida pelo canal da ABET no youtube, pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=P2dhNHp6Vnk.
Sob a perspectiva da condição ultra-neoliberal, sigo pensando num bom português que ajude a interpretar os desafios que se colocam à nossa consideração. Acompanho, nesse passo (cf. meu artigo “Uma Universidade Popular para uma Educação Emancipatória”, in REVISTA FORGES – Fórum de Gestão do Ensino Superior nos Países e Regiões de Língua Portuguesa, n. Especial (2020): NÚMERO COMEMORATIVO DO 10.º ANIVERSÁRIO DA FORGES Publicado em 2020-11-19 (https://revistaforges.pt/index.php/revista/issue/view/8), Avelãs Nunes: Nos últimos anos – diz ele – tenho dado alguma atenção à problemática da globalização. Refiro-me ao que costumo chamar a terceira onda da globalização, marcada por um processo acelerado de desenvolvimento científico e tecnológico, especialmente no que toca aos transportes, às telecomunicações e à informática. Para as classes dominantes, para as multinacionais e para o seu estado, pouco importa que milhões de pessoas morram de fome e de doenças provocadas pela fome. O que importa, num quadro como este, é melhorar o poder de compra dos clientes (a pequena camada de ricos) e, se possível, acrescentar uns quantos privilegiados a este núcleo de elite. O que, evidentemente, aconselha a (e pressiona no sentido da) concentração dos rendimentos ainda mais acentuada e desigual.
A exclusão social crescente é a outra face deste tipo de desenvolvimento perverso ou maligno. E a exclusão social é um dos fenômenos mais dramáticos do nosso tempo. Como escreveu um autor, quando se falava de exploradores e explorados, havia que contar com estes, porque os explorados estavam dentro do sistema (sem explorados não pode haver exploradores), enquanto os excluídos estão, por definição, fora do sistema, são inexistentes.
É importante salientar, porém, que a crítica da globalização não pode confundir-se com a defesa do regresso a um qualquer “paraíso perdido”, negador da ciência e do progresso. A saída desta caminhada vertiginosa para o abismo tem de assentar na confiança no homem e nas suas capacidades. Tem de partir da rejeição da lógica de uma qualquer inevitabilidade tecnológica, que nos imporia, sem alternativa possível, a atual globalização neoliberal, uma das marcas incontornáveis dessa civilização fim-da-história.
Assim como essa globalização não é um “produto técnico” deterministicamente resultante da evolução tecnológica, antes é um projeto político levado a cabo de forma consciente e sistemática pelos poderes dominantes, enquadrado e apoiado pelas grandes centrais produtoras da ideologia dominante, também a luta por uma sociedade alternativa pressupõe que a política prevaleça sobre as pretensas “leis naturais” do mercado ou da economia, implicando um espírito de resistência e um projeto político inspirado em valores e empenhado em objetivos que o “mercado” não reconhece nem é capaz de prosseguir.
Todos sabemos, porém, que as mudanças necessárias não acontecem só porque nós acreditamos que é possível um mundo melhor. Essas mudanças hão de verificar-se como resultado das leis de movimento das sociedades humanas, e todos sabemos também que o voluntarismo e as boas intenções nunca foram o motor da história. Mas a consciência disso mesmo não tem que matar o nosso direito à utopia e o nosso direito ao sonho (NUNES, Antonio José Avelãs. Neoliberalismo & Direitos Humanos, Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Renovar, 2003).
Ao fim e ao cabo, cuida-se, conforme identifiquei na tese de Eduardo Xavier Lemos, que orientei e que teve arguidores interpelantes como Boaventura de Sousa Santos, David Sanchez Rúbio, Maria José Fariñas-Dulce (Direitos Humanos Desde e Para a América Latina: Uma Proposta Crítico Dialética a Partir de O Direito Achado na Rua. Tese em cotutela apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília e ao Programa de Doctorado en Derecho de la Universidad de Sevilla. Brasília, 2023; cf. http://estadodedireito.com.br/direitos-humanos-desde-e-para-a-america-latina/).
Tudo se passa, indica Eduardo Lemos, no exercitar “o nosso papel, portanto, [que] é lutar, dialogar e aprender com os sujeitos e sujeitas que resistem cotidianamente contra as opressões do colonialismo, do capitalismo e do patriarcado, mas experenciando tais lutas, porque essas sempre serão constitutivas de um pensamento de transformação social; para os coletivos insurgentes”, assim, aliás, indicou Lívia Gimenes da Fonseca de modo a realçar o sentido coletivo da construção que se inscreve no programa-compromisso do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, nos fundamentos teórico-metodológicos da Nova Escola Jurídica Brasileira – NAIR, orientados por O Direito Achado na Rua, sua concepção, seus projetos e sua prática. Uma mirada no apêndice, com o catálogo dessa construção, atesta a fortuna crítica do movimento estudado na Tese.
E ainda assim tendo em conta, conforme nos sugere Boaventura de Sousa Santos, em um de seus mais instigantes textos – Por que pensar-, que “pensar não é tudo”, às vezes é preciso “des-pensar”, “des-aprender”, como mostra a poesia (Manoel de Barros, A didática da invenção in O livro das ignorãças). Em Boaventura “pensar não é tudo, porque além de agir nós temos que sentir, nós temos que criar formas de pensamento que sejam mais acolhedoras às emoções, ao corpo, aos afetos, ao sentimentos. Isso também é uma grande dificuldade para o conhecimento em que fomos treinados. As ações coletivas de transformação social têm essa dupla característica de resistência e de criatividade e quer uma quer outra exige envolvimento emocional, entusiasmo e indignação. O próprio ódio é por vezes necessário, ao mesmo tempo que o amor, e a solidariedade, ou seja, elementos de sensibilidade com os quais a modernidade ocidental sempre se achou muito mal” (https://www.scielo.br/j/ln/a/CLwxcMF6Kq6Rzc9h74xt98t/?lang=pt).
Eduardo, com a metodologia lyriana de ler Marx a partir de seus paralogismos, tal como Roberto Lyra Filho em Karl, meu amigo. Diálogos com Marx sobre o Direito, notadamente no trânsito do invisível para o visível, do ausente para o emergente, do informal para o formal, do plural para o oficial, no relativo ao jurídico – direito e antidireito, direito burguês e direitos dos trabalhadores, privilégios e direitos iguais, se opera logicamente pela mediação dialética, pois só se conhece efetivamente de modo sentipensante, corazonadamente, em diálogo com o social, os sujeitos que nele se movimentam, se põem em relação, que instituem os direitos.
Eis que, referindo-me aos cuidados indicados por Schopenhauer, segue-se, ou antes, non sequitur, (não se segue que), não digo que se trate de uma falácia lógica, que a conclusão oferecida não decorra das premissas propostas. Até podem ser verdadeiras as conclusões, mas será verdadeira a premissa inicial, fora do contexto que gerou o nazismo (e o management empresarial por ele definido como propõe o Autor) em uma dada conjuntura, que pudesse admitir, tal como Umberto Eco o faz em relação ao que denomina fascismo eterno, que haja realmente uma conexão entre as premissas e a conclusão, entre a causa e o consequente (post hoc ergo propter hoc) e o antecedente?
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.5
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
O direito para além do capital: janelas e trilhas / Paulo Rosa Torres, Carlos Eduardo Soares de Freitas, Cloves dos Santos Araújo, Celso Antonio Favero, organizadores. – Feira de Santana: UEFS Editora, 2023, 488 p.
Retiro da obra toda, que será lançada em breve, a Apresentação a cargo da estimadíssima professora Stella Rodrigues dos Santos, que explica o processo de elaboração do livro e seu conteúdo autoral.
Diz ela:
Este livro, O Direito para além do capital: janelas e trilhas, foi forjado pelo impulso de conversas, perplexidades, inconformismos e resistências de docentes/ pesquisadores/ pesquisadoras da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), incluindo a coparticipação da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) e a Universidade Federal da Bahia (UFBA), incansáveis na luta pela desestabilização da exploração capitalista, também pela convicção de que “[…] “o propriamente dito no ser humano como no mundo ainda está por acontecer […]” (BLOCH, 2005, p. 243-244). Dessa convicção impõe-se a premente necessidade dos “sonhos diurnos” elementos transformadores, impulsionadores da história. A crise que varre o mundo globalizado acelera estas utopias e cada vez mais arrasta pessoas para um “sonho diurno”, tirando-as do torpor da vida de autômatos.
Das conversas aos “sonhos diurnos”, destaca-se nesta Apresentação a abertura de janelas que o livro sugere pela capacidade dos/das autores/autoras de ensaiar, arriscar, lançar conhecimentos não acabados sem, contudo, abdicar dos clássicos, mas atualizando-os e interrogando-os em função das interpelações provenientes das ruínas do nosso tempo presente. Em acréscimo, destaca-se também a interlocução entre aspectos particulares e gerais para uma adequada compreensão da multiplicidade social, o que contribui para que leitores/leitoras conquistem um “olhar instruído” em relação à realidade apenas aparentemente amorfa e igual. Por fim, sobre o título, Celso Antonio Favero na introdução do livro discorre longamente sobre a escolha, fundamentando, justificando e mostrando como se chegou até aqui.
Postas essas observações, o foco central deste livro é o Direito, em torno do qual gravitam os inconformados e críticos olhares que entrecruzam: a crítica radical e necessária, vinculando-o à violência; as contribuições de Evguiéni Pachukanis no escopo de uma interpretação marxista para o direito; formulação de natureza epistemológica para interpelar os limites da perspectiva eurocêntrica; provocação para se pensar um “repertório ético-jurídico afro-brasileiro”; educação como práxis para uma atuação político-social engajada” ; o lugar da experiência e dos sentidos do “Direito Achado na Rua”; tecnologias predatórias, cultura jurídica e autoritarismo; o suicídio no enfrentamento das questões dos territórios tradicionais; a luta das comunidades tradicionais de fundo e fecho de pasto da Bahia pelo direito aos seus territórios. Este conjunto de provocações, está distribuído em duas partes do livro, composto por dez ensaios, cinco para cada uma das partes: a primeira – para além do capital: janelas e horizontes – a segunda – para além do capital: trilhas e pegadas, apresentados resumidamente como segue.
O que segue é designação do conteúdo, temas, autores e autoras, material certamente compartilhado pela autora da Apresentação e pelos Organizadores da obras, todos e todas engajados no seu processo-base já referido, o diálogo entre saberes construídos nos seminários que serviram de lastro para a elaboração dos textos agora publicados. Aqui, relevo para os organizadores: Paulo Rosa Torres, Carlos Eduardo Soares de Freitas, Cloves dos Santos Araújo e Celso Antonio Favero.
A obra está dividida em duas partes:
Primeira parte – Para além do capital: janelas e horizontes
Celso Antonio Favero, no texto “Marx, direito e violência nas encruzilhadas dos tempos, alinha-se ao instigante debate necessário e urgente em torno da vinculação entre direito e violência, interpelando os traçados do quadro do nosso tempo, expressos como “escombros de uma ordem econômica, social e política […] também das formas jurídicas, das instituições e das relações sociais, mesmo quando essas formas jurídicas são edificadas sob o signo do positivismo normativo.” As formulações para a tarefa pretendida são encaminhadas no enquadramento do campo da filosofia política, fundadas na grande crítica marxista, cuja chave de análise gira em torno das proposições lukacsiana da ontologia do ser social. Chama a atenção para dois pressupostos basilares com o fito de tecer as argumentações que vinculam direito e violência. Primeiro, “o pensamento marxiano funda uma nova ontologia, […] a ontologia do ser social;” segundo, “Marx não elabora uma teoria do direito, embora a sua ontologia contenha os elementos necessários para o desenvolvimento dessa teoria.” Vale destacar a dedicação do autor na explicitação consistente que entrelaça, contra o pensamento confortável, a mesma radicalidade do caminho assumido, teoria e método. Na sequência, Celso discorre sobre a ontologia marxiana do ser social para alcançar o lugar do direito no pensamento lukacsiano; esboça, sumariamente, um conjunto de elementos indissociáveis, dentre os quais o de ser o direito uma produção histórica do capital e faz acréscimos teóricos importantes, de inspiração crítica, para sustentar os argumentos em torno da relação entre direito e violência, desde a sua gênese. Por fim, evoca as denúncias contundentes de Walter Benjamin acerca da relação entre direito e violência; reconhece as dificuldades para elaboração de um conceito marxista/marxiano de direito, como reconhece os caminhos trilhados até então, Mas, “esses esforços só têm sentido na medida em que contribuem para a elaboração de uma práxis que ajude na transformação da sociedade”, na superação do capitalismo e, como consequência, no fenecimento do direito tal qual o conhecemos.
Ricardo Prestes Pazello, no ensaio “Pachukanis, de suas concepções a suas recepções “, propõe uma reflexão acerca da pertinência e atualidade da obra do jurista soviético Evguiéni Pachukanis no que concerne às contribuições para se pensar o direito para além do capital, por entender a centralidade da sua elaboração teórica no escopo de uma interpretação marxista para o direito. Para tanto, parte de uma breve referência ao debate da teoria clássica do direito no século XX, considerando os expoentes maiores das três correntes em questão: Radbruch e jusnaturalismo, Kelsen e o juspositivismo, Schmitt e o decisionismo. Embora Ricardo reconheça a importância desse debate na criação de um campo jurídico científico, pontua que essas correntes “não só não esgotam a visão clássica da teoria do direito como também deixam de fora aquela que foi a maior contribuição teórica não deontológica para a análise do fenômeno jurídico”. Em seguida, situa o debate jurídico soviético no contexto da transição anunciada com a revolução de outubro de 1917, para introduzir a vida e a obra de Pachukanis, destacando o livro Teoria geral do direito e marxismo que, conforme o autor, “se mantém como legado intransponível de Pachukanis.” Prossegue no seu percurso metodológico, fazendo um resgate de autores que mais impactaram na difusão da teoria marxista do direito pós-Pachukanis, com destaque para o italiano Umberto Cerroni e o francês Bernard Edelman. Fecha as suas reflexões com a recepção de Pachukanis na América Latina, destacando o México, na década de 1970 e o Brasil na década de 1980. Por fim, o texto é um convite à leitura para aprofundar o debate acerca da teoria do direito crítico desde Pachukanis, até porque, “o capital estende e renova seus tentáculos sobre todo o globo e que, portanto, a interpretação sobre a realidade social de inspiração marxiana é cada vez mais necessária para debelá-lo, a crítica jurídica oportunizada por Pachukanis é pedra de toque para se compreender a essência do direito que o capitalismo cria”.
Laurêncio Leite Sombra em Capitalismo, colonialidade e espacialidade propõe uma formulação radical de natureza epistemológica para interpelar os limites da perspectiva eurocêntrica na compreensão da dinâmica do capitalismo quando pensada a partir da colonialidade, “desde uma visão em alguma medida exterior ao ‘projeto global’ hegemônico do capitalismo”, o que possibilita a abertura do debate sobre a ‘ambiência que nos conforma e, ainda mais, das possibilidades de superação dela.” A formulação teórica insere-se no escopo do pensamento crítico pelo viés (de)colonial, partindo da crítica dirigida às noções de tempo e espaço como forma universal, necessária e inata do pensamento kantiano. Chama a atenção para a ênfase dada ao tempo histórico na modernidade, associado aos grandes eventos, em detrimento ao enfoque na espacialidade, propondo desse modo uma análise capaz de reintegrar a espacialidade com o intuito de compreender criticamente a dinâmica do capitalismo, sua relação com a questão da propriedade, para que “[…] sejam pensadas as alteridades que constituem as próprias relações capitalistas, como uma espécie de exterior com o qual elas têm de lidar, como uma ‘diferença colonial’ que faz com que o ‘projeto global’ do capitalismo seja, a cada momento, forçado a adaptar-se, integrar-se para ser adotado em sua plenitude”. Com efeito, por esse viés, tanto a luta contra o capitalismo quanto a superação do modelo de propriedade daí decorrente sofre um deslocamento de olhar e impulsiona a ação de resistência capaz de ‘fissurar o capitalismo’ pelas suas frestas, porque: “o capitalismo não é meramente uma máquina totalitária que a tudo impede, ele é um permanente processo, o que exige uma relação tensa com as alteridades com as quais se depara. O modo como essas alteridades reagem ou se resignam ao capitalismo definirá o seu futuro e suas possibilidades.”
Sergio Augusto São Bernardo, no seu ensaio Direito e pensamento africano para além do capital: por um direito afro-brasileiro faz uma provocação sobre a necessidade de se pensar “uma cultura jurídica revolucionária, a que chamamos, provisória e simultaneamente, de repertório ético-jurídico afro-brasileiro, jurisprudência afro-brasileira, para um Programa Comunitário e Libertário, a partir das nossas próprias experiências, culturas, tradições e aspirações.” Para além da abordagem costumeira entre o jusnaturalismo e o juspositivismo. Justifica tal necessidade por entender que, no Brasil, o debate sobre o direito e o racismo estacionou na pauta das políticas públicas e na democratização do Estado, enquanto “Inauguram-se novas tendências epistemológicas no pensamento africano e diaspórico em várias áreas do conhecimento […],” além da longa “trajetória histórica diaspórica afro-brasileira que deu a possibilidade de uma extensa cultura civilizatória e edificou uma experiência epistemológica para a sobrevivência material e simbólica dos seus descendentes no Brasil.” Interroga sobre o que é isso, o direito e o que queremos para além do capital, dialogando com a dialética social de Roberto Lyra Filho e com o entendimento de Boaventura de Sousa Santos acerca de ser o direito espaço de disputa contra-hegemônico. Destaca aspectos importantes da história do direito e do pensamento jurídico no Brasil que, conforme o autor, negou o mundo da vida ao se consubstanciar na produção legislativa de mentalidade eurocêntrica, patrimonialista e colonizatória. Por fim, o ensaio provoca, instiga e desestabiliza as narrativas jurídicas fundadas e naturalizadas no direito liberal individualista que “confere ao direito de propriedade […] o instituto mais precioso para a produção legislativa legitimadora do sistema capitalista […]”, combinado com o poderoso instituto do contrato. Portanto, conforme o autor, “urge a aquisição de uma narrativa autônoma e autêntica como ponto de partida para qualquer projeto anti-sistêmico. Dialogar e lutar a partir do seu próprio chão!”. Eis a proposta.
Antonia Almeida Silva, com o ensaio sobre Educação para além do capital: por entre tessituras do ‘inédito viável, ao compreender a educação como “prática social tecida historicamente e situá-la na transitoriedade da sociedade burguesa, elege a educação escolar como escopo das suas reflexões, embora reconheça a existência de práticas educativas forjadas na dinâmica dos movimentos sociais. O caminho trilhado apoia-se na literatura pertinente à área da educação pelo viés da crítica “aos modelos que a educação do capital opera não apenas na divisão entre os que “trabalham”, os que “vigiam” e os que “dirigem”, mas também na produção de sentidos sociais para as formas de organização dos sistemas regulares de ensino e suas constantes demandas por reformas.” Desde este ponto, Antonia chama a atenção para a subordinação da educação às leis do mercado e inquire sobre os desafios de pensá-la para além do capital, uma vez que os projetos de educação estão imbrincados com os projetos de sociedade. As reflexões decorrentes dessa constatação encontram na noção de práxis o “fundamento para uma atuação político-social engajada”, de modo a favorecer a criação de esperança e de práticas mobilizadoras para que os oprimidos descubram o “inédito viável”, como defendido por Paulo Freire. Por fim, por entender que um projeto de educação para além do capital é um projeto contra o capital e de que a realidade humana é historicamente produzida, confrontar as tendências dominantes de compreensão ingênua da educação como força motriz é um imperativo para entender as “complexas mediações que dão fluxo às inserções contraditórias da educação na sociedade capitalista.”
Segunda parte – Para além do capital: trilhas e pegadas
José Geraldo de Sousa Junior e Sara da Nova Quadros Côrtes, com o ensaio sobre “Direito achado na rua e perspectivas para além do capital”, após contextualizarem o momento da escrita acerca das reflexões aqui correntes afetadas pelo quadro geral de “intenso sofrimento na Pandemia do COVID-19 e agudização da crise nacional brasileira” e, mais especificamente, pelo balanço “autorreflexivo da crítica coletiva que ocorreu no evento internacional realizado entre 11 e 13 de dezembro de 2019 na Universidade de Brasília, denominado o Direito como Liberdade: 30 Anos de O Direito Achado na Rua”, José Geraldo e Sara Côrtes propõem-se à abertura de um diálogo crítico e autorreflexivo para interrogar sobre o lugar da experiência do Direito Achado na Rua, no sentido “propor projetos de vida para a humanidade em geral.” Para tanto, articulam três eixos discursivos que situam, justificam, refletem e abrem janelas para o agir emancipatório: fundamentos e possibilidades; retomada da travessia e as questões emergentes; o “‘achado’ como ‘elo fraco’ do Direito Achado na Rua.” Destacam dimensões imperativas na base do Direito Achado na Rua, como: assumir o sujeito coletivo como central nos movimentos de luta, interpelar os sistemas formais estatais e burocráticos do direito para humanizar a formação jurídica, promover a coparticipação, dentre outras. Por fim, uma pergunta: “para que serve a teoria? – podemos responder que serve para imaginar um mundo melhor, criar as condições subjetivas para práxis transformadora, a partir do otimismo militante.” E, “O Direito Achado na Rua é uma obra em movimento e com formulações tão fecundas quanto incompletas, mas que nasce e cresce para anunciar, denunciar e combater os perigos destas diversas ordens totalitárias presentes no campo e na formação jurídica.” Fica o convite irrecusável para ler, compreender e agir.
Carlos Eduardo Soares de Freitas, em Notas sobre afinidades entre tecnologias predatórias, cultura jurídica e autoritarismo, faz uma reflexão crítica acerca das tecnologias predatórias entendidas como alicerce de sustentação dos interesses neoliberais da burguesia. Inicia com uma provocação: “é possível identificar, contemporaneamente, um alinhamento político entre a defesa das inovações tecnológicas que afetam de modo predatório as relações de trabalho a uma cultura jurídica conservadora e hegemônica no Direito do Trabalho, moldada aos interesses da lógica neoliberal”? Para tanto, apoia-se em leituras distintas cuja aproximação é a da crítica “às inovações técnicas e/ou tecnológicas como meio para a ampliação da exploração da força de trabalho”. Parte do exame dos efeitos desse tipo de tecnologia sobre o trabalhador enquanto sujeito e sobre a classe trabalhadora; prossegue colocando em relevo o papel da ideologia na produção e difusão do discurso da austeridade e do autoritarismo, como apoio imprescindível ao neoliberalismo. Segue com a crítica à cultura jurídica hegemônica no Direito do Trabalho e à influência da economia no direito, evidenciando que esses são “meios de viabilização do manejo político conservador das tecnologias predatórias com vistas a efetivas opressões à classe trabalhadora”. Da provocação inicial e após percorrer o caminho traçado, Carlos Eduardo conclui que alinha-se politicamente à imbrincada defesa de inovações tecnológicas e a lógica neoliberal, com sua cultura jurídica, embora repleta de contradições, portanto, “resistência e defesa do trabalho digno, de uma sociedade igualitária, e de uma efetiva democracia, bandeiras que se posicionam cada vez mais como anticapitalistas.
Paulo Rosa Torres e Cristina Maria Macêdo de Alencar, no ensaio Povos indígenas brasileiros, sem território nem perspectiva: o suicídio como limite, abordam um tema tabu no seio da sociedade mais ampla, tamponado quando alcança a classe econômica privilegiada da sociedade, quase silenciado na academia ainda mais quando se trata dos povos indígenas brasileiro. A abordagem inserida no escopo dos territórios tradicionais ganha relevo maior pela ausência de estudos acadêmicas que considerem “o suicídio, no enfrentamento das questões dos territórios tradicionais, como a falta de demarcação deles e o confinamento dessas populações tradicionais em reservas.” Para tanto, de um lado, apoiam-se teoricamente na abordagem do livro do sociólogo Emille Durkheim intitulado O suicídio, publicado em 1897, não para afirmar as classificações por ele elaboradas, mas para deslocar o olhar
e tentar entender os fundamentos do comportamento suicida na sociedade. Neste sentido, acrescem ao esforço de compreensão um ensaio de Karl Marx de título Sobre o suicídio, publicado em 1846, onde “denuncia o patriarcado, o preconceito, o autoritarismo e a sociedade burguesa”. No que concerne aos indígenas brasileiros, trazem referências de uma pesquisa documental realizada “a partir de dados encontrados no Ministério da Saúde, na Fundação Nacional do Índio (FUNAI), no Conselho Indigenista Missionário (CIMI), na UNICEF e outras publicações.” Fecham o ensaio com perguntas desestabilizadoras e pertinentes: “Seria possível analisar o suicídio entre os índios brasileiros a partir da classificação de Durkheim de suicídio egoísta, altruísta e anômico? Seria possível analisar o suicídio entre os índios brasileiros a partir da análise feita por Marx, utilizando-se das anotações de Jacques Peucheut, dos casos envolvendo as mortes de quatro pessoas, três mulheres e um homem?” As perguntas provocam o leitor a acessar as referências, porque o ensaio instiga, e convoca estudiosos afinados com o tema a aprofundar pesquisas, pois o suicídio permanece sendo um desafio à compreensão humana.
Cloves dos Santos Araújo, Maria José Andrade de Souza e Mirna Oliveira Silva em A propriedade da terra e as formas do comum nas arenas jurídicas – o caso das comunidades tradicionais de fundo e fecho de pasto da Bahia – recolocam como pano de fundo das reflexões que realizam em torno da luta das comunidades tradicionais de fundo e fecho de pasto da Bahia, para assegurar o direito de permanecer na posse coletiva da terra, a problemática da propriedade da terra, ainda defendida e naturalizada como um bem absoluto, em conflito com as experiências de uso comunal a exemplo do caso em tela. Abordam o conflito no escopo da luta política, jurídica e das implicações sociais daí decorrentes. Na sequência elegem como ponto de partida a territorialização das comunidades em questão, as estratégias de sobrevivência pelo uso comunal da terra e as legislações concernentes aos direitos dessas comunidades, acentuando os contextos de aprovação e as tensões referentes aos distintos modos de apropriação e interpretação do direito conquistado e conferido por lei, “no momento em que a terra passa a ser mais do que o lugar de reprodução da existência […] para ser uma arena de embates em função da existência de noções conflitantes à ocupação tradicional e de uso comunal da terra”. Evidenciam desse modo a tensão entre lógicas distintas configuradas na luta pelos direitos territoriais. Lembram, por fim, “que a propriedade da terra, embora naturalizada, nunca foi um lugar de consenso, mas, pelo contrário, de fortes e intensos conflitos em torno da sua configuração, embora o paradigma jurídico dominante insista em esvaziar o sentido histórico e político que lhes constitui.”
Liana Viveiros, nas suas reflexões sobre O emergente e o novo nas disputas pelo direito à cidade: um olhar a partir da hipótese cultural da estrutura de sentimento, reconhece as disputas existentes em torno do tema direito à cidade indicadas pelas diferentes abordagens que o envolve e que procuram atribuir um ‘sentido prático’, independendo da acepção defendida, sejam as mais radicais ou as mais instrumentais. Interessa à autora, no entanto, examinar algumas das acepções correntes sobre o direito à cidade portadas em documentos institucionais, confrontando-os com os sentidos atribuídos por lideranças e representantes de instituições. As reflexões explicitadas resultam de pesquisa desenvolvida entre 2014 e 2018, apoiada nas “categorias do dominante, do residual e do emergente propostas por Williams (1979) para análise cultural que possibilitam adentrar o âmbito das relações dinâmicas dos discursos e práticas culturais” e apreender, ao menos, sinais de emergências nos contextos observados: “movimentos sociais, entidades, comunidades articulados por rede, teia ou frente que revelam formas, valores e sentidos para construírem juntos as suas lutas” atentando para os movimentos que esses coletivos realizam. Dos indicadores importantes que expressam emergências nos movimentos observados no decorrer da pesquisa, Lilian destaca a articulação entre o direito à cidade e o bem viver, pelo potencial mobilizador de alianças políticas, pelo conjunto de forças sociais em permanente luta. As reflexões trazidas por Lilian provocam o pensar, no sentido de aprofundamento de estudos em torno de uma temática eivada de tensões, contradições e conflitos, agravadas pelas injustificadas desigualdades sociais que a lógica do capital impõe. Por fim, fecho com a justificativa de Lilian sobre a sua escolha teórica: “Essas abordagens, mesmo destituídas da radicalidade e força transformadora da acepção lefebvriana, cumprem um papel importante de manter o direito à cidade na pauta dos debates acadêmicos, jurídicos e técnicos e de sustentar lutas sociais por direitos.”
Essa exposição enunciativa sobre a obra se enquadra no propósito identificado em seu Prefácio – Desafiando os saberes: os direitos para além do capital – oferecido por Anete B. L. Ivo, que mais ainda enriquece essa contribuição editorial, logo acolhida pela Editora da Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS:
Ao iniciar esse texto quero agradecer o convite dos organizadores e reiterar o meu reconhecimento pela pertinência do debate sobre temas complexos da vida contemporânea, como o acesso e a garantia dos direitos dos subalternos, num contexto de uma investida agressiva na “desinstitucionalização” das políticas de Estado e negação do reconhecimento de territórios e direitos aos cidadãos, inscritos na carta constitucional de 1988. Essa transição conflitiva e ambígua de um estado de bem-estar social incompleto, no Brasil, para um estado de “mal-estar social” brasileiro, marcado pelo desrespeito às leis, a violência extremada, o disciplinamento dos trabalhadores e uma dessocialização crescente da vida social manifesta no desemprego, desproteção e violência apresenta sentidos muitas vezes paradoxais do direito e da justiça, reduzidos, muitas vezes, a um poder disciplinar sobre os cidadãos mais humildes ou, exclusivamente, a dispositivos puramente formais e coercitivos pelos quais se produz a desinstitucionalização das regras democráticas e se institui um Estado penal, no sentido usado por Loic Wacquant (2001). Este se caracteriza pelo aumento da repressão estatal sobre as camadas excluídas, como uma forma de conter os efeitos da redução das políticas sociais o que tem levado a um não-reconhecimento dos direitos da cidadania, inclusive dos territórios de povos tradicionais.
Não só o conteúdo do livro é muito oportuno, como colabora para enfrentar dilemas epistemológicos entre o capitalismo e a ordem jurídica, de uma perspectiva interdisciplinar e crítica, que incorpora diálogos entre diversos campos do conhecimento no entendimento de formas práticas de direitos sociais, culturais e de reconhecimento. Os textos que compõem esse livro resultam de um conjunto de seminários realizados pelos autores e coordenado pelo GP do CNPq. Territórios, Hegemonia, Periferias e Ausências, liderado pelo prof. Celso Antônio Favero da UNEB para pensar as contradições e efeitos das mudanças contemporâneas sob hegemonia ultraliberal, que têm implicado um processo violento de destituição de direitos, afetando a todos, mas, especialmente, às classes subalternizadas.
A convite dos organizadores participei das duas fases do projeto. Primeiro, nos seminários, numa assentada como debatedor – confira-se aqui, o encontro de 24 de dez. de 2020, em que discuti o tema do seminário com meus colegas Sara Quadros Cortes e Cloves Araújo: Seminários: Direito para além do Capital, com a participação de José Geraldo de Sousa Junior, Sara Quadros e Cloves Araújo Direito achado na rua e perspectivas para além do capital – https://www.youtube.com/watch?v=cgNjhW0kTC0 (Canal Youtube de O Direito Achado na Rua). Depois, em outras sessões dos seminários, como visitante, acompanhando os debates propostos por colegas igualmente mobilizados.
Dessa participação originou-se o texto que escrevi com Sara Cortes e que foi incluído no volume.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.5
Ciência & Cultura, periódico da Sociedade Brasileira para O Progresso da Ciência (SBPC)
Capa. Universidade é local para se discutir direitos humanos e diversidade assim como problemas atuais da sociedade (Antonio Scarpinetti/ Ascom Unicamp. Reprodução)
A revista Ciência & Cultura (ISSN: 2317-6660) é um periódico da Sociedade Brasileira para O Progresso da Ciência (SBPC), de acesso aberto (open access), de caráter multidisciplinar, com o objetivo de atuar na difusão e divulgação científica e também no cenário das grandes questões culturais de nossa época, identificando tendências e abordando temas próprios do conhecimento e da dinâmica de suas transformações culturais, científicas e tecnológicas. Suas edições temáticas combinam ciências, cultura, tecnologia, inovação, arte e filosofia em histórias contadas por cientistas, jornalistas e pensadores, informando e encantando seus leitores
Logo na abertura da Revista, nesse primeiro número de 2023, trago a imagem de capa que ilustra meu texto na publicação, mas que evoca o tema geral da edição: A Universidade é decisiva para o futuro da nação, a ex-Reitora Soraya S. Smaili (Unifesp), editora desta edição da Ciência & Cultura (agradeço a Soraya a indicação feita a Chris Bueno, editora-executiva do periódico para que eu participasse do número) e o ex-Reitor Naomar de Almeida Filho, também editor desta edição da Ciência & Cultura (UFBA e UFSB), assinam o texto Universidade do futuro no Brasil, com a característica de Editorial.
Com efeito, para eles a universidade é central na definição de novos rumos para a sociedade contemporânea:
Há séculos, em todo o mundo, a Universidade tem sido reconhecida como a fonte das ciências, a casa das palavras, o espaço das culturas e o lugar do pensamento. O pensamento define a Universidade. Pensar, repensar, pensar-se. Pensar a Universidade, por dentro de si e para si mesma, é fundamental, porém pensar a universidade para e no contexto planetário é urgente. Ao fazê-lo, temos uma oportunidade de dialogar com os governantes e com a Sociedade. Nada mais apropriado do que apresentar ideias, propostas, soluções e caminhos para as universidades brasileiras neste momento de nosso País. Ao pensar suas raízes históricas, ao pensar mais amplamente, ao pensar à frente do tempo, a Universidade se faz decisiva para o futuro da nação.
A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) propõe, para o primeiro número da revista Ciência & Cultura de 2023, uma edição temática sobre a Universidade do Futuro. Esta edição está composta por uma série de artigos que abordarão diversos aspectos do tema em profundidade; além de vídeos e podcasts com foco em questões atuais sobre o tema central; entrevistas com cientistas e pesquisadores, testemunhas e protagonistas desse momento; bem como reportagens e textos de opinião, elaborados por especialistas a partir de textos escritos por jornalistas.
E prosseguem:
Nos últimos anos, a educação pública, a ciência e a pesquisa brasileiras sofreram agressões intensas e contínuas, patrocinadas principalmente pelo governo do ex-presidente Jair Bolsonaro. Muitas formas de ataque foram utilizadas, desde campanhas difamatórias, ingerência na escolha de dirigentes, perseguição de docentes, além da profunda e arrasadora asfixia financeira. Difícil imaginarmos como, diante desse cenário, foi possível sobreviver, resistir e ainda realizar grandes feitos durante essa pandemia que foi a maior crise sanitária de nossas gerações. Apesar da pandemia da covid-19 parecer distante agora, seus efeitos se encontram mais próximos do que imaginamos, com as ameaças advindas das mudanças climáticas. Nesse contexto, as universidades, especialmente aquelas do setor público, trouxeram contribuições centrais para a resolução de problemas e para a proteção da população. Enfim, é preciso jogar luz nos legados da pandemia, a partir do esforço das universidades que, inovadoras nas respostas e emancipatórias nas conquistas sociais, certamente continuarão com a produção de conhecimento científico e tecnológico crucial para o enfrentamento de novos desafios de saúde da população.
E finalizam seu texto-editorial de modo assertivo:
Vivemos na universidade uma pandemia, ao mesmo tempo em que sofremos uma enorme restrição de recursos. A Sociedade Brasileira respondeu com uma inédita “onda pró-ciência”, com o reconhecimento de boa parte da população da importância da Ciência que salvou vidas. Além disso, assistimos à afirmação do conhecimento baseado em evidências históricas e científicas, posto que parcela significativa da população brasileira se recusou a aderir às fake news e ao negacionismo científico. Nesse momento, as universidades ganharam grande destaque e popularidade. Porém, a partir da ampla vacinação e do arrefecimento da pandemia, além de superadas as questões eleitorais de 2022, vemos agora que movimentos obscurantistas anti-ciência parecem ganhar novos contornos, espaços e adeptos, com investidas cada vez mais sofisticadas e elaboradas, aumentando muito o desafio das universidades e aos formuladores de políticas públicas em relação ao futuro.
O ano de 2023 surge com a esperança de reconstrução nacional, a partir da união de esforços e da condução política para o retorno dos processos democráticos. O momento agora é de redesenhar os sistemas de educação e de pesquisa & desenvolvimento, retomar sua expansão e colaborar decisivamente no sentido de reconstruir e também de reinventar o Brasil, depois dos trágicos anos que vivemos. Sabemos que, para isso, precisaremos garantir processos políticos estruturais, além de retomar políticas públicas que contemplem a Educação e a Ciência como áreas estratégicas para o Estado. Neste momento crucial, entra em cena a Universidade, instância formuladora de princípios, defensora de valores e pensadora de futuros e, por tudo isso, central na definição de novos rumos para a sociedade contemporânea. Ao pensar no futuro, pensamos no aqui-agora, no que temos efetivamente na Universidade brasileira, uma capacidade instalada que está latente e que é capaz de gerar o novo e dialogar com saberes transformadores do mundo.
A partir deste 2023, ano de reconquista e reconstrução, poderemos resgatar e retomar o trabalho valioso de Darcy Ribeiro e de Anísio Teixeira, que continuam atuais e, em muitos sentidos, orientadores e inspiradores. Para Darcy Ribeiro, o papel social da universidade se cumpriria quando ela saísse de dentro dos seus muros, amplificasse a conexão com a sociedade e contasse com instrumentos de comunicação de massa: rádio, TV, setor editorial, imprensa e cinema (e hoje, certamente ele incluiria as diversas modalidades digitais). Será que esse momento é agora? Ou teremos que persistir lutando para construir um novo momento no futuro?
Por tudo isso, ao pensarmos o tema dessa primeira Ciência & Cultura de 2023 e também a Universidade do Futuro no Brasil, precisamos falar mais da “universidade necessária”, em diálogo permanente com a sociedade, com os movimentos que dela provém, bem como com os desafios do “tempo presente”. A Universidade será estratégica para a composição de uma sociedade mais justa, solidária e sustentável, que terá como base o conhecimento científico e que enfrentará os desafios para a reconstrução de nossa Nação.
Na linha dessa convocação editorial, para marcar o primeiro número de Ciência & Cultura de 2023, respondem os temas e autores e autoras dessa edição:
De Joaze Bernardino-Costa, meu colega na UnB, o artigo Política afirmativa, democratização do acesso à universidade e propostas de avaliação. O artigo, conforme o resumo: demonstra a centralidade da lei de cotas no processo de democratização do acesso ao ensino superior, sinalizando sua importância para a entrada de estudantes oriundos de escolas públicas, negros e indígenas nas universidades públicas. Ao mesmo tempo em que reconhece que algumas Instituições Federais de Ensino Superior e coletivos de pesquisadores envidaram esforços para avaliar a política de cotas, o artigo chama a atenção para a ausência de avaliações sistemáticas e abrangentes da lei de cotas na sua primeira década de existência, que deveriam ter sido capitaneadas pelo Ministério da Educação. Por fim, propõe 10 pontos para discussão no processo de monitoramento, avaliação, aperfeiçoamento e revisão da lei 12.711/2012.
Bernardete A. Gatti, membro da Cátedra Alfredo Bosi de Educação Básica do Instituto de Estudo Avançados (IEA) da USP e da Academia Paulista de Educação, traz o artigo Inovações curriculares na interface entre educação básica e universidade. O artigo, diz o resumo, procura abordar a questão da inovação curricular como algo que se mostra relevante ante o contexto social-histórico na nossa contemporaneidade. Aspectos da relação educação básica e universidade são destacados e características relativas a processos de mudança são abordados. Parte-se da ideia que o trabalho universitário tem base no trabalho da educação básica e ambos compõem o contínuo processo formativo das novas gerações, e que, tratar de currículo escolar, em qualquer dos níveis educacionais, é tratar de conhecimentos e perspectivas sócio-históricas sobre conhecimento.
Sergio Haddad, doutor em educação e coordenador de projetos especiais da Ação Educativa, comparece com o artigo Diálogo permanente com a sociedade numa Universidade Freireana. Vou ao resumo: O artigo trata das diversas manifestações de Paulo Freire ao longo da sua vida sobre a universidade e o seu papel a partir dos seus escritos. Descreve sobre os diversos períodos de trabalho do educador em universidades antes, durante e posterior ao seu exílio. Apesar do foco central das suas preocupações como educador ser a alfabetização de adultos e o papel da educação no contexto de uma pedagogia crítica, Paulo Freire não deixou de refletir sobre como a universidade poderia desempenhar a sua missão a serviço dos oprimidos em um contexto de injustiça social. O diálogo com a sociedade, em particular com os setores populares dentro e fora das universidades, fortalece o seu papel político e pedagógico, ser perder a rigorosidade necessária do trabalho acadêmico. Para Freire, entre os desafios, são fundamentais o diálogo entre o saber popular e o saber científico e a contribuição que as universidades teriam para qualificar a educação básica de maneira a facilitar a entrada, a participação e o diálogo com os mais pobres.
A edição apresenta três interessantes reportagens, Novas cores e contornos na Universidade brasileira, a cargo de Patricia Mariuzzo; A ciência da reconstrução nacional, conduzida por Paula Gomes; e A tecnologia educacional e seu impacto como meio de transformação social, de Priscylla Almeida.
Compõem a edição, na retranca Opinião, os comentários Universidade do futuro no Brasil, da editora Soraya S. Smaili; Mudanças climáticas: caminhos para o Brasil, de Paulo Artaxo, professor titular do Instituto de Física da USP e vice-presidente da SBPC. E o meu texto Diversidade e direitos humanos na universidade do futuro.
Compartilho o meu comentário:
O presente texto deriva de minha contribuição como expositor no encerramento da 9ª Conferência do Fórum de Gestão do Ensino Superior nos Países e Regiões de Língua Portuguesa (FORGES), realizada de 20 a 22 de novembro de 2019 em Brasília, Brasil, na Universidade de Brasília (UnB), tendo como tema central “A integração do ensino superior dos países lusófonos para a promoção do desenvolvimento humano”, com o título: “Uma Universidade Popular para uma Educação Emancipatória”.[1]
Aqui destaco alguns excertos do que está publicado, na medida em que guardam conexão com o tema proposto para esta edição de Ciência & Cultura – “Universidade do Futuro no Brasil” – e mais propriamente com o que trato em meu artigo “Diversidade e Direitos Humanos na Universidade do Futuro”.
Iniciei a minha saudação aos participantes da 9ª Conferência com uma evocação. Presente em Coimbra, na Sala dos Capelos, da vetusta universidade, nos começos da década de 2000, para um Congresso Portugal-Brasil, guardo em mim até hoje o sentimento marcado pela disposição de todos ali presentes, de construir caminhos para a uma história comum: “a história comum que forja a comunidade de culturas e a comunidade de afetos que somos”.[2]
Essas palavras, ditas pelo então presidente do Conselho Diretivo da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, logo a seguir, seu vice-reitor, o professor António José Avelãs Nunes, assinalaram as distinções entre o Portugal português e o Brasil brasileiro, no que tange aos seus caminhos, nas condições daquele congresso. Mas se prestam também para designar as distinções entre o Portugal português e os países que formam a comunidade de povos de língua portuguesa, presentes nesta 9ª Conferência (Angola, Cabo Verde, Macau, Moçambique e certamente entre os participantes, Guiné Bissau, Guiné Equatorial, São Tomé e Príncipe, Timor-Leste) no que tange aos seus próprios e intercruzáveis caminhos, em que pese, lembra Eduardo Lourenço, “cada povo só o é por se conceber justamente como destino”.[3]
Temos, sim, os povos que se expressam em língua portuguesa, essa história comum que nos forja enquanto comunidade de culturas e comunidade de afetos, e que nos amalgama a partir de algum momento em nossas próprias histórias. Mas, se temos uma história desde aí comum, o que temos de comum em nossos destinos?
Ao meu perceber, o que há de comum entre nós, desde um momento objetivo de encontro e de qualquer possibilidade de um destino também comum, é o impacto dramático do colonialismo que se impôs sobre nossas identidades e as projeções decorrentes dessa experiência em nossa atualidade pós-colonial afetada econômica e politicamente pelas injunções atuais do ultra-neoliberalismo e pelos desafios de toda ordem como exigências de libertação e de emancipação num processo de ação decolonial.
Sob a perspectiva da condição ultra-neoliberal, sigo pensando num bom português que ajude a interpretar os desafios que se colocam à nossa consideração. Retomo Avelãs Nunes: Nos últimos anos – diz ele – tenho dado alguma atenção à problemática da globalização. Refiro-me ao que costumo chamar a terceira onda da globalização, marcada por um processo acelerado de desenvolvimento científico e tecnológico, especialmente no que toca aos transportes, às telecomunicações e à informática. Para as classes dominantes, para as multinacionais e para o seu estado, pouco importa que milhões de pessoas morram de fome e de doenças provocadas pela fome. O que importa, num quadro como este, é melhorar o poder de compra dos clientes (a pequena camada de ricos) e, se possível, acrescentar uns quantos privilegiados a este núcleo de elite. O que, evidentemente, aconselha a (e pressiona no sentido da) concentração dos rendimentos ainda mais acentuada e desigual.
A exclusão social crescente é a outra face deste tipo de desenvolvimento perverso ou maligno. E a exclusão social é um dos fenômenos mais dramáticos do nosso tempo. Como escreveu um autor, quando se falava de exploradores e explorados, havia que contar com estes, porque os explorados estavam dentro do sistema (sem explorados não pode haver exploradores), enquanto os excluídos estão, por definição, fora do sistema, são inexistentes.
É importante salientar, porém, que a crítica da globalização não pode confundir-se com a defesa do regresso a um qualquer “paraíso perdido”, negador da ciência e do progresso. A saída desta caminhada vertiginosa para o abismo tem de assentar na confiança no homem e nas suas capacidades. Tem de partir da rejeição da lógica de uma qualquer inevitabilidade tecnológica, que nos imporia, sem alternativa possível, a atual globalização neoliberal, uma das marcas incontornáveis dessa civilização fim-da-história.
Assim como essa globalização não é um “produto técnico” deterministicamente resultante da evolução tecnológica, antes é um projeto político levado a cabo de forma consciente e sistemática pelos poderes dominantes, enquadrado e apoiado pelas grandes centrais produtoras da ideologia dominante, também a luta por uma sociedade alternativa pressupõe que a política prevaleça sobre as pretensas “leis naturais” do mercado ou da economia, implicando um espírito de resistência e um projeto político inspirado em valores e empenhado em objetivos que o “mercado” não reconhece nem é capaz de prosseguir.
Todos sabemos, porém, que as mudanças necessárias não acontecem só porque nós acreditamos que é possível um mundo melhor. Essas mudanças hão de verificar-se como resultado das leis de movimento das sociedades humanas, e todos sabemos também que o voluntarismo e as boas intenções nunca foram o motor da história. Mas a consciência disso mesmo não tem que matar o nosso direito à utopia e o nosso direito ao sonho.
Até aqui, discorri seguindo Avelãs.[4] Mas, nesse diapasão, trata-se, pois, de indagar-se de que desenvolvimento se cuida, quando falamos em desenvolvimento. Essa é a questão proposta por Roberta Amanajás Monteiro, em tese defendida na Faculdade de Direito da UnB, sob minha orientação em 2018. Com o tema “Qual desenvolvimento? O deles ou o nosso? A Hidrelétrica de Belo Monte e seus impactos nos direitos humanos dos povos indígenas”, a pesquisadora apresenta exatamente a tensão entre o desenvolvimentismo e os direitos humanos a partir do estudo de caso da construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte e os seus impactos aos indígenas Arara da Terra Indígena Volta Grande e Juruna, da Paquiçamba. A pergunta central de sua tese interpela como ocorre a tensão entre projetos de desenvolvimentismo e os direitos humanos dos povos indígenas, e se os conflitos se inscrevem na matriz colonial de poder. Fundamentada na teoria da Colonialidade do Poder de Anibal Quijano e nos autores do pensamento decolonial, a metodologia eleita por Roberta Amanajás apoiada em investigação empírica, fornece os argumentos da constatação da incidência da ideia de raça no percurso do licenciamento ambiental do empreendimento.
Para a autora, numa aproximação sociológico-jurídica, a compreensão de que é a partir da ideia de raça que é negada a condição de sujeito de direitos e de conhecimento aos povos indígenas, consequentemente dos seus direitos de território, natureza, modo de vida e direito à participação e consulta prévia, a conclusão leva, necessariamente, à expectativa militante de construção de elementos de desenvolvimento a partir dos próprios povos indígenas.
Em Avelãs Nunes, a aproximação mediada pela economia política e pela filosofia, e mais propriamente por teorias da justiça, segue uma linha civilizatória que mais se afasta das opções que mercantilizam a vida, enquanto se orienta para projeções que garantam o direito à vida plena, de homens e mulheres de carne e osso sim, porque ideologicamente o nosso percurso colonial separou seres humanos, para distinguir os que se inserem no contrato social os que ficam fora dele, os selvagens, os bestializados, os escravizados, os diminuídos, os segregados, os sobrantes “civilizatórios” todos alienados do humano.
Abri essa linha de problematização exatamente com um autor português, até para ponderar o lugar de Portugal no experimento colonial e indicar que desde esse lugar o modo decolonial é também uma condição para que a libertação e a emancipação sejam possíveis.
Para Paulo Freire, tão marcante em nossa cultura comum, a desumanização não é destino.
“A luta pela humanização, pelo trabalho livre, pela desalienação, pela afirmação dos homens como pessoas, como ‘seres para si’, esta luta pela humanização somente é possível porque a desumanização, mesmo que um fato concreto na história, não é, porém, destino dado, mas resultado de uma ‘ordem’ injusta que gera a violência dos opressores e esta, o ser menos. (…) O ser menos leva os oprimidos, cedo ou tarde, a lutar contra quem os fez menos. E esta luta somente tem sentido quando os oprimidos, ao buscarem recuperar sua humanidade, que é uma forma de criá-la, não se sintam opressores, nem se tornem, de fato, opressores dos opressores, mas restauradores da humanidade em ambos. E aí está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos – libertar-se a si mesmos e aos opressores. (…) Só o poder que nasça da debilidade dos oprimidos será suficientemente forte para libertar a ambos.”[6]
Com efeito, embora afirmem Ana Claudia Rozo Sandoval e Luís Carlos Santos[7] que:
“a disputa pela realidade é um traço comum dos filósofos, seja ele interpretando, desconstruindo, criando conceitos, mas o que está em causa é disputar a realidade. E para isso colocamos em crise o solo em que se pisa, como um lugar produzido à imagem e semelhança da produção de um discurso que legitimou historicamente a exploração e dominação, e o conflito estabelecido ao buscar filosofar-se caiu na armadilha da representação. Este é um dos primeiros elementos que precisam ser descortinados, a representação. Pois a imagem que se traduziu nos discursos era apenas a europeia. O exercício de pensar-se, o que é próprio da filosofia encontra-se no poço sem fundo, no beco sem saída da armadilha da representação europeia moderna, ocidentalizada na contemporaneidade. A perspectiva decolonial (ou estudos Modernidade/colonialidade) e as filosofias africanas colocam em discussão o epistemicídio e o semiocídio cultural. O conhecimento, e as formas de acessá-lo, e a diversidade cultural no fazer filosófico colocam em evidência outros modos de ser e fazer filosofia. Problemas não considerados filosóficos começam a ser problemas de interesse de outros sujeitos que foram negados pelo sistema mundo eurocentrado”.
Todavia, o núcleo de minha argumentação, busca em Boaventura de Sousa Santos sua proposição feita no espaço do Fórum Social Mundial de Porto Alegre uma bem elaborada proposta para a constituição de uma Universidade Popular dos Movimentos Sociais, atenta a essas exigências de um conhecimento emancipatório. Em Boaventura isso significa constituir oportunidades de emancipação que deem conteúdo eficaz a mecanismos do estado de direito, da democracia e dos direitos humanos para que não se contrafaçam em artificialismos enganosos que esvaziem “alternativas positivas geradas por um pensamento alternativo de alternativas e todas as possibilidades epistemológicas, teóricas e metodológicas aptas a realizar a tarefa política de superar a dominação capitalista, colonialista e patriarcal”.[8]
E o faço para salientar que esses pontos correspondem, em seus fundamentos, às expectativas que defendem uma universidade aberta à cidadania, preocupada com a formação crítica dos acadêmicos e mais democrática. Uma universidade, como lembrava Boaventura de Sousa Santos em sua recente visita à UnB, consciente de que “o que lhe resta de hegemonia é o ser um espaço público onde o debate e a crítica sobre o longo prazo das sociedades se podem realizar com muito menos restrições do que é comum no resto da sociedade” e que encontra no exercício da pluralidade tolerante a mediação apta a torná-la uma “incubadora de solidariedade e de cidadania ativa”.
Um modelo assim já se apresenta como proposição interpelante da universidade convencional, desde que ela se abra a, pelo menos, duas condições. A primeira é o dar-se conta da natureza social do processo que lhe cabe desenvolver. Não é condição trivial, porque ela implica opor-se à tentação de mercadorização do ensino e da pesquisa e consequente redução do sentido de indisponibilidade do bem Educação, constitucionalmente definido como um bem público, processo dramático e cruento em curso autoritário em muitos de nossos países, num projeto claramente hostil à ideia de universidade como valor social e ao conhecimento crítico como elemento nutriente de práticas e de pensamentos democrático e emancipatório.
A outra condição, é a de interpelar a universidade para que ela se abra a novos modos de ingresso e de inclusão de segmentos dela excluídos, a exemplo das políticas de ações afirmativas. Possibilita, assim, alargar o âmbito das pautas pedagógicas que desenvolve e fazer circular no ambiente do ensino e da pesquisa novos temas, cosmologias plurais, epistemologias mais complexas e um diálogo mais amplo entre os saberes.
Ao fim e ao cabo, concluindo com o recorte que trouxe para meu artigo, na temática proposta para esta edição de Cultura & Ciência, pensar Uma Universidade Popular para uma Educação Emancipatória, algo que, a meu ver, transparece nos debates acerca dos compromissos da instituição com a realização dos direitos humanos, é que libertar-se, emancipar-se, dizemos nós em nosso projeto acadêmico que denominamos O Direito Achado na Rua: “não é dom; é tarefa, que se realiza na História, porque não nos libertamos isoladamente, mas em conjunto”. E se ela não existe em si, o Direito de emancipar-se é comumente a sua expressão, porque ele é a sua afirmação histórico-social “que acompanha a conscientização de liberdades antes não pensadas (como em nosso tempo, a das mulheres e das minorias eróticas) e de contradições entre as liberdades estabelecidas como a liberdade contratual, que as desigualdades sociais tornam ilusória e que, para buscar o caminho de sua realização, tem de estabelecer a desigualdade, para nivelar os socialmente desfavorecidos, enquanto ainda existam”.[9]
Pensar a diversidade e os direitos humanos na universidade do futuro é cuidar de problematizar os modos de os conhecer e de os realizar, em razão das lutas para o seu reconhecimento, a partir das quais se constituem como núcleo da expansão política da justiça e condição de legitimação das formas de articulação do poder e de distribuição equitativa dos bens e valores socialmente produzidos.
Em suma, compreender os direitos humanos dentro de “um programa que dá conteúdo ao protagonismo humanista, conquanto orienta projetos de vida e percursos emancipatórios que levam à formulação de projetos de sociedade para instaurar espaços recriados pelas lutas sociais pela dignidade”.[10]
Reproduzo também as Referências, conforme os números que indicam a ordem de aparecimento no texto.
[1] REVISTA FORGES. n. Especial (2020): NÚMERO COMEMORATIVO DO 10.º ANIVERSÁRIO DA FORGES Publicado em 2020-11-19 (https://revistaforges.pt/index.php/revista/issue/view/8).
[2] Boletim da Faculdade de Direito – STVDIA IVRIDICA 48, Colloquia – 6, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, Conferências na Faculdade de Direito de Coimbra 1999 / 2000.
[3] LOURENÇO, Eduardo. Mitologia da Saudade Seguido de Portugal como Destino. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
[4] NUNES, Antonio José Avelãs. Neoliberalismo e Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2003.
[5] MONTEIRO, Roberta Amanajás. Qual desenvolvimento? O deles ou o nosso? Tese de Doutorado defendida na Faculdade de Direito da UnB, 2018.
[6] FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, 11ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.
[7] SANDOVAL, Ana Claudia; SANTOS, Luis Carlos. Estudos Decoloniais e Filosofia Africana: por uma Perspectiva Outra no Ensino da Filosofia. Revista Páginas de Filosofia, v. 6, n. 2, p.1-18, jul./dez. 2014.
[8] SANTOS, Boaventura de Sousa. Universidade Popular dos Movimentos Sociais – UPMS – Forum Social Mundial, Porto Alegre, 2003; Fórum Social Temático 2012, Porto Alegre, 24-29 Janeiro https://www.boaventuradesousasantos.pt/pages/pt/upms.php, acesso em 08/03/2023; A universidade popular dos movimentos sociais: entrevista com o prof. Boaventura de Sousa Santos, entrevista concedida a Júlia F. Benzaquen. Imagens & Palavras • Educ. Soc. 33 (120) • Set 2012; SANTOS, Boaventura de Sousa. Descolonizar: abrindo a história do presente. Belo Horizonte: Autêntica Editora; São Paulo: Boitempo, 2022.
[9] SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. O Direito como Liberdade: O Direito Achado na Rua. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de (Organizador). Da Universidade Necessária à Universidade Emancipatória. Brasília: Editora UnB, 2012. SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Movimentos Sociais nos 50 Anos da UnB: Construindo uma Universidade Emancipatória. In RÊSES, Erlando da Silva (Organizador). Universidade e Movimentos Sociais. Belo Horizonte: Fino Traço Editora, 2015.
[10] ESCRIVÃO FILHO, Antonio; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016; 2ª reimpressão 2019.
Bate-papo online marcou o lançamento da primeira edição do ano da revista Ciência & Cultura sobre “Universidade do Futuro no Brasil” Bate-papo online marca lançamento da primeira edição do ano da revista Ciência & Cultura sobre “Universidade do Futuro no Brasil” Qual a universidade que o Brasil precisa? Esta foi a pergunta discutida durante o bate-papo online realizado nessa quarta-feira (22) para marcar o lançamento da primeira edição de 2023 da revista Ciência & Cultura, que tem como tema “Universidade do Futuro no Brasil”.
A íntegra do evento pode ser recuperada em https://www.youtube.com/watch?v=qzqxF4J5nZs. Para os moderadores do evento e editores desse número da revista Ciência & Cultura, Soraya S. Smaili e Naomar Almeida Filho, este é o momento ideal para se discutir o ensino superior no País. Smaili, tal como já o fizera no editorial da publicação de Ciência & Cultura defendeu que o tema é de grande relevância nesse período de início de reconstrução, para podermos resgatar os valores mais elevados das universidades. “Precisamos nos apropriar de qual cenário temos hoje para refletir e projetar as propostas que nossas universidades produzirão com maestria.” Uma síntese do bate-papo foi preparada por Chris Bueno – editora executiva da Ciência & Cultura, em especial para o Jornal da Ciência (http://www.jornaldaciencia.org.br/edicoes/?url=http://jcnoticias.jornaldaciencia.org.br/2-mais-inclusiva-e-engajada-especialistas-discutem-qual-a-universidade-que-o-brasil-precisa/&utm_smid=10475183-1-1).
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
Mujeres Latinoamericanas Inmigrantes em España a través del Cine Documental
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Patricia Vilanova Becker. Mujeres Latinoamericanas Inmigrantes em España a través del Cine Documental: Decolonialidad, Resistencias y Ciudadanía. Tese de Doutoramento. Programa de Doctorado: Programa en Género y Diversidad, Universidade de Oviedo, España, 2023, 334 páginas.
Com enorme satisfação volto a me encontrar em espaço acadêmico de avaliação de trajetória com Patrícia Vilanova Becker. Agora, na Universidade de Oviedo, integrando na qualidade de 3º vogal o Tribunal de Tesis Doctoral, para a leitura e defesa de sua tese de doutoramento, juntamente com a Presidenta, Isabel Carrera Suárez (Universidad de Oviedo); Secretario, Hans-Peter van den Broek (Universidad de Oviedo); Vocal 1ª, Marta Sofía López Rodríguez (Universidad de León); Vocal 2ª, Socorro Suárez Lafuente (profesora jubilada, Universidad de Oviedo), a tese dirigida pela professora Esther Álvarez López (Universidad de Oviedo).
Reencontro Patrícia sempre protagonista, tal como ela sempre se me apresentou, tendo eu sido seu orientador no mestrado em direito, na Faculdade de Direito, até que ela defendeu, em 2017, seu trabalho, que pode ser examinado no Repositório Institucional de Dissertações e Teses da UnB, já publicado desde março de 2018.
Passo a referência: BECKER, Patrícia Vilanova. Políticas de respeito à diversidade sexual e à igualdade de gênero na iniciativa privada: Uma análise a partir do projeto Freeda: espaços de diversidade. 2017. 86 f., il. Dissertação (Mestrado em Direito)—Universidade de Brasília, Brasília, 2017 (https://repositorio.unb.br/handle/10482/31406).
Enquanto redigia este Lido para Você, recebi da professora Esther Álvarez, orientadora de Patrícia, a confirmação de que a la tesis le fue otorgada la máxima calificación, sobresaliente cum Laude, y ha sido propuesta para el Premio Extraordinario de Doctorado.
Tenho ainda mais satisfação nessa recensão da tese de Patrícia Vilanova Becker, afinal, aprovada por unanimidade, nota máxima, mención cum laude, posto que publicada no Jornal Estado de Direito, cuja sede é em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, pois Patrícia é gaúcha, e seu percurso que passou por Brasília (Mestrado), Bolonha (Master) e agora em Oviedo (Doutorado), iniciou sua formação na Faculdade de Direito (Bacharelado em Direito), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Já na dissertação Patrícia orientava sua perspectiva de estudos de gênero, com uma característica autobiográfica de enunciação em primeira pessoa (algo que não é interditado nos estudos sociais e de humanidades, basta ver o exemplo acadêmico de Boaventura de Sousa Santos, conforme o seu Sociologia na Primeira Pessoa: fazendo pesquisa nas favelas do Rio de Janeiro. OAB – Revista da Ordem dos Advogados do Brasil. Nº 49, São Paulo: Editora Brasiliense, 1988).
De sua dissertação, em boa síntese vemos que o trabalho,
realiza um estudo autoetnográfico da experiência local do projeto Freeda: espaços de diversidade, autointitulado um “negócio social” em matéria de diversidade sexual e igualdade de gênero, analisando como os discursos de políticas de promoção da diversidade em matéria de gênero e sexualidade no ambiente empresarial se relacionam com dinâmicas próprias do modo de produção capitalista. Emprega-se a metodologia autoetnográfica que busca analisar criticamente memórias, documentos, discursos e outros elementos da experiência vivida. Enquanto co-fundadora deste projeto, realizo um estudo de caso sobre como Freeda enfrenta problemáticas e constrói práticas dentro do campo das políticas de promoção da diversidade no ambiente laboral. Estudos feministas, estudos pós-coloniais e descoloniais, O Direito Achado na Rua e a teoria queer são importantes balizas teóricas na análise de como os discursos jurídicos, políticos e científicos nesse âmbito possuem polos hegemônicos de produção e, ao mesmo tempo, assumem circulação transnacional impactando em nossas realidades locais.
Já nos deparamos os elementos estruturantes de seu modo sentipensante de realizar conhecimento. Patrícia encarna o que é uma característica da atividade intelectual em nosso coletivo de pesquisa – O Direito Achado na Rua. Ainda há poucos dias, na ocasião de defesa da tese de doutorado de Eduardo Xavier Lemos – em cotutela UnB/Universidade de Sevilha – Direitos Humanos Desde e Para a América Latina: Uma Proposta Crítico Dialética a Partir de O Direito Achado na Rua – presentes na banca, além dos colegas da UnB, David Sánchez Rubio (Universidade de Sevilha), Maria José Fariñas-Dulce (Carlos III, Madrid), Vicente Barragan Robles (Universidade de Sevilha), Boaventura de Sousa Santos (CES-Universidade de Coimbra), eu salientava a esse propósito, o quanto assiste razão a Boaventura de Sousa Santos em convocar O Direito Achado na Rua para novas tarefas, para atenção a temas emergentes, paras as travessias que movem as subjetividades, ressignificam os espaços de interação social e criam direitos que são discerníveis nesses processos, de fato achados por meio de novas categorias que as designem os sujeitos em movimento (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al (orgs). O Direito Achado na Rua: questões emergentes, revisitações, travessias. Coleção Direito Vivo, vol. 5. Rio de Janeiro, 2021; CÔRTES, Sara da Nova Quadros. Direito Achado na Rua: por que (ainda) é tão difícil construir uma teoria crítica do direito no Brasil? In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al (orgs). O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade, vol. 10. Brasília: Editora UnB/Editora OAB Nacional, 2021).
E tem mais ainda razão quando se trate de pensar a partir de realidades incompensáveis nos trânsitos de conjunturas. Haveria uma incompatibilidade entre o pensar crítico que funda A Nova Escola Jurídica Brasileira – NAIR e O Direito Achado na Rua, atenta às tensões entre reforma e revolução; democracia e socialismo; dialética e pluriversidade, inscritas em enunciados que possam ter se esgotado ou que não sejam possíveis de assimilação na liquefação dos tempos correntes?
Penso que por mais aberto que uma perspectiva plurivérsica permita para capturar realidades plásticas em trânsito, isso não prescinde de uma aproximação epistemológica de enquadramento dialético. Não foi incompatível lá atrás, na conjuntura do pensar dialético-materialista em face da impotência positivista para compreender o real, com Marx e Engels admitindo a consistência do empirismo-descritivo, necessário à ordenação do caos dos fenômenos, conforme expressamente propõe com seu método em Contribuição à Crítica da Economia Política; e na mesma ordem de reflexão, não se envergonhou o autor de Dialética da Natureza de mostrar confiança também na descrição verdadeira do objeto como valor explicativo, tal como asseverou em seus relatórios sobre habitação e sobre a situação da classe trabalhadora na Inglaterra (Manchester).
O pensar dialético pois, não fecha aberturas plurivérsicas como bem demonstra Ailton Krenak (Futuro Ancestral), ao fazer a crítica à plenipotência partidária e sindical que se realizam por meio da política, insuficiente, a seu ver para aferir as emergências de diferentes humanidades somente acessíveis por meio de novas alianças de afetos (sobre isso conferir o meu http://estadodedireito.com.br/futuro-ancestral/.
O caríssimo Boaventura tem nos ensinado que formas políticas – democracia, socialismo – são modos de experenciar a política, por isso que há múltiplas formas democráticas legítimas e socialismos legítimos se e enquanto democráticos. Assim por exemplo nos demonstra enquanto sujeito histórico o MST – Movimento Social dos Trabalhadores Sem Terra, já designado por Celso Furtado como o mais importante e revolucionário movimento social no mundo, que continua operando a práxis da reforma agrária para criar condições de realizar o socialismo, enquanto distribui cestas básicas para os vulnerabilizados atingidos pela negação de políticas inclusive sanitárias e ocupa a bolsa de valores para lançar ações de suas cooperativas de produção agrícola sustentável e familiar (https://www.youtube.com/watch?v=RxEL1cvFcrg – TV 61 O Direito Achado na Rua: O MST ocupa a Bolsa de Valores: entrevista com Diego Vedovatto).
Não se trata pois, de divergência de posicionamentos. A propósito, não obstante falar-se de uma divergência de posicionamentos, ao menos em conversa entre autores, o que se constata entre intelectuais de retaguarda, como o próprio Boaventura designa, é existir a rigor complementariedade das aproximações. Enfoques acentuados pelas perspectivas dos autores desde as interpelações decorrentes de seus pontos de vista ou da vista a partir dos lugares de observação. Assim, em O Sistema e o Antissistema. Três Ensaios, Três Mundos no Mesmo Mundo. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2021, com as autorias de Boaventura de Sousa Santos, Helena Silvestre e Ailton Krenak.
Se em Boaventura pode-se depreender um binarismo sistema/antissistema presente nas mais diversas disciplinas, das ciências naturais às ciências humanas e sociais, da biologia à física, da epistemologia à psicologia, a racionalidade explicativa da movimentação sistema/antissistema se faz na perspectiva globalizada do mundo (sistema mundo), na dinâmica de expansão do capitalismo em cujo âmbito se formam os impulsos de movimentos e ideologias de direita e de esquerda. Recapitulando as condições temporais e espaciais dessa movimentação, Boaventura expõe a resposta atual de profundo aperfeiçoamento do capitalismo que, com a quarta revolução industrial (inteligência artificial), torna possível desenvolver controles eficazes da população.
Por isso a sua consideração do balanço direita/esquerda porque ele leva a por em causa a questão da democracia e das institucionalidades que nela são geradas assim como nas organicidades que se constituem na sociedade civil, e indicar a necessidade de se fazer a sua defesa (da democracia). Por tudo ver o meu http://estadodedireito.com.br/o-sistema-e-o-antissistema-tres-ensaios-tres-mundos-no-mesmo-mundo/.
Tudo se passa, conclui Eduardo Lemos, no exercitar “o nosso papel, portanto, [que] é lutar, dialogar e aprender com os sujeitos e sujeitas que resistem cotidianamente contra as opressões do colonialismo, do capitalismo e do patriarcado, mas experenciando tais lutas, porque essas sempre serão constitutivas de um pensamento de transformação social; para os coletivos insurgentes”, assim, aliás, indicou Lívia Gimenes da Fonseca de modo a realçar o sentido coletivo da construção que se inscreve no programa-compromisso do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, nos fundamentos teórico-metodológicos da Nova Escola Jurídica Brasileira – NAIR, orientados por O Direito Achado na Rua, sua concepção, seus projetos e sua prática. Uma mirada no apêndice, com o catálogo dessa construção, atesta a fortuna crítica do movimento estudado na Tese.
E ainda assim tendo em conta, conforme nos sugere Boaventura de Sousa Santos, em um de seus mais instigantes textos – Por que pensar-, que “pensar não é tudo”, às vezes é preciso “des-pensar”, “des-aprender”, como mostra a poesia (Manoel de Barros, A didática da invenção in O livro das ignorãças). Em Boaventura “pensar não é tudo, porque além de agir nós temos que sentir, nós temos que criar formas de pensamento que sejam mais acolhedoras às emoções, ao corpo, aos afetos, ao sentimentos. Isso também é uma grande dificuldade para o conhecimento em que fomos treinados. As ações coletivas de transformação social têm essa dupla característica de resistência e de criatividade e quer uma quer outra exige envolvimento emocional, entusiasmo e indignação. O próprio ódio é por vezes necessário, ao mesmo tempo que o amor, e a solidariedade, ou seja, elementos de sensibilidade com os quais a modernidade ocidental sempre se achou muito mal” (https://www.scielo.br/j/ln/a/CLwxcMF6Kq6Rzc9h74xt98t/?lang=pt).
Minha argumentação completa pode ser encontrada em http://estadodedireito.com.br/direitos-humanos-desde-e-para-a-america-latina/. Eu a evoco porque essa é a mirada de Patrícia Vilanova Becker, que pude acompanhar em exercício quando ela praticava seu estágio docente em disciplina de minha regência no curso de Graduação (Pesquisa Jurídica), seu modo corazonado na sua atuação paulofreireana de formação.
Eis algo que nunca se perdeu em Patrícia e que, felizmente, posso compartilhar porque ela enviou para nosso sítio de diálogo na web, para o espaço de cartas, o parlatório que organizamos para que nossos pesquisadores e pesquisadoras, em viagem, pudessem, ao estilo de diário ou crônicas, defrontar-se com suas angústias ou incertezas, exercitando-as publicamente, e não a elas sucumbindo.
Patrícia ocupou esse espaço com cartas antológicas (http://odireitoachadonarua.blogspot.com/p/cartas.html), nas quais revestiu de intensa subjetividade os temas ásperos de seu sentipensar, simultaneamente existencial e autoreflexivo.
Veja-se, sua carta – Quando a teoria descolonial se transforma em ferramenta de colonização em mãos europeias (Carta de Oviedo):
Ontem vivi uma situação extremamente violenta em um espaço formativo antirracista, em um curso de formação oferecido por uma associação que trabalha em temas migratórios. O curso iniciou com uma pessoa espanhola ensinando pensamento e feminismo descolonial com uma densidade teórica digna de doutorado, de forma rápida, vertical, academicista, para um público variado de pessoas onde se incluíam sujeitos imigrantes que não tinham bagagem acadêmica. A ponente, nitidamente, dialogava somente consigo mesma.
Meu desconforto aumentava em escala progressiva. Começou a explicar o que era extrativismo (de recursos materiais dos países subalternizados) e cultural/epistêmico. Explicava o que era apropriação cultural. Quando nos perguntou se podíamos pensar em algum exemplo de extrativismo, me pareceu o melhor momento para dizer que o extrativismo epistêmico ocorre todo o tempo na academia, quando a teoria descolonial se transforma em mercadoria acadêmica para programas europeos, que expropriam os sujeitos e ficam somente com a teoria. Me pareceu oportuno apontar que impartir um curso de pensamento descolonial tendo como ponente uma pessoa branca/européia, era também uma forma usurpar o lugar enunciativo dos sujeitos protagonistas da teoria.
As discussões que se seguiram passaram pela autodefesa reiterada do direito da ponente de ensinar pensamento descolonial, de que se ela, ponente/professora espanhola, não desse o curso, ninguém mais o daria, pois não havia pessoas imigrantes habilitadas a dar este conteúdo. Que era difícil encontrá-las. Que as pessoas imigrantes estão muito ocupadas com sua precariedade e que não tem tempo para dar conteúdos como este. Passou pela ponente e outra pessoa europeia sugerindo que eu poderia juntar minhas amigas imigrantes e fazer meu próprio curso. Passou por escutar a ponente dizer que ela já havia ouvido muitas vezes esta crítica que eu estava fazendo, mas que ela tinha refletido e decidido que ela era sim legitima para ensinar pensamento descolonial. E por fim, passou pela ponente dizendo que era “uma casualidade” que algumas pessoas imigrantes estivessem presentes, e que o curso estava pensado, na verdade, para conscientizar voluntários e profissionais brancos/europeus sobre seus privilégios. Ora, nada mais normal que fazer um curso aberto antirracista e não esperar que venham ao curso pessoas imigrantes e racializadas! Trinta minutos de pessoas europeias ensinando-me porque não existe nenhum problema que elas ensinem a pessoas imigrantes e racializadas o que é colonialismo, afinal se não fosse pela ponente europeia ninguém mais poderia dar o conteúdo, ou seria um exagero exigir que se busque uma pessoa habilitada, já que suporia um esforço hercúleo, como buscar uma flor no deserto.
Sai de lá com tristeza profunda, lágrimas contidas, a mesma raiva de sempre ao deparar-me com o mesmo muro de arrogância, típico dos espaços espanhóis quando são submetidos à crítica. Imigrante bom é imigrante oprimido, é imigrante indefeso, é imigrante que precisa de ajuda, que depende da boa vontade e da generosidade europeia.
Tenho absoluta consciência dos privilégios da minha condição migratória, que advém da minha branquitude, da minha residência regularizada, do perfil acadêmico e da condição laboral vigente. Supostamente minha experiencia migratoria deveria ser muito amena e suave. Contudo, cada vez mais percebo que não reúno os requisitos necessários para ser objeto de amor e generosidade, já que não estou na posição de precariedade digna da generosidade europeia, já que tenho arsenal linguístico e teórico que me permitem confrontar com mais facilidade as práticas e os discursos das pessoas brancas/europeias que dominam os espaços de poder dos temas migratórios.
Ontem, como se diz aqui na Espanha, recebi “una paliza” (uma surra) nesse espaço dominado numericamente e discursivamente por pessoas europeias, o que me custou meu sono, minha saúde mental, minha alegria, e inclusive minha vontade de seguir ou não vivendo aqui. Mas o que me consola é que fazendo o exercício de imaginar o rosto de cada uma das pessoas com quem trabalhei no SAJU da UFRGS, ou na AJUP da Universidade de Brasilia, dxas companheiras de militâncias que fiz Brasil afora, imaginando o rosto dos meus melhores amigxs e interlocutorxs teóricxs e políticxs, tenho a convicção de que elxs teriam atuado da mesma maneira que atuei, que não se calariam, que mostrariam resistência, que um outro mundo é possível, pois já o vivi – às vezes esqueço do que é possível fazer com um pedaço de chão e uma roda de pessoas, com um pedaço de lã e um pouco de giz. As vezes esqueço de que já fiz parte de um projeto de universidade e de educação popular que me fazia despertar a cada dia cansada, mas com brilho nos olhos. Aqui nos matam, amigxs. Aqui matam nossos sonhos, nossa esperança, e nossa capacidade de ser sujeito. Ansiosa por colocar os pés em solo brasileiro, onde impera o caos, mas onde os sonhos (e xs sonhadorxs) estão vivos (e resistem).
Com igual intensidade e pertinência a sua Novíssima Carta de Oviedo (Carta para o Zé):
Essa é uma carta para o Zé, o professor titular da prestigiosa Universidade de Brasília, que no auge da carreira acadêmica, sendo hoje um dos maiores intelectuais do país, se permite ser chamado apenas de “Zé”. Hoje não é um dia fácil para mim, é um dia em que minhas mãos pesam e meus olhos seguram lágrimas de cansaço. Por caminhos imprevistos vim parar em meio a epistemologias europeias, onde parece que a crítica não é parte indispensável nem mesmo do feminismo. Experiências frustradas e silenciadoras dentro e fora da academia, colonialidades e exclusão dentro e fora da assembleia feminista. Nos dizem que o inimigo é o outro, que não podemos perder tempo brigando entre “nosotras” enquanto avança o patriarcado, o inimigo está lá fora, dizem. E assim vamos apagando nossas diferenças, homogeneizando e assimilando, ignorando as feridas e as violências (micro, macro, e de todos os tamanhos), sem enfrentar o opressor que mora em cada uma de nós. Meu corpo se transforma em um bau de ressentimentos, de coisas não ditas, ou de arrependimento pelo dito e nunca compreendido. A necessidade de inclusão e aceitação dentro do sistema acadêmico europeu em um contexto de imigração pode transformar a feminista descolonial mais feroz em uma ovelha assustada, temerosa por ser ainda mais excluída. Me calam? Me calo?
Mas tudo isso é sobre mim. Voltamos ao Zé. O professor que mesmo após tantas distâncias sempre me marca em suas publicações, que continua me pedindo cartas, que continua estimulando-me a escrever, o professor que ainda não desistiu de mim. Em dias como esse, em que as lágrimas caem fartas diante de tanta incompreensão, só consigo pensar na família político-afetiva que a UnB me deu, e da minha vontade de atravessar um oceano correndo. Quero voltar para a salinha cheia de livros amontoados do Zé, que organizamos a muitas mãos em pleno domingo, descobrindo tesouros empoeirados. Nosso pequeno espaço de confiança onde a crítica não era somente permitida, mas era a base de qualquer avanço.
É essa encarnação, esse sentipensar corazonado que mostra no trabalho uma autoria vivencial. Patrícia traz em seu texto uma desenvoltura e um conhecimento sobre a realidade europeia e espanhola, que poucos indígenas tem igual a ela, uma alienígena em território continental. Ela expõe os enunciados políticos dos programas partidários e das organizações da sociedade civil com um domínio que não é comum entre os nacionais da Comunidade Europeia. Volto à tese de Patrícia, anotando que ao lado do existencial ela acumulou elementos elucidativos de seu tema, preparando etapas analíticas em estudos que lhe permitiram aplicar à tese, elementos de sustentação aos seus argumentos, entre eles, parte da bibliografia, seu estudo em coautoria com Hernández Martínez, no qual concluem o impacto que estereótipos carregam para a vida cotidiana, de mulheres imigrantes. É assim, que a tese investiga as experiências das mulheres imigrantes na Espanha, principalmente de origem latinoamericana, a partir das representações no cinema documental no período de 2009 a 2021. Conforme seu resumo:
Analisam-se as violências que perpassam suas experiências cotidianas no espaço transnacional globalizado, produzidas por processos de colonialidade, racialização e subalternização que obstaculizam o exercício pleno de sua cidadania e de seus direitos humanos. O objetivo geral é identificar como as mulheres imigrantes geram estratégias de resistência a essas violências a partir da criação de um sujeito coletivo que reivindica novas formas de cidadania mais flexíveis, buscando romper com o modelo de cidadania excludente baseado no pertencimento ao estado-nação. Os objetivos específicos são: 1) Analisar os efeitos que a colonialidade segue produzindo sobre as experiências das mulheres imigrantes na Espanha, especialmente das mulheres de origem latinoamericana; 2) investigar que tipos de discursos e representações circulam no espaço transnacional espanhol sobre as mulheres imigrantes; 3) analisar criticamente as representações produzidas pelo cinema documental independente sobre as mulheres imigrantes, e como contribuem na luta pelos direitos humanos dessa coletividade. A metodologia utilizada baseia-se na análise discursiva de um corpus de curta e média-metragens de produção independente, com o auxílio da ferramenta de investigação qualitativa Atlas Ti. O marco teórico que orienta este trabalho situa-se no campo dos estudos feministas, a partir de uma perspectiva interseccional e decolonial. Conclui-se que as mulheres imigrantes são agentes ativos nos processos de transformação social que ocorrem na Espanha, produzindo lutas sociais por meio de práticas coletivas antirracistas, feministas e transnacionais que desestabilizam o próprio conceito de estado-nação e os limites formais da cidadania.
Localiza-se já aí uma nota de singularidade. A adoção metodológica da linguagem do cinema – cinema documentário – para corpus da interpretação do objeto da tese será uma extravagância? Já me dediquei a essa questão quando fiz o prefácio do livro DIREITO NO CINEMA BRASILEIRO. Carmela Grüne (org). São Paulo: Saraiva, 2017.
Para mim, conforme expus no prefácio, a obra não inaugura uma vertente de interesse para o conhecimento do Direito e suas formas de difusão, incluindo o ensino e a educação jurídicas. As relações entre Direito, Arte, Literatura, Teatro e Cinema formam uma Paidéia em alcance clássico e dispõem de um catálogo expressivo para o confirmar.
No plano epistemológico, a propósito, tem sido estimulante a vertente que trabalha a interlocução interdisciplinar e complexa para acentuar o diálogo entre saberes, demonstrando que o conhecimento não se realiza por uma única racionalidade, mas, ao contrário, pela integração entre diferentes modos de conhecer que nos habilitem a discernir o sentido e significado da existência e a elaborar sínteses interpretativas que além de nos permitir compreender o mundo, contribuam para transformá-lo, conforme, entre todos, sustenta Boaventura de Sousa Santos. Trata-se, como acentua Roberto Lyra Filho (A Concepção do Mundo na Obra de Castro Alves, Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1972; Filosofia Geral e Filosofia Jurídica, em Perspectiva Dialética, in Palácio, Carlos, S.J., coord. Cristianismo e História, São Paulo: Edições Loyola, 1982), de operar padrões de esclarecimento, recusando o monólogo da razão causal explicativa, para abrir-se a outras possibilidades de conhecimento: o fazer, da atitude técnica; o explicar e compreender, da atitude científica; o fundamentar, da atitude filosófica; o intuir e mostrar, da atitude artística; o divertir-se, da atitude lúdica; o revelar, da atitude mística.
Tem razão Eduardo Lourenço, não só em sustentar a unidade da poesia fernandiana (Fernando Pessoa), mas em suscitar a totalidade que abarca os seus aparentes fragmentos heterônimos, para indicar que nesse processo o problema central continua a ser o do conhecimento. Para Lourenço (Tempo e Melancolia em Fernando Pessoa, publicado na edição brasileira do livro O Mito da Saudade, Editora Companhia das Letras), os avatares de Pessoa “representam uma tentativa desesperada de se instalar na realidade”.
Marx não havia ainda com O Capital analisado a estrutura econômica para, num certo modo de produção explicar a formação da mais-valia, e bem antes o Padre Vieira, artisticamente, a exibiu tal como está no Sermão XIV do Rosário: “Eles mandam e vós servis; eles dormem, e vós velais; eles descansam, e vós trabalhais; eles gozam o fruto do vosso trabalho, e o que vós colheis deles é um trabalho sobre outro. Não há trabalhos mais doces que o de vossas oficinas; mas toda essa doçura para quem é? Sois como as abelhas, de quem disse o poeta: ‘sic vos non vobis melificatis apes’ (assim como vós, mas não para vós, fabricais o mel abelhas)”.
No plano das habilidades, que é o que remete mais imediatamente à constituição de perfis profissionais, a alusão a uma justiça poética quer mais designar a categoria subjetividade, como própria ao afazer do jurista para interpretar criativamente e com imaginação as relações do homem com o mundo e com o outro. É com este sentido que Martha Nussbaun fala em poesia e imaginação (Justicia Poética. La Imaginación Literaria y La Vida Publica, Editorial Andrés Bello, Barcelona/Buenos Aires/México D.F./Santiago do Chile), ou seja, para caracterizá-las como “ingrediente indispensável ao pensamento público, com condição de criar hábitos mentais que contribuam para a efetivação da igualdade social”.
Para além do prefácio tratei do tema na minha recensão sobre o livro, lançada na Coluna Lido para Você que o Jornal Estado de Direito, sob a direção editorial da advogada Carmela Grüne, e que está também publicada no 1º volume do livro Lido para Você. Direito, Cinema e Literatura. São Paulo: Editora Dialética/Jornal Estado de Direito, 2023, p. 25-40).
Recorto as ricas e plurais contribuições coligidas no livro, com temas que trazem ainda a vinculação em algumas abordagens, também da questão política, por exemplo, a vivida sob a sombra do autoritarismo obscurantista, que resultou em censura, em tortura, em exílio, em assassinato político, para por em relevo a contribuição do cinema documentário.
Aludo ao volume, o nº 7, da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica à Justiça de Transição na América Latina (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de, et allli (orgs). Brasília: Centro de Educação a Distância – CEAD/NEP/UnB- MJ/Comissão de Anistia, 2015), inclui um texto do cineasta, expoente do documentarismo brasileiro, meu colega de UnB, Vladimir Carvalho (“A Resistência em Brasília – um breve testemunho”), exemplar a esse propósito (págs. 69-70):
Neste mesmo ano de 1971, por mais que tentasse evitar, confrontei-me com o esquema de repressão do Estado discricionário: meu primeiro longa-metragem, O País de São Saruê, foi liminarmente proibido pela Censura e mais do que proibido, interditado em todo o território nacional. O veredito dos censores, como está no Diário Oficial da União, incluía uma justificativa afirmando que o documentário, imaginem, ‘feria a dignidade e os interesses nacionais’. Decidi, então, que não iria desistir e inscrevi o filme na competição do Festival de Brasília; para minha surpresa, ele foi selecionado. Entretanto, para purgar os meus pecados, a direção da Fundação Cultural, que tinha como presidente do seu Conselho José Pereira Lira, ex-chefe de polícia no Governo do general Eurico Dutra, foi taxativa, e, dias depois, recusou a decisão da Comissão de Seleção. Ficava o dito por não dito. … apelei e fui sozinho e contrafeito ao velho Pereira Lira, homem tosco, servil aos poderosos, herdeiro dos coronéis do Piancó, na Paraíba. Disse-me, seco como uma múmia, despachando-me: ‘Se esse seu filme fosse boa coisa, não teria sido preso na Censura’. Ainda insisti, indo bater na porta do gabinete de Rogério Nunes, manhoso e sibilino chefe da Censura Federal. E aí foi a vez da mais descarada farsa. Apanhou o meu processo e foi despachar com o general Canepa, o temível chefão da Polícia Federal; duas horas depois, voltou dizendo que o Ministro Alfredo Buzaid estava muito preocupado com o que lera na imprensa e, temendo pelo festival, desaconselhara qualquer liberação. Resumo da ópera: o O País de São Saruê foi substituído por uma xaropada esportiva chamada Brasil Bom de Bola, para adular o ditador Médici, que havia recebido em praça pública os vencedores da Copa de 70, objeto do documentário.
Em Vladimir, o documentário é uma maneira de se apropriar do real para significa-lo, social e politicamente. Veja-se o seu Conterrâneos Velhos de Guerra: “Conterrâneos Velhos de Guerra é uma tentativa desesperada para reter a memória que se esgarça, que se esvai entre os dedos do esquecimento, quando se trata da história dos vencidos, num país como o nosso. Sem esses depoimentos de sobreviventes, sem essas conversas às vezes desencontradas sobre os tempos da construção de Brasília pouco restará além da grande obra de concreto armado frio e indiferente” (Conterrâneos velhos de guerra. Um filme de Vladimir Carvalho. Brasília: GDF/Secretaria de Cultura e Esporte/Fundação Cultural do DF, 1997).
O que nos revela Conterrâneos Velhos de Guerra, comenta a socióloga e professora da UnB Nair Heloisa Bicalho de Sousa, autora de Construtores de Brasília. Estudo de Operários e sua Participação Política. Petrópolis: Editora Vozes, 1983, é uma história ao avesso dos relatos oficiais de Brasília, [que] põe em cena a figura do candango simbolizado nos milhares de migrantes nordestinos que vieram para a capital da esperança trazendo o desejo de uma vida nova e feliz [mas que] atraídos pela propaganda desenvolvimentista de Juscelino, [têm] os sonhos trazidos na bagagem…pouco a pouco se desfazendo na árdua jornada de trabalho cujo relógio de ponto era a data da inauguração da capital (Uma elegia aos candangos: a outra face da história. In Conterrâneos Velhos de Guerra. Um filme de Vladimir Carvalho, op. cit.).
Sugiro a leitura completa do texto de Vladimir Carvalho, conforme a referência indicada, em tudo ilustrativo do quadro hostil que o autoritarismo esboça para escapar ao modo artístico de fazer a leitura simbólica do social, do político e do jurídico. E, no ambiente universitário, também afetado por essas interferências, de que modo o conhecimento crítico, nas suas múltiplas expressões, se preserva gerando formas sutis de resistência. Assim também em relação ao cinema. De fato, conforme ele conclui o seu texto (pág. 71): “Foi no clima dessa reconstrução (da Universidade de Brasília) e como pedagogia para a superação do período autoritário, que realizei ‘Barra 68 – Sem perder a ternura’”.
Tal qual Vladimir, também trazem uma filmografia social e de resistência a contrapelo, os Rocha-Oliveira, meus queridos amigos e compadres, Ana Maria Rocha e sobretudo o jornalista, escritor e cineasta Jorge Oliveira, especialmente com Perdão Mister Fiel uma versão que sangra com a tortura a vida do operário sequestrado do chão da fábrica pela ditadura militar cruenta que marcou a memória política do Brasil entre os anos de 1964 e 1985 e que é um libelo para o nunca mais, para o que não mais aconteça.
No primeiro capítulo, com o título “Cuestiones metodológicas”, ela aborda a motivação de suas escolhas metodológicas do estudo, esboçando o panorama atual do cinema documentário social e feminista na Espanha. Esclarece como guiou para a seleção dos filmes, o desenvolvimento teórico e temático do estudo, seguindo os critérios que indica: a) Diversidade dentro da singularidade, ou seja, a ocorrência de múltiplas narrativas de mulheres imigrantes, notadamente de mulheres latino-americanas; 20 disponibilidade, isto é, estar disponível em plataformas audiovisuais abertas ao público de forma gratuita (YouTube e Vimeo); 3) forma de produção, vale dizer, ter sido produzidos de modo independente, por agentes da sociedade civil. Com esses critérios selecionou obras que estrearam entre 2009 e 2021, em sequência cronológica: Las Migrantes (2009), dirigida por Samuel Sebastián; Un viaje a través de Mujeres Pa’lante (2012), dirigida por Tanja Wol Sorensen; Mujeres Inmigrantes y Resistencias (2016), dirigida por Jon Manterola; Vidas invisibles: Mujeres migrantes bajo el plástico (2020), realizado por LA COSECHA Producción Audiovisual de forma colectiva; Cuidar entre tierras. ¿Quién sostiene la vida cuando las mujeres migran? (2020), realizado por CooperAcció y La Directa de forma colectiva; y, finalmente, Las Nadie (2021), dirigida por Elisa Martín Gómez.
No segundo capítulo, “Colonialidad y eurocentrismo: Efectos del passado en las migraciones contemporáneas”, cuidou de examinar como se constituíram os processos históricos que conformam a colonialidade de gênero, de saber e de poder para mostrar que as populações latino-americanas continuam vivenciando os efeitos do passado colonial em seus territórios de origem, assim como através de suas trajetórias migratórias nas sociedades de destino. Analisa, nesse passo, o ambiente hostil das migrações na Espanha e na Europa, em sua conexão com essa colonialidade, revelando essa hostilidade nas narrativas (discursos, programas) populistas, racistas e ultranacionalistas, nítido em grupos de extrema-direita. Analisa também, a feminilização das migrações na medida em que há uma subalternização da outra migrante (discursos sanitário, político, jurídico etc).
No terceiro capítulo, “Representaciones de las mujeres inmigrantes: Estereotipos, subalternidad y otredad”, a atenção se concentra nas formas em as mulheres migrantes são represengtadas nos meios de comunicação, pelos efeitos significativos no imaginário da população autóctone. Se detêm na análise da posição específica das mulheres latinoamwericanas, e dos estereótipos que designam as suas experiências (serviçal, roubamaridos, prostituta). Nesse capítulo a identificação do corpus da pesquisa, estabelecendo a conexão entre as realidades examinadas e o argumento dos documentários.
No quarto capítulo, “Mujeres que cuidan: Trabajo reproductivo, redes y activismos en los espacios transnacionales”, o foco são as migrações das mulheres latino-americanas à luz do conceito “cadenas globales de cuidado”, em cuja formulação se indica a existência de um sistema de transferência emocional gerador de mais valia, catalizador do deslocamento do afeto dos sujeitos no trânsito entre os territórios do Sul para o Norte Global.
Desde esse deslocamento, analisa as perspectivas críticas que esse conceito move, como a ideia de “tramas transnacionales del cuidado” com a qual seus formuladores propõem uma complexização deste modelo de análise numa perspectiva decolonial.
Finalmente, no quinto capítulo, “Nuevas ciudadanías migrantes y diaspóricas em los contextos transnacionales”, procura aprofundar o debate sobre o que se tem construído na modelagem liberal e moderna da cidadania ainda predominante nas sociedades europeias, para identificar formas de membresía (pertencimento?), que ligam os indíviduos ao estado-nação como sujeitos de direito. Mostra como a realidade do estado-nação se erode enquanto suas fronteiras territoriais e simbólicas se desestabilizam pelo impacto das migrações contemporâneas de onde emergem expectativas de novas cidadanias migrantes transnacionalizadas que se constroem a partir de pertencimentos híbridos e múltiplos (pense-se o trânsito de expectativas em territórios espanhóis como Ceuta, encravado em costa africana).
Ela submete a tensão epistemológica conceitos como denizenship (que traduz multiplicação dos status jurídicos e o surgimento de novas formas de “cidadania parcial”, contrapondo as noções de Denizens e de Citizens (cf. Denizens and Citizens in a World of International Migration, de Tomas Hammar, 1990), comemoradas como sinais de abertura de uma nova era de expansão e multiplicação dos direitos.
Para a autora da tese, as cidadanias parciais não respondem satisfatoriamente às demandas de direitos das pessoas migrantes, e restam delirantes de um marco amplo de salvaguardas aos direitos humanos dos migrantes.
Com essa crítica Patrícia avalia as múltiplas propostas de novas cidadanias enunciadas no contexto da globalização e das cidades transnacionais: open borders (Carens 1987), ciudadanías postnacionales (Soysal 1994), desnacionales (Sassen 2003) y flexibles (Braidotti 2002), entre outras.
Finalizo com a própria Patrícia, me valendo de sua Segunda Carta Novíssima de Oviedo, logo que ela se deslocava do Programa Erasmus Mundus Master´s Degree in Women’s and Gender Studies na Universidade de Bolonha e se engajava no da Universidade de Oviedo, para realizar o doutoramento que com brilho conclui.
Nessa Carta ela fere um ponto interpelante: As origens do anti-intelectualismo, ou sobre o crime de ser intelectual, um texto autoreflexivo, com a proposta, ela assim o finaliza, de só traz[er] perguntas, e não respostas, mas pode[r] encontrá-las juntas/os.
Releio a Carta agora, à luz, já não das perguntas que eram ali lançadas, mas das respostas que Patrícia, ela própria, oferece agora, com a sua Tese:
Na última década, ao longo dos governos do Partido dos Trabalhadores, sujeitos das classes populares ingressaram no sistema de educação superior motivados pela criação/ampliação de políticas afirmativas, pela expansão das universidades públicas e de suas vagas (Reuni), pela possibilidade de bolsas em universidades privadas (Prouni), pela reformulação e expansão do ENEM como prova de acesso, pelas novas dinâmicas de mobilidade regional através do SISU. Para a classe trabalhadora, entrar na universidade nesta época era sinônimo de cursar uma ou duas disciplinas em uma universidade privada, acumulando uma dívida que se triplicava de forma mágica, sem nunca chegar a se graduar. Um novo mundo então se abriu para muitas pessoas que não viam nenhuma possibilidade de ingressar no ensino superior. Aos poucos, compreendemos que este era um futuro possível de ser sonhado, e um novo imaginário coletivo nasceu para jovens das classes populares.
Eu, junto a tantas/os companheiras/os, fui uma destas pessoas, e me sinto na obrigação de analisar de perto minha responsabilidade na construção do retrocesso que hoje presenciamos, que encontra sua expressão máxima na figura de Bolsonaro – o homem mediano, como brilhantemente apontou Eliane Brum. Uma nova geração jovem vinda das classes baixas ingressou na universidade e descobriu dentro ou ao redor dela seus primeiros espaços de militância. Estudantes pretos, pardos, indígenas, oriundos de escolas públicas e classes populares não tiveram somente seus destinos afetados pela educação superior, mas também foram responsáveis por tornar a universidade mais politizada e socialmente comprometida. Queríamos fazer extensão popular, participar do centro acadêmico, ocupar, fazer greve, assembleia, plebiscito. Jamais poderia contar, em uma lista ou livro por mais grosso que fosse, a quantidade de companheiras/os de militância político-acadêmica que encontrei em muitos rincões deste Brasil. Éramos (somos) infinitos. O que então deu errado?
Estas pessoas, embebidas em novos conhecimentos, novas categorias analíticas, novas maneiras de pensar e de ver o mundo, retornaram a seus lugares de origem transformadas, quiçá falando outras línguas de difícil compreensão para os que nos viram crescer. Os movimentos sociais de esquerda passaram a receber, de forma cada vez mais frequente, a uma nova categoria de militante, inquieta e multitarefas, dividida entre os muros da universidade e a rua. Na busca por uma universidade aberta e popular, buscamos maneiras de desenvolver uma ciência crítica através de metodologias variadas: pesquisa-intervenção, pesquisa-ação, observação-participante, pesquisa-militante, as alternativas eram muitas. Queríamos ouvir a voz dos sujeitos, trabalhar ao seu lado, construir perguntas a partir de suas demandas mais urgentes. Mas sabemos que nem sempre (ou quase nunca) a prática dá conta das ambições da teoria.
Por outra parte, as discussões dentro dos movimentos de esquerda ganharam notas de academicismo. Houve uma intelectualização das esquerdas na medida em que as classes populares se apropriavam dos espaços, da linguagem e dos conhecimentos da/na universidade. Nem mesmo o feminismo saiu ileso. E não teria porque sair, já que possui uma longa e exuberante tradição intelectual no campo dos estudos de gênero. Termos complexos, categorias que hoje ganham as redes sociais e a boca do povo (identidade de gênero, interseccionalidade, patriarcado…) encontram suas origens em livros empoeirados ou em arquivos pdf em inglês. Mas este conhecimento se expandiu para fora dos livros e tomou os espaços de militância. Foram comidos, digeridos e vomitados, como bem manda a nossa antropofagia.
Em meio a todas estas transformações, lugar de destaque merece a educação popular – esta mesma difundida por esta figura demoníaca chamada Paulo Freire. A educação popular, velha conhecida, se renovou na última década e não se deixou seduzir pelo prestígio das aulas magna: não se esqueceu da necessidade de equalizar as linguagens, de trabalhar “com” o povo e não “para” ele, ao lado e não à frente. Este texto, por sinal, não tem a menor pretensão de chegar às classes populares. Esta é uma mensagem para os meus pares, vocês intelectuais. Porque hoje é isso que eu sou, e reivindicar meu lugar somente como “militante” ou “ativista” não seria honesto. Me dirijo especialmente àqueles/as que permaneceram na vida acadêmica, que seguiram com mestrados e doutorados, sonhos ainda mais impensáveis em um passado não tão distante. Estamos conscientes de pertencer à elite intelectual de um país tão sofrido quanto o Brasil? Qual o nosso papel em encontrar soluções para a crise atual?
A lógica é mesmo perversa. Vejamos: uma parcela expressiva de jovens das classes populares chegou à universidade, nos apropriamos de linguagens e categorias complexas que nos permitiram formular novas questões e compreender melhor os processos de opressões. Nos “empoderamos” coletivamente, deste empoderamento que os conservadores odeiam. Nos capacitamos para discutir frente a frente com as elites econômicas e intelectuais que ocupam os lugares de poder do país. Mas algo saiu tão errado ao longo do caminho que hoje são as próprias classes populares, junto às elites pouco instruídas ou mal intencionadas, quem nos acusam do crime do intelectualismo e do “politicamente correto”.
Às vezes tudo isso me lembra algo que costumávamos dizer durante a infância entre as meninas: – ela “é muito cheia”, “ela se acha”, não gosto dela porque “quer aparecer”. Talvez os jovens de classes populares que ascenderam na última década foram picados pelo bicho da vaidade, e outra parte dos brasileiros pelo bichinho dos ciúmes. – “Não venha com esse papo ‘politicamente correto’ tentando me educar porque você não é melhor que eu”. O estudante entusiasmado na mesa do almoço de domingo não entende como o tio pode desprezar tudo aquilo que aprendemos com rigor científico, reduzindo tudo ao campo da mera opinião. – “Mas tio, os direitos humanos se difundiram diante das atrocidades da segunda guerra mundial…”. E o tio sentencia: – “Tudo bandido”. Fim da discussão. Sabemos que esta tragédia democrática foi gerada por múltiplos e complexos fatores – inclusive de ordem global. Mas isso não nos exime da responsabilidade de descobrir qual foi a nossa dose de contribuição nisso tudo. Ah, esqueci de mencionar. Este texto só traz perguntas, e não respostas. Mas podemos encontrá-las juntas/os.
Observe-se o trecho que grifei, em negrito, da Carta. Terá Patrícia, na Tese, a partir da alta indagação que os sujeitos e sujeitas de sua pesquisa lançaram ao pensamento crítico, à política, ao direito, encontrado na sua intelectualidade o eco que deveria ser o salto decolonial de sua leitura? Nas suas palavras: “embebida em novos conhecimentos, novas categorias analíticas, novas maneiras de pensar e de ver o mundo, [pode retornar] a seu lugar [qual é agora esse lugar?] de origem transformada, falando outras línguas de difícil compreensão para os que nos viram crescer (línguas que se espraiam na tese, aliás, sendo ela uma mulher latino-americana imigrante, escrita em escorreito espanhol elogiado pela Banca). Está em condições de fazer interlocução com os movimentos sociais de esquerda passaram a receber, de forma cada vez mais frequente, a uma nova categoria de militante, inquieta e multitarefas, dividida entre os muros da universidade e a rua. Na busca por uma universidade aberta e popular, buscamos maneiras de desenvolver uma ciência crítica através de metodologias variadas: pesquisa-intervenção, pesquisa-ação, observação-participante, pesquisa-militante, as alternativas eram muitas. Queríamos ouvir a voz dos sujeitos, trabalhar ao seu lado, construir perguntas a partir de suas demandas mais urgentes. Mas sabemos que nem sempre (ou quase nunca) a prática dá conta das ambições da teoria?
Patrícia, com muita correção no manejo das categorias, noções, conceitos, construídos ao longo de sua Tese, se move com lealdade aos balizamentos das proposta de O Direito Achado na Rua, sua origem político-epistemológica na Faculdade de Direito da UnB. Com efeito, com pertinência, não só exercita a sua própria inserção na construção solidária da proposta (ver p. 206 da Tese, afirmando o grau de incidência pessoal para ponderar as múltiplas interpelações que sua autoria registra); mas também, diligentemente atenta às emergências, as revisitações e as travessias (cf. http://estadodedireito.com.br/o-direito-achado-na-rua-questoes-emergentes-revisitacoes-e-travessias/; atenção ao livro O Direito Achado na Rua: Questões Emergentes, Revisitações e Travessias: Coleção Direito Vivo, volume 5. José Geraldo de Sousa Junior et al (org). Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2021)
Notadamente, aquelas três referências balizadoras que estão invariavelmente presentes nos estudos e pesquisas e na bibliografia em permanente atualização de O Direito Achado na Rua, vale dizer, “1. Determinar o espaço político no qual se desenvolvem as práticas sociais que enunciam direitos, a partir mesmo de sua constituição extralegal, como por exemplo, os direitos humanos; 2. Definir a natureza jurídica do sujeito capaz de elaborar um projeto político de transformação social e elaborar a sua representação teórica como sujeito coletivo de direito; 3. Enquadrar os dados derivados destas práticas sociais criadoras de direitos e estabelecer novas categorias para estruturar as relações sociais solidárias de uma sociedade alternativa em que sejam superadas as condições de espoliação e de opressão entre as pessoas e na qual o direito possa realizar-se como um projeto de legítima organização social da liberdade”.
A apreensão do tema proposto por Patrícia, já me ativara a observação que me proporcionara a leitura que fiz sobre outro texto recentemente publicado no Brasil, que toma também a cultura como mediação política para a formação de sujeitas e sujeitos periféricos (http://estadodedireito.com.br/a-formacao-das-sujeitas-e-dos-sujeitos-perifericos-cultura-e-politica-na-periferia-de-sao-paulo/). Refiro-me ao livro de Tiaraju Pablo D’Andrea. A Formação das Sujeitas e dos Sujeitos Periféricos. Cultura e política na periferia de São Paulo. São Paulo: Dandara Editora, 2022, 288 p.
Em minha leitura do livro de Tiaraju, considero que a obra, por sua autenticidade, contribui para robustecer meu argumento duplo, sobre o espaço ressignificado e sobre as subjetividades instituintes, algo que eu divisara quando participei de banca examinadora na UnB da dissertação de mestrado de Willy da Cruz Moura e logo, no prefácio feito a pedido do autor, sobre temática em que essas questões são alinhadas. Refiro-me ao livro, Na Calada da Noite: processos culturais e o Direito achado na noite em Brasília, desdobrado da Dissertação de Mestrado Cultura e Vida Noturna em Brasília: Poder, espaço, coletividade e o Direito achado na noite (Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania. CEAM/Universidade de Brasília, 2022).
Logo no prefácio que elaborei a pedido do autor, aludo aos referenciais, encontrados no trabalho, que vão dar ao Autor, confiança para aventar categorias inéditas como “a noite como espaço”, nessa fortuna crítica que em O Direito Achado na Rua tem levado a alargar, na ação dos sujeitos coletivos de direitos e suas práticas instituintes de novos direitos, a demarcação de novos espaços sociais, para além da metáfora da rua, e assim discernir, ressignificando, espaços críticos como direitos achados na rede, nas águas, nas aldeias, nas florestas, no campo, no cárcere, no manicômio, no armário, no gueto…na noite. Uma construção que dialoga com os sujeitos em seu protagonismo inter-subjetivo quando assumem a titularidade coletiva de direitos.
Meu ponto é que pode-se falar em espaço político, o território no qual “sujeitos podem adquirir consciência coletiva, estabelecer redes, operar afetos, desenvolver práticas sociais, visibilizar e consolidar direitos, conduzir transformação social emancipadora, estruturar solidariedade e materializar alternativas contra-hegemônicas, como sugere o percurso de O Direito Achado na Rua”. Espaços que se afiguram, ontologicamente, nesse passo citando a mim e a meu colega co-autor Antonio Escrivão Filho (Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos. Belo Horizonte: Editora D‘Plácido, 2016) como lugares de criação e realização do direito, apresentado e posto à disposição do povo na qualidade de sujeito histórico com capacidade criativa, criadora e instituinte de direitos, e, metaforicamente, como a esfera pública onde se reivindica a cidadania e os direitos, onde se agregam cidadãos, onde se lhes protege da dispersão e da desmobilização.
Espaços de Cidadania, como sustenta Milton Santos, que formam “cidades educadoras”, enquanto compreendem territórios como lugares em disputa na construção das cidades, quando se envolve relações humanas e suas produções materiais, formando uma geografia cidadã e ativa, conforme lembram Sara da Nova Quadros Cortes e Cloves Araújo, em belo texto – “Dialética Social no Rastro dos Pensamentos de Roberto Lyra Filho e de Milton Santos: aportes teóricos no campo do direito e da geografia” – também publicado nesse dia 1º de setembro, na Revista Direito.UnB (volume 6, número 2 – maio/agosto 2022), com um dossiê em homenagem a O Direito Achado na Rua e a Contribuições para a Teoria Crítica do Direito.
Em Patrícia, na Tese, essa apreensão vai corresponder ao que ela caracteriza como construção de espaço político próprio para abrigar as demandas específicas das mulheres imigrantes em face dos riscos de sofrer processos de dominação por parte de seus pares masculinos nas associações mistas quando evitam os processos de assimilação que podem ter lugar nas associações conduzidas por pessoas autóctones (final do capítulo 4, p. 192).
Assim que, recuperando do documentário, ela surpreende a jovem que toma parte em marcha e diante da câmera testemunha: “Yo he venido aquí por reclamar un derecho, el derecho al paro, el derecho a tener una vida más digna, a un trabajo que sea reconocido, porque realmente no es reconocido el servicio doméstico, bueno, también a demostrar que somos mujeres y valemos mucho”. (18’08”).
Patrícia considera, a partir de Mujeres Pa’lante , que se fazem visíveis as formas em que as mulheres imigrantes se organizam para preencher as lacunas deixadas pelo Estado, evidenciando as múltiplas discriminações jurídicas que sofrem pela ausência de cidadania transnacional (Capítulo 4, p. 192-193).
E, enquanto se articulam em redes de ativismo, amizade e solidariedade, formam alianças migrantes e feministas nos espaços transnacionais para instituir formas alternativas de exercício da cidadania ainda negadas às mulheres imigrantes pela juridicidade oficial.
De que trata ao fim e ao cabo a Tese é aferir a emergência dessas novas formas de cidadania transnacional, multicultural e flexível, derivada da lutas dos coletivos migrantes, em especial dos movimentos feministas decoloniais e antirracistas, para organizar as expressões instituintes, contra-hegemônica, ‘de abajo”, desobediente do enquadramento bem comportado das classificações ‘de arriba’ dos enunciados globais neoliberais. Diz Patrícia, abrindo caminho para formulações mais amplas e alinhadas com os direitos humanos. Todavia, direitos humanos que seja a resultante das lutas concretas por reconhecimento da dignidade material dos sujeitos em ação política para emancipar-se, direitos humanos achados na rua, nas aldeias, nas águas, nas florestas, nos campos, nos cárceres, nos manicômios, na noite, nas favelas, bairro adentro (cf. ESCRIVÃO FILHO, Antonio e SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos. Belo Horizonte: Editora D‘Plácido, 2016; 2ª reimpressão 2019; HERRERA FLORES, Joaquín. La Reinvención de los Derechos Humanos. Andaluzia: Atrapasuñoes, 2008; SÁNCHEZ RUBIO, David. Derechos Humanos Instituyentes, Pensamiento Crítico y Praxis de Liberación. Argentina/España/México: Akal/Inter Pares, 2018; LEMOS, Eduardo Xavier. Direitos Humanos Desde e Para a América Latina: Uma Proposta Crítico Dialética a Partir de O Direito Achado na Rua. Tese em cotutela apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília e ao Programa de Doctorado en Derecho de la Universidad de Sevilla. Brasília, 2023).
Para essa perspectiva instituinte Patrícia Vilanova Becker confirma a sua adesão aos fundamentos e pressuspostos, à concepção e à prática de O Direito Achado na Rua, nos termos por ela postos, p. 234-235:
A este respecto, me gustaría accionar una potente doctrina jurídica latinoamericana acerca de la construcción de los derechos humanos y fundamentales: “El Derecho desde la Calle” (Sousa Júnior 1993; Sousa Júnior 2012), em portugués O Direito Achado na Rua (ODANR). El Derecho desde la Calle consiste en “uma concepción del Derecho que emerge, transformadora, de los espacios públicos –la calle– donde se da la formación de sociabilidades reinventadas que permiten abrir la conciencia de nuevos sujetos para una cultura de ciudadanía y de participación democrática” (18). El Derecho desde la Calle surge para dar respuesta a los vacíos de derechos que se instalan entre las garantías previstas en el ordenamiento jurídico y su real efectividad en la vida de los sujetos. Por otra parte, la teoría del Derecho desde la Calle hace visible la existencia de derechos que se forman y se significan en el espacio público (representado por la calle) a través de las luchas sociales y que, sin embargo, no encuentran respaldo en la ley. En este sentido, “a rua aí, evidentemente, é o espaço público e, desnecessário explicar, o lugar simbólico do acontecimento, do protesto, do gesto paradigmático” (Sousa Júnior 1993).
La propuesta de Sassen (2003), aunque de forma no intencionada, dialoga con la doctrina jurídica del Derecho desde la Calle surgida en Brasil a partir de los años 1980. Está conexión es visible cuando concebimos que existe un contrato social invisible entre las personas inmigrantes y la comunidad autóctona, que puede ser fuente de derechos de ciudadanía no reconocidos por el Estado en sus esferas jurídicas. El Derecho desde la Calle nace de la trama corporal (Esguerra Muelle 2021) que atraviesa la experiencia vivida de las poblaciones inmigrantes, moldeando sus cuerpos, afectos y redes vitales en el país de destino. Para Sassen (2003), “la ciudad global se reconfigura como un espacio en parte desnacionalizado que permite reinventar parcialmente la ciudadanía” (109), por donde circula un número ilimitado de sujetos que habitan entre las tres posiciones dominantes de ‘el sujeto-ciudadano, el extranjero y el sujeto racializado’” (109). En este contexto, Sassen (2003) diferencia la ciudadanía desnacionalizada de la ciudadanía postnacional, en la medida que esta última propone un marco de ciudadanía exterior al estado-nación. En la ciudadanía desnacionalizada, “el centro de atención se desliza hacia la transformación de lo nacional, incluyendo también una nueva condición fundacional de la ciudadanía” (127), considerando que la ciudadanía, así como el significado de lo nacional, es una institución cambiante, capaz de expandirse y flexibilizarse.
Nas conclusões Patrícia fixa seu pressuposto (p. 276-281), expresso na Tese em português escorreito, extrema cortesia que me devota, afirmando que “através das experiências de ativismo retratadas nos documentários analisados, mostra-se que as cidadãs imigrantes exercem um “Direito Achado na Rua” (Sousa Júnior 1993; Sousa Júnior 2012) que desestabiliza as fronteiras políticas e o próprio conceito moderno de cidadania, que se baseia no pertencimento ao Estado-nação”.
Com efeito, caracterizado o espaço e designados os sujeitos, do que se trata é catalogar os achados, as categorias semantizadas e significadas na discursividade instituinte das subjetividades das mulheres imigrantes para integrar o rol numca plenamente quantificável mas sempre expansível, já que os direitos não são quatidades, estocáveis em almoxarifados normativos, mas relações, sem limite, salvo o vislumbrado a cada etapa utópica de emancipação humanizadora, prestes a ultrapassagem no percurso histórico.
São esses direitos de uma cidadania planetária distentida que vão se configurar os projetos de vida, reconhecidos pelas cortes internacionais de direitos humanos (Sentença de 19 de novembro de 1999, Caso Villagrán Morales y Otros – Caso de los Niños de la Calle, voto de Antonio Augusto Cançado Trindade: el proyeto de vida se encuentra vinculado a la libertad, como derecho de cada persona a elegir su próprio destino… El proyecto de vida envolve plenamente el ideal de la Decarción Americana de los Derechos y Deberes del Hombre de 1948 de exaltar el espíritu como finalidade suprema y categoria máxima de la existência humana.
É o direito à consulta livre e informada prevista no Convênio 169 da OIT – Organização Internacional do Trabalho, em relação ao reconhecimento originais dos povos indígenas, tribais e originários, em relação à salvaguarda de seus usos sociais e modos de existir anteriores ao direito estatal positivado, permitindo a afirmação de identidades coletivas que demarcam as lutas atuais do povos indígenas em disputa sobre juricidades.
São os direitos da natureza, a pacha mama que levaram à classificação de um novo constitucionalismo latino-americano, constitucionalismo ecológico, constitucionalismo de transformação, constitucionalismo achado na rua.
É a semantização de categorias de luta por terra e território, descriminalizando o esbulho inscrito no conceito de invasão dos códigos penais de proteção da propriedade privada, para politizar com a categoria ocupação, que se define pelo cumprimento da função social da propriedade e de reconhecimento que o social realiza a promessa da constituição da reforma agrária como está na agenda das lutas de camponeses na sua articulação global conduzida pela via campesina.
Conforme promete Patrícia: no futuro, continuarei este processo investigativo centrado nas dinâmicas subalternizantes e racializantes que têm efeitos concretos nas vivências quotidianas das mulheres imigrantes, limitando as formas como são recebidas, vistas, representadas e localizadas na sociedade espanhola, mantendo sempre o objetivo de verificar as melhores maneiras de promover o seu desmantelamento.
Espero que essa agenda inclua, com os pressupostos lançados na tese, organizar o catálogo, os novos direitos, as novas formas de cidadania, insurgentes e instituintes, inscritas pelos movimentos que as representam, no rol nunca completo de direitos que emancipam.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
informais por grupos de baixa renda no Distrito Federal e os obstáculos para a sua regularização
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
Jana Louise Pereira Carrilho. Ocupações informais por grupos de baixa renda no Distrito Federal e os obstáculos para a sua regularização: o caso da Cidade Estrutural – DF. Monografia apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB). Brasília, 2023.
Sob a coordenação da Orientadora professora Talita Tatiana Dias Rampin e com a participação de minha ex-orientanda a Doutora Ísis Dantas Menezes Zornoff Táboas tive o ensejo de participar da banca examinadora da bem elaborada monografia de Jana Louise Pereira Carrilho, requisito para a obtenção de seu grau de bacharel em Direito.
O escopo do trabalho expresso no resumo formal, alude a pesquisa que:
trata sobre ocupações irregulares e o tratamento dispensado pelo Estado para a sua desmobilização, a partir de uma pesquisa bibliográfica e normativa. Mais especificamente, o texto trata do Caso da Cidade Estrutural que surgiu como uma ocupação de famílias de catadores de lixo, às margens da Via Estrutural, em Brasília, na década de 1960. Na década de 1990 a ocupação experienciou um grande crescimento, o que ensejou uma campanha prolongada do poder público para retirar as famílias. O trabalho então busca investigar e analisar as políticas de Estado mobilizadas para negar a efetividade ao direito à moradia, garantida constitucionalmente. Isso passa por um movimento de transformação da moradia em um ativo financeiro e o Estado acolhe essa lógica. Consideradas as ambiguidades entre o discurso e a prática do Estado em relação à impossibilidade de reconhecimento de ocupações populares em sua área territorial mais valorizada, conclui-se que, mesmo em ocupações em terras públicas, o Estado age como um agente privado, no interesse de promover a especulação imobiliária e de reproduzir privilégios às classes de renda alta. Em contrapartida, demandatários de políticas de direito à moradia se organizam em movimentos populares revelando um sujeito coletivo de direitos, que se impõe contra a realização do direito capturado por interesses privados, alheios ao social.
Uma mirada ao sumário já antecipa uma peculiaridade no trabalho, apontando para o que Fábio Sá e Silva em seu artigo Vetores, Desafios e Apostas Possíveis na Pesquisa Empírica em Direito no Brasil, caracteriza como uma nova perspectiva, incentivada pelas diretrizes curriculares da reforma de 1996, forte em orientar o conhecimento jurídico para as práticas sociais que estabelecem a tensão entre o instituinte e o instituído – na medida em que entende o direito como o produto das práticas de movimentos sociais e nas tensões que estas estabelecem com a ordem normativa estatal, vale dizer, aproximar esse conhecimento da realidade social a que ele se dirige (VETORES, DESAFIOS E APOSTAS POSSÍVEIS NA PESQUISA EMPÍRICA EM DIREITO NO BRASIL. Revista de Estudos Empíricos em Direito, vol. 3, n. 1, jan. 2016, p. 24-53).
Referindo-me aos estudos de Fábio, agora a partir de um outro trabalho do diligente professor de Oklahoma (ENSINO JURÍDICO. A Descoberta de Novos Saberes para a Democratização do Direitoe da Sociedade, de Fábio Costa Morais de Sá e Silva. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2007), sua dissertação de mestrado que me coube orientar, na UnB, anoto que, conquanto articule sua leitura pelo triplo enlace epistemológico (esgotamento do positivismo jurídico como conforto racional, alcance do pluralismo jurídico enquanto categoria de análise), metodológico (pesquisa-ação) e político (teorias de sociedade e fundamentos éticos enquanto base para estabelecer modos de determinação do jurídico), Fábio e dos poucos empiricistas (law in action),embora ele não seja de modo algum rotulável nessa designação, conforme se vê já no resumo de seu artigo (Eventual interesse em celebrar ou promover essa condição não deve ocultar os obstáculos históricos e estruturais contra os quais ela foi erigida, tampouco arrefecer o exercício da nossa consciência crítica sobre os desafios com os quais a PED se defronta, p. 24) que escapam a auto-contenção das fronteiras que o odo de conhecer sociológico impõe ao campo. Com efeito, não se deixa enredar no limite de obejtos empíricos possíveis de descrição segura (Engels: a descrição verdadeira do objeto é, simultaneamente, a sua explicaçã), para aceitar os riscos da cognição de objetos fluidos reivindicados pela hipótese do pluralismo jurídico. Para Fábio, como em Lyra Filho, o Direito é, enquanto vai sendo e o desafio é designá-lo, ontologicamente, no movimento de sua contínua transição (cf. meu Lido para Você sobre esses textos em http://estadodedireito.com.br/a-descoberta-de-novos-saberes-para-a-democratizacao-do-direito-e-da-sociedade/).
INTRODUÇÃO
CAPÍTULO 1 – A ESTRUTURAL
1.1. O surgimento e o crescimento da Vila Estrutural
1.2. A luta pela regularização e as tentativas de remoção
CAPÍTULO 2 – O DIREITO À MORADIA DIGNA, A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA COMO INSTRUMENTO E AS POLÍTICAS DE ESTADO PELA (NÃO) CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO
2.1. A moradia entre o direito e a mercadoria
2.1.1. O direito à moradia, a função social da propriedade e a regularização fundiária de interesse social
2.1.2. As políticas Estatais para a habitação popular
2.2. O papel do Governo do Distrito Federal na negativa do direito à moradia à população marginalizada
2.2.1. A Concepção de Brasília e a ocupação do Distrito Federal
2.2.2. A titularidade pública das terras e o discurso de preservação do projeto urbanístico do plano piloto de Brasília
2.2.3. A mobilização seletiva do discurso sobre a questão ambiental no Distrito Federal
CAPÍTULO 3 – A LUTA PELA MORADIA E O PAPEL DA SOCIEDADE ORGANIZADA
CONCLUSÕES
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
De resto, conforme a graduanda promete, assim como está posto na Introdução, que expõe os elementos da monografia, “o trabalho se propõe a analisar o tema do direito à moradia e a forma como o Estado, mais precisamente o Distrito Federal, tratou e trata as ocupações informais que tomam forma na Capital”:
Para isso, optou-se por se promover um estudo de caso, trazendo o debate da ocupação da Via Estrutural em Brasília, mais tarde chamada cidade Estrutural, cuja história foi marcada pela resistência dos moradores diante de fortes e insistentes investidas do poder público para eliminar a ocupação, que perduraram por décadas.
A escolha do tema encontra razão na perenidade do problema da moradia. Ao longo dos anos, diversas foram as políticas públicas que se afirmaram voltadas à habitação popular, ainda assim, o déficit de moradias no Brasil segue altíssimo. No entanto, levanta-se que dificilmente essas políticas de fato se voltaram para a parcela da população que delas necessitam, uma vez que têm privilegiado o acesso à moradia própria por meio de financiamentos.
Enquanto isso, sem outras alternativas, muitas famílias empobrecidas precisam se habitar em moradias precárias, em ocupações também precárias, já que é preciso se estabelecer em algum lugar. Sem seus direitos garantidos, ainda assim, essas pessoas são lidas como em estado de ilegalidade.
A metodologia elegida para o trabalho se volta à pesquisa bibliográfica e à análise normativa de regras voltadas ao direito à moradia e às possibilidades de regularização de ocupações. Como marco teórico para a questão do embate entre moradia e propriedade privada, utiliza-se a noção de financeirização da moradia e de transformação da moradia em mercadoria a partir da leitura de Raquel Rolnik e Ermínia Maricato.
Quanto à teoria do direito e do direito à moradia, em particular, utiliza-se o marco teórico do Direito Achado na Rua, com expoentes em autores como José Geraldo de Sousa Junior e Roberto Lyra Filho. Assim, parte-se a existência de uma situação de pluralismo jurídico, em que os sujeitos, por meio da ação política e coletiva, podem se contrapor ao direito posto para reivindicar um outro direito, justo, em relação a suas demandas e necessidades.
Nessa mesma chave conceitual, utiliza-se a categoria do sujeito coletivo de direitos para se analisar as organizações populares que nascem da luta pela moradia.
No primeiro capítulo deste trabalho, é descrita a história da ocupação e de crescimento da Vila Estrutural, tratando de introduzir, ainda, outros elementos, importantes para a compreensão das particularidades da ocupação do Estrutural, bem como suas similaridades com outras nascidas em condições parecidas.
No segundo capítulo trata-se do tema do direito à moradia em face das forças pela mercantilização da terra e da sua relação com a ocupação irregular de áreas públicas. Além disso, enfrenta a questão relacionada aos empecilhos à regularização de ocupações informais, no que se refere às políticas de Estado.
Já no terceiro e último capítulo enquadra-se a questão da luta por moradia como uma luta construída coletivamente, produzida pelos sujeitos constituídos também na prática coletiva, como forma de darem voz a suas reivindicações.
Recebo com satisfação a escolha empírica de Jana, associada a melhor linha de estudos de interpretação da história social de Brasília, em relevo o grupo de estudos urbanos e da Coleção Brasília, coordenados pelo professor Aldo Paviani, da UnB. Jana traz à exame a formação e as vicissitudes da Vila Estrutural, configurada na sua descrição e inserida na discursividade que disputa a narrativa e o discurso de apropriação da cidade e de Brasília, como concepção. Uma experiência que ela aprendeu a qualificar, no ensino, atuando como monitora na disciplina que ministro na graduação – Pesquisa Jurídica; e na extensão, no projeto que coordenei por dez anos: AJUP – Assessoria Jurídica Popular Universitária Roberto Lyra Filho, agora orientada por meu colega Antonio Escrivão Filho. Aliás, com colegas que vivenciaram essa experiência Jana é co-autora de texto que a registra – Educação Popular e Práxis Entensionista: a ação da Assessoria Universitária Popular e O Direito Achado na Rua, in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de de et al (orgs) O Direito Achado na Rua vol. 10: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade. Brasília: Editora UnB/Editora da OAB Nacional, 2021, p. 611-626.
De minha parte, conhecendo menos essa experiência, acolhi como muito valiosos os registros de Jana, que pude comparar com meus próprios estudos sobre o direito à moradia e a sua realização em outro experimento social marcante, o de formação da Vila Telebrasília.
Com efeito, no final de 2008, às vésperas do Natal, o governador do Distrito Federal, em cerimônia pública na Vila Telebrasília, outorgou os títulos de propriedade definitivos aos ocupantes históricos do velho acampamento dos tempos da construção de Brasília. Quase cinquenta anos depois de muita luta, o ato representou o momento culminante de uma história de resistência e perseverança de uma comunidade mobilizada pela conquista do direito de morar.
Não é por acaso que à entrada da Vila, localizada ao final da Avenida das Nações, na Asa Sul, à beira de Lago Paranoá e defronte ao setor de embaixadas, se mantenha instalado uma placa com a inscrição singular: “Aqui tem história!”
Não conheço um registro igual de uma comunidade que se reconheça na identidade de seu protagonismo histórico, mas como professor orientador, em projeto de assessoria jurídica universitária desenvolvido pela Faculdade de Direito da UnB, com o apoio da Secretaria de Direitos Humanos (então vinculada ao Ministério da Justiça), acompanhei por vários anos o percurso dessa luta, em suas diferentes fases, boa parte dela documentada em livro de cuja organização participei, juntamente com meu colega professor Alexandre Bernardino Costa (Direito à Memória e à Moradia. Realização de Direitos Humanos pelo Protagonismo Social da Comunidade do Acampamento da Telebrasília, Universidade de Brasília, 1998).
Este livro põe em relevo as circunstâncias complexas de diferentes momentos da manifestação de uma consciência de direitos, afirmada na ação da comunidade, afinal inscrita na formação de uma Associação de Moradores, que soube conduzir a unidade de um movimento social constituído como sujeito coletivo de direito e em condições de realizá-lo. Nesse passo, e de forma nítida, pôde-se constatar claramente a ação da coletividade em sua subjetividade mediadora pronta para abrir, como lembra Marilena Chauí, “o Direito para a História e, nessa ação, para a política transformadora”.
Foi desse modo, e em ações semelhantes nas periferias dos espaços urbanos desde os anos 1970, que movimentos sociais com crescente legitimação forjaram a agenda internacional do direito de morar, inscrevendo-o nas declarações de direitos (conforme a Declaração de Istambul, Habitat II, ou Cúpula das Cidades, 1996), para depois projetá-lo nas legislações de zoneamento urbano e, no caso brasileiro, na Constituição Federal, após 1988, por impulso dos movimentos sociais por moradia (tratei disso num texto de 1982, Fundamentação Teórica do Direito de Moradia, Revista Direito e Avesso, Boletim da Nova Escola Jurídica Brasileira, nº 1).
A luta da comunidade da Vila ganhou adensamento nesse trânsito, primeiro como ação política de movimento, depois como construção social de sentido. Destaca-se aí a vitória obtida com a promulgação da lei distrital 161/91, de autoria do deputado Eurípedes Camargo, inicialmente vetada pelo governador e afinal sancionada com a derrubada do veto, aliás o primeiro veto derrubado na história da Câmara Distrital.
Mas a principal vitória da comunidade deu-se, a meu ver, no campo simbólico. Refiro-me ao enfrentamento da objeção de fixação da Vila, apoiada no discurso do tombamento do Plano Piloto como forma seletiva de apropriação da cidade.
Foi nessa circunstância que a comunidade da Vila reivindicou uma dimensão social para configurar o Plano de Brasília, ao lado das escalas arquitetônica, monumental e bucólica, estabelecendo, para além de sua condição de urbs e de civitas, bela, moderna e funcional, concebida na genialidade do projetista, uma verdadeira polis, construída pelo protagonismo social, inscrito na História, dando a Brasília a dimensão que lhe faltava, a escala humana.
Retomei essa linha de interpretação, ainda com Alexandre Bernardino Costa, conforme o nosso Brasília, urbs, civitas, polis: moradia e dignidade humana, texto que abre como capítulo 1, a Parte 1 – O Direito Achado na Rua e uma Perspectiva Crítica para o Direito Urbanístico, da obra referência adotada por Jana Carrilho para servir de fundamento teórico de seu estudo e repertório para os principais conceitos que adota em sua análise: Introdução crítica ao direito urbanístico [recurso eletrônico] / organizadoras e organizadores, José Geraldo de Sousa Junior… [et al.]. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2019. 496 p. – (Série O Direito Achado na Rua; vol. 9). Formato: PDF. ISBN 978-85-230-0930-4. 1. Direito à cidade. 2. Movimentos sociais. 3. Direito urbanístico. I. Sousa Junior, José Geraldo de (org.). II. Série. CDU 34:711(81). Para aferir, ver meu Lido para Você http://estadodedireito.com.br/introducao-critica-ao-direito-urbanistico/.
Assim que Jana conclui ter a sua pesquisa possibilitado analisar “a forma com que o Estado trata as ocupações irregulares em seu território, em atenção à inserção de movimentos assim na luta pelo direito à moradia, compreendido como uma luta articulada por sujeitos coletivos de direito, que veem ser negada, constantemente a sua cidadania plena, a partir de leis e políticas públicas excludentes e segregacionistas”.
Nesse passo, mostrando “que a luta pelo direito à moradia se encontra inserida em um regime de orientação capitalista, voltado para o lucro bem mais do que para a consecução do bem comum. Esses interesses, por sua vez, são capazes de contaminar o Estado, tornando-o mais um agente na espoliação de bens públicos e na promoção da especulação imobiliária que expulsa a população pobre das regiões centrais”.
Para a Autora, “foi possível perceber que os argumentos levantados pelo Estado para busca pela eliminação de ocupações irregulares como era o caso da Estrutural não correspondem, necessariamente, a uma preocupação com o bem comum ou com o patrimônio público, mas, antes com uma identificação, por parte do Estado, com os interesses do mercado imobiliário. O Estado comporta-se como um agente ativo na perpetuação da especulação imobiliária e, portanto, contra um planejamento urbano inclusivo, que garanta o direito da população à moradia bem como a outros direitos sociais”.
Em ensaio ainda inédito que preparei para o livro em fase de edição: O Direito Achado na Rua. Sujeitos Coletivos de Direito: Só a luta garante os Direitos do Povo!, volume 7 da Coleção Direito Vivo. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2023, resgato o percurso de construção da categoria, num texto de Introdução com o título O Sujeito Coletivo de Direito: uma Categoria Fundante de O Direito Achado na Rua.
Ali considero a categoria “sujeito coletivo de direitos”, mostrando que ela é gerada pela realidade vivenciada pelos movimentos sociais e aprendida pelo Direito Achado na Rua. Sua sintetização teórica pode ser conferida em minha tese, intitulada “Direito como Liberdade: O Direito Achado na Rua. Experiências Populares Emancipatórias de Criação do Direito” sendo, até hoje, uma obra de referência no campo do direito e mobiliza gerações de estudantes, advogadas e advogados populares, membros das carreiras do estado, movimentos sociais, sociedade civil e todas e todos que lutam pela transformação e democratização de nossa realidade.
Assim, é muito pertinente, a conclusão de Jana, com base em sua pesquisa, de que “sujeitos coletivos de direito, conformados por movimentos populares mobilizados pelas lutas da experiência cotidiana partilhada, surgem no contexto da produção do direito em oposição ao direito oficial que, na verdade, lhes nega direitos. Esses sujeitos não se portam como meros objetos da política urbana, mas reivindicam o seu papel na sua produção, de modo a garantir que a cidade atenda aos seus interesses”.
O certo é que, digo no meu ensaio, o País se re-inventa e nesse processo de “rearranjo institucional e fortalecimento de uma agenda coletiva de resistência e luta”, são os movimentos sociais, neles inscritos os sujeitos coletivos de direito também se reorganizam e se atualizam em seu protagonismo, “não porque estavam desorganizados”, afirmam Clarissa Machado de Azevedo Vaz e Renata Carolina Corrêa Vieira (Sujeito Coletivo de Direito e os Novos Movimentos Sociais: a luta por direitos de acesso à terra e território, in Série O Direito Achado na Rua, vol. 10: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade. Brasília: Editora UnB/Editora OAB Nacional, 2021)), mas porque se “reinventam nas formas de protestos, unificam pautas e sujeitos” para construir futuros e organizar legitimamente a liberdade social por meio de suas múltiplas estratégias de emancipação.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Eduardo Xavier Lemos. Direitos Humanos Desde e Para a América Latina: Uma Proposta Crítico Dialética a Partir de O Direito Achado na Rua. Tese em cotutela apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília e ao Programa de Doctorado en Derecho de la Universidad de Sevilla. Brasília, 2023, 436 fls.
Tive a oportunidade de vivenciar a experiência de cotutela (UnB/Universidade de Sevilha e assim dividir a orientação com o professor David Sánchez Rubio (Universidade de Sevilha), e compartilhar a banca examinadora com as professoras e professores Maria José Fariñas-Dulce (Carlos III, Madrid), Vicente Barragan Robles (Universidade de Sevilha), Boaventura de Sousa Santos (CES-Universidade de Coimbra); além de meus colegas da Faculdade de Direito Alexandre Bernardino Costa, Lívia Gimenes Dias da Fonseca e Antonio Sergio Escrivão Filho, estes também membros do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua (Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPQ).
A tese é a expressão de um duplo engajamento, ao mesmo tempo acadêmico e político. Conforme o seu resumo:
Trata-se de uma tese doutoral investigativa de uma teoria crítica dos direitos humanos particularizada na realidade latino-americana, especialmente por meio do estudo da teoria e da práxis do coletivo O Direito Achado na Rua (O DANR). O trabalho foi escrito em um contexto sócio-histórico de autoritarismo no Brasil, permeado pela perseguição de defensores e defensoras de direitos humanos e pelo sufocamento da universidade pública, cujas verbas foram constritas de maneira a constranger o pensamento crítico no país, durante o período também foram perseguidas lideranças acadêmicas e políticas, tensão essa que se reflete na escrita da tese doutoral.A pesquisa utiliza do método pós-abissal, dentro de uma proposta das Epistemologias do Sul, embasada na sociologia das ausências e na sociologia das emergências de um coletivo que nasce e desenvolve-se com a proposta de oferecer uma assessoria, denominada Assessoria Jurídica Popular, aos movimentos sociais que lutam contra o colonialismo, o capitalismo e o patriarcado. Foram utilizadas bricolagens complexas, dentre elas, a inserção da observação do pesquisador, por meio de sua escuta efetiva, visão aprofundada sobre o tema e uma sensibilidade científica, aplicada especialmente aos saberes orais, conjugada ao estudo bibliográfico e documental. Trata-se de um estudo crítico-dialético, ora marxiano, ora pós-marxista, dividido em três partes. A primeira delas procura contextualizar o nascimento do coletivo O Direito Achado na Rua, que se deu na capital brasileira e projetou-se-como linha de pesquisa na Universidade de Brasília (UnB). A partir da Universidade Necessária proposta por Darcy Ribeiro, que se ocupa das múltiplas culturas do universo latino-americano, o presente estudo também procura demonstrar como se deu a rearticulação da comunidade universitária em meio à intervenção da ditadura militar na UnB, bem como verificar a participação ativa da comunidade acadêmica no processo de retomada democrática do país. A segunda parte traz um aprofundamento das teorias e da práxis do coletivo O Direito Achado na Rua, de modo a compreender sua densidade científica e a complexidade de sua atuação. Ainda nesse momento, é realizado um complexo estudo do humanismo dialético de Roberto Lyra Filho, que é a teoria base do coletivo estudado. Na terceira parte do trabalho, propõe-se uma reflexão sobre as teorias críticas dos direitos humanos, quando se projeta uma teoria humanista crítica contextualizada na experiência latino-americana, tomando, como ponto de partida, a experiência teórico-prática do coletivo O DANR. Assim, foi desenvolvida aqui uma revisão bibliográfica de teorias críticas do campo, mas, principalmente, o estudo e a observação da prática do coletivo, de forma a tornarem-se premissas para uma teoria crítica de direitos humanos desde a perspectiva latino-americana.
Todo o rico debate pode ser diretamente acompanhado pelo registro youtube no canal de O Direito Achado na Rua (www.odireitoachadonarua.blogspot.com), conforme o link https://www.youtube.com/watch?v=i3q9-rlXZxQ, num registro valioso das quatro horas e meia de apresentação, arguição, defesa e deliberação, ao final, com a aprovação do trabalho.
Reproduzo o Sumário da Tese, ao mesmo tempo descritivo e sistemático. Ainda que a banca tenha mostrado alguma crítica ao que poderia parecer um excesso esquematizante, eu próprio como Orientador gostei do esboço visualizador da proposta, sugerindo no que foi aceito até pelo Autor, a divisão em duas partes do capítulo III, com a organização de um quarto capítulo, a partir do ítem 3.6.2. A Cabeça Pensa onde os Pés Pisam: práxis-teoria e práxis. A proposta pedagógica humanista de O Direito Achado na Rua. O acompanhamento docente com José Geraldo de Sousa Junior, renumerando-se todo o conteúdo da tese.
Seguindo o original, depois da Introdução, a Tese tem três capítulos, mais as Considerações Finais e as circunstanciadas Referências Bibliográficas, em si um componente importante para os objetivos da proposta (fortuna crítica), ainda assim, com algumas omissões (em todo caso anotadas no correr do texto ou em seu roda-pé), a corrigir até o depósito ou a preparação do material para a necessária publicação.
CAPÍTULO I. Alicerces da Nova Escola Jurídica e do Direito Achado na Rua: Brasília, a nova capital federal, o projeto da Universidade de Brasília, ditadura e resistência académica, a luta pela democracia
1.1.Brasília, urbs, civitas e polis: antecedentes históricos que marcam a formação da Nova Escola Jurídica Brasileira
1.1.1. A Capital Modernista: urbs e civitas1.1.2. O sonho interrompido, os trabalhadores candangos, suas esperanças e lutas
1.1.3. Brasília, movimentos sociais e a polis
1.2.Universidade Necessária, Universidade Interrompida, Universidade Emancipatória: antecedentes históricos que marcam a formação da Nova Escola Jurídica Brasileira
1.2.1. A Universidade Necessária: a fundação da Universidade de Brasília1.
2.2. A Universidade Interrompida
1.2.3. A redemocratização da Universidade de Brasília: o reitorado de Cristovam Buarque (1985 a 1989
1.2.4. A Universidade Emancipatória: a Refundação da UnB – Reitorado de José Geraldo de Sousa Junior 2008-2012
CAPÍTULO II. Da Nova Escola Jurídica Brasileira ao Direito Achado na Rua
1. A Nova Escola Jurídica Brasileira (NAIR)
2.1.1. A Origem da Nova Escola Jurídica Brasileira
2.1.2. A Nova Escola Jurídica Brasileira: motivação e projeto
2.2. O Direito Achado na Rua, concepção
2.3. O Direito Achado na Rua e a Teoria Crítica do Direito
2.3.1. O Direito Achado na Rua e suas bases no Movimento Crítico do Direito
2.3.2. Teologia e Filosofia da Libertação e suas influências na formação do coletivo O DANR
2.3.3. O Pensamento Jurídico Crítico Sul Americano
2.3.4. A Concepção Crítica de O Direito Achado na Rua
2.3.5 O Pluralismo Jurídico de O Direito Achado na Rua
2.4. Fundamentos Teóricos e práticos de O Direito Achado na Rua: A Teoria Lyriana
2.4.1. Roberto Lyra Filho, sua produção e legado
2.4.2. Humanismo Dialético: o projeto de Roberto Lyra Filho
2.4.2 a) A relação de Lyra Filho com a obra de Karl Marx e Friedrich Engels
2.4.2 b) O Motor Dialético de Hegel
2.4.2 c) O Direito Projetado na História – Direito como Processo
2.4.2 d) Uma Filosofia Jurídica baseada numa Sociologia Jurídica –- A crítica da crítica crítica
2.4.2 e) O Resgate da Dignidade Política do Direito e o Socialismo Democrático – A Utopia Concreta de Lyra Filho
2.4.2 f) O Pluralismo Jurídico Lyriano: crítica ao positivismo e ao naturalismo
2.4.2 g) Direitos Humanos como síntese dialética: Humanismo Dialético e o Direito como
liberdade
2.5. A Fortuna Crítica de O Direito Achado na Rua
2.5.1. A Cabeça Pensa onde os Pés Pisam – a Pedagogia de o Direito Achado na Rua
CAPÍTULO III. Direitos Humanos em e para América Latina: uma proposta crítico-dialética a partir de O Direito Achado na Rua
3.1. Fundamentos dos direitos humanos e as ideologias jurídicas
3.1.1. O fundamento sócio-histórico: dialética, direitos humanos e lutas populares3.2. Uma Proposta Crítica, Intercultural, Complexa, Dialética e Plural dos direitos humanos
3.2.1 A importância de uma perspectiva crítica em direitos humanos
3.2.2. Interculturalidade e direitos humanos, ruptura com uma percepção universal e abstrata
3.2.3. Porque uma visão Complexa, Dialética e Plural dos direitos humanos
3.3. A necessidade de situar direitos humanos desde América Latina
3.3.1 Premissas para abordar direitos humanos desde América Latina
3.3.2. Revisitando pressupostos: dialogar direitos humanos desde uma perspectiva periférica e marginal e os conhecimentos achados na rua
3.3.2. As Epistemologias do Sul: Resgates históricos, lutas e insurgências, conhecimento do lado de cá do oceano e intelectualidade de retaguarda
3.3.2 a) As Epistemologias do Sul e o Pensamento Pós-Abissal3.3.2 b) Descolonizar, Despatriarcalizar, Descapitalizar
3.3.2 c) Os conhecimentos Feministas, Sororidade e Teoria Intersecional3.3.2 d) Não basta não ser racista, é preciso ser antirracista
3.3.2 e) O conhecimento dos Povos originários, tradicionais e dos movimentos sociais
3.3.2 f) Promoção, inclusão e respeito aos direitos e às lutas da comunidade LGTBQIA+
3.3.2 g) Práticas Includentes: anticapacistimo, direito à inclusão, respeito a diferença, acessibilidade e a linguagem inclusiva
3.4 Uma proposta pluriversal dos direitos humanos: direitos humanos e pensamento abissal
3.5 Reconstruindo a Torre de Babel: a latinidade de Gallardo e o diálogo com a proposta instituinte de David Sànchez Rubio
3.6. Direitos Humanos e o Direito Achado na Rua: práxis-teoria e práxis
3.6.1. Proposta Metodológica Pós-Abissal: a inserção do pesquisador no coletivo O Direito Achado na Rua. Experenciar direitos humanos em Períodos Autoritários
3.6.2. A Cabeça Pensa onde os Pés Pisam: práxis-teoria e práxis. A proposta pedagógica humanista de O Direito Achado na Rua. O acompanhamento docente com José Geraldo de Sousa Junior
3.6.2 a) Atividades Pedagógicas
3.6.2 b) O Pense Ligeiro
3.6.2 c) A Cabeça Pensa onde os Pés Pisam
3.6.3. A Estrutura de O Direito Achado na Rua, a organicidade com os Movimentos Sociais, as linhas de investigação e a construção do seminário comemorativo dos 30 anos do coletivo O Direito Achado na Rua
3.6.4. Empirismo e campo em tempos autoritários: inserções realizadas ao longo da tese doutoral e o comprometimento de O Direito Achado na Rua com a Luta Democrática em tempos autoritários. A reconquista da Democracia e a contribuição de O Direito Achado na Rua
3.6.5. A submersão práxis-teoria e práxis, construção da intelectualidade orgânica: o aprofundamento da experiência no período da tese doutoral
3.6.6. Uma Teoria Crítica dos Direitos humanos com base na experiência teórica e prática do coletivo O Direito Achado na
3.7. Desconstruindo Muros, Reconstruindo Mundos: direitos humanos como práxis transformativa do mundo
3.7.1. Desconstruindo Muros: discurso ideológico e os direitos humanos. Os três mitos
3.7.2. Processos de Luta e os direitos humanos: compromisso a práxis, movimentos sociais, sociedade civil organizada e a construção de projetos coletivos de vida éticocivilizatório
3.7.4. Necessárias Utopias: direitos humanos como projeto (concreto) de sociedade, existir, experenciar, esperançar e transformar.
A tese de Eduardo, na minha opinião, é o quarto grande esforço de sistematização e de atualização da fortuna crítica da proposta emancipatória do jurídico depois que Roberto Lyra Filho a formulou em Para um Direito sem Dogma e que culmina com a consolidação, no seu estágio atual, do projeto, movimento, grupo de pesquisa, concepção e prática de O Direito Achado na Rua.
Eu próprio me incluo nesse esforço e a própria tese registra, a partir do Prefácio de Roberto Lyra Filho em meu Para uma Crítica da Eficácia do Direito (Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1984), a partir de minha dissertação de 1981, que o mesmo Lyra Filho considera a melhor exposição e mais precisa interpretação de sua contribuição para a formação da Nova Escola Jurídica Brasileira – NAIR, à luz de sua concepção dialética do Direito, e colecionada em sua obra editada até 1983 quando publicara O Que é Direito (São Paulo: Editora Brasiliense, 1982) e os três volumes publicados da Revista Direito & Avesso – Boletim da Nova Escola Jurídica Brasileira (Brasília: Editora Nair, 1982, nºs 1 e 2 e 1983, nº 3).
Considero que o Seminário Internacional O Direito como Liberdade: 30 anos do projeto O Direito Achado na Rua (Brasília, UnB, 2019), pode ser considerado o segundo esforço. O Direito Achado na Rua – volume 10. Introdução Crítica ao Direito como Liberdade. Organizadores: José Geraldo de Sousa Junior, Alexandre Bernardino Costa, Nair Heloisa Bicalho de Sousa, Antonio Sergio Escrivão Filho, Adriana Andrade Miranda, Adriana Nogueira Vieira Lima, Clarissa Machado de Azevedo Vaz, Eduardo Xavier Lemos, Ísis Dantas Menezes Zornoff Táboas, Renata Carolina Corrêa Vieira, Vanessa Negrini. Brasília: Editora UnB/Editora OAB Nacional, 2021, 728 p. Link para Acesso Livre na Plataforma de Livros Digitais da Editora da UnB: https://livros.unb.br/index.php/portal/catalog/view/116/106/467-1, é o melhor repositório desse estágio.
A síntese dessa edição se faz no sentido de que o direito é a ‘expressão de uma legítima organização social da liberdade’ e “constitui o marco conceitual original do projeto denominado O Direito Achado na Rua. Nascido há 30 anos em meio à resistente beleza do Cerrado, O Direito Achado na Rua floresce no ambiente histórico dos trabalhos da Assembleia Constituinte, para constituir-se em um projeto de formulação de uma nova concepção de direito, em uma nova sociedade que se anunciava mais livre, justa e solidária, e que por seu turno apresenta hoje dilemas e desafios que nos convocam à reflexão-ação”.
Na Apresentação da obra, dizem as suas organizadoras e os seus organizadores “que, assim, ao impulso desse percurso, foi que construímos o Seminário “30 Anos de O Direito Achado na Rua: O Direito como Liberdade”, que se constituiu como um espaço de encontro e diálogo científico, institucional, social e cultural, proporcionando a troca de experiências acadêmicas e de assessorias jurídicas universitárias, a povos indígenas e comunidades tradicionais e advocacia popular em diversos campos temáticos e institucionais. O evento consagrou-se como um espaço para debater temas como o combate ao racismo, à violência contra a mulher e à população LGBT e projeção de conceitos e práticas aptas ao reconhecimento das diversidades raciais, econômicas, sociais, étnicas, culturais, de gênero e sexualidades, em suas diferentes formulações semânticas sobre o direito em face dos espaços sociais, autoridades estatais e instituições judiciais”(http://estadodedireito.com.br/o-direito-achado-na-rua-volume-10-introducao-critica-ao-direito-como-liberdade/).
Já em v.6 n. 2 (2022): Revista Direito. UnB |Maio – Agosto, 2022, V. 06, N. 2 Publicado: 2022-08-31. O Direito Achado na Rua. Contribuições para a Teoria Crítica do Direito. Edição completa PDF (https://periodicos.unb.br/index.php/revistadedireitounb/issue/view/2503), edição especial da Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UnB (http://estadodedireito.com.br/30425-2/), vamos encontrar uma convocatória que acaba tendo esse alcance de balanço e de contribuição:
No marco comemorativo de seus trinta anos de existência, o Direito Achado na Rua recebe, agora, uma edição celebratória da Revista de Direito da Universidade de Brasília (UnB) que homenageia aquele que lhe dedicou sua vida: o professor José Geraldo de Sousa Junior”. (Costa; Diehl; Fonseca; Lima; Miranda; Rampin).
A epígrafe é extraída do prefácio desse número especial da Revista de Direito, editada pelo Programa de Pós-Graduação em Direito, da Universidade de Brasília. O prefácio é assinado pelos professores Adriana Andrade Miranda, Adriana Nogueira Vieira Lima, Alexandre Bernardino Costa, Diego Augusto Diehl, Lívia Gimenes Dias da Fonseca e Talita Rampin, respectivamente, Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania UnB, professora do curso de Direito da Universidade Federal de Goiás (UFG), Pós-Doutora em Direito pela UnB, professora do curso de Direito na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), Professor Associado da Faculdade de Direito e da Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania da UnB. Co-líder do Grupo de Pesquisa: O Direito Achado na Rua, Doutor em Direito pela UnB, Mestre em Direito pela UFPA e Bacharel em Direito pela UFPR. Professor adjunto do Curso de Direito da Universidade Federal de Jataí. Professor efetivo do Programa de Pós-Graduação em Direito Agrário da Universidade Federal de Goiás. Secretário executivo do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais, Professora adjunta da Faculdade de Direito da UnB, integrante do Grupo de pesquisa O Direito achado na rua e Professora Adjunta da Faculdade de Direito da UnB, integrante do Grupo de pesquisa O Direito achado na rua. Todos e todas vinculados ao Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua (Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPQ).
Do prefácio da edição, retiro extrato que deixa mais nítida essa perspectiva de balanço e de contribuição, reforçando o sentido de fortuna crítica:
Os trabalhos da edição analisam as contribuições de O Direito Achado na Rua para a Teoria Crítica do Direito, a partir dos estudos desenvolvidos por José Geraldo de Sousa Junior e tendo como referência o repertório de textos apresentados para a elaboração do Dossiê Especial na Revista de Direito da Universidade de Brasília com foco nas temáticas relacionadas à Educação em Direitos Humanos, Novos Saberes e Práticas Pedagógicas Emancipatórias; Acesso, Democratização e Controle Social da Justiça, Assessoria Jurídica e Advocacia Popular; Constitucionalismo Achado na Rua; Direito à Cidade; Direito, Raça, Gênero, Classe e Diversidade; Direitos Humanos; Movimentos Sociais e Sujeitos Coletivos de Direito; O Direito Achado na Rua: concepção e prática; Trabalhadores, Justiça e Cidadania”.
O Direito Achado na Rua tem funcionado como uma importante plataforma para o desenvolvimento e a difusão de estudos no campo das teorias críticas do direito. Desde a sua fundação, com sua institucionalização como grupo de pesquisa no Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq), na década de 1980, tem acolhido e formato dezenas de pesquisadoras e pesquisadores atuantes nas mais diversas áreas temáticas e com engajamento nas lutas populares que são travadas para denunciar e fazer cessar violências, violações e opressões, em suas variadas dimensões. Nesse movimento, constitui, ele próprio, um instrumento de transformação social necessário à experiência de disputa e construção da experiência democrática brasileira.
No marco comemorativo de seus trinta anos de existência, O Direito Achado na Rua recebe, agora, uma edição celebratória da Revista de Direito da Universidade de Brasília (UnB) que homenageia aquele que lhe dedicou sua vida: o professor José Geraldo de Sousa Junior.
Com Eduardo Lemos há um movimento espiral ao estilo hegeliano que avança carregando a superação das desses esforços antecedentes que movem seu próprio registro, conforme a metáfora que ele deu ênfase em sua exposição: a de ergue-se mais acima e mais consistentemente, com discernimento amplificado, porque sobre um acumulado qualificado por sua própria interpretação.
Essa interpretação cuidou da resenha das posições desenvolvidas desde a institucionalização da NAIR – Nova Escola Jurídica Brasileira, do processo desideologizante antidogmático e metafísico realizado por Roberto Lyra Filho, com base em seu empreendimento sociológico relativamente a considerar a hipótese do pluralismo jurídico e filosófico, no sentido de pensar (com práxis) a emancipação na direção consciente de um humanismo dialético. Assim, a passagem do pensar que direito compreende a emancipação (libertação), em que projeto de sociedade (socialista democrática), por isso, em Lyra Filho, conforme sua proposta utópica, não realizada por sua morte prematura, a consumar-se com Direito Achado na Rua.
Logo, na sequência desse procedimento, em diálogo com seus fundamentos críticos (epistemológicos, filosóficos, sociológicos, teológicos), e com suas leituras de referência – Hegel, Marx, Ernst Bloch, Dusserl, Marilena Chauí, Leonardo e Clodovis Boff – poder chegar, ao que muito bem dizia seu avalizador de leituras dialéticas e formidável interlocutor, o jesuíta Henrique Cláudio de Lima Vaz, constatando que “o mundo ético não é uma dádiva da natureza; é uma dura conquista da civilização; como também tem sido uma conquista longa e difícil o estabelecimento e a vigência do Estado democrático de Direito”. Assim como Lyra Filho, o padre Vaz considera, dialeticamente, tratar-se, “de conquistas permanentes, sempre recomeçadas e sempre ameaçadas pela queda no amoralismo, no despotismo e na anomia”. Mas, não obstante, um processo que não se realiza em recintos austeros das institucionalidades, ao contrário, um “problema social das ruas e dos campos”. Ali, onde se “travam, a cada geração, as batalhas decisivas dessas lutas; e afinal, onde as sociedades são chamadas a optar em face da alternativa onde se joga o seu destino: [de enveredarem pelos obscuros caminhos da horda que não conhece o Direito] ou a de serem sociedades da liberdade” (Pe. Henrique C. de Lima Vaz, SJ. Ética e Justiça: Filosofia do Agir Humano. Pe. José Ernanne Pinheiro; José Geraldo de Sousa Junior; Melillo Dinis; Plínio de Arruda Sampaio (orgs). Ética, Justiça e Direito. Reflexões sobre a reforma do judiciário. Petrópolis: Editora Vozes, 1ª edição, 1996).
Com efeito, no debate com Roberto Lyra Filho, já referido, enquanto esse autor procurava imprimir à sua reflexão uma perspectiva dialética que permitisse romper a aporia antinômica dos pares ideológicos – jusnaturalismo e juspositivismo –, foi Marilena Chauí, certamente, a referência filosófica para a superação do obstáculo epistemológico:
Penso que o livro de Roberto Lyra Filho trabalha no sentido de superar uma antinomia paralisante: a oposição abstrata entre o positivismo jurídico e o idealismo jusnaturalista”, afirmando que: “Se o Direito diz respeito à liberdade garantida e confirmada pela lei justa, não há como esquivar-se às questões sociais e políticas onde, entre lutas e concórdias, os homens formulam concretamente as condições nas quais o Direito, como expressão histórica do justo, pode ou não realizar-se (CHAUÍ, Marilena, Roberto Lyra Filho ou da Dignidade Política do Direito”. Revista Direito e Avesso, nº 2, Brasília, 1982. Também publicado em Desordem e Processo – Estudos Jurídicos em Homenagem a Roberto Lyra Filho, Sérgio Antônio Fabris Editor, Porto Alegre, 1986).
A alta densidade do pequeno estudo de Marilena Chauí contido nesse texto influenciou decisivamente o pensamento jurídico crítico brasileiro, constitutivo do que já foi denominado “Nova Escola Jurídica Brasileira”, sendo significativo recolher, para efeito desta interlocução, um aspecto por ela levantado para a compreensão da gênese da própria justiça e do direito em sua apreensão dialética, vale dizer, ou como ela própria diz, a apreensão do direito no campo das relações sociais e políticas entre classes, grupos e Estados diferentes permite melhor perceber as contradições entre as leis e a justiça e abrir a consciência tanto quanto a prática para a superação dessas contradições. Isso significa abrir o Direito para a História e, nessa ação, para a política transformadora.
Neste aspecto, aliás, os trabalhos de Marilena Chauí estabeleceram um norte seguro para a interpretação dessa ação transformadora, conduzida pela mediação do Direito, enquanto processo dentro do processo histórico. Por isso que, ultimamente, problematizando a dramaticidade da conjuntura que quase levou o País ao abismo do fascismo, essa autora esteja insistindo em que pensemos a democracia não como uma forma de governo, mas como um modo de constituir sociedade.
Na tese Eduardo assimila a dialeticidade inscrita nesse processo propriamente histórico, em diálogo com uma de suas referências teóricas presente na Banca:
Pero, además, se trata de un proceso no acabado, sino abierto en su evolución hacia la aparición de nuevos derechos y hacia la reinterpretación y transformación de los existentes. Ahora bien, tras dicho proceso evolutivo o de formación de los derechos humanos, encontramos también una dimensión -parafraseando a Ferrari- «exquisitamente sociojurídica»*, en cuanto se trata de un proceso prelegislativo y de un proceso espontáneo de reivindicación de «derechos» -no reconocidos todavía por el derecho oficial- frente a conflictos sociales o a necesidades humanas. (FARIÑAS DULCE, Maria Jose. 2003, p. 358 [p. 224].
Eduardo, com efeito, traz como singularidade em seu texto, examinar a passagem teórico-política entre a concepção epistemológica inscrita na Nova Escola Jurídica Brasileira – NAIR (Roberto Lyra Filho), para o âmbito da práxis, tornado possível pela concepção e pela prática de O Direito Achado na Rua (Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua; Movimento O Direito Achado na Rua (conforme J.J. Gomes Canotilho), pela mediação crítico-dialética, instituinte de Direitos, conforme formula seu co-orientador David Sanchez Rubio, e também em Alexandre Bernardino Costa, sobretudo em sua concepção de poder constituinte permanente.
Aqui se associa a percepção sociológico-filosófica de Fariñas-Dulce, com o enunciado de Ellacuría, uma indicação forte de Sanchez Rubio:
Se trata, por tanto, de un proceso negativo, crítico, y dialéctico, que busca no quedarse en la negación, sino que avanza hacia una afirmación nunca definitiva, porque mantiene en sí misma, como dinamismo real total más que como dinamismo lógico, el principio de superación. Siempre sigue el elemento de desajuste, injusticia y falsedad, aunque en forma cada vez menos negativa, al menos en los casos de avance real en lo ético personal y en lo político social. Y esta continuidad negativa, acompañada por el deseo general de cambiar y mejorar, mantiene activo el proceso. (ELLACURÍA in SENENT , 2012,. 366)[p. 204].
Tudo isso conduzindo, segundo Eduardo a uma visão complexa, dialética e plural dos direitos humanos – designados no sentido instituinte desde Lyra Filho, Joaquín Herrera Flores, David Sanchez Rubio, assim como em Antonio Escrivão Filho no debate que comigo propõe sobre o tema – que se colocam como síntese da possibilidade humanizadora, não só como expressão conceitual-filosófica, do humanismo dialético que Lyra Filho formula, em sua leitura hegeliano-marxista-sartreana, mas também no processo de luta por reconhecimento de subjetividades coletivas emancipadas tituláveis de direitos, da própria constitutividade material dos sujeitos inscritos nos movimentos que conduzem essas lutas e que realizam politicamente o humano (cf. Hegel, o humano não é um decorrência de sua origem biológica, mas uma experiência na história; não se nasce humano, torna-se humano).
Por isso tem razão Boaventura de Sousa Santos em convocar O Direito Achado na Rua para novas tarefas, para atenção a temas emergentes, paras as travessias que movem as subjetividades, ressignificam os espaços de interação social e criam direitos que são discerníveis nesses processos, de fato achados por meio de novas categorias que as designem os sujeitos em movimento (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al (orgs). O Direito Achado na Rua: questões emergentes, revisitações, travessias. Coleção Direito Vivo, vol. 5. Rio de Janeiro, 2021; CÔRTES, Sara da Nova Quadros. Direito Achado na Rua: por que (ainda) é tão difícil construir uma teoria crítica do direito no Brasil? In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al (orgs). O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade, vol. 10. Brasília: Editora UnB/Editora OAB Nacional, 2021).
E tem mais ainda razão quando se trate de pensar a partir de realidades incompensáveis nos trânsitos de conjunturas. Haveria uma incompatibilidade entre o pensar crítico que funda A Nova Escola Jurídica Brasileira – NAIR e O Direito Achado na Rua, atenta às tensões entre reforma e revolução; democracia e socialismo; dialética e pluriversidade, inscritas em enunciados que possam ter se esgotado ou que não sejam possíveis de assimilação na liquefação dos tempos correntes?
Penso que por mais aberto que uma perspectiva plurivérsica permita para capturar realidades plásticas em trânsito, isso não prescinde de uma aproximação epistemológica de enquadramento dialético. Não foi incompatível lá atrás, na conjuntura do pensar dialético-materialista em face da impotência positivista para compreender o real, com Marx e Engels admitindo a consistência do empirismo-descritivo, necessário à ordenação do caos dos fenômenos, conforme expressamente propõe com seu método em Contribuição à Crítica da Economia Política; e na mesma ordem de reflexão, não se envergonhou o autor de Dialética da Natureza de mostrar confiança também na descrição verdadeira do objeto como valor explicativo, tal como asseverou em seus relatórios sobre habitação e sobre a situação da classe trabalhadora na Inglaterra (Manchester).
O pensar dialético pois, não fecha aberturas plurivérsicas como bem demonstra Ailton Krenak (Futuro Ancestral), ao fazer a crítica à plenipotência partidária e sindical que se realizam por meio da política, insuficiente, a seu ver para aferir as emergências de diferentes humanidades somente acessíveis por meio de novas alianças de afetos (sobre isso conferir o meu http://estadodedireito.com.br/futuro-ancestral/.
O caríssimo Boaventura tem nos ensinado que formas políticas – democracia, socialismo – são modos de experenciar a política, por isso que há múltiplas formas democráticas legítimas e socialismos legítimos se e enquanto democráticos. Assim por exemplo nos demonstra enquanto sujeito histórico o MST – Movimento Social dos Trabalhadores Sem Terra, já designado por Celso Furtado como o mais importante e revolucionário movimento social no mundo, que continua operando a práxis da reforma agrária para criar condições de realizar o socialismo, enquanto distribui cestas básicas para os vulnerabilizados atingidos pela negação de políticas inclusive sanitárias e ocupa a bolsa de valores para lançar ações de suas cooperativas de produção agrícola sustentável e familiar (https://www.youtube.com/watch?v=RxEL1cvFcrg – TV 61 O Direito Achado na Rua: O MST ocupa a Bolsa de Valores: entrevista com Diego Vedovatto).
Não se trata pois, de divergência de posicionamentos. A propósito, não obstante falar-se de uma divergência de posicionamentos, ao menos em conversa entre autores, o que se constata entre intelectuais de retaguarda, como o próprio Boaventura designa, é existir a rigor complementariedade das aproximações. Enfoques acentuados pelas perspectivas dos autores desde as interpelações decorrentes de seus pontos de vista ou da vista a partir dos lugares de observação. Assim, em O Sistema e o Antissistema. Três Ensaios, Três Mundos no Mesmo Mundo. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2021, com as autorias de Boaventura de Sousa Santos, Helena Silvestre e Ailton Krenak.
Se em Boaventura pode-se depreender um binarismo sistema/antissistema presente nas mais diversas disciplinas, das ciências naturais às ciências humanas e sociais, da biologia à física, da epistemologia à psicologia, a racionalidade explicativa da movimentação sistema/antissistema se faz na perspectiva globalizada do mundo (sistema mundo), na dinâmica de expansão do capitalismo em cujo âmbito se formam os impulsos de movimentos e ideologias de direita e de esquerda. Recapitulando as condições temporais e espaciais dessa movimentação, Boaventura expõe a resposta atual de profundo aperfeiçoamento do capitalismo que, com a quarta revolução industrial (inteligência artificial), torna possível desenvolver controles eficazes da população.
Por isso a sua consideração do balanço direita/esquerda porque ele leva a por em causa a questão da democracia e das institucionalidades que nela são geradas assim como nas organicidades que se constituem na sociedade civil, e indicar a necessidade de se fazer a sua defesa (da democracia). Por tudo ver o meu http://estadodedireito.com.br/o-sistema-e-o-antissistema-tres-ensaios-tres-mundos-no-mesmo-mundo/.
Tudo se passa, conclui Eduardo Lemos, no exercitar “o nosso papel, portanto, [que] é lutar, dialogar e aprender com os sujeitos e sujeitas que resistem cotidianamente contra as opressões do colonialismo, do capitalismo e do patriarcado, mas experenciando tais lutas, porque essas sempre serão constitutivas de um pensamento de transformação social; para os coletivos insurgentes”, assim, aliás, indicou Lívia Gimenes da Fonseca de modo a realçar o sentido coletivo da construção que se inscreve no programa-compromisso do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, nos fundamentos teórico-metodológicos da Nova Escola Jurídica Brasileira – NAIR, orientados por O Direito Achado na Rua, sua concepção, seus projetos e sua prática. Uma mirada no apêndice, com o catálogo dessa construção, atesta a fortuna crítica do movimento estudado na Tese.
E ainda assim tendo em conta, conforme nos sugere Boaventura de Sousa Santos, em um de seus mais instigantes textos – Por que pensar-, que “pensar não é tudo”, às vezes é preciso “des-pensar”, “des-aprender”, como mostra a poesia (Manoel de Barros, A didática da invenção in O livro das ignorãças). Em Boaventura “pensar não é tudo, porque além de agir nós temos que sentir, nós temos que criar formas de pensamento que sejam mais acolhedoras às emoções, ao corpo, aos afetos, ao sentimentos. Isso também é uma grande dificuldade para o conhecimento em que fomos treinados. As ações coletivas de transformação social têm essa dupla característica de resistência e de criatividade e quer uma quer outra exige envolvimento emocional, entusiasmo e indignação. O próprio ódio é por vezes necessário, ao mesmo tempo que o amor, e a solidariedade, ou seja, elementos de sensibilidade com os quais a modernidade ocidental sempre se achou muito mal” (https://www.scielo.br/j/ln/a/CLwxcMF6Kq6Rzc9h74xt98t/?lang=pt).
Eduardo, com a metodologia lyriana de ler Marx a partir de seus paralogismos, tal como Roberto Lyra Filho em Karl, meu amigo. Diálogos com Marx sobre o Direito, notadamente no trânsito do invisível para o visível, do ausente para o emergente, do informal para o formal, do plural para o oficial, no relativo ao jurídico – direito e antidireito, direito burguês e direitos dos trabalhadores, privilégios e direitos iguais, se opera logicamente pela mediação dialética, pois só se conhece efetivamente de modo sentipensante, corazonadamente.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
Autodemarcação Territorial Indígena: uma análise da via acionada pelos Munduruku face o abandono das demarcações
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Luís de Camões Lima Boaventura. Autodemarcação Territorial Indígena: uma análise da via acionada pelos Munduruku face o abandono das demarcações. Dissertação de Mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília – UnB, 2023, 78 fls.
Com grande satisfação, tendo acompanhado o percurso de construção da dissertação, compartilhei com as professoras e os professores Talita Tatiana Dias Rampin, Orientadora; Bruna Pinotti Garcia, Membra Externa e Antônio Sérgio Escrivão Filho, Membro Interno; na condição de membro interno ao Programa, a apresentação e a defesa do trabalho de Luís de Camões Lima Boaventura.
De que trata a dissertação diz o seu Resumo:
Fruto de intensa mobilização dos movimentos sociais, a Constituição Federal de 1988 trouxe consigo diversos avanços no que tange ao reconhecimento e garantia dos direitos territoriais dos povos indígenas. No entanto, o que se vem verificando ao longo dos anos subsequentes à promulgação da Carta é um acelerado processo de esvaziamento do projeto constitucional, seja por meio de normas infralegais, seja por meio de interpretação jurisprudencial, as quais vem operando em favor da concentração fundiária privada, ocasionando a espoliação dos povos indígenas. Nessa conjuntura de sucessivas e sistemáticas violações ao direito fundamental dos indígenas aos seus territórios, em que o Estado brasileiro é capturado pelos interesses anti-indígenas, bloqueando as demarcações, eclodem no país manifestações autônomas desses grupos que tornam evidente à sociedade envolvente a essencialidade dos territórios que ocupam. São as autodemarcações, a exemplo da empreendida pelos Munduruku na Terra Indígena Sawré Muybu (Daje Kapap E’Ipi). Apoiando-se neste caso, esta dissertação se propõe a apresentar algumas pistas que apontem para a interpelação do monismo jurídico estatal e a enunciação de direitos a partir dessas ações diretas. Para tanto, aciona-se o pluralismo jurídico, o direito à resistência, o princípio da autodeterminação dos povos e o Direito Achado na Rua. O percurso metodológico incluiu a análise normativa e a análise de conteúdo de documentos relativos ao caso da Terra Indígena Sawré Muybu, notadamente as cartas publicadas pelo povo Munduruku.
Achei ao menos curioso que o seu trabalho não tivesse encontrado ensejo para situar na fundamentação sua própria autoria, e mais ainda coautoria, em temas que tangenciam o escopo de sua abordagem.
Refiro-me ao livro Direito Achado na Rua. Questões Emergentes, revisitações e travessias, volume 5, da Coleção Direito Vivo, editada pela Editora Lumen Juris. O mestrando participou também da organização do volume e contribuiu duplamente para a edição, primeiro com um texto com seus colegas da atividade de criação da obra, Marconi Moura de Lima Burum, Mauro Almeida Noleto, Priscila Kavamura Guimarães de Moura e Renan Sales de Oliveira, autores do ensaio O Constitucionalismo Achado na Rua, os Sujeitos Coletivos Instituintes de Direito e o Caso da APIB na ADPF nº 709. O texto se centra no exame da “abertura da esfera pública institucional do controle concentrado de constitucionalidade no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF)”, mas quer fundamentar a autonomia e a capacidade de legitimação, com base em categorias desenvolvidas em O Direito Achado na Rua, para aferir com a 709, o reconhecimento pela Suprema Corte do protagonismo indígena, em face do reconhecimento da “legitimidade ativa da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) para propor a ação”.
Mas o mestrando foi também, na referida obra coautor, juntamente com Carlos Henrique Naegeli Gondim, Joanderson Gomes de Almeida (Pankararu) e Vercilene Francisco Dias (Kalunga), do ensaio O Território Achado na Aldeia e no Quilombo: a Antítese da Mercantilização Neoliberal, texto no qual se pretendeu “analisar como os direitos territoriais são positivados e moldados, entre avanços e retrocessos, a partir das lutas empreendidas por povos indígenas e quilombolas”.
Não é pouco o que se coloca nesses ensaios e me surpreende que o Autor não se exiba neles em sua dissertação. De fato, essas lutas empreendidas pelos povos tradicionais e originários, vem sendo um processo paradigmático no contemporâneo, em várias narrativas, desde as cosmológicas para pensar com Ailton Krenak e a busca de um futuro ancestral, mas também políticas e, em última análise jurídicas.
A propósito, o enciclopédico trabalho organizado por Clovis Antonio Brighenti e Egon Dionísio Heck – O Movimento Indígena no Brasil. Da tutela ao protagonismo (1974-1988). Foz do Iguaçu: EdUnila, 2021 (file:///C:/Users/Jos%C3%A9%20Geraldo/Downloads/movimento_indigena%20(1).pdf). Pelo recorte não há registro das lutas dos munduruku, mas os relatos são modelares, sobretudo na parte que trata das Assembleias [que] se fizeram ações práticas [e que colocaram] a terra como principal objetivo dos povos indígenas. No conjunto, dizem os organizadores, os textos “reunidos nesta obra podem contribuir para a elucidação de um período (14 anos) histórico fundamental para o Brasil, para os povos indígenas e para a literatura indigenista. Uma obra que narra as primeiras lutas unificadas dos povos indígenas no Brasil no século XX para a conquista das terras, dos direitos, contra a tutela, pela autonomia e autodeterminação”.
Em todo caso, o trabalho é visceral. Com uma Introdução, em primeira pessoa. (Um xará do Autor – Boaventura de Sousa Santos – já havia demonstrado que o mergulho antropológico em realidades encarnadas, interpelam abordagens em primeira pessoa (Sociologia na primeira pessoa: fazendo pesquisa nas favelas do Rio de Janeiro. OAB – Revista da Ordem dos Advogados do Brasil. Nº 49. São Paulo: Editora Brasiliense, primavera/1988).
Assim que o texto de Camões tem essa intensidade vivencial, mobilizadora, embora nele se inscreva o objetivo e o conteúdo organizados do que se vai expor. Transcrevo sua Introdução:
Meados de setembro de 2014, sou abordado por um grupo de lideranças do povo Munduruku na aldeia Praia do Mangue, município de Itaituba, oeste do estado do Pará. Queriam que eu compartilhasse com eles uma cópia de um estudo técnico produzido pela então Fundação Nacional do Índio (Funai) em que se confirmava a ocupação tradicional desse povo sobre um território, a reivindicada Terra Indígena Daje Kapap Eypi (Sawré Muybu).
Tal estudo, àquela data, não havia sido chancelado pela Presidência da Funai, eis que se publicado inviabilizaria a construção de uma grande usina hidrelétrica no leito do rio Tapajós, ocupado e utilizado pelos Munduruku. Se erguida, a área do reservatório da usina iria inundar parte significativa da terra indígena, o que culminaria na compulsória remoção dos indígenas de seu território, o que é vedado pelo texto constitucional vigente.
Eu detinha posse do aludido estudo dada a condição que àquela época eu exercia. Eu era o Procurador da República que havia ajuizado uma ação civil pública perante a justiça federal requerendo provimento jurisdicional que determinasse à Funai o impulsionamento do processo administrativo de demarcação da Terra Indígena Sawré Muybu, inaugurado no início dos anos 2000 e já devidamente maduro e instruído para que atos formais de delimitação da área fossem providenciados, o que representaria um reconhecimento formal do Estado acerca da área e garantiria aos indígenas algum grau de segurança jurídica para o pleno exercício da posse sobre o território e usufruto exclusivo sobre os recursos naturais nele existentes.
Quando me foi formulado o pedido de compartilhamento do estudo, perguntei aos indígenas o que pretendiam fazer. A resposta foi: “queremos autodemarcar nosso território. Já que a Funai não faz o trabalho dela, nós faremos o trabalho da Funai”. Passei a eles a cópia pretendida. E naquele exato instante surgiu em mim algumas inquietações: por que não conferir a essa ação direta, a autodemarcação, os mesmos efeitos jurídicos de uma demarcação oficial providenciada pelo Estado? Por que, diante dessa ação direta autônoma dos indígenas, não seria possível, por exemplo, ir ao sistema de justiça requerer o cancelamento do licenciamento da usina?
Somadas a essas interrogações, algo de ordem mais geral muito me incomodava: o Brasil tinha (e ainda tem) uma dívida histórica com os povos indígenas. Centenas de reivindicações de reconhecimento estatal dos territórios tradicionais ocupados por esses povos seguiam (e seguem) paralisados, sobretudo pela ingerência de pressões econômicas diversas interessadas na utilização e abertura das terras indígenas às necessidades do capitalismo. Enquanto essas reivindicações por reconhecimento formal não avançavam (e não avançam) os povos indígenas suportam diversos tipos de violações, seja negação de implementação de políticas públicas específicas a terras indígenas demarcadas, sejam invasões em busca dos recursos naturais, seja invisibilização em licenciamentos de projetos de infraestrutura, como no caso Munduruku.
A não demarcação dos territórios indígenas é uma omissão deliberada do Estado brasileiro. De outro lado, esse mesmo Estado, violador desse direito com assento constitucional, detém, em tese, o monopólio de dizer o que é ou o que não é terra indígena. Eu pensava: era preciso superar essa encruzilhada, os povos indígenas não poderiam seguir reféns da (má) vontade do Estado.
Durante cinco anos após esse episódio narrado essas inquietações me acompanharam. E ainda me acompanham. A pesquisa que me propus a desenvolver e ora manifestada nesta dissertação foi mobilizada pela necessidade de algum aplacamento dessas inquietações. Foi então que resolvi concorrer, em 2019, ao processo seletivo de Mestrado na Universidade de Brasília. Eu não visualizava instituição superior de ensino mais oportuna para essa tentativa. Afinal, é na UnB que se concebeu e se discute o Direito Achado na Rua, a corrente de pensamento crítico acerca do Direito que havia me fascinado na graduação, no início dos anos 2000. Identificar em sujeitos coletivos e nos movimentos sociais a capacidade de instituir novos direitos era uma das chaves que eu precisava mobilizar para mitigar essas interrogações científicas surgidas da prática verificada a partir da minha atuação profissional.
Inicialmente, quando da apresentação do projeto de pesquisa no processo seletivo, vislumbrava uma pesquisa repleta de trabalhos de campo, com entrevistas a agentes do sistema de justiça e com lideranças indígenas, especialmente do povo Munduruku e de outros povos que também empreenderam autodemarcações em outros lugares do país. No entanto, logo no início do curso fomos atravessados pela pandemia do coronavírus, que impediu, por exemplo, o ingresso de pesquisadores nas terras indígenas. Além desse fato, no meio do curso outra surpresa, essa feliz, apesar de extremamente demandante. Nasceu meu segundo filho, o que fez com as noites passassem a ser em claro e os dias voltados aos cuidados com um pequeno ser. Por óbvio, o tempo dedicado à pesquisa restava diminuído. Era preciso fazer escolhas. Eu não teria mais tempo e condições para sucessivas idas a campo. Lembrei das cartas que o povo Munduruku publicou nas diversas fases da autodemarcação que empreendeu. Um valioso material de análise.
Junto às cartas, eu tinha à disposição da pesquisa a condição de ter sido espectador privilegiado dessa empreitada Munduruku. Estive ao lado deles nas batalhas jurídicas travadas junto ao sistema de justiça e demais instâncias estatais. Alguns muitos documentos oficiais que obtive pela função que exercia também foram analisados. Além disso, a análise normativa, jurisprudencial e de fontes bibliográficas me permitiram formular as reflexões que constam desta dissertação.
O trabalho está estruturado em três capítulos, os quais, em larga medida, privilegiam a empiria, a prática social verificada e os acontecimentos deflagrados sobretudo pelos indígenas mas também pelo Estado.
Abro a dissertação, com o primeiro capítulo, dedicando-me a formular considerações gerais sobre o quadro de violações sistemáticas que impactam os direitos territoriais indígenas no país.
Elenco medidas (normativas e judiciais) que juntas alteraram substancialmente o marco legal da demarcação de terras indígenas, esvaziando o projeto constitucional. O intuito é evidenciar que o reconhecimento estatal das terras indígenas no Brasil se tornou, ao longo dos anos pós-Constituição de 1988, um dever quase em desuso. Neste primeiro capítulo não analisei em pormenores o caso envolvendo os Munduruku. Fiz essa opção na tentativa de mostrar que este caso em específico se insere em um contexto geral em que o Estado brasileiro se estruturou para fracassar o dever de demarcar e proteger os territórios indígenas.
No segundo capítulo lanço luzes sobre algumas minúcias envolvendo o caso do povo Munduruku, que, nesse contexto de paralisação das demarcações e avanço da apropriação privada dos territórios indígenas no Brasil, situou-se em meio a um conflito envolvendo diversos atores e fatores de pressão sobre um de seus territórios, ainda não demarcado. Entre os agentes pressionadores, especial destaque para uma usina hidrelétrica que estava projetada para ser construída na bacia hidrográfica do rio Tapajós.
No terceiro capítulo mobilizo as cartas publicadas pelos Munduruku para, em cotejo com o referencial teórico crítico, apresentar possíveis vias de interpretação que anunciem a autodermacação territorial indígena como uma prática social capaz de enunciar direitos e resgatar a autonomia usurpada dos povos indígenas brasileiros ao longo dos séculos de opressão desde a colonização. Aciono, para tanto, o pluralismo jurídico e categorias analíticas correlatas, como a interlegalidade e a consciência jurídica. Interpelo, ainda, o direito à autodeterminação, o direito de resistência e o Direito Achado na Rua.
Espero ter conseguido apresentar reflexões oportunas e que de algum modo sirvam de subsídio argumentativo para a defesa dos direitos povos indígenas, que é o que de fato me impulsiona.
Não há como tergiversar da sofrência das palavras, no contexto doloroso que revela a ação etnocida e genocida que se abate sobre os povos indígenas. A expressão mais dramática do que se constituiu a gestão neoliberal necropolítica no Brasil nos últimos quatro anos é a mortandade do povo Yanomami, por meio de muitas formas de ações violentas, entre elas, a subnutrição trazida com a fome causada pela omissão governamental na execução de políticas de proteção e de facilitação da invasão e afetação de seus territórios de existência pela exploração desenfreada, sobretudo de garimpeiros.
Tratei desse tema, com um nó na garganta, em https://www.ihu.unisinos.br/categorias/626073-pode-se-falar-de-crime-de-genocidio-no-quadro-de-mortandade-atual-yanomami-em-roraima, para concluir, depois da ocorrência do massacre de Haximu (1993), estarmos de novo, contra os mesmos Yanomami, na condição de sim, poder-se e deve-se falar de crime de genocídio no quadro de mortandade atual Yanomami em Roraima. Uma ação concebida, projetada e executada para produzir a mais letal forma de aculturação que se caracteriza pela “intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso (…) como [entre outros atos] matar membros do grupo”. Uma operação forrada pela narrativa empreendedora e subsidiada por agentes públicos, para produzir também um etnocídio justificado por um outro conceito de desenvolvimento, que produziu em quatro anos uma devastação tal, em contraste com um milênio de modo de existência, de bem viver e de projetar, como diz Krenak, um futuro ancestral, para uma humanidade enfim renaturalizada, que souve preservar humanidade e natureza.
Portanto, são muito importantes trabalhos como esse que nos apresenta Luís de Camões Boaventura. Mostrar como e oferecer elementos sociais e teóricos que dêem fundamento e legitimem as ações protagonistas dos povos indígenas para afirmarem seus direitos inscritos em suas tradições, uso sociais e modos de existir.
No Maranhão, povos indígenas em retomada lutam para que o Estado reconheça seus direitos e garanta a demarcação de seus territórios (https://cimi.org.br/2022/04/retomada-indigena-maranhao/ , acesso em 14/02/2023). É o que mostra matéria de Jesica Carvalho, da Assessoria de Comunicação do Cimi Regional Maranhão:
No Maranhão, os povos Akroá-Gamella, Tremembé de Raposa, Tremembé de Engenho, Anapuru Muypurá, Kari’u Kariri e Krenyê estão em busca de reconhecimento por parte do Estado. “Os Krenyê fizeram o primeiro processo de retomada e hoje estão já em seu território. A luta desses povos tem iluminado outros povos a romperem esse silenciamento”, aponta Gilderlan Rodrigues, da coordenação colegiada do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Maranhão.
A retomada é um processo de luta dos povos indígenas por suas terras, cuja ocupação era originária. Para muitos povos, esse processo está relacionado à reafirmação de identidades étnicas que foram negadas devido à pressão e à violência do Estado e da colonização. Neste movimento, são muitas as dificuldades enfrentadas por povos em retomada, como o descaso do poder público e o preconceito da sociedade.
O processo de retomada vem ocorrendo em diversas partes do Brasil. De acordo om Rosa Tremembé, esta é uma longa jornada iniciada a partir da promulgação da Constituição Cidadã, em 1988. “A partir daí nós buscamos a garantia desses direitos, nos apresentando diante da sociedade, para que nós pudéssemos, enfim, ser visibilizados”, ressalta Rosa Tremembé.
Os indígenas em retomada, bem como indígenas com territórios já demarcados, vêm enfrentando diversas batalhas para garantir o seu espaço de existência. Projetos de Lei (PLs) como o 191/2020, que permite a mineração e a construção de hidrelétricas em terras indígenas, e o PL 490/2007, que limita as demarcações de terras, são iniciativas que acirram ataques contra os direitos dos povos indígenas.
A articulação entre os povos vem somando forças às lutas enfrentadas pelos indígenas, como por exemplo a Teia dos Povos e Comunidades Tradicionais no Maranhão, que fortalece a organização dos povos na busca por seus direitos.
Também no plano acadêmico o protagonismo indígena (e quilombola) está sendo tema de estudos na mesma linha de entendimento que confirma o ponto de vista de Luís de Camões Boaventura.
Anoto, pela proximidade e pelo compartilhamento de posições comuns, Chaves, Carlos Eduardo Lemos. O Direito de Retomada de terras tradicionalmente ocupadas e a tese do marco temporal [manuscrito] / Carlos Eduardo Lemos Chaves. – 2022. 318 f. Orientador: Prof. Dr. José do Carmo Alves Siqueira. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Goiás, Faculdade de Direito (FD), Programa de Pós-Graduação em Direito Agrário, Goiânia, 2022.
O estudo afirma a “existência de um Direito de Retomada fundamentado na práxis constitucional desses grupos em defesa dos direitos constitucionais fundamentais positivados e reconhecendo que as suas sociedades se constituem como originárias a partir do seu nascimento e, cujos direitos, sobretudo ao território, se transmitem através das gerações, com fundamento na jusdiversidade. Partindo de uma compreensão de Justiça e de Direito não como entidades abstratas, mas imersas em um contexto social, cultural e histórico, que reflete as relações hierárquicas de poder, o caráter interdisciplinar da pesquisa se utiliza referenciais da Antropologia, da História, Ciência Política e da Sociologia, além do próprio Direito, para traçar o perfil racista e excludente da estrutura fundiária brasileira”.
Recebi de Renata Carolina Corrêa Vieira, minha ex-orientanda no mestrado, atualmente advogada do Instituto Socioambiental, com atuação em São Gabriel da Cachoeira, para assessorar o projeto Rio Negro, junto a FOIRN (Federação dos Povos Indígenas do Rio Negro), uma bem documentada matéria sobre esse protagonismo indígena que ganha foro de grande novidade. Trago aqui o testemunho de Renata porque Camões lhe presta homenagem na abertura de seu trabalho, com efusivo agradecimento.
Os povos do Rio Negro escolheram ser consultados em suas comunidades, com respeito às suas línguas. A consulta deve ser feita considerando os calendários tradicionais e épocas das roças e festas, bem como a forma de organização política do território. Os conhecedores indígenas, os Kumuã – como os pajés são chamados na região – também devem ser consultados em determinadas regiões. Atualmente, as pressões e ameaças sobre os territórios indígenas na região vêm principalmente do garimpo ilegal, do turismo ilegal e do narcotráfico.
Diálogos e processos
A construção do Protocolo de Consulta dos Povos Indígenas do Rio Negro demandou grande esforço para envolver 750 comunidades e sítios em três municípios, São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos, no Amazonas.
Esse processo foi iniciado em 2019, porém foi suspenso devido à pandemia de Covid-19. Em 2022, foram realizadas assembleias regionais em todas as coordenadorias, com oficinas sobre o direito à consulta prévia, a importância do protocolo de consulta e a metodologia utilizada para a construção dos documentos.
Os debates também envolveram a participação e suporte técnico de advogadas e advogados do Instituto Socioambiental (ISA), Observatório de Protocolos Comunitários e Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
“Houve uma grande mobilização na Assembleia Geral para validar e consolidar esse processo dos protocolos regionais, já estabelecidos, e [também] o protocolo geral”, diz Marivelton Baré. Ao menos 17 povos participaram deste momento, entre eles os Baré, Baniwa, Tukano, Yanomami, Desano e Tariano. Marivelton compara o processo de construção do Protocolo de Consulta a um ajuri ou Wayuri, que, na língua indígena nheengatu, significa “trabalho conjunto”.
Com Renata, aliás, escrevemos para o Le Monde Diplomatique um texto que conforta o argumento de Camões no sentido que o que desaba sobre os povos indígenas e quilombolas é o rescaldo da quebra dos pilares que sustentam o céu mitológico da oralitura indígena, numa rendição bem remunerada ao interesse neoliberal inscrito nas ações e estratégias do agronegócio (https://diplomatique.org.br/a-funcao-social-da-propriedade-pedra-angular-da-constituicao-cidada/) :
Compulsando algumas agendas que conformam o tema geral do direito à terra e à reforma agrária, notadamente desde a conjuntura que antecede o golpe parlamentar-judicial-midiático, que levou ao afastamento da presidenta Dilma Rousseff e, com ela, à derrocada do projeto popular-democrático que abriu ensejo à construção dessas agendas e, logo, à instalação de uma governança a serviço do modelo capitalista de concentração da terra e do território, vê-se nitidamente que o tema da função social da propriedade compõe essa agenda.
Um dos mais recentes ataques tem dupla face. A primeira, bruta e cruenta na linha do coronelismo que baliza o processo oligárquico, que caracteriza a nossa formação econômica, social e política: a criminalização da reivindicação social (com a pretensão de tipificar as formas de luta no elenco do crime de terrorismo) e a volta legal ao armamentismo que equipa as milícias urbanas e rurais a serviço a propriedade e do latifúndio.
A outra face, mais sutil, mas não menos instrumental é a do disfarce legislativo, embutido na estratégia de desconstitucionalização em curso no país. Nos referimos à Proposta de Emenda à Constituição, subscrita pelo Senador Flávio Bolsonaro, com assinaturas de apoio de conhecidos membros da bancada ruralista, que tem por objetivo “alterar os artigos 182 e 186 da Magna Carta de 1988 para definir de forma mais precisa a função social da propriedade urbana e rural e os casos de desapropriação pelo seu descumprimento”.
A justificativa embora tente – não disfarça – o objetivo de inverter o fundamento constitucional que preserva direitos fundamentais transsubjetivos porque principiológicos, já que salvaguardam valores civilizatórios: meio ambiente, autonomia do trabalho, licitude da atividade, direitos humanos, produção social, para facilitar o ganho privado da apropriação egoísta, que a Constituição – projeto avançado de sociedade – procurou superar.
Ainda bem que a proposta, escondendo o corpo do gato com uma redação aveludada, deixou-lhe o rabo de fora: “como a relativização do direito à propriedade privada deve ser feita com cautela a fim de evitar arbitrariedades, abusos ou erros de avaliação pelo Poder Público nos processos de desapropriação fundamentados na simples justificativa de se estar agindo em atenção ao interesse social, apresentamos essa Proposta de Emenda Constitucional. A intenção é diminuir a discricionariedade do Poder Público na avaliação de desapropriação da propriedade privada, tendo em vista que é um bem sagrado e deve ser protegida de injustiças.
A dissertação de Luís de Camões Boaventura forma a frente jurídica e judicial que sustenta a precedência de direitos pé-legislativos e pré-estatais, portanto pré-modernos, dos povos indígenas e tribais. Aqui chamo a atenção para a tese jurídica (e não a antropológica de Luiz Henrique Eloy Amado – Eloy Terena), que tem por objeto o direito produzido pelo Estado para os povos indígenas, ou seja, um direito imposto, construído e aplicado sem a participação dos povos originários. Para analisar tal direito Eloy elegeu três fatores determinantes que devem ser levados em consideração na elaboração daquilo que estamos denominando de teoria do direito indigenista, quais sejam: a) a política indigenista brasileira analisada em suas várias conjunturas históricas, desde o Brasil colonial aos dias atuais; b) o contexto político-econômico em que as normas jurídicas foram produzidas; e, c) a análise situacional dos povos indígenas consideradas em sua totalidade, ou seja, não como povos estanques na história e isolados do mundo, mas como agentes políticos imersos e diretamente afetados por estruturas do sistema-mundo. O objetivo é apresentar um produto do somatório de experiências e reflexões forjadas na prática da advocacia indígena. Para tanto a teoria que se pretende ofertar terá como base a experiência da atuação judicial de defesa de comunidades indígenas, a partir da experiência do Departamento Jurídico da APIB e COIAB, especialmente no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF) e instâncias internacionais de direitos humanos. O método adotado é o materialismo histórico dialético para entender como as estruturas econômicas e políticas impactam os territórios indígenas e a produção de um direito imposto. Ao fim, busca-se oferecer uma leitura crítica de um direito que, mesmo sendo produzido para servir ao interesse do capital, tem sido ocupado pelos povos indígenas e manejados numa fricção jurídica intercultural (cf. meu Lido para Você: http://estadodedireito.com.br/o-campo-social-do-direito-e-a-teoria-do-direito-indigenista/).
Chamo a atenção para essa tese porque nela, assim como em Camões, são trabalhadas as categorias sujeito coletivo de direito, pluralismo jurídico e O Direito Achado na Rua. Categorias, aliás, que o ministro Fachin, no TSE (segundo semestre de 2022, por ocasião do julgamento do Recurso Especial Eleitoral (Processo Número: 0600136-96.2020.6.17.0055 – Pesqueira – Pernambuco) arguiu para salvaguardar sistemicamente direitos indígenas em face de direitos estatais legais, eventualmente irredutíveis, por fatores sistêmicos inscritos em pluralismos centrados em territorialidades e modos de existir e reger-se, constituindo titularidades de sujeitos que não se dissolvam numa subjetividade “universal”, configurando a perspectiva intersistêmica de direitos plurais em achados da mesma procedência teórica estabelecidos por Camões, todavia estritamente indicados em Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre Direitos Humanos (Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016), que escrevi com Antonio Escrivão Filho.
Penso que esse modo de inferir o jurídico por meio de unidades de análise que estão no social mas que não se enquadram no legal, estão presentes, a propósito da dissertação de Camões, no voto que o ministro Fachin, relator, já lançou no Recurso Extraordinário 1.017.365 de Santa Catarina, prevista a sistemática de repercussão geral. Acho que Camões deveria dar alguma consideração a esse voto, no interesse de seu argumento.
Com efeito, do voto, ponho em relevo a parte relativa ao que o Ministro denomina Natureza jurídica da demarcação. Diz ele: “Repisando o caput do artigo 231 do texto constitucional, “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.Portanto, e em se considerando que, nos termos do artigo 20, XI da Constituição, as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios são de domínio da União, trata-se de procedimento administrativo da União, a identificar essas terras e demarcá-las no interesse das comunidades indígenas que ocupam de modo tradicional essas áreas”.
Deixando de lado a referências normativas, vou ao ponto, tal como posto no voto do Ministro:
No entanto, como se depreende do próprio texto constitucional, os direitos territoriais originários dos índios são reconhecidos, portanto, preexistem à promulgação da Constituição.
Logo, e como bem explicita o Estatuto do Índio, em disposição consonante com o texto constitucional, a demarcação não constitui a terra indígena, mas apenas declara que a área é de ocupação pelo modo de viver indígena:
“Art. 25. O reconhecimento do direito dos índios e grupos tribais à posse permanente das terras por eles habitadas, nos termos do artigo 198, da Constituição Federal, independerá de sua demarcação, e será assegurado pelo órgão federal de assistência aos silvícolas, atendendo à situação atual e ao consenso histórico sobre a antigüidade da ocupação, sem prejuízo das medidas cabíveis que, na omissão ou erro do referido órgão, tomar qualquer dos Poderes da República.”
Como bem ressalta a doutrina: “O procedimento demarcatório tem natureza meramente declaratória, pois o que se busca com ele é apenas a delimitação da área já pertencente e aos povos indígenas, em razão dos direitos que decorrem da ocupação tradicional. O reconhecimento da propriedade, em caráter originário, é de viés constitucional, conforme estabelecido no muitas vezes citado art. 231 da Constituição.” (VITORELLI, Edilson. Estatuto do Índio: Lei 6.001/1973. 4.ed. Salvador: JusPODIVM, 2018, p. 177-178).
Para concluir:
Logo, a posse permanente das terras de ocupação tradicional indígena independe da conclusão ou mesmo da realização da demarcação administrativa dessas terras, é direito originário das comunidades indígenas, sendo apenas reconhecimento, mas não constituído pelo ordenamento jurídico.
A natureza jurídica do procedimento demarcatório é meramente declaratória, consiste na exteriorização da propriedade da União, vinculada e afetada à específica função de servir de habitat para a etnia que a ocupe tradicionalmente. É atividade do Poder Executivo, desempenhada por diversos órgãos, conforme o procedimento acima demonstrado, mas que não cria terra indígena, apenas reconhece aquelas que já são, por direito originário, de posse daquela comunidade.
Arrolando toda a jurisprudência do STF que conforta o seu ponto, interessa o arremate:
A homologação final do procedimento, realizada pelo Presidente da República nos termos do artigo 5º do Decreto nº 1.775/1996, presta-se a atestar o devido cumprimento ao disposto no artigo 231 e à legislação de regência. Por se tratar de procedimento administrativo que reconhece o exercício de um direito fundamental, não é possível que razões de conveniência e oportunidade sejam alegados para deixar de se reconhecer a tradicionalidade da ocupação indígena; logo, apenas o descumprimento do disposto na norma constitucional pode levar à recusa em homologar a demarcação proposta pela FUNAI e reconhecida como legítima pelo Ministro da Justiça, desde que de forma fundamentada.
Reconheço a procedência do mal-estar de Camões sobre os principais registros notadamente do STF relativamente ao reconhecimento da legitimidade das pretensões indígenas, principalmente tendo como paradigma a incidência decisória na demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Entretanto, vejo que a sua leitura comporta a possibilidade de “alternativas subversivas indígenas” para “emancipar coletivos historicamente oprimidos”. E gosto de pensar que há confiança política e epistemológica no referencial teórico e prático de O Direito Achado na Rua, para realizar essas alternativas, assentadas nas posições de “povos que sabem e decidem resistir”, qual tamanduá, tal como metaforicamente aludem os Munduruku, na 1ª carta de autodemarcação de seu território.
Assim, na segunda e na terceira parte da dissertação a narrativa ganha um colorido que a aproxima dos mais belos ensaios antropológicos que inauguraram a antropologia jurídica de Malinowski a Clastres.
Vou às Considerações Finais, me pondo de acordo com Camões no que esse constata:
Assim, é preciso que os diversos sistemas jurídicos sejam interpretados em nível de complementariedade, apoiando-se em uma abordagem histórica que analise as estruturas de poder e considere as transformações sociais. Nesse sentido, os povos indígenas têm demonstrado uma notável habilidade de ressignificarem as instâncias e determinações administrativas e judiciais impostas pelo Estado, fazendo uso de diversos recursos e estratégias. Com isso, estão atualizando, a partir de suas perspectivas e cosmologias, os referenciais normativos a fim de encontrarem soluções aos problemas que os afligem e exigirem seus direitos.
À vista disso, foi possível concluir que a autodemarcação Munduruku é uma demonstração evidente de prática interlegal, em que se acionou, simultaneamente, os sistemas jurídicos oficial e o nativo. Fez-se uso de um estudo técnico produzido por uma representação oficial, para, mediante uma empreitada que envolve cosmovisões peculiares de mundo, fazer valer um direito previsto no sistema estatal. Por meio de uma ação autônoma direta, preenchida de categorias nativas, os Munduruku se apresentaram como guardiões de seu território ancestral e do próprio direito estatal, à medida em que exigiram o cumprimento da Constituição Federal, para tanto expressando suas consciências jurídicas e políticas acerca de seus direitos.
Com tal prática, os Munduruku apresentam um projeto político emancipatório, instituindo, segundo as lentes do Direito Achado na Rua, um novo direito. O direito de auto anunciar seu território, fazendo uso das ferramentas do Estado, mas para além dos desígnios deste.
Não vejo outro modo de finalizar minha leitura da dissertação de Luís de Camões Boaventura do que evocando a última obra de Ailton Krenak que acabei de ler (Futuro Ancestral). Ele fala de regenerar uma Terra canibalizada por uma humanidade que dela se apartou, numa ilusão utilitária, da qual precisa ser libertada para que seus lugares deixem de ser o repositório de resíduos da atividade industrial e extrativista (http://estadodedireito.com.br/a-vida-nao-e-util/).
Do que se trata, em suma, é de passar do estágio de florestania que já se desdobrara da redução política da localização na cidadania, e das múltiplas possibilidades de reivindicar direitos que não se estiolem no esforço de se confinarem em igualdades, para o estágio amplificado das alianças afetivas. E assim refunda juntos humanidades fecundadas numa ancestralidade que junta ao invés de separar, e que, ao contrário do senso antropofágico de humanos que se consomem numa reificação e que se presta ao entredevorar-se uns pelos outros, supra a falta de sentido de um cosmos esvaziado por uma antropofagia da ganância e do consumo.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Práticas Jurídicas, Extensão e Acesso à Justiça. Rayssa Cavalcante Matos. Monografia apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, 2023, 51 fls.
Com muita alegria e redobrada satisfação participei da banca examinadora da monografia de Rayssa Cavalcante Matos, juntamente com a orientadora professora Talita Tatiana Dias Rampin e com o professor Antonio Escrivão Filho, meus colegas na Faculdade de Direito da UnB. E porque não dizê-lo, ambos meus orientandos por ocasião da apresentação e da defesa de seus doutoramentos, em trabalhos brilhantes. A tese de Talita foi considerada pelo comitê oficial a melhor tese em Direito da UnB, no ano da defesa.
Do que trata a monografia esclarece o seu resumo e dele, logo, se deduz o motivo de minha satisfação: o relevo para um tema e uma experiência de institucionalização que me mobilizam e que me tem em forte protagonismo, político e teórico, aliás, registrado no trabalho.
Transcrevo o resumo e as palavras-chaves, estas porque eu gostaria, à luz da discussão, da bibliografia e do pertencimento acadêmico, para apelar à autora que consigne a expressão O Direito Achado na Rua, até para guardar fidelidade a uma linha teórica e a uma organicidade que engaja a autora e o seu tema:
Considerando a obrigatoriedade da institucionalização da nucleação de práticas jurídicas no bojo das instituições de ensino superior que mantém cursos de graduação em Direito, e a indissociabilidade do ensino, da pesquisa e da extensão, foi desenvolvida a pesquisa intitulada “Práticas Jurídicas, Extensão e Acesso à Justiça”, cujos resultados são agora apresentados neste trabalho. O objetivo geral estabelecido à pesquisa foi identificar como e quais são as práticas jurídicas extensionistas que atuam ou já atuaram no Núcleo de Práticas Jurídicas da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, localizado em Ceilândia, bem como traçar a relação e o impacto que esses projetos causam na localidade no que diz respeito ao acesso à justiça e à superação das desigualdades existentes nessa área periférica do Distrito Federal. Para tanto, foi realizada análise de conteúdo de documentos relacionados às ações extensionistas desenvolvidas no órgão.
Palavras-chave: Ensino jurídico; educação em direitos humanos; extensões populares; Núcleo de Prática Jurídica; acesso à justiça.
Sobre o conteúdo da monografia remeto ao Sumário, bem compreensivo nos seus enunciados. Depois da Introdução, os itens:
Ensino Jurídico: um Paradigma
Universidade e Extensão Popular
As Origens do Núcleo de Prática Jurídica da UnB
O NPJ/FD/UnB e as Extensões Populares:
Assessoria Jurídica Universidade Popular
Maria da Penha
Promotoras Legais Populares
Vez e Voz
Defensoras e Defensores Populares
Tribunal Popular Internacional sobre Sistema de Justiça Brasileiro
Rexistir
Meu Condomínio Legal
Reformulação da Lei Orgânica e do Regimento Interno da Câmara de Vereadores do município de São João D’Aliança (GO)
Justiça Comunitária
Cidadania e Justiça Também se Aprendem na Escola
Agentes Sociais
Projeto de Apoio a Comunidades de Quilombos do Brasil (PROACQ)
Projetos vinculados ao DEX desenvolvidos no NPJ/FD/UnB
Centro Acadêmico e Fórum de Extensão da FD/UnB
Seguem-se as Considerações Finais e as Referências Bibliográficas.
Prestando-se a se constituir um catálogo das experiências de extensão na Faculdade de Direito, a monografia já é em si valiosa porque revela a cuidadosas pesquisa para identificar os registros que assinalam as práticas que lhe dão origem, culminando num descritivo que é compartilhável, na medida da circulação do trabalho, mas que não é apenas uma exteriorização de eventos e de ocorrências.
Com efeito, localizando a historiografia e os relatórios que designam essas experiências, a monografia logra extrair da descrição, algo mais que um exercício virtual do que foi observado, mas um valor interpretativo que só uma disposição epistemológica pode alcançar. Lembrando Engels em seus relatórios sobre as condições de vida e de moradia dos trabalhadores ingleses (Manchester) em seu tempo, “descrever verdadeiramente é, simultaneamente, explicar”.
Assim que, em Rayssa, a descrição, referida ao catálogo, para mencionar todos os projetos que relaciona, expõe a mirada epistemológica que orienta o seu levantamento, tal como ela indica, com a articulação do afazer universitário (histórica e politicamente designados), nesse passo, com o roteiro proposto por Bistra Apostolova que o conhece bem, por seus estudos e por sua proximidade com o processo da institucionalização universitária, do ensino do direito e da formulação das diretrizes do campo; a própria questão do ensino do direito e aí da inserção da prática jurídica com a sua elementaridade para que “o direito não se ensine errado”, diz Roberto Lyra Filho, nem em decorrência da inadequada apreensão do objeto de conhecimento, nem pela inadequada pedagogia que daí decorre; do componente extensionista que articula a dimensão de realidade que propõe a articulação entre teoria e prática para que o conhecimento não delire da realidade e nem se distancie da pedagogia da autonomia; e, enfim, da própria concepção de conhecimento pela práxis organizada em núcleo de prática jurídica.
Aqui a minha convocação para que as palavras-chaves contemplem a expressão O Direito Achado na Rua. Todas as referências, desde os conceitos, às concepções, às referências bibliográficas, e até a orientação e composição da banca, procedem da vertente de conhecimento e de práxis inscrita em O Direito Achado na Rua, sua concepção e sua prática.
Assim, a concepção de direito como liberdade, em Roberto Lyra Filho e o acervo da Nova Escola Jurídica, com inscrição no ensino do direito e da prática jurídica, estão com absoluta fidelidade, articulados na monografia a partir de seus pressupostos, aplicados ao objeto de estudo.
Assim, por exemplo, para a mediação entre esses elementos que a autora inteligentemente estabeleceu, sobre configurá-la como enlace necessário, põe ela em relevo a categoria acesso à justiça, tomada dos escritos de sua orientadora, mas afinada com o que eu próprio sugeri fosse uma denotação mais precisa, afinal adotada por Rayssa:
Adotamos, aqui, o conceito de acesso à justiça desenvolvido por José Geraldo de Sousa Junior (2008, p.6): “[…] pensá-lo como um procedimento de tradução, ou seja, como uma estratégia de mediação capaz de criar uma inteligibilidade mútua entre experiências possíveis e disponíveis para o reconhecimento de saberes, de culturas e de práticas sociais que formam as identidades dos sujeitos que buscam superar os seus conflitos”. Existem outras abordagens ao fenômeno do acesso à justiça, que enfatizam a efetividade (CAPPELLETTI; GARTH, 1988) e as condições de ingresso dos sujeitos nos canais estatais de resolução de conflitos (SADEK, 2001), que, segundo Talita Rampin (2018, p.129), são limitadas por adotarem uma “perspectiva de ingresso-permanência-saída de determinado espaço-forma de resolução de conflitos.”
No mesmo passo, a concepção de extensão, fundamental para a sua abordagem, de um lado, acentuando a relação imediata, no âmbito universitário com a extensão, todavia mediada pela prática jurídica e nesse enquadramento com a configuração que lhe atribui, na UnB, O Direito Achado na Rua. Aqui, valendo-me de uma referência bibliográfica adotada pela Autora da monografia, num enlace orgânico (http://estadodedireito.com.br/a-experiencia-da-extensao-universitaria-na-faculdade-de-direito-da-unb/):
Tratei do tema extensão universitária aqui mesmo neste espaço em coluna anteriormente publicada – http://estadodedireito.com.br/salao-de-extensao-20-anos/. Então, a propósito de registrar minha participação num evento celebratório do qual participei, 20 anos do Salão de Extensão da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), deixei marcado o meu posicionamento re-afirmando o que deixei expresso em meu balanço de reitorado (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de (Org). Da Universidade Necessária à Universidade Emancipatória. Brasília: Editora UnB, 2012): “Nenhum reitor, desde os tempos medievais de reitores-estudantes no modelo de Bolonha, aos reitores-professores no modelo moderno de universidade, afronta arrogante o espaço público de inter-relacionamento e de diálogo com as comunidades plurais epistêmicas que dão legitimidade ao saber que suas instituições realizam” (p. 60-61). O conhecimento, assim, sobretudo em contexto de diálogo universidade e sociedade, adquire papel social indissociável e a extensão universitária é o seu melhor instrumento de construção.
No registro dos eventos daquela celebração, a propósito de estabelecer uma conexão entre a experiência da UFRGS e da minha UnB, aludi a um texto originado de balanço do projeto extensionista da Faculdade de Direito desta universidade, para salientar que, com efeito, a extensão é tradução de reconhecimento, na medida da disponibilidade de uma prática de intervenção que se reorienta reflexivamente a partir da extensão universitária e que se irradia indissociavelmente nos elementos que designam o afazer universitário: o ensino e a pesquisa. Mencionei, nessa Desde a perspectiva de O Direito Achado na Rua não é pouco essa denotação, se se tem em mente, por exemplo a constatação levada a cabo pela ex-Decana de Extensão da UnB Leila Chalub Martins, ao afirmar que “O Direito Achado na Rua, a meu juízo, foi a primeira e mais significativa iniciativa intelectual, no sentido de responder ao que cobrava Darcy Ribeiro, no momento do ‘renascimento’ da Universidade de Brasília” (Uma Universidade intrometida na vida – a experiência da Faculdade de Direito com a extensão universitária. In COSTA, Alexandre Bernardino (org). A Experiência da extensão universitária na Faculdade de Direito da UnB. Brasília: Faculdade de Direito. Coleção O que se Pensa na Colina)
No mesmo sentido, com contribuições igualmente significativas –http://estadodedireito.com.br/a-pratica-juridica-na-unb-reconhecer-para-emancipar/. Aqui, chamo a atenção para os apontamentos de André Macedo de Oliveira, nosso professor, o qual, embora não filiado a O Direito Achado na Rua, coordenou o NPJ/UnB e de sua experiência construiu a sua dissertação de mestrado. André acumulou no período uma densa bibliografia com base nessa experiência, incluindo o seu texto Advogados voluntários do Núcleo de Prática Jurídica da UnB: uma nova causa. Essa é outra linha de abordagem única experimentada na construção extensionista do NPJ/UnB, conforme outros importantes textos in Colaboradores Voluntários do Núcleo de Prática Jurídica (Coleção ‘O que se pensa na Colina’, Brasília: Faculdade de Direito/CESPE, UnB, 2002.
De resto, considerando que a minha contribuição na arguição se dirija mais à necessidade de completude de bibliografia pertinente, não posso deixar de lembrar à graduanda, as contribuições de sua orientadora, aliás Coordenadora do NPJ (conforme a sua própria tese) e do colega Escrivão, examinador, atualmente coordenador da AJUP Roberto Lyra Filho, com seu trabalho interpelante sobre a exigência de leituras alargadas de acesso à justiça e sua perspectiva para a sua democratização e para os direitos humanos.
Além de Justiça e Direitos Humanos: Perspectivas para a Democratização da Justiça, vol. 2. Antonio Escrivão Filho et al organizadores. Curitiba: Terra de Direitos, 2015), também http://estadodedireito.com.br/experiencias-compartilhadas-de-acesso-a-justica-reflexoes-teoricas-e-praticas/, sobre as obras REBOUÇAS, Gabriela Maia; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; CARVALHO NETO, Ernani Rodrigues de (Organizadores). Experiências Compartilhadas de Acesso à Justiça: Reflexões teóricas e práticas. Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo, 2016, 281 p. Texto Eletrônico. Modelo de Acesso World Wide Web (gratuito). www.esserenelmondo.com.br; e REBOUÇAS, Babriela Maia; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; ESTEVES, Juliana Teixeira (Organizadores). Políticas Públicas de Acesso à Justiça: Transições e Desafios. Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo, 2017, 177 p. E-Book (gratuito). www.esserenelmondo.com.br, nas quais, ambos, têm importantes contribuições, além de outros e outras colegas vinculados ao Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua que colaboram com textos nessas duas edições sobre acesso à justiça.
A outra vertente, não negligenciável, remete à educação popular inserida na acepção de prática jurídica. Para ela aponta Inês da Fonseca Porto com sua obra seminal sobre ensino do direito e imaginação – http://estadodedireito.com.br/ensino-juridico-dialogos-com-a-imaginacao/ – e de modo autêntico, Nita Freire (http://estadodedireito.com.br/o-direito-achado-na-rua-v-8/), com Acesso à Justiça e a pedagogia dos vulneráveis | Ana Maria Araújo Freire (Nita Freire), publicado em Série O Direito Achado na Rua, vol. 8 – Introdução Crítica ao Direito à Comunicação e à Informação, obra em que tanto eu quanto a orientadora Talita Rampin somos co-organizadores.
Na minha Coluna Lido para Você (Jornal Estado de Direito), dirigido pela jurista Carmela Grüne que assiste presencialmente esta defesa, aludo a propósito:
Reside nesse passo, a segunda motivação que me compromete com a obra e que dá sentido ao meu depoimento. Ou seja, essa apreensão que pode se encontrar entre Paulo Freire, de uma ligação entre educação, justiça, direito e direitos humanos, que não seja apenas uma evocação de sua originária formação em Direito, depois de um rápido ensaio inicial na advocacia.
Anoto que essa ligação foi desde logo estabelecida por Nita Freire. É dela a leitura que desvela uma “pedagogia dos direitos humanos” como proposta freireana de “inserção crítica dos homens e das mulheres nas suas sociedades ao possibilitar-lhes terem voz, dizerem a sua palavra, biografarem-se” (FREIRE, Ana Maria Araújo (Nita Freire). Acesso à Justiça e a Pedagogia dos Vulneráveis. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al. Organizador. Introdução Crítica ao Direito à Comunicação e à Informação. Série O Direito Achado na Rua, vol. 8. Brasília: FAC/UnB Livros, 2017).
A meu ver, a notável apreensão dessa imbricação emancipatória se apresentou de forma inesperada quando recebi um pedido de Nita Freire que me solicitava referências jurídicas de uma possível relação que se pudesse estabelecer entre o pensamento do educador brasileiro, forte numa pedagogia de autonomia, e o direito. É que ela havia sido convidada a proferir uma conferência na Escuela del Servicio de Justicia, a Escola de Magistratura argentina, e gostaria de focalizar a sua apresentação pondo em relevo essa relação.
Diante do pedido de Nita, enviei-lhe duas dissertações de mestrado, ao final, fortemente citadas em sua conferência – “Acesso à Justiça e a pedagogia dos vulneráveis”; ou “O pensamento de Paulo Freire e sua relação com o Direito como prática para a libertação” – em base as quais desenvolveu os seus argumentos afirmativos da relação procurada (FREIRE, 2014): FEITOZA, Pedro Rezende Santos. O direito como modelo avançado de legítima organização social da liberdade: a teoria dialética de Roberto Lyra Filho. Dissertação apresentada em 2014, na UnB; GÓES JUNIOR, José Humberto de. Da Pedagogia do Oprimido ao Direito do Oprimido: Uma Noção de Direitos Humanos na Obra de Paulo Freire. Dissertação de Mestrado, Mestrado em Ciências Jurídicas, UFPB, João Pessoa, 2008.
Tal como exponho em outro escrito meu (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. O Direito Achado na Rua: Condições Sociais e Fundamentos Teóricos. Revista Direito e Praxis, Rio de Janeiro, vol. 10, n º 4, 2019, p. 2776-2817).
Não deixou, entretanto, de ser uma surpresa, rica e inesperada, acompanhar o modo como a conferencista estabelece a relação e sabe se valer das contribuições que lhe foram oferecidas, tanto mais valiosas quanto elaboradas por dois bem investidos do conhecimento e da prática que balizam O Direito Achado na Rua, para operar com as categorias formuladas por Roberto Lyra Filho e designar, na interconexão que logra estabelecer, entre Roberto Lyra Filho e Paulo Freire, entre o Direito e a Pedagogia da Autonomia, na sua leitura, tornada possível pela mediação de O Direito Achado na Rua. Percebe-se isso na conclusão que propõe (FREIRE, Ana Maria Araújo Freire (nita freire). Conferência proferida em Buenos Aires, em 25 de setembro de 2014, na Escola de Serviço de Justiça, em programa de especialização em Magistratura. www.odireitoachadonarua.blogspot.com, acesso em 03.02.2015):
“Por tudo que foi exposto torna-se possível asseverar, que, a relação de Paulo Freire com o Direito nega veemente a concepção tradicional do direito da Modernidade e se alia ___ talvez fosse mais correto dizer que ele, ao lado de outros intelectuais que enriqueceram o pensamento da esquerda mundial criaram um nova leitura do mundo, humanista e transformadora, dentro da qual meu marido concebeu uma teoria epistemológico-ético-político-antropológico-critica de educação, que está alinhada com a concepção do Direito Achado na Rua, a Teoria Dialética Social do Direito. Entretanto, cabe aqui uma ressalva: o jurista Roberto Lyra Filho, que embasa Feitoza e Góes, como também este meu trabalho, não cita Paulo Freire em nenhum dos seus mais de 40 livros. Porém, fica evidente, com uma simples leitura dos trabalhos deles, que Lyra sorveu princípios e utilizou algumas categorias fundamentais da teoria do educador brasileiro, seu conterrâneo”.
o estudo trata a assessoria jurídica e advocacia popular como indicadores do grau de qualidade democrática do sistema de justiça, compreendendo o papel dessas organizações tradutoras e mediadoras das lutas políticas dos movimentos sociais com as instituições do poder público, em especial as da justiça. Presente na história institucional da Terra de Direitos e da Dignitatis, a Renap – Rede de Advogadas e Advogados Populares está entre as motivações para a realização da pesquisa. A Rede foi criada em 1995 com o propósito de fortalecer a comunicação e a interlocução entre os diversos advogados e advogadas que atuam junto aos movimentos sociais no Brasil. Desde a criação da Rede, a advocacia popular se expandiu acompanhando o movimento histórico próprio do desenvolvimento da luta por direitos no Brasil. Aliado à Renap, a pesquisa surge também no âmbito dos debates da JusDh – Articulação Justiça e Direitos Humanos, que vem atuando sobre uma agenda política voltada para a democratização da justiça.
Segundo levantamento feito pela pesquisa, o cenário da assessoria e advocacia popular no Brasil conta com 96 entidades, distribuídas por 117 pontos de atuação, considerando que há organizações com escritórios em mais de uma cidade. A maior concentração está nas regiões metropolitanas e nas capitais, o que reafirma a atuação da advocacia popular no trabalho de tradução entre o mundo dos movimentos sociais e as instituições públicas das três esferas de poder, agrupados principalmente nas capitais.
Já os escritórios localizados no interior estão principalmente nas regiões Norte. Estado com de alto de conflitos fundiários, o Pará se destaca pelo número de entidade espalhadas pelo seu território, voltadas especialmente aos temas agrários, como Terra e Território, Meio Ambiente e Trabalho Escravo. Dados da Comissão Pastoral da Terra, publicados no Relatório de Conflitos no Campo, mostram que houve registro de 89 conflitos por terra no estado em 2012, despontando como o mais violento da região e o 4º estado com o maior número de conflitos no país.
A pesquisa traz, ainda, outras duas abordagens: a identificação da variação temática da atuação das entidades de assessoria jurídica e advocacia popular, e o instrumental manejado em sua atuação. No âmbito do “mapa temático”, foram identificados 13 temas de direitos humanos usualmente defendidos pelas entidades pesquisadas. Segundo Antonio Escrivão Filho, co-coordenador da pesquisa pela Terra de Direitos, “um dado interessante foi a revelação de que há variações na distribuição e presença de temas, na medida das diferentes regiões do país. Neste sentido, destacaram-se, por exemplo, a elevada incidência do tema “LGBTT” no Nordeste, ao passo em que a temática de “Criança e Adolescente” se concentrou na região Sudeste”.
No que se refere à dimensão instrumental, a pesquisa buscou verificar quais as ferramentas e estratégias presentes no cotidiano de atuação das entidades, confirmando a análise que aponta para uma utilização combinada de instrumentais políticos e jurídicos na solução de demandas referentes à violação ou efetivação dos direitos humanos no Brasil.
Tudo isso contribui para explicar a outorga do (https://www.youtube.com/watch?v=DaSY1saZryg) Premio Esdras Borges da Costa de Ensino do Direito FGV, categoria prêmio destaque, ao Grupo Proponente Professores José Geraldo de Sousa Junior, Eduardo Lemos e Renata Vieira e Estudantes Maria Antonia Melo, Júlia Taquary, Rafael Santos, Lucca Dal Sochio e Juliana Machado. Projeto Pesquisa em (que) Direito. Integrou a documentação da candidatura o vídeo produzido pelos estudantes monitores da disciplina Pesquisa Jurídica [2020.1] sobre a Extensão na Faculdade de Direito da UnB (https://www.youtube.com/watch?v=Q65Ks3B_xHY).
Tendo como base teórica, principalmente O Direito Achado na Rua e o Direito Insurgente, Adda sustenta como hipótese de pesquisa “que AJUP-RLF, assim como muitos projetos de extensão, vivenciou, ao decorrer da sua história, gerações, muito marcadas pelos membros que estavam à frente do projeto na época”, todos mobilizados por uma concepção emancipatória de jurídico, notadamente na UnB (http://estadodedireito.com.br/a-pratica-juridica-na-unb-reconhecer-para-emancipar/; também (http://estadodedireito.com.br/o-direito-achado-na-rua-e-as-possibilidades-de-praticas-juridicas-emancipadoras/) e a sua proposta “é desenvolver essa tese ao decorrer da escrita do artigo, assim como, apresentar a atuação do projeto com os movimentos sociais no DF”.
Folgo em que a base teórica em que se quer apoiar Adda Luisa também esteja presente nos pressupostos conceituais que orientam a elaboração do Mapa, sobretudo quando os autores da pesquisa, constatam o reaparecimento dos “movimentos sociais no cenário político da reivindicação de direitos civis, políticos, econômicos e sociais como sujeitos coletivos de direitos”, capazes de, “Instituir novos modos de vida e de juridicidade, não apenas do ponto de vista semântico (como fonte de argumentos que ajudam a criar novas interpretações para velhas categorias), mas também do ponto de vista pragmático (como fonte de práticas que inspiram novas formas de operabilidade do fenômeno jurídico)”, valendo-se, nesse passo, de fontes que se organizam no Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua: ‘Esses movimentos sociais, segundo Sousa Júnior, constituem-se como sujeitos coletivos a partir da elaboração do modo como vivem suas relações e identificam seus interesses. Para o autor, o que dá o caráter de sujeito coletivo a esses grupos “é a conjugação do processo de identidades coletivas, como forma do exercício de suas autonomias e a consciência de um projeto coletivo de mudança social a partir das próprias experiências” (1999, p. 257). Ainda de acordo com Sousa Júnior (1999, p. 258), a ação desses sujeitos coletivos na defesa de interesses reflete o entendimento por parte deles de negação de um Direito, daí a luta para conquistá-lo. É justamente essa luta por Direitos, fundada nas necessidades desses grupos, articuladores de vontades gerais, que realça o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, constituindo novos espaços sociais de participação política nos quais se enunciam novos Direitos e que torna os movimentos sociais como novos sujeitos de Direito, os sujeitos coletivos de Direito’.
Confira-se, sobre isso, notadamente as páginas 22 e 23 do texto. Ali se verá ainda, conforme os autores que “Pensar a democratização da justiça a partir dessa ótica exige um duplo movimento de observação, análise e reflexão: primeiro, em torno dos processos e práticas de lutas sociais concretas, em cujos horizontes se instituem os direitos humanos (nesse sentido, Sousa Júnior, 1999); segundo, a respeito das formas – de reconhecimento e abertura, ou de invisibilização e indiferença, ou ainda de escancarada repressão – como os órgãos do sistema estatal de justiça relacionam-se ou não com essas lutas”.
Nessa linha de especificação e de continuidade de uma experiência que de fato “revoluciona” o ensino jurídico e contribui para o processo de democratização da justiça (Justiça como categoria de reconhecimento e de emancipação e não como sistema funcional e burocrático), tal como propõe Boaventura de Sousa Santos – http://estadodedireito.com.br/para-uma-revolucao-democratica-da-justica/ – guardo grande expectativa do estudo que Adda Luisa de Melo Sousa, estudante de graduação na UnB, dirigente do Centro Acadêmico e do Projeto de Extensão Universitária Assessoria Jurídica Roberto Lyra Filho, está desenvolvendo no PIBIC – Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica): “Histórico, concepção e prática da Assessoria Jurídica Universitária Popular da UnB – Roberto Lyra Filho“.
A Assessoria Jurídica Universitária Popular (AJUP), da Universidade de Brasília (UnB), está completando dez anos. Para falar sobre o papel histórico dela, o programa O Direito Achado na Rua, pela TV 61, recebe duas de suas integrantes.
São elas: Kelle Cristina Silva e Rayssa Cavalcante Matos. Elas são graduandas em Direito pela UnB e extensionista da AJUP Roberto Lyra Filho, sendo que Rayssa é também diretora do Centro Acadêmico.
Conversamos com elas sobre o contexto de surgimento do projeto, seus objetivos e formas de atuação e das relações com os movimentos sociais do Distrito Federal e as extensões universitárias. O papel social do Direito e da universidade também está em nossa pauta.
Todas essas injunções têm contribuído para configurar o grande esforço interinstitucional de curricularização da extensão no sistema universitário brasileiro. Chamo a atenção para o ciclo instalado na UFPR, com o Seminário “Curricularização da Extensão Universitária em Direito: debates e experiências”, com o objetivo de construir um espaço interinstitucional de reflexão sobre a Extensão Universitária nos Cursos de Direito e o processo de curricularização regulado na Resolução nº 7 MEC/CNE/CES, de 18 de dezembro de 2018. O Seminário é um projeto interinstitucional concebido e organizado pelas seguintes instituições parceiras: Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), UNDB Centro Universitário, Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Universidade Federal de Jataí (UFJ), Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS). Em seu 4º encontro 4º Encontro, o Seminário pautou o tema “Promotoras Legais Populares: extensão universitária para a autonomia das mulheres” e nele, atuaram como Facilitadoras: Lívia Gimenes Dias da Fonseca (UFRJ) e Helga Maria Martins de Paula (UFJataí-GO), sendo debatedora a professora Talita Tatiana Dias Rampin (UnB). O encontro aconteceu na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Anoto que Lívia e Helga participaram da instalação do projeto Promotoras Legais Populares da UnB e Lívia, atualmente, é docente do corpo de professores da Faculdade de Direito da UnB, coordenando o projeto de Extensão Promotoras Legais Populares: Capacitação de Mulheres em Gênero e Direitos Humanos.
Eu próprio participei desse projeto, no espaço da UFPR, conforme se poderá conferir em https://www.youtube.com/watch?v=CpPF2wlgUoE, no Ciclo com a Extensão: Desafios da Curricularização no Direito (UFPR). Mesa: Extensão e o Direito. O que é, seus fundamentos e suas práticas.
Volto ao catálogo de vídeos do canal youtube de O Direito Achado na Rua (www.odireitoachadonarua.blogspot.com) e entre as muitas sugestões, também ligadas ao tema, por seu vínculo com a orientadora, veja-se https://www.youtube.com/watch?v=ds73hjR-pm8, Lançamento da Denúncia do Tribunal Popular Internacional sobre o Sistema de Justiça.
Assim que, estando de acordo no geral com o trabalho apresentado por Rayssa Cavalcante Matos em sua monografia, oriento minha arguição para oferecer complementos necessários, à bem posta bibliografia oferecida pela Autora, com alguns novos registros.
Além dos anotados no correr da exposição, os imprescindíveis: O Direito Achado na Rua: 25 Anos de Experiência de Extensão. Nair Heloisa Bicalho de Sousa, Alexandre Bernardino Costa, Lívia Gimenes da Fonseca e Mariana de Faria Bicalho. In Participação. Revista do Decanato de Extensão da Universidade de Brasília – Ano 10 nº 18 – dezembro de 2010, p. 41-52; Direitos Humanos e Educação em Direitos Humanos na Extensão da Universidade de Brasília. Nair Heloisa Bicalho de Sousa, Regina Coelly Fernandes Saraiva, Rosamaria Giatti Carneiro e Vanessa Alves Carneiro. In João Batista Moreira Pinto (org). Direitos Humanos como Projeto de Sociedade: Caracterização e Desafios, vol. 1. Belo Horizonte: Editora Instituto DH, 2018, p. 297-322.
O tema escolhido por Rayssa Cavalcante Matos para além de todos os fundamentos por ela arrolados que avalizam a sua relevância, encontra um respaldo cabal em leituras de grande valor homologador. Indico para corroborar as escolhas de Rayssa, o enfoque equivalente de Boaventura de Sousa Santos (Para uma Revolução Democrática da Justiça, 3ª edição. São Paulo: Cortez, 2011).
Para realçar sua abordagem do tema acesso à justiça, Boaventura distingue dois projetos de extensão da Faculdade de Direito da UnB, relativos à prática jurídica. Num caso, para destacar “dentre as iniciativas em curso no Brasil, o curso de promotoras legais populares do Distrito Federal, cuja característica distintiva reside na articulação entre as práticas de capacitação jurídica e as práticas de extensão da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília”. No outro caso, relativo às assessorias jurídicas universitárias populares, para acentuar que “a participação dos estudantes de direito em tais projetos favorece a aproximação a espaços muitas vezes ignorados e que servirão de ‘gatilhos pedagógicos’ para uma formação mais sensível aos problemas sociais, o que nem a leitura de um ótimo texto descritivo de tal realidade poderia proporcionar. É a interação entre estudantes e sociedade a agir como protagonista do processo de ensino e aprendizagem”.
Nesse ensaio Boaventura dá concretude à sua percepção geral sobre o que considera a passagem da ideia de universidade à universidade de ideias (cf. com o mesmo título, in Cristiano Paixão (org). Redefinindo a relação entre o professor e a universidade: emprego público nas Instituições Federais de Ensino?. Brasília: UnB/Faculdade de Direito/CESPE, Coleção ‘O que se Pensa na Colina’, vol. 1, 2002), especialmente quando propõe, seguindo a sugestão do então Reitor da UnB Cristovam Buarque, forte no entendimento de que ‘a política de universidade deve combinar o máximo de qualidade acadêmica com o máximo de compromisso social’, que se atribua relevo, entre as experiências da UnB, ao projeto O Direito Achado na Rua, que visa, entende ele, a “recolher e valorizar todos os direitos comunitários, locais, populares, e mobilizá-los em favor das lutas das classes populares, confrontadas, tanto no meio rural como no meio urbano, com um direito oficial hostil ou ineficaz”, p. 111.
Aplicadas imediatamente à educação jurídica, Boaventura de Sousa Santos infere que essa dimensão teórico-prática e compromisso social designa o sentido da reforma do ensino do direito, desencadeada pela Portaria nº 1886, de 30 de dezembro de 1994, “ao perseguir o propósito de fazer com que as faculdades adotassem uma prática diferente da assistência jurídica técnico-burocrática típica dos escritórios-modelo, [investindo] na ideia de criação de Núcleos de Prática Jurídica como espaços de germinação de uma práxis diferenciada e progressista”.
Folgo em que a abordagem de Rayssa Cavalcante Matos seja confortada por essa igual constatação em Boaventura de Sousa Santos, que também me engaja porque, nessa passagem o autor português remete ao meu O Direito como Liberdade. O Direito Achado na Rua (Tese de Doutorado UnB, 2008), no tópico relativo ao ensino do direito.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Ailton Krenak. Futuro Ancestral, 1ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2022, 122 p.
A Companhia das Letras, que tem feito a edição sucessiva de escritos de Ailton Kernak, mais uma vez nos brinda com essa primorosa e necessária edição de nova obra do autor, Futuro Ancestral. Anunciando o livro em sua página, a Editora indica “esta nova coleção de textos, [com os quais] Ailton Krenak nos provoca com a radicalidade de seu pensamento insurgente, que demove o senso comum e invoca o maravilhamento”.
Essa consigna está contida na descrição da obra, oferecida pela Editora, na qual se destaca que “a ideia de futuro por vezes nos assombra com cenários apocalípticos. Por outras, ela se apresenta como possibilidade de redenção, como se todos os problemas do presente pudessem ser magicamente resolvidos depois. Em ambos os casos, as ilusões nos afastam do que está ao nosso redor. Nesta nova coleção de textos, produzidos entre 2020 e 2021, Ailton Krenak nos provoca com a radicalidade de seu pensamento insurgente, que demove o senso comum e invoca o maravilhamento. Diz ele: “Os rios, esses seres que sempre habitaram os mundos em diferentes formas, são quem me sugerem que, se há futuro a ser cogitado, esse futuro é ancestral, porque já estava aqui”.
São referências que se enquadram na composição do escritor Muniz Sodré, que confirma: “Ailton Krenak é um filósofo originário: desentranha do pensamento indígena uma forma que os ocidentais se habituaram a reconhecer como ‘filosofia’ e a confronta, à medida que também a aproxima, com os modos especulativos europeus e outras.
A chave de leitura dos textos que compõem o livro é oferecida pelo próprio Autor:
Nesta invocação do tempo ancestral, vejo um grupo de sete ou oito meninos remando numa canoa:
Os meninos remavam de maneira compassada, todos tocavam o remo na superfície da água com muita calma e harmonia: estavam exercitando a infância deles no sentido do que o seu povo, os Yudjá, chamam de se aproximar da antiguidade. Um deles, mais velho, que estava verbalizando a experiência, falou: ‘Nossos pais dizem que nós já estamos chegando perto de como era antigamente’.
Eu achei tão bonito que aqueles meninos ansiassem por alguma coisa que os seus antepassados haviam ensinado, e tão belo quanto que a valorizassem no instante presente. Esses meninos que vejo em minha memória não estão correndo atrás de uma ideia prospectiva do tempo nem de algo que está em algum outro canto, mas do que vai acontecer exatamente aqui, neste lugar ancestral que é seu território, dentro dos rios.
O sumário organiza incursões que o Autor faz no tempo ancestral em evocações que dão essa medida de maravilhamento: “saudações aos rios”; “Cartografias para depois do fim”; “Cidades, pandemias e outras geringonças”; “Alianças afetivas”; “O coração no ritmo da terra”. Esse material, produzido pelo Autor em diversas circunstâncias e em diferentes auditórios e tantas interlocuções, foi trabalhado (pesquisa) e organizado (edição), por Rita Carelli. Para esse trabalho, leal à oralitura do grande pensador, diz a organizadora:
A ideia de futuro por vezes nos assombra com cenários apocalípticos. Por outras palavras, se apresenta como possibilidade de redenção, como se todos os problemas do presente pudessem ser magicamente resolvidos depois. Em todo caso, as ilusões nos afastam do que está ao nosso redor. Nesta novacoleção de textos, produzidos entre 2020 e 2021, Ailton Krenak nos provoca com a radicalidade de seu pensamento insurgente, que demove o senso comum e invoca o maravilhamento. Diz ele: ‘Os rios, esses seres que sempre habitaram os mundos em diferentes formas, são quem me sugerem que, se há futuro a ser cogitado, esse futuro é ancestral, porque já estava aqui’
De que outro modo será possível abrir diálogo sobre a origem do mundo senão a partir da cosmovisão dos povos, dos Yanomami, conforme indica Suliete Baré (O RETORNO DE XAWARA NO TERRITÓRIO YANOMAMI: CONFLITO, LUTA E RESISTÊNCIA. SULIETE GERVÁSIO MONTEIRO (SULIETE BARÉ). Dissertação de mestrado submetido ao Programa de Pós Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, como requisito para a obtenção de Grau de Mestre em Direitos Humanos. Brasília: Universidade de Brasília, 2022, cf. em http://estadodedireito.com.br/29767-2/); de modo abrangente, para compreender a importância do território para o povo, e abordando o respeito com a natureza, cf. Catherine Fonseca Coutinho (http://estadodedireito.com.br/literaturas-munduruku-as-historias-contadas-e-a-justica-cognitiva/), numa leitura atenta de Gersen Baniwa, Davi Kopenawa e Ailton Krenak.
Vali-me desse maravilhamento invocável, ao me deparar com a exigência de indignação em face do genocídio em cursos contra o povo Yanomami (https://www.brasilpopular.com/pode-se-falar-de-crime-de-genocidio-no-quadro-de-mortandade-atual-yanomami-em-roraima/). No texto, recuperei entrevista de Davi Kopenawa (https://www.ihu.unisinos.br/625951-parem-de-mentir-lider-yanomami-dario-kopenawa-critica-militares-e-rebate-bolsonaristas), de onde anotei seu questionamento às 570 mortes de crianças de seu povo “por causa de invasores [que receberam] apoio logístico do governo passado, eu não estaria falando com vocês [da imprensa]. Eu não estaria falando na rede, mostrando minha cara. Eu ficaria na minha aldeia, cuidando dos meus parentes, trabalhando. Ia colocar as roças, ajudar meu povo sem problema” avisando que vão“continuar criticando o governo passado, porque eles têm responsabilidade. Eles têm que responder na Justiça pelo que eles não cumpriram, não respeitaram a legislação brasileira. Não pode falar mentiras nas redes sociais e nos jornais. Eles têm que responder na Justiça pelo erro, pela gravidade e pela negligência. Eles mataram 600 [mil brasileiros na pandemia]. Isso significa massacre, que é o genocídio. Não cuidaram da população brasileira. Eu quero que a justiça seja bem dura. A Justiça tem que cumprir, e essas pessoas têm que ser presas”.
E, para afirmar a minha conclusão sobre tipificar o genocídio, afirmei que sim, pode-se e deve-se falar de crime de genocídio no quadro de mortandade atual Yanomami em Roraima. Pois nos vemos diante deu uma ação concebida, projetada e executada para produzir a mais letal forma de aculturação que se caracteriza pela intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso (…) como [entre outros atos] matar membros do grupo”. E arrematei: “Uma operação forrada pela narrativa empreendedora e subsidiada por agentes públicos, para produzir também um etnocídio justificado por um outro conceito de desenvolvimento, que produziu em quatro anos uma devastação que um milênio de modo de existência, de bem viver e de projetar, como diz Krenak, um futuro ancestral, para uma humanidade enfim renaturalizada, que cabe preservar”.
Com efeito, de minha parte constato que tudo que leio de Ailton conduz a projetar uma humanidade que se realize num movimento de “aproximação da antiguidade” a partir da qual se projete o futuro ancestral. Ao menos foi assim que referi no evento que culminou com a outorga, pela Universidade de Brasília, do título de Doutor Honoris Causa a Ailton Krenak, quiçá querendo contribuir para o “adiamento do fim do mundo”, na medida em que, com esse gesto, se demarca posição institucional de defesa incondicional dos direitos humanos, em especial de reconhecimento e valorização da pluralidade das formas de pensar e viver dos povos, bem como de seu engajamento no enfrentamento dos grandes desafios do nosso tempo, como o da sustentabilidade.
No meu parecer que lastreou o acolhimento da proposição originária do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos (CEAM), subscrita por mim e pela professora Vanessa Castro, e também por Marilena Chauí e Boaventura de Sousa Santos, ambos Doutores Honoris Causa da UnB, o título que propus foi: AILTON KRENAK: “Terra e Humanidades Caminhando Juntas”.
Terra e Humanidades, assim mesmo no plural, é o que traz Ailton Krenak, com a sua lição “ensinada ao repassar com maestria uma das mensagens compartilhadas por povos originários: a Terra e a Humanidade caminham juntas. Precisamos compreender que somos uma ínfima parcela que compõe a natureza e que, mais do que nunca, está a impossibilitar a vida”.
Fiz esse registro em http://estadodedireito.com.br/o-sistema-e-o-antissistema-tres-ensaios-tres-mundos-no-mesmo-mundo/, lembrando que, para Krenak o vital “é que possamos nos abrir para outros mundos onde a diversidade e a pluralidade também estejam presentes, sem serem caçadas, sem serem humilhadas, sem serem caladas. E que possamos também experimentar viver em um mundo no qual ninguém precise ficar invisível, ninguém precise ser Garabombo, o invisível (referência ao personagem do livro Garabombo, o Invisível, de Manuel Scorza) no qual possamos ser quem somos, cada um com a sua singularidade, humanos nas suas competências, nas suas deficiências, nas suas dificuldades. E que sejamos capazes também de reciprocidade, que é um lema que deveria estar entre aqueles que propõem que nos juntemos para pensar mundos”.
Futuro Ancestral prossegue o itinerário que Muniz Sodré identifica na oralitura de Krenak, enquanto “experiência de romper o espaço entorno em busca de algo que ainda não se conhece, mas se pressente. É uma viagem com o transe da paixão pela descoberta”. Com Ailton, diferentemente do Meandro o rio que se prorrogou em metáfora apolínea para pensamentos que se enroscam em sinuosidades penosas, o “Watu e os outros rios de que fala Krenak, junto com seus seres, são entidades vivas, astutas o suficiente para mergulhar em busca de lençóis freáticos…para manter seu fluxo, ou mesmo sobreviver ao ecocídio tóxico dos detritos”, e que orientam o agir para adiar o fim do mundo.
Sob essa ótica (http://estadodedireito.com.br/ideias-para-adiar-o-fim-do-mundo/), Ailton já falava de uma humanidade fecundada numa ancestralidade que junta ao invés de separar, e que, ao contrário do senso antropofágico de humanos que se consomem numa reivificação e que se presta ao entredevorar-se uns pelos outros, supra a falta de sentido de um cosmos esvaziado por essa antropofagia: “Sentimo-nos como se estivéssemos soltos num cosmos vazio de sentido e desresponsabilizados de uma ética que possa ser compartilhada, mas sentimos o peso dessa escolha sobre as nossas vidas. Somos alertados o tempo todo para as consequências dessas escolhas recentes que fizemos. E se pudermos dar atenção a alguma visão que escape a essa cegueira que estamos vivendo no mundo todo, talvez ela possa abrir a nossa mente para alguma cooperação entre os povos, não para salvar os outros, mas para salvar a nós mesmos” (p. 44, de Ideias para Adiar o Fim do Mundo).
Trata-se de regenerar uma Terra canibalizada por uma humanidade que dela se apartou, numa ilusão utilitária, da qual precisa ser libertada para que seus lugares deixem de ser o repositório de resíduos da atividade industrial e extrativista (http://estadodedireito.com.br/a-vida-nao-e-util/).
Trata-se, em suma, de passar do estágio de florestania que já se desdobrara da redução política da localização na cidadania, e das múltiplas possibilidades de reivindicar direitos que não se estiolem no esforço de se confinarem em igualdades, para o estágio amplificado das alianças afetivas.
Retomo em Ailton, o seu próprio texto:
Comecei a questionar essa busca permanente pela confirmação da igualdade e atinei pela primeira vez para o conceito de alianças afetivas – que pressupõe afetos entre mundos não iguais. Esse movimento não reclama por igualdade, ao contrário, reconhece uma intrínseca alteridade em cada pessoa, em cada ser, introduz uma desigualdade radical diante da qual a gente se obriga a uma pausa antes de entrar: tem que tirar as sandálias, não se pode entrar calçado. Assim eu escapei das parábolas do sindicato e do partido (quando um pacto começar a cobrar tributo, já perdeu sentido) e fui experimentar a dança das alianças afetivas, que envolve a mim e uma constelação de pessoas e seres na qual eu despareço: não preciso mais ser uma entidade política, posso ser só uma pessoa dentro de um fluxo capaz de produzir afetos e sentidos. Só assim é possível conjugar o mundializar, esse verbo que expressa a potência de experimentar outros mundos, que se abre para outras cosmovisões e consegue imaginar pluriversos (Futuro Ancestral, p. 82-83).
Difícil visualizar e ter denotações discursivas para essa antevisão planetária, plurivérsica. Mas, numa lógica desformalizada, que se embrenhe na dialética do mundo e da existência, não é inusitado admitir essa possibilidade.
Lodo depois da publicação do livro O Sistema e o Antissistema. Três Ensaios, Três Mundos no Mesmo Mundo. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2021, obra que reúne três ensaios sobre o tema, com distintas visões de seus autores Boaventura de Sousa Santos, Ailton Krenak e Helena Silvestre, a Autêntica preparou uma live, com a autora e os autores, para que apresentassem e expusessem as suas percepções a partir dos ensaios, convidando também a professora Cláudia Cristina Ferreira Carvalho, docente da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Grande Dourados/UFGD; coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-brasileiro/UFGD e do Centro de Referência em Direitos Humanos do Estado de Mato, para uma leitura crítica dos ensaios. Fui o moderador do debate.
Divulgado amplamente nas redes de transmissão da plataforma youtube, a conversa, em toda a sua extensão e riqueza pode ser acompanhada pelo link https://www.youtube.com/watch?v=9gRuSpR8l7I (Canal Youtube de O Direito Achado na Rua). Não obstante falar-se de uma divergência de posicionamentos, ao menos na conversa o que logo se percebeu é existir mesmo uma complementariedade das aproximações. Enfoques acentuados pelas perspectivas dos autores desde as interpelações decorrentes de seus pontos de vista ou da vista a partir dos lugares de observação.
Aproveitei toda essa mobilização para dar conteúdo a uma recensão aqui neste espaço da Coluna Lido para Você (http://estadodedireito.com.br/o-sistema-e-o-antissistema-tres-ensaios-tres-mundos-no-mesmo-mundo/). A minha conclusão ali, em face da obra e do debate, é o que trago para fecho de minha leitura de Futuro Ancestral, a partir da indicação de Ailton Krenak sobre a possibilidade de alianças afetivas
Certamente, cuida-se de pensar e discutir, como sugeriu Boaventura na conversa transmitida pela live, nas escolas, nas organizações, nas comunidades; de ler e escrever com os olhos dos outros, propõe Helena Silvestre, sem perder de vista, aconselha Cláudia Carvalho, a linha abissal que separa os mundos, dos visíveis e dos invisíveis, dos humanos e dos não-humanos, conforme o olhar da esquerda e da direita, dos fascistas e dos democratas; mas também, de pensar mundos, como diz Krenak.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
Direitos Humanos e interconstitucionalidade: processos de abertura
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Direitos Humanos e interconstitucionalidade: processos de abertura. Isabella Faustino Alves. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2022, 182 p.
Valho-me da Descrição preparada pela Editora para o lançamento do livro tema deste Lido para Você:
“Estamos em diálogo, a Autora e os pesquisadores que formam o Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua. Conforme ela diz no fecho de seu livro, observa-se que o diálogo pressuposto tanto pelos direitos humanos, como processos de abertura e interação com outros processos culturais, quanto pela estatalidade aberta postulada pela interconstitucionalidade, entabula-se e renova-se diariamente, em distintas sedes – e ainda que enquanto potencialidade nalgumas searas–, nas quais se instauram demandas por reconhecimento, redistribuição, representação e inclusão, sem as quais não se pode falar em legitimidade democrática.”
A Autora do presente Livro, Isabella Faustino, Defensora Pública do Estado do Tocantins, completa a sua orientadora em Portugal, Paula Veiga, Professora de Direito Constitucional e Direito Internacional Público da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, que se incumbiu também do Prefácio, “é uma mulher doce. Conhecemo-la na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Portugal, quando foi nossa Estudante de Mestrado, no ano letivo 2018/19. Mas, tivemos oportunidade de mais de perto privar aquando da orientação da Dissertação de Mestrado, precisamente com o texto, embora pontualmente revisto, que agora o Leitor tem em suas mãos”.
Ela destaca:
Em Direitos Humanos e Interconstitucionalidade: Processos de Abertura, Isabella expressa toda a sua inclinação entre o direito, a sociologia e a filosofia, tentando construir pontes entre estas várias áreas do saber. Dialogando com vários autores, tenta refletir na forma de combate à «segregação social», que resulta, na sua visão, na «divisão do espaço» entre «zonas selvagens» e «zonas civilizadas».
O cosmopolitismo da autora é expresso nas análises que faz da interculturalidade e da interconstitucionalidade e na intransigente defesa de uma cultura de direitos humanos através dos «processos de abertura».
Este é um texto que deve ler-se como uma tentativa esmerada e séria de, neste mundo desigual e complexo, nos focarmos na gramática dos Direitos Humanos. O conjunto diversificado de reflexões que ele contém merecerem, pois, a maior atenção do Leitor num momento em que o mundo se vê confrontado com grandes preocupações, de diversa ordem, sejam as resultantes da pandemia de Covid, sejam as derivadas de um conflito armado ainda sem fim à vista.
Remeto ao Sumário da Obra:
INTRODUÇÃO
CAPÍTULO I – DIREITOS HUMANOS: A ÚLTIMA UTOPIA OU PROCESSOS DE ABERTURA?
I.1 A CONSTRUÇÃO FILOSÓFICA DOS DIREITOS HUMANOS: UMA PROPOSTA DA MODERNIDADE OCIDENTAL
I.2 A AFIRMAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: DA FILOSOFIA ÀS CONSTITUIÇÕES
I.3 A PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS: UMA (TENTATIVA DE) RESPOSTA À INSUFICIÊNCIA
I.4 DIREITOS HUMANOS COMO PROCESSOS DE ABERTURA: A(S) PERSPECTIVA(S) DA TEORIA CRÍTICA DOS DIREITOS HUMANOS
CAPÍTULO II – DIREITOS HUMANOS E CONSTITUIÇÃO: O ESTADO NA ERA DA GLOBALIZAÇÃO
II.1 O ESTADO E A SOBERANIA: UM PARADIGMA EM QUESTÃO
II.2 A INTERAÇÃO ENTRE O DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS E O DIREITO CONSTITUCIONAL NO SÉCULO XX
II.3 ESTADO, CONSTITUIÇÃO E DIREITOS HUMANOS NA ERA DA GLOBALIZAÇÃO
II.4 GLOBALIZAÇÃO E DIREITOS HUMANOS NO SÉCULO XXI: UM PLANETA SOCIAL?
CAPÍTULO III – INTERCONSTITUCIONALIDADE E DIREITOS HUMANOS: PROCESSOS DE ABERTURA
III.1 DESTERRITORIALIZAÇÕES E “SOBREPOSIÇÕES DE ESCALA”: À GUISA DE INTRODUÇÃO
III.2 INTERCONSTITUCIONALIDADE: CONSTITUIÇÕES E ESPAÇOS COMPARTILHADOS
III.3 INTERCULTURALIDADE: PLURALISMOS, PLURIVERSALISMO E PLURIDIVERSIDADE
III.4 PROCESSOS DE ABERTURA: OS DIREITOS HUMANOS COMO FUNDAMENTO DA INTERCONSTITUCIONALIDADE
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Para a Autora, como está na Introdução:
A tríade direito humanos, interconstitucionalidade e teoria da Constituição como ciência da cultura postula uma abordagem do direito e da cultura desde os planos ontológico, axiológico e epistemológico, enquanto operações de mediação, ao passo em que se reporta ao pluralismo como princípio, como dinâmica e como finalidade. É de se acentuar que atua fortemente, na análise, ainda que de modo subjacente, a tensão entre a importância do “conhecimento emancipatório do Estado” para a articulação do binômio realidade/possibilidade e a insuficiência “das construções constitucionais introvertidas assentes no paradigma estatal-nacional” . Na mesma medida, repercute sobre a reflexão a percepção de uma orientação neoliberal no chamado constitucionalismo global – assim como na integração interestatal (lembrando-se que o atual estágio da União Europeia não encontra semelhanças em outras partes do mundo), ao forçar mudanças nas Constituições estaduais em favor de um “prudencialismo constitucional parafinanceiro” .
Uma vez que a universalidade pretendida pelos direitos humanos tem relação com os ideais modernos de universalização, homogeneização, e racionalização, opta-se por iniciar com uma digressão que contempla a narrativa tida por hegemônica dos direitos humanos, para, na sequência, colacionar a(s) perspectiva(s) da teoria crítica dos direitos humanos. Ressalta-se, neste ponto, que a proposta da interconstitucionalidade como instrumento/modalidade de uma “globalização contra-hegemônica” não importa em menosprezar a importância das instituições modernas, nem em romantizar saberes e práticas não “ocidentalocêntricas” .
Cumpre anotar, quanto à metodologia, a preferência por uma tradução livre das referências oriundas de textos em língua estrangeira, sem deixar de se atentar ao risco de deturpação das palavras do(a) autor(a). A propósito, há, por vezes, em razão do recurso aos termos originais, a utilização do masculino tido por neutro, diante do que se contrapõe, desde já, à sobrerrepresentação do(s) homem(ns) “como um sinônimo do próprio humano” .
Desta feita, contextualizando-se as significativas implicações do processo de globalização sobre o ideal do Estado Social, assim como as circunstâncias que atualmente tensionam a “ordem internacional” construída no pós Segunda Guerra , convida-se, com Canotilho, a “um regresso do direito constitucional à filosofia” e às “estradas da política” , a desafiar um compromisso renovado com o ideal dos direitos humanos, por meio da “construção dinâmica, conflitiva e constante” de uma “universalidade estendida” a todos/as .
A convite de Isabella Faustino escrevi um posfácio a seu livro, fortemente mobilizado pelo seu conteúdo e pela solidariedade ao pensamento engajado da Autora. Nas suas Considerações Finais isso se confirma:
Observa-se que o diálogo pressuposto tanto pelos direitos humanos, como processos de abertura e interação com outros processos culturais, quanto pela estatalidade aberta postulada pela interconstitucionalidade, entabula-se e renova-se diariamente, em distintas sedes – e ainda que enquanto potencialidade nalgumas searas–, nas quais se instauram demandas por reconhecimento, redistribuição, representação e inclusão, sem as quais não se pode falar em legitimidade democrática .
Enquanto globalização contra-hegemônica – numa acepção de direitos humanos para a qual a transformação e a mudança contemplam tudo o que “social e individualmente somos” –, a lógica interconstitucional não pode descuidar da “natureza interligada da opressão” e do decorrente reconhecimento de que os indivíduos são afetados por múltiplos sistemas de dominação . Deve emergir, então, como uma racionalidade atenta à relação entre as desigualdades sociais e globais, e às interseções do racismo, da exploração de classe, do sexismo, do nacionalismo e do heterossexismo, dentre outras matrizes de opressão .
Assim, sabendo-se que, quanto mais pluralista for uma sociedade, mais a estima social cria relações simétricas entre seus membros , a interculturalidade e o pluralismo que possibilitam, ao tempo em que são fomentados, pelo diálogo interconstitucional tendem a favorecer uma maior horizontalidade nas relações. E, logo, a cooperar para a realização do direito como “modelo avançado de legítima organização social da liberdade” , indispensável à criação de uma “comunidade política viável”, que tem na solidariedade a “condição necessária e a contribuição coletiva essencial para o bem-estar da liberdade e da diferença” .
No meu posfácio, em conformidade ao que diz a professora Paula Veiga no prefácio, tenho que em Direitos Humanos e Interconstitucionalidade: Processos de Abertura, Isabella expressa toda a sua inclinação entre o direito, a sociologia e a filosofia, tentando construir pontes entre estas várias áreas do saber. Dialogando com vários autores, tenta refletir na forma de combate à «segregação social», que resulta, na sua visão, na «divisão do espaço» entre «zonas selvagens» e «zonas civilizadas». O seu cosmopolitismo é expresso nas análises que faz da interculturalidade e da interconstitucionalidade e na intransigente defesa de uma cultura de direitos humanos através dos «processos de abertura».
Tomando os pressupostos fixados pela Autora para armar a sua abordagem, partilho com ela e com a convocação autoral que sustenta a sua bibliografia, o entendimento de que “uma vez que a universalidade pretendida pelos direitos humanos tem relação com os ideais modernos de universalização, homogeneização, e racionalização”, faz-se necessária uma “narrativa tida por hegemônica dos direitos humanos, para, na sequência, colacionar a(s) perspectiva(s) da teoria crítica dos direitos humanos”, conduzindo, assim, a uma “proposta da interconstitucionalidade como instrumento/modalidade de uma ‘globalização contra-hegemônica’ não importa em menosprezar a importância das instituições modernas, nem em romantizar saberes e práticas não ‘ocidentalocêntricas’”.
Com a Autora, nessa perspectiva de aberturas interconstitucionais para percorrer caminhos de futuro, entendo que os direitos são a utopia que vislumbra o estado de direito enquanto materialização de direitos humanos. Ainda que o debate sobre os direitos humanos suscite inúmeras controvérsias, somente posso considerá-lo na medida de um duplo desafio: primeiro, avançar para além da teoria liberal e das concepções de justiça e de sociedade aprisionadas nesse paradigma; segundo, conhecer-se e ser reconhecido no diálogo com as lutas sociais por emancipação e dignidade.
Assim, cogitar da teoria e da história dos direitos humanos, especialmente, a partir do Brasil, parece algo pertinente, sobretudo desde uma aproximação que encontra, na América Latina, novos horizontes epistêmicos; no Estado, um complexo agente de garantia e, simultaneamente, de violação de direitos; e nas lutas sociais, o compromisso ético-político que põe em movimento e dá fundamento a uma sociedade livre, justa e solidária.
Juntamente com um parceiro de pesquisa e em co-autoria – refiro-me ao professor Antonio Escrivão Filho, procuramos abrir um debate orientado por esses pressupostos, para interrogar os direitos humanos desde uma perspectiva política, teórica e conceitual, o que fizemos por meio do livro “Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos” (Editora D’Plácido, Belo Horizonte, 2016). Neste livro, aproveitamos uma reflexão por nós acumulada numa sequência de cursos e escritos que realizamos em conjunto em diferentes espaços e auditórios, construindo uma rica interlocução à base de algumas singularidades.
De um lado, recusar a abordagem linear segundo a qual os direitos humanos se manifestam por etapas, como se fossem um suceder de gerações, em espiral evolutiva, de cujo evolver naturalizado derivassem os direitos individuais, civis e políticos, seguidos dos direitos econômicos, sociais e culturais. Em vez disso, buscar conferir os processos ou as dimensões, designadas num cotidiano de afirmação e de reconhecimento, do qual emergem de modo indivisível, interdependente e integralizados os direitos humanos, manifestados ontologicamente na realidade instituinte e deontologicamente, abrigados num plano de garantias institucionalizado.
De outra parte, rastrear a emergência dos direitos humanos como projeto de sociedade. Vale dizer, na consideração de que não se realizam enquanto expectativas de indivíduos, senão em perspectiva de coletividade, como tarefa cuja concretização se dá em ação de conjunto.
Assim sendo, partimos do debate conceitual dos direitos humanos, para esboçar o panorama do cenário internacional e de sua emergência histórica, no mundo e no Brasil. Para, desse modo, articular o seu percurso no contexto da conquista da democracia, assim designada enquanto protagonismo de movimentos sociais, ao mesmo tempo sujeitos de afirmação e de aquisição dos direitos humanos. Em relevo, pois, a historicidade latino-americana para acentuar a singularidade da questão pós-colonial forte na caracterização de um modo de desenvolvimento que abra ensejo para um constitucionalismo “Achado na Rua”. Problematiza-se, em conseqüência, os modos de conhecer e de realizar os direitos humanos, em razão das lutas para o seu reconhecimento, a partir das quais se constituem como núcleo da expansão política da justiça e condição de legitimação das formas de articulação do poder e de distribuição equitativa dos bens e valores socialmente produzidos”.
Aliás, com os mesmo interlocutores, Canotilho, Avelãs Nunes, Boaventura de Sousa Santos, Herrera Flores e David Sanches Rubio, do que se trata, em suma, é compreender os direitos humanos dentro de “um programa que dá conteúdo ao protagonismo humanista, conquanto orienta projetos de vida e percursos emancipatórios que levam à formulação de projetos de sociedade para instaurar espaços recriados pelas lutas sociais pela dignidade”, referência que a Autora, a partir de outra fonte bibliográfica, insere em sua própria narrativa.
A Autora, consciente dos limites que se põem ao percurso do emancipatório, identifica com Avelãs Nunes, no neoliberalismo, o obstáculo a ultrapassar. Estou de acordo. Aludindo ao mesmo livro do estimado professor e amigo confirmo que ele carrega intrinsecamente as marcas desse sentido de contribuição que um homem de universidade imprime a sua docência e ao movimento de espírito que busca oferecer disposição de entendimento para as questões que desafiam a compreensão das comunidades de inteligência.
Por isso que, o seu livro, se inspira em diálogos inter-universitários, em atenção ao interesse acadêmico, para aferir o significado econômico da política de globalização que marca a fase atual do capitalismo em escala mundial. Isso se identifica bem ao analisar as relações entre neoliberalismo e direitos humanos, matéria de sua intervenção em workshop sobre políticas neoliberais e direitos fundamentais (Onãti, Instituto Internacional de Sociologia Jurídica, julho de 2002), cujas notas se revelam nos textos que compõem a obra Neoliberalismo & Direitos Humanos.
Ele próprio me confirmou essa linha condutora de seu pensamento que bem define sua leitura da realidade. Em entrevista que me concedeu para o Observatório da Constituição e da Democracia – C & D (sobre o C & D conferir minha Coluna Lido para Você: http://bit.ly/2unYJIg), ele demarca esse ângulo forte de sua reflexão e, mais do que isso, expõe a sua visão de Justiça sobre a crítica ao que representa o capitalismo hegemônico. De fato, eu lhe propus a seguinte questão: uma linha significativa de sua produção científica tem se orientado pela busca de interligação entre economia, globalização e direito. É possível falar-se em justiça social ou em estratégias aceitáveis de desenvolvimento pela mediação das instituições e de políticas forjadas nos parâmetros do capitalismo ainda hegemônico no mundo atual?
Sua resposta não poderia ser mais contundente (C & D n. 21, abril de 2008, pp. 12-13):
É verdade que, sendo jurista de formação (a minha tese de mestrado é sobre um tema de direito societário), fiz o meu doutoramento e toda a subseqüente carreira universitária na área das ciências económicas. E acredito que é importante que se faça investigação e ensino das ciências económicas nas Faculdades de Direito. Na minha Faculdade (a Faculdade de Direito de Coimbra) ensina-se Finanças Públicas e Economia Política desde 1837. Nos dias de hoje, é para mim indiscutível que um bom jurista não pode desconhecer as instituições e os mecanismos da vida económica.
Nos últimos anos, tenho dado alguma atenção à problemática da globalização. Refiro-me ao que costumo chamar a terceira onda da globalização, marcada por um processo acelerado de desenvolvimento científico e tecnológico, especialmente no que toca aos transportes, às telecomunicações e à informática.
Para as classes dominantes, para as multinacionais e para o seu estado, pouco importa que milhões de pessoas morram de fome e de doenças provocadas pela fome. O que importa, num quadro como este, é melhorar o poder de compra dos clientes (a pequena camada de ricos) e, se possível, acrescentar mais uns quantos privilegiados a este núcleo de elite. O que, evidentemente, aconselha a (e pressiona no sentido da) concentração dos rendimentos ainda mais acentuada e desigual.
A exclusão social crescente é a outra face deste tipo de desenvolvimento perverso ou maligno. E a exclusão social é um dos fenómenos mais dramáticos do nosso tempo. Como escreveu um autor, quando se falava de exploradores e explorados, havia que contar com estes, porque os explorados estavam dentro do sistema (sem explorados não pode haver exploradores), enquanto os excluídos estão, por definição, fora do sistema, são inexistentes.
É importante salientar, porém, que a crítica da globalização não pode confundir-se com a defesa do regresso a um qualquer ‘paraíso perdido’, negador da ciência e do progresso. A saída desta caminhada vertiginosa para o abismo tem de assentar na confiança no homem e nas suas capacidades. Tem de partir da rejeição da lógica de uma qualquer inevitabilidade tecnológica, que nos imporia, sem alternativa possível, a actual globalização neoliberal, uma das marcas incontornáveis desta civilização fim-da-história.
Assim como esta globalização não é um ‘produto técnico’ deterministicamente resultante da evolução tecnológica, antes é um projecto político levado acabo de forma consciente e sistemática pelos poderes dominantes, enquadrado e apoiado pelas grandes centrais produtoras da ideologia dominante, assim também a luta por uma sociedade alternativa pressupõe que a política prevaleça sobre as pretensas ‘leis naturais’ do mercado ou da economia, pressupõe um espírito de resistência e um projecto político inspirado em valores e empenhado em objectivos que o ‘mercado’ não reconhece nem é capaz de prosseguir.
Todos sabemos, porém, que as mudanças necessárias não acontecem só porque nós acreditamos que é possível um mundo melhor. Essas mudanças hão-de verificar-se como resultado das leis de movimento das sociedades humanas, e todos sabemos também que o voluntarismo e as boas intenções nunca foram o motor da história. Mas a consciência disto mesmo não tem que matar o nosso direito à utopia e o nosso direito ao sonho.
Pela mesma Editora D’Plácido que acolhe o livro de Isabella Faustino, publicamos, eu e meus colegas Talita Tatiana Dias Rampin, Alberto Carvalho Amaral, organizadores, dois volumes sobre Direitos Humanos & Covid-19. Ambos com Prefácio de Boaventura de Sousa Santos, abrimos uma abertura de interconstitucionalidade, por meio de uma abordagem crítica da pandemia, a partir do contexto dos vulnerabilizados (vol. 1) e com o protagonismo social em face da pandemia, respostas de nós por nós (vol. 2), quando o governamental colapsa ou assume disposição negacionista, anti-povo, contra a vida, associada aos negócios em subordinação ao econômico e ao mercado.
No prefácio do segundo volume Boaventura de Sousa Santos dá uma senha para a compreensão desse percurso: “Uma lição que a história pode nos ensinar se estivermos dispostos a aprender, nessa quadra em que a pandemia parece acentuar a deriva da participação da pertença, sobretudo no colapso que os governos autoritários e antipovo revelam, é a que encontramos nas respostas sociais, autogestionadas, comunitárias que os movimentos e organizações sociais estão a oferecer. Neste livro há uma boa mostra dessas respostas, que representam um alento para conter a deriva, extremamente dramática, na realidade brasileira”.
Para nós os Organizadores, a pandemia reforçou o nosso entendimento de que é necessário transformar a realidade a partir da revisão da forma como realizamos nossa reprodução social. Construir outro modelo de sociedade é tarefa imperativa, inclusive, enquanto espécie. E essa transformação, a nosso ver, vem sendo historicamente pautada por sujeitos coletivos de direitos, que formulam e vivenciam outras formas de construção do real, tendo em seu horizonte a preservação da vida.
O primeiro cenário, que inaugura a obra, destaca um importante ator no vetor histórico de transformação social: o sujeito coletivo de direitos. Com Canotilho, pensando outros modos de designar o Direito que se oriente por teorias de sociedade e de justiça, podemos vislumbrar como o social se expressa, atua (é instituinte) e constitui direitos.
Assim é que, por impulso de direitos humanos instituintes, tenho chamado a atenção para o que já é possível designar como “Constitucionalismo Achado na Rua”. Em artigo recente, publicado no volume 9, n. 2 (2022): Dossiê: “IPDMS, 10 anos de história e desafios”. Julho a dezembro de 2022. Organização do dossiê: Carla Benitez Martins, Diego Augusto Diehl, Luiz Otávio Ribas e Ricardo Prestes Pazello. DOI: https://doi.org/10.26512/revistainsurgncia.v8i2. Publicado: 31.07.2022, 535 p.) Leura Dalla Riva (p. 406-421) publica um texto que tem como título Bem viver e o “Constitucionalismo Achado na Rua”: um olhar a partir da teoria da ruptura metabólica.
A Autora parte de uma análise da crise ecológica hodierna como resultado da ruptura metabólica existente entre seres humanos e natureza e suas consequências, este artigo focaliza o desenvolvimento do novo constitucionalismo latino-americano como um movimento “achado na rua”. A pesquisa tem como problema de pesquisa: em que medida o novo constitucionalismo latino-americano abre caminhos para a superação da ruptura metabólica ao consagrar a ideia de Bem Viver? Para tanto, utiliza-se abordagem dedutiva. Primeiramente, aborda a categoria “ruptura metabólica” com especial foco na exploração da natureza na América Latina, o que envolve a abordagem de questões como capitalismo dependente no continente e o histórico extrativismo. Num segundo momento, analisa-se qual o papel das constituições da Bolívia e do Equador como construtoras de um constitucionalismo achado na rua e apresentam-se as origens, conceitos e aspectos principais da ideia de “Bem Viver” a partir dos povos latino-americanos. Por fim, aborda-se em que aspectos essas constituições apontam para a superação da ruptura metabólica em prol da ideia de Bem Viver.
Esse texto vem se agregar a um bem constituído modo de pensar o constitucionalismo, enquanto constitucionalismo achado na rua, tal como temos os pesquisadores do Grupo de Pesquisa com a mesma denominação – O Direito Achado na Ria (certificado no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPQ), tal como o mais atualizado, até aqui, percurso dos estudos com essa concepção, conforme descrito a seguir.
Desde logo, uma mais estendida e circunstanciada aproximação entre O Direito Achado na Rua e o Direito Insurgente, foi apresentada pelo professor De la Torre Rangel, durante o Seminário Internacional O Direito como Liberdade 30 Anos do Projeto O Direito Achado na Rua, em sua contundente comunicação Constitucionalismo Achado na Rua en México: de los acuerdos de San Andrés al concejo indígena de gobierno (De la TORRE RANGEL, 2021).
As experiências registradas no México, tendo como base as lutas sociais por emancipação, têm o caráter de uma revisão crítica da historiografia do país, na percepção da insurgência e do processo instituinte de direitos, repondo o tema do constitucionalismo desde baixo, nas anotações de planos e acordos estabelecidos nos embates para estabelecer projetos de sociedade. Relevo para os acordos de San Andrés, pela conformação constitucional que os caracterizam.
Como anota a peruana Raquel Yrigoyen Fajardo (YRIGOYEN, 2011), aferindo as experiências constitucionais na América Latina, incluindo o Canadá, há um primeiro ciclo caracterizado como “constitucionalismo multicultural” (Canadá, 1982), (Guatemala, 1985), (Nicarágua 1987) e (Brasil, 1988). O segundo ciclo referente ao “constitucionalismo pluricultural” (Colômbia, 1991), (México e Paraguai, 1992), (Peru, 1993), Bolívia e Argentina, 1994), (Equador, 1996 e 1998) e (Venezuela, 1999). E o terceiro ciclo, finalmente, é reconhecido pelo alcance de um “constitucionalismo plurinacional”, a partir das inovadoras Constituições do (Equador, 2008) e (Bolívia, 2009), nas quais, diz Raquel, já se trata de um ciclo pluricultural, plurinacional e ecológico, nas quais “se pluraliza a definição de direitos, a democracia e a composição dos órgãos públicos e as formas de exercício do poder”.
Raquel Yrigoyen, que já inscrevera em sua concepção a tese de um constitucionalismo plurinacional, tem avançado fortemente, desde seu diálogo com as cosmogonias e cosmovisões dos povos ancestrais, em direção a um constitucionalismo ecológico ou eco-constitucionalismo (YRIGOYEN, 2021), sem contudo abdicar de suas teses originais sobre o pluralismo jurídico.
Ainda que nessa passagem o foco da leitura do pluralismo jurídico, desde a leitura de Raquel Yrigoyen, compreendido propriamente como pluralismo jurídico igualitário (consulte-se entre outros estudos, os escritos fundamentais com aberturas inéditas para a aplicação dessa categoria, de Boaventura de Sousa Santos – sempre presente nas atividades do IIDS -, até o mais recente de Antonio Carlos Wolkmer e de Maria de Fatima S. Wolkmer, (WOLKMER; WOLKMER, 2020), se dirija aos povos indígenas e originários, essa acepção, orientada “por uma racionalidade jurídica diferente”, que nela, alcança também os ronderos campesinos, em enfoque autoral bem conhecido: “Outro claro ejemplo de racionalidade jurídica diferente, resulta em palavras de Raquel Yrigoyen, la de las Rondas Campesinas, que si bien nacen em uma primera etapa, como respuesta a uma demanda de seguridade, frente al robo y el abigeato se traduce finalmente, en prácticas sociales de auto administración de justicia” (SONZA, Bettina. 1993).
Tal como dissemos eu e meu colega Antonio Escrivão Filho (ESCRIVÃO FILHO; SOUSA JUNIOR, 2019 op. cit.), mais que reconhecimento de direitos, tais ciclos tratam do grau de abertura à efetiva participação constituinte das distintas identidades, aliado à efetiva incorporação de seus valores sociais, econômicos, políticos e culturais não apenas no ordenamento jurídico, mas no desempenho institucional dos poderes, entes e entidades públicas e sociais.
Ou seja, a partir do que atualmente, com as experiências constituintes em curso na América Latina, com as novidades trazidas pela proposta de Constituição do Chile, aprofundam-se temas emergentes de um constitucionalismo em chave decolonial, que para Antonio Carlos Wolkmer em texto publicado há poucos dias – Notas para Pensar la Descolonización del Constitucionalismo en Latinoamérica in Constitucionalismo en clave descolonial / Amélia Sampaio Rossi … [et al.].; Liliana Estupiñán- Achury, Lilia Balmant Emerique, editoras académicas. — Bogotá: Universidad Libre, 2022.
A novidade agora vem do Chile, e aponta para o que Wolkmer identifica como propostas de um constitucionalismo crítico na ótica do sul global referida a aportes do constitucionalismo transformador de que fala Boaventura de Sousa Santos, do constitucionalismo andino, pluralista, horizontal decolonial, comunitário da alteridade, ladino-amefricano e, ainda, do constitucionalismo achado na rua.
É a partir dessa perspectiva, algo que deixo como sugestão ao autor para suas pesquisas futuras considerando que o que vou dizer não se colocava quando o trabalho foi publicado. Ou seja, a partir do que atualmente, com as experiências constituintes em curso na América Latina, aprofundar temas emergentes de um constitucionalismo em chave decolonial.
Disso cuida Antonio Carlos Wolkmer em texto publicado há poucos dias – Notas para Pensar la Descolonización del Constitucionalismo en Latinoamérica in Constitucionalismo en clave descolonial / Amélia Sampaio Rossi … [et al.].; Liliana Estupiñán- Achury, Lilia Balmant Emerique, editoras académicas. — Bogotá: Universidad. Para Wolkmer, “la propuesta de un constitucionalismo crítico bajo la óptica del sur global puede ser contemplada en los aportes innovadores de la propuesta del consti tucionalismo transformador de Sousa Santos, B. de y de las variaciones presentes que tienen en cuenta las epistemologías del sur y, más directamente, del constitucionalismo andino, ya sea en la vertiente del constitucionalismo pluralista (Yrigoyen Fajardo, 2011; Wolkmer, 2013, p. 29; Brandão, 2015), del constitucionalismo horizontal descolonial (Médici, 2012), constitucionalismo comunitario de la alteridad (Radaelli, 2017), constitucionalismo crítico de la liberación (Fagundes, 2020), constitucionalismo ladino-amefricano (Pires, 2019) o aún del constitucionalismo hallado en la calle (Leonel Júnior, 2018)”.
Realmente Gladstone Leonel Junior trouxe essa designação, ainda sem a aprofundar em seu livro de 2015, reeditado – Novo Constitucionalismo Latino-Americano: um estudo sobre a Bolívia, 2a. Edição. SILVA JUNIOR, Gladstone Leonel. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, (SILVA JUNIOR, 2018).
Na segunda edição, novas questões ensejam novas análises para a construção de um projeto popular para a América Latina a partir do que a experiência na Bolívia e em outros países nos apresenta. Das novidades dessa edição, a Editora e o Autor destacam: Um capítulo a mais. Esse quarto capítulo debate “O Constitucionalismo Achado na Rua e os limites apresentados em uma conjuntura de retrocessos”. A importância do mesmo está na necessidade de configurar um campo de análise jurídica que conjugue a Teoria Constitucional na América Latina com o Direito Achado na Rua, situando então, o Constitucionalismo Achado na Rua.
O livro, aliás, pavimenta o caminho para estudos e pesquisas nessa dimensão do constitucionalismo e o próprio professor Gladstone Leonel, em sua docência na Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense, criou a disciplina “O Constitucionalismo Achado na Rua e as epistemologias do Sul”, ofertada no programa de pós-graduação em Direito Constitucional na UFF. O programa da disciplina e maiores informações podem ser obtidos no seguinte site: http://bit.ly/2NqaABn.
Resenhei esse percurso em http://estadodedireito.com.br/novo-constitucionalismo-latino-americano-um-estudo-sobre-bolivia/. Claro que em O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática, volume 2, cit., no capítulo (Parte IV): O Direito Achado na Rua: Desafios, Tarefas e Perspectivas Atuais, já inscrevemos uma anotação programática nessa direção, ao indicar (p. 224): que “Essas experiências refletem uma espécie de ‘Constitucionalismo Achado na Rua’, em que os atores constituintes, os protagonistas desses processos, que envolveram povos indígenas, feministas, campesinas e campesinos, trabalhadoras e trabalhadores e setores historicamente excluídos, arrancam do processo constitucional novas formas de pluralismo jurídico e conquistas de Direitos”.
Com Gladstone eu também trabalhei o tema, procurando fixar a sua mais precisa enunciação. Assim, em Revista Direito e Práxis, On-line version ISSN 2179-8966 (http://old.scielo.br/scielo.php?pid=S2179-89662017000201008&script=sci_abstract&tlng=pt). LEONEL JUNIOR, Gladstone and GERALDO DE SOUSA JUNIOR, José. A luta pela constituinte e a reforma política no Brasil: caminhos para um “constitucionalismo achado na rua”. Rev. Direito Práx. [online]. 2017, vol.8, n.2, pp.1008-1027. ISSN 2179-8966. https://doi.org/10.12957/dep.2017.22331, valendo o resumo: “A crise política brasileira, evidenciada a partir de junho 2013, enseja novas reflexões para a conjuntura recente. A reforma do sistema político é necessária e um das formas de viabilizá-la é por meio de uma Assembleia Constituinte. Sobretudo, se observado os movimentos político-jurídicos dos últimos 15 anos nos países da América Latina. Cabe refletir sobre o momento e as possibilidades dessa aposta pautando-se em um ‘constitucionalismo achado na rua’”.
Quase que simultaneamente, também com Gladstone publicamos em La Migraña… Revista de Análisis Político, nº 17/2016. Vicepresidencia del Estado Plurinacional de Bolívia: La Paz, o artigo La lucha por la constituyente y reforma del sistema político em Brasil: caminhos hacia um ‘constitucionalismo desde la calle’.
Com essas referências, alcança-se o patamar que, juntamente com Antonio Escrivão Filho (ESCRIVÃO FILHO; SOUSA JUNIOR, 2016, op. cit.), especialmente no Capítulo V – América Latina, desenvolvimento e um Novo Constitucionalismo Achado na Rua, páginas 123-150), enunciamos, vale dizer, que o Constitucionalismo Achado na Rua vem aliar-se à Teoria Constitucional que percorre o caminho de retorno a sua função social. Uma espécie de devolução conceitual para a sociedade, da função constitucional de atribuir o sentido político do Direito, através do reconhecimento teórico-conceitual da luta social como expressão cotidiana da soberania popular. Um reencontro entre a Teoria Constitucional, e o Direito compreendido como a enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade (p. 149).
Com pesquisadores do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua (Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq), organizamos o livro O Direito Achado na Rua: questões Emergentes, revisitações e travessias (SOUSA JUNIOR, 2021), um capítulo é dedicado ao tema: Constitucionalismo Achado na Rua, com os temas A Democracia Constitucional e a Proposta para um Constitucionalismo Inclusivo no Brasil, de Bárbara R. R. C. de Oliveira, Jean Patrício da Silva, João Paulo Santos Araújo, Samuel Barbosa dos Santos e Betuel Virgílio Mvumbi; e O Constitucionalismo Achado na Rua, os Sujeitos Coletivos Instituintes de Direito e o Caso APIB na ADPF nº 709, de Marconi Moura de Lima Barum, Mauro Almeida Noleto, Priscila Kavamura Guimarães de Moura e Renan Sales de Meira.
É sempre estimulante poder construir com os compromissos de engajamento, sobretudo epistemológico, escoras teóricas para anaçar nessas emergências, revisitações e travessias, em arcos de cooperação não apenas orgânicos – os Grupos de Pesquisa – mas nos encontros conjunturais com aliados acadêmicos nos eventos, disciplinas e projetos que nossos coletivos de ensino, extensão e pesquisa proporcionam.
É nesse ambiente que podemos localizar abordagens instigantes que acolhem os achados desse processo, assimilando-os as suas estruturas de análise e de aplicação, e prorrogando seu alcance heurístico para novos níveis de discernimento. Assim, nesse recorte aqui realizado, o texto de Antonio Carlos Bigonha (Subprocurador-Geral da República, atua na 2a. Seção do Superior Tribunal de Justiça, proferindo pareceres em Direito Privado. Foi presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (2007/2011) e coordenador da 6a. Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais da PGR (2019/2021), além de destacado compositor, pianista e mestre em Música pela Universidade de Brasília. O texto, originalmente publicado na página do IREE, Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa, foi reproduzido pelo Expresso 61 (https://expresso61.com.br/2022/02/17/darcy-ribeiro-a-unb-e-o-constitucionalismo-achado-na-rua/), com o título Darcy Ribeiro, a UnB e o constitucionalismo achado na rua:
A interpretação constitucional que setores retrógrados da magistratura e do Ministério Público adotaram para o exercício arbitrário de suas prerrogativas e atribuições, ao longo dos últimos 30 anos, faria corar monges de mármore, para usar uma expressão muito referida pelo ministro Gilmar Mendes, em sessões de julgamento no STF. Desconheço em que fonte foram beber seu fundamento teórico, fruto talvez de uma corrupção semântica, resultado da leitura equivocada da matriz germânica ou estadunidense. Neste contexto, o Direito Achado na Rua afirma-se como um poderoso vetor hermenêutico, uma abertura capaz de barrar os exageros do neoconstitucionalismo e oferecer novas epistemologias que conduzam à interpretação da Constituição e das leis do País para a afirmação e o fortalecimento dos direitos humanos, segundo uma agenda comprometida com os interesses do nosso povo. E ouso supor que Darcy Ribeiro e Machado Neto subscreveriam, novamente, esta virada hermenêutica.
Em comunicação oral realizada no GT 12- Constitucionalismo achado na rua, por ocasião do Seminário Internacional O Direito como Liberdade – 30 Anos do Projeto O Direito Achado na Rua, Menelick de Carvalho Netto e Felipe V. Capareli, com o título “O Direito Encontrado na Rua, a Luta por um Constitucionalismo Plural e Inclusivo, e a necessidade de enfrentar o risco autoritário de uma política simplista e privatizante. Visão dicotômica do Estado e do Direito” (Revista da Defensoria Pública do Distrito Federal (RDPDF, 2019, vol. 1, n. 2) – Dossiê Ordenamentos jurídicos, monismos e pluralismos: O Direito Achado na Rua e as possibilidades de práticas jurídicas emancipadoras), também extraem consequências dessa dimensão constitucional estabelecida na rua.
É com esse acumulado que chegamos ao Seminário Internacional O Direito como Liberdade: 30 Anos do Projeto O Direito Achado na Rua, realizado em Brasília, na UnB, em dezembro de 2019. No programa toda uma seção (Seção III) para o tema Pluralismo Jurídico e Constitucionalismo Achado na Rua. Esse material veio para o volume 10 da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade. Brasília: Editora UnB/Editora da OAB Nacional, 2021. Na seção podem ser conferidos os textos: Pluralismo Jurídico Comunitário-Participativo: processos de descolonização desde o Sul, de Antonio Carlos Wolkmer; A Contribuição do Direito Achado na Rua para um Constitucionalismo Democrático, de Menelick de Carvalho Netto; Constitucionalismo Achado na Rua em México: de los acuerdos de San Andrés al concejo indígena de gobierno, de Jesús Antonio de la Torre Rangel; O Direito à Alimentação como um Direito Humano Coletivo dos Povos Indígenas, de Raquel Z. Yrigoyen Farjado; e Constitucionalismo Achado na Rua: reflexões necessárias, de Gladstone Leonel Júnior, Pedro Brandão, Magnus Henry da Silva Marques (SOUSA JUNIOR, 2021, op. cit.).
É importante “recordar que o constitucionalismo é permanente tentativa de se instaurar e se efetivar concretamente a exigência idealizante que inaugura uma modernidade no nível da organização de uma sociedade complexa, incapaz de lançar mão de fundamentos absolutos e que, por isso, só pode legitimar seu próprio sistema de direitos na medida em que os potenciais podem se reconhecer como coautores e autoras das normas que os regem. Ou seja, ou o direito é constitucionalmente achado na rua e nas ruas, e com as ruas, é construído e reconstruído de forma plural e inclusiva, ou, sem dúvida, tende-se a privatizar o próprio Estado, mediante a colonização do direito por uma lógica simplista binária de cunho plebiscitário e na da democrática, pois infensa a qualquer eficaz de bate”.
Para o constitucionalista português J. J. Gomes Canotilho, em sede de debate que envolve teorias de sociedade, teorias de justiça e teorias constitucionais, cuida-se de ter atenção à multiplicidade de sujeitos que se movem no debate constitucional contemporâneo que tende a abrir expectativas de diálogo político estruturado na linguagem do direito, gerando na expressão dele, “posições interpretativas da Constituição” que emergem desse processo e formam uma luta por posições constituintes, luta que continua depois de aprovada a constituição (CANOTILHO, J. J. Gomes. Cf. Entrevista que me concedeu: Pela Necessidade de o Sujeito de Direito se Aproximar dos ‘Sujeitos Densos’ da Vida Real. Constituição & Democracia. Brasília: Faculdade de Direito da UnB, n. 24, julho de 2008, p.12-13), luta travada pela disposição a ir para o meio da rua, pois “do outro lado da rua, o ‘direito achado na rua’ e, perante o sangue vivo que brota dos vasos normativos da realidade e a sedução de um direito outro, ao direito formal das constituições, códigos e leis, compreende-se que o discurso hermenêutico dos juristas mais não seja que um manto ocultador do insustentável peso do poder” (CANOTILHO, 2008a).
Estamos em diálogo, a Autora e os pesquisadores que formam o Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua. Conforme ela diz no fecho de seu livro, observa-se que o diálogo pressuposto tanto pelos direitos humanos, como processos de abertura e interação com outros processos culturais, quanto pela estatalidade aberta postulada pela interconstitucionalidade, entabula-se e renova-se diariamente, em distintas sedes – e ainda que enquanto potencialidade nalgumas searas–, nas quais se instauram demandas por reconhecimento, redistribuição, representação e inclusão, sem as quais não se pode falar em legitimidade democrática …Assim, sabendo-se que, quanto mais pluralista for uma sociedade, mais a estima social cria relações simétricas entre seus membros , a interculturalidade e o pluralismo que possibilitam, ao tempo em que são fomentados, pelo diálogo interconstitucional tendem a favorecer uma maior horizontalidade nas relações. E, logo, a cooperar para a realização do direito como “modelo avançado de legítima organização social da liberdade”, indispensável à criação de uma “comunidade política viável”, que tem na solidariedade a “condição necessária e a contribuição coletiva essencial para o bem-estar da liberdade e da diferença”.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
Direito, literatura & sertão: perspectivas decoloniais a partir do romance d’A Pedra do Reino de Ariano Suassuna
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Raique Lucas de Jesus Correia. Direito, literatura & sertão: perspectivas decoloniais a partir do romance d’A Pedra do Reino de Ariano Suassuna. João Pessoa, PB: Editora Porta, 2022, 343 p.
Eu recebi esse livro, por cortesia do Autor, imediatamente após ter participado de banca de qualificação de sua dissertação de mestrado – Cidadania e Territorialidade Periférica: a Luta pelo Direito à Cidade no Bairro do Calabar em Salvador/BA, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional e Urbano (PPDRU) da Universidade Salvador (UNIFACS). Sobre esse trabalho elaborei aqui neste espaço, um Lido para Você.
Na Dissertação, pela mediação do urbanismo e do direito à cidade, Raique traz O Direito Achado na Rua, como contribuição crítica à própria teoria do direito, como fundamento teórico crítico para sustentar juridicamente o seu trabalho. E logo apontei caminhos para que, no desenvolvimento de seus estudos, mergulhasse na fortuna crítica de O Direito Achado na Rua, sua concepção e prática, de modo a vincular sua abordagem a esse percurso, como contribuição à teoria crítica que nele se representa:
Pena que Raique não tenha participado da chamada de artigos para a Revista de Direito do Programa de Pós-Graduação em Direito, em sua edição de maio-agosto de 2022, volume 6, número 2, inteiramente dedicada, em estudos de homenagem, a O Direito Achado na Rua, Contribuições para a Teoria Crítica do Direito (cf. em minha Coluna Lido para Você, no Jornal Estado de Direito a minha recensão a esse trabalho: http://estadodedireito.com.br/30425-2/). Ali, entre os instigantes trabalhos publicados, o dos professores baianos Sara da Nova Quadro Côrtes e Cloves dos Santos Araújo, traça a mesma linha de interseção entre a aproximação dialética trazida por Roberto Lyra Filho e o tema seminal da espacialidade como categoria de transubjetividade proposto por Milton Santos. Em Sara, sobretudo, é ainda notável o arranque de sua formação atenta às mobilizações estratégicas de uma cidadania ativa (ver sua Dissertação de Mestrado Controle Social do Estado como Estratégia de Emancipação e Qualificação da Democracia, defendida na UnB em 2003 sob minha orientação), nela muito presente a concepção de cidadania de um notável intelectual baiano Elenaldo Celso Teixeira (cf. Sociedade Civil e Participação Cidadã no Poder Local, tese de doutorado defendida na USP em 1998 sob orientação de Lúcio Kowarick) e, por proximidade com a construção de Raique o texto Movimentos Sociais Urbanos em Salvador: um Mapeamento in Ana Amaria de Carvalho Luz (org) Quem Faz Salvador. Salvador: UFBA, 2002. Vale visitar esses trabalhos e, em especial – Dialética Social no Rastro do Pensamento de Roberto Lyra Filho e Milton Santos: Aportes Teóricos no Campo do Direito e Geografia – para a finalização da Dissertação, tal como eu mesmo o fiz para preparar o meu prefácio ao livro de Willy da Cruz Moura, Na Calada da Noite. Processos culturais e o Direito achado na noite de Brasília. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2022, também derivado de Dissertação de Mestrado defendida na UnB (http://estadodedireito.com.br/na-calada-da-noite-processos-culturais-e-o-direito-achado-na-noite-de-brasilia/).
É que eu pensava ser uma novidade, salvo pelo fato de que a professora Marta Gama fosse uma referência em sua formação, sendo essa a razão para que os seus enunciados tivessem sido trazidos à Dissertação. Aliás, de modo muito qualificado conforme concluo em minha arguição.
Eis que, em seguida à realização da Banca, Raique me envia uma mensagem: “Caro prof. José Geraldo, saiba que honra maior foi a minha em tê-lo nesse momento tal especial e significativo da minha trajetória acadêmica. Agradeço mais uma vez pelas contribuições e irei dedicar todos os esforços para acatá-las e incorporá-las ao meu trabalho. Espero com esta pesquisa poder agregar novos conhecimentos e perspectivas ao Direito Achado na Rua que, como eu disse, é um movimento que me influenciou grandemente durante a graduação, e agora, mais do que nunca, cristaliza todo uma caminhada em direção a esse ideal; o ideal de um direito como modelo avançado de uma legítima organização social da liberdade”.
E, acostada à mensagem, um enlace para acesso à edição digital de Direito, Literatura & Sertão. Perspectivas Decoloniais a Partir do Romance d’A Pedra do Reino de Ariano Suassuna, com uma nota ofertória:
A propósito, no início deste ano eu lancei o meu TCC em formato de livro: “Direito, Literatura & Sertão: Perspectivas Decolonais a partir do Romance d’A Pedra do Reino de Ariano Suassuna”, onde também entronco a discussão do Direito Achado na Rua, a partir das categorias “Direito Achado no Sertão” e “Sertanismo Jurídico”. Acredito que esse trabalho possa lhe interessar. Segue o PDF do livro
Uma visita à página da Editora, responsável pelo lançamento dessa curiosa obra, leva a localizar o seu intuito, em corte literário: “Livro-enigmático sobre Direito e Literatura, no qual aparece a misteriosa Rainha do Meio-Dia. A guerra contra a Besta-Loura-Calibã! Notícia d’A Pedra do Reino e de seu Imperador, Dom Pedro Dinis Quaderna! Primeiras indicações sobre o Direito Castanho e o Sertanismo Jurídico! Como a nossa Nação foi invadida por cruéis e desconhecidos estrangeiros, que massacraram o nosso Povo e dominaram a nossa Pátria! Viagens e expedições à procura da Ilha Desconhecida! Visagens e andanças pelo Sertão! Plágios e recriações poéticas! Profecias, delírios, ilusões e mentiras! Enigma, poesia, desejo, paixão, ironia, desordem e crime!”.
O enquadramento literário da obra, favorecido pelas ilustrações ao estilo nordestino de xilogravuras (seguindo o fio artístico do estudo voltado para o Movimento Armorial nos termos definidos por Ariano Suassuna) e dos ensaios tipográficos da edição, merecem as confirmações sobre o seu valor em João Suassuna, neto de Ariano e Suelma de Souza Moraes. Anoto o comentário do caro amigo, jurista e professor João Paulo Allain Teixeira, que vê no trabalho de Raique, o
Refletir, contextualizar e de alguma forma apontar alternativas ao projeto racional/colonial no direito é tarefa que cabe à pesquisa interdisciplinar a partir da articulação de múltiplos saberes. O trabalho de Raique Lucas de Jesus Correia contribui decisivamente para o enfrentamento desta tarefa. Sua contribuição, parte da monumental obra de Ariano Suassuna culminando com o esboço de uma proposta de epistemologia castanha para o direito. O trabalho chama a atenção para os processos de subalternização e invisibilização do olhar sertanejo e do seu potencial de contribuição para pensar o direito em chave decolonial. Trata-se aqui de evidenciar os diferentes níveis de colonialidade que ocultam não apenas o sentido de latinidade ou mesmo de brasilidade, mas, sobretudo, a dimensão sertaneja, quase sempre insuficientemente explorada nos debates decolonias. O esforço de Raique aponta assim para novas fronteiras da pesquisa em direito e sociedade no Brasil.
O trabalho de Raíque ao que me consta, procede de uma monografia de final de curso de direito – um espanto vertido nas 343 páginas que conformam o livro, sem contar o que está posto nas capas – e que seve de enredo para ele tecer as duas vertentes de sua aspiração intelectual: a literatura e o direito. Num processo criativo atento ao rigor dos cânones desses dois pontos, algo que toma como uma advertência, desde logo para si próprio e em derradeira instância para seu leitor: “Principalmente por causa da presença, nela, de Dom Pedro Dinis Quaderna e da Rainha do Meio-Dia, esta Narrativa-Enigmática só deve ser lida, folheada ou vista ‘por adultos de sólida formação jurídica, religiosa, moral, literária, poética e filosófica’”. Certo que o resultado final, publicado, se apresenta mais robusto, pelo adensamento trazido pelo Autor desde a defesa da monografia e o momento de sua divulgação na forma de livro. Tributo a Ariano Suassuna, o livro de Raique o divide do mesmo modo como Suassuna o faz em A Pedra do Reino: em “grupos temáticos (Prelúdio, Chamada, Galope, Tocata e Fuga), cada qual preenchido não por capítulos, mas por folhetos”, na modelagem da literatura de cordel.
No prefácio, a professora Ezilda Melo, que também participou da banca, comenta esse cuidado autoral:
Trabalho monográfico tão bem escrito e com tanta robustez teórica, que tem ares de tese. Era perfeito desde aquela primeira versão e pronto para publicação, conforme dissemos em unívoco. Quis o jovem autor aprofundar ainda mais a pesquisa, ao passar vários meses seguintes debruçado sobre leituras e reescrita, resultando no trabalho que agora se apresenta aos leitores. Um verdadeiro presente para a comunidade jurídica, para os estudos sobre Ariano Suassuna e sobre o sertão
Um tremendo desafio, No que diz a seu próprio cabedal, muito bem sucedido. Sem surpresa, ao menos para mim que já tomara conhecimento do estofo autoral de Raique ao ter ensejo de examinar sua dissertação de mestrado: Cidadania e Territorialidade Periférica: a Luta pelo Direito à Cidade no Bairro do Calabar em Salvador/BA. Ver, a propósito, minha resenha sobre esse trabalho em edição da minha coluna Lido para Você.
Parece que eu adivinhava, tal como acontecera com Graciliano Ramos, lido por Abgar Renault, o poeta, mas na condição de um exame como ministro de contas, do relatório do prefeito de Palmeira dos Índios, intuindo que a peça burocrática aninhava um grande escritor. Sobre o trabalho acadêmico de Raique fiz observação parecida: “A construção narrativa do Autor é sofisticada. Ela é conduzida num processo que articula diferentes linguagens e modos de ler o mundo, não só a ciência mas também a literatura. Em epígrafes, em paráfrases, em metáforas, o discurso explicativo-causal de Raique vem embalado retoricamente, num imaginário nutrido por seu diálogo com literatos. Fui anotando as vozes silentes de seu discurso: Dante Alighiere, Ariano Suassuna, Patativa do Assaré, Castro Alves, Carolina Maria de Jesus, Euclides da Cunha”.
Ademais, eu devia ter desconfiado desse Janus. Foi minha querida amiga e ex-aluna Marta Gama quem me falou de Raique, dizendo que havia me indicado para participar de sua banca de mestrado.
Eu fui membro da banca examinadora da tese de doutorado de Marta Gama, convertida em livro: Entrelugares de Direito e Arte: experiência artística e criação na formação do jurista, de Marta Regina Gama. Fortaleza: EdUECE, 2019. O trabalho de Marta Gama, Entrelugares de Direito e Arte: experiência artística e criação na formação do jurista, editado pela EdUECE, agora em período de lançamentos programados pela Autora num cronograma expandido, parte de uma pergunta visceral: O que pode a arte na formação do jurista? Esta pergunta que ela responde neste livro serviu de guião na sua trajetória de pesquisadora e foi diligentemente trabalhada em sua tese de doutorado “PENSAR É SEGUIR A LINHA DE FUGA DO VOO DA BRUXA” Pesquisa sociopoética com estudantes de Direito sobre a arte na formação do jurista, defendida na Faculdade de Direito da UnB, em 2013, de onde a Autora extrai a matéria da obra.
Marta se mantem íntegra e fiel neste percurso, na busca de novos caminhos para mapear esse entrelugar entre Direito e Arte. Com Luis Alberto Warat, a voz silente (expressão muito usada por Warat) do discurso de Marta, para ela tudo converge para a possibilidade da instituição do novo. Mais ainda, no campo da pedagogia e do ensino do Direito, seu espaço de movimento, porque é do que se trata, ela afirma, é propor uma revolução da forma de ensino do Direito, através da arte, abrir caminho para uma macro revolução, já que a revolução poética, dos sentidos, de libertação dos desejos, aponta para a própria revolução do homem e do mundo. Da palavra libertada, da imaginação descolonizada, pela magia dos sonhos, pelo ato poético de viver, emerge irresistivelmente uma nova forma de existir, novas maneiras de significar a vida, as relações humanas, uma nova significação imaginária, que rompendo, enfim, com os grilhões de uma racionalidade totalizante (cientificidade moderna, positiva, causal) seja capaz de construir a autonomia individual e coletiva (GAMA, Marta. Surrealismo Jurídico, Arte e Direito: Novos Caminhos. Brasília: Faculdade de Direito da UnB. Observatório da Constituição e da Democracia, n. 8, outubro de 2006, p. 06-07).
É de Marta e de sua apresentação do livro de Raique, fruto da monografia que ela orientou ao final da graduação, que eu tiro a passagem que melhor e com mais autenticidade expõe o argumento do Autor, diante do desafio que se impôs:
É esse o desafio que se impõe o Autor na presente obra: pensar o decolonial aplicado ao Direito, desde as v(e)ias abertas pelo “Romance d’A Pedra do Reino”, tendo como centralidade os influxos proporcionados pelos modos de ser e de viver, pela cultura, pelas vivências e pela luta do povo sertanejo, marcada pela miséria e pela fome, mas também pela garra e pelo sonho.
Nesse itinerário de inquietações e total ausência de certezas, são delineados diversos deslocamentos, territórios que tão logo emprenhados são desfeitos, dando lugar a outras paisagens, sintetizados nos diversos movimentos presentes no sumário. Assim é que, no primeiro movimento “Prelúdio – Direito & Literatura” o Autor nos convida a refletir sobre as possiblidades guardadas pela aproximação entre o Direito e a Literatura, promovendo um rico diálogo entre os diversos autores e autoras que, contemporaneamente, tem enfrentado o desafio de conjecturar a esse respeito, para, então, afirmar waratianamente que a “a aproximação entre Direito e Literatura, não só é possível, como também é fundamental, uma vez que proporciona a formação de ‘territórios ambíguos’, pelos quais se é possível escapar as deformações regradas da semântica cientificista e fundar ‘um saber sobre o Direito que reconcilie o homem com suas paixões, tenha respostas de acordo com o mundo e transforme a estagnação de suas verdades em desejos vivos’ (WARAT, 2004, p. 83)”.
Em seguida, apresenta as principais referências teóricas para conformação do campo “Direito e Literatura” no âmbito internacional, bem como o papel inaugural de Luis Alberto Warat na constituição desse campo de conhecimento no Brasil.
Outrossim, nos brinda com uma forte e segura reflexão, desde os textos waratianos, nos desafiando a vivenciar a Literatura em sua potência disruptora do instituído e produtora do novo. Raique nos adverte acerca dos perigos de uma crença ilimitada no método, ou de quanto a crença no método, como um caminho necessário e seguro a seguir porque carregada da epistemologia moderna, pode esvaziar o potencial disjuntor dos estudos literários para o Direito. Para ele: “pensar o direito é antes de tudo uma atividade filosófica e, como tal, é necessário fugir dos lugares comuns, do autoritarismo epistemológico, do solipsismo cientificista, para então subverter a ordem dos fatores e instituir o novo”.
No movimento que se segue “Chamada – Encantações Sertanejas”, Raique nos conduz pelo chão pedregoso do Sertão, em seus diversos e inapreensíveis enquadramentos, — porque “o Sertão se afasta tanto mais nos aproximamos dele, é como uma miragem, só se apresenta quando estamos distantes e quando lá chegamos, já não está mais” —, até o encontro com Sertão de Suassuna. Nesse sentido, o Ser-tão dá a vez a biografia de Ariano Suassuna, — personagem e autor das veredas incrustradas do Sertão escabroso, porque nele se constitui para recriá-lo — iluminando com a sua história de dor e genialidade esse universo. A trajetória do Movimento Armorial, manifesto-síntese da vida e obra de Suassuna, criado na década de 1970, cujo o qual pretendia inventar uma arte erudita brasileira calcada nas raízes populares da cultura nordestina, encerra esse movimento intermediário.
“Galope – A Pedra do Reino” é o movimento que resgata o contexto histórico e político onde se inscreve o “Romance d’A Pedra do Reino”, indicando como a trama “inventada” por Suassuna se relaciona com episódios importantes da história do Brasil. O enredo, que parte das histórias do Romanceiro Popular Nordestino, se desenrola em torno do personagem principal, Pedro Dinis Quaderna, e o enigma da morte do seu tio, Pedro Sebastião Garcia-Barreto, encontrado degolado dentro de seus aposentos no alto de uma torre que existia na sua fazenda; do desaparecimento, no mesmo dia, de um dos seus filhos, Sinésio Garcia-Barreto; e da aparição do misterioso Rapaz-do-Cavalo-Branco, dentre tantos outros acontecimentos inauditos.
No penúltimo movimento, “Tocata – A Demanda da Rainha do Meio-Dia”, o Autor aborda a gênese dos estudos decoloniais e apresenta os principais conceitos que serão tomados na realização do seu propósito de pesquisa: refletir sobre as possibilidades de uma epistemologia-jurídica decolonial a partir do Romance d’A Pedra do Reino, desde os aportes do Pluralismo Jurídico, do Direito Achado na Rua e do Surrealismo Jurídico.
Refere o autor que, o pensamento decolonial denuncia o caráter opressor do projeto moderno racional/colonial, baseado, precipuamente, “na imposição de uma classificação racial/étnica da população mundial” que opera “em diferentes planos, esferas e dimensões, materiais e subjetivas, do organismo social como um todo”. É essa hierarquização, esculpida na superioridade do homem branco europeu que orientou “o processo civilizatório desencadeado na Modernidade”.
Considerando-se que a modernidade/colonialidade se articula em três grandes grupos-síntese: “colonialidade do poder” (dimensão política), “colonialidade do saber” (dimensão epistemológica) e “colonialidade do ser” (dimensão ontológica); tem-se que a condição de subalternidade imposta pelo projeto colonial está também presente no Direito, sobretudo, no que diz respeito a dimensão epistemológica que engloba o saber jurídico.
A esse respeito afirma Raique: “enquanto o pensamento jurídico brasileiro e latino-americano continuar centrado nos modelos oferecidos pelo pensamento europeu, nunca alcançará a efetividade e legitimidade necessárias para uma nova prática de alteridade e de uma vida humana com maior identidade, autonomia e dignidade”. Urge, portanto, uma ruptura epistêmica, de modo a articular uma epistemologia jurídica fundada nas nossas experiências e saberes, sobretudo, os saberes e práticas sociais do nosso povo pobre, negro, índio, mestiço, espoliado e oprimido.
O Autor reconhece no “Romance d’A Pedra do Reino” uma contundente crítica ao colonialismo, bem como aspirações decoloniais, artefatos que fundamentam o rompimento epistêmico que reclama. Ao analisar diversos elementos do texto ele afirma que “O Romance d’A Pedra do Reino é […] um verdadeiro memorial de resistência a hegemonia europeia e norte-americana no mundo atual, além de ser uma sátira cômica as ideologias da modernidade”, pelo que complementa: “trata-se, antes de tudo, de negar os arquétipos eurocêntricos e encontrar o nosso próprio caminho, viver a vida do nosso jeito e a partir da nossa de visão-de-mundo”.
Partindo desta observação, perfilha: […] o Romance d’A Pedra do Reino, ao incorporar os preceitos éticos, estéticos e políticos do Movimento Armorial, nos ajuda a formular uma epistemologia-jurídica decolonial, na medida em que convoca os signos característicos da nossa cultura para criar em toda a sua autenticidade uma “visão de mundo sertaneja”, pela qual somos capazes de acessar o código genético da nossa própria “raça”. Em tal caso, uma “reculturalização” do Direito como forma de ressignificação local dos seus conceitos e sentidos, perpassa, forçosamente, por uma redescoberta dessas vivências locais, pela recuperação da nossa identidade cultural.
Em seguida reivindica, […] um contexto de produção emancipatória do Direito, que promova a abertura do campo jurídico para outras sensibilidades, rompendo com a lógica do pensamento único e eurocentrado. Com isso, “propõe que se desloque o olhar para as diversas fontes do Direito, saindo do mundo abstrato para o da sociedade concreta, desigual e contraditória, reconhecendo o espaço político no qual se desenvolvem as práticas sociais também como enunciadoras de direitos” (PRATES et al., 2015, p. 108). Nesse sentido, a dimensão “pluralista” invocada pelo “O Direito Achado na Rua” passa a ser campo para uma redefinição paradigmática das estruturas jurídicas vigentes, o que se infere a partir do reconhecimento dos sujeitos e movimentos emergentes na produção de normatividades.
Posteriormente, enuncia sua formulação mais do que original, a emergência de um
“Direito Achado no Sertão”, um “Direito de Canudos”, d’A Pedra do Reino, um Direito que seja expressão legítima das lutas e vivências do nosso povo pobre, negro, índio, mestiço, espoliado e oprimido, silenciado pelos ecos cosmopolitas da modernidade/colonialidade.
É por essa fenda que a imersão na obra de Ariano Suassuna anuncia uma ruptura com a epistemologia jurídica moderna. Em primeiro plano, permite-nos uma conexão com as nossas raízes culturais e, também, com o nosso povo, de onde se é possível readequar através do saber local as categorias jurídicas vigentes. Mais profundamente, inaugura uma nova sensibilidade, que nos possibilita também reimaginar poeticamente a nossa imagem de mundo a partir do Sertão.
Logo, o “direito castanho”, enquanto inscrição decolonial do Direito na cultura nordestina, nasce como um conceito eminentemente subalterno, no sentido de oferecer uma nova interpretação do Direito a partir do imaginário sertanejo. Na acepção incorporada pelo Autor, isto é, “[…] como síntese ‘quadernesca’, o ‘direito castanho’ poderia ser percebido como uma matização entre, de um lado, o espírito mágico professado pelo ‘surrealismo jurídico’ de Luis Alberto Warat e, de outro, a matriz dialética adotada pela práxis de ‘O Direito Achado na Rua’”.
Assim é que o Autor se desincumbe da sua tarefa de pensar uma epistemologia jurídica decolonial a partir do Romance d’A Pedra do Reino e nos brinda, ao tempo que nos interpela, com os intrigantes conceitos de “Direito Achado no Sertão”, “Direito Castanho”, “Sertanismo Jurídico”. Conceitos cujos sentidos intencionalmente foram deixados em aberto, como algo sempre por fazer, sempre por alcançar; convocando à experimentação do chão pedregoso do Sertão, da quentura escaldante do sol, da secura da sua terra, da bravura e beleza da sua gente.
Tal como ocorre na “Ilha Desconhecida” de Saramago, ou mesmo no “Grande Sertão” de Rosa, ao iniciar esta viagem, cumpre a nós leitores nos abandonarmos nessa travessia rumo ao desconhecido e encantado Sertão-Mundo de Raique, Quaderna e Suassuna
Embora a síntese oferecida por Marta Gama seja completa, e o primeiro capítulo do livro trate com muita adequação a aproximação entre direito e literatura ou direito e arte, volto a essa parte por encontrar entre suas fontes uma autora necessária ao catálogo oferecido por Raique, porque considero seu texto pioneiro e inafastável nesse tema. Além de Eliane, outro encontro benfazejo o de Arnaldo Godoy, para mim uma referência aqui em Brasília de quem, invariavelmente sobretudo nas bancas organizadas por Cristiano Paixão, venho colhendo referências para identificar em juristas e filósofos aqueles que com mais maestria articulam seus temas com aproximações literárias.
Em seu livro “Literatura & Direito. Uma outra leitura do mundo das leis” (Rio de Janeiro: LetraCapital Editora/IDES – Instituto Direito e Sociedade, 1998), Eliane Botelho Junqueira trata dessa relação, acentuando vários aspectos dos vínculos entre as ciências sociais e a literatura para ampliar as percepções da realidade social. Ela põe em relevo nesse campo a disputa de diferentes análises sobre o direito desenvolvidas na academia, sobretudo norte-americana a partir do movimento direito e sociedade e direito e desenvolvimento para estabelecer esse novo campo de relações: “As correntes Law and economics, Law and society, critical legal studies, critical race theory e feminist jurisprudence, dentre outras, sem dúvida são conhecidos exemplos dessa efervescente produção acadêmica. Mais recentemente, o ‘movimento’ Law and literature conquistou importante espaço institucional” (pág. 21). A partir daí ela estabelece uma interessante distinção de tendências, a primeira denominada literature in Law, segundo ela, “tendo como origem remota os trabalhos de Benjamin Cardozo, (que) defende a possibilidade dos textos jurídicos – aqui incluindo-se leis, decretos, contratos, testamentos, contestações, sentenças etc – serem lidos e interpretados como textos literários” (pág. 22); e a segunda tendência, “conhecida como Law in literature, voltada para trabalhos de ficção que abordem questões jurídicas”.
Essas tendências continuam fecundantes na cultura jurídica latino-americana, dotada de um imaginário que não se comporta apenas na racionalidade instrumental, mas que aspira a uma razão sensível, afetiva, para assimilar o alcance sugerido por Maffesoli. Ainda mais num ambiente nutrido pelo extraordinário favorável a nos permitir adentrar no realismo. Não sei se procede do Gabo (Gabriel Garcia Marques) a anedota do professor que interpelando seu aluno sobre ele ter lido a “Crítica da Razão Pura de Kant”, recebeu a resposta imediata, “não, mas assisti o filme”.
A mirada do Autor desde a obra de Ariano Suassuna, para além da referência cultural identitária – “Neste trabalho, com os pés fincados no chão, falei do meu lugar, do meu país, da minha gente, da minha terra, do meu Sertão interior, da minha Ilha Desconhecida. O que eu procurei não foi criar nenhuma “verdade universal”, mas uma “verdade localizada” no seio da minha própria cultura. Não busquei criar uma narrativa única, mas uma narrativa que pudesse coexistir com todas as outras possíveis, ela mesma um infinito de possibilidades” – há uma tomada de posição político-epistemológica, tanto referida ao filosófico no que tange à perspectiva decolonial, e por extensão, uma perspectiva crítico-emancipatória do direito – O Direito Achado na Rua – que vão se fundir nos elementos interpretativos do mundo e da sociedade adotados por Raique.
Sobre a perspectiva decolonial, é importante anotar o que o Autor distingue, até para fixar esses fundamentos:
Assim, “à semelhança da imperial epistemologia dos Estudos Regionais, a teoria [pós-colonial] permaneceu sediada no Norte, enquanto os sujeitos a estudar se encontravam no Sul” (GROSFOGUEL, 2008, p. 116). Esse cenário acabou suscitando a dissidência de alguns membros, dentre eles, Walter Mignolo e o próprio Ramón Grosfoguel que, mais tarde, viriam a integrar o Grupo Modernidade/Colonialidade (M/C), juntamente com Arturo Escobar, Edgardo Lander, Enrique Dussel, Aníbal Quijano, Fernando Coronil, Santiago Castro-Gómez, Immanuel Wallerstein, Catherine Walsh, Nelson Maldonado-Torres, Boaventura de Sousa Santos, dentre outros (BALLESTRIN, 2013)”
Curioso é que, à exceção de Dussel, com textos dos 1980, todas as referências de Raique são de autores e autoras que escreveram nos anos 2000 (Boaventura nos anos 1990). Digo curioso porque, em outra chave, portanto com elementos que antecipam o glossário de conceitos dos estudos sobre colonialidade, tanto Suassuna, quanto Roberto Lyra Filho (A Nova Escola Jurídica Brasileira – Nair, de onde procede O Direito Achado na Rua, sua Concepção e Prática), podem perfeitamente compor o rol de autores libertários (decoloniais), desencadeadores do que nesse campo pode ser caracterizado como virada decolonial.
Nos personagens de A Pedra do Reino essa postura é recorrente. E conforme destaca Raique, sintetizando essas posições:
É que, para Joaquim Nabuco e seus seguidores, o Brasil deveria se esforçar para ser um prolongamento da Península Ibérica. No fundo, esbraveja Adalberto, “todos esses são traidores da nossa luta, saudosos da Europa, exilados e desenraizados aqui” (SUASSUNA/PDR, 2017, p. 647). Para ele, nosso caminho deve ser outro, temos que aprofundar e ampliar a picada aberta por Silvio Romero, Manoel Bonfim e Euclides da Cunha, de modo que, “na luta que inevitavelmente se vai travar entre os Latinos e os Nórdicos, deveremos ficar, primeiro, fiéis a nossas raízes ibéricas” (SUASSUNA, 2017, p. 647), mas não podemos esquecer que, “todos os Povos submetidos e explorados do mundo são Negros, qualquer que seja a sua cor. Daí a solidariedade que deve haver entre nós, Latino-americanos, os Negros e os Asiáticos” (SUASSUNA/PDR, 2017, p. 647), completa ele.
Ao estabelecer o escopo de sua apreensão do que denomina Sertanismo Jurídico e o Direito Achado no Sertão, Raique se vale do querido amigo João Paulo Allain Teixeira, para com ele pensar “a articulação de uma epistemologia do direito orientada pela dimensão armorial pressupõe o desdobramento da leitura decolonial em planos de significação que evidenciem a dimensão regional do saber enquanto espelho das diferentes formas de pensamento de um povo”. E nesse passo se dar conta de que “esta tarefa implica em uma percepção dos limites das teorias alienígenas, que demandam, ao menos um esforço de mediação cultural para serem assimiladas em contextos específicos, distintos daqueles nas quais foram forjadas”.
Talvez por isso tenha se deixado arrebatar pelo que intuiu ser um movimento de virada decolonial, a convocação de Roberto Lyra Filho para fundar manifestar as bases de uma Nova Escola Jurídica Brasileira. A transcrição é uma escolha de Raique e está assim na sua obra:
A Nova Escola Jurídica é brasileira porque brasileiros são os seus membros e brasileiro o seu estandarte antiimperialista, a sua denúncia de todo genocídio material e cultural. Nas próprias “veias abertas da América Latina”, as asas da libertação espantam o bico de morcegos e vampiros, que nelas querem manter a fonte extrativa de matéria-prima e o mercado consumidor do produto estrangeiro, inclusive o ideológico. Rejeitamos as diretivas contrabandeadas pelo poder econômico multinacional e pelos autonomeados senhores das áreas de influência e seus representantes internos. Repelimos as contrafações ideológicas encadernadas e enlatadas, que desfibram as massas, impedem a autodeterminação popular, descaracterizam o nosso idioma, estilo e maneira de ser. Condenamos o “portinglês” dos PhDs, formados na “matriz”, ou aqui “possuídos” mentalmente por seus mestres e doutores da lei, sempre embasbacados diante de qualquer nominho ou flato mental da dominação empavonada. Conclamamos os estudiosos a lembrarem os nossos valores autênticos, os nossos mestres ir conformistas, enterrados sob a pata industrial-colonizadora, que recebe as carícias manhosas do complexo de inferioridade “nativa”.
Na sua perspectiva político-epistemológica Raique busca praticar um cuidadoso exercício de mediação metodológica, simultaneamente objetivo e subjetivo. Ele conduz o exercício ao limite da refutação contra-metológica (na modelagem de Paul Feyrabend), para preservar o seu percurso:
Em geral, os cientistas exigem critérios objetivos para que uma teoria possa ser validada, do contrário, sem uma aplicação adequada do rigor metodológico, tal postulado jamais poderia ser considerado como uma evidência científica. Não se discorda da veracidade de tal conjectura, sobretudo, porque o ofício do cientista é sempre chegar o mais próximo que puder da verdade (e o método garante isso), contudo, por mais próximo que ele possa chegar, não podemos esquecer que o cientista nunca conseguirá alcançar completamente a verdade.
Justamente por isso, o ideal de uma ciência que substitua a sensibilidade empírica e a intuição, por uma crença dogmática de pureza metodológica e autodescrição objetivante do cotidiano, não só não pode ser considerada “boa ciência”, como também não passa de uma “filosofia ruim”, cousa atestada e juramentada por gente de fora, como “Jorge” Habermas (2010)
Aqui terá sido útil, desde uma perspectiva metodológica, mas também epistemológica, valer-se das mediações cognitivo-tradutoras, não só de uma antropologia social que desvende uma outra sociabilidade, mas de uma sociologia de ausências e de emergências que possa ir ao profundo da linha abissal (Boaventura de Sousa Santos) para regressar pela mediação da hipótese do pluralismo jurídico, com a projeção de uma outra juridicidade que não seja o sinal trocado de um monismo positivo legal travestido de um monismo alternativo. O Direito Achado na Rua não é um direito alternativo, mas a expansão desde as entranhas do social, lá onde a existência emancipada, comunitária, compartilha os bens da vida produzidos em comum e de forma comum e igualitária sejam compartilhados segundo padrões de uma organicidade legítima.
Com efeito, também na dissertação de Raique e antes em seu Direito, Literatura & Sertão, até por conta da matriz decolonial com a qual quer articular respostas para a questão dos mecanismos historicamente utilizados para a construção das hierarquias e posições sociais no Brasil, está assentanda em seu pensamento decolonial o por em causa as inter-relações segregadoras que obstruem o reconhecimento titulável de subjetividades emancipadas, e as possiblidades da atuação política de sujeitos históricos, na linha desses estudos que designam o modo sentipensante (Falls Borda, Paulo Freire) de libertação, no diálogo com os autores e autoras desse campo, por ele citados.
Abre-se, portanto, naquilo que me incumbe dialogar com o Autor, a partir de sua obra, espaço para um Direito formado pelos sujeitos coletivos em meio às lutas sociais. Quando esses novos sujeitos entraram em cena, tornou-se imperativo “investigar a dimensão instituinte dos espaços sociais instaurados por esses movimentos e aquilatar a capacidade constitutiva de direitos decorrentes dos processos sociais novos que eles desenvolvem”. Nesse sentido, o desenvolvimento de estudos críticos sobre o Direito no Brasil decorre, em certa medida, da emergência desses sujeitos coletivos que se organizam enquanto sujeitos da própria história, munidos de habilidades de auto-organização e autodeterminação, transformando-se naquilo num sujeito coletivo de direitos, o que pode ser conferido na minha bibliografia em parte arrolada por Raique.
Me instiga sugerir, pelo engajamento precoce, o verbete Sujeito Coletivo de Direito que meus alunos (1º semestre do Curso de Direito na UnB, elaboraram para a wikipedia, como atividade de investigação e autoria na disciplina Pesquisa Jurídica (cf. https://pt.wikipedia.org/wiki/Sujeito_coletivo_de_direito).
Voltando à questão metodológica, como estratégia dos estudos de decolonialidade, combina bem com a disposição de Raique contribuições de pensadores como Fals Borda, já que intuitivamente essa disposição o aproxima da atitude do corazonar que, de acordo com Patricio Guerrero Arias, refere a uma postura intelectual, acadêmica e política de luta decolonial a partir do corazonamiento do saber, do poder e do ser. Ou seja, a religação da afetividade com a racionalidade intelectual, uma postura de decolonialidade do saber, do sentir e do ser, mas também, uma descolonização da própria academia e sua racionalidade universalizante. Suassuna em estado puro. (cf. http://estadodedireito.com.br/varrendo-para-cima-do-tapete-da-invisibilidade-social-a-regulamentacao-juridica-do-trabalho-na-limpeza-urbana/).
Raique, ao (re)colocar a questão dos sujeitos sociais na perspectiva do sujeito coletivo de direitos, com “O Direito Achado na Rua”, possibilita, em última instância, a composição de identidades coletivas autônomas, não mais como prática solipsista (filosofia da consciência), mas como uma rede integrada de sujeitos, o que permite a reiteração de seu caráter participativo e democrático. Trata-se de “identidades coletivas conscientes, mais ou menos autônomos, advindos de diversos estratos sociais, com capacidade de auto-organização e auto-determinação, interligadas por formas de vida com interesses e valores comuns” (WOLKMER, 1997, p. 214) que compartilham conflitos e lutas cotidianas, legitimadas como mola propulsora para transformação do poder e instituição de um novo ordenamento social, plural, descentralizado e, acima de tudo, igualitário. Conforme aduz José Geraldo de Sousa Júnior e Lívia Fonseca (2017, p. 2894): “essa ideia é a base de fundamentação teórico prática da proposta de ‘O Direito Achado na Rua’ e tem como objeto o rompimento com a colonialidade do direito no seu cerne”.
Li Raique numa quadra angustiante que marca a passagem de um mundo carcomido pelo colonialismo na sua pior exacerbação que é a capitalista neoliberal. No Brasil ela se manifesta de um modo corrosivo, moendo gente, para me valer de uma expressão de Darcy Ribeiro em O Povo Brasileiro. Mas, felizmente, numa conjuntura em que um mundo novo começa a nascer, parido do ventre utópico desse povo que não se deixa colonizar.
Li Direito, Literatura & Sertão a uma semana da posse de um novo governo, de extração democrático-popular que abre uma atmosfera de expectativas, a rigor, de esperanças, considerando a realidade trágica vivenciada no país nos últimos seis anos, de uma administração cuja legitimidade foi todo tempo questionada e definitivamente avaliada nas eleições.
Em artigo que escrevi com meu colega Eduardo Xavier Lemos, para a Coluna Justiça e Paz do Jornal Brasil Popular (https://www.brasilpopular.com/o-que-precisa-ser-novo-num-governo-novo/), acabando de conhecer o Relatório Final do Gabinete Governamental de Transição, pudemos retirar dele, dado o quadro de desmonte de políticas de atenção ao social, a constatação de que o resultado das urnas elegeu um projeto de reconstrução e transformação nacional, lançada a perspectiva de “criação de um país justo, inclusivo, sustentável, criativo, democrático e soberano para todos os brasileiros e brasileiras. Trata-se de um grande desafio e uma obra de muitos, a esperança da nossa gente será o motor das mudanças que iremos realizar nos próximos anos”.
Mais que nunca cabe a indagação: o que precisa ser novo num governo novo? Do estertor da barbárie e do autoritarismo que agonizam, como interditar os monstros que se esgueiram no lusco-fusco para migrar do velho governo para o novo governo?
Esperamos, dissemos Eduardo Lemos e eu, que o centro de governo, mediado pela atuação de uma justiça acessível e de uma segurança cidadã – muito diferente da instrumentalidade funcional de uma justiça formal e autoreferida – se abra à rua (metafórica), reconhecendo seus espaços instituintes e a titularidade coletiva das subjetividades inscritas nos movimentos sociais que transformam a democracia de forma de governo em forma de sociedade.
Uma Justiça (e uma governança) que não se isole numa bolha arrogante e prepotente de dramática memória, principalmente se pensarmos em seu papel para interditar, aprisionando, um presidente (Lula) praticamente eleito. Afinal, em anotação retirada do livro de Raique, aludindo a Saramago (O Conto da Ilha Desconhecida. São Paulo: Companhia das Letras, 2016), “é necessário sair de mim e me encontrar numa outra órbita; sair de si mesmo para ver a si mesmo. Sair da ilha para ver a ilha”.
Sair, pois, da bolha, principalmente a jurídica, das velhas hierarquias e das comendas heráldicas, que se autoconhecem (qui hurlent de se trouver ensemble), para desburocratizar e despapelizar o sistema, abrindo-se à interlocução com os verdadeiros protagonistas, nos espaços sociais que reinventam, os sujeitos coletivos de direito, que pedem não só a ampliação de acesso ao sistema de justiça, mas diálogo para discutir a qual Justiça reivindicam acesso (https://www.brasilpopular.com/o-que-precisa-ser-novo-num-governo-novo/).
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
Intervenções nas Instituições Federais de Ensino: reitoras e reitores eleitos e não empossados
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Marcel Fernando da Costa Parentoni e outros. Coletivo de Reitores e Reitoras. Intervenções nas Instituições Federais de Ensino: reitoras e reitores eleitos e não empossados. Nossa luta, nossa história (1ª edição. Campos dos Goytacazes, RJ: Encontrografia Editora, 2022, 336, p. Download gratuito da versão digital em: https://encontrografia.com/wpcontent/uploads/2022/12/ebook_Intervencoes-nas-instituicoes-federais.pdf)
Num novo governo, o novo deve ser o que o caracterize e distinga. Como fez em seu último mandato o Presidente Lula que se reunia quase periodicamente (em diálogo e não em pé para comunicados) com os Reitores para construir políticas universitárias (assim foi o REUNI), já abriu agenda para interlocução com Reitores e Reitoras, ainda na primeira quinzena de sua posse apesar das urgências provocadas pela intentona do dia 8 de janeiro. A reunião foi mediada pela Andifes. A força do simbolismo que traz o novo da nova governança, desperta enorme interesse. A gestão é educadora, e acompanhá-la, é parte dessa pedagogia. O encontro foi transmitido ao vivo e já é acervo para consultas (https://youtu.be/_M2V_Ca2C8Q). Eis a novidade, querer sair da bolha, pois só se conhece a ilha saindo da ilha (José Saramago. O Conto da Ilha Desconhecida. São Paulo: Companhia das Letras, 2016).
Ganhou forte repercussão, em seguida à posse do novo Ministro da Educação, a exoneração pelo ministro do Reitor da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), nomeado no governo Bolsonaro. O Reitor exonerado havia assumido o cargo mesmo não tendo participado de nenhuma das fases de consulta pública e nem tendo seu nome na lista tríplice indicada pela comunidade acadêmica. O ato de exoneração saiu no Diário Oficial da União, de 16/01. O Ministro da Educação nomeou também professor da Univasf para o exercício reitoral pro-tempore da universidade.
Esse é um caso extremo – a nomeação em desacordo com a formação de lista conforme a disciplina da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, seguindo procedimento formal no âmbito das instâncias comunitárias e institucionais das IES.
Meus colegas ex-Reitores e meus amigos e amigas Reitores e Reitoras estão atentos a essa questão e ávidos de fundamentos para orientar seus posicionamentos e a defesa das universidades. Assim, logo cuidei de oferecer uma primeira reflexão sobre essa questão candente, para circular em nossas listas de discussão e o fiz aproveitando a minha coluna O Direito Achado na Rua publicada quinzenalmente pelo Jornal Brasil Popular. A publicação foi postada no dia 18/01, às vésperas do encontro com o Presidente. Dei o título Intervenções nas Universidades: Autonomia e Nomeação de Reitores (https://www.brasilpopular.com/intervencoes-nas-universidades-autonomia-e-nomeacao-de-reitores/). No texto faço referência ao livro tema deste Lido para Você, que me foi enviado pelo colega Rui Vicente Oppermann, ex-Reitor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, reeleito por sua comunidade e incluído na lista em primeiro lugar por ter sido o mais votado porém, preterido num atravessamento que revela o intuito de intervenção hostil à autonomia universitária. O caso é um dos relatos do livro, com a marcação muito expletiva Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A vontade de um deputado acima da vontade da comunidade (p. 161-169).
Com efeito, o livro organizado por Marcel Fernando da Costa Parentoni e outros, formando um Coletivo de Reitores e Reitoras – Intervenções nas Instituições Federais de Ensino: reitoras e reitores eleitos e não empossados. Nossa luta, nossa história (1ª edição. Campos dos Goytacazes, RJ: Encontrografia Editora, 2022. download gratuito da versão digital em: https://encontrografia.com/wp-content/uploads/2022/12/ebook_Intervencoes-nas-instituicoes-federais.pdf) – relaciona pelo menos 26 casos relativos a universidades e institutos federais devidamente registrados, com o recolhimento de “relatos de pessoas que presenciaram de perto o estrago que o vento oportunista e autoritário pode fazer em organizações estratégicas para o desenvolvimento regional, nacional e internacional” e que implicou na mais afrontosa violação do princípio constitucional e histórico da autonomia universitária expresso no fundamento da gestão democrática que se manifesta entre outros enunciados, no mecanismo de escolha de seus dirigentes.
O livro é um libelo. Para além do relato das pessoas todas as manifestações trazem elementos convincentes para forrar o lastro teórico-político que confere à institucionalidade universitária o alcance constitucional e convencional que lhe atribuiu especial singularidade. Conforme os organizadores “os relatos contêm a veracidade dos processos das consultas prévias e eleições nos Conselhos Universitários nas Instituições Federais de Ensino Superior e estão carregados de muitos sentimentos. Impossível não perceber o sofrimento coletivo, diante do total desrespeito à comunidade acadêmica que escolheu seus representantes, com base nos projetos de gestão democrática. Essa obra, representada por histórias de resistência, oferece também alguns caminhos de esperança por dias melhores. Paralelamente, ainda neste livro, há uma forte sustentação jurídica em defesa da autonomia universitária”.
Trago para esta resenha o núcleo argumentativo que esbocei no artigo publicado em minha coluna de 18/01. Mas em escritos anteriores venho de modo contínuo piqueteando o campo demarcável da construção do instituto da autonomia (https://www.brasilpopular.com/violacao-da-autonomia-universitaria-punicao-ao-abuso-de-poder/;https://www.brasilpopular.com/uso-do-direito-penal-para-restringir-a-liberdade-de-ensinar/), com menções a decisões recentes do Supremo tribunal Federal nesse âmbito. Assim que, nesse diapasão, ao julgar a ADPF 548, posicionaram-se os ministros mais uma vez, no sentido da afirmação irredutível do princípio da autonomia universitária, mantendo uma unanimidade que se traduz no substancioso voto da relatora, ministra Cármen Lúcia, para quem a autonomia universitária está entre os princípios constitucionais que garantem toda a forma de liberdade: “Não há direito democrático sem respeito às liberdades. Não há pluralismo na unanimidade, pelo que contrapor-se ao diferente e à livre manifestação de todas as formas de apreender, aprender e manifestar a sua compreensão de mundo é algemar as liberdades, destruir o direito e exterminar a democracia”.
Desde o início do governo autoritário, instalado por um mecanismo golpista que interrompeu a continuidade de uma governança de alta intensidade democrática, o programa neoliberal a que ele serviu, no aspecto econômico e também no aspecto ideológico, identificou a cultura e a educação e, neste caso, o segmento universitário que anima o ensino, a pesquisa e a inovação tecnológica, como um alvo preferencial de toda a sua hostilidade e com estratégia de captura de sua infraestrutura e sua autonomia de produção crítica de conhecimento.
Na esfera ideológica o que se vê é o intuito de vencer o pensamento crítico, desmistificador da astúcia predadora da governança miliciana e entreguista, que se manifestou seguidamente em ações diretas agressivas e não só retóricas (há professoras e professores em programas de proteção no Brasil e no exterior) e em subterfúgios administrativos com o objetivo de criminalizar a liberdade de cátedra e a própria autonomia.
Anota o filósofo católico tomista Jacques Maritain, tão influente na elaboração dos artigos da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, para cujo texto conduziu algumas de suas ideias de seu livro Os direitos do homem (1943), que aquele processo obscurantista do nazi-fascio-franquista, no pensamento e na ação (causou-lhe muita impressão o ensaio genocida da guerra civil espanhola), empurrava as opções para as posições cada vez mais à direita dos conservadores autoritários, extremados no reacionarismo e à esquerda, dos liberais e socialistas, ao extremo da revolução.
Em Lettre sur l’independence, mostra o notável crítico literário e também filosofo da política Álvaro Lins (Cristianismo Político e a Questão-Maritain ante o Fascismo Espanhol, in A Glória de César e o Punhal de Brutus. Ensaios e Estudos. 2ª edição: Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1963), o perigo que a inteligência e a educação afrontam, uma vez que o intelectual, o pensador, o universitário (aqui Lins associa Maritain a outro pensador católico e humanista Bernanos, e poderíamos associar também a Unamuno, Reitor de Salamanca e até então simpatizante do franquismo mas que no limite da preservação do recinto universitário inviolável opôs-se ao apelo do fascio expresso no “Morra a intelectualidade traidora! Viva a morte!”). O intelectual e o acadêmico, longe de delirar na contemplação, lembra Maritain recuperado por Álvaro Lins (será um parente do estimado ex-Presidente da Andifes Amaro Lins?) devem passar à ação, porque “a vida cotidiana deve estar a seu serviço”, do modo que só possam “ser acusados de traição aqueles que têm capacidade para a ação, numa causa justa, e se afastam dela por medo ou conveniência”.
É para preservar esse espaço de serviço e de compromisso da universidade com causas justas, que se construiu civilizatoriamente, referindo-me somente ao Ocidente, os princípios da autonomia (auto-governo) e de liberdade de ensino, que legaram à modernidade esse espaço irredutível e intangível da instituição universitária.
No Brasil, ainda que a instituição seja retardatária (Século XX) quando já se instalara na América espanhola desde o século XVI, nem por isso foi menos radical a assimilação desses princípios, alcançando com a concepção de universidade necessária, leal à Sociedade mais que ao Estado, aquele ethos que Darcy Ribeiro canalizou para o projeto da UnB.
Em Universidade de Brasília: projeto de organização, pronunciamento de educadores e cientistas e Lei nº 3.998, de 15 de dezembro de 1961 / Darcy Ribeiro (org), – Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2011, o nosso primeiro Reitor, em seguida à edição da Lei n. 3998, de 15 de dezembro de 1961, que autorizou o Poder Executivo a instituir a Fundação Universidade de Brasília, fez publicar em 1962 o seu texto, numa edição especial patrocinada pelo Ministério da Educação e Cultura, contendo pronunciamentos de educadores e cientistas sobre o texto da lei e o projeto de organização da nova universidade.
Para Darcy, não tinha o Brasil uma verdadeira tradição universitária a defender e preservar, porque a universidade brasileira, a rigor, diferentemente do que ocorrera em outros países das Américas nos quais elas foram criadas desde o século XVI, somente em 1920, já no século XX, será instituída.
Com a UnB, segundo ele, é que se dará mais propriamente, a instauração do que se poderia designar de universitário para conferir tal estatuto ao nosso ensino superior. Criar, pois, uma universidade em Brasília, constituiu-se numa dupla oportunidade. Primeiro, por reconhecer que, sendo Brasília um cidade criada no centro do país e nela instalado o governo da República, se tornaria inevitável nela instituir um núcleo cultural a que não poderia faltar uma universidade. Depois, para atender à urgência de dotar o país, na etapa de desenvolvimento em que se lançava, de uma universidade que tivesse “o inteiro domínio do saber humano e que o cultive não como um ato de fruição ou de vaidade acadêmica, mas com o objetivo de, montada nesse saber, pensar o Brasil como problema”.
Tratava-se de projetar, para atender a essas condições, a universidade necessária e esta era, dizia ele, a tarefa da Universidade de Brasília e para isso ela havia sido concebida e fora criada.
No prefácio que fiz à reedição comemorativa (jubileu da UnB), afirmei que, certamente, muito terá se perdido a partir das sucessivas interrupções e retomadas desse belo e generoso projeto, que nunca se deixou descolar de seu impulso utópico originário. Quando se examina o texto da lei que autoriza a instituição da fundação, incumbida de criar e de manter a Universidade de Brasília, melhor se afere esse movimento. Criado para ser autônomo, sustentável, público mas não estatal, o novo ente recebe a atribuição de inovar, no mais profundo sentido experencial, a ponto de poder organizar seu regime didático, inclusive de currículo de seus cursos sem restar adstrito às exigências da legislação geral do ensino superior (art. 14), incluindo poder escolher por seu próprio Conselho, seus dirigentes.
Não vi, nos elementos normativos de vinculação da Portaria assinada pelo Ministro da Educação para exonerar o Reitor da Unifasv, qual a base de legitimação do ato. Por mais reparador que ele seja, me acode uma preocupação. Constitucional e legalmente (LDB), a nomeação e a destituição de um Reitor não pode dar-se ao arrepio da manifestação das instâncias institucionais da universidade como ente autônomo.
Na redemocratização, em 1985, nos estertores da intervenção que impôs a UnB um agente militar do sistema de segurança nacional como Reitor, presente na Instituição por mais de 20 anos, o governo militar ainda insinuou na transição um reitor civil e acadêmico. A comunidade que sempre resistira em atos pelo fim da intervenção, rebelou-se, mas não aceitou a alternativa do ministério da Nova República, de responder à greve provocada pela recusa de nomeação de um Reitor eleito pela Comunidade (Cristovam Buarque), com a exoneração do nomeado. Não aceitou o risco de boa-fé de afastar uma nomeação ilegítima, para abrir um precedente de afastamentos de má-fé que pudesse ser produzido para afastar uma nomeação legítima. Conduziu a greve até a renúncia do nomeado, além de tudo um professor respeitado e digno.
Fiquei satisfeito com uma postagem em grupo de reitores e ex-reitores de colega que menciona situação atual em sua universidade, vivenciando condição equivalente, e ele diz: “aqui, na (…), estamos pensando em uma alternativa interna para reparar o golpe na nossa democracia de forma legal e moral, o que exigirá a concordância da comunidade acadêmica e, consequentemente, a aprovação no Conselho Universitário”. Esse me parece um caminho coerente e firme. Esse tema precisa entrar na agenda que a Andifes atualiza permanentemente para seus encontros com o Presidente da República. Também há propostas hibernando nos escaninhos do processo legislativo. Consulte-se o Projeto de Lei nº 3.674, de 2004, que “Modifica a Lei n.º 9.394, de 20 de dezembro de 1996, dispondo sobre eleições diretas para reitor e vice-reitor das instituições federais de ensino superior” de autoria da Deputada Alice Portugal.
A justificativa é precisa: “O presente Projeto de Lei tem o propósito de modificar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação dando conseqüência ao princípio da gestão democrática previsto no texto da lei. Ao estabelecer autonomia para que estas instituições decidam os critérios e o processo de escolha de seus dirigentes e a composição de seus órgãos colegiados, o projeto em apreço avança no sentido de assegurar às instituições públicas de ensino superior poder de decisão sobre sua organização. E, ao definir que a escolha do reitor, do vice-reitor e dos diretores de cada instituição deverá ser feita por meio de eleições diretas e secretas, com a participação de professores, alunos e técnico-administrativos, o presente Projeto de Lei, além de atender a uma aspiração da comunidade universitária de nosso país, é um passo decisivo para efetivar no âmbito da universidade pública brasileira a gestão verdadeiramente democrática”.
O projeto recebeu parecer da Relatora Deputada Fátima Bezerra, atualmente Governadora reeleita do meu querido Rio Grande do Norte.
Assenta Fátima:
“A gestão democrática é o processo que possibilita a participação e a responsabilização de todos os envolvidos em uma determinada atividade. Possibilita a intervenção direta ou por meio de representação nos processos de tomada de decisão e de avaliação e fiscalização das atividades desenvolvidas.
Isto ocorre na sociedade e pode ocorrer também na gestão da educação. Em especial na educação superior, onde os alunos já estão mais amadurecidos e podem se envolver diretamente no funcionamento da instituição educacional.
O Projeto de Lei n.º 3.674, de 2004, apresentado pela ilustre deputada Alice Portugal, assegura o respeito ao princípio da gestão democrática na educação pública, previsto no artigo 56 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, e o aperfeiçoa, mediante o acréscimo de dois parágrafos: o primeiro que estabelece a autonomia da instituição para a definição dos critérios e processos para escolha de dirigentes e composição dos órgãos colegiados; o segundo parágrafo propõe que a eleição seja direta, com a participação dos segmentos da comunidade acadêmica, e se encerre no âmbito da instituição.
É nossa convicção que a explicitação de procedimentos e a garantia da participação da comunidade acadêmica na gestão das instituições de educação superior virá a contribuir, efetivamente, para o seu melhor funcionamento, para uma gestão mais eficiente e para a concretização de seus compromissos com a melhoria da qualidade e o cumprimento de sua função social”.
Acalento a esperança de que também do Rio Grande do Norte, a deputada Natalia Bonavides, brilhante revelação no Parlamento brasileiro, ela que se formou no ethos de uma qualificação totalmente constituída no modelo da universidade necessária projetada por Darcy Ribeiro, abrace a promessa desse projeto e o retire do arquivo ou lhe dê nova formulação para imprimir em sua biografia rica em protagonismo emancipatório, essa causa da educação brasileira.
Por último, o tema é muito sensível e já ativou a atuação preocupada da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (confira em https://www.brasilpopular.com/principios-interamericanos-sobre-a-liberdade-academica/), que aprovou Princípios Interamericanos sobre a Liberdade Acadêmica, para prevenir “a constatação da ameaça crescente, no continente, de agressões, mobilizações e atitudes contra a autonomia universitária e a liberdade de ensino, sobre a desinstitucionalização e a desconstitucionalização desses fundamentos, caros aos enunciados dos direitos convencionais internacionais, assim como da própria ONU” (https://www.oas.org/es/cidh/informes/pdfs/Principios_Libertad_Academica.pdf).
De resto, essas diretrizes estão afinadas com o Comentário Geral 13 do Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (ONU), que deixou bem assentado o reconhecimento da liberdade acadêmica, cuja satisfação, assegurada em geral pelas constituições dos países: “é imprescindível à autonomia das instituições de ensino superior. A autonomia é o grau de auto governo necessário para que sejam eficazes as decisões adotadas pelas instituições de ensino superior no que respeita o seu trabalho acadêmico, normas, gestão e atividades relacionadas”.
Salvaguardar o espaço crítico autônomo da Universidade é dar concretude a uma categoria constitutiva dos direitos fundamentais, a liberdade de consciência e de expressão, de comunicação, sem falar daquelas ligadas ao sistema de proteção à educação, que estão tanto na Declaração Universal dos Direitos Humanos quanto na Convenção Interamericana de Direitos, quanto nos protocolos derivados dela, como de São Salvador. E se não se fizer nada, daqui a pouco estaremos de novo com o censor dentro da sala, com o comissário verificando os títulos dos livros que são adquiridos para as bibliotecas, com as caracterizações das teses e dissertações que são defendidas, e da criminalização do pensamento e da crítica. Com algum energúmeno erigido a distinção de notável saber.
Esses princípios asseguram o fundamento convencional e a diretriz constitucional de autonomia universitária e de liberdade de ensino e não podem servir ao escrutínio censor, mesmo do Presidente da República, para acobertar numa elasticidade imprópria de que lhe cabe a direção geral da administração (ar. 84 da CF), para assim, transformar supervisão em subordinação, desconstitucionalizando o princípio da autonomia universitária, e na voragem autoritária, sufocar a crítica acadêmica e até, no limite, a dignidade e a vida, como agora vai se revelando no evento policial-judicial que sacrificou o Reitor Cancellier (MARKUN, Paulo. Recurso Final. A Investigação da Polícia Federal que Levou ao suicídio um Reitor em Santa Catarina. São Paulo: Cia das Letras, 2021) e tem forçado já verdadeiros exílios de professores em nossas universidades e o próprio atual Presidente, num desvio de lawfare impedido – o que o social mobilizado não permitiu – de retornar à Presidência da República, como agora, para um raro e inédito terceiro mandato.
Para todas as manifestações e tomadas de posição que a agenda da autonomia venha a requisitar e nessa agenda, é sensível o tema da forma de escolha e de designação dos dirigentes das IFES, e o livro que comento se constitui uma referência incontornável. O rol de organizadores responde pela lúcida e abalizada interpretação que sobressae dos relatos e cumpre o seu desiderato. Forma, conforme um desses organizadores – Anderson André Genro Alves Ribeiro – um registro histórico essencial, apto a atribuir conteúdo ao necessário engajamento para que “o princípio constitucional da autonomia universitária seja cumprido e materializado. Para ele, o livro “é, ao mesmo tempo, um registro da nossa história e um convite à nossa luta, à defesa da educação, da ciência e do ensino superior público de qualidade, gratuito e inclusivo”.
Esse é um percurso histórico sempre orientado pelo compromisso constitucional de fortalecer o instituto da autonomia universitária, constitucionalizado, e não porque represente um privilégio estamental ou corporativo (há outros entes com pretensões equivalentes e por razões menos universalizantes – Banco Central, Forças Armadas, Ordem dos Advogados, Ministério Público, Agências Reguladoras), mas por sua essencialidade aos objetivos institucionalizados da formação econômico-social.
A Ordem dos Advogados, uma corporação de ofício, tem reconhecimento constitucional da essencialidade da advocacia para a administração da Justiça e não está sujeita a controles estatais, é conceituada como uma autarquia sui generis e assim é a sua própria base que aprova as suas contas e define a sua direção, e o advogado tem a garantia de inviolabilidade de seus atos e manifestações (Constituição, artigo 133).
A Lei Complementar 179/2021 estabeleceu a autonomia do Banco Central. Observe-se a manifestação de seu Presidente, em seguida à sanção da Lei: “O Brasil deu um passo importante com a autonomia do Banco Central. Esta conquista é resultado de um longo processo de amadurecimento institucional, onde os benefícios de um banco central autônomo, transparente e responsável foram ficando claros para a sociedade”.
Curioso que o processo de amadurecimento na institucionalização do econômico seja recebido sem reservas, enquanto quando se trate de um adensamento institucional milenar, pré-estatal, portanto, universalmente social, como se dá com a institucionalização universitária, cuja autonomia, por sua essencialidade, está constitucionalizada (art. 207), se armem tantas reticências.
Para vencer essas reservas é que se instalou no âmbito da Andifes – Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior, uma Comissão de Autonomia. Tive o privilégio de presidir essa Comissão ao tempo de meu mandato como Reitor da UnB (2008-2012), investido por meus pares que acolheram a indicação do então presidente Amaro Lins, Reitor da UFPE – Universidade Federal de Pernambuco, ousado em confiar nas minhas qualificações, não obstante o noviciado na Entidade.
Nesse quadrante, certamente pelo espaço de interlocução que um governo democrático abre, foi possível estabelecer uma agenda virtuosa para operar etapas de construção com variadas interfaces interinstitucionais um caminho empírico para pavimentar concretamente a prática da autonomia. Desde estabelecer matrizes para composição e distribuição orçamentária para o financiamento estatal das IFES (Matriz Andifes); da revogação do excesso de supervisão imobilizante em atos e regulamentos, no limite impertinentes, firmar o acordo de cavalheiros para respeitar a hierarquia da lista tríplice, até formular um horizonte de auto-gestão (constitucionalmente) que culminasse em modificação da LDB para que o processo de escolha de dirigentes tenha início e termo no espaço institucional autônomo das universidades.
Certamente, em seminários, reuniões e boa documentação que foram catalogados nesse período, sempre se teve em mira a historicidade, os princípios e as tensões que assinalam a autonomia universitária (a respeito conferir o meu artigo Autonomia universitária, historicidade, princípios e tensões. Adufg – Jornal do Professor. Goiânia: Publicação do Sindicato dos Docentes das Universidades Federais de Goiás – Ano III – nº 25, setembro de 2015, p. 2). Conferir também o meu artigo Territórios de conhecimentos e de intersubjetividades: um lugar social para a Universidade. In Existindo, Resistindo e Reinventando: Universidades Públicas no Brasil Atual. Brasília: Revista Humanidades. Editora UnB, nº 65, dezembro de 2021, p. 10-22).
O núcleo desse texto foi o meu pronunciamento em evento promovido pelo Instituto Latino-Americano e pela Adurfrgs/Sindical na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a convite do ex-Reitor Hélgio Trindade da UFRGS, também ex-Reitor da Unila, em ciclo de debates denominado A Universidade do Futuro. A motivação do encontro foi firmar posição em relação à objeção e postura do Ministério Público em ação civil pública contra a Universidade Federal da Integração Latino-Americana e contra a União, a primeira para anular dispositivo do Estatuto e Regimento da universidade que previam regra de paridade para a composição do Conselho Universitário e comissões, ao invés de adotar a proporcionalidade docente indicada na LDB; contra a União, para suspender o procedimento de credenciamento da própria universidade, enquanto não satisfeita a exigência de adequação legal de setenta por cento de assentos ocupados por docentes.
Estar no evento representava para mim trazer apoio a uma formulação universitária conduzida pelo professor Hélgio Trindade, na sua investidura de reitorados que se destacaram no desenvolvimento institucional no Brasil, não só por sua eloquente qualificação teórica, documentalmente estabelecida, mas por sua condição de formulador de políticas públicas no campo. Aliás, foi nesse ambiente que o conheci, quando estive investido como Diretor do Departamento de Política da Educação Superior, na SESu/MEC (2003, gestão do Ministro Cristovam Buarque, condição na qual participei como membro da Comissão Especial de Avaliação que resultou na criação do SINAES – Sistema Nacional de Educação Superior e logo, da CONAES – Comissão Nacional de Avaliação da Educação Superior, instalada e inicialmente presidida pelo professor Hélgio Trindade.
Ali, com Hélgio, José Dias Sobrinho e um plantel raro incluindo vários ex e futuros reitores e reitoras (SINAES – Sistema Nacional de Educação Superior. Bases para uma nova proposta de avaliação da educação superior brasileira. Brasília: MEC/SESu -Comissão Especial de Avaliação, setembro de 2003), foi possível criar um sistema condizente a princípios e critérios, por meio dos quais a regulação e o controle não delirem da referência constitucional e seus enunciados, de um lado, marcando a educação [como] um direito social e dever do Estado; de outro, guardando compromisso com os valores sociais historicamente determinados que validam a construção civilizatória do ente universidade.
Tomei esse último contexto para formar o fio orientador de minha conferência na sessão de encerramento da 9ª Conferência do Fórum de Gestão do Ensino Superior nos Países de Língua Portuguesa – FORGES, realizada de 20 a 22 de Novembro – 2019, Brasília, Brasil, na Universidade de Brasília, tendo como tema central “A integração do ensino superior dos países lusófonos para a promoção do desenvolvimento humano”.
A conferência foi publicada na forma de artigo na Revista Forges, nº Especial (2020): Número Comemorativo do 10º Aniversário da Forges, publicado em 2020-11-19 (https://revistaforges.pt/index.php/revista/issue/view/8). O título do artigo publicado é “Uma Universidade Popular para uma Educação Emancipatória”.
Destaco que os pontos que formam o fio condutor de minha exposição correspondem, em seus fundamentos, às expectativas que defendem uma universidade aberta à cidadania, preocupada com a formação crítica dos acadêmicos e mais democrática. Uma universidade, como lembrava Boaventura de Sousa Santos em recente visita à UnB, consciente de que “o que lhe resta de hegemonia é o ser um espaço público onde o debate e a crítica sobre o longo prazo das sociedades se podem realizar com muito menos restrições do que é comum no resto da sociedade e que encontra no exercício da pluralidade tolerante a mediação apta a torná-la uma ‘incubadora de solidariedade e de cidadania ativa’”.
O que leva a um modelo que já se apresenta como proposição interpelante da universidade convencional, desde que ela se abra a, pelo menos, a uma condição. Dar-se conta da natureza social do processo que lhe cabe desenvolver. Não é condição trivial, porque ela implica opor-se à tentação de mercadorização do ensino e da pesquisa e conseqüente redução do sentido de indisponibilidade do bem Educação, constitucionalmente definido como um bem público, processo dramático e cruento em curso autoritário em muitos de nossos países, num projeto claramente hostil à ideia de universidade como valor social e ao conhecimento crítico como elemento nutriente de práticas e de pensamentos democrático e emancipatório.
Para isso a autonomia, expressa na autenticidade de sua direção, a qual se confia um projeto que a afirme como singularidade, que a faça paradigmática, em condições de responder aos desafios que testam sua condição de continuidade civilizatória. É o que me ofereceu em reflexão, mais uma vez Hélgio Trindade, quando lhe propus, para livro que organizei ao final de meu mandato na UnB (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de, Organizador. Da Universidade Necessária à Universidade Emancipatória. Brasília: Editora UnB, 2012). Na obra Hélgio contribuiu com um texto seminal, importante para o debate que nos convoca nesse momento (TRINDADE, Hélgio. Por um Novo Projeto Universitário: da ‘Universidade em Ruínas’ à ‘Universidade Emancipatória. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Organizador. Da Universidade Necessária à Universidade Emancipatória. Brasília: Editora UnB, 2012).
Do que se trata é realizar esse projeto e essa é a tarefa agora, fazer a universidade autônoma para, além de competente, ser igualmente democrática e socialmente inclusiva, e assim, emancipatória.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
Cidadania e Territorialidade Periférica: a Luta pelo Direito à Cidade no Bairro do Calabar em Salvador/BA
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Cidadania e Territorialidade Periférica: a Luta pelo Direito à Cidade no Bairro do Calabar em Salvador/BA. Raique Lucas de Jesus Correia. Dissertação de Mestrado (Exame de Qualificação). Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional e Urbano (PPDRU) da Universidade Salvador (UNIFACS),
Destaquei para resenha neste Lido para Você um trabalho ainda não totalmente completo, faltando um capítulo de amarração das questões apresentadas nos capítulos apresentados e aquelas sugeridas pelos examinadores. O material foi apresentado para exame de qualificação de dissertação de mestrado que, mesmo nessa condição, me despertou forte interesse e desejo de antecipar o resultado final (em cuja banca espero estar presente).
Compondo a Banca Examinadora, formada pelos professores: Prof. Dr. José Euclimar Xavier de Menezes – Orientador (UNIFACS), Prof. Dr. Gabriel Barros Gonçalves de Souza (UNIFACS) e Prof. Dr. José Geraldo de Sousa Junior (UnB), participei do debate de avaliação da dissertação (exame de qualificação) de Raique Lucas de Jesus Correia, tema deste Lido para Você.
Do que trata a Dissertação diz o seu Resumo:
Desde a década de 1970, os moradores do bairro do Calabar começaram a se organizar politicamente, como forma de pressionar os órgãos públicos a reconhecerem a legalidade da ocupação e mobilizar intervenções para a melhoria e aumento da qualidade de vida dentro da comunidade. Foi assim que surgiu o movimento Jovens Unidos do Calabar (JUC) e, posteriormente, a Associação de Moradores, desdobrando-se em uma série de outras organizações locais, como a Escola Aberta do Cabalar e a Biblioteca Comunitária. Nesse sentido, o presente trabalho busca lançar luz a luta desses moradores, de modo a refletir, por meio dessa experiência, de que modo e em que medida esses movimentos e práticas de resistência, comuns a diversas outras comunidades periféricas no Brasil, podem contribuir para o aprofundamento das discussões em torno do direito à cidade e do exercício da cidadania em territórios urbanos marginalizados. Para tanto, optou-se por um enfrentamento da questão a partir de quatro etapas que, correspondem por sua vez, aos quatros artigos que compõem esta dissertação. A primeira consistiu em analisar o fenômeno da segregação socioespacial partindo do conceito de “localização” como componente articulador e relacional da hierarquia intraurbana. A segunda focalizou o exame da cidadania como categoria territorial, ou seja, a cidadania vista desde uma perspectiva geográfica e territorialmente localizada nas lutas e movimentos de resistência política. A terceira entroncou a discussão da luta social como paradigma do direito à cidade e da revolução urbana, de modo a promover um novo olhar acerca do papel exercido pelos novos sujeitos coletivos de direito nos processos reivindicatórios de transformação urbana e social, conforme a práxis suscitada pelo movimento “O Direito Achado na Rua”. Finalmente, a quarta e última etapa concentrou-se na investigação empírica, estudando o processo de favelização em Salvador/BA e os movimentos sociais ocorridos no bairro do Calabar. Nesta etapa também foram realizadas entrevistas com 6 (seis) moradores da comunidade ligados a militância política local. Ao longo desse percurso, foram utilizados diferentes métodos e técnicas de coleta e análise de dados, sendo, primordialmente, a revisão bibliográfica para levantamento dos conceitos e informações relativas à história e os movimentos sociais ocorridos na comunidade; entrevista em profundidade com roteiro semiestruturado para coleta de dados empíricos; e análise de discurso (AD) como método de sistematização e interpretação dos resultados. Ao final, pôde-se concluir atestando a importância da luta dos moradores do Calabar para um redimensionamento a propósito da noção estrita de cidadania, deslocando-a de uma compreensão estática, para uma concepção viva, enriquecida pelos movimentos contínuos, permanentes, de (re)apropriação territorial e reivindicação do direito à cidade.
A construção narrativa do Autor é sofisticada. Ela é conduzida num processo que articula diferentes linguagens e modos de ler o mundo, não só a ciência mas também a literatura. Em epígrafes, em paráfrases, em metáforas, o discurso explicativo-causal de Raique vem embalado retoricamente, num imaginário nutrido por seu diálogo com literatos. Fui anotando as vozes silentes de seu discurso: Dante Alighiere, Ariano Suassuna, Patativa do Assaré, Castro Alves, Carolina Maria de Jesus…Euclides da Cunha. Euclides não é só fonte. “Durante o percurso (em direção a Calabar), sentir-me como Euclides da Cunha em sua viagem para Canudos, embora o cenário fosse outro, parecia que havia algo de Os Sertões na paisagem que eu observava”. É também, companheiro de viagem narrativa.
Bem disse Zózimo Barroso, se é o cronista carioca o autor da afirmação, “Baiano não nasce, estreia.”. Por isso que atrás, ao me referir a “vozes silentes”, tomei essa expressão de Luis Alberto Warat, meu orientador no doutorado, um pensador genial. É que Warat é um conhecido de Raíque, que escreveu com Marta Regina Gama Gonçalves, também orientanda do mais baiano dos filósofos argentinos, um belo texto que revela o amadurecimento da sua escrita: A Epistemologia Waratiana e o Direito Achado na Rua: Aproximações Críticas Para uma Reformulação do Ensino em Direitos Humanos.
Com efeito, o sumário do artigo indica que nele se “analisa a possibilidade de intersecção entre o projeto pedagógico waratiano e “O Direito Achado na Rua”, como forma de abertura a um programa educacional emancipatório em Direitos Humanos. Metodologicamente, optou-se por uma revisão bibliográfica. Verificamos que a alteração paradigmática proposta pelo ‘Direito Achado na Rua’ conflui com a pedagogia waratiana, de modo a fomentar uma nova práxis política e educacional em Direitos Humanos”.
Na Dissertação, pela mediação do urbanismo e do direito à cidade, Raique traz O Direito Achado na Rua, como contribuição crítica à própria teoria do direito, como se pode anotar a partir do resumo do trabalho:
Desde a década de 1970, os moradores do bairro do Calabar começaram a se organizar politicamente, como forma de pressionar os órgãos públicos a reconhecerem a legalidade da ocupação e mobilizar intervenções para a melhoria e aumento da qualidade de vida dentro da comunidade. Foi assim que surgiu o movimento Jovens Unidos do Calabar (JUC) e, posteriormente, a Associação de Moradores, desdobrando-se em uma série de outras organizações locais, como a Escola Aberta do Cabalar e a Biblioteca Comunitária. Nesse sentido, o presente trabalho busca lançar luz a luta desses moradores, de modo a refletir, por meio dessa experiência, de que modo e em que medida esses movimentos e práticas de resistência, comuns a diversas outras comunidades periféricas no Brasil, podem contribuir para o aprofundamento das discussões em torno do direito à cidade e do exercício da cidadania em territórios urbanos marginalizados. Para tanto, optou-se por um enfrentamento da questão a partir de quatro etapas que, correspondem por sua vez, aos quatros artigos que compõem esta dissertação. A primeira consistiu em analisar o fenômeno da segregação socioespacial partindo do conceito de “localização” como componente articulador e relacional da hierarquia intraurbana. A segunda focalizou o exame da cidadania como categoria territorial, ou seja, a cidadania vista desde uma perspectiva geográfica e territorialmente localizada nas lutas e movimentos de resistência política. A terceira entroncou a discussão da luta social como paradigma do direito à cidade e da revolução urbana, de modo a promover um novo olhar acerca do papel exercido pelos novos sujeitos coletivos de direito nos processos reivindicatórios de transformação urbana e social, conforme a práxis suscitada pelo movimento “O Direito Achado na Rua”. Finalmente, a quarta e última etapa concentrou-se na investigação empírica, estudando o processo de favelização em Salvador/BA e os movimentos sociais ocorridos no bairro do Calabar. Nesta etapa também foram realizadas entrevistas com 6 (seis) moradores da comunidade ligados a militância política local. Ao longo desse percurso, foram utilizados diferentes métodos e técnicas de coleta e análise de dados, sendo, primordialmente, a revisão bibliográfica para levantamento dos conceitos e informações relativas à história e os movimentos sociais ocorridos na comunidade; entrevista em profundidade com roteiro semiestruturado para coleta de dados empíricos; e análise de discurso (AD) como método de sistematização e interpretação dos resultados. Ao final, pôde-se concluir atestando a importância da luta dos moradores do Calabar para um redimensionamento a propósito da noção estrita de cidadania, deslocando-a de uma compreensão estática, para uma concepção viva, enriquecida pelos movimentos contínuos, permanentes, de (re)apropriação territorial e reivindicação do direito à cidade.
Pena que Raique não tenha participado da chamada de artigos para a Revista de Direito do Programa de Pós-Graduação em Direito, em sua edição de maio-agosto de 2022, volume 6, número 2, inteiramente dedicada, em estudos de homenagem, a O Direito Achado na Rua, Contribuições para a Teoria Crítica do Direito (cf. em minha Coluna Lido para Você, no Jornal Estado de Direito a minha recensão a esse trabalho: http://estadodedireito.com.br/30425-2/). Ali, entre os instigantes trabalhos publicados, o dos professores baianos Sara da Nova Quadro Côrtes e Cloves dos Santos Araújo, traça a mesma linha de interseção entre a aproximação dialética trazida por Roberto Lyra Filho e o tema seminal da espacialidade como categoria de transubjetividade proposto por Milton Santos. Em Sara, sobretudo, é ainda notável o arranque de sua formação atenta às mobilizações estratégicas de uma cidadania ativa (ver sua Dissertação de Mestrado Controle Social do Estado como Estratégia de Emancipação e Qualificação da Democracia, defendida na UnB em 2003 sob minha orientação), nela muito presente a concepção de cidadania de um notável intelectual baiano Elenaldo Celso Teixeira (cf. Sociedade Civil e Participação Cidadã no Poder Local, tese de doutorado defendida na USP em 1998 sob orientação de Lúcio Kowarick) e, por proximidade com a construção de Raique o texto Movimentos Sociais Urbanos em Salvador: um Mapeamento in Ana Amaria de Carvalho Luz (org) Quem Faz Salvador. Salvador: UFBA, 2002. Vale visitar esses trabalhos e, em especial – Dialética Social no Rastro do Pensamento de Roberto Lyra Filho e Milton Santos: Aportes Teóricos no Campo do Direito e Geografia – para a finalização da Dissertação, tal como eu mesmo o fiz para preparar o meu prefácio ao livro de Willy da Cruz Moura, Na Calada da Noite. Processos culturais e o Direito achado na noite de Brasília. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2022, também derivado de Dissertação de Mestrado defendida na UnB (http://estadodedireito.com.br/na-calada-da-noite-processos-culturais-e-o-direito-achado-na-noite-de-brasilia/).
Em seguida, em artigo de intervenção – Mercado Sul Fica! – tomei a questão proposta por Willy, de caracterização da noite como um espaço de produção social de cultura, o tema judicializado sobre função social da propriedade e ressiginificação de espaços territoriais na cidade (também no campo):
Na Dissertação sustentava o Autor, num aspecto que guarda relevância com a Sentença do Juiz Maroja, que pode-se falar em espaço político, o território no qual “sujeitos podem adquirir consciência coletiva, estabelecer redes, operar afetos, desenvolver práticas sociais, visibilizar e consolidar direitos, conduzir transformação social emancipadora, estruturar solidariedade e materializar alternativas contra-hegemônicas, como sugere o percurso de O Direito Achado na Rua”. Espaços que se afiguram, ontologicamente, nesse passo citando a mim e a meu colega co-autorAntonio Escrivão Filho (Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos. Belo Horizonte: Editora D‘Plácido, 2016) como lugares de criação e realização do direito, apresentado e posto à disposição do povo na qualidade de sujeito histórico com capacidade criativa, criadora e instituinte de direitos, e, metaforicamente, como a esfera pública onde se reivindica a cidadania e os direitos, onde se agregam cidadãos, onde se lhes protege da dispersão e da desmobilização.
Espaços de Cidadania, como sustenta Milton Santos, que formam “cidades educadoras”, enquanto compreendem territórios como lugares em disputa na construção das cidades, quando se envolve relações humanas e suas produções materiais, formando uma geografia cidadã e ativa, conforme lembram Sara da Nova Quadros Cortes e Cloves Araújo, em belo texto – “Dialética Social no Rastro dos Pensamentos de Roberto Lyra Filho e de Milton Santos: aportes teóricos no campo do direito e da geografia” – também publicado nesse dia 1º de setembro, na Revista Direito.UnB (volume 6, número 2 – maio/agosto 2022), com um dossiê em homenagem a O Direito Achado na Rua e a Contribuições para a Teoria Crítica do Direito.(https://www.brasilpopular.com/mercado-sul-fica/).
Em O Direito Achado na Rua, como abordagem teórico-política, a questão do (direito) urbanístico e do direito à cidade, estão sumariada no volume 9, da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito Urbanístico. Brasília: Editora UnB/Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico, 2019 (acesso livre http://livros.unb.br/index.php/portal/catalog/book/17). Volume organizado por mim e outros, tem entre esses organizadores/autoras Adriana Nogueira Vieira Lima, fortemente referida na Dissertação, até porque, em Salvador, com fundamentos próximos, faz estudo de caso que resultou em tese premida pela Capes, área de Arquitetura (Do Direito Autoconstruído ao Direito à Cidade.Porosidades, conflitos e insurgência em Saramandaia. Salvador: EDUFBA, 2019, 302 p.). Participei da banca de Adriana na UFBA, na qual também esteve presente Raquel Rolnik, e fiz o prefácio da obra. Adriana é orgânica na construção da fortuna crítica do projeto O Direito Achado na Rua. Também publiquei na minha coluna Lido para Você uma resenha de seu livro (http://estadodedireito.com.br/24566-2/).
O meu acervo de reflexão para diálogo com o Autor da Dissertação (Raique), muito sintonizado com o que ele desenvolve, pode ser conferido no prefácio que elaborei para o livro organizado por Enzo Bello e Rene José Keller – Curso de Direito à Cidade: Teoria e Prática. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2018). Nesse prefácio faço uma balanço de contribuições que guardam pertinência com os achados de O Direito Achado na Rua. Relevo para a própria Adriana e também para um trabalho que interessa de perto ao estudo de Raíque – Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador (Elisabete Santos [coordenação geral], Roseli de Fátima Afonso…[et al.]. Salvador: UFBA, Escola de Administração, CIAGS: Faculdade 2 de Julho, 2012, 196 p.), de cujo seminário de apresentação participei e cujo prefácio elaborei a convite dos organizadores (cf. o meu http://estadodedireito.com.br/atlas-sobre-o-direito-de-morar-em-salvador/).
Todo esse acervo sinaliza a condição de protagonismo que designa a subjetividade coletiva instituinte de direitos, sobretudo quando se instala em movimentos sociais, concorda Raíque que provêm de processos “de insurgência e de reivindicação de direitos, tanto mais projetivos, quando desde a realidade de carências (tal como considero com citação do Autor, tornando, diz ainda Raíque “o cidadão periférico o montador de sua trincheira de combate organizando novas formas de vida e projetos emancipatórios”.
Reconheci esse mesmo protagonismo quando analisei o trabalho de Tiaraju Pablo D’Andrea, em Lutas Populares em Periferias Urbanas e Favelas (cf. anoto em minha resenha de Direitos Humanos no Brasil 2022, e mais detidamente em sua tese doutorado, conforme (http://estadodedireito.com.br/a-formacao-das-sujeitas-e-dos-sujeitos-perifericos-cultura-e-politica-na-periferia-de-sao-paulo/). Elas apontam para aquela que é, a meu ver, a principal conclusão do trabalho: atestar “a importância da luta dos moradores do Calabar para um redimensionamento a propósito da noção estrita de cidadania, deslocando-a de uma compreensão estática, para uma concepção viva, enriquecida pelos movimentos contínuos, permanentes, de (re)apropriação territorial e reivindicação do direito à cidade”.
A propósito do livro de Bello e Keller, no prefácio, anotei que ao final do ano de 2017, a concessão do Prêmio Capes de Teses trouxe duas novidades. A primeira, a outorga do Grande Prêmio CAPES, Prêmio Aurélio Buarque de Holanda, nas áreas de Ciências Humanas, Linguística, Letras e Artes e Ciências Sociais Aplicadas e Multidisciplinar (Ensino), concedido pela primeira vez a uma tese em Direito, neste caso, a Amanda Costa Travincas, da PUC-RS, sob orientação de Ingo Sarlet, com o trabalho A tutela jurídica da liberdade acadêmica no Brasil: a liberdade de ensinar e seus limites. Participei como membro da Comissão desse Prêmio, e posso dizer que a sua singularidade, para além do mérito próprio da autoria, exibe a preocupação de marcar no tema, a penumbra conjuntural que tem dado ensejo a um certo obscurantismo epistemológico, pondo em risco a liberdade de cátedra e o espaço plural acadêmico no qual se desenvolve histórica e politicamente, o necessário pensamento crítico-reflexivo.
A outra novidade foi descobrir em áreas cuja designação não revela de imediato a complexidade de seus conteúdos, e poder encontrar, na área de Arquitetura, já precedida de premiação originária, a tese de Adriana Nogueira Vieira Lima, “Do Direito Autoconstruído ao Direito à Cidade: porosidades, conflitos e insurgências em Saramandaia”, defendida no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2016, sob a orientação da Professora Ana Fernandes.
Impedido de deliberar, por ter participado como examinador tanto da banca de qualificação quanto da de defesa da tese, neste último estágio compartilhando argumentos com uma banca multidisciplinar, na qual esteve presente Raquel Rolnik, pude aquilatar no debate no seio da Comissão de escolha do Grande Prêmio, o reconhecimento à qualidade da autoria e à atualidade do tema, que associa de modo muito qualificado, o diálogo entre o urbanismo e luta social por direitos, tal como revela o bem elaborado resumo.
A tese, diz o seu resumo, “busca analisar a produção de direitos urbanos pelos sujeitos coletivos de direito em um contexto assimétrico de acesso à cidade. Para isso, adota a teoria da pluralidade jurídica como instrumental analítico. Parte-se do pressuposto de que o processo instituinte de direitos urbanos é interescalar e envolve complexas fontes de legitimação que têm na sua base relações de conflito, reciprocidade e autonomia. A pesquisa, que adota uma perspectiva interdisciplinar, foi desenvolvida com base no trabalho de campo realizado no Bairro de Saramandaia, localizado em Salvador, Bahia, Brasil. A etnografia foi eleita como método privilegiado de apreensão da realidade. Essa opção refletiu-se nas relações travadas em campo construídas através de interações e diálogos. Os pressupostos da pesquisa foram analisados através de três eixos que se interconectam: os direitos autoconstruídos pelos moradores face à ausência do Estado na prestação de serviços urbanos; constituição de direitos urbanos através de relações ambíguas com o Estado; e a (des)construção de direitos urbanos: insurgências, conflitos e disputas pelo espaço urbano. A pesquisa revelou que os direitos urbanos autoconstruídos encontram na necessidade de morar o seu principal parâmetro de legitimação social, emergindo daí as características do que denominamos Direito Autoconstruído: flexibilidade, reciprocidade e atrelamento entre forma e substância. Ficou evidenciado ainda que o Direito Autoconstruído ganha força nos processos de interação social, levando os sujeitos coletivos de direito a participarem da construção de um projeto político de transformação social que repercute no modo como ocorre a interação entre as escalas de juridicidades. Os resultados apontam também que as relações de porosidade entre as escalas de juridicidade são marcadas por conflitos, transgressões e permeabilidades e se nutrem das táticas potencialmente insurgentes praticadas pelos moradores. A partir dessa constatação, verificou-se que essas características se comportam de forma diferenciada em Saramandaia a depender do momento e do espaço do Bairro em que ocorrem, predominando relações de conflitos nas fronteiras e limites entre o Bairro e a Cidade. As análises evidenciaram a necessidade do fortalecimento de uma visão plural e democrática do Direito que contribua para o fortalecimento dos sujeitos coletivos e sua capacidade infindável de inventar novos direitos e caminhar em direção ao Direito à Cidade”.
A mim não se revelou tão só uma expressão atualizada de um tema com o qual venho me envolvendo desde os começos dos anos 1980 (“Fundamentação Teórica do Direito de Moradia”, in Direito & Avesso. Boletim da Nova Escola Jurídica Brasileira, Ano I, n. 2, 1982), mas a constatação, primeiro incluída na pesquisa pioneira (Joaquim Falcão, Invasões Urbanas: Conflitos de Direitos de Propriedade), organizada a partir da Fundação Joaquim Nabuco, quando então já se identificavam as estratégias sociais de acesso à terra urbana traduzidas em demandas às institucionalidades e ao direito positivo legislado e exegeticamente adjudicado, na forma do discurso de legitimidade de um direito justo contra o formalismo de enquadramento dessa matéria no direito civil, no direito processual, no direito administrativo, no direito constitucional e até no direito internacional dos direitos humanos que, ao impulso dos novos movimentos sociais e de direitos achados na rua, insurgentes, abrindo ensejo à constituição de novos campos – o direito urbanístico, de novas formas de reconhecimento cogente em declarações (Habitat) e de um constitucionalismo achado na rua (Silva Junior, Gladstone Leonel da e Sousa Junior, José Geraldo de. O Constitucionalismo achado na rua – uma proposta de decolonização do Direito. Rev. Direito e Práxis., Rio de Janeiro, Vol. 08, N.4, 2017, p. 2882-2902).
Os anos seguintes foram pródigos na construção de um campo demarcado pela construção do chamado direito à cidade, num percurso de formulação de muitos instrumentos técnicos, jurídicos, políticos, institucionais demarcado pela organização do Instituto Pólis em São Paulo e sua importante revista de estudos em que cuja organização muitas referências contribuíram para o adensamento desse campo – Ana Amélia Silva, Raquel Rolnik, Nelson Saule Jr, Emília Maricato – servindo à metodologias de pesquisa, de formulação de políticas públicas e de modos de governar, de organizar assessorias jurídicas populares (lembrando aqui o exercício genético e político dos Alfonsins – Jacques e Betânia -, culminando com o desenho que a Constituição de 1988 recepcionou, acolhendo as formulações dos movimentos sociais difundidos pelo país.
Encontro na abordagem que desenvolvi em Prefácio para o Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador (Elizabeth Santos, coordenação geral et al., Salvador: UFBA, Escola de Administração, CIAGS: Faculdade 2 de Julho, 2012), a condição ontológica a que já me referi, no campo do direito, para responder à tarefa de instrumentalizar as organizações populares para a criação de novos direitos e de novos instrumentos jurídicos de intervenção, num quadro de pluralismo jurídico e de interpelação ao sistema de justiça para abrir-se a outros modos de consideração do Direito (Fundamentação Teórica do Direito de Moradia, Direito e Avesso. Boletim da Nova Escola Jurídica Brasileira, Editora Nair, ano I, n. 2, Brasília, 1982; Um Direito Achado na Rua: o direito de morar, Introdução Crítica ao Direito, Série O Direito Achado na Rua, vol. 1, Brasília, Editora UnB, 1987; com Alayde Sant’Anna, O Direito à Moradia, Revista Humanidades, Ano IV, n. 15, Brasília, Editora UnB, 1987; com Alexandre Bernardino Costa, orgs., Direito à Memória e à Moradia. Realização de direitos humanos pelo protagonismo social da comunidade do Acampamento da Telebrasília, Universidade de Brasília/Faculdade de Direito, Ministério da Justiça/Secretaria de Estado de Direitos Humanos, Brasília, 1998).
Elas dão base, seja enquanto processo para impulsionar a exigência de função social que a propriedade deve realizar, seja para resignificar a semântica das lutas sociais por acesso à própria propriedade, descriminalizando o esbulho por meio da recusa a se deixar tipificar invasor e politizando o acesso com a retórica da ocupação, desde que atendendo à promessa constitucional de realizar reforma agrária e reforma urbana, tal como referiu referiu Ana Amélia Silva, aludindo à “trajetória que implicou uma concepção renovada da prática de direito, tanto em termos teóricos quanto da criação de novas institucionalidades” (Cidadania, Conflitos e Agendas Sociais: das favelas urbanizadas aos fóruns internacionais, Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de Sociologia da USP, São Paulo, 1996), consoante ao que indicou, nesse passo, Eder Sader, quando este aponta para o protagonismo instituinte de espaços sociais instaurados pelos movimentos sociais com capacidade para constituir direitos em decorrência de processos sociais novos que passam a desenvolver (Quando Novos Personagens Entraram em Cena, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1995).
Trata-se de não se perder o impulso dialógico que o jurídico pode vir a conduzir, para que, lembra J. J. Gomes Canotilho (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Editora Almedina, Coimbra, 1998), não reste o direito “definitivamente prisioneiro de sua aridez formal e de seu conformismo político” e, deste modo, incapaz de abrir-se a outros modos de compreender as regras jurídicas e de alargar “o olhar vigilante das exigências do direito justo e amparadas num sistema de domínio político-democrático materialmente legitimado”.
É desse modo que Adriana Lima em sua tese premiada pela Capes, fala de um “direito achado nos becos de Saramandaia em Salvador”, para inferir a luta pela cidade, a partir de incursões singelas que revelam o protagonismo cotidiano para inserir no social novas juridicidades. Aqui é “o direito de laje”, agora positivado e enfim adjudicado a partir de novas decisões judiciais abertas “à exigência do justo, inspiradas em teorias de sociedade e de justiça”. No caso, registre-se recente decisão do judiciário pernambucano, na qual o magistrado constata que casa construída na superfície superior à do pai da autora da ação, carrega a pretensão de aquisição da propriedade e se coaduna ao direito de laje, previsto no art. 1.510-A do Código Civil, incluído pela Lei n. 13.465/2017, que dispõe: “O proprietário de uma construção-base poderá ceder a superfície superior ou inferior de sua construção a fim de que o titular da laje mantenha unidade distinta daquela originalmente construída sobre o solo”.
Para o magistrado Rafael de Menezes, autor da sentença pioneira nesse reconhecimento, é “óbvio que o ideal na sociedade seria todos terem suas casas separadas e registradas, diante da importância da habitação para a dignidade do cidadão. Mas em face do déficit habitacional que existe no país, o legislador acertou em adaptar o direito a uma realidade social. A sociedade cria o fato pela necessidade, e cabe ao direito regulamentar em seguida. O direito é testemunha das transformações sociais, ele regula o que já existe. A sociedade precisa ter o protagonismo sobre o Estado, não o inverso”.
Fiz o prefacio do livro pondo em relevo que ele apresenta-se sob a forma de um “Curso de Direito à Cidade: Teoria e Prática” e faz parte da “Coleção Crítica do Direito: experiências jurídicas e sociais”, coordenada por Enzo Bello e Ricardo Nery Falbo, e veiculada desde 2016 pela Editora Lumen Juris, selo no qual também tenho editado alguns de meus trabalhos (O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática, Coleção Direito Vivo, 2015)
Na perspectiva de seus organizadores, busca-se “suprir uma lacuna editorial, condensando temas e estudos que por vezes não passam por um processo de sistematização. O intento é oferecer aos leitores, dos mais variados níveis e áreas de formação, em linguagem didática e acessível, um curso que tenha por premissa o exame do Direito à Cidade sob a perspectiva crítica”.
Organizado por Enzo Bello e Rene José Keller, eles próprios também autores, o livro reúne um plantel expressivo de pesquisadores, altamente qualificados, em recorte multi e interdisciplinar, titulados, atuantes em ambientes plurais acadêmicos e funcionais, com reflexão acumulada e combinando percursos de veteranos do tema e o entusiasmo de novos caminhantes: Alex Ferreira Magalhães, Alexandre Fabiano Mendes, Betânia Alfonsin, Bruno José da Cruz Oliveira, Daniel Mendes Mesquita de Sousa, Fernanda Frizzo Bragato, Francine Helfreich Coutinho dos Santos, Gilberto Bercovici, Jan Carlos da Silva, Karina Macedo Fernandes, Marcela Münch, Maria Lúcia de Pontes, Mariana Dias Ribeiro, Rodrigo Oliveira Salgado e Rudrigo Rafael Souza e Silva.
Em aproximações que são mediadas pela Ciência Política, Economia Política, Serviço Social, Sociologia Urbana, Arquitetura e Urbanismo, Geografia e Direito, as leituras trazidas pelo livro, seguindo um padrão lógico-conceitual comum à construção de cada unidade (capítulos), a obra abrange temas que tratam do DIREITO À CIDADE NO VIÉS INTERDISCIPLINAR (Conceito, questões, problemas, contradições, possibilidades), suas REGULAÇÕES e os desafios da PRÁTICA (Envolvendo estudos de casos), que interpelam o Direito Urbanístico na sua exigência de contínua atualização.
Nos tempos sombrios que estamos atravessando, marcados por surtos de desdemocratização e de desconstitucionalização, notadamente no bloqueio ao processo recente de construção social dos direitos, “tempos de cerceamento dos direitos e de tentativas de restrição da sua garantia pela via estatal como forma de favorecer os agentes do mercado, parece oportuno refletir acerca das problemáticas que envolvem a cidade”, dizem os organizadores, a obra assume fortemente a função de peça de resistência, Ela exibe e “projeta grande parte das contradições do modo de produção capitalista, expondo as desigualdades sociais ínsitas a este modo de produção da vida social e sistema econômico”, prestando-se ao enfibramento das consciências que se formam nas lutas por reconhecimento de dignidade e de direitos e que precisam se armar para não recuar das conquistas da cidadania.
Essa é uma das chaves para orientar a leitura deste livro, porque em tempos de golpe, é importante resistir e esgrimir o requisito da legitimidade para aferir reconhecimento aos sujeitos que se colocam no protagonismo da política, tal como venho insistindo desde 2016 (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Resistência ao Golpe de 2016: Contra a Reforma da Previdência. In GIORGI, Fernanda et al, orgs, O Golpe de 2016 e a Reforma da Previdência. Narrativas de Resistência.Bauru: Projeto Editorial Praxis/Cabnal6Editora, 2017, pp, 242-246); SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Direitos não são quantidades, são relações (Entrevista), IHU OnLine, Revista do Instituto Humanitas da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. São Leopoldo, n. 494/ano XV, 2016, pp. 64-72).
Uma outra chave possível é, talvez, contribuir para designar as condições pedagógicas para constituir cidades educadoras (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Cidades Educadoras. Revista do SINDJUS-Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário e do Ministério Público da União no DF, Brasília: ano XVII, n. 59, 2009, p. 4), cidades que partam da constatação de que elas tem um governo eleito democraticamente e seu dirigentes se empenham em incentivar projetos de educação para a cidadania. Cidade nas quais as pessoas que nelas vivem acabem conhecendo melhor as situações que fundamentam as decisões relativas à sua sociabilidade e vivenciem de forma efetiva a experiência democrática. Cidades que permitam exercitar experiências de sociabilidade, desde as práticas de orçamento participativo, às de educação para a democracia, direitos humanos, cultura de paz, mobilizando redes e instituições que insiram nas regulamentações pactuadas e nas posturas, a lógica da inclusão e da solidariedade.
Num sentido valioso de atualização temática. O livro confirma a necessidade de seguir firme no propósito de enfrentar os desafios Teóricos e sociais e, mais ainda no presente, os desafios políticos que se colocam para os que estudam, pesquisam e formulam no campo do direito urbanístico e do direito à cidade.
A que se continuar a incentivar os estudos e pesquisas, no âmbito acadêmico, acolhendo e oferecendo direções epistemológicas para a designação de temas e questões pontuais, no plano micro, para incentivar trabalhos (teses, dissertações), que contribuam para organizar as novas agendas não só para as teorias críticas, como também para qualificar as lutas urbanas que demandam a construção de repertórios para o melhor conhecimento e a mais orientada direção de intervenções necessárias nesse campo.
Assim pode ser qualificada a Tese de Adriana Lima, já indicada, linhas atrás, como também, a dissertação de Osias Pinto Peçanha, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Estácio de Sá, no Rio de Janeiro, sob a orientação de Enzo Bello, um dos organizadores do Curso de Direito à Cidade.
Em sua dissertação – O Direito Achado na Favela: A Dinâmica do Pluralismo Jurídico na Favela do Vidigal – o professor Osias, que é morador da Comunidade do Vidigal, reúne as práticas jurídicas exercitadas autonomamente na comunidade para, à luz da hipótese do pluralismo jurídico, aferir juricidades inter-ordenamentos, reivindicando reconhecimento sobre a legitimidade de vivências, formas de equitativa partilha de vizinhança e de efetivos direitos inscritos nessas práticas, nas quais se constitui o acervo de categorias que formam a materialidade de O Direito Achado na Rua.
Na banca de Osias, na qual estive presente, foram inestimáveis as indicações dos professores Eduardo Manuel Val, Ricardo Nery Falbo e Alex F. Magalhães, este último uma referencia nos estudos sobre a cidade e o direito urbanístico, autor também nesse Curso com o texto A Urbanização de Favelas e o seu ‘Day After’: o Problema da Introdução da Legislação de Uso do Solo em Favelas Úrbanizadas’(Rio de Janeiro), pp. 253-270.
É também nesse sentido, ou seja, de atualização temática, mas sem perder de vista a necessidade de resgate histórico, de balanço critico sobre a construção do campo do direito urbanístico, para inserção no presente, da agenda de lutas que a reflexão teórico-crítica e militante pode oferecer, é que o IBDU – Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico e o Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua estão organizando um volume específico, o 9o., da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Critica ao Direito Urbanístico, com o objetivo de estudar a relação entre a teoria de O Direito Achado na Rua e o conjunto de princípios, normas e fundamentos sócio-históricos do Direito Urbanístico no Brasil; avaliar criticamente a experiência de constitucionalização da Política Urbana e de sua implementação; e apresentar uma agenda de pesquisa e Ação para o desenvolvimento Teórico e prático, jurídico e social do Direito Urbanístico e do direito à cidade, comprometida com a defesa da democracia e da justiça social.
Em conjunturas de redução do espaço político democrático e de retração de investimentos sociais, a partir de opções excludentes de acumulação rentista, a luta por morar dignamente e pela cidade humanizada e educadora, se converte em direito fundamental. É o que as redes, os movimentos, parlamentares de diferentes frentes de engajamento popular, intelectuais, enfatizaram, logo após a tragédia de 1o. de maio em São Paulo, no Largo Paissandu (2020), com um desabamento trágico, na nota quando morar é um privilégio, ocupar é um direito. Para os signatários da nota, é necessário reiterar a unidade na resistência em cada ocupação e exigir a responsabilização do Estado em cada recusa à regularização de energia elétrica, de saneamento e prevenção de riscos em ocupações; são necessários investimentos públicos na viabilização de moradias dignas; o enfrentamento à especulação imobiliária; políticas de mediação de conflitos fundiários com participação popular; a conversão dos edifícios ociosos em moradia popular; a regularização fundiária das ocupações.
A Dissertação, embora a sua construção até aqui tenha sido realizada por meio da elaboração propriamente autônoma de artigos, tem uma coerência ordenadora desde os seus pressupostos que o Sumário confirma.
SUMÁRIO
AGRADECIMENTOS
RESUMO
ABSTRACT
PRÓLOGO: RELATO DE UMA TRAVESSIA URBANA OU DE UM SONHO EM UM ÔNIBUS QUALQUER
INTRODUÇÃO GERAL: A HETEROTOPIA FAVELA
NOTAS SOBRE O CONCEITO DE LOCALIZAÇÃO: IMPACTOS NAS REFLEXÕES ACERCA DA SEGREGAÇÃO SOCIOESPACIAL
Introdução
Espaço e Sociedade
Localização e Segregação
Território e Desigualdade
Considerações Finais
Referências
A CIDADE E O CIDADÃO: POR UMA ABORDAGEM TERRITORIAL DO
CONCEITO DE CIDADANIA
Introdução
Entre a Pólis e a Civitas: Evolução Histórica do Conceito de Cidadania
O Território do Cidadão (ou a Territorialização da Cidadania)
Cidadania, Território e Resistência
Considerações Finais
Referências
O “DIREITO ACHADO NA RUA” E OS “NOVOS SUJEITOS COLETIVOS DE DIREITO”: A LUTA SOCIAL COMO PARADIGMA DO DIREITO À CIDADE E DA REVOLUÇÃO URBANA
Introdução
O Direito à Cidade: Revisitando o Conceito
A Afirmação do Direito à Cidade no Panorama Internacional e no Brasil
O “Direito Achado na Rua” e os “Novos Sujeitos Coletivos de Direito”: Por um Urbanismo Emancipatório
Considerações Finais
Referências
MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS E CIDADANIAS PERIFÉRICAS
INSURGENTES: A LUTA DOS MORADORES DO CALABAR PELO DIREITO À CIDADE
Introdução
Segregação Territorial e Desigualdade Urbana em Salvador/BA
Calabar, Kalabari: Uma Trincheira Urbana no Coração da Cidade
Cidadanias Insurgentes: Percepções de Moradores Periféricos e Narrativas Contra-Hegemônicas na (Re)construção do Espaço Urbano
Considerações Finais
Referências
DISCUSSÃO GERAL
CONCLUSÃO GERAL
REFERÊNCIAS
Detenho-me com redobrada atenção na Seção 3 – O ‘Direito Achado na Rua’ e os ‘Novos Sujeitos Coletivos de Direito’: A Luta Social como Paradigma do Direito à Cidade e da Revolução Urbana.
Vou ao Resumo (considerando que o Autor apresenta o capítulo no formato de um artigo autônomo:
Cada vez mais a ideia de direito à cidade vem assumindo o protagonismo das discussões contemporâneas em torno da problemática social moderna. Contudo, se é verdade, também é verdade que o uso do conceito se encontra demasiadamente fragilizado, não só pelo esvaziamento teórico da pluralidade de sentidos que passou a assumir, mas, substancialmente, pela maneira restrita e desvinculada da práxis social com que alguns autores vêm empregado a noção de direito á cidade. Nesse sentido, o presente artigo se propõe a discutir, desde uma ancoragem crítica, o papel da luta social como paradigma do direito à cidade e da revolução urbana, de modo a promover um redimensionamento no debate atual acerca do papel exercido pelos novos sujeitos coletivos de direito nos processos reivindicatórios de transformação urbana e social. Com este objetivo, iniciaremos o nosso percurso com um retorno ao conceito de direito à cidade, desde a perspectiva empregada por Lefebvre. Após isso, faremos um breve mapeamento dos principais protocolos nacionais e internacionais que se ocupam do direito à cidade. Finalmente, apresentaremos a perspectiva da práxis inaugurada pelo movimento “O Direito Achado na Rua” e o papel primordial dos novos sujeitos coletivos na luta pelo direito à cidade e estabelecimento de um urbanismo emancipatório. Ao final, concluímos reafirmando a necessidade de uma nova apreensão do direito à cidade como uma plataforma política ancorada nas lutas e reivindicações dos movimentos sociais, pelo que poderá, efetivamente, conduzir-se na direção de um programa emancipatório do modo de vida urbano.
Palavras–chave: Direito à Cidade. Movimentos Sociais. Luta Social. Direito Achado na Rua. Urbanismo Emancipatório.
O Autor se move com correção no manejo das categorias, noções, conceitos, construídos ao longo da fortuna crítica da proposta. Notadamente, aquelas três referências balizadoras que estão invariavelmente presentes nos estudos e pesquisas e na bibliografia em permanente atualização de O Direito Achado na Rua, vale dizer, “1. Determinar o espaço político no qual se desenvolvem as práticas sociais que enunciam direitos, a partir mesmo de sua constituição extralegal, como por exemplo, os direitos humanos; 2. Definir a natureza jurídica do sujeito capaz de elaborar um projeto político de transformação social e elaborar a sua representação teórica como sujeito coletivo de direito; 3. Enquadrar os dados derivados destas práticas sociais criadoras de direitos e estabelecer novas categorias para estruturar as relações sociais solidárias de uma sociedade alternativa em que sejam superadas as condições de espoliação e de opressão entre as pessoas e na qual o direito possa realizar-se como um projeto de legítima organização social da liberdade”.
O Autor se move com lealdade nesses balizamentos, não tivesse já exercitado a sua própria inserção na construção solidária da proposta, atento às emergências, as revisitações e as travessias (cf. http://estadodedireito.com.br/o-direito-achado-na-rua-questoes-emergentes-revisitacoes-e-travessias/; atenção ao livro O Direito Achado na Rua: Questões Emergentes, Revisitações e Travessias: Coleção Direito Vivo, volume 5. José Geraldo de Sousa Junior et al (org). Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2021), assim o demonstra o seu artigo citado, em co-autoria com Marta Gama.
Portanto, o acréscimo que estou fazendo é mais na linha de oferecer marcação bibliográfica, pertinentes ao tema e adensadoras do marco teórico adotado. Ela está inserida no curso desta resenha e fundamentalmente precisa ser anotada com muita atenção, entre todas, a obra que sumariou 30 anos do projeto, no Seminário Internacional O Direito como Liberdade: 30 anos do Projeto O Direito Achado na Rua. Trata-se do volume 10 da Série O Direito Achado na Rua (a propósito http://estadodedireito.com.br/o-direito-como-liberdade-30-anos-de-o-direito-achado-na-rua/;consultar também http://estadodedireito.com.br/anais-eletronicos-do-seminario-internacional-o-direito-como-liberdade-30-anos-de-o-direito-achado-na-rua/). O inteiro teor desse volume pode ser obtido, por acesso livre, na Editora da UnB: https://livros.unb.br/index.php/portal/catalog/book/116.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
Darcy Ribeiro e a UnB: a universidade necessária no século XXI
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Darcy Ribeiro e a UnB: a universidade necessária no século XXI / organizadores, Murilo Silva de Camargo… [et al.]. ‒ Brasília : Editora Universidade de Brasília, 2022. 200 p.
Eu estava na expectativa do lançamento desse livro, anunciado pela Editora da UnB, para ser comemoração aos 60 anos da UnB e ao centenário de Darcy Ribeiro, completados em 2022, publicamos uma coletânea de ensaios escritos por estudantes da UnB sobre Darcy e sua Universidade.
A notícia dizia que a obra se comporia de vozes plurais que reiteram, de forma uníssona, o compromisso da UnB com a construção de soluções para os desafios do país e do mundo – fossem os passados, sejam os presentes. Pois, “a despeito das diversas tentativas de cerceamento da ação emancipadora desta Universidade, afirmam os estudantes: a UnB alcança os seus 60 anos atuante como sempre, necessária como nunca”.
Mas eu estava na expectativa também, desde a divulgação do edital que chamou para a seleção de artigos, porque vi entre os selecionados, dos seis ensaios de alunos de graduação, que dois eram de meus alunos da Disciplina Pesquisa Jurídica (primeiro semestre do curso de Direito); e dos nove de alunos de pós-graduação, cinco eram alunos da disciplina que ministro – O Direito Achado na Rua. De fato, logo da abertura do edital eu mobilizara os alunos para integrar ao Plano de Curso das duas disciplinas, a matéria objeto da chamada, e levá-la para seus trabalhos de finalização, nas disciplinas respectivas. Um sucesso incontestável.
De resto, uma prática pedagógica com registros muito importantes, a exemplo do desempenho de dois alunos dessas disciplinas, que em 2014, venceram o concurso de monografias “Raymundo Faoro” promovido pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados (https://www.oab.org.br/noticia/27414/oab-premia-vencedores-do-concurso-raymundo-faoro-de-monografias).
A matéria dá conta dessa importância:
Brasília – A OAB Nacional premiou nesta segunda-feira (18), durante a sessão do Conselho Pleno da entidade, os vencedores do Concurso “Raymundo Faoro de Monografias”, cujo tema foi “A OAB e a luta democrática no passado e no presente – Reforma Política Democrática e Eleições Limpas”.
O presidente nacional da OAB, Marcus Vinicius Furtado Coêlho, destacou que foram inscritos trabalhos inéditos, que discutem temas atuais do Estado Democrático de Direito. “Esta edição do concurso de monografias incentivou a discussão sobre a reforma política. Os vencedores serão premiados com intercâmbios sociopolíticos”, disse.
O vencedor da categoria pós-graduando foi Fredson Carneiro, que inscreveu o trabalho intitulado “A OAB e o Direito no país das maravilhas: entre o autoritarismo e a democratização social do Brasil contemporâneo”. Ele será contemplado com o pagamento de um intercâmbio sociopolítico, de uma semana, com a Ordem dos Advogados da França.
Pedro Henrique Moura de Farias foi o vencedor da categoria graduando e receberá como prêmio o pagamento de intercâmbio para a Espanha. Ele ganhou nesta categoria com o trabalho inédito intitulado “Do autoritarismo à reforma política: um estudo sobre o passado e o presente da atuação da Ordem dos Advogados do Brasil para a redemocratização e para a proposta transparente do financiamento de campanhas eleitorais no Brasil”.
Publicado o livro a Editora elaborou a seguinte sinopse:
Este livro é uma homenagem à Universidade de Brasília, que em 2022 completa 60 anos, e a Darcy Ribeiro, um de seus mais importantes idealizadores e fundadores, que faria cem anos. Quinze ensaios escritos por estudantes da UnB sobre Darcy Ribeiro e a universidade necessária compõem este volume, que é resultado de edital conjunto da UnB e do Conselho Editorial do Senado (Cedit). Os textos desta coletânea projetam as vozes de estudantes, em um exercício que investiga os efeitos do pensamento e da ação de Darcy Ribeiro na jornada da Universidade de Brasília, as transformações pelas quais ela passou e aquelas que promoveu. Que vozes poderiam ser mais lúcidas que essas para colocar em perspectiva a história da Universidade? São vozes plurais que reiteram, de forma uníssona, o compromisso da UnB com a construção de soluções para os desafios do país e do mundo – fossem os passados, sejam os presentes. A despeito das diversas tentativas de cerceamento da ação emancipadora desta Universidade, afirmam os estudantes: a UnB alcança os seus 60 anos atuante como sempre, necessária como nunca.
Ponho em relevo, a Apresentação dos Organizadores: Murilo Silva de Camargo, Mônica Celeida Rabelo Nogueira, Alexandre Simões Pilati e Esther Bemerguy de Albuquerque, a razão da publicação, seu processo de organização e a resultante editorial. Na Apresentação os Organizadores fazem traçam uma linha histórico-política tecida com a ideia-chave que designa a articulação temática que caracteriza a obra – Darcy Ribeiro e a UnB: a universidade necessária no século XXI – e demarca o seu caráter de homenagem.
Retiro da Apresentação e transcrevo a parte que relaciona os artigos, autores e autoras e ementa cada contribuição:
O que pensam os estudantes sobre a UnB 60 anos depois?
A ideia de publicar um livro com ensaios de estudantes sobre Darcy Ribeiro remonta ao ano de 2019, quando os professores Murilo Camargo e Alexandre Pilati ministraram a disciplina “Darcy Ribeiro: pensamento e fazimentos” no âmbito do Decanato de Extensão (DEX). A disciplina foi toda ministrada no Memorial Darcy Ribeiro com o apoio dos estudantes de graduação Vinícius Bowen (Ciência da Computação), João Marcelo Marques Cunha (Ciências Sociais) e Matheus Barroso (História). De fato, a proposta dessa disciplina veio desses estudantes, que representavam na época um coletivo que entendia a importância de popularizar o pensamento e os fazimentos de Darcy. Uma das atividades da disciplina foi a elaboração de um ensaio sobre uma das “peles” de Darcy Ribeiro. A qualidade dos textos surpreendeu e surgiu aí o propósito de publicar os textos dos estudantes sobre Darcy.Em 2021, como parte das comemorações dos 60 anos da Universidade de Brasília, a Editora UnB, em conjunto com o Decanato de Extensão, a Biblioteca Central e o Conselho Editorial do Senado (Cedit), lançou uma chamada pública para estudantes da UnB participarem do concurso de ensaios “Darcy Ribeiro e a UnB: a universidade necessária no século XXI”. O objetivo geral do concurso foi o de promover a reflexão sobre a importância da universidade pública, gratuita, de qualidade e para todos no enfrentamento das crises contemporâneas e na construção de um projeto nacional democrático, popular, inclusivo e progressista.
Um total de 42 ensaios foram apresentados para o concurso, em dois grupos: 20 de estudantes de graduação e 20 de estudantes de pós-graduação. Após uma análise criteriosa dos textos submetidos, realizada por uma comissão de avaliação instituída para tal fim, o Conselho da Editora Universidade de Brasília decidiu pela publicação de seis ensaios do grupo de estudantes de graduação e de nove ensaios do grupo de estudantes de pós-graduação. O livro inicia com os textos dos estudantes de graduação, em ordem alfabética dos autores, em um primeiro bloco de ensaios. Na sequência, são apresentados os ensaios dos estudantes de pós-graduação, também seguindo a ordem alfabética dos autores.
Os textos de autoria dos estudantes de graduação
Em “Utopia e realidade: reflexões sobre os rumos da Universidade de Brasília”, Alexsandro de Sousa Bandeira apresenta, por meio de uma abordagem bibliográfica, histórica, descritiva e exploratória, o desenvolvimento da UnB e a importância das universidades públicas na resolução de crises contemporâneas de nosso país. O texto aponta para a atual crise no financiamento das universidades públicas brasileiras e destaca a atuação da Universidade de Brasília durante a pandemia.
O ensaio de Cesar Rodrigues van der Laan intitulado “Universidade para quê? A Universidade está sintonizada com o melhor do saber universal e com a sociedade brasileira?” apresenta uma reflexão sobre a evolução do projeto da UnB. Tem como ponto de partida as proposições de Darcy Ribeiro, em A universidade necessária, implementadas na UnB. Cesar Rodrigues van der Laan analisa então o desenvolvimento do projeto no contexto do ensino, da pesquisa e da extensão, da origem aos dias atuais. O autor coloca a UnB como lócus de produção de conhecimento e formação holística de cidadãos, conciliando a excelência dos saberes com as demandas da sociedade.
O ensaio “A criatividade para a realização da visão universitária de Darcy Ribeiro”, de autoria de Cristiano Hoppe Navarro, propõe a incorporação de um instituto para estudos e prática da criatividade na UnB, com base em uma abordagem transdisciplinar. Nesse belo ensaio, o autor defende que liberdade, diversidade, integração, combate à burocracia e a planificação flexível dos objetivos são alguns dos princípios que têm interseção com o desenvolvimento criativo individual e coletivo, fundamental na universidade necessária de Darcy Ribeiro.
Júlia Guimarães Stoimenoff Brito, em “Universidade de Brasília, universidade-utopia”, discorre sobre a concepção utópica que orientou a idealização da Universidade, no final dos anos 1950 e início dos anos 1960. Essa concepção foi baseada no resultado de debates sobre uma reforma universitária demandada pela sociedade brasileira naquele momento. O projeto original da UnB é apresentado, bem como o contexto histórico, econômico e social em que estava inserido. A autora ainda discute algumas das ideias do projeto da UnB que podem orientar o debate sobre a universidade necessária no século XXI.
No ensaio “A UnB de Darcy Ribeiro: a aproximação entre o saber e as questões de uma realidade social”, Nicole Ferro Antunes de Oliveira discute o papel da universidade brasileira e seus possíveis compromissos com o saber universal e com o desenvolvimento da sociedade brasileira. Nesse sentido, a autora faz uma análise dos modelos de universidades existentes no Brasil antes da criação da Universidade de Brasília, em 1962, e traça um paralelo com as mudanças percebidas no sistema universitário brasileiro nas décadas seguintes.
Victor Eduardo Alves Rocha, em seu ensaio “Darcy Ribeiro: sonhos interrompidos”, escreve sobre as várias “peles” de Darcy Ribeiro e, também, sobre seus estudos, suas vitórias e fracassos e seus pensamentos e fazimentos. O autor faz uma bela reflexão sobre uma universidade necessária no século XXI, orientada à solução dos problemas da coletividade. E essa nova universidade, como uma semente de novas relações sociais, ofertaria ampla formação política para transformar espaços de estudo, trabalho e frentes de massa, difundindo valores coletivos.
Os textos de autoria dos estudantes de pós-graduação
O instigante texto de Ana Flávia Lucas de Faria Kama, “A universidade sonhada por Darcy Ribeiro: o papel da Biblioteca Central da UnB e da Editora UnB na busca pela utopia necessária”, traz uma análise da relevância de dois importantes órgãos complementares incluídos no Plano Orientador da UnB de 1962, elaborado por Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira, criados logo no início da universidade: a Biblioteca Central e a Editora Universidade de Brasília. O texto traz uma abordagem histórico-crítica do desenvolvimento desses órgãos, desde a criação da UnB, passando pelas dificuldades nos 21 anos da ditadura militar, e o novo impulso vivido nos anos seguintes à redemocratização do país e da nossa Universidade.
Andressa Soares Costa, em “O papel da universidade e o contexto da pandemia: um ensaio à luz dos ensinamentos de Darcy Ribeiro”, reflete sobre a relevância da universidade pública no período da pandemia de covid-19, iniciado em 2020. Mesmo em um contexto político adverso, com ataques à ciência e com um alto estrangulamento no financiamento das universidades e da pesquisa científica, a universidade pública brasileira se aproxima da sociedade, produz e difunde conhecimento e se mostra, mais que nunca, relevante e engajada na busca de soluções democráticas para os problemas do povo brasileiro. Essa foi a universidade concebida por Darcy Ribeiro.
Clerismar Aparecido Longo, no seu trabalho “A ‘universidade necessária’: saber humanizado e responsabilidade social”, revisita a proposta da universidade necessária, a partir de sua vivência como estudante da Universidade de Brasília. O autor retoma alguns questionamentos feitos por Darcy Ribeiro sobre o papel das universidades e incorpora desafios presentes: “Para que servem? A quem servem? Servem para reproduzir as desigualdades ou para construir um mundo mais igualitário e cidadão? Favorecem a expansão da monocultura e, consequentemente, a destruição da biodiversidade ou contribuem para um mundo mais sustentável? Servem para libertar o ser humano ou são usados para escravizá-lo?”. Assim, demonstra a atualidade do pensamento de Darcy Ribeiro e a continuada importância da Universidade para o enfrentamento de desafios da sociedade.
Em “Vozes da resistência: Darcy Ribeiro e a UnB no debate contemporâneo”, Inês Ulhôa examina, à luz do pensamento educacional de Darcy Ribeiro, o sentido da universidade necessária e emancipatória por ele postulada, representado na criação da Universidade de Brasília. Com base nas contribuições de Darcy aos estudos da democracia e da educação como direito, do ponto de vista teórico e de suas implicações nos processos emancipatórios, o texto também evidencia a pertinência e atualidade deste tema na atual conjuntura brasileira. Aponta ainda para as reflexões que evidenciam a importância de associar direitos humanos aos conceitos de uma educação libertadora que garanta a vida com dignidade.
A trajetória educacional e de vida da autora Kennia Dias Lino é apresentada em “Indo para a Universidade de Darcy: educação e liberdade para pensar a partir do Brasil”. Ela discute a função da universidade atual à luz dos pensamentos de Darcy Ribeiro e Paulo Freire. A autora relata sua trajetória educacional na universidade brasileira, fundamentada no pensamento desses educadores: a universidade da liberdade, da diversidade e do engajamento social. A universidade fundada pela utopia e pelo comprometimento. Enfim, a universidade que pensa o Brasil como problema e forma cidadãos comprometidos com o desenvolvimento social do país, como sonhou Darcy.
Em “A universidade pública, gratuita, de qualidade e inclusiva para todos: a luta dos povos indígenas para sua inclusão nas universidades públicas”, Luciana Beatriz de Araújo Colombo aborda as conquistas dos povos indígenas, contra o etnocentrismo da sociedade em geral. Destaca a importância da inclusão dos povos indígenas nas universidades brasileiras, os vestibulares indígenas e o início da inclusão da educação superior indígena na pauta do governo, as cotas étnico-raciais nas universidades públicas, relacionando essas conquistas ao pensamento de Darcy Ribeiro. Ainda, em diálogo com a universidade necessária de Darcy Ribeiro, a autora faz uma reflexão sobre a importância da universidade pública brasileira no enfrentamento das crises contemporâneas e para a construção de um projeto nacional democrático, popular, inclusivo e progressista.
No ensaio “Universidade para quê e para quem? Darcy Ribeiro, Lyra Filho e a UnB no processo de pluralização do ensino superior no Brasil”, o autor Marcos Júlio Vieira dos Santos elabora um panorama histórico do processo de consolidação das universidades brasileiras, revelando o caráter elitista que regeu grande parte desse processo. Com base em teorias de intelectuais como Lyra Filho e José Geraldo de Sousa Júnior, o autor defende a reversão dessa situação e a transformação popular das instituições de ensino superior, em continuidade às mudanças que vêm ocorrendo na Universidade, desde a sua redemocratização.
O texto de Rayane Andrade, “Universidade para mudar gente que muda o mundo: uma autoetnografia para ler a política educacional no Brasil”, é uma autoetnografia com o propósito de entender o estrutural através do particular, no contexto da democratização e expansão da educação superior pública que o Brasil experimentou entre os anos de 2005 e 2016. Ela relata, em sua experiência, os efeitos emancipatórios de políticas públicas como o Enem/SiSU, o Reuni, a Lei de Cotas, entre outros, que possibilitaram a muitos jovens o acesso à universidade pública e seu desenvolvimento como cidadãos. Trata-se de um belo relato de como os ideais e propostas de Darcy Ribeiro e outros educadores e intelectuais brasileiros podem transformar a sociedade brasileira por meio de políticas de inclusão.
Encerrando o livro, o ensaio de Thaís Coelho Mariano, “Darcy Ribeiro e a crítica que não envelhece”, aborda o educador Darcy Ribeiro e a contemporaneidade de sua crítica à educação brasileira. O texto inicia com uma retrospectiva das principais causas e utopias que guiaram Darcy no desenvolvimento da UnB, bem como fatos que transformaram profundamente a Universidade em seus primeiros anos. A autora avança através dos anos, relatando os efeitos da redemocratização do país, após 21 anos de ditadura militar. Na sequência, os desafios políticos, sociais e educacionais do país atualmente são analisados sob a ótica do pensamento educacional de Darcy Ribeiro.
No conjunto, os artigos desta coletânea projetam as vozes de estudantes, em um exercício que investiga os efeitos do pensamento e da ação de Darcy Ribeiro na jornada da Universidade de Brasília, as transformações pelas quais ela passou e aquelas que promoveu. Que vozes poderiam ser mais lúcidas que essas, para colocar em perspectiva a história da Universidade? São vozes plurais que reiteram, de forma uníssona, o compromisso da UnB com a construção de soluções para os desafios do país e do mundo – fossem os passados, sejam os presentes.
Confesso, com uma pontinha de envaidecimento, a satisfação de confirmar, tanto nos artigos dos alunos e das alunas de graduação, quanto nos artigos dos alunos e alunas da pós-graduação, a intensificação de possibilidades analíticas e interpretativas de lealdade ao projeto da UnB e de sua projeção para ir além do necessário e alcançar o emancipatório, em diálogo com muitas referências temáticas e bibliográficas que compartilhei com aqueles e aquelas que foram meu alunos e alunas.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
Direitos Humanos no Brasil 2022. Rede Social de Justiça e Direitos Humanos
Do Prefácio os antecedentes, as motivações e o conteúdo desse importante livro, editado nos estertores de um espasmo fascista em nosso País, por um período curto mas letal, basta pensar as ocorrências nos dados da Pandemia da Covid-19. Mapear analiticamente as dimensões dos atentados aos direitos humanos torna a obra única.
Do Prefácio, pois:
Esse livro Direitos Humanos no Brasil 2022, da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, é uma espécie de inventário dos fósforos. Estão aqui os nomes e as lutas, as datas e as geografias que traduzem a resistência: gentes em movimento acendendo fósforos, mantendo acesas as esperanças no meio da truculência que se alastrou sobre a pátria, sem contudo abatê-la. Lendo estes textos, se lembrará que lá, nas aldeias dos povos indígenas e nos quilombos de todo país, houve fome, tiros e mortes. Que à beira dos rios do país, o hidronegócio – associado ao agronegócio – ampliou a depredação das florestas, a privatização e a poluição das águas, espalhando escuridões pelas correntezas. Que Dom Philips, Bruno Pereira e vários outros/as (que acenderam fósforos naquelas imensidões) foram assassinados por causa dessas trevas, que escorreram pelas águas com o rejeito dos garimpos e o sangue das suas vítimas. Que nos lares – especialmente os mais pobres – mulheres engoliram o gosto do próprio sangue, vertido pela violência doméstica e pelo feminicídio que seguiram crescendo a números indizíveis, enquanto em Brasília os machismos e o fetiche dos falocentrismos animavam multidões. Outras, bem se sabe, não aplaudiram o excretável, ocupadas com suas vidas de inflação e altos preços, de desnutrição e fome, fabricadas pelo afã das commodities que tira comida das mesas da nação para sustentar banquetes ao redor do mundo. Longe dos banquetes, o povo recolheu ossos e pele de frango, revirou lixos e humilhou-se, mais uma vez, por pura necessidade. Essa desgraça inadjetivável da fome chegou primeiro nas famílias negras, mais uma vez, nas favelas e periferias, enquanto em Brasília, as bancadas brancas e machistas estufaram-se de verbas secretas (e não tão secretas assim), achando-se no direito de questionar a política de cotas, enquanto o trabalho escravo persistia no campo e na cidade. Por todos os lugares ficamos assustados com atos discriminatórios e violentos contra a população LGBTQIA+, enquanto as bocas espumantes de seus detratores cuspiram palavras de ódio, celebrando neonazismos e outras ideologias de morte. Aqui e ali, a violência eleitoral violentou e matou, sendo o sintoma mais evidente dos reiterados (e impunes) discursos contra a democracia, amparados em uma violência travestida em atos de fé e num culto religioso de medonhas raízes, tudo coalhado com muito negacionismo e fake news.
Essas também são, infelizmente, notícias de guerra. Nosso país vive agora a guerra contra os mais vulneráveis e a guerra contra a natureza. Essas guerras são guerreadas com o objetivo de eliminar o adversário e seu combustível é o fanatismo, a ignorância, as mentiras e os discursos de ódio que azeitam os interesses escusos de seus agentes e soldados (refiro-me aos políticos ilícitos, empresários bufões, mineradores clandestinos, madeireiros, fazendeiros, pescadores ilegais, narcotraficantes, vendedores de armas, matadores de gente, aliciadores e contratantes de trabalho escravo e toda essa gente fabricante de escuridões). Essas guerras são mais terríveis na medida em que ameaçam as gerações futuras. Essas guerras matam nossas crianças, proíbem nossos jovens de sonhar, impedem que adolescentes negros ou homossexuais saiam de casa com segurança…
Diante desses fatos, a defesa dos direitos humanos é ainda mais urgente e necessária, porque a lógica da guerra é a lógica do individualismo e da indiferença. A guerra é o tempo da barbárie, em que laços e compromissos humanos são desfeitos. Pelos relatos deste livro, 2022 foi o ano em que tal indiferença e hostilidade se tornaram uma arma do governo. Além disso, as piadas e o escárnio representam um projeto necropolítico, cuja fabricação da morte (no matar e no deixar morrer) se tornou explícita e cotidiana. A indiferença é corrosiva; nega o valor da alteridade, da racionalidade, da justiça e da tolerância, princípios básicos da vida comum. A indiferença desfaz os laços que ligam os cidadãos e põe por terra o altruísmo e a compaixão. A indiferença, por isso, põe em xeque a razão de ser da própria política, como arte de governar para o bem de todos/as/es. Com frases, gestos e omissões, o governo incentivou a tortura, a miséria, a violência doméstica, o estupro, o feminicídio, a homofobia, a xenofobia, a destruição de tudo.
Este livro traz estas denúncias e relata também a resistência dos movimentos sociais que acenderam fósforos. Apesar dos ataques contra os direitos humanos nos últimos anos, mantivemos a resistência do fogo, que traduz rebeldias e esperanças que nunca se apagam nos corações que sabem, afinal, que em tempos de escuridão nunca se deve perder a esperança da liberdade. Esses fósforos, juntos, estão acendendo a aurora. A Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, com a publicação do livro Direitos Humanos no Brasil 2022, participa desta conflagração. O livro é um instrumento de luta, uma espécie de convocação para a luz. Iluminar, agora, significa defender direitos humanos, proteção e promoção da dignidade em uma rede de solidariedade.
Notável esforço, basta ver o elenco imponente de organizadores, conselheiros, consultores e o apoio institucional num elenco que ultrapassa a centena, de organizações que participaram da elaboração do relatório Direitos Humanos no Brasil desde 2000.
O Sumário, com configuração enciclopédica é temático e coleciona textos de autores e autoras de reconhecido percurso em suas áreas de atuação e campos de estudos. Entre eles diviso colegas e alguns parceiros de pesquisas, incluindo orientandos e alunos com os quais mantenho contínuo trabalho teórico e político. Entre os alunos e alunas especialmente, encontro Vercilene Francisco Dias, Diego Vedovatto, Natália Cordeiro. Integrante da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Brasília, também me deparo na edição com companheiros de pastoral Guilherme C. Delgado e o padre Paulo Adolfo Simões. Sobre o texto do padre Paulo Adolfo remeto à minha recensão exatamente sobre o Encantar a Política, e na publicação um link para a entrevista que ele concedeu ao Programa de Justiça e Paz produzido pela Comissão Justiça e Paz de Brasília (cf. http://estadodedireito.com.br/caderno-encantar-a-politica-democracia-rede-brasileira-de-fe-e-politica-comissao-episcopal-pastoral-para-o-laicato-cnbb/). De outros tenho sido leitor atento de instigantes análises. Por último cito Tiaraju Pablo D’Andrea, que não conheço pessoalmente, mas que me abriu ensejo para fazer a leitura crítica de sua magistral tese de doutoramento (cf. aqui em Lido para Você, o meu http://estadodedireito.com.br/a-formacao-das-sujeitas-e-dos-sujeitos-perifericos-cultura-e-politica-na-periferia-de-sao-paulo/). Seu tema no livro, tem aquela condição de autenticidade refletida que já demonstrara em sua tese tão bem orientada pela querida Vera Telles, da Universidade de São Paulo.
Reproduzo o Sumário que contempla temas, autores e autoras e respectivas bioblibiografia:
Os alimentos da cesta básica em face da tensão inflacionária e exportação de commodities, Guilherme C. Delgado
Conflitos por água: povos do Cerrado resistem,Valéria Pereira Santos e Ruben Siqueira
Desmatamento, grilagem de terras e financeirização: impactos da expansão do monocultivo da soja no Cerrado, Fábio Pitta, Daniela Stefano e Maria Luisa Mendonça
Comunidades e Povos Tradicionais do Sul do Piauí, João Ripper e Mariella Paulino
Grilagem, invasões e garimpo na bacia do Tapajós, Mauricio Torres e Brian Garvey
Estrutura de Estado contra os direitos humanos dos povos indígenas, Antônio Eduardo Cerqueira de Oliveira
Luta e resistência quilombola por garantia e efetivação de direitos: do território ao poder judiciário, Vercilene Franciso Dias
Campanha “de olho aberto pra não virar escravo”: 25 anos, Xavier Plassat
A Volkswagen, as relações com o poder e a escravidão no Brasil, Ricardo Rezende Figueira e Rafael Garcia Rodrigues
Trabalho e renda sob ataque, Marcio Pochmann
Aumentam as vagas para o trabalho informal, Fausto Augusto Junior, Patrícia Lino Costa, Patrícia Toledo Pelatieri
Tributação dos super-ricos para a construção de um Brasil mais justo e igualitário, Clair Maria Hickmann e Fábio Santos Brunetto
Construir forças para alterar as correntes das marés, Ana Penido, Jorge Rodrigues, Rodrigo Lentz, José Augusto Zague e Suzeley Kalil
A dimensão institucional da luta por terra e moradia, Diego Vedovatto e Gabriel Dário Matos
Pelo direito à moradia digna: resistência, reconstrução de políticas públicas e agenda de lutas, João Sette Whitaker Ferreira e Maria Inês Sugai
Lutas populares em periferias urbanas e favelas, Tiaraju Pablo D’Andrea
Coletiva Jovem: tecendo redes para a construção de políticas públicas de geração de trabalho decente nas periferias, Agnes Jose Maria Salas Roldan e Maria Carla Corrochano
O papel do Estado no direito ao cuidado, Graciela Rodriguez
Feminismos na resistência e luta pelo fim da violência contra as mulheres, Natália Cordeiro e Analba Brazão Teixeira
Gênero, trabalho sexual e tráfico humano: o contexto das travestis e mulheres trans, Murilo Peixoto da Mota
Nação e mulher, Mônica Dias Martins
Uma geração sob orfandade: manifestação da Covid-19 alongada, Aldaíza Sposati
Resistência e organização para o Brasil que queremos: o papel da educação, Sérgio Haddad
A resistência do povo da cultura à peleja bolsonarista, Antonio Eleilson Leite
A Lei de Cotas em clima de revisão, Glauber Robson Oliveira Lima
Estado laico e investimento em ciência e saúde no Brasil da pandemia, Rubens Naves e Guilherme Amorim Campos da Silva
Faces da violência do corporativismo midiático brasileiro, Alfredo Luiz Portugal, Patrícia Paixão de Oliveira Leite e Paulo Victor Melo
Fake News: uma ameaça aos direitos humanos, Jelson Oliveira
Encantar a política: caminhos para o fortalecimento da democracia com protagonismo dos setores populares e excluídos, Paulo Adolfo Simões.
Chamo a atenção para a Apresentação que oferece uma chave de leitura da obra:
Qual o Brasil que temos? Qual o Brasil que queremos? Os 29 artigos da 23ª edição do livro Direitos Humanos no Brasil analisam estas questões com as especificidades das diversas realidades que compõem um país tão diverso. Em territórios rurais e urbanos, autoras e autores denunciam os efeitos da ausência do Estado, notadamente da falta de investimentos em políticas públicas para educação, saúde, trabalho e renda, moradia, produção de alimentos, para a defesa de direitos e para a proteção ambiental.
O livro traz fatos e análises que mostram uma visão panorâmica dos últimos quatro anos de retrocessos em relação à proteção dos direitos humanos, mas também aponta caminhos para o enfrentamento das crises econômicas, sociais e ambientais por meio da organização da sociedade. Os artigos apresentam propostas em relação a temas centrais na tarefa de reconstrução do Brasil.
Alguns desafios apresentados são, por exemplo, a violência e a destruição causadas pelo agronegócio, o aumento da fome e da desigualdade no campo e na cidade. Por outro lado, povos indígenas, quilombolas, comunidades ribeirinhas e camponesas se organizam para garantir o direito a seus territórios e à preservação ambiental. Outro desafio é reconstruir políticas públicas para a saúde, ciência, educação, cultura e combate à violência.
Nos últimos anos, o trabalho tornou-se ainda mais precarizado, a renda da população teve enorme queda e houve aumento da informalidade no trabalho. A falta de investimentos em saúde, educação, geração de renda e produção de alimentos ampliou a sobrecarga sobre as mulheres, que assumem a maioria dessas tarefas sem remuneração. O livro traz também exemplos da luta contra o trabalho escravo, com a memória dos 25 anos das campanhas da Comissão Pastoral da Terra no combate ao trabalho escravo e com a reparação aos trabalhadores escravizados no Pará pela empresa alemã Volkswagen.
Outros temas do livro incluem a falta de infraestrutura e o racismo ambiental nas periferias dos centros urbanos; a situação das crianças que se tornaram órfãs durante a pandemia de Covid-19; os efeitos violentos da manipulação e da divulgação de notícias falsas na mídia. Ao mesmo tempo, os artigos relatam exemplos de resistência popular e solidariedade entre movimentos sociais, mas ainda há muito o que fazer.
O que nos inspira a caminhar? O livro traz uma exposição fotográfica de João Ripper e Mariella Paulino, que documentaram a organização do coletivo de Comunidades e Povos Tradicionais do Sul do Piauí. Qual caminho seguir? A educação popular baseada na metodologia de Paulo Freire aponta para o esperançar e para a formação de sujeitos coletivos. O livro Direitos Humanos no Brasil 2022 se constitui como ferramenta para a construção do Brasil que queremos. A Rede Social de Justiça e Direitos Humanos agradece a participação das organizações, autoras e autores nesta caminhada.
O livro Direitos Humanos no Brasil 2022 é dedicado à memória de José Juliano de Carvalho Filho, de Tiago Thorlby e de José Carlos Zanetti, que sempre estarão presentes!
Não falta ao livro o sensível, mediado pela poesia, não menos interpelação do mundo, pois a literatura lembra Eduardo Lorenço (Mitologia da Saudade), não é um delírio, mas a apropriação do real por meio de outra linguagem. Aqui a obra de um querido amigo Hamilton Pereira, aliás Pedro Tierra, cuja poética, dizem os Organizadores, celebra quem não se conforma, não desiste, não se abandona à indolência se rende ao sono:
Mas ninguém se rendeu ao sono.
Todos sabem (e isso nos deixa vivos):
a noite que abriga os carrascos,
abriga também os rebelados.
Em algum lugar, não sei onde,
numa casa de subúrbios,
no porão de alguma fábrica
se traçam planos de revolta.
(Pedro Tierra)
Nesse poema e em outros escritos de Pedro Tierra transparece a matéria da ação política que é o estofo do poeta e que nele se expressa em narrativas, eu o disse em um comentário (http://estadodedireito.com.br/pesadelo-narrativas-dos-anos-de-chumbo/), a propósito de um de seus livros (Pesadelo. Narrativas dos Anos de Chumbo. Pedro Tierra. São Paulo: Autonomia Literária: Fundação Perseu Abramo, 2019), “são como que marcas da memória, sobretudo quando a mentira política (Hanna Arendt), produzindo deliberadamente o ocultamento, tripudia sobre o pesadelo que se vivencia nos instantes em que o perigo relampeja, e volta a assombrar à custa de uma perversa ação de usurpação cultural da memória e da história”.
O Relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos é publicado no momento em que o País eleitoralmente reagiu ao obscurantismo autoritário, perpetrador de violações gravíssimas contra os direitos humanos.
Tratei disso em coluna que mantenho no Jornal Brasil Popular, reivindicando que a transição para retorno à democracia e ao estado de direito não descuide da exigência ético—política de responsabilização de tal escalada de agressões, vizinha ao que já é considerado um genocídio.
Em artigo recente falo de culpabilidade, justiça e responsabilização (https://www.brasilpopular.com/artigo-repudio-culpabilidade-justica-e-responsabilizacao/) pondo em relevo comentaristas que falam da despedida melancólica de um governo e de seu representante, absolutamente repudiado (https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2022/11/12/despedida-de-governo-na-onu-e-transformada-em-ato-de-repudio-a-bolsonaro.htm).
Nesse momento o governo brasileiro (leia-se Jair Bolsonaro), é objeto de sabatina na ONU. Segundo o colunista Jamil Chade, conquanto “governos de todo o mundo, entidades internacionais e nacionais farão um exame do que foi a política de direitos humanos do país”, o centro do debate é a denúncia do “desmonte das instituições, entre elas a Funai, além de criticar o encolhimento do espaço cívico no Brasil durante os anos Bolsonaro: Violência policial, racismo, ataques contra a comunidade LGBT, indígenas e meio ambiente também prometem ser destacados”.
Segundo a matéria, “A sabatina — conhecida como Revisão Periódica Universal — ainda verá países apresentando recomendações ao novo governo brasileiro sobre como restaurar políticas de direitos humanos. Alguns dos europeus já indicaram que irão sugerir o fortalecimento de órgãos públicos, desmontados durante a gestão de Damares Alves, eleita senadora e que permaneceu até meados do ano como ministra da Família, Mulher e Direitos Humanos. Durante a revisão, a delegação brasileira será chefiada pela atual ministra, Cristiane Britto, que esteve ao lado do presidente quando ele fez seu primeiro pronunciamento após a derrota nas eleições. O sistema de sabatinas existe para que o mundo possa cobrar melhorias em termos de direitos humanos em um país. Recomendações são feitas e os estados têm a obrigação de dar respostas, quatro anos depois, No caso da revisão do Brasil, o processo ganha um outro componente, com uma espécie de oportunidade para que países que foram humilhados ou criticados por Bolsonaro deem suas respostas. Além das cobranças por parte dos estados, a sabatina ainda será marcada pela participação de mais de uma dezena de entidades da sociedade civil. Muitas delas, ao longo dos meses, submeteram informes para a ONU, trazendo dados sobre a situação do país”.
A partir de um quadro de omissões, há um verdadeiro libelo contra a governança e os dirigentes do país. O documento oficial, que serve de base para a denúncia, revela um quadro de desmantelamento de toda a rede de proteção aos direitos humanos, com repercussão letal sobre as populações vulnerabilizadas, notadamente no campo da saúde e do enfrentamento a Covid-19.
Em outra matéria, assinada pelo mesmo colunista (https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2022/11/12/parias-bolsonaro-e-putin-ficam-de-fora-da-cupula-do-g20.htm), tratando da ausência do presidente na reunião da cúpula do G20, ele avalia o significado dessa ausência, para estimar que ela “sedimenta a irrelevância internacional de Bolsonaro e seria um “réquiem” de um governo que apequenou o Brasil no mundo. Mesmo dentro do Itamaraty, sua ausência é um sinal de que ele não entendeu o cargo que assumiu em 2019 e que a presença de um presidente do Brasil na cúpula não tem relação com o resultado das eleições. Para diplomatas estrangeiros, a ausência de Bolsonaro é uma mistura de alívio e de “pena” diante do colapso de uma política externa de um país que servia de referência ao mundo. Já em 2021, na cúpula do G20 em Roma, Bolsonaro viveu uma situação de pária internacional, ignorado pelos demais líderes e com uma agenda completamente esvaziada. Mais recentemente, em Nova York, ele voltou a ver sua passagem pela Assembleia Geral das Nações Unidas marcada por uma ausência de encontros de alto escalão e chegou a faltar na reunião que teria com Antonio Guterres, secretário-geral da entidade”.
O repúdio internacional corrobora o rechaço interno revelado pelas eleições, contra um projeto, um sistema delinquente que canalizou recursos orçamentários para um objetivo de assalto ao patrimônio público, aparelhou o aparato de segurança e a linha auxiliar miliciana para interferir na livre manifestação, agrediu a institucionalidade de modo ilegal e inconstitucional, sendo, ainda assim derrotado.
Todavia, permanece a arregimentação criminosa, no financiamento, no aparelhamento inclusive de setores militares e de forças de segurança, com a docilidade leniente de muitos editoriais e de aliciamento de um colunismo rendido, num movimento torpe de solapamento da soberania popular e do interesse de restauração democrática das instituições.
Numa bela carta aberta dirigida ao Presidente Lula, o sociólogo Boaventura de Sousa Santos (https://sul21.com.br/opiniao/2022/11/carta-aberta-ao-presidente-lula-da-silva-por-boaventura-de-sousa-santos/), entre várias lúcidas e pertinentes considerações, celebra a vitória, que não é apenas pessoal, mas de uma ampla e ética mobilização, menciona a enorme credibilidade mundial que o Presidente acumula e que deverá exercitar em todas as agendas globais, mas adverte para essa conspiração subalterna e clandestina que só o voto não é bastante para debelar.
O Presidente Lula, diz Boaventura “Vai ter de conviver com a permanente ameaça de desestabilização. É a marca da extrema-direita. É um movimento global que corresponde à incapacidade de o capitalismo neoliberal poder conviver no próximo período com mínimos de convivência democrática. Apesar de global, assume características específicas em cada país. O objetivo geral é converter diversidade cultural ou étnica em polarização política ou religiosa. No Brasil, tal como na Índia, há o risco de atribuir a tal polarização um carácter de guerra religiosa, seja ela entre católicos e evangélicos ou entre cristãos fundamentalistas e religiões de matriz africana (Brasil) ou entre hindus e muçulmanos (Índia). Nas guerras religiosas a conciliação é quase impossível. A extrema-direita cria uma realidade paralela imune a qualquer confrontação com a realidade real. Nessa base, pode justificar a mais cruel violência. O seu objetivo principal é impedir que o Presidente Lula termine pacificamente o seu mandato”.
Por isso, estão certos aqueles que sustentam que é hora de falar em punição e não em pacificação, como o faz Milly Lacombe, colunista do UOL (https://www.uol.com.br/esporte/colunas/milly-lacombe/2022/11/05/e-hora-de-falar-em-punicao-e-nao-em-pacificacao.htm).
Na linha da melhor orientação da chamada justiça de transição, acentua que repúdio, culpabilidade, justiça e responsabilização, são marcas de memória para prevenir recorrências e não premiar contraventores que lesam a humanidade, o país e o povo.
Diz o seu texto: “Uma das mais eficazes ferramentas do capitalismo, especialmente em sua versão neoliberal, é a capacidade de inverter todas as pautas. Antes mesmo de Lula sair vencedor da eleição já escutávamos intelectuais liberais falando em anistia e em pacificação. As mesmas pessoas que passaram quatro anos numa boa vendo Bolsonaro afundar o Brasil em violências de todos os tipos, da lentidão para comprar vacinas até a congratulação a policiais que se comportavam como milicianos passando pelos inúmeros sigilos de 100 anos em qualquer suspeita de malfeito ou corrupção, agora pedem que Lula e sua turma sejam os pacificadores. Querem que aqueles que passaram quatro anos sendo abusados sejam os pacificadores. Não haverá pacificação sem punição. Não haverá pacificação sem a construção de um espaço de memória, de investigações e confrontos a respeito de um passado nem tão distante como o da ditadura. Agora é a hora de colocar todo esse horror na mesa e fazer uma autópsia do que passamos. Investigar, processar, punir”.
Bastaria incluir no libelo o horror da gestão necropolítica da crise sanitária. Talvez por isso o senador Renan Calheiros (MDB-AL), que foi o Relator da CPI da Covid, afirme que uma anistia a Jair Bolsonaro (PL) não acontecerá. “Bolsonaro está apavorado, querendo uma anistia, um acordo de não punição. Mas isso, na circunstância em que ele criou no Brasil, é difícil de acontecer”. É preciso, ele diz, “dar consequência a todas as investigações, inclusive aquelas que foram postas pela CPI. Não dá para passar pano nisso. Bolsonaro é responsável por uma grande quantidade de mortes no Brasil. A CPI demonstrou que se ele tivesse feito a sua parte, comprado as vacinas no momento em que foram oferecidas, nós teríamos salvo uma quantidade significativa de vidas”. (https://www.brasildefato.com.br/2022/11/13/renan-calheiros-afirma-que-bolsonaro-esta-apavorado-e-que-anistia-nao-acontecera).
Eis que o insuspeito Estadão, em matéria de Opinião (Editorial), também indica a necessidade de atribuir “responsabilidade jurídica de Bolsonaro”. Para o Jornal, “Não basta o juízo político das urnas. Se há indícios de que a lei penal foi descumprida, é preciso investigar. A paz não é fruto da impunidade, mas da efetiva igualdade de todos perante a lei” (https://12ft.io/proxy?q=https%3A%2F%2Fopiniao.estadao.com.br%2Fnoticias%2Fnotas-e-informacoes%2Ca-responsabilidade-juridica-de-bolsonaro%2C70004158307).
Para o Jornal, “os quatro anos de governo produziriam um respeitável passivo jurídico, com incidência direta na esfera penal”, que não pode ser desconsiderado: “O País precisa exatamente disso: investigação serena e criteriosa, dentro da mais estrita legalidade, respeitando as competências competentes, para apurar os indícios de crime e as respectivas responsabilidades, de forma a permitir depois, quando for o caso, a aplicação, pelas vias judiciais competentes, das penas legais cabíveis. Não se trata de perseguir ninguém. Mas não é plausível que, diante de tantas projeções – pequenos ou grandes, como, por exemplo, são as suspeitas envolvendo o MEC –, nada seja investigado. Jair Bolsonaro não está acima da lei. A tão necessária pacificação nacional não virá da impunidade, mas da efetiva percepção de que todos são iguais perante a lei”.
Os relatórios que têm sido apresentados pela Equipe de Transição escancaram esse descalabro em todas os setores econômicos, sociais, políticos, culturais, sanitários, educacionais e de assistência social.
Antes mesmo de terminar o ‘serviço’, Bolsonaro entra para a história, como um líder que promoveu o genocídio de seu próprio povo, através do negacionismo na pandemia. E eu acrescentaria ‘através de nebulosas transações, visando propinas, envolvendo membros das Forças Armadas, conforme demonstrado na CPI pelo Senado brasileiro’.
O livro se chama Fabel, foi editado e lançado na Noruega pela editora de livros escolares Aschebourg Undervisning, e é aplicado nos três anos finais do Ensino Médio para a matéria de Norueguês.
Bolsonaro ilustra o texto sobre ‘Teorias de conspiração’, com a reprodução na legenda inclusive de uma das famosas frases negacionistas e de desprezo à vida humana, de Bolsonaro, que ele agora nega ter proferido.
Há um outro texto, na página seguinte, intitulado ‘Um Brasil condenado’, aqui traduzido:
‘O Brasil é o quinto país mais populoso do mundo. Durante a pandemia, o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, foi um dos maiores negacionistas da corona do mundo. Enquanto o mundo inteiro ficava em casa durante a pandemia, ele fazia aglomerações ao redor de si e dava ‘toca aqui’ em apoiadores que se amontoavam ao redor dele. ‘Uma gripezinha’, assim ele chamou a Covid-19, doença que matou três milhões de pessoas só no primeiro ano de pandemia. Apesar da pandemia ter se espalhado em tempo recorde no Brasil, ele chamou a corona de uma ‘histeria da mídia’. O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, fazia coletivas de imprensa diárias com atualizações sobre o desenrolar do contágio no país. 260 000 pessoas morreram de Covid-19 no primeiro ano de pandemia no Brasil. Quando Mandetta criticou publicamente a forma de Bolsonaro conduzir a pandemia, ele foi desonerado’.
Considero de suma importância que os Organizadores de Direitos Humanos no Brasil 2022 Rede Social de Justiça e Direitos Humanos encaminhem para a área de direitos humanos da Equipe de Transição o circunstanciado trabalho que realizaram. Ele certamente contribuirá para a redefinição das políticas nesse âmbito. E em boa hora.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
Direitos Humanos Hoje. Uma Discussão para o Presente e Para o Futuro
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
DARCY. Revista de Jornalismo Científico e Cultural da Universidade de Brasília. Nº 20 – setembro a novembro de 2018. Direitos Humanos Hoje. Uma Discussão para o Presente e Para o Futuro
Sim, eu sei que a edição da Darcy que trago para este Lido para Você é de 2018, de há quatro anos. Mas me senti motivado a revisitá-la, primeiro porque a Secretaria de Comunicação da UnB que a edita, a trouxe como referência para marcar 74 anos da Declaração de Direitos Humanos, e numa agenda de memória RELEMBRE, valeu-se desse número para marcar que no atual, permanecem as “Dificuldades e desafios no cotidiano dos brasileiros”.
Numa matéria de Gisele Pimenta, Serena Veloso e Vanessa Vieira (09/12/2022), com o título “Desigualdades sociais são abordadas na revista Darcy 20. Conteúdo é resgatado em celebração ao 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos”.
Volto ao texto das jornalistas:
Além das dificuldades na mobilidade urbana, Viviane Queiroz enfrenta diariamente os desafios de acessibilidade sendo estudante cega na Universidade de Brasília;
Direitos para todos os humanos. É o que assegura a declaração oficializada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) em 10 de dezembro de 1948. O documento, que em 2022 completa seus 74 anos, motivou a promulgação da data como Dia Internacional dos Direitos Humanos. Diante da proximidade do marco, o UnBNotícias dá visibilidade à temática a partir da publicação de duas de matérias do Dossiê do número 20, lançado em 2018, da revista Darcy, publicação de jornalismo científico e cultural da UnB.
Importante a Darcy ser a fonte dessa matéria da Secom da UnB em UnBNotícias. Para isso a Darcy foi criada, em minha gestão como Reitor, o seu número 1, publicado em julho/agosto de 2009. Para ser uma revista de jornalismo incumbida de divulgação científica. Uma revista feita por jornalistas para assegurar uma comunicação fluente de temas em geral sisudos elaborados por cientistas, pensadores, intelectuais.
O nome um achado. O devemos ao professor Luis Gonzaga Motta, da Faculdade de Comunicação que dirigiu a Secom na primeira metade de meu mandato e da brilhante jornalista, ex-aluna da UnB (graduação e pós-graduação) e que o sucedeu até o final do mandato (2012). Não sei se Motta se inspirou na Getúlio, da Fundação Getúlio Vargas. Creio que não. Darcy Ribeiro era e é ainda potente o suficiente para inspirar e nominar uma revista da Universidade que criou.
O certo é que guardando lugar de zelo para tudo que se publica na UnB, tenho pela Darcy um carinho incondicional. Em todas as publicações a partir da nº 1, até o final de meu mandato, cuidei e abri cada edição com uma coluna do Reitor, pessoalmente assinada.
Nesse nº 1, meu texto trouxe, a propósito da edição de lançamento, o título Porque Darcy. Lembrei que em discurso que fez no Auditório Dois Candangos, na UnB, em 16 de agosto de 1985, o fundador da UnB, antecipara o que poderia ser uma publicação como a nova Revista, o que deveria ser o espírito e a sua linha editorial: “o compromisso com o conhecimento e a disposição inquietante para divulga-lo, levando em conta que ‘toda ideia é provisória e tem de ser posta em causa. ‘Numa universidade’, ele dizia, ‘tudo é discutível’”.
Ser a Darcy “esse espaço de diálogo possível entre saberes e se fazer galeria para o livre trânsito entre conhecimentos que possam se interligar”. Os Direitos Humanos podem ser e de fato são esse carrefour que torna possível a universidade se fazer necessária e nessa medida, também emancipatória.
Em materia de fundo nea edição nº20 (2018) – Um Grito por Dignidade, Liberdade e Igualdade, os editores aceitam o meu argumento de que as declarações apenas não alcançam a escuta plena desse grito:
Correntes teóricas de vertente mais crítica ao entendimento estritamente jurídico apontam que os marcos documentais não são suficientes para explicar a complexidade dos direitos humanos. O professor José Geraldo acredita que a temática extrapola a perspectiva das garantias de proteção, porque integra um campo de disputas ideológicas com diferentes conjunturas e demandas específicas. “Os direitos humanos são as lutas pelo reconhecimento da dignidade do humano, e isso é uma construção política e histórica no social”, define.
Para compreender as duas dimensões do conceito — o que são os direitos e qual consenso se estabelece sobre a condição humana — é preciso responder a outra pergunta: direitos para quem? Ex-reitor e estudioso do direito achado na rua, o professor José Geraldo observa: “Se a princípio parece óbvio o que se entende por humano, tal reconhecimento esbarra nas contradições da história. No Brasil, a concessão de direitos limitou-se por muito tempo a determinados grupos sociais”.
A Constituição de 1824, após a proclamação da Independência, foi um exemplo dessa contradição, segundo José Geraldo. “O documento estava apoiado na tese de que todo homem nasce livre e igual em direitos. Porém, em uma sociedade escravocrata, em que o trabalho era alienado da dignidade, o escravo não era reconhecido como pessoa humana”. Analfabetos, indígenas, mulheres e outros grupos que não tinham propriedade e renda eram excluídos, ou seja, não eram vistos como “homens de bem”, para ser literal à linguagem constitucional daquela época.
Do que se trata é aferir o que dessa herança se prorroga para a contemporaneidade:
Essa herança ecoa na própria contemporaneidade, quando ainda persistem limitações para o exercício político dos direitos humanos entre segmentos sociais historicamente excluídos. Por isso, José Geraldo defende que, mais do que declarados, os direitos humanos devem ser exercidos. O caminho para isso seria aproximá-los da política e colocá-los como agenda na definição de políticas públicas. “A transformação da teoria em prática só é possível pela participação política e pela educação, com o envolvimento dos cidadãos nos processos democráticos por meio do debate e da escolha de representantes que possam direcionar as demandas sociais”, argumenta o professor de Direito.
Curioso é que os argumentos que ofereci à matéria de Darcy há quatro anos tenham sido repostos agora, por Campus Multiplataforma, um espaço de temas do Jornal Laboratório da Faculdade de Comunicação da UnB.
Na matéria 74 anos da Declaração de Direitos Humanos, preparada por Júlia Mano e Mateus Gaudêncio (https://sites.google.com/view/diadosdireitoshumanos/in%C3%ADcio?pli=1), pude contribuir para a construção da narrativa dos estudantes-jornalistas que aproveitaram no atual, alguns dos argumentos que eu havia lançado em 2018:
O professor do núcleo de práticas jurídicas da Faculdade de Direito José Geraldo de Sousa Junior disse ao Campus Multiplataforma que os pactos dos anos 1960 e documentos promulgados nos anos 1990 apresentaram alternativas à Declaração Universal dos Direitos Humanos. Afirmou que os acordos tinham “novos temas e o protagonismo dos movimentos sociais e de organizações da sociedade civil”.
Já sobre os atuais desafios de respeito aos artigos do documento, o professor afirmou que as medidas estabelecidas precisam “sair do plano retórico e celebratório”.
“O pensador e político Norberto Bobbio dizia que: ‘o problema atual dos direitos humanos já não é a sua fundamentação, uma questão filosófica; mas a sua dimensão política e, em última análise jurídica. Não basta conceituá-los, é necessário exercê-los, fazê-los efetivos’”, disse Sousa Junior.
Penso que conseguiram captar, para além do declaratório, a dimensão instituinte do social inscrito na história para realizar concretamente os direitos humanos. Fico feliz por ter a concordância nessa caracterização de minha colega Elen Geraldes, da Faculdade de Comunicação, atualmente Coordenadora do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos e Cidadania (CEAM). É desse lugar que ela fala:
Elen Geraldes afirmou que “os direitos humanos são produto das lutas sociais”. Da mesma forma, José Geraldo de Sousa Junior disse que os movimentos “por reconhecimento e aquisições materiais permitem a humanização contínua de sujeitos, individuais e coletivos que se relacionam em uma experiência de humanização”.
O professor também disse que “sem direitos verdadeiramente humanos a cidadania não se realiza e a dignidade do humano não se afirma plenamente”. Em locais em que não há respeito aos direitos humanos a população sofre com a “redução de dignidade que os impede se emanciparem, [são] excluídos e alienados cultural e legalmente, um estado de ‘subcidadania’, sub-humano, destituídos de direitos e de participação política”, segundo Sousa Junior
Certo que Elen Geraldes e eu próprio estamos falando desde uma perspectiva libertadora, uma plena educação para os direitos humanos, freireanamente considerada. Por isso que, por sua indicação, concorreu e foi contemplado no lançamento dos prêmios de direitos humanos (Anísio Teixeira) e de educação para os direitos humanos (Mireya Suárez), projeto coordenado pelas professoras Nair Heloisa Bicalho de Sousa (NEP/PPGDH) e Flávia Beleza (NEP) –O projeto Estudar em Paz ocorre desde 2009, com foco na mediação de conflitos, e já beneficiou mais de mil pessoas da comunidade escolar da educação básica do Distrito Federal – conforme matéria da Secom (https://www.noticias.unb.br/76-institucional/6208-unb-entrega-premio-de-direitos-humanos-a-11-projetos).
Tudo isso remete a um processo, diz Nair Heloisa Bicalho de Sousa, motivada pela leitura de Nita Freire em aludir à “pedagogia dos direitos humanos” como proposta freireana de “inserção crítica dos homens e das mulheres nas suas sociedades ao possibilitar-lhes terem voz, dizerem a sua palavra, biografarem-se (FREIRE, Ana Maria Araújo (Nita Freire). Acesso à Justiça e a Pedagogia dos Vulneráveis. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de GERALDES, Elen et al. Organizador. Introdução Crítica ao Direito à Comunicação e à Informação. Série O Direito Achado na Rua, vol. 8. Brasília: FAC/UnB Livros, 2017, p. 69-77), uma base consistente, apta a constituir um programa de educação em e para os direitos humanos e a orientar a “construção de saberes, práticas pedagógicas e metodologias participativas da educação em direitos humanos” (cf. Retrospectiva Histórica e Concepções da Educação em e para os Direitos Humanos. In PULINO, Lúcia Helena Zabotto et al. (Orgs). Educação em e para os Direitos Humanos. Biblioteca Educação, Diversidade Cultural e Direitos Humanos volume II. Brasília: Paralelo 15, 2016, p. 73-124), cf. http://estadodedireito.com.br/direitos-humanos-e-educacao-libertadora/.
Assim que, nas circunstâncias desta resenha e para contextualizar meus argumentos, recupero o completo depoimento que ofereci para a edição, a partir das questões propostas por seus repórteres, até para preservar o esforço de reflexão:
– Qual era o contexto histórico que levou à necessidade de se criar uma Declaração dos Direitos Humanos da ONU?
Término da segunda guerra mundial, um conflito que exacerbou a violência no teatro de operações, num conflito que projetou interesses vitais para a configuração de espaços territoriais para alavancar pretensões hegemônicas, mas que tinha embutida nas mobilizações projeções de concepções de mundo dissociadas do humano, sacrificadas às lógicas de acumulação: o capitalismo que sacrifica o social ao desempenho dos negócios; o socialismo de estado que subordina a subjetividade individual e os direitos fundamentais ao planejamento coletivista; o totalitarismo em suas expressões nazi-fascistas que sacrifica violentamente na opção eugênica, comunidades, povos, identidades, culturas que expressem o diferente. Em todas essas dimensões, o progresso operado pelo consumo canibalizador da natureza e o empreendimento colonizador produzindo a redução da dignidade humanas em suas incidências excludentes de classes, raças e gênero.
– Houve impactos à época em que a Declaração dos Direitos Humanos da ONU foi promulgada? Se sim, quais?
Sim. Nas mentalidades, exibindo o horror do holocausto e da descartabilidade do humano e de suas subjetividades reivindicantes contra as opressões e as espoliações, afetando o núcleo da emancipação legítima pela fome, pelo medo e as restrições às crenças e ao direito de reivindicar. As chamadas quaro liberdades fundamentais que balizaram o trabalho de preparação do documento (a Declaração), muito enriquecido pela contribuição de filósofos, entre eles Jacques Maritain e René Cassin. Fortemente liberal (as chamadas liberdades elementares) o texto, avançado, exortador, convocava ações públicas nos planos políticos, econômico, culturais, “Considerando que é essencial a proteção dos direitos do Homem através de um regime de direito, para que o Homem não seja compelido, em supremo recurso, à revolta contra a tirania e a opressão”. Aprovada por unanimidade, houve abstenções, de países de socialismo real, insatisfeitos por não terem as chamadas “liberdades alimentares” e os direitos de fundo econômico, político e cultural sido contemplados. Os pactos dos anos 1960 cuidaram de formular opções nesse plano e as declarações dos anos 1990 (Viena, Pequim, Cairo, Istambul, Teerã, Copenhague, Roma, Rio, Durban) trazendo novos temas (Populações, Mulheres, Moradia, Tolerância, Racismo e Xenofobia, Alimentação, Ambiente) e o protagonismo dos movimentos sociais e organizações da sociedade civil.
– Quais foram os desafios à época para a adoção da Declaração dos Direitos Humanos da ONU?
Superar os antagonismos ideológicos inscritos nos conflitos não resolvidos com o fim da guerra e que se prorrogam no que o Papa Francisco vem chamando de “terceira guerra mundial em partes…com risco de se tornar total”.
– Quais são os atuais desafios para que os artigos previstos na Declaração dos Direitos Humanos da ONU sejam respeitados?
Saírem do plano retórico e celebratório, satisfeito com a reverberação filosófica de seus enunciados, enquanto meros enunciados e se projetarem para a política que organiza planos e programas de realização concreta. Aliás, o pensador e político Norberto Bobbio dizia exatamente isso: “o problema atual dos direitos humanos já não é a sua fundamentação, uma questão filosófica; mas a sua dimensão política e, em última análise jurídica. Não basta conceituá-los, é necessário exercê-los, fazê-los efetivos”.
– Como você avalia o trabalho da comunidade internacional na promoção dos direitos humanos? E do Brasil? E da UnB?
O sistema nacional, regional e global (universal) de direitos humanos se funcionalizou por meio de órgãos (assembleias, comissões) de elaboração, monitoramento (comissariados, relatórios, com acesso de pessoas individualmente e participação da sociedade civil) e julgamento (comissões e cortes). Nesse exato momento o Brasil está sendo sabatinado sobre o cumprimento de diretrizes e violações de direitos humanos, a partir dos tratados, das convenções e de recomendações. Muito em evidência, entre outros atos as violações, principalmente praticadas ou toleradas pelo próprio governo. Relevo para a Convenção 169 da OIT, sobre Povos Indígenas e Tribais, notadamente por omissão ao cumprimento da exigência de consulta prévia, livre e informada, para atender a devida consideração seus costumes ou seu direito consuetudinário, questão que ganhou muito relevo na América Latina e também no Brasil. Depois de um período de deliberada ação política hostil a esses direitos e até genocida (conforme já consta de livros didáticos internacionais e promoções judicias nacionais e internacionais), a abertura democrática para uma nova governança pautou definitivamente o reconhecimento dos direitos ancestrais dos povos originários, seus usos e seu direito a terra, territórios e modos de existir. Na UnB a sua própria história se confunde com a o reconhecimento e a atenção aos direitos humanos. Basta ler o Relatório da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB com significativos registros. E mais ainda as iniciativas acadêmicas (disciplina Direitos Humanos e Cidadania, criada em 1986 por iniciativa do Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos, também instituído em 1986); a implantação dos programas de pós-graduação (mestrado e doutorado) em direitos humanos e cidadania; as políticas de ações afirmativas adotadas pioneiramente pela UnB, legitimadas por sua autonomia universitária e homologadas pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de ADPF (Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental). A UnB cuidou de criar uma Câmara de Direitos Humanos em seu Conselho Universitário e uma Secretaria de Direitos Humanos e nos próximos dias entregara aos agraciados os prêmios de direitos humanos (Prêmio Anísio Teixeira) e de educação em direitos humanos (Prêmio Mireya Suárez). O catálogo de monografias, dissertações e teses da UnB sobre o tema é um dos mais importantes repositórios do Brasil.
– Como pode ser explicado de forma simples o que são os direitos humanos?
À luz de tudo que aqui se expôs os direitos humanos não são as declarações, os monumentos ou sequer as ideias que sumariam as aquisições nesse campo, mas as lutas concretas por reconhecimento e aquisições materiais que permitem a humanização contínua de sujeitos, individuais e coletivos, que se inte-relacionam numa experiência de humanização.
– Qual a importância dos direitos humanos na vida de um cidadão?
Sem direitos verdadeiramente humanos a cidadania não se realiza e a dignidade do humano não se afirma plenamente.
– Quais são os prejuízos à vida de um indivíduo por viver em locais em que não se respeita os direitos humanos?
Sofrerem a redução de dignidade que os impede de se emanciparem, excluídos dos bens da vida, socialmente produzidos, excluídos e alienados cultural e legalmente, num estado de sub-cidadania, sub-humano, destituídos de direitos e de participação política (meras “ferramentas falantes” (estrangeiros, escravos, mulheres) como os classificava Aristoteles, sem a autonomia que constitui o “animal político”, o único que exerce funções e direitos na Pólis.
– Teria algo a mais a falar que não foi contemplado com as perguntas?
Somente na democracia, não apenas por realizar uma forma de governo, mas um projeto de sociedade, os direitos como relações podem se constituir e materializar condições de bem viver.
Com Antonio Escrivão Filho cuidamos de radicalizar essa passagem, da mera enunciação para uma perspectiva de realização, na direção de consumar uma compreensão dos direitos humanos como projeto de sociedade. Foi o que fizemos em livro – Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016 (ver meu Lido para Você http://estadodedireito.com.br/para-um-debate-teorico-conceitual-e-politico-sobre-os-direitos-humanos/).
Assim, cogitar da teoria e da história dos direitos humanos, especialmente, a partir do Brasil, parece algo pertinente, sobretudo desde uma aproximação que encontra, na América Latina, novos horizontes epistêmicos; no Estado, um complexo agente de garantia e, simultaneamente, de violação de direitos; e nas lutas sociais, o compromisso ético-político que põe em movimento e dá fundamento a uma sociedade livre, justa e solidária.
De um lado, recusar a abordagem linear segundo a qual os direitos humanos se manifestam por etapas, como se fossem um suceder de gerações, em espiral evolutiva, de cujo evolver naturalizado derivassem os direitos individuais, civis e políticos, seguidos dos direitos econômicos, sociais e culturais. Em vez disso, buscar conferir os processos ou as dimensões, designadas num cotidiano de afirmação e de reconhecimento, do qual emergem de modo indivisível, interdependente e integralizados os direitos humanos, manifestados ontologicamente na realidade instituinte e deontologicamente, abrigados num plano de garantias institucionalizado.
De outra parte, rastrear a emergência dos direitos humanos como projeto de sociedade. Vale dizer, na consideração de que não se realizam enquanto expectativas de indivíduos, senão em perspectiva de coletividade, como tarefa cuja concretização se dá em ação de conjunto.
Assim sendo, partimos do debate conceitual dos direitos humanos, para esboçar o panorama do cenário internacional e de sua emergência histórica, no mundo e no Brasil. Para, desse modo, articular o seu percurso no contexto da conquista da democracia, assim designada enquanto protagonismo de movimentos sociais, ao mesmo tempo sujeitos de afirmação e de aquisição dos direitos humanos. Em relevo, pois, a historicidade latino-americana para acentuar a singularidade da questão pós-colonial forte na caracterização de um modo de desenvolvimento que abra ensejo para um constitucionalismo “Achado na Rua”. Problematiza-se, em conseqüência, os modos de conhecer e de realizar os direitos humanos, em razão das lutas para o seu reconhecimento, a partir das quais se constituem como núcleo da expansão política da justiça e condição de legitimação das formas de articulação do poder e de distribuição equitativa dos bens e valores socialmente produzidos”.
Em suma, compreender os direitos humanos dentro de “um programa que dá conteúdo ao protagonismo humanista, conquanto orienta projetos de vida e percursos emancipatórios que levam à formulação de projetos de sociedade para instaurar espaços recriados pelas lutas sociais pela dignidade”.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
Descolonizar: abrindo a história do presente. Boaventura de Sousa Santos
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Descolonizar: abrindo a história do presente. Boaventura de Sousa Santos. Belo Horizonte: Autêntica Editora; São Paulo: Boitempo, 2022, 128 p.
A obra ganha também um sentido de confirmação de um pensamento de interpelação, quando se anota a sua edição no mesmo ano em que o Autor recebe a distinção pela Caribean Philosophical Association, do Frantz Fanon Lifetime Achievement Award 2022, uma referência para justificar o seu fundamento: oferecer uma reflexão com o objetivo de “descolonizar o bicentenário”, especificamente do Brasil, mas validamente de outros países latino-americanos, o Peru em 2021.
Por essa razão o lançamento do livro, no Brasil, se fez num ambiente de debate, valendo anotar um dos mais importantes, que aconteceu na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da Universidade de São Paulo, com a presença do Autor, em novembro, numa agenda qualificada entre Rio e São Paulo. No debate da FFLCH o Autor dialogou com o historiador Lourenço Cardoso e a escritora Helena Silvestre, com mediação da professora Paula Marcelino (DS-FFLCH).
Com Helena Silvestre uma continuidade de trocas e entendimentos fortalecidos pela participação no livro O Sistema e o Antissistema. Três Ensaios, Três Mundos no Mesmo Mundo. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2021. Essa obra reúne três ensaios sobre o tema, com distintas visões de seus autores Boaventura de Sousa Santos, Ailton Krenak e Helena Silvestre. No livro são reunidos textos escritos a partir de diferentes contextos sociais, políticos e culturais, por autores de diferentes gerações, com diferentes identidades e histórias de vida, mas irmanados na mesma luta por uma sociedade mais justa, mais igualitária e mais respeitadora da diversidade e da diferença.
No texto prefacial Descolonizar Boaventura faz uma abertura problematizante sobre um simbólico presente na história de Portugal e do Brasil, postulando uma irmandade. Ele alude ao retórico desse parentesco questionando na relação o vínculo entre “protagonistas de dois colonialismos”, cuja origem e destino demarcam condições com dramáticas implicações:
A história que nos prende é também a história que nos liberta. O passado só está fechado para quem se beneficia da injustiça ou considera que não há injustiça nas história, mas sim fatalidade e sorte. O passado é uma missão ou uma tarefa para os vencidos inconformados da história e para os descendentes dos vencedores dispostos a reparar as injustiças e as atrocidades em que a história se assenta e as quais oculta. O encontro destas duas vontades constitui o que designo por descolonização do bicentenário.
Abri também essa linha de problematização por ocasião de minha participação, como conferencista no encerramento da 9ª CONFERÊNCIA DO FÓRUM DE GESTÃO DO ENSINO SUPERIOR NOS PAÍSES E REGIÕES DE LÍNGUA PORTUGUESA – FORGES, realizada de 20 a 22 de Novembro – 2019, Brasília, Brasil, na Universidade de Brasília, tendo como tema central “A integração do ensino superior dos países lusófonos para a promoção do desenvolvimento humano”. O título do artigo publicado é o mesma da conferência proferida naquela ocasião: “Uma Universidade Popular para uma Educação Emancipatória”, exatamente para ponderar o lugar de Portugal no experimento colonial e indicar que desde esse lugar o modo decolonial é também uma condição para que a libertação e a emancipação sejam possíveis (http://estadodedireito.com.br/revista-forges-comemorativo-do-10o-ano/).
Aliás, o fiz valendo-me de um querido amigo, destacado professor de Coimbra, mais precisamente, de sua Faculdade de Direito. Com efeito, presente em Coimbra, na Sala dos Capelos, da vetusta universidade, nos começos da década de 2000, para um Congresso Portugal-Brasil, guardo em mim até hoje o sentimento marcado pela disposição de todos ali presentes, de construir caminhos para a uma história comum: “a história comum que forja a comunidade de culturas e a comunidade de afetos que somos” (Boletim da Faculdade de Direito – STVDIA IVRIDICA 48, Colloquia – 6, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, Conferências na Faculdade de Direito de Coimbra 1999 / 2000).
Estas palavras, ditas pelo, aquela altura, Presidente do Conselho Diretivo da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, logo a seguir, seu vice-Reitor, o Professor António José Avelãs Nunes, assinalaram as distinções entre o Portugal português e o Brasil brasileiro, no que tange aos seus caminhos, nas condições daquele congresso. Mas se prestam também, para designar as distinções entre o Portugal português e os países que formam a comunidade de povos de língua portuguesa, presentes nesta 9ª Conferência (Angola, Cabo Verde, Macau, Moçambique e certamente entre os participantes, Guiné Bissau, Guiné Equatorial, São Tomé e Príncipe, Timor-Leste) no que tange aos seus próprios e intercruzáveis caminhos, em que pese, lembra Eduardo Lourenço, “cada povo só o é por se conceber justamente como destino” (Portugal como Destino).
Temos sim, os povos que se expressam em língua portuguesa, essa história comum que nos forja enquanto comunidade de culturas e comunidade de afetos, e que nos amalgama a partir de algum momento em nossas próprias histórias. Mas, se temos uma história desde aí comum, o que temos de comum em nossos destinos?
Valendo-me de Para Paulo Freire, tão marcante em nossa cultura comum, ao aplicar esses enunciados num outro evento (minha conferência inaugural no XXIII Congresso Internacional de Humanidades, realizado em Brasília, na Universidade de Brasília, em 05/01/2021, com o tema Poder, Conflito e Construção Cultural nos Espaços Latino-Americanos), exercitando uma abordagem que depois apliquei em texto Territórios de Conhecimentos e de Intersubjetividades: um lugar social para a Universidade (Brasília: Editora UnB: Revista Humanidades nº 65, dezembro 2021), sustentei, com ele, que a desumanização não é destino. É “a luta pela humanização, pelo trabalho livre, pela desalienação, pela afirmação dos homens como pessoas, como ‘seres para si’, esta luta pela humanização somente é possível porque a desumanização, mesmo que um fato concreto na história, não é, porém, destino dado, mas resultado de uma ‘ordem’ injusta que gera a violência dos opressores e esta, o ser menos. (…) O ser menos leva os oprimidos, cedo ou tarde, a lutar contra quem os fez menos. E esta luta somente tem sentido quando os oprimidos, ao buscarem recuperar sua humanidade, que é uma forma de criá-la, não se sintam opressores, nem se tornem, de fato, opressores dos opressores, mas restauradores da humanidade em ambos. E aí está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos – libertar-se a si mesmos e aos opressores. (…) Só o poder que nasça da debilidade dos oprimidos será suficientemente forte para libertar a ambos.”.
Encontro total conforto no que afirma Boaventura de Sousa Santos em Descolonizar:
Descolonizar o bicentenário é partir de dois pressupostos. O primeiro é que o colonialismo não é uma condição do passado, é uma condição do presente. O colonialismo não terminou com a independência do Brasil; terminou apenas um tipo específico de colonialismo – o colonialismo histórico, de ocupação estrangeira. Com a independência, o colonialismo metamorfoseou-se e continuou sob outras formas, quer sob a forma do colonialismo interno, quer sob a forma de neocolonialismo por parte do ex-colonizador histórico. Ao nível mais profundo e resistente, o colonialismo é toda a degradação ontológica de um grupo humano por parte de outro: um dado grupo humano arriga-se o poder de impunemente considerar outro grupo humano como naturalmente inferior, quase sempre em função da pigmentação da pele (grupo racializado). Por isso a ferida colonial, longe de estar sarada, sangra e dói no quotidiano de muitos corpos e almas. O segundo pressuposto é que o colonialismo é uma cocriação de colonizadores e colonizados. Feito de conflitos e cumplicidades, de violências e convivências, de aprendizagens e desaprendizagens recíprocas, por mais desiguais que as relações tenham sido. E como os criadores são também criaturas, o colonialismo moldou tanto os colonizadores como os colonizados. Isso significa que não é possível descolonizar sem descolonizar simultaneamente o colonizador e o colonizado, duas descolonizações recíprocas que, no entanto, envolvem tarefas muito distintas, tanto no plano simbólico-cultural como no plano das sociabilidades das formas de ser e de saber e no plano da economia política.
Ecoa: De onde vem a ideia de que Brasil e Portugal são países irmãos? Boaventura: Os colonos que se beneficiaram da colonização e aqueles que assumiram a independência para o seu próprio benefício foram irmãos numa empresa de exploração, de submissão, de eliminação dos povos indígenas, dos povos quilombolas, da injustiça toda que o colonialismo gerou. Brasil e Portugal são irmãos por uma causa que não é bonita, e deviam fazer um exame de consciência: que irmandade é esta? Foi essa irmandade que tornou as sociedades excludentes. Até os colonizadores poderiam ser melhores se não tivessem sido eles próprios dominados pelo colonialismo, que criou esta ideia de ver o outro apenas pela riqueza, não conhecer a diversidade, nem ter qualquer interesse cultural, de, sobretudo, estar sempre na busca daquilo que possa roubar, extrair dele.
Conforme a nota de edição, uma ação que o Autor tributa “à iniciativa e o incitamento de duas maravilhosas editoras, a Rejane Dias (Autêntica) e a Ivana Jinkings (Boitempo) que souberam transformar este pequeno livro num inovador projeto editorial colaborativo”, a obra tem o intuito de uma leitura reversa que não se esgarce, enquanto registro, no meramente celebratório de uma efeméride.
Com efeito, “no ano do bicentenário da Independência do Brasil, o sociólogo Boaventura de Sousa Santos apresenta um conjunto de reflexões e tarefas para a “descolonização” real e material do Brasil. Descolonizar: abrindo a história do presente representa, para o escritor português, “um esforço no sentido de clarificar as convergências e divergências entre diferentes correntes que se reclamam de um pensamento pós-colonial”. “Um projeto tão urgente como infinito”, completa o autor no prefácio. Ao longo do século XX, os movimentos de libertação contra o colonialismo europeu e as lutas sociais contra o racismo conduziram à enorme expansão de estudos interdisciplinares pós-coloniais/descoloniais, que resultou em uma multiplicidade labiríntica de designações. Na primeira parte dessa obra Boaventura apresenta as diferenças teóricas entre essas denominações e segue com a apresentação de tarefas primordiais para o Brasil, assumidas por diferentes grupos sociais. Destaque para o fim da expropriação de terras indígenas, reforma agrária e trabalho com direitos, fim do sexismo enquanto degradação ontológica gêmea do racismo e mudança da condição de vítima dos grupos marginalizados à de resistente, e da condição de resistente à condição de protagonista da sua história. O segundo capítulo analisa as teses apresentadas para questionar a narrativa hegemônica e imaginar outros possíveis caminhos, enquanto a terceira parte – “A ferida, a luta e a cura” – aponta as dificuldades nas reparações e os danos quase permanentes da injustiça histórica e persistente de nossa era. No quarto capítulo, intitulado “Ao encontro de outros universos culturais”, o sociólogo identifica os caminhos reais e materiais para a libertação da opressão e dominação colonial e pós-colonial. Embora o passado seja o dos vencedores, existe um passado-presente, o daqueles para quem a luta continua e para os quais existem ainda muitas possibilidades de resistência”.
Como anotam Lilia M. Schwarcz e Heloisa M. Starling, em seu monumental Brasil: uma Biografia (Companhia das Letras, 2015), lembrando que “história não é conta de somar”, a cultura como afinal, “o que faz brasil, Brasil ou do Brazil, Brasil”, isto é, como nos inventamos, para elas, “um processo em que o Brasil, desde que inventou para si um sentido próprio e autônomo como nação, no qual a história do país vem se afirmando, como uma longa narrativa de lutas, violência, reivindicação de autonomia e igualdade, busca por direitos e construção da cidadania”.
Basta ver Querelas do Brasil, canção de Aldir Blanc e Maurício Tapajós:
Voltemos, pois, aos temas por propostos entre outros, por Sergio Buarque, Raymundo Faoro, Victor Nunes Leal, Darcy Ribeiro, José Murilo de Carvalho (Os Bestializados: Há Povo no Brasil?), para aferir esses fatores que desafiam a restruturação da cultura democrática, localizando os obstáculos, no plano da cultura: colonialismo e autoritarismo e todos os seus paroxismos (coronelismo, clientelismo, prebendismo, cunhadismo, filhotismo, nepotismo, milicianismo); no pano paradigmático, o positivismo, como limite epistemológico e como ideologia, que no plano do jurídico (cultura legalista), inibe a internalização no direito nacional posto das conquistas internacionais dos direitos humanos (minimamente inscritos nos tratados e nas convenções), enquanto não se dissolvam as falsas noções que a ideologia traz para o ensino e para a aplicação do Direito e o fascismo (Barthes) imponha à língua, inviabilizando, produzindo ausências e contendo emergências (Boaventura de Sousa Santos), que propiciem o livrar-se do favor, até que a cidadania ativa instaure uma verdadeira cultura de direitos (Victor Nunes Leal, Marilena Chauí).
m efeito, abri minha exposição, confiro aqui as minhas notas, citando uma passagem de um livrinho de Marilena Chauí, editado pela Perseu Abramo, em 2000 –Brasil. Mito Fundador e Sociedade Autoritária. Nesse erudito estudo, preparado para marcar o simbólico dos 500 anos do descobrimento, a notável professora da USP, designa os muitos signos ideológicos, suas fontes, as metáforas e apropriações narrativas sobre “o processo histórico de invenção da nação que nos permite compreender um fenômeno significativo, no Brasil, qual seja, a passagem da ideia de ‘caráter nacional’ para a de ‘identidade nacional’, essa tentação totalizante, de designar algo pleno e completo, seja essa plenitude positiva (caso de Afonso Celso, Gilberto Freyre ou Cassiano Ricardo) ou negativa (Silvio Romero, Manoel Bonfim, Paulo Prado), para louvar ou para depreciar isso que seriam os traços coerentes, fechados e sem lacunas do que nos constitui como natureza humana ou cultura determinadas.
Conservando as marcas da sociedade colonial escravista, ou aquilo que alguns estudiosos designam como ‘cultura senhorial’, a sociedade brasileira é marcada pela estrutura hierárquica do espaço social que determina a forma de uma sociedade fortemente verticalizada em todos os seus aspectos: nela, as relações sociais e intersubjetivas são sempre realizadas como relações entre um superior, que manda, e um inferior, que obedece. As diferenças e assimetrias são sempre transformadas em desigualdades que reforçam a relação mando-obediência. O outro jamais é reconhecido como sujeito nem como sujeito de direitos, jamais é reconhecido como subjetividadse nem como alteridade. As relações entre os que se julgam iguais são de ‘parentesco’, isto é, de cumplicidade ou de compadrio; e entre os que são vistos como desiguais o relacionamento assume a forma do favor, da clientela, da tutela ou da cooptação. Enfim, quando a desigualdade é muito marcada, a relação social assume a forma nua da opressão física ou psíquica. A divisão social das classes é naturalizada por um conjunto de práticas que ocultam a determinação histórica ou material da exploração, da discriminação e da dominação, e que, imaginariamente, estruturam a sociedade sob o signo da nação uma e indivisa, sobreposta como um manto protetor que recobre as divisões reais que a constitui.
Só assim, numa cultura de direitos como correspondência a uma cultura democrática, é que se poderá entender o Direito como modelo de legítima organização social da liberdade, base e projeção paras os estudos e pesquisas que constituem a fortuna crítica de O Direito Achado na Rua? Um processo que leve a perceber, conforme indica Roberto Lyra Filho, que o Direito se faz no processo histórico de libertação enquanto desvenda precisamente os impedimentos da liberdade não-lesiva aos demais. Nasce na rua, no clamor dos espoliados e oprimidos e sua filtragem nas normas costumeiras e legais tanto pode gerar produtos autênticos (isto é, atendendo ao ponto atual mais avançado de conscientização dos melhores padrões de liberdade em convivência) quanto produtos falsificados (isto é, a negação do Direito do próprio veículo de sua efetivação, que assim se torna um organismo canceroso, como as leis que ainda por aí representam a chancela da iniquidade, a pretexto de consagração do Direito) [ARAUJO, Doreodó (Org). Desordem e Processo – Estudos Jurídicos em Homenagem a Roberto Lyra Filho. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1986].
Boaventura de Sousa Santos já ensaiara essa percepção do corte abissal no pensamento ocidental, erigido num sistema de distinções visíveis e invisíveis, em que as invisíveis constituem o fundamento das visíveis, aludindo então à necessidade de descolonizar o Ocidente num movimento teórico-político para além dessa clivagem estabelecida por linhas radicais que dividem a realidade social em dois universos, o universo deste ‘lado da linha’ e o universo do ‘outro lado da linha’ (cf. Para descolonizar Occidente. Más allá del pensamento abismal. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales – CLACSO; Prometeo Libros, 2010).
Nesse estudo antecedente, no qual aplica categorias analíticas presentes no contexto de sua – notadamente ausências e emergências – designadas pleo movimento contraditório do social, permite uma leitura mais otimista dos direitos humanos para, em perspectiva intercultural, operar versões culturais estreitas e amplas aptas a colmatar completudes e incompletudes, igualdades e diferenças que possibilitem o trânsito social sobre o abissal e a passagem da exclusão à emancipação.
Em Descolonizar, não é que desconsidere os direitos humanos como mediação, mas é forte o seu cuidado, pensando “as lutas contra a dominação”, para o necessário discernimento desenvolvido nas ações coletivas que transformam essas mediações em alternativas de justiça cognitiva para constituir oportunidades de emancipação que dêem conteúdo eficaz a mecanismos do estado de direito, da democracia e dos direitos humanos para que não se contrafaçam em artificialismos enganosos que esvaziem “alternativas positivas geradas por um pensamento alternativo de alternativas e todas as possibilidades epistemológicas, teóricas e metodológicas aptas a realizar a tarefa política de superar a dominação capitalista, colonialista e patriarcal”.
Por isso que vale ler com redobrada atenção o capítulo Teses sobre a descolonziação da história. Eu já o havia feito quando seu texto circulou em separata, em publicação colaborativa da CLACSO e do CES (De Sousa Santos, Boaventura. Tesís sobre la descolonización de la historia. 1ª ed. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: CLACSO; Coimbra: Centro de Estudos Sociais – CES, 2022). Integrado ao livro o texto ganha novo sentido porque a tarefa da descolonização da história, que deve ser levada a cabo pelos órfãos inconformistas das gerações inaugurais, tal como caracteriza, vai contribuir, entre outras potencialidades, a subtrair as concepções hegemônicas de direitos humanos muitas vezes implementadas como imposições imperiais, para serem usadas como ferramentas contra-hegemônicas de resistência à opressão.
E é nesse processo, com temporalidades demarcadas pelas experiências de lutas por emancipação que se vai recortar a historicidade das emergências, na continuidade irrupitiva da experiência de humanização:
A história das emergências procede reconstruindo a totalidade dos corpos, as comunidades, os sustentos, as lutas, as resistências, os modos de saber e os modos de ser que a história dominante desfigurou, amputou, silenciou ou produziu como ausentes. Consiste em confrontar cada uma das monoculturas que presidem a desespecificação, para substitui-las por ecologias. As ecologias são os mecanismos de interação mutualmente enriquecedora e autotransformadora entre distintos componentes de realidades complexas, quer se tratem de realidades humanas ou não humanas.
Um processo, afinal, diz Boaventura de Sousa Santos, cujo “objetivo é interromper a história dominante e irromper como formas de inovação cognitiva e criatividade” num movimento que, “juntas, mostram que não é possível escrever a história da libertação sem libertar a história”.
Trata-se, ele propõe, de procurar tamponar o que se abriu como ferida colonial, que decorre de uma articulação específica entre capitalismo, colonialismo e patriarcado, numa extensão e intensidade que obriga equivalente intenso e extenso de luta por cura. Um quadro diz Boaventura, que “mostra a dimensão das tarefas necessárias para inverter o movimento conservador dos ciclos e, sobretudo para converter os ciclos em espirais em que vão se consolidando práticas de vida livre, justa, digna para grupos populacionais cada vez mais vastos”.
O livro é arrematado com um capítulo ordenado entre impulsos contraditórios entre o apocalíptico e o profético gerando bifurcações para desfasamentos e conflitos tão potencialmente destrutivos quanto potencialmente enriquecedores num amálgama de encontros, desencontros e convergências. Num contexto de transformações recíprocas diz Boaventura:
Sem perder de vista a existência de opressores e oprimidos, perpetradores e vítimas, o gesto de identificar, confrontar e tentar sanar, na medida do possível, a ferida colonial em todo o seu enorme tamanho implica um certo tipo de movimentos recíprocos. Sem estes, perder-se-á a possibilidade da partilha e do encontro entre universos culturais transitando em direções opostas no mesmo espaço-tempo.
Volto a minha participação no XXIII Congresso Internacional de Humanidades (convênio entre o Instituto de Letras da UnB e a Faculdade de História, Geografía e Letras da UMCE (Universidad Metropolitana de Ciencias de la Educación) do Chile .PODER, CONFLITO E CONSTRUÇÃO CULTURAL NOS ESPAÇOS LATINO-AMERICANOS e nele a minha conferência sobre Latinoamericanidade, Lugares Políticos, Reencontro de Humanidades, repondo neste Lido para Você sobre esse Descolonizar proposto por Boaventura de Sousa Santos, a mesma indagação.
Apesar das diferenças de percurso para nos constituirmos um espaço comum latinoamericano social e político, qual a história comum que forja a comunidade de culturas e a comunidade de afetos que somos ou que podemos ser e na medida em que nos possamos constituir também como povos que se podem conceber como um destino compartilhado?
Temos sim, os povos que se expressam majoritariamente em línguas muito próximas, notadamente a espanhola e a portuguesa, e se somos cada um povo só o somos povos com vínculos comuns porque temos uma história comum que nos forja enquanto comunidade de culturas e comunidade de afetos, e que nos amalgama a partir de algum momento em nossas próprias histórias.
Mas, se temos uma história desde aí comum, o que temos de comum em nossa origem e em nossos destinos?
Ao meu perceber, o que há de comum entre nós, desde um momento objetivo de encontro e de qualquer possibilidade de um destino também comum, é o impacto dramático do colonialismo que se impôs sobre nossas identidades e as projeções decorrentes dessa experiência em nossa atualidade pós-colonial afetada econômica e politicamente pelas injunções do ultra-neoliberalismo e pelos desafios de toda ordem como exigências de libertação e de emancipação num processo de ação decolonial.
Sob a perspectiva da condição ultra-neoliberal, sigo pensando que para as classes dominantes, para as multinacionais e para o seu estado, para as oligarquias que ela fomenta, pouco importa que milhões de pessoas morram de fome e de doenças provocadas pela fome. O que importa, num quadro como este, é acrescentar mais uns quantos privilegiados a este núcleo de elite, que constitui o que entre nós, nos seus estudos sobre o Povo Brasileiro, Darcy Ribeiro denominou de engenho de moer gentes, na sua voragem de contínua concentração dos rendimentos, cada vez mais acentuada e desigual.
A exclusão social crescente é a outra face deste tipo de processo econômico, maliciosamente chamado de desenvolvimento, mas que é um processo perverso ou maligno. Porque a exclusão social é a sua consequência mais dramática, que gera os segmentos descartáveis segundo uma lógica de indiferença, que o MST entre nós qualifica de Brasil rejeitado. Falando de exploradores e explorados, há que levar em conta que se os explorados estavam dentro do sistema (sem explorados não pode haver exploradores), os excluídos estão, por definição, fora do sistema, são inexistentes, descartáveis conforme os tem denominado o Papa Francisco, ao avaliar as dimensões catastróficas desse processo globalizado.
Todos sabemos, porém, que as mudanças necessárias não acontecem só porque nós acreditamos que é possível um mundo melhor. Essas mudanças hão-de verificar-se como resultado das leis de movimento das sociedades humanas, se movidas pela consciência de que há culturalmente um direito à utopia mesmo que na forma de direito a sonhar.
A aproximação mediada pela economia política e pela filosofia, e mais propriamente por teorias da justiça ou instigações teológicas, segue uma linha civilizatória que mais se afasta das opções que mercantilizam a vida, enquanto se orienta para projeções que garantam o direito à vida plena, de homens e mulheres de carne e osso sim, porque ideologicamente o nosso percurso colonial separou seres humanos, para distinguir os que se inserem no contrato social os que ficam fora dele, os selvagens, os bestializados, os escravizados, os diminuídos, os segregados, os sobrantes “civilizatórios” todos alienados do humano.
Tem razão Boaventura em buscar abrir a história, sobretudo a história do presente, decolonizando-a, para tamponar a ferida colonial e lutar para a sua cura.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
Instabilidade presidencial e destituição abusiva: uma análise do
Instabilidade presidencial e destituição abusiva: uma análise do julgamento por crime de responsabilidade de Dilma Rousseff
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Instabilidade presidencial e destituição abusiva: uma análise do julgamento por crime de responsabilidade de Dilma Rousseff / Magnus Henry da Silva Marques. Tese (Doutorado – Doutorado em Direito) — Universidade de Brasília, 224 p.
Conclui a leitura desta tese duplamente inédita. Primeiro, tal como indica o seu título, o constituir-se um bem posto estudo acadêmico – há muitos de natureza mais política, na linha da denúncia, que estuda a violência de interrupção de um mandato presidencial com as características do que foi exercitado pela Presidenta Dilma Roussef; há obras com a extensão generalizadora desse procedimento, forte no substrato mais atento que é a crítica ao chamado lawfare; há até filmes, alguns excepcionais, entre eles o assinado com a direção da querida amiga Guta Ramos – que mergulha fundo no exame histórico-político do sistema institucional e do constitucionalismo para categorizar o que o autor designa como um “giro institucional que transforma o impeachment em um mecanismo para superar crise entre poderes [que] se apresenta como uma forma de o presidencialismo da região (América Latina) apresentar elementos de parlamentarismo [e se funcionalizar] como um instrumento encontrado pela ordem político-constitucional dos países da região para assegurar a continuidade do regime democrático”.
Perante uma qualificada Banca Examinadora, constituída sob a presidência do Orientador Professor Alexandre Bernardino Costa, os Professores Talita Tatiana Dias Rampin e Menelick de Carvalho Netto, da Universidade de Brasília; Professor David Sánchez Rúbio, da Universidade de Sevilha e Professora Juliana Neuenschwander Magalhães, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, submeteram a prova o autor, interpelando-o sobre todos os fundamentos.
A tese, conforme o resumo:
Estuda o fenômeno da instabilidade política na América Latina e seus impactos para as ordens social e constitucional da região. Identifica critérios para reconhecer o uso abusivo das ferramentas constitucionais de destituição presidencial. Revisa a literatura sobre o presidencialismo na América Latina e sobre o fenômeno da instabilidade política na região para entender como as quedas presidenciais têm ocorrido desde a onda de democratização da década de 1980 e para verificar se a literatura sobre o tema tem identificado o uso abusivo da destituição presidencial. Por meio da teoria da dependência e das formulações de Florestan Fernandes sobre o Estado existente no capitalismo dependente, avalia os fatores não institucionais para a permanência da instabilidade política após a onda de democratização na América Latina na década de 1990. Identifica as balizas normativas dos mecanismos de impeachment para verificar a compatibilidade entre elas e o uso desse instituto como substituto aos mecanismos ordinários de sucessão presidencial. Analisa as decisões do Sistema Interamericano de Proteção em Direitos Humanos sobre destituição de autoridades civis de seus cargos por algum procedimento previsto na legislação nacional e que avaliam a imposição de pena de inabilitação por uma conduta não prevista na legislação penal, encontrando, nos documentos, a orientação de que a decisão aplicadora de qualquer penalidade deve se submeter ao princípio da legalidade. Realiza um mapeamento de processo dos eventos que culminaram na deposição de Dilma Rousseff ocorrida em 2016 com o objetivo de encontrar critérios para identificação do uso abusivo do impeachment. Conclui que a utilização do impeachment como alternativa aos processos ordinários de sucessão presidencial engendra um movimento de veto à agenda de governo escolhida pela soberania popular.
Afinal, aprovada, ela se fez aceita pelos indiscutíveis méritos teórico-políticos desenvolvidos pelo Autor, o que bem se pode aquilatar pela leitura do trabalho. Bem documentado, apoiado em estudo de caso – o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff – e cuidada bibliografia, pensando eu que a Banca atuou bem em confirmar e homologar a qualidade da tese.
Há pouco referi-me ao que considero uma leitura que, embora correta na sua perspectiva interpretativa, como que “funcionaliza” a análise, enredando-se no procedimental que abstrai o político de suas injunções dramáticas ou problemáticas, e confina o real no formal, mesmo constitucional, para lembrar Gomes Canotilho quando adverte para o estiolamento que o formal provoca, subtraindo da análise, inclusive teórica, a vigilância do olhar interpretativo sobre a exigências do legítimo que só pode ser aferido a partir da sociedade e da justiça e não das narrativas que pretendam delas apropriar-se.
O Autor adota, a perder a conta da aplicação do vocábulo, a expressão ferramenta, quase a ponto de circunscrever o real que se manifesta nesse processo, numa instrumentalidade apta a “indicar a formação de novas maneiras de solucionar problemas [de] instabilidade presidencial [erigida assim] como uma espécie de evolução institucional encontrada pelo presidencialismo latino-americano para tornar o sistema de governo mais flexível e, principalmente, para livrar a região do espectro da intervenção militar”.
O Autor chega a aludir à criação de um “otimismo democrático associado à sensação de que a região latino-americana finalmente viveria um estável e longo período de integração, pelo funcionamento ordinário da política local, de setores sociais excluídos, de funcionamento das instituições e, principalmente, capaz de permitir que o povo latino-americano constituísse práticas institucionais e constitucionais adequadas à sua realidade”. E até arremata: “Foi o entusiasmo gerado por esse otimismo democrático que fez surgir uma literatura que identificou a consolidação de um Novo Constitucionalismo Latino-Americano”.
Felizmente logo se vê que o Autor não se deixa enredar nesse ilusionismo funcional e celebratório. Têm suficiente cautela epistemológica para “identificar os padrões presentes nas crises” e seus desfechos.
Assim que, para o Autor:
Não é suficiente para garantir a higidez do procedimento de destituição presidencial nem muito menos sua legitimidade a utilização de um mecanismo previsto na Constituição. A noção de constitucionalismo abusivo, trazida por David Landau (2013), assegura que isso seja é insuficiente ao revelar que os ataques à democracia se alteraram de tal modo que as ferramentas constitucionais passaram a ser usadas, de forma velada, como instrumentos de subjugação do regime democrático.
Em que pese não ser uma novidade na história das constituições o uso da legalidade para objetivos autoritários (BARROS, 2004; LANDAU, 2013; PEREIRA, 2010), o constitucionalismo abusivo descreve um fenômeno por meio do qual o uso autoritário das ferramentas constitucionais não cria um regime abertamente autocrático, mas sim um de característica híbrida. Isso dificulta que tanto a sua identificação como a criação de mecanismos que protejam a democracia desse ataque com natureza furtiva. Dessa forma, os mecanismos clássicos de proteção da democracia constitucional – como as cláusulas democráticas, presentes nos tratados internacionais; a noção de democracia militante; e as vedações às alterações no texto da constituição – não são capazes de dar resposta a esse tipo de ameaça ao regime democrático uma vez que foram forjados para identificar e reagir a ações cujo caráter antidemocrático é expresso.
O constitucionalismo abusivo é produto de um contexto no qual existe uma reduzida tolerância a regimes abertamente autoritários, o que tornou obsoletas as estratégias clássicas de golpes (LANDAU, 2013). Em um cenário como esse, as aspirações autocráticas precisaram forjar mecanismos de legalidade fluída capaz de tornar no máximo duvidoso o caráter democrático do regime criado por eles. Por isso, se tornou instrumental a utilização de dispositivos constitucionais para subjugar a democracia, afinal, com essa estratégia, é possível escamotear as intenções antidemocráticas. Uma realidade como essa impõe como agenda de pesquisa a todos os pesquisadores e pesquisadoras do Direito Constitucional essa nova modalidade de ameaça à democracia constitucional.
Esse uso contraditório do constitucionalismo para destruir as bases da democracia tem como principal meio as alterações na Constituição (LANDAU, 2013), mas não é restrito a elas. É comum que o constitucionalismo abusivo seja usado para subjugar a oposição, o que depõe para a possibilidade de uma ferramenta que pode significar um veto a uma agenda política de determinado grupo, como o impeachment, ser uma forma de materialização desse fenômeno. Por isso, é fundamental que seja investigado o uso abusivo da destituição presidencial e seus efeitos para ordem constitucional do país que a enfrenta.
Por isso considero valiosas as conclusões a que o Autor chega, quando transpõe a a dimensão ilusória do problema para além do epifenômeno do institucional exibido pela discursividade particularmente a legal. Indo fundo na interconexão entre realidade e representação, o Autor encontra nas implicações entre a economia (relações de dependência) e representações (legitimação das hegemonias), o esclarecimento teórico que arrima essas conclusões, valendo-se das teses de Rui Mauro Marini, meu antigo colega na UnB, cujo exílio o deslocou para a condição de um leitor que pensa em espanhol, porque ainda não se traduzem as suas elaborações para o português.
De fato, conclui o Autor:
Então, há incompatibilidade entre o uso do impeachment tal como defendido pela literatura pragmática (GINSBURG; HUQ; LANDAU, 2021; KLARMAN, 1999; PÉREZ-LIÑAN, 2018) e a sua natureza normativa e institucional. Por ser um procedimento normativamente orientado, é possível encontrar critérios importantes para identificação de seu uso abusivo: o descumprimento por parte da autoridade julgadora das hipóteses autorizativas da destituição presidencial ou a utilização de razões político-partidárias para a imposição de restrições significativas a direitos políticos da autoridade julgada e da comunidade política que escolheu uma agenda de governo para guiar a elaboração de políticas públicas.
A investigação sobre a relação entre dependência e instabilidade política, por seu turno, permitiu a identificação das razões não institucionais desse último fenômeno e, principalmente, a função social cumprida por ele nos países da América Latina. Com isso, foi possível verificar que o fenômeno da instabilidade, na ordem social formada a partir do capitalismo dependente, cumpre a função de assegurar a continuidade do padrão de acumulação baseado na superexploração do trabalho. Isso porque, para os setores beneficiados por ele, a instabilidade serve de mecanismo para deprimir a capacidade de pressão reivindicativa dos setores que sofrem com as iniquidades do modo de produção realmente existente na região projetadas também sobre o exercício do poder.
Como o modo de produção existente na América Latina precisa compensar a transferência de valor para o centro do capitalismo, para tanto, a acumulação de capital para as elites locais precisa contar com estratégias econômicas (como a constituição de um exército de reserva de trabalhadores para pressionar para baixo o rendimento do trabalho) e políticas (como exclusão de uma parcela significativa dos trabalhadores do processo de tomada de decisão e contenção de processos de ampliação de direitos). A ordem social do capitalismo dependente, portanto, conta com a redução da capacidade reivindicativa de setores que compõem a classe trabalhadora para poder se reproduzir. Para isso, há um processo de contenção de espaços abertos no poder para que a participação de movimentos políticos dos de baixo não coloquem em risco o padrão de acumulação de capital e as práticas que mantêm possível a reprodução dessa ordem social.
Então, nessa ordem social, a instabilidade política pode cumprir a função de disponibilizar às classes sociais beneficiadas por ela uma ferramenta de promover veto às escolhas feitas pela soberania popular quando elas coloquem em risco a sua reprodução e a continuidade do padrão de acumulação baseado na superexploração do trabalho. Como, no passado, havia uma certa tolerância com práticas abertamente ilegais por conta do contexto de guerra-fria, esse fenômeno foi executado por meio de golpes. Porém, com a obsolescência desse tipo de estratégia decorrente da baixa tolerância atual às rupturas democráticas abertas, houve um transformismo das práticas de ameaça às democracias para ações furtivas de esgotamento da ordem democrática. Diante disso, saber apenas se determinado ato foi praticado seguindo o rito previsto na Constituição importa pouco para identificar a ocorrência ou não do uso abusivo da destituição presidencial. Afinal, é possível que a América Latina tenha forjado um padrão de quedas presidenciais com aparência de legalidade para servir de equivalente funcional das práticas extralegais do passado. Então, é possível apontar outros critérios para identificação do uso abusivo do impeachment: se o uso das ferramentas constitucionais se deu de modo compatível com a natureza delas e com as balizas legais e constitucionais impostas a elas, bem como perquirir sobre a função social cumprida por ela.
Por seu turno, com o mapeamento do processo do impeachment de Dilma Rousseff, a tese confirmou a possibilidade de o uso dessa ferramenta como substituto aos meios ordinários de sucessão presidencial engendrar um processo de veto à agenda de governo escolhida pela soberania popular. Afinal, não ficaram apenas nas promessas as movimentações dos setores defensores do impeachment de pôr fim à estratégia de desenvolvimento adotada pelos governos do PT. Ao contrário, após a forte pressão para que o governo de Dilma adotasse a agenda social do neoliberalismo de encerrar a política de valorização real do salário-mínimo e de intervenção do Estado sobre a economia, com a sua destituição, a agenda de austeridade e a pulsão revisionista da Constituição foram efetivamente implantadas.
Por fim, foi possível identificar que o impeachment de Dilma Rousseff foi a manifestação de um conflito essencial às experiências constitucionais da América Latina entre a capacidade de a ordem constitucional regular efetivamente o exercício do poder e as exigências do modo de produção realmente existente na região pela manutenção do padrão de acumulação de capital a ele inerente. Sendo assim, a utilização do impeachment como uma alternativa não eleitoral para impor uma agenda política sem amparo na escolha da soberania popular não apresenta nenhuma novidade no conteúdo, tendo em vista que funciona como equivalente funcional das vias extralegais do passado ao: servir para impor veto à agenda escolhida pela soberania popular; ser instrumento para deprimir a capacidade reivindicativa dos setores da classe trabalhadora; suspender qualquer ameaça ao padrão de acumulação baseado na superexploração do trabalho.
Nessa linha de explicação, não há como escapar da designação clássica que a sofisticação das teses possa disfarçar. Vencida a “inércia da tradição”, é até possível o conservadorismo elaborar uma alternativa progressista (A Inércia da Tradição. José Nunes de Cerqueira Neto. Brasília: Colenda, 2022). Ou então, tudo se resolve com o Golpe. Chamo a atenção para o livro DEMOCRACIA: DA CRISE À RUPTURA. Jogos de Armar: Reflexões para a Ação. Roberto Bueno (Organizador). São Paulo: Editora Max Limonad, 2017, 1131 p.
Presentei a obra aqui neste espaço da Coluna Lido para Você (http://estadodedireito.com.br/democracia-da-crise-a-ruptura/). O livro, eu disse, uma obra alentada, com suas 1131 páginas, média dos volumes organizados pelo Professor Roberto Bueno, da Universidade Federal de Uberlândia que concluiu sua edição quando se encontrava em programa de cooperação técnica na Universidade de Brasília, tem continuidade ainda na edição publicada em 2018, pela mesma Editora Max Limonad, o professor Roberto Bueno publicou outro volume também muito denso, 641 páginas, com o título Democracia Sequestrada. Oligarquia transnacional, pós-neoliberalismo e mídia.
No livro de 2018, a finalidade é “a análise e a exposição pública de uma dura, inflexível, cruel e universal forma de poder e domínio aqui classificada como oligárquica-pós-neoliberal (e) seu exitoso desiderato (é) o de sequestrar a democracia de suas raízes sobreano-populares, e para isto (lançar) mão de instrumentos de domínio midiático-judicial-parlamentares articulados pela esfera financista oligárquico transacional”.
Estudioso do pensamento autoritário, que inclui referências teórico-doutrinárias, engajadas em projetos políticos de traços despóticos, desde Carl Schmitt, no contexto filosófico a partir de sua contribuição ao nacional-socialismo alemão; a Francisco Campos, que serviu à ordem ditatorial brasileira em seus diferentes momentos no Estado Novo e na Ditadura civil-militar de 1964-1985, o professor Bueno se tornou um voz acadêmico-militante contra o golpe parlamentar-judicial-midiático que se estabeleceu no Brasil desde 2016.
Convidado a participar da obra, contribui com um texto afinado com seu projeto, mas que se originou de provocação anterior que me havia sido feita em outro programa editorial. Denominei meu artigo de Estado Democrático da Direita.
Nele, parto de uma observação do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos se presta bem para abrir este texto (1993: 73). Na sua posição de enfrentamento ao modelo capitalista de constituição da sociedade, ele afirma que não combate o capitalismo porque ele é democrático. Para ele o capitalismo até logra cumprir as promessas democráticas que faz. Instituir, por exemplo, um estado de direito, com arcabouço legislativo, incluindo a sua principal expressão, qual seja, a de institucionalizar uma Constituição e nela, estabelecer o sistema de separação de poderes e a proteção aos direitos humanos (conforme a designação contida na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, “não será constituição a que não assegure a separação dos poderes e a proteção aos direitos do homem”).
Para Boaventura, entretanto, o capitalismo, não pode ser plenamente democrático, porque a sua promessa carrega um vazio de possibilidade, conseqüente ao seu princípio ativo, a acumulação egoísta tendente a uma distribuição excludente e a sua representação ideológica, expressa no formalismo jurídico, que tudo promete formalmente, mas que pouco concretiza no plano material.
Para lembrar Ferdinand de Lassale (o antigo correligionário de Marx, depois bandeado para a articulação organizada por Bismark, para constituir o estado burguês alemão) e seu conceito de Constituição, se essa não realiza a expressão material dos “fatores de poder” que são a sua essência material, ela será não mais que uma forma jurídica e, em última análise, uma “mera folha de papel”.
Digo tudo isso para lembrar, no Brasil, o alcance desse sentido retórico da institucionalização pelo jurídico, pondo em relevo o fato de que todas as experiências autoritárias de nossa formação social, tomaram forma jurídica. Todo o regime de 1964, com a ditadura que se instalou no País, se representou com forma jurídica, inclusive constitucional, mantendo a Constituição de 1946, promulgando a sua própria de 1967 e afeiçoando-a ao seu recrudescimento autoritário com a emenda plena de 1969 (que muitos denominam de Constituição), todas circunscritas a um sistema normativo sobre determinante, denominado Ato Institucional (como expressão “constituinte” do poder “revolucionário”, com todas as aspas possíveis).
Anote-se o quanto, nessa medida, o “sistema” incorporou a expressão formal do Direito, com a linguagem atualizada das garantias fundamentais, indicando em seu texto a vigência do habeas corpus e da salvaguarda de exame judicial dos atos administrativos, enquanto no cotidiano de governança, se censurava, se torturava e se praticavam assassinatos políticos, sob a reserva de resguardo à “segurança nacional”, a partir de ações interditadas ao alcance de habeas corpus ou à apreciação de sua própria legalidade pelo Poder Judiciário (Cf meu livro com ANTONIO ESCRIVÃO FILHO Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos. Belo Horizonre: Editora D’Plácido 2016).
Lembro a Magnus. É nesse passo que o Estado de Direito Democrático se converte em Estado Democrático de Direita. Esse passo se dá na medida em que a convergência entre os interesses de poder e de acumulação capitalista, já não assimila sequer o discurso democrático, mesmo retórico, como por exemplo, o que se prestou a legitimar a sua emergência hegemônica para se afirmar como expressão dominante (a burguesia patrimonialista francesa afirmando os direitos do homem para arrebatar à aristocracia seus bens dominiais e seu poder político). Ou, no golpe de Luiz Bonaparte (ironicamente chamado por Marx de o 18 Brumário de Luiz Bonaparte), escancarando situações em que a sua própria legalidade se torna um estorvo: “A legalidade nos sufoca”, proclamava Odilon Barrot, o chefe de governo contra a legalidade “dele”, para por em prática a política reacionária de restrição às liberdades de imprensa e de reunião e de dissolução dos “clubes” e outras formas de organização da oposição política à nova ordem instalada com o golpe (MARX, 1974: passim), configurando sempre A História de um Crime, como o classificou Victor Hugo.
Ou ainda, o que assistimos agora em nosso próprio País, tal como registra a Tese, com a Constituição arguida contra a própria Constituição, para dela extrair-se, com o uso meramente formal de um enunciado, vale dizer, a previsão de aplicação de procedimento de afastamento do Presidente ou da Presidenta da República, uma retórica mobilizadora de engajamentos (sociais, políticos, jurídicos), delirantes de seu necessário fundamento material, a precisa tipificação de conduta que assim possa ser configurada como crime que justifique o afastamento (impeachment). Por isso, a configuração desse processo como um golpe, sem armas, sem quartelada, mas uma ruptura com a base de legitimidade do sistema constitucional-jurídico, um atentado à democracia, uma forma de traduzir, sem nenhuma sutileza, o Estado Democrático da Direita, que se vale da lei para esvaziá-la de suas melhores promessas.
Aqui entra em causa um outro modo, esse mais sutil, de identificar o Estado Democrático da Direita. Refiro-me a sua disponibilidade para usurpar, apropriar-se e investir-se das representações e das narrativas simbólicas das conquistas históricas e jurídicas conferidas nas lutas travadas pelos sujeitos individuais e coletivos por reconhecimento da dignidade humana, da cidadania e dos direitos.
É nesse ponto que ao Constitucionalismo Latino-Americano procuramos agregar uma nota de qualificação, falando de Constitucionalismo Achado na Rua. Com pesquisadores do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua (Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq), organizamos o livro O Direito Achado na Rua: questões Emergentes, revisitações e travessias (SOUSA JUNIOR, 2021), um capítulo é dedicado ao tema: Constitucionalismo Achado na Rua, com os temas A Democracia Constitucional e a Proposta para um Constitucionalismo Inclusivo no Brasil, de Bárbara R. R. C. de Oliveira, Jean Patrício da Silva, João Paulo Santos Araújo, Samuel Barbosa dos Santos e Betuel Virgílio Mvumbi; e O Constitucionalismo Achado na Rua, os Sujeitos Coletivos Instituintes de Direito e o Caso APIB na ADPF nº 709, de Marconi Moura de Lima Barum, Mauro Almeida Noleto, Priscila Kavamura Guimarães de Moura e Renan Sales de Meira.
É sempre estimulante poder construir com os compromissos de engajamento, sobretudo epistemológico, escoras teóricas para anaçar nessas emergências, revisitações e travessias, em arcos de cooperação não apenas orgânicos – os Grupos de Pesquisa – mas nos encontros conjunturais com aliados acadêmicos nos eventos, disciplinas e projetos que nossos coletivos de ensino, extensão e pesquisa proporcionam.
É nesse ambiente que podemos localizar abordagens instigantes que acolhem os achados desse processo, assimilando-os as suas estruturas de análise e de aplicação, e prorrogando seu alcance heurístico para novos níveis de discernimento. Assim, nesse recorte aqui realizado, o texto de Antonio Carlos Bigonha (Subprocurador-Geral da República, atua na 2a. Seção do Superior Tribunal de Justiça, proferindo pareceres em Direito Privado. Foi presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (2007/2011) e coordenador da 6a. Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais da PGR (2019/2021), além de destacado compositor, pianista e mestre em Música pela Universidade de Brasília. O texto, originalmente publicado na página do IREE, Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa, foi reproduzido pelo Expresso 61 (https://expresso61.com.br/2022/02/17/darcy-ribeiro-a-unb-e-o-constitucionalismo-achado-na-rua/), com o título Darcy Ribeiro, a UnB e o constitucionalismo achado na rua:
A interpretação constitucional que setores retrógrados da magistratura e do Ministério Público adotaram para o exercício arbitrário de suas prerrogativas e atribuições, ao longo dos últimos 30 anos, faria corar monges de mármore, para usar uma expressão muito referida pelo ministro Gilmar Mendes, em sessões de julgamento no STF. Desconheço em que fonte foram beber seu fundamento teórico, fruto talvez de uma corrupção semântica, resultado da leitura equivocada da matriz germânica ou estadunidense. Neste contexto, o Direito Achado na Rua afirma-se como um poderoso vetor hermenêutico, uma abertura capaz de barrar os exageros do neoconstitucionalismo e oferecer novas epistemologias que conduzam à interpretação da Constituição e das leis do País para a afirmação e o fortalecimento dos direitos humanos, segundo uma agenda comprometida com os interesses do nosso povo. E ouso supor que Darcy Ribeiro e Machado Neto subscreveriam, novamente, esta virada hermenêutica.
Em comunicação oral realizada no GT 12- Constitucionalismo achado na rua, por ocasião do Seminário Internacional O Direito como Liberdade – 30 Anos do Projeto O Direito Achado na Rua, Menelick de Carvalho Netto e Felipe V. Capareli, com o título “O Direito Encontrado na Rua, a Luta por um Constitucionalismo Plural e Inclusivo, e a necessidade de enfrentar o risco autoritário de uma política simplista e privatizante. Visão dicotômica do Estado e do Direito” (Revista da Defensoria Pública do Distrito Federal (RDPDF, 2019, vol. 1, n. 2) – Dossiê Ordenamentos jurídicos, monismos e pluralismos: O Direito Achado na Rua e as possibilidades de práticas jurídicas emancipadoras), também extraem consequências dessa dimensão constitucional estabelecida na rua.
É com esse acumulado que chegamos ao Seminário Internacional O Direito como Liberdade: 30 Anos do Projeto O Direito Achado na Rua, realizado em Brasília, na UnB, em dezembro de 2019. No programa toda uma seção (Seção III) para o tema Pluralismo Jurídico e Constitucionalismo Achado na Rua. Esse material veio para o volume 10 da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade. Brasília: Editora UnB/Editora da OAB Nacional, 2021. Na seção podem ser conferidos os textos: Pluralismo Jurídico Comunitário-Participativo: processos de descolonização desde o Sul, de Antonio Carlos Wolkmer; A Contribuição do Direito Achado na Rua para um Constitucionalismo Democrático, de Menelick de Carvalho Netto; Constitucionalismo Achado na Rua em México: de los acuerdos de San Andrés al concejo indígena de gobierno, de Jesús Antonio de la Torre Rangel; O Direito à Alimentação como um Direito Humano Coletivo dos Povos Indígenas, de Raquel Z. Yrigoyen Farjado; e Constitucionalismo Achado na Rua: reflexões necessárias, de Gladstone Leonel Júnior, Pedro Brandão, Magnus Henry da Silva Marques (SOUSA JUNIOR, 2021). Obssrve-se que Magnus forma protagonismo autoral nessa vertente.
É importante “recordar que o constitucionalismo é permanente tentativa de se instaurar e se efetivar concretamente a exigência idealizante que inaugura uma modernidade no nível da organização de uma sociedade complexa, incapaz de lançar mão de fundamentos absolutos e que, por isso, só pode legitimar seu próprio sistema de direitos na medida em que os potenciais podem se reconhecer como coautores e autoras das normas que os regem. Ou seja, ou o direito é constitucionalmente achado na rua e nas ruas, e com as ruas, é construído e reconstruído de forma plural e inclusiva, ou, sem dúvida, tende-se a privatizar o próprio Estado, mediante a colonização do direito por uma lógica simplista binária de cunho plebiscitário e na da democrática, pois infensa a qualquer eficaz debate”.
Voltando ao constitucionalista português J. J. Gomes Canotilho, em sede de debate que envolve teorias de sociedade, teorias de justiça e teorias constitucionais, cuida-se de ter atenção à multiplicidade de sujeitos que se movem no debate constitucional contemporâneo que tende a abrir expectativas de diálogo político estruturado na linguagem do direito, gerando na expressão dele, “posições interpretativas da Constituição” que emergem desse processo e formam uma luta por posições constituintes, luta que continua depois de aprovada a constituição (CANOTILHO, J. J. Gomes. Cf. Entrevista que me concedeu: Pela Necessidade de o Sujeito de Direito se Aproximar dos ‘Sujeitos Densos’ da Vida Real. Constituição & Democracia. Brasília: Faculdade de Direito da UnB, n. 24, julho de 2008, p.12-13), luta travada pela disposição a ir para o meio da rua, pois “do outro lado da rua, o ‘direito achado na rua’ e, perante o sangue vivo que brota dos vasos normativos da realidade e a sedução de um direito outro, ao direito formal das constituições, códigos e leis, compreende-se que o discurso hermenêutico dos juristas mais não seja que um manto ocultador do insustentável peso do poder”.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Ru
Varrendo para cima do tapete: da invisibilidade social à regulamentação jurídica do trabalho na limpeza urbana
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Varrendo para cima do tapete: da invisibilidade social à regulamentação jurídica do trabalho na limpeza urbana. Helena Martins de Carvalho. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2022, 104 p.
Neste lançamento da D’Plácido, uma obra sensível, elaborada por uma intelectual dotada de alta “sensibilidade e absoluto rigor acadêmico, na identificação e estudo do fenômeno social que nos leva ao alheamento e indiferença quanto à sorte dos trabalhadores na coleta de lixo”, conforme está no Prefácio. Não que tenha sido uma opção metodológica da Autora, menos socióloga e mais jurista, mas o seu trabalho está encharcado da disposição sentipensante que o cientista social colombiano Orlando Fals Borda oferece como modo de engajar o conhecimento no movimento de emancipação de setores populares. Em Helena, não tanto pelo processo de pesquisa-ação participante para conferir empoderamento ao social (movimentos sociais, camponeses, comunitários, a ponto de se constituir uma modalidade sociológica de compreensão, característica das lutas sociais latino-americanas, mais transparece o sentido pedagógico de amorosidade que se volta para o encantar a educação, no caso, educação para a cidadania e os direitos.
Estratégia dos estudos de decolonialidade, que abriga pensadores como Fals Borda, a abordagem de Helena, ainda que intuitiva, a aproxima da atitude do corazonar que, de acordo com Patricio Guerrero Arias, refere a uma postura intelectual, acadêmica e política de luta decolonial a partir do corazonamiento do saber, do poder e do ser. Ou seja, a religação da afetividade com a racionalidade intelectual, uma postura de decolonialidade do saber, do sentir e do ser, mas também, uma descolonização da própria academia e sua racionalidade universalizante.
“VARRENDO PARA CIMA DO TAPETE”, conforme a descrição que traz a “orelha” do livro, “propõe uma análise das possíveis relações entre invisibilidade social e marginalização da proteção justrabalhista. Fruto da dissertação de mestrado da autora, a obra parte das condições e da organização do trabalho de coletores e varredores na limpeza urbana do Distrito Federal para situar o reconhecimento da existência desses sujeitos como pressuposto para a concretização do direito fundamental ao trabalho digno”.
Do que ali trouxe para anunciar o belo trabalho de Helena, até como sugestão para editores, destaco um trecho, sobre indicar a nota de singularidade do trabalho então apresentado.
Com efeito, já então apontava para o que considerava sensível, mobilizado e criterioso estudo desenvolvido pela Autora valida sobre qualquer fundamento a Dissertação que ela apresenta e que, como um estudo de caso, é única e como análise, exemplar. Não digo que seja uma lacuna, mas considero que enriqueceria muito o seu trabalho acrescentar às suas leituras o extraordinário Cidadania e Inclusão Social. Estudos em Homenagem à Professora Miracy Barbosa de Sousa Gustin (PEREIRA, Flávio Henrique Unes; DIAS, Maria Tereza Fonseca. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2008). Toda a obra é de interesse para a Dissertação e para sua futura publicação, mas são ainda valiosos por ampliarem o que ela já obteve de referências em leituras de fundo, os textos de Maurício Godinho Delgado – Direito do Trabalho e inclusão social: o desafio brasileiro (p. 495-510); de Gabriela Neves Delgado, sua orientadora – A constitucionalização dos direitos trabalhistas e os reflexos no mercado de trabalho, cujo fio condutor é a referência axiológica ao conceito de dignidade do ser humano e ao patamar civilizatório mínimo do direito ao trabalho digno (p. 145-154). E o precioso texto de Márcio Túlio Viana – Os não-lugares do Direito: uma pesquisa em classe com trabalhadores de rua (p. 367-376). Nesse texto, com riqueza de estilo e intensidade narrativa, o querido mestre faz o direito andar nas ruas para recuperar nas histórias de vida, os projetos frustrados, do gritador, dos malabaristas, da mulher do cabide, as filha dela, do engraxate. Tipos humanos aos quais se poderiam agregar os tigres e os lixeiros, que a Autora nos apresenta em sua Dissertação.
Em si, e em seu modo de apresentação, entendo que a Autora não só toma posição, como aponta desafios aos operadores do Direito e aos agentes políticos na direção de convocá-los a compromissos de aplicação e de interpretação do Direito do Trabalho, como arena de resistência ao processo de desdemocratização e de desconstitucionalização em curso.
E então grifava que, se se pudesse acrescentar questões para a Autora, eu diria, aliás, como questões que também me proponho. Estarão esses operadores e esses agentes à altura das expectativas civilizatórias que os desafiam, no plano constitucional e no plano convencional. A Corte Interamericana de Direitos Humanos em diversos julgados tem assentado a irrenunciabilidade e a reparabilidade do projeto de vida frusPlaPlaPltrado. Indiquei com Antonio Escrivão Filho, em nosso livro Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos (Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016), várias aplicações desse fundamento para orientar formas de reparação, reivindicáveis em sede de litígio estratégico em direitos humanos. Assim como recuperei formas de resistência e de intransponibilidade, mesmo no Supremo tribunal Federal em tempos de ditadura, para lembrar com Victor unes Leal a necessidade que tem a jusrisprudência, inclusive do STF, de andar nas ruas, para que a promessa do Direito não se torne vazia. Em voto célebre contra as interdições da ditadura ao exercício de greve, esse grande juiz afastou aplicação porque segundo definiu em voto “a lei não pode exigir do operário que ele seja herói ou soldado a serviço do patronato”.
Repito a questão: estarão os operadores e os agentes políticos à altura das expectativas civilizatórias que os desafiam, no plano constitucional e no plano convencional? Nessa quadra dramática de interpelação a um paradigma civilizatório, serão alcançados nos seus misteres para, com a tempestade que desaba sobre o mundo, limpar “a maquilhagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso «eu» sempre preocupado com a própria imagem; (e deixar) a descoberto, uma vez mais, aquela (abençoada) pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos”, como exorta o Papa Francisco em sua HOMILIA Adoração do Santíssimo e Bêncão Urbi et Orbi, pronunciada em seu exemplar distanciamento social na grande praça de São Pedro, totalmente vazia, nesse 27 de março de 2020?
Será o Direito, realmente Direito se, como exortou Francisco, não for “capaz de resgatar, valorizar e mostrar como as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns (habitualmente esquecidas), que não aparecem nas manchetes dos jornais e revistas, nem nas grandes passarelas do último espetáculo, mas que hoje estão, sem dúvida, a escrever os acontecimentos decisivos da nossa história: médicos, enfermeiros e enfermeiras, trabalhadores dos supermercados, pessoal da limpeza, curadores, transportadores, forças policiais, voluntários, sacerdotes, religiosas e muitos – mas muitos – outros que compreenderam que ninguém se salva sozinho”, e operar para realizar e ser instrumento por meio da eficácia horizontal dos direitos humanos nas relações justrabalhistas, conforme sustenta a Autora, em sua conclusão, e buscar (p. 144) “para além da pacificação social, (a) concretização dos ideais de igualdade material, de democracia e de justiça social, com a consolidação do valor trabalho (digno) ancorado na centralidade da pessoa humana e sua dignidade”?
Uma resposta já se apresenta de imediato, procedente daquela mesma fonte bi-centenária que expressamente inspirou a constituição do campo dos direitos sociais e do trabalho e a formação da OIT, a Rerum Novarum. Em Carta aos Movimentos Sociais no domingo de Páscoa (12/4) exortou o Papa Francisco: “Talvez seja a hora de pensar em um salário universal que reconheça e dignifique as tarefas nobres e insubstituíveis que vocês realizam; capaz de garantir e tornar realidade esse slogan tão humano e cristão: nenhum trabalhador sem direitos. Também gostaria de convidá-los a pensar no “depois”, porque esta tempestade vai acabar e suas sérias consequências já estão sendo sentidas. Vocês não são uns improvisados, têm a cultura, a metodologia, mas principalmente a sabedoria que é amassada com o fermento de sentir a dor do outro como sua. Quero que pensemos no projeto de desenvolvimento humano integral que ansiamos, focado no protagonismo dos Povos em toda a sua diversidade e no acesso universal aos três T que vocês defendem: terra e comida, teto e trabalho”.
No curso dessa primeira leitura juntei um Pós-Escrito de Helena Martins de Carvalho que ela agregou ao trabalho, após a Defesa da Dissertação:
O Professor brinda-nos com a seguinte provocação: “estarão os operadores e os agentes políticos à altura das expectativas civilizatórias que os desafiam, no plano constitucional e no plano convencional?
Conforme menciona a Professora Gabriela Neves Delgado, a marcha civilizatória é marcada por um movimento pendular de recuos e avanços permanentes, dinâmica que se irradia por todas as instituições, inclusive a Justiça do Trabalho.
Nesse contexto, a edição da Lei n.º 13.467/2017, denominada de “Lei da Reforma Trabalhista”, descortina um movimento de juízas e juízes dissidentes do eixo axiológico próprio que justificaria a existência de um direito material e processual do trabalho dissociado da matriz civilista.
Isso porque a flexibilização trabalhista consagrada pela Lei n.º 13.467/2017, cujo escopo é a ampliação irrestrita da autonomia privada para regular, inclusive, direitos trabalhistas indisponíveis, desconsidera a assimetria inerente às relações sociais entre capital e trabalho. Avilta, ainda, o papel central que a composição dessa desigualdade ocupa no desenvolvimento da sociedade e da economia, e que confere à Justiça do Trabalho seu caráter teleológico.
A aplicação literal da Lei n.º 13.467/2017, dissociada de critérios científicos de interpretação da norma a partir dos métodos lógico-racional, sistemático e teleológico, acaba por materializar uma atuação institucional da magistratura trabalhista na defesa dos interesses do capital, e não no reconhecimento da centralidade do valor trabalho no desenvolvimento da pessoa humana a nível individual e como ser social.
Nesse contexto, é preciso que as alterações legislativas promovidas pela ideologia neoliberal na regulamentação do mundo do trabalho sejam analisadas conforme o eixo civilizatório de proteção ao trabalho humano previsto no ordenamento constitucional e internacional.
No entanto, as expectativas civilizatórias que recaem sobre a magistratura trabalhista não se limitam a esse olhar para dentro do ordenamento jurídico sistematicamente considerado.
É preciso que juízas e juízes do trabalho andem nas ruas, a fim de compreenderem as peculiaridades inerentes às diversas dimensões de corporificação das relações sociais entre capital e trabalho.
Especificamente no que tange ao trabalho invisível, a Justiça do Trabalho vem promovendo esse olhar para fora e para o outro tanto em iniciativas a nível nacional como regional.
No ano de 2019, a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho (ENAMAT), sob direção do Ministro Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, incluiu a disciplina “Os magistrados e a invisibilidade social” no conteúdo programático dos 24º e 25º cursos de formação inicial de magistrados.
Na mesma linha de prestígio à formação humanista da magistratura trabalhista, os Tribunais Regionais do Trabalho da 1ª e 4ª Regiões implementaram projetos de vivência prática da invisibilidade social, por meio dos quais juízas e juízes experimentaram, por um dia, o cotidiano de trabalhadores marginalizados do reconhecimento social, tais como varredores na limpeza urbana.
Verifica-se, assim, que o movimento histórico de fluxos e contrafluxos de progressividade e conservadorismo reflete na atuação institucional da magistratura do trabalho que se, de um lado, adere ao projeto neoliberal de desmonte do valor trabalho, de outro, prestigia a concretização do direito fundamental ao trabalho digno a partir da formação humanista de juízas e juízes.
Na publicação do livro percebo que isso que foi colocado no post scriptum foi trazido para a obra, ainda que nos limites de inserção já que avançar nesses aspectos implicaria alterar a própria estrutura da publicação. De certo modo é o que diz Helena na Nota da Autora inscrita na abertura do livro, advertindo que “o abismo existente entre as condições de trabalho de coletores e varredores de lixo urbano precisa ser compreendido como o núcleo essencial do direito fundamental ao trabalho digno, entretanto, reconhecendo “a necessidade de desenvolver e aprofundar a pesquisa, tendo como ponto de partida a intensificação da precarização do trabalho com o lixo”.
Sobre os aspectos que me levavam a desconfiar da capacidade de resposta dos operadores de Direito, tenho que o prefácio trazido ao livro oferecido pelo Ministro Lelio Bentes Corrêa, que atrás já colhi um excerto, é uma resposta credível. Diz o Ministro:
Com franqueza, expõe as consequências nefastas de tal atitude, inclusive o seu caráter discriminatório, tendente a perpetuar uma situação de injustiça social, flagrantemente contrária aos princípios e direitos fundamentais em que alicerçada a nossa República.
Ao fim desse processo, encontramo-nos cara-a-cara com nossas consciências. Conhecemos o fenômeno, que ocorre diuturnamente à nossa frente, mas é escamoteado por ‘percepções pré-reflexivas que sustentam a invisibilidade social (…)’. Confrontados com as suas consequências nefastas, não podemos mais aplacar nossas consciências com o bálsamo fácil da ignorância. Desnudada a face crua da realidade de abandono e discriminação, somos necessariamente conduzidos a uma escolha: ou reconhecemos que, ainda que por omissão, nos tornamos parte de uma estrutura opressora e injusta, que milita ativamente contra valores fundamentais expressamente consagrados na Constituição da República (especialmente a dignidade humana e o valor social do trabalho e da livre iniciativa), ou saímos do imobilismo para a ação, a fim de restabelecer a coerência entre o(s) discurso(s) e a prática.
Não será vã essa tomada de consciência e essa convocação para uma hermenêutica operante que tire do seu conforto adjudicador um aplicador do direito e da justiça, imobilizado na ilusão de seu melhor mundo, como um Pangloss denunciado por Voltaire. Aqui, a chamada à consciência que não se omita e que se ponha na atitude de mediador para o cumprimento das promessas da Constituição de concretizar a dignidade humana no mundo do trabalho, é vocalizada por um Ministro do TST – Tribunal Superior do Trabalho, que acaba de ascender à sua Presidência.
Só por levar a afirmação dessa atitude, em se tratando de um operador instalado em lugar tão estratégico, vale fazer circular com muita intensidade, o livro de Helena Martins de Carvalho que ajuda a varrer para cima do tapete. Com sua disposição sentipensante, ela opera um tanto como o poeta, ao modo de pura inauguração de um outro universo (Manoel de Barros, O Livro das Pré-Coisas, in Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2010), instalado por um sujeito que se faz protagonista, já podendo varrer o lixo para cima do tapete, porque deixa de ser um nada, um invisível (de novo Manoel de Barros, (O Guardador de Águas, in Poesia Completa, cit.), assumindo já não ter o medo da lucidez.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
Cultura de Direitos & Cultura Democrática. Narrativas Críticas.
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Cultura de Direitos & Cultura Democrática. Narrativas Críticas. Organização Carol Proner, Gisele Ricobom, Manuel Eugenio Gândara Carballido/ Vários Autores/ Curadoria Maria José H. Coelho. Rio de Janeiro: Instituto Joaquín Herrera Flores América Latina, 2022, 116 p.
Nos dias 17, 18 e 19 de outubro o Instituto Joaquín Herrera Flores – América Latina realizou o Seminário Cultura de Direitos e Cultura Democrática, evento presencial e gratuito, no Teatro Casa Grande, Leblon, Rio de Janeiro. O objetivo foi discutir os elementos constitutivos do ethos da cultura democrática no Brasil, apresentando temas transversais como sistema de justiça, literatura e linguagem, história do direito, constitucionalismo, racismo estrutural, direito à cidade e aos territórios.
Conforme o programa do Seminário, seu terceiro dia foi dedicado ao lançamento do livro “Cultura de Direitos e Cultura democrática – Narrativas Críticas”, uma iniciativa do Instituto Joaquín Herrera Flores – América Latina que reúne textos e imagens acerca dos direitos humanos no Brasil e no Rio de Janeiro e que é o tema deste Lido para Você.
A apresentação do livro foi feita pela diretora do IJHF-AL Maria José Coelho, também curadora da obra, que abrilhantou o evento com um belíssimo discurso, algo próximo a seu texto na edição da Revista. Em seguida o professor Pedro Cláudio Cunca Bocayuva fez a palestra de encerramento, sobre “Desafios para uma cultura democrática”. Cunca também está presente na publicação com um texto eloquente Direitos Humanos na Transição Paradigmática: A multiplicação das Vozes. No Seminário, a palestra do professor do NEPP (Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos)-DH/UFRJ, cuidou de um balanço dos dias dos seminários, articulando os discursos dos expositores com a análise da conjuntura política brasileira, agudizada pelas eleições à Presidência da República, mais que um processo eleitoral, algo que acelera as injunções das tensões paradigmáticas. Foi de Cunca Bocayuva também a exposição “Arte e resistência”, com desenhos de sua autoria.
Voltando ao Seminário, os Organizadores tiveram o cuidado de convidar, como indutores do debate intelectuais e ativistas comprometidos em debater as verdadeiras causas da desigualdade que compromete a democracia e os direitos econômicos, sociais e culturais no país, conforme registra o Perograma do evento:
Seminário CULTURA DE DIREITOS E CULTURA DEMOCRÁTICA
DIA 17 de outubro.18h Será a Palestra de abertura – Cultura e Democracia será conferida por Jandira Feghali seguida de debate “Fatores que estruturam a construção do ethos democrático no Brasil” com a participação de Danieli Balbi, Juliana Neuenschwander ,Gisele Cittadino, Henrique Rodrigues Leroy, Vantuil Pereira. Moderação: Carol Proner.
DIA 18 de outubro.18h Teremos a conferência de José Geraldo de Sousa Junior e a participação de Lusmarina Garcia, Rosangela Cavallazzi e Margarida Lacombe no debate sobre os “Fatores que desafiam a restruturação da cultura democrática” com a moderação de Manuel Gándara Carballido19 de outubro, quarta-feira
DIA 19 de outubro.10h será lançado o livro “Cultura de Direitos e Cultura democrática- NARRATIVAS CRÍTICAS”, apresentado por Maria José Coelho e a palestra de encerramento “Desafios para uma cultura democrática”, com Cunca Bocayuva. Moderação: Gisele Ricobom. Ainda teremos a exposição: Arte e resistência, com trabalhos de Cunca Bocayuva.
O tema do Seminário, e da Revista, com a indução oferecida pelos participantes e pelo debate que se instalou, amplia e aprofunda uma linha de indagações muito característica da agenda do IHF. Assim, por exemplo, a bela obra, realizada conforme a mesma metodologia pelo Instituto em 2021 Cultura e Direitos Humanos, depois de Seminário Internacional promovido no Rio de Janeiro em conjunto com o Instituto Ensaio Aberto (2020).
Nesse livro, os textos, elaborados “por autores referenciais em suas áreas de conhecimento (Antonio Nóbrega, Alejandro Medici, Alexandre Bernardino Costa, Carol Proner, Gisele Ricobom, Joaquín Herrera Flores, Juliana Neuenschwander Magalhães, Manuel E. Gándara Carballido, Maria Pereira, Paula Martini, Richard Santos, Silvio Almeida, Silvio Tendler) versam sobre a construção histórica da cultura de direitos humanos, a proteção da cultura no direito internacional e sua observância no direito brasileiro, a diversidade cultural, a globalização e o universalismo dos direitos humanos, os impactos das novas tecnologias no acesso à cultura e a relação entre as manifestações culturais e as desigualdades estruturais no Brasil”.
Na obra tema deste Lido para Você, diz Cunca em seu texto de abertura:
Temos neste livro uma colagem dos afluentes deste rio que chamamos direitos humanos, como coroamento de uma experiência de formação inovadora realizada pelo Instituto Joaquin Herrera Flores. A nova reflexão crítica e da cultura dos direitos em sentido emancipatório vem sendo movida por correntes e processos que recusam a canalização restritiva do passado, que insistem em manter a força de seu curso com base no poder instituinte dos sujeitos sociais corporificados nos espaços e escalas de um agir transformador. No mundo em crise e transição precisamos manter vivas estas águas que permitem repor as condições básicas para sustentar projetos emancipatórios e lutas por espaços de liberdades, de bem-estar social e de biodiversidade. Seguindo as pegadas da abordagem na chave da teoria crítica na via proposta por Joaquin Herrera Flores, vemos no livro a importância dada ao resgate e reconstrução dos direitos humanos com ênfase no conceito de cultura como espaço da luta pela direção intelectual e moral da vida coletiva. Podemos destacar o terreno das ideologias na disputa travada nos aparelhos ou superestruturas que produzem a dimensão imaterial, simbólica e de socialização que condiciona e engendra os recortes do agir em sociedade, na disputa entre a linguagem dominante nas sociedades contemporâneas com suas resistências em relação a dignidade humana”.
O livro está organizado em 11 capítulos, com um amplo painel de temas e de uma qualificada autoria:
Capítulo 1. Luta Contra a Violência Policial do Rio de Janeiro. Dos navios negreiros ao camburão, dos quilombos às favelas, Victoria-Amália de Barros Carvalho Gozdawa de Sulocki; Thiago Dezan, Franscisco Proner e Erick Dau.
Capítulo 2. A Luta pelos Direitos dos Povos Indígenas. Diversidade cultural e invisibilidade sobre os direitos indígenas, Francineia Bitencourt Fontes; Christian Braga e Tuane Fernandes.
Capítulo 3. Cárcere e Direitos Humanos. Colonização e política de morte no país-prisão, Natália Damázio Pinto Ferreira, Nina Barrouin, Franscisco Proner e Thiago Dezan.
Capítulo 4. Direito a um Ambiente Saudável. Mudança climática, crises civilizatórias e luta pelo meio ambiente no Brasil, Gisele Ricobom, Charlotth Back, Maria Magdalena Arréllaga e Christian Braga.
Capítulo 5. Abolição e Emancipação. Desafios, conquistas e contradições do feminismo brasileiro, Denise Dourado Dora, Winnie de Campos Bueno, Tuane Fernandes e Francisco Proner.
Capítulo 6. Os Movimentos Antirracistas no Brasil. Uma luta constante pelo direito à vida, Renata Pedreira da Cruz, Maria Magdalena Arréllaga, Tuane Fernandes e Thiago Dezan.
Capítulo 7. Direitos dos Migrantes. Processos de resistência interseccionais, Charlotth Back, Thiago Dezan e Erick Dau.
Capítulo 8. Direito à Cidade. A necessidade de reafirmar a narrativa de que ‘favela é cidade’, Márcia Pereira Leite, Itamar Silva, Erick Dau, Christian Braga, Maria Magdalena Arréllaga e Francisco Proner.
Capítulo 9. A Luta por Direitos Humanos da População LGTBIQ+. Um ensaio sobre a diversidade na esfera pública, Fredson Oliveira Carneiro, Maria Magdalena Arréllaga, Francisco Proner e Erick Dau.
Capítulo 10. Luta pela Terra. Declaração da ONU sobre os direitos dos camponeses e das camponesas, Carol Proner, Juvelino José Ney Strozake, Franscisco Proner e Tuane Fernandes.
Capítulo 11. A Luta dos Trabalhadores. O desafio de reorganizar o coletivo, Prudente José Silveira Mello, Tuane Fernandes e Francisco Proner.
Juntei as autorias em cada texto, sabendo que elas se compõem de autores e autoras que verbalizam a discursividade e autores e autoras que o fazem por meio de imagens. O livro, efetivamente é, artisticamente, uma combinação dessas duas expressões, uma vez que junta texto (os intérpretes do IHF) e fotos (artista do Coletivo FARPA). A capa, aliás, é da fotógrafa Valda Nogueira, que presidiu o Coletivo e que faleceu em acidente. FARPA lhe faz uma homenagem na abertura: “…A Valda segue sendo essa mulher negra, destemida, fotógrafa da vida, mensageira de seu povo, tradutora de todo riso e toda dor. Nada poderá apagar a sua voz, a sua vontade de viver, a sua bondade e o amor inexplicável que todos sentimos por ela. É um privilégio sem tamanho dividir com ela essa trajetória, A Valda não tem medo de nada, e por isso ela segue entre nós. A nossa Valda, sempre-viva”.
A propósito desse enlace narrativo e do argumento que permitiu construir a estrutura da obra, os organizadores Carol Proner, Gisele Ricobom, Manuel Carballido e Maria José H. Coelho (curadora e editora), corroboram o texto de apresentação e o arrematam:
A partir do conteúdo propositivo dos artigos, entendemos que a necessária consagração normativa dos direitos humanos não implique no esvaziamento de seu fardo utópico. É claro que esta aposta exige profundas transformações inalcançáveis a partir do pensamento crítico, mas acreditamos que o ensino jurídico contextualizado e fundamentado pode contribuir para enredar processos sociais em prol de sociedades justas e igualitárias. Precisamos repolitizar a práxis dos direitos humanos ressignificando as lutas em prol de condições de vida dignas para todos.
Consideramos fundamental estimular debates que abram a discussão sobre os direitos humanos, a partir das realidades específicas de cada texto e de cada momento histórico, de modo que sejam promovidos processos de reflexão que estimulem experiências de luta em favor de uma vida digna para todos. Esse é o objetivo deste livro.
Aliando imagens, escritas e narrativas de compromisso, esperamos contribuir com as lutas descritas, somando nossa aposta na busca por uma cultura de direitos e uma cultura radicalmente democrática e, para usar uma frade utópica do processo político colombiano atual, até que a dignidade se faça costume.
Nada menos a esperar do que incumba a intelectuais que se organizem sob a influência de um pensador do quilate de Joaquín Herrera Flores. Muito vivas em todos nós que com ele convivemos e compartilhamos suas instigações críticas, essa exigência do reinventar, do instituir espaços de lutas e ressignificar a dignidade material do humano, projetados por sujeitos que se emancipam, demarcam o percurso utópico dos compromissos para o agir que transforma.
Com seus companheiros do IHF América Latina e com o núcleo editorial do livro produzido, é ainda muito forte a projeção de seu pensamento fecundo. Rememorei, no evento do Rio de Janeiro, as tertúlias que o querido amigo proporcionou no território simbólico do Monastério de La Rábida, nos seminário da Universidade Internacional de Andaluzia e seu programa de direitos humanos.
Algo que enquanto se renovava seu pensamento permaneceu como um fio condutor autoreflexivo. Ainda poucos dias antes de seu encantar-se, não obstante prematuro, ele reafirmava, conforme a entrevista que me concedeu (UnB – SindjusDF CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JUNHO DE 2008, nº 23, págs. 12/13. Título “Reinvenção dos Direitos Humanos”).
Para a formalidade editorial, o editor registrou: professor da Universidade Pablo de Olavide de Sevilha, que dirige a cátedra de Direitos Humanos “José Carlos Mariátegui” e o Programa Oficial de Pós-Graduação em “Direitos Humanos e Desenvolvimento”, nesta entrevista concedida ao Professor José Geraldo de Sousa Junior, de Constituição & Democracia, fala de sua mobilização pela reinvenção dos direitos humanos e de alternativas para a ampliação da cidadania. A entrevista foi traduzida pela Juíza Luciana Caplan, de Campinas, cujos estudos de pós-graduação foram orientados pelo professor espanhol. Sublinho uma questão que lancei para a entrevista: O senhor tem proposto em sua docência e em seus escritos uma clara atitude de reinvenção dos direitos humanos. Quais são essas novas perspectivas e como a partir delas o direito se relaciona com processos institucionais e sociais que levem à abertura e consolidação de espaços de luta pela dignidade humana?
Atenção para a resposta que bem pode ser um apêndice para o livro aqui Lido para Você:
Creio que ao falar em direitos humanos, devemos ser conscientes de uma série de fatos históricos e sociais. Celebramos, em 2008, os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), mas, também os 42 anos de sua ruptura em dois Pactos Internacionais (1966): o de direitos civis e políticos e o de direitos sociais, econômicos e culturais.
Se a estrutura da Declaração era unitária, que razões fundamentaram e, o que é mais importante, segue fundamentando a visão dualista dos direitos? Se lermos com atenção os Informes de Desenvolvimento Humano que, anualmente, são publicados pelas Nações Unidas, observamos que, a cada ano que passa, aumenta o abismo entre ricos e pobres, e que não há modo de conter a pobreza e a mortalidade por fome nos países empobrecidos pelas políticas coloniais e globais do modo de acumulação capitalista. E, por fim se acessamos o último informe da Anistia Internacional no qual, de um modo direto, são questionados os avanços em direitos civis e políticos no mundo depois de seis décadas da assinatura da Declaração. Se fazemos estas leituras, creio que todos e todas perceberemos a necessidade de “reinventar os direitos humanos” desde uma perspectiva mais atenta ao que está ocorrendo ao nosso redor. Creio, sinceramente, que chegou o momento de redefinir uma categoria tão importante para compreender os desafios com os quais se depara a humanidade em início do século XXI. Neste sentido, nós definimos os direitos humanos como “processos de luta pela dignidade”, ou seja, o conjunto de práticas sociais, institucionais, econômicas, políticas e culturais levadas a cabo pelos movimentos e grupos sociais em sua luta por um acesso igualitário e não hierarquizado a priori aos bens que fazem digna a vida que vivemos.
Cuida-se, em todos esses estudos, entre eles o de Tiaraju Pablo D’Andrea, nesse seu A Formação das Sujeitas e dos Sujeitos Periféricos. Cultura e Política na Periferia de São Paulo, evidentemente, de uma experiência emancipatória. Roberto Lyra Filho a havia compreendido neste sentido e, por esta razão, para ele, o direito não pode ser compreendido como mera restrição, senão, tal como ele o entendia, enquanto enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade.
Nesse eixo teórico insere-se o trabalho de Tiaraju D’Andrea, na primorosa edição da Editora Dandara. Sociologicamente sensível ao reconhecimento das novas identidades que se formam no processo jurídico-histórico de luta pela superação dos entraves à emancipação social e à construção de novas sociabilidades, ele está também política e culturalmente apto a não só definir a natureza jurídica do sujeito e da sujeita periféricos emergentes deste processo, como também, enquadrar os dados derivados de suas práticas sociais criadoras de sociabilidades e direitos nomeando as novas categorias que as representam.
No Seminário de outubro no qual o livro foi lançado, sem conhecer o seu conteúdo, como que pressenti seu ponto de partida, a tanto me convence o texto de Cunca Bocayuva, cuja passagem transcrevi. Com Bocayuva achei poder encontrar consonância para aqueles fundamentos que desde 1986, pelo menos (conforme o meu Cidadania e Cultura Afro-Brasileira. Sociedade e Estado. Revista do Departamento de Sociologia da UnB, vol. 1, nº 1, julho/86), eu vinha designando, o modo práticas coletivas realizam identidades culturais.
Mencionando, a propósito do tema ali tratado – Cidadania e Cultura Afro-Brasileira – a necessidade “de reconhecer, no processo geral que caracteriza a existência de povos e nações, a especificidade de certas relações internas desse processo que configuram a dimensão específica ligada às práticas de grupos no interior da sociedade e que expressam a sua maneira de conceber e organizar a vida social. Portanto, ainda que se fale de uma realidade cultural comum a toda uma sociedade, esse sentido generalizante não exclui, na definição de uma questão cultural, a perspectiva histórica de cada sociedade, sob cujos parâmetros aquela há de ser compreendida e organizada, a partir da dimensão interna da produção individual ou coletiva de setores específicos, insertos, porém, no processo cultural globalizante de criação e recriação social”.
Convocado a falar sobre “Fatores que desafiam a restruturação da cultura democrática”, creio ter coincidindo com esses pontos de partida.
Com efeito, abri minha exposição, confiro aqui as minhas notas, citando uma passagem de um livrinho de Marilena Chauí, editado pela Perseu Abramo, em 2000 –Brasil. Mito Fundador e Sociedade Autoritária. Nesse erudito estudo, preparado para marcar o simbólico dos 500 anos do descobrimento, a notável professora da USP, designa os muitos signos ideológicos, suas fontes, as metáforas e apropriações narrativas sobre “o processo histórico de invenção da nação que nos permite compreender um fenômeno significativo, no Brasil, qual seja, a passagem da ideia de ‘caráter nacional’ para a de ‘identidade nacional’, essa tentação totalizante, de designar algo pleno e completo, seja essa plenitude positiva (caso de Afonso Celso, Gilberto Freyre ou Cassiano Ricardo) ou negativa (Silvio Romero, Manoel Bonfim, Paulo Prado), para louvar ou para depreciar isso que seriam os traços coerentes, fechados e sem lacunas do que nos constitui como natureza humana ou cultura determinadas.
Percorrendo, autores, temas, signos (verde-amarelismo, fé, orgulho, nação, povo), ela conclui de modo problemático:
Conservando as marcas da sociedade colonial escravista, ou aquilo que alguns estudiosos designam como ‘cultura senhorial’, a sociedade brasileira é marcada pela estrutura hierárquica do espaço social que determina a forma de uma sociedade fortemente verticalizada em todos os seus aspectos: nela, as relações sociais e intersubjetivas são sempre realizadas como relações entre um superior, que manda, e um inferior, que obedece. As diferenças e assimetrias são sempre transformadas em desigualdades que reforçam a relação mando-obediência. O outro jamais é reconhecido como sujeito nem como sujeito de direitos, jamais é reconhecido como subjetividadse nem como alteridade. As relações entre os que se julgam iguais são de ‘parentesco’, isto é, de cumplicidade ou de compadrio; e entre os que são vistos como desiguais o relacionamento assume a forma do favor, da clientela, da tutela ou da cooptação. Enfim, quando a desigualdade é muito marcada, a relação social assume a forma nua da opressão física ou psíquica. A divisão social das classes é naturalizada por um conjunto de práticas que ocultam a determinação histórica ou material da exploração, da discriminação e da dominação, e que, imaginariamente, estruturam a sociedade sob o signo da nação uma e indivisa, sobreposta como um manto protetor que recobre as divisões reais que a constitui.
Ou, como anotam Lilia M. Schwarcz e Heloisa M. Starling, em seu monumental Brasil: uma Biografia (Companhia das Letras, 2015), lembrando que “história não é conta de somar”, a cultura como afinal, “o que faz brasil, Brasil ou do Brazil, Brasil”, isto é, como nos inventamos, para elas, “um processo em que o Brasil, desde que inventou para si um sentido próprio e autônomo como nação, no qual a história do país vem se afirmando, como uma longa narrativa de lutas, violência, reivindicação de autonomia e igualdade, busca por direitos e construção da cidadania”.
Basta ver Querelas do Brasil, canção de Aldir Blanc e Maurício Tapajós:
Voltemos, pois, aos temas por propostos entre outros, por Sergio Buarque, Raymundo Faoro, Victor Nunes Leal, Darcy Ribeiro, José Murilo de Carvalho (Os Bestializados: Há Povo no Brasil?), para aferir esses fatores que desafiam a restruturação da cultura democrática, localizando os obstáculos, no plano da cultura: colonialismo e autoritarismo e todos os seus paroxismos (coronelismo, clientelismo, prebendismo, cunhadismo, filhotismo, nepotismo, milicianismo); no pano paradigmático, o positivismo, como limite epistemológico e como ideologia, que no plano do jurídico (cultura legalista), inibe a internalização no direito nacional posto das conquistas internacionais dos direitos humanos (minimamente inscritos nos tratados e nas convenções), enquanto não se dissolvam as falsas noções que a ideologia traz para o ensino e para a aplicação do Direito e o fascismo (Barthes) imponha à língua, inviabilizando, produzindo ausências e contendo emergências (Boaventura de Sousa Santos), que propiciem o livrar-se do favor, até que a cidadania ativa instaure uma verdadeira cultura de direitos (Victor Nunes Leal, Marilena Chauí).
Só assim, numa cultura de direitos como correspondência a uma cultura democrática, é que se poderá entender o Direito como modelo de legítima organização social da liberdade, base e projeção paras os estudos e pesquisas que constituem a fortuna crítica de O Direito Achado na Rua? Um processo que leve a perceber, conforme indica Roberto Lyra Filho, que o Direito se faz no processo histórico de libertação enquanto desvenda precisamente os impedimentos da liberdade não-lesiva aos demais. Nasce na rua, no clamor dos espoliados e oprimidos e sua filtragem nas normas costumeiras e legais tanto pode gerar produtos autênticos (isto é, atendendo ao ponto atual mais avançado de conscientização dos melhores padrões de liberdade em convivência) quanto produtos falsificados (isto é, a negação do Direito do próprio veículo de sua efetivação, que assim se torna um organismo canceroso, como as leis que ainda por aí representam a chancela da iniquidade, a pretexto de consagração do Direito) [ARAUJO, Doreodó (Org). Desordem e Processo – Estudos Jurídicos em Homenagem a Roberto Lyra Filho. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1986].
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
Bioética Latino-Americana e Afroecentricidade como Práxis Educativa de Libertação
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Texto original: Bioética Latino-Americana e Afrocentricidade como Práxis Educativa de Libertação: Referenciais Epistemológicos para a Implementação da Política Pública de Educação das Relações Étnico-Raciais nos Cursos de Direito
Shayene Machado Salles. Bioética Latino-Americana e Afrocentricidade como Práxis Educativa de Libertação: Referenciais Epistemológicos para a Implementação da Política Pública de Educação das Relações Étnico-Raciais nos Cursos de Direito. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direitos e Garantias Fundamentais da Faculdade de Direito de Vitória (FDV), 2022, 229 folhas.
Perante uma expoente Banca Examinadora: Professoras e Professores Elda Coelho de Azevedo Bussinguer, Faculdade de Direito de Vitória, Orientadora; Ricardo Goretti Santos, Faculdade de Direito de Vitória; Wanderson Flor do Nascimento, meu colega da Universidade de Brasília; Edilene Souza da Silva Neves, Faculdade de Música do Espírito Santo; Gustavo Henrique Araújo Forde, Universidade Federal do Espírito Santo, tive ensejo de participar de uma qualificada interlocução em seguida à leitura de uma notável trabalho acadêmico, assinado por Shayene Machado Salles.
Transcrevo o seu Resumo:
A partir da Bioética Latino-Americana e da Afrocentricidade, esta tese propõe-se analisar os referenciais epistemológicos advindos de tais conhecimentos para a constituição uma “práxis” educativa de Libertação baseada nos pilares da política pública de Educação das Relações Étnico-Raciais para os cursos de Direito. Objetiva oferecer respostas aos seguintes questionamentos: a) Quais são as possíveis contribuições da Bioética e da Afrocentricidade, em suas respectivas potencialidades, para, em conjunto, constituírem uma “práxis” educativa libertadora de enfrentamento ao racismo estrutural por meio da política pública de Educação das Relações Étnico-Raciais, no âmbito dos cursos de Direito?; b) De que modo tais saberes (Bioética e Afrocentricidade) podem contribuir para a execução do “Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais” e da diretriz da transversalidade da Educação das Relações Étnico-Raciais nos cursos de Direito, instituída pelo art. 2º, § 4º da Resolução n.º 5/2018 do Conselho Nacional de Educação (legislação que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Direito)? Para tanto, relaciona-se a política pública de Educação das Relações Étnico-Raciais tanto com as questões persistentes em Bioética (e com a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da Unesco), repensando princípios e identificando as principais teorias e fundamentos dela advindos, quanto com a necessidade e urgência da adoção de um posicionamento afrocêntrico para a compreensão do mundo e da Educação Jurídica sob o viés de referenciais contra-hegemônicos, isto é, não ocidentais (tendo em perspectiva a libertação dos processos de opressão, desconstrução e subjugação de epistemes afrocentradas, fomentados pelo eurocentrismo). Baseia-se tanto na concepção dialética do Direito (e da ciência jurídica) inspirada por Roberto Lyra Filho, pela Teoria Crítica do Direito desenvolvida por Luís Alberto Warat e pela concepção do Direito como Liberdade advinda de José Geraldo de Sousa Júnior, quanto na concepção dialética da Educação adotada por Paulo Freire e complementada por Moacir Gadotti a partir da proposta de uma “Pedagogia da Práxis”. Para aprofundar a reflexão sobre a libertação no âmbito educacional, alude-se, ainda, aos estudos sobre colonialidade e, em especial, às contribuições de Enrique Dussel (para libertar-se da opressão do sistema-mundo forjado na modernidade) e de Aníbal Quijano (para libertar-se das colonialidades do ser, saber e poder). A influência de tais concepções opera como relevante substrato analítico para a articulação da Bioética Latino-Americana (de Intervenção) e da Afrocentricidade com a Educação Superior Jurídica, bem como para a fundamentação da sua aplicabilidade como referenciais epistemológicos à Política Pública de Educação das Relações Étnico-Raciais. Por meio da identificação das contribuições epistemológicas da Bioética e da Afrocentricidade para os cursos de Direito, a pesquisa identifica o que se denomina “pressupostos bioéticos e afrocêntricos práxicos reflexivos” como premissas a serem consideradas por uma Educação Jurídica concebida e compreendida como prática efetiva de Liberdade, propondo, desse modo, a constituição de uma epistemologia de análise crítica, potencialmente libertadora (porquanto antirracista), na medida em que se apresenta como fomentadora de um olhar sensível e comprometido com as vulnerabilidades étnico-raciais no âmbito da Educação Superior Jurídica.
As articulações político-epistemológicas a que a tese remete, para mim são, de saída, muito úteis no contexto de minha colaboração intensa com a Fiocruz, especialmente a Fiocruz Brasília, na qual se instala a sua escola de governo. Ali venho desenvolvendo na pós-graduação, ultimamente com a co-docência de meu colega na UnB Swedenberger Barbosa, nos programas de mestrado em Direito Sanitário e Biotécica e, mais precisamente na disciplina “Direito à Saúde, Direitos Humanos e o Direito Achado na Rua”. No programa ainda em execução neste semestre o centro programático são as obras que co-organizei Direitos Humanos & Covid-19 (1º volume: Os Grupos Vulnerabilizados no Contexto da Pandemia; 2º volume: Respostas Sociais à Pandemia).
Aliás, em meu diálogo antecedente com Swendenberger Barbosa, fui fixando meu entendimento, base para a avaliação do trabalho de Shayene, num registro que assentei ao fazer a leitura de seu livro A Bioética no Estado Brasileiro. Situação Atual e Perspectivas Futuras, Swedenberger do Nascimento Barbosa. Brasília: Editora UnB, 2010.
Conforme esse registro, que pode ser conferido em http://estadodedireito.com.br/bioetica-no-estado-brasileiro-situacao-atual-e-perspectivas-futuras-swedenberger-nascimento-barbosa/. Desde a sua consolidação como campo de conhecimento autônomo a Bioética vem recebendo o aporte de várias contribuições teóricas que lhe servem de base de fundamentação e de organização de seus discursos. A partir de diferentes critérios que servem à estruturação desses discursos, é possível designar os modelos que lhe correspondem e até identificar a especialização de correntes que se distinguem em suas propostas, localização, formas de intervenção e reconhecimento de seus principais formuladores.
Assim, é possível falar-se, hoje, de uma bioética latino-americana, com modelo epistemológico bem definido e com lugar de reconhecimento, a partir do âmbito de enunciação que lhe assegurou auditório e contexto argumentativo preciso. Fala-se, neste sentido, de uma bioética de intervenção, cujas reflexões, adensadas nas condições limite de armação dos dilemas morais num continente ainda imerso num quadro de profundas e injustas assimetrias, apelam a uma politização dos modos de interpretação dos conflitos morais inscritos nesses dilemas.
Aludo à caracterização que propõem Volnei Garrafa e Jorge Cordón (organizadores, Pesquisa em Bioética no Brasil de Hoje, São Paulo, Gaia, 2006), reivindicando, inclusive, uma bioética constitutiva de uma escola brasileira, “como uma nova disciplina mais abrangente, mais comprometida com a realidade, mais inclusiva que exclusiva, mais ‘politizada’; como uma nova ferramenta teórico-metodológica que tem responsabilidades concretas em relação não somente ao estudo e interpretação das questões éticas, mas, principalmente, com a formulação das respostas possíveis e mais adequadas para os problemas constatados na totalidade complexa que nos cerca e da qual – queiramos ou não – fazemos parte” (pág. 12).
Dessa bioética de intervenção que vem sendo firmemente designada, notadamente pelo Professor Volnei Garrafa, da Universidade de Brasília, em comunicações (1998, Mar del Plata, Argentina), congressos (2002, VI Congresso Mundial de Bioética, Brasília) e artigos (Garrafa, V., Porto D., Intervention bioethics: a proposal for peripheral countries in a context of power and injustice. Bioethics 2003; 17: 399-416;), institucionalizou-se na UnB, um adensado programa de estudos e pesquisas pós-graduados em Bioética, a partir do Núcleo de Estudos em Bioética, vinculado ao Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares e à Faculdade de Saúde, em que veio instalar-se a Cátedra UNESCO de Bioética da UnB e cujo principal eixo investigativo é, exatamente, a “Bioética de Intervenção”.
Tomando o Sumário da Tese, cuja transcrição se faz importante para dar a medida da profundidade do estudo, vê-se que esse é o ponto de partida, em enunciados que vão ativar os demais pilares que armam a sua discussão:
1 INTRODUÇÃO2 BIOÉTICA LATINO-AMERICANA COMO REFERENCIAL
EPISTEMOLÓGICO
2.1 POTTER À BIOÉTICA PRINCIPIALISTA
2.2 DA CRÍTICA AO PRINCIPIALISMO À EMERGÊNCIA DE BIOÉTICAS NO
PLURAL
2.3 BIOÉTICA LATINO-AMERICANA NA INTERFACE COM A DECLARAÇÃO UNIVERSAL DE BIOÉTICA E DIREITOS HUMANOS DA UNESCO: UMA ALIANÇA ENTRE OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E A ÉTICA SOBRE A VIDA
2.4 BIOÉTICA LATINO-AMERICANA (DE INTERVENÇÃO) E LIBERTAÇÃO NA INTERFACE COM A (RE)LEITURA DOS PRINCÍPIOS DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DE BIOÉTICA E DIREITOS HUMANOS DA UNESCO
2.5 BIOÉTICA LATINO-AMERICANA (DE INTERVENÇÃO) E DIREITOS FUNDAMENTAIS À LUZ DA PEDAGOGIA DA LIBERTAÇÃO
2.6 BIOÉTICA LATINO-AMERICANA (DE INTERVENÇÃO) E ENFOQUE ANTIRRACISTA SOB A ÓTICA DOS ESTUDOS SOBRE COLONIALIDADE E DA CRÍTICA AO EUROCENTRISMO: BASES PARA A FORMULAÇÃO DE UMA BIOÉTICA CRÍTICA FUNDADA NA PERSPECTIVA AFRICANA E AFROBRASILEIRA
3 AFROCENTRICIDADE COMO REFERENCIAL ESPISTEMOLÓGICO
3.1 AFROCENTRICIDADE COMO FENÔMENO PRÁXICO-REFLEXIVO PARA A COMPREENSÃO DO MUNDO: PROPOSTA DE (RE)LEITURA E (RE)ESCRITURA DA HISTÓRIA DA HUMANIDADE
3.2 AFROCENTRICIDADE COMO ALTERNATIVA ÉTICA PARA DESCOLONIZAR O CONHECIMENTO E OS MODOS DE CONHECER: CAMINHO CONCRETO Á LIBERTAÇÃO
4 CIÊNCIA DO DIREITO, ENSINO JURÍDICO E SUA CRÍTICA EM LUÍS ALBERTO WARAT, ROBERTO LYRA FILHO E JOSÉ GERALDO DE SOUSA JUNIOR: PREMISSAS MARGINAIS PARA A APLICAÇÃO DE UMA PERSPECTIVA PEDAGÓGICA LIBERTADORA NA EDUCAÇÃO SUPERIOR JURÍDICA
4.1 DA CRÍTICA AO PENSAMENTO JURÍDICO TRADICIONAL À ELABORAÇÃO DE UMA EPISTEMOLOGIA CONTRADOGMÁTICA EM WARAT: PARA LIBERTAR-SE DA CONCEPÇÃO HEGEMÔNICA DE CIÊNCIA E DO CARÁTER POLÍTICO-IDEOLÓGICO DO DISCURSO
4.1.1 Conhecimento, mito, discurso e poder na Ciência Jurídica
4.1.2 Por uma epistemologia contra-dogmática da complexidade
4.2 CONCEPÇÃO DIALÉTICA DO DIREITO E CRÍTICA AO ENSINO JURÍDICO EM ROBERTO LYRA FILHO (DA OPOSIÇÃO ENTRE DIREITO E LEGALIDADE À AFIRMAÇÃO DA MARGINALIDADE COMO ALTERNATIVA PARA A CONSTRUÇÃO DE NOVAS CATEGORIAS JURÍDICAS): PARA LIBERTAR-SE DO POSITIVISMO ACRÍTICO E DO DISTANCIAMENTO ENTRE O JURISTA E A REALIDADE SOCIAL
4.3 DIREITO COMO LIBERDADE EM JOSÉ GERALDO DE SOUSA JÚNIOR: PARA LIBERTAR-SE CONSCIENTE E COLETIVAMENTE A PARTIR DAS RUAS, À LUZ DOS DIREITOS HUMANOS, E PARA A ADESÃO À PROPOSTA DE INTERVENÇÃO ÉTICO-POLÍTICA ADVINDA DO MARCO REGULATÓRIO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR JURÍDICA BRASILEIRA
5 PRESSUPOSTOS TEÓRICOS PARA A CONSTITUIÇÃO DE UMA PEDAGOGIA DA PRÁXIS LIBERTADORA PARA OS CURSOS DE DIREITO SOB A ÓTICA DA EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS
5.1 RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NA DIMENSÃO DE PODER (RAÇA COMO CRITÉRIO DE CLASSIFICAÇÃO SOCIAL): BASES PARA UMA PRÁXIS ANTIRRACISTA NO ÂMBITO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR JURÍDICA
5.2 LIBERTAÇÃO “DE” E “PARA” QUÊ? “LIBERTAÇÃO” COMO CATEGORIA ANALÍTICA ESTRUTURANTE PARA A IMPLEMENTAÇAO DA POLÍTICA PÚBLICA DE EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NOS CURSOS DE DIREITO À LUZ DA PEDAGOGIA DECOLONIAL
5.2.1 Libertação em Enrique Dussel: para libertar-se da exclusão e opressão do sistema-mundo forjado na modernidade (e do encobrimento do outro)
5.2.2 Libertação em Aníbal Quijano: para libertar-se do eurocentrismo e das colonialidades do ser, saber e poder
5.2.3 Libertação em Paulo Freire (e Moacir Gadotti): para libertar-se da opressão e da inconsciência a partir da “pedagogia da práxis”
6 A POLÍTICA PÚBLICA DE EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E A TRANSVERSALIDADE DE CONTEÚDOS EXIGIDOS EM DIRETRIZES NACIONAIS ESPECÍFICAS
6.1 POLÍTICA PÚBLICA DE EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS: BASES NORMATIVAS E RELACIONAMENTO COM A POLÍTICA PÚBLICA DE EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS
6.2 DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS PARA OS CURSOS DE DIREITO (COM ÊNFASE NA TRANSVERSALIDADE DA POLÍTICA DE EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS) E A IMPLEMENTAÇÃO DA LEI N.º 10.639/2003 MEDIANTE PRÁTICAS EDUCATIVAS ANTIRRACISTAS
7 TRANSVERSALIDADE DA POLÍTICA PÚBLICA DE EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NOS CURSOS DE DIREITO NA INTERFACE COM A BIOÉTICA LATINO-AMERICANA DE INTERVENÇÃO E COM A AFROCENTRICIDADE: REFERENCIAIS EPISTEMOLÓGICOS PARA O ENSINO JURÍDICO LIBERTADOR
7.1 POTENCIAIS CONTRIBUIÇÕES EPISTEMOLÓGICAS DA BIOÉTICA LATINO-AMERICANA DE INTERVENÇÃO: PRESSUPOSTOS BIOÉTICOS PRÁXICO-REFLEXIVOS PARA A ORIENTAÇÃO E IMPLEMENTAÇÃO DA POLÍTICA PÚBLICA DE EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NOS CURSOS DE DIREITO
7.2 POTENCIAIS CONTRIBUIÇÕES EPISTEMOLÓGICAS DA AFROCENTRICIDADE: PRESSUPOSTOS AFROCÊNTRICOS PRÁXICO-REFLEXIVOS PARA A ORIENTAÇÃO E IMPLEMENTAÇÃO DA POLÍTICA PÚBLICA DE EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NOS CURSOS DE DIREITO
7.3 BIOÉTICA LATINO-AMERICANA DE INTERVENÇÃO E AFROCENTRICIDADE COMO CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE PARA A FUNDAMENTAÇÃO ÉTICA E POLÍTICA DO PROJETO PEDAGÓGICO DO CURSO DE DIREITO E DOS INSTRUMENTOS DE AVALIAÇÃO DO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
O segundo pilar no qual a Autora assenta seus pressupostos é o de afrocentricidade. Na banca, presente como arguidor o meu colega no Programa de Direitos Humanos e Cidadania Uã Flor, pesquisador do campo da bioética, mas filósofo que tem colecionado e sistematizado a contribuição originada das áfricas, me contive nesse tema sobre demarcar essa procedência. Entretanto, procurando fixar, em correspondência aos referenciais decoloniais adotados na Tese, o modo como, em meus estudos o conceito tem incidência.
Assim, desde uma aproximação mais geral que esbocei no início de minhas leituras sobre pluralismo jurídico e que lancei num ensaio publicado em 1986 – Cidadania e Cultura Afro-Brasileira (Sociedade e Estado. Revista Semestral do Departamento de Sociologia da UnB, vol 1, nº 1, junho/86), segui palmilhando num percurso de localização, a problematização que procurei suscitar, por último, sobre o lugar entre nós latino-americanos do experimento colonial e sobre indicar que é desde esse lugar que vislumbro o modo decolonial como condição para de minha parte figurar o que penso, pode representar um projeto de libertação, de emancipação e de humanização possíveis, tal como o fiz em exposição no XXIII Congresso está designando como PODER, CONFLITO E CONSTRUÇÃO CULTURAL NOS ESPAÇOS LATINO-AMERICANOS (a propósito ver o meu Territórios de Conhecimentos e de Intersubjetividades: um lugar social para a Universidade. Revista Humanidades. Brasília: Editora UnB, nº 65, dezembro 2021).
Recupero dessas referências, uma alusão a Para Paulo Freire esteio de fundamentação da Tese de modo ao qual voltarei a me referir. Aqui, entretanto, por um vínculo marcante em nossa cultura comum, no que ele assenta que a humanização não é destino. Conforme Freire, “A luta pela humanização, pelo trabalho livre, pela desalienação, pela afirmação dos homens como pessoas, como ‘seres para si’, esta luta pela humanização somente é possível porque a desumanização, mesmo que um fato concreto na história, não é, porém, destino dado, mas resultado de uma ‘ordem’ injusta que gera a violência dos opressores e esta, o ser menos. (…) O ser menos leva os oprimidos, cedo ou tarde, a lutar contra quem os fez menos. E esta luta somente tem sentido quando os oprimidos, ao buscarem recuperar sua humanidade, que é uma forma de criá-la, não se sintam opressores, nem se tornem, de fato, opressores dos opressores, mas restauradores da humanidade em ambos. E aí está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos – libertar-se a si mesmos e aos opressores. (…) Só o poder que nasça da debilidade dos oprimidos será suficientemente forte para libertar a ambos.”
Comecei com Paulo Freire porque ele é um pensador que reflete sobre a emancipação do humano a partir de realidades próximas latino-americanas e africanas que mais intimamente vivenciaram a crueza da alienação do humano. Considero que a africanidade é um elo encadeado ao latinoamericanismo no território cultural que o colonialismo forjou no trânsito através do rio chamado Atlântico.
É assim que as literaturas africanas participam da “tendência – quase um projecto – de investigar a apreensão e a tematização do espaço colonial e pós-colonial e regenerar-se a partir dessa originária e contínua representação. Os significadores desse processo, que constituem a singularidade da nossa pós-colonialidade literária, são potencialmente produtivos: sinteticamente dizem respeito a uma identidade nacional como uma construção a partir de negociações de sentidos de identidades regionais e segmentais e de compromisso de alteridades. O que as literaturas africanas intentam propor nestes tempos pós-coloniais é que as identidades (nacionais, regionais, culturais, ideológicas, sócio-econômicas, estéticas) gerar-se-ão da capacidade de aceitar as diferenças” (Conforme O pós-colonial nas literaturas africanas de língua portuguesa, Inocência Mata da Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa (https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4033274/mod_resource/content/1/MATA%2C%20Inoc%C3%AAncia%20-%20O%20p%C3%B3s-colonial%20nas%20literaturas%20africanas.pdf)
De resto, vislumbro nessa abordagem um pano de fundo para as leituras mais explícitas ou mesmo as implícitas em circulação. Isso significa não perder de vista que a tríade dominação/exploração/conflito, apresentada pelos estudos decoloniais, explode a univocidade discursiva no estágio em ensino, sobretudo, de filosofia. Afirmam Ana Claudia Rozo Sandoval e Luís Carlos Santos (ESTUDOS DECOLONIAIS e FILOSOFIA AFRICANA: POR UMA PERSPECTIVA OUTRA NO ENSINO DA FILOSOFIA. Revista Páginas de Filosofia, v. 6, n. 2, p.1-18, jul./dez. 2014) que “a disputa pela realidade é um traço comum dos filósofos, seja ele interpretando, desconstruindo, criando conceitos, mas o que se quer é disputar a realidade. E para isso colocamos em crise o solo em que se pisa, como um lugar produzido à imagem e semelhança da produção de um discurso que legitimou historicamente a exploração e dominação, e o conflito estabelecido ao buscar filosofar-se caiu na armadilha da representação. Este é um dos primeiros elementos que precisam ser descortinados, a representação. Pois a imagem que se traduziu nos discursos era apenas a europeia. O exercício de pensar-se, o que é próprio da filosofia encontra-se no poço sem fundo, no beco sem saída da armadilha da representação europeia moderna, ocidentalizada na contemporaneidade. A perspectiva decolonial (ou estudos Modernidade/colonialidade) e as filosofias africanas colocam em discussão o epistemicídio e o semiocídio cultural. O conhecimento, e as formas de acessá-lo, e a diversidade cultural no fazer filosófico colocam em evidência outros modos de ser e fazer filosofia. Problemas não considerados filosóficos começam a ser problemas de interesse de outros sujeitos que foram negados pelo sistema mundo eurocentrado”.
Questões, aliás, que se ligam ao pensar potente africano, ainda que não expresso em português ou espanhol, do camaronês Achille Mbembe, um dos teóricos mais brilhantes sobre estudos pós-coloniais, centrados no conceito por ele atualizado e contextualizado de necropolítica e expressos em temas que bem recortam o que aqui foi discutido quando ele trata da proliferação do divino na África subsaariana, do racismo como prática da imaginação, do poder, violência e acumulação ou, destacadamente da necropolítica, em textos como cenas fantasmas na sociedade global, além do influente livro A pós-colónia, ensaio sobre a imaginação política na África contemporânea.
No contexto latino-americano, não é diferente, valendo as nuances, diante do que formula Aníbal Quijano. Veja-se o seu artigo “Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina”, no qual aponta os aspectos fundantes do capitalismo e do eurocentrismo. Diz ele: “A dominação é o requisito da exploração, e a raça é o mais eficaz instrumento de dominação que, associado à exploração, serve como o classificador universal no atual padrão mundial de poder capitalista. Nos termos da questão nacional, só através desse processo de democratização da sociedade pode ser possível e finalmente exitosa a construção de um Estado-nação moderno, com todas as suas implicações, incluindo a cidadania e a representação política”.
Retorno a Paulo Freire agora na sua envergadura de arrimo da base pedagógica proposta pela Autora da Tese. No que me toca diretamente, me sinto presente e leal ao destacado brasileiro. E tal qual Shayne, considero legítima a apropriação de sua pedagogia da autonomia como base para pensar uma educação libertadora trazida diretamente para o campo jurídico.
Minha afirmação vem de uma procedência que convêm assinalar. A convite de sua viúva e colaboradora Ana Maria Araújo Freire participei da obra comemorativa que organizou, junto com um seleto grupo de autores e autoras de depoimentos, afinal publicada para celebrar o centenário do patrono da educação brasileira (Testamento da presença de Paulo Freire, o educador do Brasil. Depoimentos e testemunhos. Ana Maria Araújo Freire (org). Vários Autores. São Paulo: 1ª Ed. Editora Paz & Terra, 2021).
Meu depoimento no livro traz como título “Direitos Humanos e Educação Libertadora em Paulo Freire”. De propósito evoquei matéria de outra coluna minha nesse Lido para Você, sobre livro organizado também por Ana Maria e Erasto Fortes (Direitos Humanos e Educação Libertadora. Gestão Democrática da Educação Pública na Cidade de São Paulo. Paulo Freire Patrono da Educação Brasileira. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2019) – http://estadodedireito.com.br/direitos-humanos-e-educacao-libertadora/. Então, aludi a outro texto constante do livro “Educação, diversidade, direitos humanos e cidadania. Escritos e compromissos”. Organizadores: Lúcia Helena Cavasin Zabotto Pulino e Clerismar Aparecido Longo. São Paulo: Editora Letra e Voz, 2020, 214 p. (https://estadodedireito.com.br/educacao-diversidade-direitos-humanos-e-cidadania/), oportunidade em que conclui o meu escrito com uma nota evocativa: “Trata-se, diz freireanamente a Professora Pulino, no Prefácio, de forjar ‘a escrita e a leitura como direito e dever de mudar o mundo’, o que significa compreender, ainda com Paulo Freire, (Direitos Humanos e Educação Libertadora. Gestão Democrática da Educação Pública na Cidade de São Paulo. Paulo Freire Patrono da Educação Brasileira. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2019), livro ao qual em breve, pretendo fazer um mergulho evocativo que resgate a saga de Paulo Freire sob a perspectiva da interrelação entre Direitos Humanos e Educação Libertadora. Trata-se, em suma, conforme diz Erasto, na dedicatória manuscrita de seu livro com Nita Freire, certamente na expectativa de que eu o resenhe, de ‘compreender a educação como prática social humanizadora’, e com Paulo Freire, ‘assumir nossa causa comum, a dos Direitos Humanos’”.
A chave de leitura que Paulo Freire indica para extrair significado da obra está, em texto que ele justifica o seu título: “Direitos Humanos e Educação Libertadora”, na extensão de uma concepção muitas vezes lançada em seus trabalhos, segundo a qual a educação não transforma o mundo, transforma as pessoas que transformam o mundo. Por isso, em sua justificativa, ele recupera essa chave: “A educação não é a chave, a alavanca, o instrumento para a transformação social. Ela não o é, precisamente porque poderia ser”. Explicitando: “É exatamente porque a educação se submete a limites que ela é eficaz…Se a educação pudesse tudo, não haveria por que falar nos limites dela. Mas constata-se, historicamente, que a educação não pode tudo. E é exatamente não podendo tudo que pode algumas coisa, e nesse poder alguma coisa se encontra a eficácia da educação. A questão que se coloca ao educador é saber qual é esse poder ser da educação, que é histórico, social e político”.
Por isso que na Apresentação, Ana Maria Araújo Freire (Nita Freire) situa a proposta filosófica de Paulo Freire na sua perspectiva de autonomia no sentido utópico de “um inédito viável de humanização”, que pôde ser orientado por uma gestão apta a traduzir a compreensão “ético-político-antropológica de uma epistemologia crítico-educativo-conscientizadora, que, em última instância, tem como ponto central a humanização de todos e todas”, portanto, um programa para “dignificar as gentes, as pessoas”, sendo assim, substantivamente, uma política de educação em e para os direitos humanos.
Isso o confirma Paulo Freire. A Educação em Direitos Humanos pressupõe “compreensão política, ideológica do professor” para se constituir em “educação para os direitos humanos, na perspectiva da justiça, (que) é exatamente aquela educação que desperta os dominados para a necessidade da briga, da organização, da mobilização crítica, justa, democrática, séria, rigorosa, disciplinada, sem manipulações, com vistas à reinvenção do mundo, à reinvenção do poder”. Em suma, “Essa educação para a liberdade, essa educação ligada aos direitos humanos nesta perspectiva, (que) tem que ser abrangentes, totalizante, (que) tem a ver com o conhecimento crítico do real e com a alegria de viver”.
Reside nesse passo, a segunda motivação que me compromete com a obra e que dá sentido ao meu depoimento. Ou seja, essa apreensão que pode se encontrar entre Paulo Freire, de uma ligação entre educação, justiça, direito e direitos humanos, que não seja apenas uma evocação de sua originária formação em Direito, depois de um rápido ensaio inicial na advocacia.
Nesse passo, registro que essa ligação foi desde logo estabelecida por Nita Freire. É dela a leitura que desvela uma “pedagogia dos direitos humanos” como proposta freireana de “inserção crítica dos homens e das mulheres nas suas sociedades ao possibilitar-lhes terem voz, dizerem a sua palavra, biografarem-se” (FREIRE, Ana Maria Araújo (Nita Freire). Acesso à Justiça e a Pedagogia dos Vulneráveis. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al. Organizador. Introdução Crítica ao Direito à Comunicação e à Informação. Série O Direito Achado na Rua, vol. 8. Brasília: FAC/UnB Livros, 2017).
A meu ver, a notável apreensão dessa imbricação emancipatória se apresentou de forma inesperada quando recebi um pedido de Nita Freire que me solicitava referências jurídicas de uma possível relação que se pudesse estabelecer entre o pensamento do educador brasileiro, forte numa pedagogia de autonomia, e o direito. É que ela havia sido convidada a proferir uma conferência na Escuela del Servicio de Justicia, a Escola de Magistratura argentina, e gostaria de focalizar a sua apresentação pondo em relevo essa relação.
Relembro que diante do pedido de Nita, enviei-lhe duas dissertações de mestrado, ao final, fortemente citadas em sua conferência – “Acesso à Justiça e a pedagogia dos vulneráveis”; ou “O pensamento de Paulo Freire e sua relação com o Direito como prática para a libertação” – em base as quais desenvolveu os seus argumentos afirmativos da relação procurada (FREIRE, 2014): FEITOZA, Pedro Rezende Santos. O direito como modelo avançado de legítima organização social da liberdade: a teoria dialética de Roberto Lyra Filho. Dissertação apresentada em 2014, na UnB; GÓES JUNIOR, José Humberto de. Da Pedagogia do Oprimido ao Direito do Oprimido: Uma Noção de Direitos Humanos na Obra de Paulo Freire. Dissertação de Mestrado, Mestrado em Ciências Jurídicas, UFPB, João Pessoa, 2008.
Tal como exponho em outro escrito meu (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. O Direito Achado na Rua: Condições Sociais e Fundamentos Teóricos. Revista Direito e Praxis, Rio de Janeiro, vol. 10, n º 4, 2019, p. 2776-2817).
Não deixou, entretanto, de ser uma surpresa, rica e inesperada, acompanhar o modo como a conferencista estabelece a relação e sabe se valer das contribuições que lhe foram oferecidas, tanto mais valiosas quanto elaboradas por dois bem investidos do conhecimento e da prática que balizam O Direito Achado na Rua, para operar com as categorias formuladas por Roberto Lyra Filho e designar, na interconexão que logra estabelecer, entre Roberto Lyra Filho e Paulo Freire, entre o Direito e a Pedagogia da Autonomia, na sua leitura, tornada possível pela mediação de O Direito Achado na Rua. Percebe-se isso na conclusão que propõe (FREIRE, Ana Maria Araújo Freire (nita freire). Conferência proferida em Buenos Aires, em 25 de setembro de 2014, na Escola de Serviço de Justiça, em programa de especialização em Magistratura. www.odireitoachadonarua.blogspot.com, acesso em 03.02.2015):
“Por tudo que foi exposto torna-se possível asseverar, que, a relação de Paulo Freire com o Direito nega veemente a concepção tradicional do direito da Modernidade e se alia ___ talvez fosse mais correto dizer que ele, ao lado de outros intelectuais que enriqueceram o pensamento da esquerda mundial criaram um nova leitura do mundo, humanista e transformadora, dentro da qual meu marido concebeu uma teoria epistemológico-ético-político-antropológico-critica de educação, que está alinhada com a concepção do Direito Achado na Rua, a Teoria Dialética Social do Direito. Entretanto, cabe aqui uma ressalva: o jurista Roberto Lyra Filho, que embasa Feitoza e Góes, como também este meu trabalho, não cita Paulo Freire em nenhum dos seus mais de 40 livros. Porém, fica evidente, com uma simples leitura dos trabalhos deles, que Lyra sorveu princípios e utilizou algumas categorias fundamentais da teoria do educador brasileiro, seu conterrâneo”.
Numa nota curiosa, exatamente no embalo das mobilizações do centenário de Paulo Freire, um outro achado precioso vem corroborar essa ligação, repito, no grande brasileiro, entre educação, justiça, direito e direitos humanos. Trata-se de uma quase arqueologia. Com sabor de mística. O meu dileto colega José Eymard Loguércio|, que já havia com seu grupo de companheiros do Grupo Direito e Avesso (denominação do Boletim fundado em 1982 por Roberto Lyra Filho para organizar os resultados dos estudos da por ele denominada NAIR – Nova Escola Jurídica Brasileira, que levou à criação Brasil afora de inúmeros coletivos antidogmáticos de professores e estudantes de direito insatisfeitos com a ideologização do campo pelo paradigma do positivismo jurídico), preservando em fita VHS a última conferência de Roberto Lyra Filho, às vésperas de sua morte em 1986, preserva também, em notas datilografadas, a roda de conversa mantida pelo grupo com Paulo Freire, sobre conhecimento e ensino do Direito.
Recorto do fac-simile da página 7, da transcrição, essa passagem singular:
Vocês dizem que há uma certa dissociação entre o ensino do Direito e a realidade social. Para mim, ao contrário, há uma associação enorme entre Direito e a realidade, mas a realidade da classe dominante, a minha dissociação é entre Direito e a realidade social popular. Nesse sentido é que o positivismo deve, a meu ver, ser encarado, não como um método de ensino, mas como a positividade do direito atual em favor das classes dominantes. Vocês têm que levar em conta que tudo está tão bem feito e organizado, que inclusive o arcabouço do Estado está positivisticamente estruturado, e é por isso que existe uma perversidade nas estruturas
Ana Maria certamente desconhecia essa passagem de seu marido e co-autor com ela em muitos escritos. Mas acertou em cheio ao asseverar que a relação de Paulo Freire com o Direito nega veemente a concepção tradicional do direito da Modernidade no que ele concebeu como uma teoria epistemológico-ético-político-antropológico-critica de educação, que está alinhada com a concepção do Direito Achado na Rua, a Teoria Dialética Social do Direito.
Observe-se que o próprio Paulo Freire, no fragmento recolhido por José Eymard Loguércio e colegas, o confirma indicando um programa de direitos humanos para uma educação libertadora, na medida em que mudando as pessoas essas possam mudar a sociedade:
Portanto, um sonho de universidade passa necessariamente pelo sonho de sociedade – e o sonho da universidade só se plenifica quando a sociedade radicalmente se transforma. Isso não significa que a gente tenha que esperar a mudança da sociedade para começar a ensaiar mudanças… Se a gente cair na estória de que só é possível modificar essa estrutura jurídica solidamente positivista – tanto sua compreensão como sua prática – depois que a sociedade capitalista mudar…
Apesar do estranhamento de Paulo Freire com a prática da advocacia, curiosamente conforme dizem Ricardo Prestes Pazello e Tchenna Fernandes Maso (O Legado de Paulo Freire para a Assessoria Jurídica Popular. Revista Estudos do Sul Global nº 2), são exatamente os:
juristas populares [que] vão buscar inspiração em seu legado para construir uma nova prática de militância no direito [nas] Assessorias Jurídicas Populares (AJP)”. De fato, dizem esses autores, o “pensamento de Freire é central para construir a ponte entre o trabalho dos juristas populares com os movimentos sociais [num] sentido ampliado de educação como prática da liberdade [para construir] um uso dialógico e crítico do direito, inserido em um horizonte de transformação social
Para esses autores, enquanto relaciona práticas do campo do direito que se colocam em apoio aos sujeitos oprimidos, a pedagogia da autonomia de Freire e seu método de conscientização, como que se inscrevem em fundamento do afazer da assessoria jurídica popular. Com efeito, eles dizem:
Como eixos políticos, a AJP atua: em uma perspectiva crítica do direito que pode ser traduzida, no geral, como um uso tático do direito, podendo se exemplificar na litigância que se vale da normativa progressista, sobretudo após a Constituição de 1988 ou no uso relido do direito, principalmente por magistrados, promotores, defensores compro em todas as suas dimensões e potencialidades; b) na educação popular, por meio da práxis jurídica insurgente como contribuição para o processo de organização das massas, a partir da luta por condições fundamentais à vida do povo; e na formação política necessária para uma ação que promova transformações estruturais na sociedade
E eles continuam:
A Pedagogia do oprimido, é, portanto, o livro de cabeceira dos sujeitos da AJP, é nele que esses atores encontram formas de enfrentar as contradições do capital nos territórios que atuam conseguindo estabelecer com as comunidades as relações de seus conflitos com a totalidade e a superação da alienação que afeta a ambos. A noção de dignidade humana, a ação como prática da libertação, o educar como ato de amor são o método para que esses sujeitos rompam com as categorias abstratas do direito em sua ação concreta, tornando a educação popular o carro-chefe da transformação em que os direitos humanos serão ressignificados
Retomo Nita Freire quando ela estabelece a incindível ligação entre a “teoria epistemológico-ético-político-antropológico-critica de educação, que está alinhada com a concepção do Direito Achado na Rua, a Teoria Dialética Social do Direito”. É exatamente essa ligação, explícita, que fundamenta, na Faculdade de Direito, a institucionalização da Assessoria Jurídica Popular Roberto Lyra Filho. Colocando na mesma mesa dialógica Freire e Lyra Filho, os proponentes do projeto o inserem na modelagem segundo a qual “a Assessoria Jurídica Universitária Popular, por ser um projeto de extensão, tem, em sua essência, o condão de ser um braço da educação popular dentro da universidade, tornando-se um ‘instrumento indispensável à produção de um saber emancipatório e contextualizado com o seu tempo e espaço’ (SOUSA; COSTA; FONSECA; BICALHO: 2010). De forma concreta e objetiva, a AJUP, como uma assessoria, faz parte de todo o processo de tomada de consciência e de reação de sujeitos frente a conflitos fomentados pela própria relação injusta na sociedade. O acompanhamento da questão problema, desde a relação dos sujeitos envolvidos às resoluções encontradas, é de suma importância técnica, no que se refere à educação popular, mas também, política e metodologicamente, para quem está compreendendo e mudando a relação dos próprios conflitos” (SOUSA, Adda Luisa de Melo; MACÊDO, Gabriel Remus; CARILHO, Jana Louise Pereira; SILVA, Kelle Cristina Pereira da; PRÓBIO, Marcos Vítor Evangelista; BERALDO, Maria Antônia Melo; RODRIGUES, Moema Oliveira. Educação Popular e Práxis Extensionista Transformadora: a ação da Assessoria Universitária Popular e O Direito Achado na Rua. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al (orgs) O Direito Achado na Rua vol. 10: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade. Brasília: Editora UnB/Editora da OAB Nacional, 2021, p. 611-622).
Com certeza, a história nem começa, nem termina aqui. Ela se orienta por um exigente aprendizado, feito de evidentes ganhos intersubjetivos, na UnB, proporcionados por essa incindível ligação entre O Direito Achado na Rua (Roberto Lyra Filho) e a Pedagogia da Autonomia (Paulo Freire). Mas cada vez mais entre o direito como emancipação e o pensamento interpelante de Paulo Freire.
Mais fortemente quando o apelo ao Direito parte dos Movimentos Sociais, atentos às exigências de processos formativos para adensar os protagonismos dos sujeitos que neles se inscrevem. Nesse passo, ou porque diretamente suscitando as dimensões metodológicas que trazem o jurídico e o seu ensino para o chão da realidade que desafia os saberes, conforme constato nas frequentes jornadas universitárias em defesa da reforma agrária – Jura, no caminho que a extensão abre para o diálogo acadêmico com entidades desse campo – MST, Via Campesina – criando espaços de reflexão sobre a epistemologia e a metodologia freireanas apropriadas aos processos dialógicos e afetivos que o direito proporciona à emancipação, a exemplo da roda de conversa instalada no ambiente da Universidade Federal de Rondonia, sobre o tema “O Direito Achado na Rua e o Método Paulo Freire no Ensino do Direito” – https://www.youtube.com/watch?v=wL8vpwLyOq4. Seja quando abre pautas acadêmicas para a reflexão avançada em pós-graduação, nesse contexto específico da relação entre formação em direito e em direitos humanos tendo como horizonte epistemológico-político questões suscitadas por movimentos sociais.
Vou às Considerações Finais expendidas na Tese, em tudo relevantes para interessar pesquisadores e editores convocados para o seu exame:
A Bioética, compreendida sob a vertente crítica direcionada à realidade periférica de países latino-americanos, apresenta-se, segundo a proposta da Bioética de Intervenção, oriunda da Cátedra Unesco de Bioética da Universidade de Brasília, como relevante contribuição política e epistemológica viabilizadora da compreensão da diversidade e do pluralismo moral e ético que caracteriza a sociedade brasileira, seja por meio da releitura dos princípios da Declaração Universal de Bioética e Direitos da Unesco, seja por meio da apreensão da análise crítica que se constitui como cerne de sua proposta: intervir concretamente na realidade com o fito de transformá-la, inaugurando uma abordagem bioética efetivamente comprometida com os oprimidos, com o enfrentamento dos processos de dominação, como condição de possibilidade para a libertação.
Pensar a Afrocentricidade como referencial epistemológico consiste em aprofundar-se nesse conceito, situando-o no campo dos saberes, com vistas a refletir, no horizonte a que se destina esta tese, sobre a libertação dos processos de opressão, desconstrução e subjugação de epistemes afrocentradas, propiciada pelo eurocentrismo. Implica ressignificar a ciência e o conhecimento hegemonicamente reproduzidos, reivindicando um reposicionamento da histórica, da cultura, dos valores, da filosofia africana, como forma de insurgência ao racismo epistêmico e sem perder de vista o compromisso ético subjacente à teoria, evidenciado na oposição ao etnocentrismo hegemônico, aos colonialismos persistentes propagadores de exclusões e, sobretudo, na busca e defesa da libertação dos excluídos e marginalizados.
Evidencia-se no relacionamento entre os fundamentos da Bioética de Intervenção e da Afrocentricidade, a emergência de epistemologias fundamentalmente críticas, contra-hegemônicas, ou seja, de saberes emancipatórios produzidos a partir do reconhecimento da diversidade étnico-racial e da sua influência nos projetos educativos de valorização cultural e histórica da população afro-brasileira.
A Bioética Latino-Americana e, em especial, a Bioética de Intervenção, a fim de viabilizar concretamente a libertação dos processos de dominação, deve, necessariamente, orientar-se segundo uma perspectiva pedagógica fundamentalmente decolonial, amparada pela análise crítica, inspirada pelos estudos sobre colonialidade, desenvolvidos especialmente por Aníbal Quijano, Walter Mignolo e Enrique Dussel, posto que descolonizar o conhecimento é, antes de tudo, uma questão de comprometimento ético com a própria ciência e com os modos de conhecer, seja pela reflexão ética que principia o denominado “giro deconial”, seja por de se estimular a valorização e o respeito de projetos críticos políticos/éticos/epistêmicos.
Salienta-se, portanto, a convergência do conhecimento produzido pelos pesquisadores representantes do Grupo de Estudos Modernidade/Colonialidade com a proposta de situar a Bioética Latino-Americana de Intervenção, embasada nos estudos sobre colonialidade, e a Afrocentricidade como aportes epistemológicos para a constituição de uma “práxis” libertadora de enfrentamento ao racismo estrutural no âmbito dos cursos de Direito e, notadamente, para a implementação da política pública de educação das relações étnico-raciais na Educação Superior Jurídica.
Para conceber um ensino jurídico que se denomine libertador, há que se levar em consideração o questionamento sobre as condições epistemológicas estruturais em que se alicerçam os cursos de Direito, isto é, se estes se afiguram compromissados com a formação holística de um cidadão que intervirá na sociedade para o rompimento (e não para o fomento) dos processos de opressão e de dominação ou se, pelo contrário, reverberam premissas que se encaminham para a invalidação do conhecimento produzido segundo o embasamento ético-político da equidade racial, robustecendo as balizas da racionalidade moderna ocidental alicerçada no etnocentrismo hegemônico.
Refletir sobre a Educação Superior Jurídica em termos de confrontá-la com o racismo epistêmico implica reconhecer, na conformidade do que propõe Renato Nogueira (2012, p. 63), a necessidade de denegrir o pensamento e o território epistêmico, revitalizando e regenerando as abordagens e suplantando a lógica de dominação e opressão política, econômica, étnico-racial e de gênero que sustenta a educação.
Nessa linha intelectiva, compreende-se que a análise dos processos educacionais que se estabelecem nas Instituições de Ensino Superior de Direito não deve ignorar as influências de ordem política, econômica, moral e cultural. Daí por que, no cenário jurídico, a Teoria Crítica do Direito desenvolvida por Luís Alberto Warat, a concepção dialética do Direito (e da ciência jurídica) inspirada por Roberto Lyra Filho e a compreensão do Direito como liberdade sedimentada por José Geraldo de Sousa Júnior e, no cenário educacional, a perspectiva dialética de Educação adotada por Paulo Freire e complementada por Moacir Gadotti, a partir da “Pedagogia da práxis”, operam como relevante substrato analítico para a articulação e veiculação da Bioética Latino-Americana de Intervenção e da Afrocentricidade como aportes epistemológicos para a implementação da Política Pública de Educação das Relações Étnico-Raciais nos Cursos de Direito.
Por um lado, as análises desenvolvidas por Warat, Lyra Filho e Sousa Junior no âmbito do ensino do Direito e da Ciência Jurídica possuem em comum o fato de tecerem críticas à epistemologia jurídica tradicional, cuja matriz consiste na racionalidade moderna ocidental e colonial, perspectiva que converge com a ideia de descolonização do conhecimento, ainda que tais autores não tenham efetuado uma abordagem específica sobre tal questão.
Além disso, os fundamentos que constituem a abordagem dos aludidos juristas possibilitam elencar, de modo consistente, aquilo do que careceria ao jurista libertar-se, à luz da crítica à epistemologia jurídica moderna, com a finalidade de compor o projeto de um ensino e de uma ciência do Direito pluralista e antirracista.
Nesse contexto, identificam-se: a) na crítica ao pensamento jurídico tradicional elaborada por Luís Alberto Warat, a necessidade de libertar o jurista da concepção hegemônica de ciência e de discurso, salientando a necessidade de uma nova compreensão acerca do conhecimento científico que não ignore a dimensão político-ideológica dos discursos jurídicos e que, consequentemente, vislumbre os cursos de Direito como relevantes instâncias de significação e de poder na sociedade que, portanto, se constituem como potências para a implementação da Política Pública de Educação das Relações Étnico-Raciais; b) na concepção dialética do direito de Roberto Lyra Filho, a necessidade de libertar o jurista do positivismo acrítico e do distanciamento das relações sociais, apresentando a marginalidade como alternativa para a construção de um pensamento novo que se apresenta como inspiração para lançar um olhar racializado sobre as relações sociais e, via de consequência, sobre o fenômeno jurídico, na medida em que concebe os direitos humanos para além da legalidade e possibilita identificar, como importantes pautas valorativas emergentes das lutas para sua efetivação – fruto de reivindicações advindas sobretudo de movimentos populares afrodiaspóricos –, a equidade racial e a diversidade, bem como na medida em que a denúncia reverberada pelo autor no tocante ao distanciamento da pluralidade política e epistemológica alerta quando à necessidade de impedir que o Direito se converta em mero instrumento ideológico a serviço das classes dominantes; e c) na sedimentação do projeto/movimento “Direito Achado na Rua”, promovida por José Geraldo de Sousa Júnior, a necessidade de assumir a liberdade como princípio e fim da ação do jurista, para libertá-lo, não de forma isolada, mas coletivamente, com base nas vozes que emergem das ruas, à luz dos Direitos Humanos, e tendo como horizonte a adesão a propostas de intervenção ético-políticas advindas do atual marco regulatório dos cursos de Direito no Brasil, levando em consideração a articulação entre teoria e prática, a constituição de práticas voltadas à efetivação de direitos, o diálogo interativo entre as instituições de ensino, os atores que diretamente a fomentam (docentes e discentes) e a sociedade, nela abrangida a potência criativa e criadora dos movimentos sociais.
Especialmente em relação a José Geraldo de Sousa Júnior, salienta-se que o compromisso do autor com a libertação – traduzido, nesta tese, na busca por propositivamente estimular, no âmbito da Educação Superior Jurídica, práticas libertadoras de enfrentamento ao racismo estrutural – evidencia a necessidade de relacionamento do Direito com a dimensão ética e política. Isso sugere a adoção de um posicionamento crítico e concreto sobre o mundo direcionado a conceber os movimentos sociais como sujeitos coletivos de direitos, cujas experiências se revela indispensáveis para o processo de criação e de aplicação do Direito.
Por outro lado, e de modo complementar, não há como conceber um projeto educativo que se pretenda emancipatório sem remontar à perspectiva freiriana, a qual remonta à liberação autêntica, concebida em devir, como intervenção concreta sobre o mundo visando à conscientização e à transformação das condições de desigualdades e de opressão.
Vislumbra-se, na obra de Paulo Freire, a tomada de posição em favor dos marginalizados como o principal ponto de interseção entre a Bioética de Intervenção e a proposta de uma Pedagogia da Libertação, na medida em que tal perspectiva bioética também tem como objetivo a luta pela libertação dos oprimidos, o estímulo de uma responsabilidade e solidariedade críticas, em oposição à neutralidade e apatia diante das injustiças sociais. Nesse cenário, ressalta-se que educar para a libertação consiste na tomada de consciência crítica de si e dos outros sobre as condições existenciais e de vida, nela contempladas as condições de trabalho, de sobrevivênciae de resistência.
Uma educação libertadora exige uma intervenção pedagógica posicionada sobre o mundo. Remonta a uma tradição marxista, embora nela não se esgote, concebendo “práxis” como sinônimo de “ação transformadora. Educar é, portanto, transformar o homem, a sua história, o mundo. Afinal, “A pedagogia, como teoria da educação, não pode abstrair-se da prática intencionada. A pedagogia é sobretudo teoria da práxis.” (GADOTTI, 1988, p. 31).
Nesse viés, os fundamentos que constituem a abordagem de Paulo Freire, corroborados por Moacir Gadotti, possibilitam elencar, de modo consistente, aquilo que careceria ao sujeito de direito libertar-se, à luz da crítica à educação tradicional, com a finalidade de compor o projeto educativo pluralista e antirracista: libertar-se do autoritarismo, da compreensão metafísica da educação (que ignora a existência das desigualdades e seus reflexos, dissociando o debate pedagógico da análise política), do tecnicismo (que impede a compreensão da ambiência educacional como projeto popular e político, como instrumento de luta para a transformação).
Observa-se, portanto, que revisitar a obra e a criticidade de autores, cuja contribuição se mostra fundamental para compreender o conhecimento de modo atrelado às relações sociais, unindo teoria e prática, ao mesmo tempo em que se revelaindispensável para a conscientização, também opera como elemento de sustentação e de orientação para os processos históricos de luta pela libertação.
Dessa forma, dito em outras palavras, o que aproxima as abordagens supramencionadas, além da dialética humanística que as orienta, é o fato de se constituírem como bases teóricas cujas contribuições práxico-reflexivas permitem elencar as características para uma Educação Jurídica concebida e compreendida como prática efetiva de liberdade.
Nesse aspecto, desafiar a epistemologia jurídica e a Educação tradicional, como o
fizeram Warat, Lyra Filho, Sousa Junior e Paulo Freire, possibilita que se reconheça, nos pontos de crítica suscitados pelas respectivas análises que desenvolvem, o aspecto comum de situarem o conhecimento como exercício práxico para a libertação, direcionado, na conjuntura latino-americana, ao enfrentamento das desigualdades produzidas e retroalimentadas por mecanismos de exclusão do norte global e, mais especificamente, da ordem hegemônica etnocêntrica estabelecida na modernidade, que perdura sob a expressão da colonialidade.
Desse modo, a atualidade e a coerência da adesão à abordagem epistemológica dos autores elencados acima se manifestam na contribuição que fornecem para a constituição de uma Educação pluralista, dialógica, cidadã, ética e politicamente comprometida com a libertação e, em especial, para a libertação do racismo estrutural e epistêmico no cenário educacional.
Destaca-se, ainda – sem desconsiderar a crítica ao reducionismo do embasamento do humanismo dialético à dimensão de classe – que as reflexões de Warat, Lyra Filho, Sousa Junior e Paulo Freire encontram complementação e substrato para a permanência no projeto decolonial e, notadamente – aludindo à denominação adotada por Nelson Mandonado-Torres – na transversalidade decolonial, conscientizando, cada qual a seu modo, para a insurgência, a resistência e o questionamento aos padrões coloniais do ser, do saber e do poder, reprodutores de invisibilidades.
A intervenção epistemológica libertadora proposta nesta tese, na esteira de Boaventura de Sousa Santos, preconiza a contribuição de saberes produzidos como forma de insurgência ao racismo epistêmico e aos processos de dominação, promovedores do diálogo horizontal, do reconhecimento da diversidade étnico-racial e da sua influência nos projetos educativos de valorização cultural e histórica da população afro-brasileira. Daí decorre a proposta de associar à análise do fenômeno jurídico referenciais teóricos que emergem como saberes emancipatórios capazes de potencializá-lo – como a Bioética Latino-Americana de Intervenção e a Afrocentricidade.
A proposição de uma educação regida pela pedagogia da práxis, prenunciada por Moacir Gadotti, remonta ao desafio de caminhar dialeticamente rumo ao novo a partir de ideias historicamente já consolidadas. O retorno ao horizonte da dialética cotidiana, assim como o resgate de autores advindos da teoria crítica do direito concebido como marginal, consolida a educação em termos de libertação na medida em que possibilita compreendê-la como instrumento de ação e de intervenção política e social.
O humanismo dialético que embasa esta tese, anunciado pelas opções teóricas assumidas, ensina-nos que o “novo” brota do “velho”, bem como que os cursos de Direito podem ser repensados à luz da epistemologia dominante e, sobretudo, para além dela. Constitui um convite a ressignificar a teoria, a prática e a reflexão jurídica, confrontando as bases e estruturas que as alicerçam, questionando o Direito embasado nos moldes de estudos e pesquisas reprodutores de colonialismos (uma vez que a base da epistemologia jurídica tradicional advém de matriz eurocêntrica).
A retomada da epistemologia “marginal”, advogada por Warat, Roberto Lyra Filho e José Geraldo de Sousa Júnior, possibilita a assunção de um posicionamento, fundamentalmente, crítico sobre a ordem estabelecida e, notadamente, sobre as relações de poder que alicerçam a concepção de direito hegemônico e obstam uma análise racializada do fenômeno jurídico, isto é, uma análise que se proponha a enxergar as relações sociais sob a ótica dos conflitos raciais que as envolvem, posicionando-se na rota de uma Ciência do Direito aberta e sensível às narrativas marginais e, especialmente, às pautas de reivindicações de políticas públicas do Movimento Negro (dentre as quais, enfatiza-se, a implementação da Lei n.º10.639/2003, inclusive, no âmbito da Educação Superior).
A novidade introduzida pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de Direito carece de uma concepção epistemológica condizente com a proposta política que principia, sob pena de converter-se em instrumento legal retórico e inócuo.
Os denominados “pressupostos bioéticos práxico-reflexivos” constituem alternativas decoloniais concretas para a implementação do art. 2º, § 4º da Resolução CNE/CES n.º 5/2018, ou seja, da transversalidade das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico Raciais no âmbito da Educação Superior jurídica, uma vez que, a partir deles, a Bioética Latino-Americana de Intervenção – alicerçada nos estudos sobre colonialidade e na Pedagogia da Libertação – e a Afrocentricidade operam como referenciais epistemológicos para orientar, no âmbito dos cursos de graduação em Direito, a descolonização de dois importantes documentos: o Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI) – documento que define a missão da Instituição de Ensino Superior, a política pedagógica institucional e as estratégias para atingir suas metas e objetivos – e o Projeto Pedagógico de Curso (PPC) – instrumento que apresenta a concepção de ensino e de aprendizagem do curso, além da estrutura, dos procedimentos de avaliação e dos instrumentos normativos de apoio.
Por isso a importância dessa proposição de agregar à análise do Direito e do ensino jurídico ferramentas epistemológicas capazes de potencializá-lo, como a Bioética Latino-Americana de Intervenção e a Afrocentricidade para “ressignificar o presente e construir um futuro” – em alusão a “sankofa”, terminologia advinda de um provérbio africano que é representado por um pássaro que volta a cabeça à cauda para simbolizar que “retornar ao passado, é ressignificar o presente e construir o futuro”.
Alude-se ao retorno à herança ancestral africana e a consciência afrodiaspórica como possibilidade de alcançar as raízes do racismo epistêmico e de, assim, estabelecer intervenções concretas representativas de avanços em termos educacionais. É nessa conjuntura que se torna possível e concreta a tarefa de consolidar as bases para a educação condizente com o futuro que se almeja. Uma Educação Superior Jurídica que, necessariamente, preconize a diversidade, a diferença o multiculturalismo, a valorização cultural de povos cuja história e contribuição epistêmica foi negada e invisibilizada. Um futuro no qual a implementação Política Pública de Educação das Relações Étnico-Raciais seja uma realidade observável e pressuposto para o alcance da equidade e da diversidade no âmbito da Educação Superior
Folgo em considerar que a arquitetura de toda a Tese se desenha no sentido de criar bases pedagógico-curriculares para urdir uma tessitura epistemológica libertadora que preconiza a contribuição de saberes produzidos como forma de insurgência ao racismo epistêmico e aos processos de dominação, promovedores do diálogo horizontal, do reconhecimento da diversidade étnico-racial e da sua influência nos projetos educativos de valorização cultural e histórica da população afro-brasileira. Daí decorre a proposta de associar à análise do fenômeno jurídico referenciais teóricos que emergem como saberes emancipatórios capazes de potencializá-lo – como a Bioética Latino-Americana de Intervenção e a Afrocentricidade.
Mas também levar a uma proposição de uma educação regida pela pedagogia da práxis, prenunciada por Moacir Gadotti, remonta ao desafio de caminhar dialeticamente rumo ao novo a partir de ideias historicamente já consolidadas. O retorno ao horizonte da dialética cotidiana, assim como o resgate de autores advindos da teoria crítica do direito concebido como marginal, consolida a educação em termos de libertação na medida em que possibilita compreendê-la como instrumento de ação e de intervenção política e social.
Para esse objetivo o enlace das proposições desenvolvidas por Luis Alberto Warat e Roberto Lyra Filho, partindo do deslocamento paradigmático do primeiro e da inferência dialética do segundo que se projete enquanto concepção de ensino que se nutra da concepção articuladora derivada desses fundamentos e que se manifesta na concepção e na prática de O Direito Achado na Rua, tal como eu o formulo.
A Autora faz uma qualificada resenha do desenvolvimento desses fundamentos até onde logrou recensear o catálogo bibliográfico construído nesse percurso. Pena que não pode usufruir do mais atua lizado levantamento crítico nesse sentido que inclui recentíssima, porém depois de depositada a Tese para exame da Banca, contida em Direito.UnB. Revista de Direito da Universidade de Brasília. Programa de Pós-Graduação em Direito – Vol. 6, N. 2 (mai./ago. 2022) – Brasília, DF: Universidade de Brasília, Faculdade de Direito (https://periodicos.unb.br/index.php/revistadedireitounb/issue/view/2503/748).
Com uma chamada a título celebratório O Direito Achado na Rua. Contribuições para a Teoria Crítica do Direito, a edição “analisa as contribuições de O Direito Achado na Rua para a Teoria Crítica do Direito, a partir dos estudos desenvolvidos por José Geraldo de Sousa Junior e tendo como referência o repertório de textos apresentados para a elaboração do Dossiê Especial na Revista de Direito da Universidade de Brasília com foco nas temáticas relacionadas à Educação em Direitos Humanos, Novos Saberes e Práticas Pedagógicas Emancipatórias; Acesso, Democratização e Controle Social da Justiça, Assessoria Jurídica e Advocacia Popular; Constitucionalismo Achado na Rua; Direito à Cidade; Direito, Raça, Gênero, Classe e Diversidade; Direitos Humanos; Movimentos Sociais e Sujeitos Coletivos de Direito; O Direito Achado na Rua: concepção e prática; Trabalhadores, Justiça e Cidadania”.
São vários os temas impulsionados pela elaboração de um formidável plantel de pesquisadores, todos e todas vinculados a partir de seus projetos ao Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua (Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPQ).
Eles refletem em suas abordagens a partir de um fio condutor que alinhava um amplo painel de interesses que se encontram desde Warat e Lyra Filho num enlace que liga o conhecimento do Direito e seus modos ensino.
De certo modo, com Fábio Sá e Silva (ENSINO JURÍDICO. A Descoberta de Novos Saberes para a Democratização do Direito e da Sociedade, de Fábio Costa Morais de Sá e Silva. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2007; VETORES, DESAFIOS E APOSTAS POSSÍVEIS NA PESQUISA EMPÍRICA EM DIREITO NO BRASIL, de Fábio de Sá e Silva. Revista de Estudos Empíricos em Direito, vol. 3, n. 1, jan. 2016), assim como eu próprio já o anotei em minha participação, como homenageado e como conferencista da sessão inaugural do XXV Encontro Nacional do CONPEDI (Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (Brasília de 6 a 9 de julho de 2016), isso se dá porque o tema da pesquisa, do ensino crítico e extensão popular como práticas instauradoras de diálogos libertários entre a universidade e a sociedade (conhecimento e função social).
Também Fábio, recorrendo à metáfora da “rua” para invocar o sentido de espaço público constituinte em que são instituídas novas formas de sociabilidades e reconhecimentos recíprocos chamei à reflexão sobre os desafios hoje postos ao campo, indicando que O Direito Achado na Rua pode dar novas contribuições ao ensino, à pesquisa e à extensão em Direito e Direitos Humanos, com objetivos sociais mobilizadores.
Em Fábio, é possível cunhar a expressão “diálogos libertários” para inferir um contexto de abertura da Universidade ao diálogo e à promoção do debate, atendendo à sua vocação orientada pelo princípio da indissociabilidade do tripé pesquisa, ensino e extensão e ao (re)conhecimento de práticas insurgentes, de sujeitos coletivos e novos direitos e juridicidades. Tal como Shayne Salles faz em sua tese. Assim, a qualificação de “libertário” ao diálogo proposto, por sua vez, perpassa a dimensão constitutiva da liberdade, compreendida aqui como uma construção, “uma possibilidade de ser” (SOUSA JÚNIOR, José Geraldo. O Direito como Liberdade. O Direito Achado na Rua. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2011, p. 27). A liberdade no agir que é realizada historicamente e de forma conjunta, a liberdade como possibilidade de ser que é, necessariamente, atrelada à emancipação.
Em seu artigo Vetores, Desafios e Apostas Possíveis na Pesquisa Empírica em Direito no Brasil, Fábio se apresenta comprometido com O Direito Achado na Rua, que para ele continua sendo um dos mais emblemáticos projetos nesta linha – integrar como objeto irrecusável do conhecimento jurídico as práticas sociais que estabelecem a tensão entre o instituinte e o instituído – na medida em que entende o direito como o produto das práticas de movimentos sociais e nas tensões que estas estabelecem com a ordem normativa estatal.
Conquanto articule sua leitura pelo triplo enlace epistemológico (esgotamento do positivismo jurídico como conforto racional, alcance do pluralismo jurídico enquanto categoria de análise), metodológico (pesquisa-ação) e político (teorias de sociedade e fundamentos éticos enquanto base para estabelecer modos de determinação do jurídico), Fábio é dos poucos empiricistas (law in action). Embora ele não seja de modo algum rotulável nessa designação, conforme se vê já no resumo de seu artigo (Eventual interesse em celebrar ou promover essa condição não deve ocultar os obstáculos históricos e estruturais contra os quais ela foi erigida, tampouco arrefecer o exercício da nossa consciência crítica sobre os desafios com os quais a PED se defronta) que escapam a auto-contenção das fronteiras que o modo de conhecer sociológico impõe ao campo.
Com efeito, não se deixa enredar no limite de objetos empíricos possíveis de descrição segura (Engels: a descrição verdadeira do objeto é, simultaneamente, a sua explicação), para aceitar os riscos da cognição de objetos fluidos reivindicados pela hipótese do pluralismo jurídico.
Para Fábio, como em Lyra Filho, e agora em Shayne Salles o Direito é, enquanto vai sendo e o desafio é designá-lo, ontologicamente, no movimento de sua contínua transição, quase ao modo de poesia, que desafie o científico na sua exorbitância de querer ter o monopólio do conhecimento, como em Manoel de Barros, até para validar saberes com os quais todas estas informações têm soberba desimportância científica – como andar de costas (O Guardador de Águas, in Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2010).
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Texto original: Bioética Latino-Americana e Afrocentricidade como Práxis Educativa de Libertação: Referenciais Epistemológicos para a Implementação da Política Pública de Educação das Relações Étnico-Raciais nos Cursos de Direito
Shayene Machado Salles. Bioética Latino-Americana e Afrocentricidade como Práxis Educativa de Libertação: Referenciais Epistemológicos para a Implementação da Política Pública de Educação das Relações Étnico-Raciais nos Cursos de Direito. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direitos e Garantias Fundamentais da Faculdade de Direito de Vitória (FDV), 2022, 229 folhas.
Perante uma expoente Banca Examinadora: Professoras e Professores Elda Coelho de Azevedo Bussinguer, Faculdade de Direito de Vitória, Orientadora; Ricardo Goretti Santos, Faculdade de Direito de Vitória; Wanderson Flor do Nascimento, meu colega da Universidade de Brasília; Edilene Souza da Silva Neves, Faculdade de Música do Espírito Santo; Gustavo Henrique Araújo Forde, Universidade Federal do Espírito Santo, tive ensejo de participar de uma qualificada interlocução em seguida à leitura de uma notável trabalho acadêmico, assinado por Shayene Machado Salles.
Transcrevo o seu Resumo:
A partir da Bioética Latino-Americana e da Afrocentricidade, esta tese propõe-se analisar os referenciais epistemológicos advindos de tais conhecimentos para a constituição uma “práxis” educativa de Libertação baseada nos pilares da política pública de Educação das Relações Étnico-Raciais para os cursos de Direito. Objetiva oferecer respostas aos seguintes questionamentos: a) Quais são as possíveis contribuições da Bioética e da Afrocentricidade, em suas respectivas potencialidades, para, em conjunto, constituírem uma “práxis” educativa libertadora de enfrentamento ao racismo estrutural por meio da política pública de Educação das Relações Étnico-Raciais, no âmbito dos cursos de Direito?; b) De que modo tais saberes (Bioética e Afrocentricidade) podem contribuir para a execução do “Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais” e da diretriz da transversalidade da Educação das Relações Étnico-Raciais nos cursos de Direito, instituída pelo art. 2º, § 4º da Resolução n.º 5/2018 do Conselho Nacional de Educação (legislação que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Direito)? Para tanto, relaciona-se a política pública de Educação das Relações Étnico-Raciais tanto com as questões persistentes em Bioética (e com a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da Unesco), repensando princípios e identificando as principais teorias e fundamentos dela advindos, quanto com a necessidade e urgência da adoção de um posicionamento afrocêntrico para a compreensão do mundo e da Educação Jurídica sob o viés de referenciais contra-hegemônicos, isto é, não ocidentais (tendo em perspectiva a libertação dos processos de opressão, desconstrução e subjugação de epistemes afrocentradas, fomentados pelo eurocentrismo). Baseia-se tanto na concepção dialética do Direito (e da ciência jurídica) inspirada por Roberto Lyra Filho, pela Teoria Crítica do Direito desenvolvida por Luís Alberto Warat e pela concepção do Direito como Liberdade advinda de José Geraldo de Sousa Júnior, quanto na concepção dialética da Educação adotada por Paulo Freire e complementada por Moacir Gadotti a partir da proposta de uma “Pedagogia da Práxis”. Para aprofundar a reflexão sobre a libertação no âmbito educacional, alude-se, ainda, aos estudos sobre colonialidade e, em especial, às contribuições de Enrique Dussel (para libertar-se da opressão do sistema-mundo forjado na modernidade) e de Aníbal Quijano (para libertar-se das colonialidades do ser, saber e poder). A influência de tais concepções opera como relevante substrato analítico para a articulação da Bioética Latino-Americana (de Intervenção) e da Afrocentricidade com a Educação Superior Jurídica, bem como para a fundamentação da sua aplicabilidade como referenciais epistemológicos à Política Pública de Educação das Relações Étnico-Raciais. Por meio da identificação das contribuições epistemológicas da Bioética e da Afrocentricidade para os cursos de Direito, a pesquisa identifica o que se denomina “pressupostos bioéticos e afrocêntricos práxicos reflexivos” como premissas a serem consideradas por uma Educação Jurídica concebida e compreendida como prática efetiva de Liberdade, propondo, desse modo, a constituição de uma epistemologia de análise crítica, potencialmente libertadora (porquanto antirracista), na medida em que se apresenta como fomentadora de um olhar sensível e comprometido com as vulnerabilidades étnico-raciais no âmbito da Educação Superior Jurídica.
As articulações político-epistemológicas a que a tese remete, para mim são, de saída, muito úteis no contexto de minha colaboração intensa com a Fiocruz, especialmente a Fiocruz Brasília, na qual se instala a sua escola de governo. Ali venho desenvolvendo na pós-graduação, ultimamente com a co-docência de meu colega na UnB Swedenberger Barbosa, nos programas de mestrado em Direito Sanitário e Biotécica e, mais precisamente na disciplina “Direito à Saúde, Direitos Humanos e o Direito Achado na Rua”. No programa ainda em execução neste semestre o centro programático são as obras que co-organizei Direitos Humanos & Covid-19 (1º volume: Os Grupos Vulnerabilizados no Contexto da Pandemia; 2º volume: Respostas Sociais à Pandemia).
Aliás, em meu diálogo antecedente com Swendenberger Barbosa, fui fixando meu entendimento, base para a avaliação do trabalho de Shayene, num registro que assentei ao fazer a leitura de seu livro A Bioética no Estado Brasileiro. Situação Atual e Perspectivas Futuras, Swedenberger do Nascimento Barbosa. Brasília: Editora UnB, 2010.
Conforme esse registro, que pode ser conferido em http://estadodedireito.com.br/bioetica-no-estado-brasileiro-situacao-atual-e-perspectivas-futuras-swedenberger-nascimento-barbosa/. Desde a sua consolidação como campo de conhecimento autônomo a Bioética vem recebendo o aporte de várias contribuições teóricas que lhe servem de base de fundamentação e de organização de seus discursos. A partir de diferentes critérios que servem à estruturação desses discursos, é possível designar os modelos que lhe correspondem e até identificar a especialização de correntes que se distinguem em suas propostas, localização, formas de intervenção e reconhecimento de seus principais formuladores.
Assim, é possível falar-se, hoje, de uma bioética latino-americana, com modelo epistemológico bem definido e com lugar de reconhecimento, a partir do âmbito de enunciação que lhe assegurou auditório e contexto argumentativo preciso. Fala-se, neste sentido, de uma bioética de intervenção, cujas reflexões, adensadas nas condições limite de armação dos dilemas morais num continente ainda imerso num quadro de profundas e injustas assimetrias, apelam a uma politização dos modos de interpretação dos conflitos morais inscritos nesses dilemas.
Aludo à caracterização que propõem Volnei Garrafa e Jorge Cordón (organizadores, Pesquisa em Bioética no Brasil de Hoje, São Paulo, Gaia, 2006), reivindicando, inclusive, uma bioética constitutiva de uma escola brasileira, “como uma nova disciplina mais abrangente, mais comprometida com a realidade, mais inclusiva que exclusiva, mais ‘politizada’; como uma nova ferramenta teórico-metodológica que tem responsabilidades concretas em relação não somente ao estudo e interpretação das questões éticas, mas, principalmente, com a formulação das respostas possíveis e mais adequadas para os problemas constatados na totalidade complexa que nos cerca e da qual – queiramos ou não – fazemos parte” (pág. 12).
Dessa bioética de intervenção que vem sendo firmemente designada, notadamente pelo Professor Volnei Garrafa, da Universidade de Brasília, em comunicações (1998, Mar del Plata, Argentina), congressos (2002, VI Congresso Mundial de Bioética, Brasília) e artigos (Garrafa, V., Porto D., Intervention bioethics: a proposal for peripheral countries in a context of power and injustice. Bioethics 2003; 17: 399-416;), institucionalizou-se na UnB, um adensado programa de estudos e pesquisas pós-graduados em Bioética, a partir do Núcleo de Estudos em Bioética, vinculado ao Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares e à Faculdade de Saúde, em que veio instalar-se a Cátedra UNESCO de Bioética da UnB e cujo principal eixo investigativo é, exatamente, a “Bioética de Intervenção”.
Tomando o Sumário da Tese, cuja transcrição se faz importante para dar a medida da profundidade do estudo, vê-se que esse é o ponto de partida, em enunciados que vão ativar os demais pilares que armam a sua discussão:
1 INTRODUÇÃO2 BIOÉTICA LATINO-AMERICANA COMO REFERENCIAL
EPISTEMOLÓGICO
2.1 POTTER À BIOÉTICA PRINCIPIALISTA
2.2 DA CRÍTICA AO PRINCIPIALISMO À EMERGÊNCIA DE BIOÉTICAS NO
PLURAL
2.3 BIOÉTICA LATINO-AMERICANA NA INTERFACE COM A DECLARAÇÃO UNIVERSAL DE BIOÉTICA E DIREITOS HUMANOS DA UNESCO: UMA ALIANÇA ENTRE OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E A ÉTICA SOBRE A VIDA
2.4 BIOÉTICA LATINO-AMERICANA (DE INTERVENÇÃO) E LIBERTAÇÃO NA INTERFACE COM A (RE)LEITURA DOS PRINCÍPIOS DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DE BIOÉTICA E DIREITOS HUMANOS DA UNESCO
2.5 BIOÉTICA LATINO-AMERICANA (DE INTERVENÇÃO) E DIREITOS FUNDAMENTAIS À LUZ DA PEDAGOGIA DA LIBERTAÇÃO
2.6 BIOÉTICA LATINO-AMERICANA (DE INTERVENÇÃO) E ENFOQUE ANTIRRACISTA SOB A ÓTICA DOS ESTUDOS SOBRE COLONIALIDADE E DA CRÍTICA AO EUROCENTRISMO: BASES PARA A FORMULAÇÃO DE UMA BIOÉTICA CRÍTICA FUNDADA NA PERSPECTIVA AFRICANA E AFROBRASILEIRA
3 AFROCENTRICIDADE COMO REFERENCIAL ESPISTEMOLÓGICO
3.1 AFROCENTRICIDADE COMO FENÔMENO PRÁXICO-REFLEXIVO PARA A COMPREENSÃO DO MUNDO: PROPOSTA DE (RE)LEITURA E (RE)ESCRITURA DA HISTÓRIA DA HUMANIDADE
3.2 AFROCENTRICIDADE COMO ALTERNATIVA ÉTICA PARA DESCOLONIZAR O CONHECIMENTO E OS MODOS DE CONHECER: CAMINHO CONCRETO Á LIBERTAÇÃO
4 CIÊNCIA DO DIREITO, ENSINO JURÍDICO E SUA CRÍTICA EM LUÍS ALBERTO WARAT, ROBERTO LYRA FILHO E JOSÉ GERALDO DE SOUSA JUNIOR: PREMISSAS MARGINAIS PARA A APLICAÇÃO DE UMA PERSPECTIVA PEDAGÓGICA LIBERTADORA NA EDUCAÇÃO SUPERIOR JURÍDICA
4.1 DA CRÍTICA AO PENSAMENTO JURÍDICO TRADICIONAL À ELABORAÇÃO DE UMA EPISTEMOLOGIA CONTRADOGMÁTICA EM WARAT: PARA LIBERTAR-SE DA CONCEPÇÃO HEGEMÔNICA DE CIÊNCIA E DO CARÁTER POLÍTICO-IDEOLÓGICO DO DISCURSO
4.1.1 Conhecimento, mito, discurso e poder na Ciência Jurídica
4.1.2 Por uma epistemologia contra-dogmática da complexidade
4.2 CONCEPÇÃO DIALÉTICA DO DIREITO E CRÍTICA AO ENSINO JURÍDICO EM ROBERTO LYRA FILHO (DA OPOSIÇÃO ENTRE DIREITO E LEGALIDADE À AFIRMAÇÃO DA MARGINALIDADE COMO ALTERNATIVA PARA A CONSTRUÇÃO DE NOVAS CATEGORIAS JURÍDICAS): PARA LIBERTAR-SE DO POSITIVISMO ACRÍTICO E DO DISTANCIAMENTO ENTRE O JURISTA E A REALIDADE SOCIAL
4.3 DIREITO COMO LIBERDADE EM JOSÉ GERALDO DE SOUSA JÚNIOR: PARA LIBERTAR-SE CONSCIENTE E COLETIVAMENTE A PARTIR DAS RUAS, À LUZ DOS DIREITOS HUMANOS, E PARA A ADESÃO À PROPOSTA DE INTERVENÇÃO ÉTICO-POLÍTICA ADVINDA DO MARCO REGULATÓRIO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR JURÍDICA BRASILEIRA
5 PRESSUPOSTOS TEÓRICOS PARA A CONSTITUIÇÃO DE UMA PEDAGOGIA DA PRÁXIS LIBERTADORA PARA OS CURSOS DE DIREITO SOB A ÓTICA DA EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS
5.1 RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NA DIMENSÃO DE PODER (RAÇA COMO CRITÉRIO DE CLASSIFICAÇÃO SOCIAL): BASES PARA UMA PRÁXIS ANTIRRACISTA NO ÂMBITO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR JURÍDICA
5.2 LIBERTAÇÃO “DE” E “PARA” QUÊ? “LIBERTAÇÃO” COMO CATEGORIA ANALÍTICA ESTRUTURANTE PARA A IMPLEMENTAÇAO DA POLÍTICA PÚBLICA DE EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NOS CURSOS DE DIREITO À LUZ DA PEDAGOGIA DECOLONIAL
5.2.1 Libertação em Enrique Dussel: para libertar-se da exclusão e opressão do sistema-mundo forjado na modernidade (e do encobrimento do outro)
5.2.2 Libertação em Aníbal Quijano: para libertar-se do eurocentrismo e das colonialidades do ser, saber e poder
5.2.3 Libertação em Paulo Freire (e Moacir Gadotti): para libertar-se da opressão e da inconsciência a partir da “pedagogia da práxis”
6 A POLÍTICA PÚBLICA DE EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E A TRANSVERSALIDADE DE CONTEÚDOS EXIGIDOS EM DIRETRIZES NACIONAIS ESPECÍFICAS
6.1 POLÍTICA PÚBLICA DE EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS: BASES NORMATIVAS E RELACIONAMENTO COM A POLÍTICA PÚBLICA DE EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS
6.2 DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS PARA OS CURSOS DE DIREITO (COM ÊNFASE NA TRANSVERSALIDADE DA POLÍTICA DE EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS) E A IMPLEMENTAÇÃO DA LEI N.º 10.639/2003 MEDIANTE PRÁTICAS EDUCATIVAS ANTIRRACISTAS
7 TRANSVERSALIDADE DA POLÍTICA PÚBLICA DE EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NOS CURSOS DE DIREITO NA INTERFACE COM A BIOÉTICA LATINO-AMERICANA DE INTERVENÇÃO E COM A AFROCENTRICIDADE: REFERENCIAIS EPISTEMOLÓGICOS PARA O ENSINO JURÍDICO LIBERTADOR
7.1 POTENCIAIS CONTRIBUIÇÕES EPISTEMOLÓGICAS DA BIOÉTICA LATINO-AMERICANA DE INTERVENÇÃO: PRESSUPOSTOS BIOÉTICOS PRÁXICO-REFLEXIVOS PARA A ORIENTAÇÃO E IMPLEMENTAÇÃO DA POLÍTICA PÚBLICA DE EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NOS CURSOS DE DIREITO
7.2 POTENCIAIS CONTRIBUIÇÕES EPISTEMOLÓGICAS DA AFROCENTRICIDADE: PRESSUPOSTOS AFROCÊNTRICOS PRÁXICO-REFLEXIVOS PARA A ORIENTAÇÃO E IMPLEMENTAÇÃO DA POLÍTICA PÚBLICA DE EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NOS CURSOS DE DIREITO
7.3 BIOÉTICA LATINO-AMERICANA DE INTERVENÇÃO E AFROCENTRICIDADE COMO CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE PARA A FUNDAMENTAÇÃO ÉTICA E POLÍTICA DO PROJETO PEDAGÓGICO DO CURSO DE DIREITO E DOS INSTRUMENTOS DE AVALIAÇÃO DO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
O segundo pilar no qual a Autora assenta seus pressupostos é o de afrocentricidade. Na banca, presente como arguidor o meu colega no Programa de Direitos Humanos e Cidadania Uã Flor, pesquisador do campo da bioética, mas filósofo que tem colecionado e sistematizado a contribuição originada das áfricas, me contive nesse tema sobre demarcar essa procedência. Entretanto, procurando fixar, em correspondência aos referenciais decoloniais adotados na Tese, o modo como, em meus estudos o conceito tem incidência.
Assim, desde uma aproximação mais geral que esbocei no início de minhas leituras sobre pluralismo jurídico e que lancei num ensaio publicado em 1986 – Cidadania e Cultura Afro-Brasileira (Sociedade e Estado. Revista Semestral do Departamento de Sociologia da UnB, vol 1, nº 1, junho/86), segui palmilhando num percurso de localização, a problematização que procurei suscitar, por último, sobre o lugar entre nós latino-americanos do experimento colonial e sobre indicar que é desde esse lugar que vislumbro o modo decolonial como condição para de minha parte figurar o que penso, pode representar um projeto de libertação, de emancipação e de humanização possíveis, tal como o fiz em exposição no XXIII Congresso está designando como PODER, CONFLITO E CONSTRUÇÃO CULTURAL NOS ESPAÇOS LATINO-AMERICANOS (a propósito ver o meu Territórios de Conhecimentos e de Intersubjetividades: um lugar social para a Universidade. Revista Humanidades. Brasília: Editora UnB, nº 65, dezembro 2021).
Recupero dessas referências, uma alusão a Para Paulo Freire esteio de fundamentação da Tese de modo ao qual voltarei a me referir. Aqui, entretanto, por um vínculo marcante em nossa cultura comum, no que ele assenta que a humanização não é destino. Conforme Freire, “A luta pela humanização, pelo trabalho livre, pela desalienação, pela afirmação dos homens como pessoas, como ‘seres para si’, esta luta pela humanização somente é possível porque a desumanização, mesmo que um fato concreto na história, não é, porém, destino dado, mas resultado de uma ‘ordem’ injusta que gera a violência dos opressores e esta, o ser menos. (…) O ser menos leva os oprimidos, cedo ou tarde, a lutar contra quem os fez menos. E esta luta somente tem sentido quando os oprimidos, ao buscarem recuperar sua humanidade, que é uma forma de criá-la, não se sintam opressores, nem se tornem, de fato, opressores dos opressores, mas restauradores da humanidade em ambos. E aí está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos – libertar-se a si mesmos e aos opressores. (…) Só o poder que nasça da debilidade dos oprimidos será suficientemente forte para libertar a ambos.”
Comecei com Paulo Freire porque ele é um pensador que reflete sobre a emancipação do humano a partir de realidades próximas latino-americanas e africanas que mais intimamente vivenciaram a crueza da alienação do humano. Considero que a africanidade é um elo encadeado ao latinoamericanismo no território cultural que o colonialismo forjou no trânsito através do rio chamado Atlântico.
É assim que as literaturas africanas participam da “tendência – quase um projecto – de investigar a apreensão e a tematização do espaço colonial e pós-colonial e regenerar-se a partir dessa originária e contínua representação. Os significadores desse processo, que constituem a singularidade da nossa pós-colonialidade literária, são potencialmente produtivos: sinteticamente dizem respeito a uma identidade nacional como uma construção a partir de negociações de sentidos de identidades regionais e segmentais e de compromisso de alteridades. O que as literaturas africanas intentam propor nestes tempos pós-coloniais é que as identidades (nacionais, regionais, culturais, ideológicas, sócio-econômicas, estéticas) gerar-se-ão da capacidade de aceitar as diferenças” (Conforme O pós-colonial nas literaturas africanas de língua portuguesa, Inocência Mata da Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa (https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4033274/mod_resource/content/1/MATA%2C%20Inoc%C3%AAncia%20-%20O%20p%C3%B3s-colonial%20nas%20literaturas%20africanas.pdf)
De resto, vislumbro nessa abordagem um pano de fundo para as leituras mais explícitas ou mesmo as implícitas em circulação. Isso significa não perder de vista que a tríade dominação/exploração/conflito, apresentada pelos estudos decoloniais, explode a univocidade discursiva no estágio em ensino, sobretudo, de filosofia. Afirmam Ana Claudia Rozo Sandoval e Luís Carlos Santos (ESTUDOS DECOLONIAIS e FILOSOFIA AFRICANA: POR UMA PERSPECTIVA OUTRA NO ENSINO DA FILOSOFIA. Revista Páginas de Filosofia, v. 6, n. 2, p.1-18, jul./dez. 2014) que “a disputa pela realidade é um traço comum dos filósofos, seja ele interpretando, desconstruindo, criando conceitos, mas o que se quer é disputar a realidade. E para isso colocamos em crise o solo em que se pisa, como um lugar produzido à imagem e semelhança da produção de um discurso que legitimou historicamente a exploração e dominação, e o conflito estabelecido ao buscar filosofar-se caiu na armadilha da representação. Este é um dos primeiros elementos que precisam ser descortinados, a representação. Pois a imagem que se traduziu nos discursos era apenas a europeia. O exercício de pensar-se, o que é próprio da filosofia encontra-se no poço sem fundo, no beco sem saída da armadilha da representação europeia moderna, ocidentalizada na contemporaneidade. A perspectiva decolonial (ou estudos Modernidade/colonialidade) e as filosofias africanas colocam em discussão o epistemicídio e o semiocídio cultural. O conhecimento, e as formas de acessá-lo, e a diversidade cultural no fazer filosófico colocam em evidência outros modos de ser e fazer filosofia. Problemas não considerados filosóficos começam a ser problemas de interesse de outros sujeitos que foram negados pelo sistema mundo eurocentrado”.
Questões, aliás, que se ligam ao pensar potente africano, ainda que não expresso em português ou espanhol, do camaronês Achille Mbembe, um dos teóricos mais brilhantes sobre estudos pós-coloniais, centrados no conceito por ele atualizado e contextualizado de necropolítica e expressos em temas que bem recortam o que aqui foi discutido quando ele trata da proliferação do divino na África subsaariana, do racismo como prática da imaginação, do poder, violência e acumulação ou, destacadamente da necropolítica, em textos como cenas fantasmas na sociedade global, além do influente livro A pós-colónia, ensaio sobre a imaginação política na África contemporânea.
No contexto latino-americano, não é diferente, valendo as nuances, diante do que formula Aníbal Quijano. Veja-se o seu artigo “Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina”, no qual aponta os aspectos fundantes do capitalismo e do eurocentrismo. Diz ele: “A dominação é o requisito da exploração, e a raça é o mais eficaz instrumento de dominação que, associado à exploração, serve como o classificador universal no atual padrão mundial de poder capitalista. Nos termos da questão nacional, só através desse processo de democratização da sociedade pode ser possível e finalmente exitosa a construção de um Estado-nação moderno, com todas as suas implicações, incluindo a cidadania e a representação política”.
Retorno a Paulo Freire agora na sua envergadura de arrimo da base pedagógica proposta pela Autora da Tese. No que me toca diretamente, me sinto presente e leal ao destacado brasileiro. E tal qual Shayne, considero legítima a apropriação de sua pedagogia da autonomia como base para pensar uma educação libertadora trazida diretamente para o campo jurídico.
Minha afirmação vem de uma procedência que convêm assinalar. A convite de sua viúva e colaboradora Ana Maria Araújo Freire participei da obra comemorativa que organizou, junto com um seleto grupo de autores e autoras de depoimentos, afinal publicada para celebrar o centenário do patrono da educação brasileira (Testamento da presença de Paulo Freire, o educador do Brasil. Depoimentos e testemunhos. Ana Maria Araújo Freire (org). Vários Autores. São Paulo: 1ª Ed. Editora Paz & Terra, 2021).
Meu depoimento no livro traz como título “Direitos Humanos e Educação Libertadora em Paulo Freire”. De propósito evoquei matéria de outra coluna minha nesse Lido para Você, sobre livro organizado também por Ana Maria e Erasto Fortes (Direitos Humanos e Educação Libertadora. Gestão Democrática da Educação Pública na Cidade de São Paulo. Paulo Freire Patrono da Educação Brasileira. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2019) – http://estadodedireito.com.br/direitos-humanos-e-educacao-libertadora/. Então, aludi a outro texto constante do livro “Educação, diversidade, direitos humanos e cidadania. Escritos e compromissos”. Organizadores: Lúcia Helena Cavasin Zabotto Pulino e Clerismar Aparecido Longo. São Paulo: Editora Letra e Voz, 2020, 214 p. (https://estadodedireito.com.br/educacao-diversidade-direitos-humanos-e-cidadania/), oportunidade em que conclui o meu escrito com uma nota evocativa: “Trata-se, diz freireanamente a Professora Pulino, no Prefácio, de forjar ‘a escrita e a leitura como direito e dever de mudar o mundo’, o que significa compreender, ainda com Paulo Freire, (Direitos Humanos e Educação Libertadora. Gestão Democrática da Educação Pública na Cidade de São Paulo. Paulo Freire Patrono da Educação Brasileira. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2019), livro ao qual em breve, pretendo fazer um mergulho evocativo que resgate a saga de Paulo Freire sob a perspectiva da interrelação entre Direitos Humanos e Educação Libertadora. Trata-se, em suma, conforme diz Erasto, na dedicatória manuscrita de seu livro com Nita Freire, certamente na expectativa de que eu o resenhe, de ‘compreender a educação como prática social humanizadora’, e com Paulo Freire, ‘assumir nossa causa comum, a dos Direitos Humanos’”.
A chave de leitura que Paulo Freire indica para extrair significado da obra está, em texto que ele justifica o seu título: “Direitos Humanos e Educação Libertadora”, na extensão de uma concepção muitas vezes lançada em seus trabalhos, segundo a qual a educação não transforma o mundo, transforma as pessoas que transformam o mundo. Por isso, em sua justificativa, ele recupera essa chave: “A educação não é a chave, a alavanca, o instrumento para a transformação social. Ela não o é, precisamente porque poderia ser”. Explicitando: “É exatamente porque a educação se submete a limites que ela é eficaz…Se a educação pudesse tudo, não haveria por que falar nos limites dela. Mas constata-se, historicamente, que a educação não pode tudo. E é exatamente não podendo tudo que pode algumas coisa, e nesse poder alguma coisa se encontra a eficácia da educação. A questão que se coloca ao educador é saber qual é esse poder ser da educação, que é histórico, social e político”.
Por isso que na Apresentação, Ana Maria Araújo Freire (Nita Freire) situa a proposta filosófica de Paulo Freire na sua perspectiva de autonomia no sentido utópico de “um inédito viável de humanização”, que pôde ser orientado por uma gestão apta a traduzir a compreensão “ético-político-antropológica de uma epistemologia crítico-educativo-conscientizadora, que, em última instância, tem como ponto central a humanização de todos e todas”, portanto, um programa para “dignificar as gentes, as pessoas”, sendo assim, substantivamente, uma política de educação em e para os direitos humanos.
Isso o confirma Paulo Freire. A Educação em Direitos Humanos pressupõe “compreensão política, ideológica do professor” para se constituir em “educação para os direitos humanos, na perspectiva da justiça, (que) é exatamente aquela educação que desperta os dominados para a necessidade da briga, da organização, da mobilização crítica, justa, democrática, séria, rigorosa, disciplinada, sem manipulações, com vistas à reinvenção do mundo, à reinvenção do poder”. Em suma, “Essa educação para a liberdade, essa educação ligada aos direitos humanos nesta perspectiva, (que) tem que ser abrangentes, totalizante, (que) tem a ver com o conhecimento crítico do real e com a alegria de viver”.
Reside nesse passo, a segunda motivação que me compromete com a obra e que dá sentido ao meu depoimento. Ou seja, essa apreensão que pode se encontrar entre Paulo Freire, de uma ligação entre educação, justiça, direito e direitos humanos, que não seja apenas uma evocação de sua originária formação em Direito, depois de um rápido ensaio inicial na advocacia.
Nesse passo, registro que essa ligação foi desde logo estabelecida por Nita Freire. É dela a leitura que desvela uma “pedagogia dos direitos humanos” como proposta freireana de “inserção crítica dos homens e das mulheres nas suas sociedades ao possibilitar-lhes terem voz, dizerem a sua palavra, biografarem-se” (FREIRE, Ana Maria Araújo (Nita Freire). Acesso à Justiça e a Pedagogia dos Vulneráveis. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al. Organizador. Introdução Crítica ao Direito à Comunicação e à Informação. Série O Direito Achado na Rua, vol. 8. Brasília: FAC/UnB Livros, 2017).
A meu ver, a notável apreensão dessa imbricação emancipatória se apresentou de forma inesperada quando recebi um pedido de Nita Freire que me solicitava referências jurídicas de uma possível relação que se pudesse estabelecer entre o pensamento do educador brasileiro, forte numa pedagogia de autonomia, e o direito. É que ela havia sido convidada a proferir uma conferência na Escuela del Servicio de Justicia, a Escola de Magistratura argentina, e gostaria de focalizar a sua apresentação pondo em relevo essa relação.
Relembro que diante do pedido de Nita, enviei-lhe duas dissertações de mestrado, ao final, fortemente citadas em sua conferência – “Acesso à Justiça e a pedagogia dos vulneráveis”; ou “O pensamento de Paulo Freire e sua relação com o Direito como prática para a libertação” – em base as quais desenvolveu os seus argumentos afirmativos da relação procurada (FREIRE, 2014): FEITOZA, Pedro Rezende Santos. O direito como modelo avançado de legítima organização social da liberdade: a teoria dialética de Roberto Lyra Filho. Dissertação apresentada em 2014, na UnB; GÓES JUNIOR, José Humberto de. Da Pedagogia do Oprimido ao Direito do Oprimido: Uma Noção de Direitos Humanos na Obra de Paulo Freire. Dissertação de Mestrado, Mestrado em Ciências Jurídicas, UFPB, João Pessoa, 2008.
Tal como exponho em outro escrito meu (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. O Direito Achado na Rua: Condições Sociais e Fundamentos Teóricos. Revista Direito e Praxis, Rio de Janeiro, vol. 10, n º 4, 2019, p. 2776-2817).
Não deixou, entretanto, de ser uma surpresa, rica e inesperada, acompanhar o modo como a conferencista estabelece a relação e sabe se valer das contribuições que lhe foram oferecidas, tanto mais valiosas quanto elaboradas por dois bem investidos do conhecimento e da prática que balizam O Direito Achado na Rua, para operar com as categorias formuladas por Roberto Lyra Filho e designar, na interconexão que logra estabelecer, entre Roberto Lyra Filho e Paulo Freire, entre o Direito e a Pedagogia da Autonomia, na sua leitura, tornada possível pela mediação de O Direito Achado na Rua. Percebe-se isso na conclusão que propõe (FREIRE, Ana Maria Araújo Freire (nita freire). Conferência proferida em Buenos Aires, em 25 de setembro de 2014, na Escola de Serviço de Justiça, em programa de especialização em Magistratura. www.odireitoachadonarua.blogspot.com, acesso em 03.02.2015):
“Por tudo que foi exposto torna-se possível asseverar, que, a relação de Paulo Freire com o Direito nega veemente a concepção tradicional do direito da Modernidade e se alia ___ talvez fosse mais correto dizer que ele, ao lado de outros intelectuais que enriqueceram o pensamento da esquerda mundial criaram um nova leitura do mundo, humanista e transformadora, dentro da qual meu marido concebeu uma teoria epistemológico-ético-político-antropológico-critica de educação, que está alinhada com a concepção do Direito Achado na Rua, a Teoria Dialética Social do Direito. Entretanto, cabe aqui uma ressalva: o jurista Roberto Lyra Filho, que embasa Feitoza e Góes, como também este meu trabalho, não cita Paulo Freire em nenhum dos seus mais de 40 livros. Porém, fica evidente, com uma simples leitura dos trabalhos deles, que Lyra sorveu princípios e utilizou algumas categorias fundamentais da teoria do educador brasileiro, seu conterrâneo”.
Numa nota curiosa, exatamente no embalo das mobilizações do centenário de Paulo Freire, um outro achado precioso vem corroborar essa ligação, repito, no grande brasileiro, entre educação, justiça, direito e direitos humanos. Trata-se de uma quase arqueologia. Com sabor de mística. O meu dileto colega José Eymard Loguércio|, que já havia com seu grupo de companheiros do Grupo Direito e Avesso (denominação do Boletim fundado em 1982 por Roberto Lyra Filho para organizar os resultados dos estudos da por ele denominada NAIR – Nova Escola Jurídica Brasileira, que levou à criação Brasil afora de inúmeros coletivos antidogmáticos de professores e estudantes de direito insatisfeitos com a ideologização do campo pelo paradigma do positivismo jurídico), preservando em fita VHS a última conferência de Roberto Lyra Filho, às vésperas de sua morte em 1986, preserva também, em notas datilografadas, a roda de conversa mantida pelo grupo com Paulo Freire, sobre conhecimento e ensino do Direito.
Recorto do fac-simile da página 7, da transcrição, essa passagem singular:
Vocês dizem que há uma certa dissociação entre o ensino do Direito e a realidade social. Para mim, ao contrário, há uma associação enorme entre Direito e a realidade, mas a realidade da classe dominante, a minha dissociação é entre Direito e a realidade social popular. Nesse sentido é que o positivismo deve, a meu ver, ser encarado, não como um método de ensino, mas como a positividade do direito atual em favor das classes dominantes. Vocês têm que levar em conta que tudo está tão bem feito e organizado, que inclusive o arcabouço do Estado está positivisticamente estruturado, e é por isso que existe uma perversidade nas estruturas
Ana Maria certamente desconhecia essa passagem de seu marido e co-autor com ela em muitos escritos. Mas acertou em cheio ao asseverar que a relação de Paulo Freire com o Direito nega veemente a concepção tradicional do direito da Modernidade no que ele concebeu como uma teoria epistemológico-ético-político-antropológico-critica de educação, que está alinhada com a concepção do Direito Achado na Rua, a Teoria Dialética Social do Direito.
Observe-se que o próprio Paulo Freire, no fragmento recolhido por José Eymard Loguércio e colegas, o confirma indicando um programa de direitos humanos para uma educação libertadora, na medida em que mudando as pessoas essas possam mudar a sociedade:
Portanto, um sonho de universidade passa necessariamente pelo sonho de sociedade – e o sonho da universidade só se plenifica quando a sociedade radicalmente se transforma. Isso não significa que a gente tenha que esperar a mudança da sociedade para começar a ensaiar mudanças… Se a gente cair na estória de que só é possível modificar essa estrutura jurídica solidamente positivista – tanto sua compreensão como sua prática – depois que a sociedade capitalista mudar…
Apesar do estranhamento de Paulo Freire com a prática da advocacia, curiosamente conforme dizem Ricardo Prestes Pazello e Tchenna Fernandes Maso (O Legado de Paulo Freire para a Assessoria Jurídica Popular. Revista Estudos do Sul Global nº 2), são exatamente os:
juristas populares [que] vão buscar inspiração em seu legado para construir uma nova prática de militância no direito [nas] Assessorias Jurídicas Populares (AJP)”. De fato, dizem esses autores, o “pensamento de Freire é central para construir a ponte entre o trabalho dos juristas populares com os movimentos sociais [num] sentido ampliado de educação como prática da liberdade [para construir] um uso dialógico e crítico do direito, inserido em um horizonte de transformação social
Para esses autores, enquanto relaciona práticas do campo do direito que se colocam em apoio aos sujeitos oprimidos, a pedagogia da autonomia de Freire e seu método de conscientização, como que se inscrevem em fundamento do afazer da assessoria jurídica popular. Com efeito, eles dizem:
Como eixos políticos, a AJP atua: em uma perspectiva crítica do direito que pode ser traduzida, no geral, como um uso tático do direito, podendo se exemplificar na litigância que se vale da normativa progressista, sobretudo após a Constituição de 1988 ou no uso relido do direito, principalmente por magistrados, promotores, defensores compro em todas as suas dimensões e potencialidades; b) na educação popular, por meio da práxis jurídica insurgente como contribuição para o processo de organização das massas, a partir da luta por condições fundamentais à vida do povo; e na formação política necessária para uma ação que promova transformações estruturais na sociedade
E eles continuam:
A Pedagogia do oprimido, é, portanto, o livro de cabeceira dos sujeitos da AJP, é nele que esses atores encontram formas de enfrentar as contradições do capital nos territórios que atuam conseguindo estabelecer com as comunidades as relações de seus conflitos com a totalidade e a superação da alienação que afeta a ambos. A noção de dignidade humana, a ação como prática da libertação, o educar como ato de amor são o método para que esses sujeitos rompam com as categorias abstratas do direito em sua ação concreta, tornando a educação popular o carro-chefe da transformação em que os direitos humanos serão ressignificados
Retomo Nita Freire quando ela estabelece a incindível ligação entre a “teoria epistemológico-ético-político-antropológico-critica de educação, que está alinhada com a concepção do Direito Achado na Rua, a Teoria Dialética Social do Direito”. É exatamente essa ligação, explícita, que fundamenta, na Faculdade de Direito, a institucionalização da Assessoria Jurídica Popular Roberto Lyra Filho. Colocando na mesma mesa dialógica Freire e Lyra Filho, os proponentes do projeto o inserem na modelagem segundo a qual “a Assessoria Jurídica Universitária Popular, por ser um projeto de extensão, tem, em sua essência, o condão de ser um braço da educação popular dentro da universidade, tornando-se um ‘instrumento indispensável à produção de um saber emancipatório e contextualizado com o seu tempo e espaço’ (SOUSA; COSTA; FONSECA; BICALHO: 2010). De forma concreta e objetiva, a AJUP, como uma assessoria, faz parte de todo o processo de tomada de consciência e de reação de sujeitos frente a conflitos fomentados pela própria relação injusta na sociedade. O acompanhamento da questão problema, desde a relação dos sujeitos envolvidos às resoluções encontradas, é de suma importância técnica, no que se refere à educação popular, mas também, política e metodologicamente, para quem está compreendendo e mudando a relação dos próprios conflitos” (SOUSA, Adda Luisa de Melo; MACÊDO, Gabriel Remus; CARILHO, Jana Louise Pereira; SILVA, Kelle Cristina Pereira da; PRÓBIO, Marcos Vítor Evangelista; BERALDO, Maria Antônia Melo; RODRIGUES, Moema Oliveira. Educação Popular e Práxis Extensionista Transformadora: a ação da Assessoria Universitária Popular e O Direito Achado na Rua. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al (orgs) O Direito Achado na Rua vol. 10: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade. Brasília: Editora UnB/Editora da OAB Nacional, 2021, p. 611-622).
Com certeza, a história nem começa, nem termina aqui. Ela se orienta por um exigente aprendizado, feito de evidentes ganhos intersubjetivos, na UnB, proporcionados por essa incindível ligação entre O Direito Achado na Rua (Roberto Lyra Filho) e a Pedagogia da Autonomia (Paulo Freire). Mas cada vez mais entre o direito como emancipação e o pensamento interpelante de Paulo Freire.
Mais fortemente quando o apelo ao Direito parte dos Movimentos Sociais, atentos às exigências de processos formativos para adensar os protagonismos dos sujeitos que neles se inscrevem. Nesse passo, ou porque diretamente suscitando as dimensões metodológicas que trazem o jurídico e o seu ensino para o chão da realidade que desafia os saberes, conforme constato nas frequentes jornadas universitárias em defesa da reforma agrária – Jura, no caminho que a extensão abre para o diálogo acadêmico com entidades desse campo – MST, Via Campesina – criando espaços de reflexão sobre a epistemologia e a metodologia freireanas apropriadas aos processos dialógicos e afetivos que o direito proporciona à emancipação, a exemplo da roda de conversa instalada no ambiente da Universidade Federal de Rondonia, sobre o tema “O Direito Achado na Rua e o Método Paulo Freire no Ensino do Direito” – https://www.youtube.com/watch?v=wL8vpwLyOq4. Seja quando abre pautas acadêmicas para a reflexão avançada em pós-graduação, nesse contexto específico da relação entre formação em direito e em direitos humanos tendo como horizonte epistemológico-político questões suscitadas por movimentos sociais.
Vou às Considerações Finais expendidas na Tese, em tudo relevantes para interessar pesquisadores e editores convocados para o seu exame:
A Bioética, compreendida sob a vertente crítica direcionada à realidade periférica de países latino-americanos, apresenta-se, segundo a proposta da Bioética de Intervenção, oriunda da Cátedra Unesco de Bioética da Universidade de Brasília, como relevante contribuição política e epistemológica viabilizadora da compreensão da diversidade e do pluralismo moral e ético que caracteriza a sociedade brasileira, seja por meio da releitura dos princípios da Declaração Universal de Bioética e Direitos da Unesco, seja por meio da apreensão da análise crítica que se constitui como cerne de sua proposta: intervir concretamente na realidade com o fito de transformá-la, inaugurando uma abordagem bioética efetivamente comprometida com os oprimidos, com o enfrentamento dos processos de dominação, como condição de possibilidade para a libertação.
Pensar a Afrocentricidade como referencial epistemológico consiste em aprofundar-se nesse conceito, situando-o no campo dos saberes, com vistas a refletir, no horizonte a que se destina esta tese, sobre a libertação dos processos de opressão, desconstrução e subjugação de epistemes afrocentradas, propiciada pelo eurocentrismo. Implica ressignificar a ciência e o conhecimento hegemonicamente reproduzidos, reivindicando um reposicionamento da histórica, da cultura, dos valores, da filosofia africana, como forma de insurgência ao racismo epistêmico e sem perder de vista o compromisso ético subjacente à teoria, evidenciado na oposição ao etnocentrismo hegemônico, aos colonialismos persistentes propagadores de exclusões e, sobretudo, na busca e defesa da libertação dos excluídos e marginalizados.
Evidencia-se no relacionamento entre os fundamentos da Bioética de Intervenção e da Afrocentricidade, a emergência de epistemologias fundamentalmente críticas, contra-hegemônicas, ou seja, de saberes emancipatórios produzidos a partir do reconhecimento da diversidade étnico-racial e da sua influência nos projetos educativos de valorização cultural e histórica da população afro-brasileira.
A Bioética Latino-Americana e, em especial, a Bioética de Intervenção, a fim de viabilizar concretamente a libertação dos processos de dominação, deve, necessariamente, orientar-se segundo uma perspectiva pedagógica fundamentalmente decolonial, amparada pela análise crítica, inspirada pelos estudos sobre colonialidade, desenvolvidos especialmente por Aníbal Quijano, Walter Mignolo e Enrique Dussel, posto que descolonizar o conhecimento é, antes de tudo, uma questão de comprometimento ético com a própria ciência e com os modos de conhecer, seja pela reflexão ética que principia o denominado “giro deconial”, seja por de se estimular a valorização e o respeito de projetos críticos políticos/éticos/epistêmicos.
Salienta-se, portanto, a convergência do conhecimento produzido pelos pesquisadores representantes do Grupo de Estudos Modernidade/Colonialidade com a proposta de situar a Bioética Latino-Americana de Intervenção, embasada nos estudos sobre colonialidade, e a Afrocentricidade como aportes epistemológicos para a constituição de uma “práxis” libertadora de enfrentamento ao racismo estrutural no âmbito dos cursos de Direito e, notadamente, para a implementação da política pública de educação das relações étnico-raciais na Educação Superior Jurídica.
Para conceber um ensino jurídico que se denomine libertador, há que se levar em consideração o questionamento sobre as condições epistemológicas estruturais em que se alicerçam os cursos de Direito, isto é, se estes se afiguram compromissados com a formação holística de um cidadão que intervirá na sociedade para o rompimento (e não para o fomento) dos processos de opressão e de dominação ou se, pelo contrário, reverberam premissas que se encaminham para a invalidação do conhecimento produzido segundo o embasamento ético-político da equidade racial, robustecendo as balizas da racionalidade moderna ocidental alicerçada no etnocentrismo hegemônico.
Refletir sobre a Educação Superior Jurídica em termos de confrontá-la com o racismo epistêmico implica reconhecer, na conformidade do que propõe Renato Nogueira (2012, p. 63), a necessidade de denegrir o pensamento e o território epistêmico, revitalizando e regenerando as abordagens e suplantando a lógica de dominação e opressão política, econômica, étnico-racial e de gênero que sustenta a educação.
Nessa linha intelectiva, compreende-se que a análise dos processos educacionais que se estabelecem nas Instituições de Ensino Superior de Direito não deve ignorar as influências de ordem política, econômica, moral e cultural. Daí por que, no cenário jurídico, a Teoria Crítica do Direito desenvolvida por Luís Alberto Warat, a concepção dialética do Direito (e da ciência jurídica) inspirada por Roberto Lyra Filho e a compreensão do Direito como liberdade sedimentada por José Geraldo de Sousa Júnior e, no cenário educacional, a perspectiva dialética de Educação adotada por Paulo Freire e complementada por Moacir Gadotti, a partir da “Pedagogia da práxis”, operam como relevante substrato analítico para a articulação e veiculação da Bioética Latino-Americana de Intervenção e da Afrocentricidade como aportes epistemológicos para a implementação da Política Pública de Educação das Relações Étnico-Raciais nos Cursos de Direito.
Por um lado, as análises desenvolvidas por Warat, Lyra Filho e Sousa Junior no âmbito do ensino do Direito e da Ciência Jurídica possuem em comum o fato de tecerem críticas à epistemologia jurídica tradicional, cuja matriz consiste na racionalidade moderna ocidental e colonial, perspectiva que converge com a ideia de descolonização do conhecimento, ainda que tais autores não tenham efetuado uma abordagem específica sobre tal questão.
Além disso, os fundamentos que constituem a abordagem dos aludidos juristas possibilitam elencar, de modo consistente, aquilo do que careceria ao jurista libertar-se, à luz da crítica à epistemologia jurídica moderna, com a finalidade de compor o projeto de um ensino e de uma ciência do Direito pluralista e antirracista.
Nesse contexto, identificam-se: a) na crítica ao pensamento jurídico tradicional elaborada por Luís Alberto Warat, a necessidade de libertar o jurista da concepção hegemônica de ciência e de discurso, salientando a necessidade de uma nova compreensão acerca do conhecimento científico que não ignore a dimensão político-ideológica dos discursos jurídicos e que, consequentemente, vislumbre os cursos de Direito como relevantes instâncias de significação e de poder na sociedade que, portanto, se constituem como potências para a implementação da Política Pública de Educação das Relações Étnico-Raciais; b) na concepção dialética do direito de Roberto Lyra Filho, a necessidade de libertar o jurista do positivismo acrítico e do distanciamento das relações sociais, apresentando a marginalidade como alternativa para a construção de um pensamento novo que se apresenta como inspiração para lançar um olhar racializado sobre as relações sociais e, via de consequência, sobre o fenômeno jurídico, na medida em que concebe os direitos humanos para além da legalidade e possibilita identificar, como importantes pautas valorativas emergentes das lutas para sua efetivação – fruto de reivindicações advindas sobretudo de movimentos populares afrodiaspóricos –, a equidade racial e a diversidade, bem como na medida em que a denúncia reverberada pelo autor no tocante ao distanciamento da pluralidade política e epistemológica alerta quando à necessidade de impedir que o Direito se converta em mero instrumento ideológico a serviço das classes dominantes; e c) na sedimentação do projeto/movimento “Direito Achado na Rua”, promovida por José Geraldo de Sousa Júnior, a necessidade de assumir a liberdade como princípio e fim da ação do jurista, para libertá-lo, não de forma isolada, mas coletivamente, com base nas vozes que emergem das ruas, à luz dos Direitos Humanos, e tendo como horizonte a adesão a propostas de intervenção ético-políticas advindas do atual marco regulatório dos cursos de Direito no Brasil, levando em consideração a articulação entre teoria e prática, a constituição de práticas voltadas à efetivação de direitos, o diálogo interativo entre as instituições de ensino, os atores que diretamente a fomentam (docentes e discentes) e a sociedade, nela abrangida a potência criativa e criadora dos movimentos sociais.
Especialmente em relação a José Geraldo de Sousa Júnior, salienta-se que o compromisso do autor com a libertação – traduzido, nesta tese, na busca por propositivamente estimular, no âmbito da Educação Superior Jurídica, práticas libertadoras de enfrentamento ao racismo estrutural – evidencia a necessidade de relacionamento do Direito com a dimensão ética e política. Isso sugere a adoção de um posicionamento crítico e concreto sobre o mundo direcionado a conceber os movimentos sociais como sujeitos coletivos de direitos, cujas experiências se revela indispensáveis para o processo de criação e de aplicação do Direito.
Por outro lado, e de modo complementar, não há como conceber um projeto educativo que se pretenda emancipatório sem remontar à perspectiva freiriana, a qual remonta à liberação autêntica, concebida em devir, como intervenção concreta sobre o mundo visando à conscientização e à transformação das condições de desigualdades e de opressão.
Vislumbra-se, na obra de Paulo Freire, a tomada de posição em favor dos marginalizados como o principal ponto de interseção entre a Bioética de Intervenção e a proposta de uma Pedagogia da Libertação, na medida em que tal perspectiva bioética também tem como objetivo a luta pela libertação dos oprimidos, o estímulo de uma responsabilidade e solidariedade críticas, em oposição à neutralidade e apatia diante das injustiças sociais. Nesse cenário, ressalta-se que educar para a libertação consiste na tomada de consciência crítica de si e dos outros sobre as condições existenciais e de vida, nela contempladas as condições de trabalho, de sobrevivênciae de resistência.
Uma educação libertadora exige uma intervenção pedagógica posicionada sobre o mundo. Remonta a uma tradição marxista, embora nela não se esgote, concebendo “práxis” como sinônimo de “ação transformadora. Educar é, portanto, transformar o homem, a sua história, o mundo. Afinal, “A pedagogia, como teoria da educação, não pode abstrair-se da prática intencionada. A pedagogia é sobretudo teoria da práxis.” (GADOTTI, 1988, p. 31).
Nesse viés, os fundamentos que constituem a abordagem de Paulo Freire, corroborados por Moacir Gadotti, possibilitam elencar, de modo consistente, aquilo que careceria ao sujeito de direito libertar-se, à luz da crítica à educação tradicional, com a finalidade de compor o projeto educativo pluralista e antirracista: libertar-se do autoritarismo, da compreensão metafísica da educação (que ignora a existência das desigualdades e seus reflexos, dissociando o debate pedagógico da análise política), do tecnicismo (que impede a compreensão da ambiência educacional como projeto popular e político, como instrumento de luta para a transformação).
Observa-se, portanto, que revisitar a obra e a criticidade de autores, cuja contribuição se mostra fundamental para compreender o conhecimento de modo atrelado às relações sociais, unindo teoria e prática, ao mesmo tempo em que se revelaindispensável para a conscientização, também opera como elemento de sustentação e de orientação para os processos históricos de luta pela libertação.
Dessa forma, dito em outras palavras, o que aproxima as abordagens supramencionadas, além da dialética humanística que as orienta, é o fato de se constituírem como bases teóricas cujas contribuições práxico-reflexivas permitem elencar as características para uma Educação Jurídica concebida e compreendida como prática efetiva de liberdade.
Nesse aspecto, desafiar a epistemologia jurídica e a Educação tradicional, como o
fizeram Warat, Lyra Filho, Sousa Junior e Paulo Freire, possibilita que se reconheça, nos pontos de crítica suscitados pelas respectivas análises que desenvolvem, o aspecto comum de situarem o conhecimento como exercício práxico para a libertação, direcionado, na conjuntura latino-americana, ao enfrentamento das desigualdades produzidas e retroalimentadas por mecanismos de exclusão do norte global e, mais especificamente, da ordem hegemônica etnocêntrica estabelecida na modernidade, que perdura sob a expressão da colonialidade.
Desse modo, a atualidade e a coerência da adesão à abordagem epistemológica dos autores elencados acima se manifestam na contribuição que fornecem para a constituição de uma Educação pluralista, dialógica, cidadã, ética e politicamente comprometida com a libertação e, em especial, para a libertação do racismo estrutural e epistêmico no cenário educacional.
Destaca-se, ainda – sem desconsiderar a crítica ao reducionismo do embasamento do humanismo dialético à dimensão de classe – que as reflexões de Warat, Lyra Filho, Sousa Junior e Paulo Freire encontram complementação e substrato para a permanência no projeto decolonial e, notadamente – aludindo à denominação adotada por Nelson Mandonado-Torres – na transversalidade decolonial, conscientizando, cada qual a seu modo, para a insurgência, a resistência e o questionamento aos padrões coloniais do ser, do saber e do poder, reprodutores de invisibilidades.
A intervenção epistemológica libertadora proposta nesta tese, na esteira de Boaventura de Sousa Santos, preconiza a contribuição de saberes produzidos como forma de insurgência ao racismo epistêmico e aos processos de dominação, promovedores do diálogo horizontal, do reconhecimento da diversidade étnico-racial e da sua influência nos projetos educativos de valorização cultural e histórica da população afro-brasileira. Daí decorre a proposta de associar à análise do fenômeno jurídico referenciais teóricos que emergem como saberes emancipatórios capazes de potencializá-lo – como a Bioética Latino-Americana de Intervenção e a Afrocentricidade.
A proposição de uma educação regida pela pedagogia da práxis, prenunciada por Moacir Gadotti, remonta ao desafio de caminhar dialeticamente rumo ao novo a partir de ideias historicamente já consolidadas. O retorno ao horizonte da dialética cotidiana, assim como o resgate de autores advindos da teoria crítica do direito concebido como marginal, consolida a educação em termos de libertação na medida em que possibilita compreendê-la como instrumento de ação e de intervenção política e social.
O humanismo dialético que embasa esta tese, anunciado pelas opções teóricas assumidas, ensina-nos que o “novo” brota do “velho”, bem como que os cursos de Direito podem ser repensados à luz da epistemologia dominante e, sobretudo, para além dela. Constitui um convite a ressignificar a teoria, a prática e a reflexão jurídica, confrontando as bases e estruturas que as alicerçam, questionando o Direito embasado nos moldes de estudos e pesquisas reprodutores de colonialismos (uma vez que a base da epistemologia jurídica tradicional advém de matriz eurocêntrica).
A retomada da epistemologia “marginal”, advogada por Warat, Roberto Lyra Filho e José Geraldo de Sousa Júnior, possibilita a assunção de um posicionamento, fundamentalmente, crítico sobre a ordem estabelecida e, notadamente, sobre as relações de poder que alicerçam a concepção de direito hegemônico e obstam uma análise racializada do fenômeno jurídico, isto é, uma análise que se proponha a enxergar as relações sociais sob a ótica dos conflitos raciais que as envolvem, posicionando-se na rota de uma Ciência do Direito aberta e sensível às narrativas marginais e, especialmente, às pautas de reivindicações de políticas públicas do Movimento Negro (dentre as quais, enfatiza-se, a implementação da Lei n.º10.639/2003, inclusive, no âmbito da Educação Superior).
A novidade introduzida pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de Direito carece de uma concepção epistemológica condizente com a proposta política que principia, sob pena de converter-se em instrumento legal retórico e inócuo.
Os denominados “pressupostos bioéticos práxico-reflexivos” constituem alternativas decoloniais concretas para a implementação do art. 2º, § 4º da Resolução CNE/CES n.º 5/2018, ou seja, da transversalidade das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico Raciais no âmbito da Educação Superior jurídica, uma vez que, a partir deles, a Bioética Latino-Americana de Intervenção – alicerçada nos estudos sobre colonialidade e na Pedagogia da Libertação – e a Afrocentricidade operam como referenciais epistemológicos para orientar, no âmbito dos cursos de graduação em Direito, a descolonização de dois importantes documentos: o Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI) – documento que define a missão da Instituição de Ensino Superior, a política pedagógica institucional e as estratégias para atingir suas metas e objetivos – e o Projeto Pedagógico de Curso (PPC) – instrumento que apresenta a concepção de ensino e de aprendizagem do curso, além da estrutura, dos procedimentos de avaliação e dos instrumentos normativos de apoio.
Por isso a importância dessa proposição de agregar à análise do Direito e do ensino jurídico ferramentas epistemológicas capazes de potencializá-lo, como a Bioética Latino-Americana de Intervenção e a Afrocentricidade para “ressignificar o presente e construir um futuro” – em alusão a “sankofa”, terminologia advinda de um provérbio africano que é representado por um pássaro que volta a cabeça à cauda para simbolizar que “retornar ao passado, é ressignificar o presente e construir o futuro”.
Alude-se ao retorno à herança ancestral africana e a consciência afrodiaspórica como possibilidade de alcançar as raízes do racismo epistêmico e de, assim, estabelecer intervenções concretas representativas de avanços em termos educacionais. É nessa conjuntura que se torna possível e concreta a tarefa de consolidar as bases para a educação condizente com o futuro que se almeja. Uma Educação Superior Jurídica que, necessariamente, preconize a diversidade, a diferença o multiculturalismo, a valorização cultural de povos cuja história e contribuição epistêmica foi negada e invisibilizada. Um futuro no qual a implementação Política Pública de Educação das Relações Étnico-Raciais seja uma realidade observável e pressuposto para o alcance da equidade e da diversidade no âmbito da Educação Superior
Folgo em considerar que a arquitetura de toda a Tese se desenha no sentido de criar bases pedagógico-curriculares para urdir uma tessitura epistemológica libertadora que preconiza a contribuição de saberes produzidos como forma de insurgência ao racismo epistêmico e aos processos de dominação, promovedores do diálogo horizontal, do reconhecimento da diversidade étnico-racial e da sua influência nos projetos educativos de valorização cultural e histórica da população afro-brasileira. Daí decorre a proposta de associar à análise do fenômeno jurídico referenciais teóricos que emergem como saberes emancipatórios capazes de potencializá-lo – como a Bioética Latino-Americana de Intervenção e a Afrocentricidade.
Mas também levar a uma proposição de uma educação regida pela pedagogia da práxis, prenunciada por Moacir Gadotti, remonta ao desafio de caminhar dialeticamente rumo ao novo a partir de ideias historicamente já consolidadas. O retorno ao horizonte da dialética cotidiana, assim como o resgate de autores advindos da teoria crítica do direito concebido como marginal, consolida a educação em termos de libertação na medida em que possibilita compreendê-la como instrumento de ação e de intervenção política e social.
Para esse objetivo o enlace das proposições desenvolvidas por Luis Alberto Warat e Roberto Lyra Filho, partindo do deslocamento paradigmático do primeiro e da inferência dialética do segundo que se projete enquanto concepção de ensino que se nutra da concepção articuladora derivada desses fundamentos e que se manifesta na concepção e na prática de O Direito Achado na Rua, tal como eu o formulo.
A Autora faz uma qualificada resenha do desenvolvimento desses fundamentos até onde logrou recensear o catálogo bibliográfico construído nesse percurso. Pena que não pode usufruir do mais atua lizado levantamento crítico nesse sentido que inclui recentíssima, porém depois de depositada a Tese para exame da Banca, contida em Direito.UnB. Revista de Direito da Universidade de Brasília. Programa de Pós-Graduação em Direito – Vol. 6, N. 2 (mai./ago. 2022) – Brasília, DF: Universidade de Brasília, Faculdade de Direito (https://periodicos.unb.br/index.php/revistadedireitounb/issue/view/2503/748).
Com uma chamada a título celebratório O Direito Achado na Rua. Contribuições para a Teoria Crítica do Direito, a edição “analisa as contribuições de O Direito Achado na Rua para a Teoria Crítica do Direito, a partir dos estudos desenvolvidos por José Geraldo de Sousa Junior e tendo como referência o repertório de textos apresentados para a elaboração do Dossiê Especial na Revista de Direito da Universidade de Brasília com foco nas temáticas relacionadas à Educação em Direitos Humanos, Novos Saberes e Práticas Pedagógicas Emancipatórias; Acesso, Democratização e Controle Social da Justiça, Assessoria Jurídica e Advocacia Popular; Constitucionalismo Achado na Rua; Direito à Cidade; Direito, Raça, Gênero, Classe e Diversidade; Direitos Humanos; Movimentos Sociais e Sujeitos Coletivos de Direito; O Direito Achado na Rua: concepção e prática; Trabalhadores, Justiça e Cidadania”.
São vários os temas impulsionados pela elaboração de um formidável plantel de pesquisadores, todos e todas vinculados a partir de seus projetos ao Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua (Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPQ).
Eles refletem em suas abordagens a partir de um fio condutor que alinhava um amplo painel de interesses que se encontram desde Warat e Lyra Filho num enlace que liga o conhecimento do Direito e seus modos ensino.
De certo modo, com Fábio Sá e Silva (ENSINO JURÍDICO. A Descoberta de Novos Saberes para a Democratização do Direito e da Sociedade, de Fábio Costa Morais de Sá e Silva. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2007; VETORES, DESAFIOS E APOSTAS POSSÍVEIS NA PESQUISA EMPÍRICA EM DIREITO NO BRASIL, de Fábio de Sá e Silva. Revista de Estudos Empíricos em Direito, vol. 3, n. 1, jan. 2016), assim como eu próprio já o anotei em minha participação, como homenageado e como conferencista da sessão inaugural do XXV Encontro Nacional do CONPEDI (Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (Brasília de 6 a 9 de julho de 2016), isso se dá porque o tema da pesquisa, do ensino crítico e extensão popular como práticas instauradoras de diálogos libertários entre a universidade e a sociedade (conhecimento e função social).
Também Fábio, recorrendo à metáfora da “rua” para invocar o sentido de espaço público constituinte em que são instituídas novas formas de sociabilidades e reconhecimentos recíprocos chamei à reflexão sobre os desafios hoje postos ao campo, indicando que O Direito Achado na Rua pode dar novas contribuições ao ensino, à pesquisa e à extensão em Direito e Direitos Humanos, com objetivos sociais mobilizadores.
Em Fábio, é possível cunhar a expressão “diálogos libertários” para inferir um contexto de abertura da Universidade ao diálogo e à promoção do debate, atendendo à sua vocação orientada pelo princípio da indissociabilidade do tripé pesquisa, ensino e extensão e ao (re)conhecimento de práticas insurgentes, de sujeitos coletivos e novos direitos e juridicidades. Tal como Shayne Salles faz em sua tese. Assim, a qualificação de “libertário” ao diálogo proposto, por sua vez, perpassa a dimensão constitutiva da liberdade, compreendida aqui como uma construção, “uma possibilidade de ser” (SOUSA JÚNIOR, José Geraldo. O Direito como Liberdade. O Direito Achado na Rua. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2011, p. 27). A liberdade no agir que é realizada historicamente e de forma conjunta, a liberdade como possibilidade de ser que é, necessariamente, atrelada à emancipação.
Em seu artigo Vetores, Desafios e Apostas Possíveis na Pesquisa Empírica em Direito no Brasil, Fábio se apresenta comprometido com O Direito Achado na Rua, que para ele continua sendo um dos mais emblemáticos projetos nesta linha – integrar como objeto irrecusável do conhecimento jurídico as práticas sociais que estabelecem a tensão entre o instituinte e o instituído – na medida em que entende o direito como o produto das práticas de movimentos sociais e nas tensões que estas estabelecem com a ordem normativa estatal.
Conquanto articule sua leitura pelo triplo enlace epistemológico (esgotamento do positivismo jurídico como conforto racional, alcance do pluralismo jurídico enquanto categoria de análise), metodológico (pesquisa-ação) e político (teorias de sociedade e fundamentos éticos enquanto base para estabelecer modos de determinação do jurídico), Fábio é dos poucos empiricistas (law in action). Embora ele não seja de modo algum rotulável nessa designação, conforme se vê já no resumo de seu artigo (Eventual interesse em celebrar ou promover essa condição não deve ocultar os obstáculos históricos e estruturais contra os quais ela foi erigida, tampouco arrefecer o exercício da nossa consciência crítica sobre os desafios com os quais a PED se defronta) que escapam a auto-contenção das fronteiras que o modo de conhecer sociológico impõe ao campo.
Com efeito, não se deixa enredar no limite de objetos empíricos possíveis de descrição segura (Engels: a descrição verdadeira do objeto é, simultaneamente, a sua explicação), para aceitar os riscos da cognição de objetos fluidos reivindicados pela hipótese do pluralismo jurídico.
Para Fábio, como em Lyra Filho, e agora em Shayne Salles o Direito é, enquanto vai sendo e o desafio é designá-lo, ontologicamente, no movimento de sua contínua transição, quase ao modo de poesia, que desafie o científico na sua exorbitância de querer ter o monopólio do conhecimento, como em Manoel de Barros, até para validar saberes com os quais todas estas informações têm soberba desimportância científica – como andar de costas (O Guardador de Águas, in Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2010).
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
A Formação das Sujeitas e dos Sujeitos Periféricos. Cultura e política na periferia de São Paulo.
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Tiaraju Pablo D’Andrea. A Formação das Sujeitas e dos Sujeitos Periféricos. Cultura e política na periferia de São Paulo. São Paulo: Dandara Editora, 2022, 288 p.
Num momento da campanha eleitoral, num debate, veio à tona o tema da periferia. Foi marcante ouvir da direita, por seu candidato, a afirmação convicta de que a periferia é o lugar da marginalidade, da criminalidade, do tráfico, um antro de bandidagem. Enquanto o presidente Lula, alvo da incriminação e que acabara de visitar uma comunidade no Rio de Janeiro, expressava toda a sua compreensão de reconhecimento às subjetividades organizadas em suas comunidades se expressando no ethos de que é o povo trabalhador, protagonista de sua ação emancipadora que se constitui pela cidadania e por sua capacidade instituinte de direitos, conformando o sentido ativo da democracia, não só como forma de governo mas como projeto de sociedade.
Importante, pois, fazer circular essa obra, resultado de uma tese de doutoramento em sociologia, na USP, sob a orientação da caríssima Vera da Silva Telles, cuja obra tem sido uma referência para meus próprios estudos, desde a concepção de O Direito Achado na Rua, ela que é expressamente citada como fonte nutriente da concretização de seus pressupostos centrais: determinar o espaço político no qual as sociabilidades instituintes se manifestam; compreender o protagonismo dos sujeitos coletivos de direito na ação instituinte de direitos; categorizar os achados materializados em sua forma jurídica não necessariamente legislativa, quando não, decididamente, contra-legem. Devo a Vera Telles, assim como a Eder Sader, Maria Célia Paoli, Ana Amélia Silva, Nair Bicalho, Marilena Chauí, o arranque filosófico-sociológico para pavimentar o trânsito entre o conceito de sujeito coletivo e o de sujeito coletivo de direito, no movimento de sua inscrição nos movimentos sociais, conforme está em minha tese de doutoramento (O Direito Achado na Rua. O Direito como Liberdade. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 2011).
Assim, se apresenta o livro ora Lido para Você, escrito, diz o resumo preparado pela Editora, “por um morador da periferia imerso em experiências coletivas, o livro apresenta como a organização política por meio da arte e da cultura nas periferias foi uma das maneiras como a classe trabalhadora se formou e resistiu aos ataques do neoliberalismo da década de 1990 até hoje. A obra ressalta a importância dos Racionais MC’s e de diversos coletivos culturais para a produção de intelectuais das periferias que formulam uma nova compreensão sobre as quebradas, propondo uma outra cidade e uma nova sociedade a partir das lutas antirracista, antipatriarcal e anticapitalista”.
Por essa razão, vale também apresentar esse escritor, conforme os traços por ele designados na apresentação da obra: “Tiaraju Pablo D’Andrea é Professor da Unifesp/Campus Zona Leste e do Programa de Pós-Graduação Mudança Social e Participação Política da EACH/USP. Coordena o Centro de Estudos Periféricos (CEP). É Pós-Doutor em Filosofia, Doutor em Sociologia da Cultura e Mestre em Sociologia Urbana pela Universidade de São Paulo. Fez estágio doutoral na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, França e foi pesquisador convidado da Université Paris VIII, em Seine-Saint-Denis, França. Atuou como pesquisador no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e na Usina (Centro de Trabalhos para o Ambiente Habitado). Foi mestre de bateria e ajudou a organizar batucadas populares junto a movimentos sociais. Contribui com coletivos de produção artística. É músico e possui dois CDs gravados: Capacetes Coloridos (2007) e Latinoamerisamba (2015). É autor dos livros “40 ideias de periferia: história, conjuntura e pós-pandemia” (2020) e organizador do livro “Reflexões Periféricas: propostas em movimento para a reinvenção das quebradas” (2021), ambos pela Editora Dandara. É morador da zona leste, sujeito periférico, corintiano, maloqueiro e sofredor, graças a deus”.
Em Prefácio, o professor Dennis de Oliveira da Escola de Comunicação e Artes da USP, toma o núcleo de contextualização do Autor – a periferia – para designar que “é nesse lugar que as contradições sociais mais se expressam, com a ausência de qualquer infraestrutura mínima que uma cidade deve oferecer aos seus cidadãos”. Lembrando Milton Santos, toma com ele a compreensão de que mais que em outras dimensões é aí que “o capital estabelece fluxos próprios hierarquizando espaços com a distribuição desigual de recursos disponíveis”. Para logo acentuar que “tal distribuição desigual não é aleatória, mas produto do tipo de fluxo necessário para a reprodução do capital”, e que, assim, “a resistência do povo da periferia contra a precariedade dos espaços periféricos é uma contraposição a esta dinâmica imposta ao capital – em última instância, é um embate contra o capital dentro das condições objetivas que temos nos dias de hoje”. Para o autor do Prefácio “Tiaraju fala logo na introdução que ‘o livro discorre também sobre como o conceito periferia, compreendido como classe e como totalidade particular, foi uma necessidade histórica engendrada fundamentalmente pela denúncia de um genocídio em curso”.
De fato, não fosse um trabalho com a orientação firme de Vera Telles, o Autor numa narrativa escrevivente (mesmo sem aludir a Conceição Evaristo), é criterioso no emprego de categorias, não só a categoria periferia, mas todas que aplica, até culminar com a categoria sujeito/sujeita periféricos. Daí que segundo ele, “a intenção deste livro é contar uma história da desagregação da classe trabalhadora brasileira, paulatinamente derrotada pelo neoliberalismo”, mas que logo (daí que eu não concorde com a afirmação de derrota ou de refluxo para não desconsiderar o contínuo de lutas por emancipação que acumulam reservas democráticas utópicas ativadas no pleito presidencial concluído, revelando, eu disse ao se concluir o primeiro turno, conforme https://www.ihu.unisinos.br/categorias/159-entrevistas/622664-eleicoes-2022-uma-maioria-democratica-e-uma-direita-forte-e-resiliente-algumas-analises), “se reorganizou e produziu lutas principalmente em lugares sociais e geográficos intitulados periferias urbanas”, com o objetivo, ele finaliza, não só de “mudar a história, no sentido mais amplo, mas mudar a própria história”.
Com Tiaraju, nele ênfase ao protagonista que promove transformações por mediação da cultura, eu também tenho me ocupado com a construção do conceito de sujeito coletivo de direito, e se subjetividade ativa, para agir e transformar o mundo. Em Tiaraju, o objetivo é “caracterizar a emergência de um novo sujeito político (o cidadão organizado em movimentos territoriais e urbanos) … portadores da força necessária para mudar os rumos da política e denunciar a miséria vivida pela população”.
O Autor orienta sua reflexão numa epistemologia equilibrada entre duas matrizes teóricas: o marxismo e a antropologia. O inédito de sua formulação é chegar ao que chama de um marxismo favelado, valendo-se de um enunciado de Helena Silvestre, para operar uma “interpretação que coloca em primeiro plano a experiência vivida da classe trabalhadora em dado momento histórico, com suas contradições, dificuldades, erros, acertos, saberes e práticas organizativas”.
A resultante, na interpretação é poder sustentar uma novidade, a de que a produção da existência não opera somente pelo agir consciente da classe, mas também no existencial que não se reduza, como se fez seguidamente, no periférico da vivência confinada a um espaço de simples reprodução da existência social.
Por essa razão, para o Autor, “a classe trabalhadora em movimento é compreendida em sua constituição complexa e heterogênea, dando especial ênfase aos locais onde a essa classe se produz e se reproduz: as favelas e as periferias urbanas”.
Tomando os seus próprios termos: “Não se pode apartar um povo de seu território. Historicamente, no Brasil, muitas lutas e muita organização ocorreram nos espaços de produção e de reprodução da vida – quilombos, aldeias e bairros -, em uma genealogia que se estende e não se dissocia do chão da fábrica…Essa é a nossa busca, tendo como cenário as práticas sociais, econômicas, culturais e políticas das periferias urbanas e das favelas. Tendo como horizonte a luta anticapitalista, antipatriarcal e antirracista”.
Para a professora Daniela Vieira que assina uma orelha do livro, “Os usos e significados do conceito periferia encontram-se atualmente em disputa. Seja na esfera dos movimentos sociais, nas produções culturais ou pelo mercado, há renovação do seu sentido. Não ganha força apenas o lado miserável e violento com o qual a literatura especializada costumava caracterizá-lo. Em meio às vulnerabilidades também florescem perspectivas de vida! Isso se evidencia nas produções culturais que emergem de espaços periféricos a parir dos anos 1990. A complexidade dessa configuração e a tentativa de definir sociologicamente sujeitas e sujeitos periféricos, sintetizando um processo social ainda em curso, é matéria do livro. Tiaraju deslinda o advento do neoliberalismo e a emergência – não isenta de contradições – das produções culturais nesse contexto. A obra mergulha em novas formas de organização social e política, porém, não recai na armadilha da dicotomia; é a um só tempo o registro da ‘nova razão do mundo’ e, igualmente, as possibilidades para a não resignação do futuro”.
De minha parte, a obra, por sua autenticidade, contribuiu para robustecer meu argumento duplo, sobre o espaço ressignificado e sobre as subjetividades instituintes, algo que eu divisara quando participei de banca examinadora na UnB e logo, no prefácio feito a pedido do autor, sobre temática em que essas questões são alinhadas. Refiro-me (vou citar pelo livro já no prelo, pela Editora Lumen Juris), Na Calada da Noite: processos culturais e o Direito achado na noite em Brasília, de Willy da Cruz Moura, desdobrada da Dissertação de Mestrado Cultura e Vida Noturna em Brasília: Poder, espaço, coletividade e o Direito achado na noite (Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania. CEAM/Universidade de Brasília, 2022).
No meu Prefácio aludo aos referenciais, encontrados no trabalho, que vão dar ao Autor, confiança para aventar categorias inéditas como “a noite como espaço”, nessa fortuna crítica que em O Direito Achado na Rua tem levado a alargar, na ação dos sujeitos coletivos de direitos e suas práticas instituintes de novos direitos, a demarcação de novos espaços sociais, para além da metáfora da rua, e assim discernir, ressignificando, espaços críticos como direitos achados na rede, nas águas, nas aldeias, nas florestas, no campo, no cárcere, no manicômio, no armário, no gueto…na noite. Uma construção que dialoga com os sujeitos em seu protagonismo inter-subjetivo quando assumem a titularidade coletiva de direitos.
No estudo de Tiaraju, essa ressignificação se dá no alcance que ele projeta ao tomar a formulação artística do Grupo Racionais MC’s, desde que entraram na cena pública, numa realização de impacto: “O impacto da obra se deve também ao fato dela ser enunciada em três dimensões diferentes: é uma produção artística, por motivos evidentes; é uma análise que confere inteligibilidade às vivências do mundo social, e; é uma pauta política, uma vez que se transformou também em uma formuladora de práticas sociais reproduzidas por grande número de jovens das periferias…os Racionais MC’s foram um elemento catalisador que propiciou a movimentação de uma engrenagem baseada no orgulho de ser periférico e na formação de sujeitas e sujeitos periféricos”. Anoto, com uma referência de reconhecimento, que o Autor se vale de uma oferta interpretativa, especialmente para caracterizar com a autenticidade da autoria para a “compreensão alargada e contemporânea da classe trabalhadora”, por meio da expressão cultural, valendo-se de um recorte analítico construído por GOG, meu amigo rapper. Forte na cena cultural brasiliense, GOG muito contribuiu com o meu reitorado na UnB, para alargar no social o imaginário dos jovens estudantes, nas aulas de inquietação dos períodos de acolhimento e abertura de cada semestre letivo (https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2009/03/09/interna_cidadesdf,86805/unb-recebe-2-7-mil-calouros-com-convite-a-ocupacao-dos-espacos.shtml; http://ideiaspaposebesteiras.blogspot.com/2009/03/teatro-de-arena-da-unb-vai-renascer-na.html); GOG, aliás, juntamente com Renan Inquérito fizeram a inserção artística na cerimônia solene de outorga de doutoramento honoris causa a Boaventura de Sousa Santos. No evento foi entusiasmante assistir o arejamento do auditório acadêmico sisudo galvanizado pela performance dos artistas, na cadência de Brasil com P (GOG) e Rap Global, letra do próprio Boaventura e performance de Renan Inquérito (https://www.youtube.com/watch?v=2JznnTsGmg8).
O cerne do trabalho de Tiaraju D’Andrea é conceituar as sujeitas e os sujeitos periféricos, um processo no qual ele desnovela o entrelaçamento “entre um contexto histórico, uma gama de relações sociais e espaciais e um arcabouço conceitual [que é] expressão de uma teia de relações sociais que envolvem e formam os indivíduos em seus espaços”. Esse entrelaçamento é constituído por vários enlaces, cada um deles examinados analiticamente incluindo seus referenciais, mas que são o alinhavo de “contribuições para a definição dos conceitos vivência, habitus (com os contornos que lhe atribui Bourdieu), experiência, subjetividade, identidade e consciência periférica”.
Na elaboração de Tiaraju, considerando a sutileza das muitas distinções que ele deslinda, “a produção de vivências e experiências, das quais o habitus e a subjetividade são resultantes, origina-se de relações sociais e contextos culturais e econômicos em dado espaço geográfico, conformando características próprias de determinado grupo social e tendo como desdobramento uma experiência social compartilhada internamente”, no seu estudo, à quebrada, à favela, à comunidade, ao bairro, em suma, à periferia, que com GOG e os Racionais MC’s, caracterizam o periférico em qualquer lugar.
A categoria sujeito coletivo de direito tal como eu a proponho, designa um construto reconhecidamente desenvolvido com certa anterioridade no Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua. Há boa documentação confirmando o itinerário do desenvolvimento e de sua aplicação de um modo bem característico e próprio.
Até mesmo no âmbito da iniciação científica, na modelagem do protocolo acadêmico de pesquisa nesse tema, os acréscimos, assim como agora nessa denotação trazida por Tiaraju D’Andrea, com a formulação de sujeitas e sujeitos periféricos, a categoria tem sido rastreada em seus aportes políticos e epistemológicos. Basta ver, nessa perspectiva de iniciação científica, o verbete preparado pelos alunos e alunas da disciplina Pesquisa Jurídica (Curso de Direito da Faculdade de Direito da UnB – Universidade de Brasília, alunos do primeiro semestre), certamente com supervisão de docentes e monitores e que passa a compor a autoria anônima do repositório com o enunciado sujeito coletivo de direito (https://pt.wikipedia.org/wiki/Sujeito_coletivo_de_direito).
Bem composto, numa articulação editorial que teve idas e vindas até ser validado, o verbete compreende um Início, Sujeito nos sentidos filosófico e jurídico, Importância dos movimentos sociais para o sujeito coletivo de direito, História, Definição, Importância para o direito, Estudos científicos, Exemplos práticos, Reforma Agrária e Educação no Campo, O Direito Achado no Ver-o-Peso, Referências e Bibliografia.
Para o que aqui importa, um excerto dessa construção:
O Sujeito Coletivo de Direito é aquele que adquire fundamento jurídico por meio da ação coletiva dos movimentos sociais[1]. Esse conceito envolve o entendimento da atuação dos movimentos sociais, os quais conciliam a bagagem histórica e o conhecimento prático de suas reivindicações no contexto político e social em que se encontram. Dessa forma, os movimentos sociais coletivos são protagonistas nos processos de transformação social.[2]
Segundo o Professor José Geraldo de Sousa Júnior, o importante para a utilização da noção de sujeito na designação dos movimentos sociais é a conjugação entre o processo das identidades coletivas como forma do exercício de suas autonomias e a consciência de um projeto coletivo de mudança social a partir das próprias experiências.[3]
A análise sociológica do conceito sujeito coletivo de direito mostra que o surgimento do sujeito coletivo se realiza em um processo marcado pela carência social, que é percebida como a negação de direitos que provoca uma luta para conquistá-los.[4] A constituição de um movimento social contrário ao clientelismo, característico das relações tradicionais, representa a valorização da participação das camadas subalternas da população na luta pelos seus direitos.[4] Dessa forma, a luta por direitos realizada pelos desfavorecidos social e economicamente representa uma experiência emancipatória.[5]
Nesse contexto, o sujeito coletivo de direito é descentralizado, se afastando da concepção burguesa da subjetividade, pois abandona o caráter marcado pela individualidade, sendo um ser social coletivo.[6] Os novos sujeitos coletivos de direito representam uma forma de direito alternativo, pois se realizam em desencontro ao direito pré-estabelecido na sociedade, o direito positivo.[5]
A análise da experiência da ação dos novos sujeitos coletivos de direito designa uma prática social, que autoriza estabelecer novas configurações sociais, a constituição de novos processos sociais e de novos direitos, que são enunciados por meio da determinação de espaços sociais derivados das novas configurações, além de estabelecer a afirmação teórica do sujeito coletivo de direito.[7]
Diversos estudos práticos têm sido feitos a partir do conceito de sujeito coletivo de direito. Entre eles, destacam-se os estudos na área de moradia pública[8], reforma agrária[9] e saúde pública[10], os quais foram realizados, principalmente, sob a ótica do Direito Achado na Rua.
Conservei a numeração das notas para que possam ser conferidas na leitura direta do verbete. De toda sorte o que vale por em relevo é a definição que os autores e autoras (anônimos), logram esboçar:
A categoria sujeito coletivo de direito foi formulada teoricamente pela primeira vez na XIII Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Nessa conferência, José Geraldo de Sousa Júnior definiu o sujeito coletivo de direito como uma categoria analítica do direito. [22] O termo sujeito coletivo de direito descreve grupos de pessoas reconhecidas perante os ordenamentos jurídicos, a sociedade e a ética quanto a sua capacidade ético-jurídica independente. Os sujeitos coletivos de direito são compostos por diversas identidades subalternas únicas e contrastantes entre si, que caracterizam uma cidadania ativa e participativa e que constroem esta ao reivindicarem seus direitos anteriormente não representados por meio da luta, criando e utilizando espaços sociais já existentes de discussão e ativismo político no processo. Dessa forma, o sujeito coletivo de direito busca a liberdade pelo processo emancipatório [23]
O sujeito coletivo de direito é a representação jurídica do sujeito coletivo, que é propriamente o coletivo reunido, o qual busca a reivindicação de seus direitos por meio dos movimentos sociais.[24] O sujeito coletivo de direito é constituído pelos seguintes elementos: a autoconsciência, a autonomia, a eliminação da alienação, o compartilhamento de um problema em comum, a carência social, a ocupação e a criação de espaços, sejam físicos, culturais e políticos, as manifestações coletivas histórico-políticas (movimentos sociais), o status de transformadores da estrutura política, econômica e social, a aquisição, a mudança e a construção de direitos (transformação jurídica).[25][26]
Observe-se, nessa caracterização, em cuja representação se investem os sujeitos coletivos de direito, uma convergência dos elementos que Tiaraju articula para falar das sujeitas e dos sujeitos periféricos. A apropriação do periférico, nessa franja de ressignificações das configurações que formam o contexto que ainda sustenta a dimensão abrangente do sujeito na conformação de seu lugar numa classe que é delineada desde o mundo do trabalho por antagonismo com o sujeito que se apropria do capital, não ignora a complexidade das várias dimensões da espoliação e da opressão que lhe acicata a consciência do querer ser sujeito.
Já mostrava Nair Bicalho (Novos Sujeitos Coletivos, XV Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil. Conselho Federal da OAB/Anais. Foz do Iguaçu: setembro de 1994), tomando a minha definição de sujeito coletivo de direito como um ponto de partida, de que “não mais falamos apenas em trabalhadores e burguesia, tal como foi o modelo do século passado, pautado na sociedade industrial. Hoje temos uma sociedade muito mais complexa, pois o capitalismo contemporâneo apresenta um embricamento entre as esferas do econômico, do social, do político e do cultural. No caso brasileiro, estamos diante de uma sociedade que gerou esses novos sujeitos coletivos, como resultado da politização de diferentes áreas das relações sociais na vida cotidiana: o mundo do trabalho, a área da saúde, da educação, até os clubes de mães, de futebol e os bairros foram espaços da sociedade que passaram a ser politizados na luta por direitos. Esses são os que que desenvolveram uma prática autônoma de partidos, de sindicatos e do próprio Estado, pautada e definida em uma experiência de solidariedade, no processo de criação de novos direitos”.
Com seu conceito de sujeitas e sujeitos periféricos, Tiaraju traz ao menos cinco pressupostos básicos, cuidadosamente explicados no livro, para sustentar o seu enunciado: o assujeitamento (a condição ou a situação em que se dá a sua formação), a subjetividade (referida a dimensão de elementos intangíveis que constituem o ser humano, entretanto derivada de experiências compartilhadas), os códigos culturais compartilhados (expressões de formas e modos de vida particulares em determinados espaços), a consciência de pertencimento (entendida como elaboração intelectual que permite a compreensão de uma posição compartilhada a partir de um determinado território) e o agir político (ato de apoderar-se da própria história, tornando-se protagonista político a partir da ação em prol do território).
Nos referenciais de construção da categoria sujeito coletivo de direito, podemos validar esses pressupostos. Desde a dimensão mais abrangente em quanto sujeito coletivo propriamente, tal como o enuncia Nair Bicalho; ou mais próxima a condição de titularidade subjetiva jurídica, como aparece em Mauro Noleto (NOLETO, Mauro. Sujeitos de Direito. Ensaios Críticos de Introdução ao Direito. São Paulo: Editora Dialética, 2021).
Ao me debruçar sobre o livro de Mauro Noleto, para escrever um prefácio a seu convite (a propósito conferir em maior alcance http://estadodedireito.com.br/sujeitos-de-direito-ensaios-criticos-de-introducao-ao-direito/), não pude deixar de estabelecer uma ligação, quase de continuidade, e um trabalho anterior de Mauro: Subjetividade Jurídica. A Titularidade de Direitos em Perspectiva Emancipatória. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, que também prefaciei. Nesse texto, de 1998, Mauro já sustentava não ser mais possível aceitar que a questão da titularidade de direitos seja respondida abstrata e formalmente. Em outras palavras, dizer que todos são titulares de direitos fundamentais, como declara a letra da Constituição, não quer dizer que todos exercemos efetivamente os mesmos direitos em igualdade de condições, com a mesma intensidade e simultaneamente, ou seja, nos espaços públicos – na “rua” – em que os direitos se originam, realizam ou são violados existe uma rede intrincada e assimétrica de relações; nessa rede há atritos entre valores e interesses, há conflito social, há projetos de vida diversos e às vezes antagônicos, há desigualdades econômicas, e há também identidades sociais em formação, que carregam sentidos jurídicos concretos para os direitos fundamentais.
Trata-se, em todos esses estudos, entre eles o de Tiaraju Pablo D’Andrea, nesse seu A Formação das Sujeitas e dos Sujeitos Periféricos. Cultura e Poítica na Periferia de São Paulo, evidentemente, de uma experiência emancipatória. Roberto Lyra Filho a havia compreendido neste sentido e, por esta razão, para ele, o direito não pode ser compreendido como mera restrição, senão, tal como ele o entendia, enquanto enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade.
E o que será, pois, neste processo, entender o Direito como modelo de legítima organização social da liberdade, base e projeção paras os estudos e pesquisas que constituem a fortuna crítica de O Direito Achado na Rua? É perceber, conforme indica Roberto Lyra Filho, que o Direito se faz no processo histórico de libertação enquanto desvenda precisamente os impedimentos da liberdade não-lesiva aos demais. Nasce na rua, no clamor dos espoliados e oprimidos e sua filtragem nas normas costumeiras e legais tanto pode gerar produtos autênticos (isto é, atendendo ao ponto atual mais avançado de conscientização dos melhores padrões de liberdade em convivência) quanto produtos falsificados (isto é, a negação do Direito do próprio veículo de sua efetivação, que assim se torna um organismo canceroso, como as leis que ainda por aí representam a chancela da iniquidade, a pretexto de consagração do Direito) [ARAUJO, Doreodó (Org). Desordem e Processo – Estudos Jurídicos em Homenagem a Roberto Lyra Filho. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1986].
Nesse eixo teórico insere-se o trabalho de Tiaraju D’Andrea, nessa primorosa edição da Editora Dandara. Sociologicamente sensível ao reconhecimento das novas identidades que se formam no processo jurídico-histórico de luta pela superação dos entraves à emancipação social e à construção de novas sociabilidades, ele está também política e culturalmente apto a não só definir a natureza jurídica do sujeito e da sujeita periféricos emergentes deste processo, como também, enquadrar os dados derivados de suas práticas sociais criadoras de sociabilidades e direitos nomeando as novas categorias que as representam.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.5
O Direito Achado na Rua. Contribuições para a Teoria Crítica do Direito
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
v.6 n. 2 (2022): Revista Direito. UnB |Maio – Agosto, 2022, V. 06, N. 2 Publicado: 2022-08-31. O Direito Achado na Rua. Contribuições para a Teoria Crítica do Direito. Edição completa PDF (https://periodicos.unb.br/index.php/revistadedireitounb/issue/view/2503)
“No marco comemorativo de seus trinta anos de existência, o Direito Achado na Rua recebe, agora, uma edição celebratória da Revista de Direito da Universidade de Brasília (UnB) que homenageia aquele que lhe dedicou sua vida: o professor José Geraldo de Sousa Junior”. (Costa; Diehl; Fonseca; Lima; Miranda; Rampin).
A epígrafe é extraída do prefácio desse número especial da Revista de Direito, editada pelo Programa de Pós-Graduação em Direito, da Universidade de Brasília. O prefácio é assinado pelos professores Adriana Andrade Miranda, Adriana Nogueira Vieira Lima, Alexandre Bernardino Costa, Diego Augusto Diehl, Lívia Gimenes Dias da Fonseca e Talita Rampin, respectivamente, Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania UnB, professora do curso de Direito da Universidade Federal de Goiás (UFG), Pós-Doutora em Direito pela UnB, professora do curso de Direito na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), Professor Associado da Faculdade de Direito e da Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania da UnB. Co-líder do Grupo de Pesquisa: O Direito Achado na Rua, Doutor em Direito pela UnB, Mestre em Direito pela UFPA e Bacharel em Direito pela UFPR. Professor adjunto do Curso de Direito da Universidade Federal de Jataí. Professor efetivo do Programa de Pós-Graduação em Direito Agrário da Universidade Federal de Goiás. Secretário executivo do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais, Professora adjunta da Faculdade de Direito da UnB, integrante do Grupo de pesquisa O Direito achado na rua e Professora Adjunta da Faculdade de Direito da UnB, integrante do Grupo de pesquisa O Direito achado na rua. Todos e todas vinculados ao Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua (Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPQ).
A aposentadoria (jubilamento), compulsório, ainda que continue vinculado aos programas por vínculo formal de colaborador, sênior no caso, abre ensejo para homenagens. Aqui, adornadas com o zêlo de colegas cuidadosos, muitos ex-alunos. Está em curso, por exemplo, memorial para a outorga estatutária de título de professor emérito, e um cadinho desse zêlo transparece no documento em processo:
A partir de 1982 se dedicou com afinco à construção e à difusão da Nair, movimento desenvolvido nos marcos da dialética humanista a partir das proposições negativas lyrianas de não tomar a norma pelo direito, não definir a norma pela sanção, não limitar ao Estado o poder de estabelecer normas e sanções, não aderir ao direito positivo e não compreender o direito como instrumento de restrição da liberdade. Nessa escola, o professor se engajou na organização de publicações históricas que tanto formularam criticamente o direito e a democracia, como difundiram uma perspectiva crítica forjada desde a práxis de seus participantes. Destacamos a contribuição do professor na direção do boletim Direito e Avesso e na coordenação da célebre série de “Introdução crítica ao direito”, que atualmente conta com dez volumes e segue sendo uma grande referência no campo da formação jurídica.
Atento às exigências que a realidade impõe, em especial, aos movimentos populares, José Geraldo de Sousa Junior, num movimento freireano, atendeu os chamados de movimentos sociais, de suas assessorias jurídicas, de construtores do direito e agentes de cidadania, e incorporou seus temas geradores para sulear o desenvolvimento da série. Em um movimento que é, ele próprio, uma inovação metodológica no campo da educação e do ensino jurídico. O acervo construído sob sua coordenação se constituiu como referência em temas nevrálgicos à defesa do direitos dos/as oprimidos/as: teoria crítica do direito, direito do trabalho, direito agrário, direito à saúde, direitos das mulheres, justiça de transição, direito à informação e à comunicação, direito urbanístico, direito à liberdade.
É desse movimento, que veio o impulso para a edição de um dossiê celebratório, que a Editoria da Revista acolheu e abriu por edital, resguardados os convites para alguns autores e autoras que formam o diálogo em percurso e para submissão, às cegas, de um qualificado elenco que forma o sumário do dossiê DIREITO ACHADO NA RUA: contribuições para a teoria crítica do direito.
O prefácio abre com um Resumo: “Analisa as contribuições de O Direito Achado na Rua para a Teoria Crítica do Direito, a partir dos estudos desenvolvidos por José Geraldo de Sousa Junior e tendo como referência o repertório de textos apresentados para a elaboração do Dossiê Especial na Revista de Direito da Universidade de Brasília com foco nas temáticas relacionadas à Educação em Direitos Humanos, Novos Saberes e Práticas Pedagógicas Emancipatórias; Acesso, Democratização e Controle Social da Justiça, Assessoria Jurídica e Advocacia Popular; Constitucionalismo Achado na Rua; Direito à Cidade; Direito, Raça, Gênero, Classe e Diversidade; Direitos Humanos; Movimentos Sociais e Sujeitos Coletivos de Direito; O Direito Achado na Rua: concepção e prática; Trabalhadores, Justiça e Cidadania”.
Aliás, para exibir esse belo conteúdo, transcrevo o prefácio:
O Direito Achado na Rua tem funcionado como uma importante plataforma para o desenvolvimento e a difusão de estudos no campo das teorias críticas do direito. Desde a sua fundação, com sua institucionalização como grupo de pesquisa no Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq), na década de 1980, tem acolhido e formato dezenas de pesquisadoras e pesquisadores atuantes nas mais diversas áreas temáticas e com engajamento nas lutas populares que são travadas para denunciar e fazer cessar violências, violações e opressões, em suas variadas dimensões. Nesse movimento, constitui, ele próprio, um instrumento de transformação social necessário à experiência de disputa e construção da experiência democrática brasileira.
No marco comemorativo de seus trinta anos de existência, O Direito Achado na Rua recebe, agora, uma edição celebratória da Revista de Direito da Universidade de Brasília (UnB) que homenageia aquele que lhe dedicou sua vida: o professor José Geraldo de Sousa Junior.
Conforme retratado no artigo “O Direito Achado nas lutas populares: uma ode ao professor José Geraldo de Sousa Junior”, no qual Fredson Oliveira Carneiro busca compreender as reviravoltas dos saberes oficiais e as possibilidades abertas pelos novos saberes e avançar nas respostas que a experiência democrática nos legou, o percurso desenvolvido pelo professor José Geraldo de Sousa Junior foi, desde o início de sua trajetória acadêmica, um “esforço anticolonialista de dedicar-se ao pensamento de um autor nacional capaz de veicular o que pulsava na sociedade brasileira”. O texto apresenta-se com ode pois pretende “prestar homenagens ao professor José Geraldo de Sousa Junior e exaltar suas fundamentais contribuições para o campo jurídico-político em que nos situamos contemporaneamente”.
Suas contribuições ao campo do direito, do ensino jurídico, dos direitos humanos e da democracia adquirem destaque em sua trajetória que, academicamente, teve início em 1968, ano em que inicia seus estudos no curso de Ciências Jurídicas e Sociais na então Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (AEUDF).
Em 1973, finalizados seus estudos de graduação, inicia o exercício da advocacia. Nessa década, sua atuação é especialmente destacada diante de seu engajamento com aquelas e aqueles que resistiam à Ditadura Empresarial Civil Militar e defendiam a Democracia. Ao longo das décadas seguintes, o professor ampliou e aprofundou os seus compromissos com a defesa dos direitos humanos, advogando em diferentes frentes e pautas que passaram a ser debatidas e, em algumas situações, judicializadas, com o objetivo de mobilizar o direito e o sistema de justiça como recursos necessários à promoção dos direitos humanos.
Com o texto “O Legislativo convida professor José Geraldo de Sousa Jr.: tecendo o fio democrático da formação jurídica crítica no espaço da política” as autoras Sabrina Durigon Marques e Eneida Vinhaes Bello Dultra fazem um belíssimo registro histórico da participação do professor José Geraldo de Sousa Junior na vida pública brasileira, de modo a evidenciar que suas contribuições ultrapassam os espaços institucionais universitários.
O artigo apresenta um levantamento das participações do professor em audiências públicas realizadas no Congresso Nacional entre os anos de 1987 e 2021. Como resultado verificamos uma atuação comprometida com a proteção dos direitos humanos, à defesa da democracia e da ética pública em comissões diversificadas, a convite de parlamentares de diferentes partidos e ideologias, com destaca para a sua participação da Assembleia Nacional Constituinte de 1987. O artigo intentou “identificar e, propositadamente, oferecer a leitura de principais trechos da narrativa traçada pelo homenageado promovendo o diálogo entre Academia e Poder Legislativo como forma de afirmar a relevância da democracia tanto para a ação política quanto na formação jurídica defendida como instrumento de liberdade”. A pesquisa constatou a fidelidade do professor, ao longo de sua carreira, “a necessária defesa dos direitos humanos e da democracia como condição imprescindível na construção de uma sociedade justa e solidária e como um projeto de quem caminha em parceria, de mãos dadas, em grupos, nos coletivos”.
No âmbito universitário, em específico, registramos o ano de 1977 como início do percurso acadêmico de José Geraldo Junior na pós-graduação, tendo sido o único orientando do professor Roberto Lyra Filho. É com ele que formula a dissertação “Para uma Crítica da Eficácia do Direito: Anomia e outros Aspectos Fundamentais”, que então se destaca pelo seu potencial crítico-reflexivo no campo do direito.
As contribuições de Roberto Lyra Filho à teoria crítica do direito são trabalhadas no artigo “As aventuras de Roberto Lyra Filho contra o Barão de Munchhausen: por um diálogo crítico com a hermeneutica filosófica”. Nele, Diego Augusto Diehl e Helga Maria Martins de Paula realizam “um convite ao diálogo com a hermenêutica filosófica e o relativismo radical, a partir da problematização de algumas críticas que estas apresentam ao humanismo dialético proposto por Roberto Lyra Filho”. O autor e a autora propõem um diálogo entre A Teoria de Roberto Lyra e o pensamento de Alexandre Araújo Costa, professor da Faculdade de Direito da UnB e crítico do humanismo dialético de Lyra. Utilizam, para tanto, como referência, o pós-modernismo emancipatório de Boaventura de Sousa Santos, a teoria discursiva de Jurgen Habermas, a ontologia crítica de Gyorgy Lukacs e Antônio Gramsci, e a filosofia da libertação de Enrique Dussel, com o intuito de evidenciar uma compreensão sobre o humanismo dialético e de problematização das posições da hermenêutica filosófica a partir dos pressupostos do materialismo histórico, lidos sob o prisma da ontologia crítica e da filosofia da libertação.
A influência do humanismo dialético de Lyra Filho sobre as formulações que sustentam o Direito Achado na Rua e que marcam a trajetória de José Geraldo de Sousa Junior pode ser notada na fundação da Nova Escola Jurídica (Nair), movimento desenvolvido nos marcos da dialética humanista a partir das proposições negativas lyrianas de não tomar a norma pelo direito, não definir a norma pela sanção, não limitar ao Estado o poder de estabelecer normas e sanções, não aderir ao direito positivo e não compreender o direito como instrumento de restrição da liberdade (LYRA FILHO, 1983, p. 152). Nessa escola, o professor se engajou na organização de publicações históricas que tanto formularam criticamente o direito e a democracia, como difundiram uma perspectiva crítica forjada desde a práxis de seus participantes.
A formulação do Direito Novo, proposto pela Nair é tratada no artigo “Do Direito Novo e a Nova Escola Jurídica Brasileira (NAIR) ao Direito Achado na Rua: anomia, poder dual, pluralismo jurídico e os direitos humanos”. Nele, Eduardo Xavier Lemos propõe uma “revisitação de temas estruturantes para o conceito de humanismo dialético, projeto da NAIR, retomamos os estudos de Roberto Lyra Filho, José Geraldo de Sousa Junior e os trabalhos escritos pelo coletivo” e analisa a própria formação do movimento. O autor destaca, na proposta de tal escola de pensamento, “o combate fervoroso ao direito positivo e a dogmática jurídica que aprisiona o jurista à letra da lei positivada, ensejando o pluralismo jurídico”.
Atento às exigências que a realidade impõe, em especial, aos movimentos populares, José Geraldo de Sousa Junior, num movimento freireano, atendeu os chamados de movimentos sociais, de suas assessorias jurídicas, de construtores do direito e agentes de cidadania, e incorporou seus temas geradores para sulear o desenvolvimento da série. Em um movimento que é, ele próprio, uma inovação metodológica no campo da educação e do ensino jurídico. O acervo construído sob sua coordenação se constituiu como referência em temas nevrálgicos à defesa do direitos dos/as oprimidos/as: teoria crítica do direito, direito do trabalho, direito agrário, direito à saúde, direitos das mulheres, justiça de transição, direito à informação e à comunicação, direito urbanístico, direito à liberdade.
Esse movimento é caracterizado em “O Direito Achado na Rua: práxis no percurso de fortalecimento das lutas sociais”, por Euzamara de Carvalho, como sendo um processo de “situar o direito como resultado da luta da classe trabalhadora”. Em sua análise, O Direito Achado na Rua “se apresenta como uma contribuição teórica e política importante e se fortalece com o diálogo com as teorias críticas no campo dos direitos humanos”, e é evidenciada e fortalecida “pela práxis – formação, formulação, ação – presente no horizonte acumulativo e agregador de O direito achado na Rua. Práticas estas que se encontram e se configuram como ações que reinventam os direitos humanos com base no fortalecimento da luta dos movimentos sociais, na pesquisa militante engajada, pertencimento a grupos e projetos de extensão, na assessoria jurídica, e, consequentemente, nos processos de formação protagonizados por seus próprios intelectuais no processo constante de luta.”
Esse horizonte esteve colocado desde as iniciativas que passam a ser desenvolvidas a partir de 1985, ano em que o professor ingressou nos quadros da UnB como professor do magistério superior. Nela, passou a construir uma consistente agenda de ensino, pesquisa e extensão, extremamente engajado com o ensino jurídico, a universidade pública, os direitos humanos e a democracia. É nesta universidade que vem a construir o Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos (NEP/UnB), no Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (CEAM/UnB), em 1986, e, também, o Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania (PPGDH).
Exemplo das construções viabilizadas com o engajamento do professor José Geraldo de Sousa Junior no âmbito do Direito Achado na Rua é o avanço no desenvolvimento de projetos de extensão popular que passam a caracterizá-lo no ambiente universitário. No dossiê, um desses projetos é apresentado: as Promotoras Legais Populares. Em “A formação de sujeitas coletivas de direito no Movimento Promotoras Legais Populares”, Lívia Gimenes Dias da Fonseca destaca os desafios para a construção de um feminismo plural capaz de articular particularidades sem ignorar as hierarquias existentes no movimento feminista. Para tanto, defende a necessidade de apropriação da categoria sujeito coletivo de direito pelo movimento feminista. Apresenta o movimento das Promotoras Legais Populares, com enfoque na experiência do coletivo do Distrito Federal e Entorno e da constituição de uma rede nacional, trazendo os desafios da sua prática visando apontar reflexões teórico-práticas que possam servir à construção permanente do movimento de PLPs que se pretende ser plural e libertário.
Da mesma forma, a experiência do Cepafre, retratada em “Centro de Educação Paulo Freire de Ceilândia (CEPAFRE): 32 anos alfabetizando jovens, adultos e idosos trabalhadores e sua relação com a Universidade de Brasília”, por Maria Madalena Tôrres e Danielle Estrêla Xavier, revela como os espaços e as experiências universitárias vão se transformando quando são submersas na realidade social, da qual não podem se dissociar. No texto, as autoras apresentam a história de 32 anos do Cepafre com foco no trabalho de alfabetização de jovens, adultos e idosos, em parceria com a UnB.
Como se pode notar, a categoria “sujeito coletivo de direitos” é gerada pela realidade vivenciada pelos movimentos sociais e aprendida pelo Direito Achado na Rua com o professor José Geraldo de Sousa Junior, que passa a se dedicar à sua formulação. Sua sintetização teórica pode ser conferida em sua tese, intitulada “Direito como Liberdade: O Direito Achado na Rua. Experiências Populares Emancipatórias de Criação do Direito”. Ela foi defendida em 2008 sob a orientação do professor Luis Alberto Warat e é, até hoje, uma obra de referência no campo do direito e mobiliza gerações de estudantes, advogadas e advogados populares, membros das carreiras do estado, movimentos sociais, sociedade civil e todas e todos que lutam pela transformação e democratização de nossa realidade.
Esses marcos acadêmicos, aqui destacados, são fragmentos de uma trajetória diversificada, permeada por incursões nos campos do ensino, da gestão universitária, da gestão pública, da advocacia e, principalmente, no campo popular. É no compromisso com os movimentos sociais populares que vislumbramos a principal incursão tanto do Direito Achado na Rua como do professor José Geraldo de Sousa Junior.
A formulação teórica da categoria “sujeitos coletivos de direitos”, no bojo dos estudos sobre movimentos sociais, merece destaque no campo das teorias críticas do direito. Estas teorias se diversificam e, no Brasil, ganham destaque aquelas que tem conseguido avançar na análise pluralista. Segundo David Sánchez Rubio, em “El Pueblo hace derecho, abriendo espacios de libertad”, José Geraldo de Sousa Junior e Antonio Wolkmer tem conseguido perceber as limitações do paradigma monista do direito, pela sua incapacidade de entender as novas realidades e os novos contextos complexos do Brasil e do restante dos países latinoamericanos. No caso específico do direito achado na rua, analisa o autor constituir “expresión jurídica instituyente del poder popular, que como derecho insurgente, combina la dimensión del derecho estatal con el derecho no estatal, a partir de un paradigma de pluralismo jurídico y una praxis de participación democrática radical que articula y complementa el positivismo de combate, el uso alternativo del derecho, expresiones de pluralismo jurídico, un derecho militante y un derecho insurgente, dependiendo de los actores sociales y el contexto social e histórico de cada lugar, momento y época.”
Conforme destaca o professor Antônio Carlos Wolkmer em seu artigo “A legitimidade dos sujeitos sociais e a construção plural de direitos”, é preciso enfatizar “a relevância de se buscarem formas plurais e alternativas de fundamentação para a instância convencional da justiça institucionalizada, projetando uma construção relacional e comunitária solidificada na realização material concreta e efetiva de novos sujeitos sociais que entram em cena e inauguram autênticos processos instituintes”.
Essa realização material concreta e efetiva dos novos sujeitos sociais precisa ser evidenciada a partir do desenvolvimento de múltiplos olhares sobre a realidade social. Com o artigo “Ocupação do espaço urbano pela arte e cultura LGBTQIA+ como mecanismo de luta na garantia de direitos”, temos um importante exemplo disso, ao nos depararmos com uma análise sobre como movimentos artísticos e culturais idealizados e organizados por sujeitos LGBTQIA+ atuam para garantir o direito fundamental e humano à cidade, com referência especial à Sousa Júnior (2008, 2019a, 2019b), Butler (1990) e Castells (1983). Nele, Lucineide Barros Medeiros, Elvis Gomes Marques Filho e Diego Silva de Sousa concluem que “as movimentações coletivas artísticas e culturais LGBTQIA+, associadas às conquistas de caráter jurídico-político, a exemplo das que estão previstas no Estatuto da Cidade e o suporte epistemológico, de base crítica, de construções como a do Direito Achado na Rua se constituem um processo que aponta para a ampliação da conquista dos direitos LGBTQIA+, em oposição à violação sistemática pelo Estado dos direitos fundamentais e exclusão desse grupo da cena pública”.
Da mesma forma contribui o texto “Conversações entre José Geraldo e Franco Basaglia: por uma nova práxis social para o direito e a psiquiatria”, de Ludmila Cerqueira Correia. Nele a autora adentra aspectos relacionados à necessária construção de ‘novas lentes para enxergar o Direito e suas formas de realização’, que apenas podem emergir como produção de um ‘conhecimento engajado’ que é definido pela autora como sendo aquele “capaz de atender as expectativas de uma reflexão acerca da práxis social constituída na sua experiência comum de luta por justiça e direitos.”
O enfoque do texto, que pode ser localizado no campo da Psiquiatria Democrática, é analisar as suas interseções com o Direito Achado na Rua, num movimento próximo ao que é realizado em “Dialética social no Rastro do pensamento de Roberto Lyra Filho e Milton Santos: aportes teóricos no campo do direito e geografia”, que tem como objetivo contribuir com a teoria crítica a partir dos possíveis encontros entre o Direito e a Geografia, com base na crítica epistemológica dos respectivos campos de conhecimento. Nele, Sara da Nova Quadros Côstes e Cloves dos Santos Araújo buscam questionar o Direito e a Geografia, a partir da “concreticidade das relações sociais conflituosas de produção dos espaços geográficos e dos direitos radicada nos clamores populares por liberdade e justiça social para a construção de novos caminhos teórico-metodológicos”. Duas obras de grande importância para os campos são utilizadas como referência: “O que é Direito” (1982) de Roberto Lyra Filho e “Por uma Geografia Nova” (1978) de Milton Santos, pois “ambas buscam reconstruir o objeto de estudo dos seus respectivos campos sob uma perspectiva interdisciplinar e crítica que desvenda as ideologias com ajuda da dialética marxiana”.
Ainda no mote dos diálogos e interseções entre áreas do conhecimento, o artigo “Uma releitura da sociologia jurídica a partir do Direito Achado na Rua” se destaca pela leitura reflexiva realizada por Christiane de Holanda Camilo e Marcos Júlio Vieira dos Santos sobre a obra “Direito como Liberdade: O Direito Achado na Rua Experiências Populares Emancipatórias de Criação do Direito”, de autoria de José Geraldo de Sousa Júnior (2008), com atenção especial ao capítulo intitulado Condições Sociais e Possibilidades Teóricas para uma Análise Sociológico-Jurídica. O objetivo foi destacar as conexões entre Direito e Sociologia, que deram origem à chamada Sociologia Jurídica e discutir “as possibilidades teóricas, metodológicas e práticas para uma epistemologia jurídica emancipatória socialmente legítima, que nasce nas nos espaços públicos articulada pelo elo do protagonismo dos movimentos sociais, enquanto sujeitos de direitos coletivos e revolucionários”, notadamente no contexto da nova democracia latino-americana.
Isso pode ser verificado em “O Direito Achado na Rua e a relação direito e movimentos sociais na teoria do direito brasileiro”, de Antonio Escrivão Filho e Renata Carolina Corrêa Vieira, no qual analisam o percurso do Direito Achado na Rua em diálogo com seu próprio processo de formulação teórica e identificam nos estudos de José Geraldo de Sousa Junior ‘pioneirismo e intuição analítica’ na incorporação dos movimentos sociais no estudo do direito no Brasil. Em sua análise, verificam que o professor “passou a desenvolver de modo original no Brasil estudos orientados para um reconhecimento político-constitutivo da práxis dos movimentos sociais de luta por moradia, por terra e pelo combate à violência e discriminação racial, de modo a inscrever tais práticas no campo jurídico, desde uma perspectiva da legitimidade dos sujeitos coletivos que desafiam a ordem estatal, para então inscrever nela o reconhecimento dos seus modos de ser e de viver com liberdade e dignidade.”
Com esse repertório de reflexões e provocações, publicizamos o dossiê, na esperança de que inspire e entusiasme as novas gerações, como um chamado à transformação social e um despertar a refutação do direito como opressão.
E, conforme expressamos na carta de solicitação de outorga do título de Professor Emérito ao professor José Geraldo de Sousa Junior, na ‘universidade necessária’ de Darcy Ribeiro, construída por muitas vidas, com muitos esforços, o professor figura como sendo o ‘educador necessário e emancipatório’ que construiu um legado de ultrapassagem da promessa utópica da Universidade de Brasília. Mestre que com sua vida, energia, alegria e luta, tem formado e provocado tantas gerações.
Depois da realização do Seminário Internacional O Direito Como Liberdade: 30 Anos do Projeto O Direito Achado na Rua, o volume 10 da Série, com o título de Introdução Crítica ao Direito como Liberdade, estava posto como mais amplo e atualizado balanço da fortuna crítica desse projeto substantivo.
Tal como expuseram os organizadores da obra (para referência conferir em http://estadodedireito.com.br/o-direito-achado-na-rua-volume-10-introducao-critica-ao-direito-como-liberdade/), o contexto em que ela foi preparada teve o “sentido plural, ora de revisitar os conceitos teóricos e epistemológicos de O Direito Achado na Rua, desde a sua concepção até os momentos atuais, a partir de suas linhas de pesquisa, ora para se projetar em novas formulações teóricas e práticas, a partir de uma atualização de temas que hoje, há exatos 30 anos da sua concepção, se reconhece a urgência e necessidade de sua abordagem, sem os quais não se é possível a formulação de um projeto de sociedade livre, justo e solidário, como os são a pauta antirracista e antipatriarcal”.
O volume então publicado (2021) se apresentou também “como uma compilação de autoria do coletivo de pesquisadoras e pesquisadores de O Direito Achado na Rua, bem como intelectuais e representantes de movimentos sociais que ao longo desses 30 anos compõem a fortuna crítica do Direito, e que historicamente estiveram sempre em diálogo com O Direito Achado na Rua, além de anunciar novas e atuais parcerias para a construção de agendas em comum na dimensão teórica e prática”. Assim, a obra pretendeu se constituir “como um espaço com disposição e potencial para colecionar elementos temáticos e estéticos, modos de interpretar, de narrar e de instituir redes e plataformas para a conformação teórico-prática dos protocolos de pesquisa e extensão que se projetaram e se projetarão no tempo, refletindo sobre o atual momento de crise paradigmática do direito e da sociedade brasileira”.
De resto, nos trabalhos cotidianos, do fazer acadêmico e político, o contínuo desse projeto se realiza permanentemente, atento à emergências, revisitações e discernimentos próprios de uma travessia que responde a urgências de discernimento sobre as três perspectivas que balizam o projeto: determinar o espaço social e político de sociabilidades vivas; compreender e reconhecer os protagonismos que se movem nesses espaços, seus movimentos e os sujeitos coletivos de direito que neles se manifestam; e aferir os achados que desafiam inteligibilidade como categorias de um direito vivo.
Isso se materializa em monografias, ensaios, artigos, dissertações, teses, que aplicam essas categorias e esses parâmetros, e que formam hoje um magnífico repositório, a partir de resultados que se espalham no Brasil e mundo afora.
Agora mesmo, enquanto escrevo, interrompo para integrar banca examinadora de tese de doutoramento, na Faculdade de Direito de Vitória, defendida por Shayene Machado Salles. Bioética Latino-Americana e Afrecentricidade como Práxis Educativa de Libertação: Referenciais Epistemológicos para a Implementação da Política Pública de Educação das Relações Étnico-Raciais nos Cursos de Direito. Destaco o capítilo 4, da Tese:
4 CIÊNCIA DO DIREITO, ENSINO JURÍDICO E SUA CRÍTICA EM LUÍS ALBERTO WARAT, ROBERTO LYRA FILHO E JOSÉ GERALDO DE SOUSA JUNIOR: PREMISSAS MARGINAIS PARA A APLICAÇÃO DE UMA PERSPECTIVA PEDAGÓGICA LIBERTADORA NA EDUCAÇÃO SUPERIOR JURÍDICA
4.1 DA CRÍTICA AO PENSAMENTO JURÍDICO TRADICIONAL À ELABORAÇÃO DE UMA EPISTEMOLOGIA CONTRADOGMÁTICA EM WARAT: PARA LIBERTAR-SE DA CONCEPÇÃO HEGEMÔNICA DE CIÊNCIA E DO CARÁTER POLÍTICO-IDEOLÓGICO DO DISCURSO
4.1.1 Conhecimento, mito, discurso e poder na Ciência Jurídica
4.1.2 Por uma epistemologia contra-dogmática da complexidade
4.2 CONCEPÇÃO DIALÉTICA DO DIREITO E CRÍTICA AO ENSINO JURÍDICO EM ROBERTO LYRA FILHO (DA OPOSIÇÃO ENTRE DIREITO E LEGALIDADE À AFIRMAÇÃO DA MARGINALIDADE COMO ALTERNATIVA PARA A CONSTRUÇÃO DE NOVAS CATEGORIAS JURÍDICAS): PARA LIBERTAR-SE DO POSITIVISMO ACRÍTICO E DO DISTANCIAMENTO ENTRE O JURISTA E A REALIDADE SOCIAL
4.3 DIREITO COMO LIBERDADE EM JOSÉ GERALDO DE SOUSA JÚNIOR: PARA LIBERTAR-SE CONSCIENTE E COLETIVAMENTE A PARTIR DAS RUAS, À LUZ DOS DIREITOS HUMANOS, E PARA A ADESÃO À PROPOSTA DE INTERVENÇÃO ÉTICO-POLÍTICA ADVINDA DO MARCO REGULATÓRIO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR JURÍDICA BRASILEIRA.
Para mais pormenores, remeto à coluna Lido para Você:
Do mesmo modo, nesse sentido de construção permanente do campo crítico, o rico acervo formado pela Coleção Direito Vivo, que coordeno juntamente com o colega professor Alexandre Bernardino Costa, na Editora Lumen Juris. Obras editadas com o marcador O Direito Achado na Rua, seguindo-se um sub-título que assinala o campo de interesse do período acadêmico de estudantes de pós-graduação na disciplina O Direito Achado na Rua, componente curricular dos cursos de Pós-Graduação em Direito (Faculdade de Direito da UnB) e de Direitos Humanos e Cidadania (CEAM-Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares da Universidade de Brasília).
Está com lançamentos programados para esse fim de ano o volume 6 da Coleção: O Direito Achado na Rua. Do Local ao Universal – A Proximidade Solidária que Move o Humano para Reagir e Vencer a Peste. Organizadores: Alexandre Bernardino Costa, José Geraldo de Sousa Junior, Sabrina Cassol. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2022, resultado dos trabalhos desenvolvidos por professores e professoras da Universidade Federal do Acre, em programa de doutoramento interinstitucional com a UnB, na disciplina O Direito Achado na Rua. Para informação sobre a obra: http://estadodedireito.com.br/o-direito-achado-na-rua-do-local-ao-universal-a-proximidade-solidaria-que-move-o-humano-para-reagir-e-vencer-a-peste/.
Por tudo, conforme pontua a professora Inez Lopes, coordenadora da pós-graduação em Direito da UnB e Editora-Chefe da Revista, “O Direito Achado na Rua é sui generis e resulta em transformações sociais mediante uma dialética social para afirmar a legitimidade dos sujeitos sociais e coletivos, por promover um efetivo acesso à justiça, pelo reconhecimento do pluralismo jurídico, por abrir novos espaços para o exercício do direito como liberdade e consolidação dos direitos humanos”.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
O Direito Achado na Rua. Do Local ao Universal – A Proximidade Solidária que Move o Humano para Reagir e Vencer a Peste
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
O Direito Achado na Rua. Do Local ao Universal – A Proximidade Solidária que Move o Humano para Reagir e Vencer a Peste. Organizadores: Alexandre Bernardino Costa, José Geraldo de Sousa Junior, Sabrina Cassol. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2022, 384 p.
Conforme a descrição do Editor, em texto preparado pelos organizadores, este volume 6, da Coleção Direito Vivo O Direito Achado na Rua, que integra o catálogo de publicações da Editora Lumen Juris, cuida de um consistente movimento reflexivo provocado pela boa e pronta resposta que os alunos participantes da disciplina O Direito Achado na Rua, do Programa Interinstitucional de Doutorado em Direito, uma interlocução entre a Universidade de Brasília e sua Faculdade de Direito (Programa de Pós-Graduação em Direito) e a Universidade Federal do Acre e seu Curso de Direito, em continuidade a projeto anterior de Mestrado Interinstitucional, devolveram aos autores, regentes da disciplina, de atribuir sentido reflexivo-interventivo aos desafios do eixo programático da disciplina, oferecendo trabalhos que não só servissem ao requisito de avaliação acadêmica para fins de certificação, mas que representassem seu modo de interpretar a sua realidade social e política e conferir elementos de interpretação universalizante que pudessem conduzir a perspectivas operantes sobre a realidade, fazendo emergir direitos e garantias coletivas estratégicas para vencer a pandemia do Coronavírus.
Os textos trazem para O Direito Achado na Rua contribuições que dotam os sujeitos sociais com um cabedal crítico apto a ampliar seu protagonismo para buscar espaços emancipatórios no social e no político. Nesse viés, a presente obra constitui ambiente propício de potencialização das redes de apoio, organismos e arranjos jurídicos à serviço da sociedade, uma vez que disponibiliza arcabouço fruto da confrontação entre dados do passado e projeções de um futuro ainda permeado de incertezas, ao passo que permite refletir sobre o momento de crise da sociedade brasileira.
Os Organizadores, que também têm textos no livro, compartilham a obra com os autores e autoras: Alexandre Bernardino Costa | Anastácio Menezes | César Claudino Pereira Charles dos Santos Brasil | Cícero de Oliveira Sabino / Daniel Queiroz de Sant’Ana | Danniel Gustavo Bomfim Araújo da Silva / Emmily Teixeira de Araújo | Fabiana Lima Agapejev de Andrade / Fabiane da Fontoura Messias de Melo | Glaucio Ney Shiroma Oshiro / Isla Maria Amorim de Souza Mansour | José Geraldo de Sousa Junior / Josialdo Batista Ferreira | Jucyane Pontes de Assis Brito / Kaio Marcellus de Oliveira Pereira | Leonardo Cunha de Brito Leonísia Moura Fernandes | Lúcia Maria Ribeiro de Lima / Marcia Regina de Sousa Pereira | Maria Rosinete dos Reis Silva / Nick Andrew Pereira Ugalde | Olívio Botelho de Andrade Neto / Paulo Jorge Santos | Rafael Figueiredo Pinto | Rafael Marcos Costa Pimentel / Renata Duarte de Oliveira Freitas | Rodrigo Fernandes das Neves / Sabrina Cassol | Samarah Mota | Simone Jaques de Azambuja Santiago.
Reproduzo a seguir, a Apresentação do livro, que redigi com meus colegas co-organizadores e que expõe a motivação, o processo de elaboração e o conteúdo da obra. A localização paradigmática de O Direito Achado na Rua, e o significado de sua contribuição para o conhecimento, pode ser sintetizado em alguns fundamentos, que acabam por consolidar categorias metodológicas de investigação, isto é, analisar as experiências populares de criação do direito, de modo a compreender e refletir sobre a atuação jurídica dos movimentos sociais, ao: 1. Determinar o espaço político no qual se desenvolvem as práticas sociais que enunciam direitos, a partir mesmo de sua constituição extralegal, como os direitos humanos; 2. Definir a natureza jurídica do sujeito coletivo capaz de elaborar um projeto político de transformação social e elaborar a sua representação teórica como sujeito coletivo de direito; 3. Enquadrar os dados derivados destas práticas sociais criadoras de direitos e estabelecer novas categorias jurídicas para as relações solidárias de uma sociedade em que sejam superadas as condições de espoliação e de opressão, e na qual o direito possa realizar-se como um projeto de legítima organização social da liberdade.
É conforme esses fundamentos que se delineia o conjunto teórico-político que se reúne neste volume 6, da Coleção Direito Vivo – O Direito Achado na Rua, que integra o catálogo de publicações da Editora Lumen Juris.
Cuida-se de um consistente movimento reflexivo provocado pela boa e pronta resposta que os alunos participantes da disciplina O Direito Achado na Rua, do Programa Interinstitucional de Doutorado em Direito, uma interlocução entre a Universidade de Brasília e sua Faculdade de Direito (Programa de Pós-Graduação em Direito) e a Universidade Federal do Acre e seu Curso de Direito, em continuidade a projeto anterior de Mestrado Interinstitucional, devolveram aos autores, regentes da disciplina, de atribuir sentido reflexivo-interventivo aos desafios do eixo programático da disciplina, oferecendo trabalhos que não só servissem ao requisito de avaliação acadêmica para fins de certificação, mas que representassem seu modo de interpretar a sua realidade social e política e conferir elementos de interpretação universalizante que pudessem conduzir a perspectivas operantes sobre a realidade.
Vale dizer, sob o enfoque da filosofia da práxis, passar do âmbito contemplativo e diletante para o agir orientado a intervir na realidade, transformando-a. Do local ao global e de volta, em contínua circuição. É o que pontuam José Geraldo de Sousa Junior e Alexandre Bernardino Costa, docentes da UnB, co-líderes do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua (Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPQ), no artigo que abre a obra O DIREITO ACHADO NA RUA: DO LOCAL AO UNIVERSAL A PROXIMIDADE SOLIDÁRIA QUE MOVE O HUMANO PARA REAGIR E VENCER A PESTE, designando o entendimento sobre a realidade política e social e a perspectiva de O Direito Achado na Rua como campo epistemológico para fazer emergir direitos e garantias coletivas estratégicas para vencer a pandemia do Coronavírus.
Pode-se dizer que os textos assim organizados, trazem para O Direito Achado na Rua contribuições que dotam os sujeitos sociais com um cabedal crítico apto a ampliar seu protagonismo para buscar espaços emancipatórios no social e no político. Nesse viés, a presente obra constitui ambiente propício de potencialização das redes de apoio, organismos e arranjos jurídicos à serviço da sociedade, uma vez que disponibiliza arcabouço fruto da confrontação entre dados do passado e projeções de um futuro ainda permeado de incertezas, ao passo que permite refletir sobre o momento de crise da sociedade brasileira.
Na obra, as questões universais, como em A UNIVERSALIDADE DO DIREITO À SAÚDE: UMA ANÁLISE DO DIREITO ACHADO NA RUA NO ESTADO DO ACRE DURANTE A PANDEMIA COVID-19, de autoria de Sabrina Cassol; César Claudino Pereira; Rafael Marcos Costa Pimentel visam a abordar os efeitos da pandemia em âmbito mundial sem se alienar de seus efeitos locais, no estado do Acre e como a competência para tratar do assunto é distribuída entre os entes, como lidam efetivamente com as dificuldades impostas pela pandemia e possíveis soluções para essas dificuldades na perspectiva do Direito Achado na Rua.
Assim, em DESIGUALDADE DE GÊNERO, PANDEMIA E MERCADO DE TRABALHO: DESAFIOS DA MULHER TRABALHADORA NA REGIÃO NORTE, de autoria de Emmily Teixeira de Araújo; Olívio Botelho de Andrade Neto; Thiago Pereira Figueirêdo parte-se do agravamento das dificuldades trazidas pela pandemia no quadro na luta feminista no tocante à violência doméstica e familiar contra mulheres, posto que mais expostas ao convívio com parceiros violentos e mais distantes da proteção estatal. Além disso, as mulheres acumularam dentro de seus lares o trabalho, a função de mãe e de dona de casa. Não bastasse, foram as que mais perderam postos de trabalhos e menos retornaram aos seus empregos e, para agravar o quadro, as mulheres negras suportaram ainda os efeitos deletérios da desigualdade de gênero. Uma análise pormenorizada sobre esses efeitos na região Norte demonstra que aqui os efeitos da crise são mais sofridos, onde se perpetuam e agravam os quadros de desigualdades de modo geral, inclusive as de gênero. Assim é necessária uma política de Estado que erradique a desigualdade de gênero.
Esse percurso permite ressignificar elementos que servem ao melhor entendimento da realidade, em temas de alto simbolismo, como em SÍTIOS NATURAIS SAGRADOS: A RESSIGNIFICAÇÃO DA SACRALIDADE DA NATUREZA EM UM MUNDO PÓS-COVID, de autoria de Renata Duarte de Oliveira Freitas e Nick Andrew Pereira Ugalde, primeiramente, contextualiza um diálogo entre a crise ambiental atual e o mundo pós-Covid. Busca, ainda, relacionar os valores sociais ecológicos reconhecidos em decorrência do movimento proposto pelo Direito Achado na Rua aos novos sujeitos de direitos. A exemplo disso, temos a discussão proposta pelo artigo sobre a importância do reconhecimento de todas as formas de vida e não só a do ser humano, fundamentada no reconhecimento jurídico existente e no valor inerente a cada ser vivo. Por fim, sugere como alternativa aos entraves sofridos pela natureza a criação de áreas especialmente protegidas, mais especificamente falando, os sítios naturais sagrados que resguardam os valores culturais e espirituais da natureza.
Do mesmo modo, categorias desafiadoras na contemporaneidade, entre o global e o local, pedem novas leituras. Em EMERGÊNCIA CLIMÁTICA EM UM MUNDO PÓS-PANDÊMICO: DE CHICO MENDES A GRETA THUNBERG, de autoria de Marcia Regina de Sousa Pereira; Rodrigo Fernandes das Neves propõe-se uma reflexão sobre a correlação entre a ação humana na natureza e uma consequente incidência de vírus patógenos, para isso, apresenta como argumento o desmatamento em florestas tropicais. Para tornar mais complexo o contexto, esses eventos se dão num momento de dificuldade de articulações coletivas, descrédito de sistemas políticos e divisões ideológicas. A tecnologia e a comunicação aliadas têm fornecido novos caminhos para as lutas que busquem resguardar os direitos ambientais e essa transição de movimentos que vão da modernidade industrial à modernidade informacional é bem representada por Chico Mendes e Greta Thunberg, respectivamente. Em tese conclusiva, o artigo propõe uma revisão dos fundamentos atuais do capitalismo econômico para uma nova proposta de economia que priorize a baixa emissão de carbono e justiça social, mais especificamente falando, como por exemplo a proposta do green new deal.
É esse mesmo modo de estabelecer perspectivas para rever paradigmas, que se faz presente em CRISE SANITÁRIA E PUNITIVISMO: A PERSPECTIVA SOCIOLÓGICA DO DIREITO ACHADO NA RUA COMO POSSIBILIDADE TEÓRICA DE RESISTÊNCIA, de autoria de Fabiane da Fontoura Messias de Melo; Kaio Marcellus de Oliveira Pereira; Maria Rosinete dos Reis Silva descreve a discussão da racionalidade penal e suas recentes transformações, bem como a relação entre a pandemia do Coronavírus e a reiterada violação de direitos humanos no cárcere pela falta de medidas recomendadas pelos órgãos de saúde para evitar a proliferação do vírus nos presídios. Um indício de que a punitividade ainda prevalece no Brasil é que muitos HC impetrados por pessoas pertencentes aos grupos de risco são denegados. Em caráter conclusivo, os autores se valem de pelo menos duas contribuições doutrinárias de Boaventura de Souza Santos para que o centro da análise jurisdicional seja o conflito e não a norma, para que a recomendação do CNJ de que se adotem medidas de desencarceramento.
Por isso que mesmo sistemas aparentemente cristalizados, encaixados em modelagens calcificadoras como só acontecer com o aparato burocrático do sistema de justiça, impõe interpelar também, não só o sistema per se, mas o seu próprio conteúdo. Não apenas o acesso à justiça, mas na mesma disposição, a justiça a que se quer acesso. Disso trata O ACESSO À JUSTIÇA E A DEFENSORIA PÚBLICA NA CRISE SANITÁRIA: QUESTÕES RELACIONADAS À SAÚDE E AO COVID-19, de autoria de Simone Jaques de Azambuja Santiago; Virgínia Medim Abreu perpassa pelo papel da Defensoria Pública em sua função institucional de acesso dos mais vulneráveis à justiça durante o contexto da pandemia covid-19, especialmente diante das demandas envolvendo o direito à saúde.
Em O DIREITO ACHADO NA FLORESTA: UMA ANÁLISE SOBRE O EXERCÍCIO DO CONSELHO GESTOR DA ÁREA DE PROTEÇÃO AMBIENTAL LAGOA DO AMAPÁ EM TEMPOS DE PANDEMIA DE COVID-19, de autoria de Charles dos Santos Brasil; Fabiana Lima Agapejev de Andrade; Rafael Figueiredo Pinto foi construído a partir de um estudo analítico sobre a Área de Proteção Ambiental (APA) Lago do Amapá, localizada na cidade de Rio Branco/Acre. O objetivo é apresentar as dificuldades para a efetivação do Conselho Gestor da APA frente à pandemia da COVID-19 e como a atuação deste órgão de gestão se relaciona com a teoria do Direito Achado na Rua nas lutas por direitos da comunidade.
Na consciência de que as condições objetivas da pandemia não são um episódio, mas a manifestação de uma nova condição até civilizatória, PANDEMIA PERMANENTE: UMA ANÁLISE SOBRE FEMINICÍDIOS OCORRIDOS NO ESTADO DO ACRE EM MEIO À CRISE SÓCIO-SANITÁRIA CAUSADA PELA COVID-19 SOB O MODELO POLÍTICO NEOLIBERAL, de autoria de Leonísia Moura Fernandes; Lúcia Maria Ribeiro de Lima; Olívio Botelho de Andrade Neto no contexto pandêmico elucidado, propõe uma reflexão sobre o aumento da violência contra as mulheres no cenário de propagação da covid-19, lançando as lentes sobre as questões estruturais envolvidas na produção da violência, a fim de compreender as causas do aumento de feminicídio, especificamente no estado do Acre, que conta com um dos piores índices de feminicídio no Brasil.
O desafio é, por conseguinte, mapear certas especificidades do processual, para circunscrever campos em mais se exige novos procedimentos e protocolos de intervenção. Na área judicial, como mostra A PANDEMIA, A JUDICIALIZAÇÃO E AS CRISES, de autoria de Glaucio Ney Shiroma Oshiro; Anastácio Menezes. Este texto trata das crises na apreciação de demandas judiciais derivada da crise da covid-19, notadamente da demora hiperbólica da Suprema Corte para a publicação de acórdãos, da insegurança jurídica gerada por esses fatores e, finalmente, sobre a judicialização da saúde que demanda práticas transformadoras, questionando, por fim, se a segurança jurídica sob novos referenciais epistemológicos pode levar, muito embora não sem uma luta contra-hegemônica, a um resultado libertário e emancipador.
Assim também em COMPULSORIEDADE DA VACINAÇÃO CONTRA A COVID-19 E O DIREITO À LIBERDADE, de autoria de Danniel Gustavo Bomfim Araújo da Silva; Isla Maria Amorim de Souza Mansour; Josialdo Batista Ferreira, que descrevem, diante de uma das maiores crises sanitárias, a aplicação da vacina como uma das principais medidas de controle da pandemia e vem sendo adotada e difundida por diversos países. Entretanto, emerge uma discussão sobre uma possível violação à liberdade individual das pessoas quanto à decisão de serem (ou não) vacinadas. Ante tal problemática, tal obrigatoriedade viola ou não o direito à liberdade das pessoas? Para responder essa pergunta, os autores se utilizam do referencial teórico de Ronald Dworkin e da visão sociológica crítica do direito achado na rua.
Pousando no chão das vivências de maior proximidade e onde o comunitário pede a circunscrição de políticas de vizinhança, faz-se imperiosa a configuração social para a composição do orçamento público. A TRIBUTAÇÃO, AS DESIGUALDADES SOCIAIS E ECONÔMICAS E A PANDEMIA: A BUSCA DE UM CAMINHO PARA A REDUÇÃO DAS INIQUIDADES, de autoria de Cícero de Oliveira Sabino traz à tona uma relevante e atual discussão acerca da teoria da tributação e da matriz tributária, com foco nas funções da tributação para o financiamento estatal. Qual a relação entre o fenômeno da tributação e as desigualdades sociais e econômicas? E quais as suas repercussões sobre a crise sanitária causada pela COVID-19? Para além de responder tais questionamentos, o autor também propõe uma reflexão acerca da matriz tributária brasileira e da eficácia no atingimento dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, sem deixar de considerar o princípio basilar da Constituição de 1988: a dignidade da pessoa humana.
Por fim, chega-se ao plano das novas vivências e das necessidades de rever modos cotidianos de intersubjetivação. Primeiro, na educação, conforme O DIREITO À EDUCAÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES DURANTE A PANDEMIA, NO BRASIL E NO ACRE, de autoria de Daniel Queiroz de Sant’Ana; Jucyane Pontes de Assis Brito; Leonardo Cunha de Brito, onde são retratados os desafios enfrentados pelo Estado para a efetivação do direito de crianças e adolescentes à educação, especialmente durante o contexto pandêmico. Por um lado, a Constituição prevê tratamento especial a crianças e adolescentes, assegurando-lhes esse direito fundamental de natureza social. Por outro, a pandemia evidenciou ainda mais o contexto de desigualdades sociais, educacionais especialmente no estado do Acre, um dos mais pobres do país.
E ali onde se entretecem os nós necessários das redes que são essenciais à comunicação como emancipação. Em INTERNET, BANCARIZAÇÃO, PANDEMIA E O DIREITO ACHADO NA RUA, de autoria de Paulo Jorge Santos e Samarah Mota se discute acerca da aceleração do processo de “virtualização” da prestação de serviços estatais essenciais resultante do advento da pandemia da Covid-19 e do consequente distanciamento social. No entanto, os sistemas digitais implementados pelo Poder Público no âmbito nacional são eivados de falhas técnicas gerando demandas reprimidas e inacessibilidade dos mais necessitados aos benefícios sociais. Ante a essa tendência, os autores demonstram a necessidade de reconhecimento da garantia de direito à internet, considerando-se que esse já se tornou o principal veículo de acesso aos serviços que visam a assistência básica dos indivíduos mais vulneráveis.
O contexto para essa contribuição literária – mas não só, também sociológica – não poderia ser mais oportuno: o existencial momento de crise do direito e da sociedade nacional. As discussões e as interpretações aqui reunidas transcendem o conjuntural, e demarcam passagem para propor travessias que deslocam a riqueza de questões, em sua maior parte emergentes desse contexto dramático, para o trânsito em direção a um futuro que se revele ainda utópico, mas já constituído pelo pensamento que o constitua, como escolha e como autonomia.
Em face disso a presente obra, por meio de seus idealizadores, organizadores e autores propõe narrativas relacionadas à descoberta, desenvolvimento desse Direito e apontamentos sobre as contribuições práticas e teóricas até o presente construídas na atual conjuntura pandêmica. Para mais, vê-se a tamanha contribuição, o potencial e a pertinência do Direito Achado na Rua, posto que têm buscado por meio da ciência constantemente dar vez e voz aos legítimos atores sociais, instrumentalizando a participação destes no processo político-constitutivo dos direitos por eles instituídos. É um modo de gerar convicções sobre a potência dos sujeitos sociais organizados, desse modo constituídos em sua dimensão de poder popular que cria direitos e os realiza, na rua, no real que concretiza o mundo da vida.
Uma nota de localização. A Coleção Direito Vivo, que coordenamos na Lumen Juris, Alexandre Bernardino Costa e eu, se atualiza com esse 6º volume: O Direito Achado na Rua: do Local ao Universal a Proximidade Solidária que Move o Humano para Reagir e Vencer a Peste.
A Coleção teve início, com o Volume 1 – Direito Vivo: Leituras sobre Constitucionalismo, Construção Social e Educação a Partir do Direito Achado na Rua, org. Alexandre Bernardino Costa, com o selo da Editora UnB, em 2013.
Já na Lumen seguiram-se: volume 2 – O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática, 2015; Volume 3 – O Direito Achado na Rua: Nossa Conquista é do Tamanho da Nossa Luta, 2017; Volume 4 – O Direito Achado na Rua: Lendo a Contemporaneidade com Roberto Aguiar, 2019; Volume 5 – O Direito Achado na Rua: Questões Emergentes, Revisitações e Travessias, 2021.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
O Papel da Extensão Popular na Democratização da Justiça: A experiência da Assessoria Jurídica Universitária Popular Roberto Lyra Filho
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
ADDA LUISA DE MELO SOUSA. O Papel da Extensão Popular na Democratização da Justiça: A experiência da Assessoria Jurídica Universitária Popular Roberto Lyra Filho. Monografia apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Brasília: UnB/FD, 2022, 43 folhas.
A defesa dessa bela monografia foi feita perante a Banca Examinadora formada pela Orientadora professora Talita Tatiana Dias Rampin – FD/UnB; pela Doutoranda e advogada popular Emília Joana Viana de Oliveira – FD/UnB; pelo professor Antonio Sérgio Escrivão Filho – FD/UnB. Também integrei a banca, tendo sido, co-orientador juntamente com a professora Talita, orientador de Adda no Programa de Iniciação Científica, no qual ela desenvolveu parte da pesquisa objeto da Monografia.
A Monografia, confirmando o modo sensível de pensar o mundo que é parte da identidade da Autora, já se afirmando, como anotou o professor Escrivão, um vislumbre antecipador do próprio texto, abre a narrativa como que “uma chave de leitura do próprio texto”, com toda a “liberdade poética”.
O trabalho, está no resumo: “objetiva analisar o processo de democratização da Justiça a partir da análise do histórico da Assessoria Jurídica Universitária Popular Roberto Lyra Filho – AJUP RLJ, projeto de extensão da UnB, ao longo dos seus 10 anos de trajetória, relacionando seu desenvolvimento com a luta dos movimentos sociais no Distrito Federal, a partir da educação popular em direitos humanos, em três gerações de integrantes desde sua fundação, em 2012. Desenvolve um debate sobre extensão popular e assessoria jurídica universitária popular. Apresenta um apanhado teórico sobre concepção e acesso à Justiça, com foco no marco teórico do Direito Achado na Rua. Defende as contribuições da AJUP RLF, junto aos movimentos sociais, para a democratização do acesso à Justiça no Distrito Federal e Entorno, apesar das limitações inerentes ao sistema capitalista”.
O contido no resumo se distribui tematicamente, tal como o indica o Sumário, com uma Introdução, seguida de um capítulo de apresentação que historia a criação da AJUP-RLF, designando três “gerações” de protagonismos (um critério próprio proposto pela Autora; o professor Escrivão aludiu que também poderia ser e validamente, “a primeira década”; de fato, assim designou a professora Loussia Felix em belo ensaio constante da obra fundacional OAB Recomenda Um Retrato dos Cursos Jurídicos. Brasília: Conselho Federal da OAB, 2001, o ciclo de contribuições da Comissão de Ensino Jurídico da Entidade: Da Reinvenção do Ensino Jurídico – Considerações sobre a Primeira Década).
A ASSESSORIA JURÍDICA UNIVERSITÁRIA POPULAR ROBERTO LYRA FILHO 1.1. Primeira geração: a fundação; 1.2. Segunda geração: fase de amadurecimento do Projeto; 1.3. Terceira geração e extensão popular em tempos de pandemia 20
ASSESSORIA JURÍDICA POPULAR E DEMOCRATIZAÇÃO DA JUSTIÇA 2.1. Extensão Popular; 2.2. Assessoria Jurídica Universitária Popular – AJUP.
A JUSTIÇA E SUAS DISPUTAS: conceitos de justiça e contribuições desde a AJUP; 3.1. A justiça e os seus conceitos; 3.2. A justiça e o seu acesso; 3.1. A justiça e sua necessária democratização 35
Fecha o Sumário As Considerações Finais e as Referências.
Recupero o trabalho a partir das Considerações Finais:
Em linhas gerais, pudemos identificar que as três gerações AJUP – RLF com os acúmulos trazidos por esses sujeitos e seus trabalhos coletivos, inclusive, articulações anteriores com movimentos sociais e com extensões populares, refletiram diretamente no trabalho desenvolvido pelo Projeto.
A primeira geração é marcada pela fundação da AJUP – RLF, entre 2012 e 2014, nascida a partir do encontro de pós-graduadas(os), de diversos estados do país, que vieram fazer mestrado ou doutorado na Faculdade de Direito (FD) da UnB, na linha do Direito Achado na Rua, sendo muitos já advogadas(os) populares. Ademais, contou com a participação também de estudantes que já possuíam experiência com outros projetos de extensão da FD, assim como, graduandas(os) de outras instituições de ensino.
Nesse primeiro momento, a AJUP-RLF desenvolve parceria com diversos movimentos populares organizados no DF, como o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), Via Campesina, Movimento Popular por uma Ceilândia Melhor (MOPOCEM), organização de Catadores da Estrutural, Santuários dos Pajés, Comitê Popular da Copa do DF e Movimento Popular de Saúde.
Já a segunda geração, entre 2015 e 2017, conta com uma participação maior de estudantes da graduação da FD-UnB, assim como, de outros cursos e faculdades do DF, dando continuidade às parcerias com o MTST e a organização de Catadores da Estrutural, e iniciando trabalho com o movimento Mercado Sul Vive, de Taguatinga. Além disso, contribuiu com a construção de várias iniciativas nacionais, como o Acampamento Terra Livre, a Frente Brasil de Juristas e no debate sobre a Lei Antiterrorismo.
A partir de 2017 até os dias atuais, identificamos a terceira geração, composta majoritariamente de calouras(os) de direito, que entraram na Universidade em 2017, assim como, no Projeto, e permanecem até hoje, e estudantes da graduação que se somaram posteriormente. A maioria desses estudantes não tinha contato ainda com a assessoria jurídica universitária popular nem com os movimentos sociais. Cabe destacar que coube a essa geração reinventar o seu trabalho frente à pandemia do novo Coronavírus.
Com o estudo realizado, observamos que a AJUP-RLF passa por um processo geracional ao decorrer da sua história de quase uma década, sendo cada geração marcada pelo perfil dos seus integrantes e o trabalho desenvolvido coletivamente entre os sujeitos e os movimentos sociais, a partir da assessoria jurídica popular, desenvolvida por meio da extensão e educação popular em direitos humanos.
Ao analisar a contribuição da atuação da AJUP-RLF, concluímos que suas práticas possuem um caráter democratizante, seja no seu diálogo orgânico com os sujeitos coletivos de direito, ocupando um papel de mediação que o Judiciário é incapaz de cumprir, seja na criação de novas categorias jurídicas ou na a ocupação da institucionalidade a partir de demandas coletivas.
Destacamos como elemento central a “dimensão pedagógica” da assessoria jurídica universitária popular, fomentando uma cultura comunitário democratizante junto ao povo.
Outro desdobramento também no campo educativa trata-se da crítica e nova proposição para o ensino jurídico, que cumpre uma função contra hegemônico nas Faculdades de Direito.
Finalizamos ressaltando a importância da AJUP-RLF no processo de democratização do acesso à Justiça no DF e Entorno, todavia, reconhecendo as limitações impostas pela própria estrutura social, que se reflete na Universidade, advinda da organização do sistema capitalista.
Assim, para que ocorra verdadeira democratização da Justiça, precisamos que a Universidade passe a ser ocupada pelo povo com o rompimento do sistema capitalista.
Destaco como enunciados estruturantes do trabalho, a partir das Considerações Finais, o que a Autora põe em relevo: “Com o estudo realizado, observamos que a AJUP-RLF passa por um processo geracional ao decorrer da sua história de quase uma década, sendo cada geração marcada pelo perfil dos seus integrantes e o trabalho desenvolvido coletivamente entre os sujeitos e os movimentos sociais, a partir da assessoria jurídica popular, desenvolvida por meio da extensão e educação popular em direitos humanos. Ao analisar a contribuição da atuação da AJUP-RLF, concluímos que suas práticas possuem um caráter democratizante, seja no seu diálogo orgânico com os sujeitos coletivos de direito, ocupando um papel de mediação que o Judiciário é incapaz de cumprir, seja na criação de novas categorias jurídicas ou na ocupação da institucionalidade a partir de demandas coletivas. Destacamos como elemento central a “dimensão pedagógica” da assessoria jurídica universitária popular, fomentando uma cultura comunitário democratizante junto ao povo”.
Os enunciados aí estabelecidos se sustentam teoricamente no trabalho desenvolvido, à luz, sobretudo, das categorias analíticas designada por O Direito Achado na Rua, sua concepção e prática. Assim que a Autora percorre com precisão, a parir de seu campo o caminho epistemológico-político constante do protocolo de pesquisa dessa concepção: determinar o espaço político no qual as sociabilidades de movem (a extensão universitária e a educação popular no circuito freiriano de comunicação, que permite adensar-se a consciência que leva ao salto da história para a política transformadora da realidade candente que exclui e oprime pela mediação do Direito); a designação dos sujeitos, que protagonizam em movimento social essa ação transformadora enquanto sujeitos coletivos de direito; e os achados, sintetizados no projeto de sociedade democrática ambiente de humanização emancipada pela conquista e realização permanente de direitos.
Coincidentemente, na semana em que se montou a defesa em Banca Examinadora, uma decisão judicial no Distrito Federal, circunscreveu em seus termos todos esses enunciados, tomando um dos sujeitos estudados pela Autora – Mercado Sul Vive – e externalizando os elementos que a Monografia articula, em sua materialidade realizadora de direitos e promotora de reconhecimentos de titularidade ativa.
Referi-me a esse fato em artigo de opinião, lançado em coluna que mantenho no Jornal Brasil Popular (https://www.brasilpopular.com/mercado-sul-fica/). Reporto-me a esse texto, ao qual dei o título de Mercado Sul Fica!.
Digo no artigo, em argumentos que trouxe para arguição:
O título do artigo é a palavra de ordem que ecoou no Beco da Cultura – Taguatinga – desde fevereiro de 2015. Refere-se ao sonho e esperança que pulsa por lá se tornou em um inédito viável. Agora, o Juiz Carlos Frederico Maroja de Medeiros, da Vara de Meio Ambiente, Desenvolvimento Urbano e Fundiário do DF, em setença prolatada no dia 31 de agosto, em processo de reintegração/manutenção de posse (Processo número: 0003872-11.2015.8.07.0007) reconheceu que o MovimentoOcupação Cultural Mercado Sul Vive atende “ao interesse social e às diretrizes constitucionais e legais relativas à função socioambiental da propriedade e ao direito à cidade” e negou a remoção forçada dos artistas e produtores culturais.
A decisão foi festejada pela advocacia popular que acompanhou o Movimento na causa. Conforme seus integrantes, o “compromisso com a luta do povo e o projeto de sociedade defendido pelos movimentos sociais e possui como princípio e método a educação popular. Nesse sentido, o direito foi achado e conquistado no beco. Achado porque as teses jurídicas defendidas no judiciário foram construídas com fundamento no fazer cultural comunitário, em longos diálogos e debates entre o Mercado Sul Vive, a Candanga Assessoria Popular e a AJUP Roberto Lyra Filho (Coletivo O Direito Achado na Rua). Conquistado pois foi a organização coletiva e a luta política que possibilitaram a conquista dessa batalha”.
Para os estudantes da UnB e os advogados populares, decisão reconhece que o movimento requalificou o espaço como equipamento cultural e como tal deve ter a proteção do Estado:“Por isso, seguiremos esperançando e cobrando do governo ações que fortaleçam a produção cultural realizada ali”.
Com efeito, na Sentença, o Juiz qualifica a Ocupação Cultural Mercado Sul Vive, representada nos autos do processo por artistas, artesãos, produtores culturais, repudiando os termos depreciativos dos pretensos proprietários da área abandonada, acolhendo o argumento de “não ter havido invasão, já que o espaço estava abandonado há mais de dez anos, servindo apenas de especulação imobiliária, além de propiciar a propagação da dengue; menciona que os ocupantes são pessoas reivindicando direito constitucional à moradia, cultura e exercício profissional; enfim, a ocupação é antiga, sendo o espaço conhecido como Beco da Cultura, de modo que o Movimento Cultural Mercado Sul Vive apenas para estabelecer função social ao local”.
Considerou que o imóvel litigioso permaneceu em estado de franco abandono por razoável período de tempo, donde despontou a oportunidade para a ocupação perpetrada pelos réus. Embora ilegal em sua forma e origem, a ocupação acabou por revitalizar o imóvel até então abandonado, tornando-se um reconhecido centro de produção e reprodução de cultura. O imóvel outrora abandonado agora passou a acolher ateliês, luthiers e outros artistas, além de se tornar palco de eventos dedicados à cultura e lazer, requalificando, na prática, toda uma região que até então era vista pela comunidade apenas como um lugar degradado e perigoso. Antes de ser ocupado, o imóvel abandonado encontrava-se em acelerada deterioração. Sendo um imóvel de razoável proporção, sua deterioração impactava diretamente sobre a região onde está situado, causando notória degradação de todo o espaço urbano local.
Para o juiz, “são deveras conhecidas as externalidades negativas sobre o espaço urbano causadas pelo abandono e degradação de imóveis da cidade. Deveras representativo do que se está a falar é a célebre teoria das janelas quebradas (“broken Windows theory”), tão conhecida pelos criminalistas: se uma janela de um imóvel não é prontamente consertada, parte da população se sente estimulada a quebrar outras, ocasionando uma desordem crescente no ambiente urbano. Embora tematizada entre os criminalistas a partir de uma leitura simbólica, a teoria das janelas quebradas é também uma abordagem de direito urbanístico, pois enfoca exatamente a influência do uso e conservação dos imóveis urbanos sobre todo o ambiente social e, por conseguinte, do bem-estar da comunidade (interesse primordial das ponderações urbanísticas): regiões degradadas e abandonadas tendem a contaminar todo o entorno, expandindo a degradação urbana, em prejuízo crescente ao bem-estar da população, inclusive da situada no entorno dos locais abandonados”.
Com avançada argumentação a propósito da ordenação e do controle do uso do solo, o juiz põe em relevo na legislação, a diretriz que visa inibir “a retenção especulativa de imóvel urbano, que resulte na sua subutilização ou não utilização; a deterioração das áreas urbanizadas”, caracterizando o fato de que “os imóveis litigiosos, conforme já anotado, estavam em estado de abandono até o momento da ocupação e requalificação do local pelos réus. Restituir o imóvel que está atualmente requalificado de modo a oferecer arte e cultura à população representaria fomento à retenção especulativa e prejuízo ao uso socialmente proveitoso do bem, em frontal contrariedade à diretriz do Estatuto da Cidade, que, vale reiterar, é de ordem pública e interesse social”.
Assim, segundo a Sentença, “o imóvel litigioso hoje tem a nítida função de bem cultural da cidade, e é assim reconhecido pela comunidade. A relevância do bem cultural é característica inerente ao próprio bem, que não carece da chancela de atos formais como o de tombamento ou registros (os quais têm caráter meramente declaratório, ou seja, apenas certificam a relevância preexistente do bem cultural)”.
Portanto, ele conclui, “no caso concreto, é inequívoco que o imóvel assumiu a condição de bem cultural, o que atrai a exigência legal ora referida de se prover a sua proteção e preservação. O mesmo princípio ora enfocado é também consagrado no art. 312, VI, da Lei Orgânica do Distrito Federal, como instrumento da política urbana distrital”.
Em resumo, fixa a Sentença,“é inequívoco que a posse exercitada pelos réus atende, em muito maior medida, ao interesse social e às diretrizes constitucionais e legais relativas à função socioambiental da propriedade e ao direito à cidade, o que impede o acolhimento da pretensão autoral”.
Coincidentemente, no dia seguinte à sentença (1º/9) participei na UnB (Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania), da banca de defesa de dissertação de Mestrado, de Willy da Cruz Moura, “Cultura e Vida Noturna em Brasília: Poder, espaço, coletividade e o o Direito Achado na Noite”. Na Dissertação – confira-se na Coluna Lido para Você a recensão que fiz sobre a Dissertação:http://estadodedireito.com.br/cultura-e-vida-noturna-em-brasilia-poder-espaco-coletividade-e-o-direito-achado-na-noite/ – o agora Mestre sustenta, num aspecto que guarda relevância com a Sentença do Juiz Maroja, que pode-se falar em espaço político, o território no qual “sujeitos podem adquirir consciência coletiva, estabelecer redes, operar afetos, desenvolver práticas sociais, visibilizar e consolidar direitos, conduzir transformação social emancipadora, estruturar solidariedade e materializar alternativas contra-hegemônicas, como sugere o percurso de O Direito Achado na Rua”. Espaços que se afiguram, ontologicamente, nesse passo citando a mim e a meu colega co-autorAntonio Escrivão Filho (Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos. Belo Horizonte: Editora D‘Plácido, 2016) como lugares de criação e realização do direito, apresentado e posto à disposição do povo na qualidade de sujeito histórico com capacidade criativa, criadora e instituinte de direitos, e, metaforicamente, como a esfera pública onde se reivindica a cidadania e os direitos, onde se agregam cidadãos, onde se lhes protege da dispersão e da desmobilização.
Espaços de Cidadania, como sustenta Milton Santos, que formam “cidades educadoras”, enquanto compreendem territórios como lugares em disputa na construção das cidades, quando se envolve relações humanas e suas produções materiais, formando uma geografia cidadã e ativa, conforme lembram Sara da Nova Quadros Cortes e Cloves Araújo, em belo texto – “Dialética Social no Rastro dos Pensamentos de Roberto Lyra Filho e de Milton Santos: aportes teóricos no campo do direito e da geografia” – também publicado nesse dia 1º de setembro, na Revista Direito.UnB (volume 6, número 2 – maio/agosto 2022), com um dossiê em homenagem a O Direito Achado na Rua e a Contribuições para a Teoria Crítica do Direito. Aí aonde bebe, teórica e politicamente, o agir interpelante e comprometido com a emancipação, dos jovens militantes da Assessoria Jurídica Popular Universitária Roberto Lyra Filho e da Assessoria Jurídica Popular Candanga que promovem a causa do Movimento Ocupação Cultural Mercado Sul Vive.
Na arguição de Adda houve uma indagação sobre a hipótese teórica do pluralismo jurídico, uma questão que está pressuposta em seu trabalho mas não diretamente confrontada. Adda, a meu ver de modo politicamente crítico como indica Franco Ferraroti, em sua proposição de uma sociologia alternativa como crítica da sociologia tradicional e como proposta para o desenvolvimento criativo do pensamento crítico mobilizado pela emancipação (Uma Sociologia Alternativa: da sociologia como técnica do conformismo à sociologia crítica. Porto: Edições Afrontamento, 1976), centrou sua atenção nas condições sociais e nas possibilidades teóricas que dão densidade à emergência protagonista de sujeitos coletivos de direitos, para os quais se volta a atuação das assessorias jurídicas populares.
Digo, de modo politicamente crítico porque parece estar havendo uma descoberta do sujeito coletivo de direito como uma categoria cogente à realização de direitos que sejam efetivamente emancipatórios.
Em arguição recente na UFF (Universidade Federal Fluminense), o professor Carlos Marés reivindicou essa atenção ao autor da tese Eloy Terena, a propósito da reivindicação indígena a direitos anteriores ao direito legal estatal inscritos nos usos sociais dos povos originários, pré-colombianos e pré-cabralinos, no contexto do colonialismo transplantado para o “novo mundo”. Adda recupera essa noção, cogente no posicionamento epistemológico de O Direito Achado na Rua, tal como eu próprio em minha arguição a Eloy Terena, na Banca mencionada (cf. http://estadodedireito.com.br/o-campo-social-do-direito-e-a-teoria-do-direito-indigenista/):
Para a vertente crítica que pensa o Direito como emancipação e o compreende como criação do social, a hipótese do pluralismo jurídico e a condição da insurgência, são critérios constitutivos do campo, das referências possíveis de teorias de sociedade e de justiça, e de qualquer consideração que se elabore sobre o tema.
Assim, por exemplo, em minhas leituras, articulando questões sociais e possibilidades teóricas, com esse objetivo, quando tratei de esboçar a minha crítica sobre o processo de formação, conforme por exemplo, meus primeiros estudos, se mostrou inafastável abrir um capítulo sobre a pluralidade de ordenamentos e, simultaneamente, na sequência, situar a questão nas articulação entre as condições sociais e as possibilidades teóricas que abrem ensejo para a materialização do jurídico, na tensão dialética entre o instituinte e o instituído.
Algo, anota Marilena Chauí, que abre a perspectiva para a “apreensão do Direito no campo das relações sociais e políticas entre classes, grupos e Estados diferentes [que] permite melhor perceber as contradições entre as leis e ajustiça e abrir a consciência tanto quanto a prática para a superação dessas contradições [o que] significa abrir o Direito para a História e, nessa ação, para a política transformadora”.
Na consideração dessas interpelações, tanto políticas quanto epistemológicas, nenhum estudo terá sido desenvolvido sob a perspectiva da crítica jurídica e dos direitos humanos, sem que se estabeleça um vínculo de interlocução com a precedência de pesquisas e de análises de Jesús Antonio de la Torre Rangel, na sua sofisticada e engajada concepção de Derecho que Nace del Pueblo como Derecho Insurgente,
De fato, no plano teórico, considerando as principais abordagens, todos os autores e autoras (pelo menos aqueles com os quais mais proximamente mantenho diálogo) – Boaventura de Sousa Santos, Carlos Maria Cárcova, Oscar Correas, Raquel Yrigoyen Fajardo, David Sanches Rubio, Miguel Pressburger, Miguel Baldez, Luiz Edson Fachin, Antonio Carlos Wolkmer, Salo de Carvalho, José Carlos Moreira Silva Filho conformaram suas aproximações, em diálogo constante e intenso com o professor de la Torre Rangel, entre esses Carlos Frederico Marés de quem adota várias expressões, principalmente quando adverte para o risco da técnica jurídica converter-se em concepção univocista do jurídico, operando como um ‘procedimento mata Direito’.
Na articulação dos fundamentos do pluralismo e da insurgência enquanto filosofia e teoria do Direito que nasce do povo, assertivamente, “uma nova teoria do Direito”, desde 1986, com El Derecho que nasce del pueblo, depois, em 2012, com El Derecho que sigue nascendo del pueblo. Movimientos sociales y pluralismo jurídico; e agora. 2022, com El Derecho que Nasce del Pueblo como Derecho Insurgente, de la Torre Rangel percorre um caminho disciplinado, imaginativo e criativo que consolida uma referência para o campo.
Por muitas dessas razões, ao fazer circular nas redes sociais do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, o convite para a defesa da Monografia de Adda Sousa, insisti na mobilização para a sessão de defesa. Nas minhas considerações, primeiro porque além de uma pesquisa que historia um projeto claramente inscrito na concepção e prática de O Direito Achado na Rua, o trabalho se configurava por ser uma boa articulação de protocolo e achados de uma abordagem inscrita em observação participante, própria da modalidade de pesquisa-ação. Por isso também programei a defesa na agenda dos alunos e alunas da disciplina Pesquisa Juridica, pensando que eles pudessem se beneficiar pedagogicamente com os elementos que a defesa da monografia proporcionaria.
Em segundo lugar, porque constatei, já à leitura do original, que o trabalho se ancorava muito convictamente no reconhecimento da capacidade instituinte de sujeitos coletivos de direito.
E, sobretudo, porque, estar com Adda na defesa proporcionaria realizar o fundamento de Escola (NAIR), na solidariedade de diálogo (lyriano), no que compartilhamos nossos achados, nosso intercâmbio acadêmico fazendo entre nós interlocução de nosso acumulado interpretativo sobre como agimos no mundo e o transformamos.
Assim que, na Banca, interpelei a Autora para a necessidade de rever a suas referências para não descuidar a importância de revelar, pensando a perspectiva contra-hegemônica de toda concepção crítica, o acervo acumulado da autoria nesse campo, indicando o agregado político-epistemológico construído por seus pesquisadores.
Tanto que reivindiquei que ela trouxesse para o rol de referências que foram animadas pela atuação extensionista e mais organicamente, no próprio projeto da Assessoria Jurídica Popular Universitária Roberto Lyra Filho. Tanto mais porquanto, completadas três gerações ou ao menos a primeira década, esta está sendo celebrada na conjuntura em que a própria defesa se realiza e que se constitui evento também celebratório.
Desse modo lembrei que o trabalho de Rafael de Acypreste, hoje doutorando em economia na UnB, onde obteve seu Mestrado em Direito, teve como tema Direito à Moradia e o Poder Judiciário, mesmo título que levou para livro logo publicado pela Editora Lumen Juris, do Rio de Janeiro, em 2017. O livro, como sintetiza o professor Alexandre Bernardino Costa, seu orientador (por sua vez co-líder do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua), guarda inteira fidelidade a esse percurso: “A teoria fundamentada nos dados, pouco utilizada nas pesquisas em direito, possibilitou que o autor desenvolvesse uma investigação segura, que demonstrou como o Poder Judiciário, nos conflitos nos quais o MTST está na luta por moradia, afasta os princípios constitucionais da função social da propriedade; do direito à cidade; do direito à moradia; da dignidade da pessoa humana, dentre outros, para prevalecer o título de propriedade, ainda que sem a legitimidade da posse. Fazer pesquisa qualitativa nas decisões do Poder Judiciário que envolvem movimentos sociais, na luta por direitos fundamentais, é uma escolha acertada que vai levar o leitor a caminhos pouco percorridos na pesquisa jurídica. Por fim, Rafael Acypreste apresenta sua pesquisa de forma elegante, fácil de ser lida, para que seja possível compreender a relação entre o movimento social — MTST — e o Poder Judiciário”.
Digo isso porque o percurso do Autor teve início, dada a sai inserção no Projeto, com a Monografia O direito achado no “lixo”: a construção do direito pela organização do Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis. 2013. 74 f., il. Monografia (Bacharelado em Direito)—Universidade de Brasília, Brasília, 2013. (https://bdm.unb.br/handle/10483/6790).
Na síntese do próprio Rafael, lançada no repositório, “No presente trabalho, busco perceber a visão do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR) acerca da normatização de algumas de suas reivindicações, em especial na Lei 12.305/2010, conhecida como Política Nacional de Resíduos Sólidos. Desde o início do Movimento em 2001, os catadores vêm ensejando debates acerca de seu papel histórico enquanto trabalhadores da reciclagem invisibilizados socialmente e não reconhecidos pelo Poder Público ou pelas empresas privadas. A partir da perspectiva humanista dialética de Roberto Lyra Filho, assumo a compreensão de que a construção do Direito é uma das facetas de um processo mais amplo de libertação, que se desenvolve a partir dos caminhos de conscientização de situações de exploração (eminentemente econômica) e opressão (eminentemente cultural). Estas, por sua vez, desencadeiam processos de lutas por afirmação de liberdade que não prejudique a outrem. Deste modo, a capacidade de libertação caracteriza o ser humano e se realiza quando ele, conscientizado, descobre quais são as forças da natureza e da sociedade que o condicionam. Assim, a essência do Direito está em fazer a mediação coordenada destas liberdades (conquistadas) em coexistência. Com base nesta compreensão, analiso inicialmente os documentos públicos elaborados pelo MNCR e complemento a produção de conhecimentos com entrevistas semi-estruturadas realizadas com integrantes da Coordenação Nacional e Regional. Tento, neste processo, conhecer a visão que estas lideranças têm sobre o papel do Movimento no processo de formação do sujeito catador, consciente da sua situação de exploração. A partir desta consciência, estes trabalhadores da reciclagem se organizam, conseguindo posição de destaque nas normativas sobre resíduos sólidos, o que não esgota a necessidade de o Movimento continuar na luta pela efetivação destes direitos e conquista de outros, sob os ditames da Justiça Social”.
Com a mesma procedência, referi-me à Dissertação de Karoline Ferreira Martins O direito que nasce da luta: a construção social do direito à moradia e à cidade pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto no Distrito Federal. 2015. 159 f. Dissertação (Mestrado em Direito)—Universidade de Brasília, Brasília, 2015. (https://repositorio.unb.br/handle/10482/18604).
A Dissertação, que tive ensejo de orientar, foi escolhida Prêmio UnB de Dissertação e Tese de 2016 Prêmio UnB de Dissertação e Tese de 2016, categoria Multidisciplinar (Programa de Pós-graduação em Direitos Humanos e Cidadania).
Consultando o Repositório consta, em redação da Autora: “O que pretende o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto? Quem são essas pessoas que queimam pneus, travam rodovias e ocupam prédios e terrenos abandonados nas cidades? O que o direito tem a ver com isso? O que elas têm a ver com o direito? Por meio da pesquisa-militante e do acompanhamento do MTST do Distrito Federal desde o final de 2013, o presente trabalho busca compreender a relação entre o MTST e a produção e realização do direito. Os dados foram coletados a partir de metodologias qualitativas da pesquisa científica, como entrevistas semiestruturadas e rodas de conversa, bem como ampla pesquisa bibliográfica, documental, atas de reuniões, matérias jornalísticas, notas públicas, sites, vídeos, cartilhas entre outros. O trabalho pretende investigar de que modo o movimento constrói – enuncia e efetiva – o direito à moradia e à cidade a partir de sua práxis e organização social e coletiva. Para isso, traço um panorama geral da questão urbana, do modelo capitalista de organização das cidades e de como sua divisão socioterritorial tem provocado um aumento da segregação e periferização da população pobre e negando a contingentes cada vez maiores da população o acesso à cidade, seus bens, espaços e serviços. Posteriormente, traço um histórico do MTST nacional e regionalmente, bem como busco destacar as principais características que compõem a identidade do movimento. Finalmente, com base nos referenciais da teoria crítica do direito, do pluralismo jurídico e do Direito Achado na Rua, analiso uma ocupação do MTST-DF, o “Novo Pinheirinho de Taguatinga”, a fim de extrair categorias e chaves interpretativas que permitam avaliar, na prática, as estratégias e ações do movimento no sentido da construção, reivindicação e enunciação do direito à moradia urbana adequada e do direito à cidade”.
Certo é que Adda esteve atenta a esses referenciais (minha alusão é no sentido programático e estratégico), buscando a co-participação construtiva dos “princípios e valores firmados ao decorrer dos anos do Projeto se mantém e se aperfeiçoam com essa nova geração”.
Citando Karoline Martins sobre o que essa “sistematiza bem esse processo de acúmulo de compreensão”, Adda se põe em consonância com sua colega, ainda hoje advofada popular, no sentido de que “A nossa concepção enquanto assessoria jurídica universitária popular é no sentido de que a via jurídica é só mais uma ferramenta de apoio e de caminhar com e ao lado das lutas e dos sujeitos coletivos de direito, dos movimentos sociais. Nunca em uma perspectiva de que seria o direito enquanto instituição messiânica, que por meio do direito, exclusivamente das instituições ou dos processos judiciais, conseguiria defender as demandas e garantir os direitos dos sujeitos com os quais a gente atuava […] Para que, a partir das suas próprias mobilizações e organizações políticas, eles próprios construam os caminhos, políticas públicas, reivindicação, mesas de negociação com entes do poder tanto legislativo quanto executivo.”
E logo, uma afirmação que me levou a interpelar problematicamente, no interesse do refinamento das categorias esgrimidas segundo a planta epistemológica de O Direito Achado na Rua. Diz Adda:
Assim, é visível o amadurecimento coletivo em torno do debate da concepção de assessoria jurídica popular, em que se compreende como mais um instrumento de luta possível na luta por direitos (SOUSA JUNIOR et al, 2021). Ao mesmo tempo, avançamos no entendimento da AJUP-RLF também como um sujeito coletivo de direito, ator político que tem sua individualidade, destacada dos movimentos, com análise política própria e linhas de atuação (grifei).
Claro que em seu modo de raciocinar Adda nunca perde o arranque dialético para o qual orientava Roberto Lyra Filho, sobre o ser sendo do real, incluído o real jurídico. Isso fica claro quando ela examina, na linha conduzida por sua Orientadora Talira Rampin, a propósito da Justiça e suas Disputas e de como os conceitos de justiça se movem por tensão conceitual aí incidindo as contribuições desde a AJUP, que a própria Justiça não e um artefato, algo que se estabelece uma vez no social, mas é uma questão aberta no social (e sua criação imaginária, a Castoriadis).
O mesmo quanto à categoria sujeito coletivo de direito. Tenho para mim que um sujeito coletivo se instala em movimentos sociais, os personagens que entram em cena (Eder Sader), disputando seu projeto democrático de sociedade, de justiça e de direito, e que somente assim pode ser pensado como sujeito coletivo de direito. Diante da afirmação de Adda, na parte que grifei, indaguei se é possível pensar uma assessoria um sujeito?
A pergunta pode ser lançada urbi et orbi. No sentido da auto-reflexibilidade. Registro que a resposta de Adda foi um primor de pensamento dialético. Creio que vai se tornar uma nota de rodapé, acrescentada à Monografia para depósito. Vale à pena conferir a serenidade amadurecida com que a Autora respondeu à interpelação com convicção não abalada pelo fragor à quente próprio ao debate que caracteriza o sistema de arguição e de defesa, de teses, dissertações e monografias.
O Papel da Extensão Popular na Democratização da Justiça: A experiência da Assessoria Jurídica Universitária Popular Roberto Lyra Filho
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Memórias e Afetos [recurso eletrônico] / organizadores: Leides Barroso Azevedo Moura, Marisete Peralta Safons, Nanahira de Rabelo e Sant’Anna, Gabriel Corrêa Borges e Cristina Flores Garcia. – Brasília: Universidade de Brasília, 2022. 239 p.: il. Modo de acesso: World Wide Web: <http://dasu.unb.br/>. ISBN 978-65-998701-0-1
Foi lançado no dia 5/9, em evento promovido pelo CEAM – Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares, da UnB – Universidade de Brasília, o e-book Memórias e Afetos. 60 Anos da Universidade de Brasília. Os organizadores e organizadoras informam que um extenso programa de divulgação, no mesmo estilo do lançamento, terá sequência para melhor divulgação da obra e do projeto que a tornou possível.
No Prefácio, assinado pela Reitora Márcia Abrão, junta-se à motivação os fundamentos do projeto e da obra:
Este é um livro de perguntas e respostas sobre o lugar da Universidade de Brasília na vida de pessoas que passaram algum tempo por aqui, umas mais, outros menos. A história da UnB afeta trajetórias, transforma biografias.
Técnicos, professores e estudantes que tramaram na própria história laços de afeto com a instituição que agora completa 60 anos.
A UnB soube envelhecer, porque soube se reinventar. Tem orgulho do passado, sobre o qual não se cansa de refletir, mas segue adiante de braços dados com as oportunidades do presente e de olho muito atento ao futuro.
O aprendizado de vida da Universidade se confunde com a sabedoria de todos e todas que deixaram ao menos uma gota de suor e outra de felicidade nesses campi espalhados pelo Distrito Federal.
Com a marca do Grupo de Trabalho “Envelhecimento Saudável e Participativo”, da Diretoria de Atenção à Saúde da Comunidade (DASU) vinculada ao Decanato de Assuntos Comunitários (DAC) e ao Projeto de Extensão de Ação Contínua “Construindo uma universidade para todas as idades”, este livro é a prova do que a Universidade de Brasília busca oferecer em suas ações contínuas.
Fico muito honrada de estar ao lado, nestas páginas, de tanta gente querida que dedicou e dedica seus esforços diários para o engrandecimento da UnB.
Sigamos em frente para aprender cada vez com a velhice, para fazer desta etapa momento de celebração da alegria de viver, reconhecendo os próprios valores e reverberando no cotidiano o prazer de compartilhar com dignidade e solidariedade o lugar de trabalho e estudos. Viva a UnB, que sabe envelhecer!
Ainda em disposição prefacial, o Decano de Assuntos Comunitários da UnB, professor Ileno Izídio, acentua essa condição do envelhecimento, que não significa perder a dimensão da vida ativa e preservar lugares de dignidade para continuar solidário com o mundo:
Por algum tempo envelhecer significava estar fora da atualidade quando não da própria dinâmica da vida. A contemporaneidade não comporta mais uma visão excludente de uma das etapas mais ricas do crescimento humano.
Esta publicação, ímpar, afetiva, amorosa e acima de tudo histórica, é verdadeiramente um presente e uma homenagem a este processo de vida de muitas pessoas ímpares de nossa comunidade. Saudamos sua edição como registro dos 60 anos de nossa jovem senhora UnB, porém com a perspectiva mais promissora ainda: de promoção de saúde e engajamento ativo no mundo a nossa volta.
Cícero escreveu De Senectude (Da Velhice), aos sessenta anos; Norberto Bobbio, também escreveu Da Velhice, aos oitenta anos; o ministro Evandro Lins e Silva, o seu O Salão dos Passos Perdidos, perto nos noventa anos. E me dizia, com seu ânimo sempre jovial, quando o cumprimentei por ter se tornado imortal logo que admitido na Academia Brasileira de Letras, que o que ele queria mesmo era ser imorrível.
A obra, com depoimentos de que chegou e ultrapassou os 60 anos, para se identificar com a UnB, neste ano, sexagenária, mostra que a memória nos deixa imorríveis.
Pelo menos, é o que depreendo, da nota explicativa com que a Organização abre o livro, num texto instigante e mobilizador, assinado pela professora Leides Barroso Azevedo Moura, Coordenadora do Projeto de Extensão PEAC ENF-FS “Construindo uma universidade para todas as idades. O texto traz como título: “Uma palavra sobre o projeto: ‘Construindo uma universidade para todas as idades’”. Reproduzo:
A dignidade do envelhecer pode ser institucionalmente celebrada e defendida. Construir a narrativa de uma universidade para todas as idades favorece o preparo de profissionais do cuidado e de toda a comunidade do Distrito Federal para eliminar a discriminação e o silenciamento das necessidades, reivindicações e riquezas das variadas velhices.
O conceito de Universidade Promotora da Saúde (UPS) nasce da percepção de que as Instituições de Ensino Superior exercem papel fundamental na saúde de docentes, discentes, técnicos administrativos, equipes de serviços e também na população das suas cidades.
De acordo com a Carta de Okanagan, um documento basilar aprovado no Congresso Internacional de Universidades Promotoras da Saúde, uma UPS deve ter visão transformadora da saúde e da sustentabilidade da sociedade presente e futura e adotar como parte de sua responsabilidade decifrar as oportunidades de promoção da saúde no cotidiano, propiciar no campus e para além dele uma cultura de valorização da diversidade geracional, de gênero, raça, na defesa da equidade e da justiça social. Uma UPS se envolve em projetos de transformação de valores societários e busca “fortalecer a comunidade e contribuir para o bem estar das pessoas, lugares e do planeta” (Carta de Okanagan, 2016).
O projeto “Construindo uma universidade para todas as idades “objetiva desenvolver parcerias e ações entre a universidade e os coletivos inteligentes da cidade na promoção do envelhecimento saudável e participativo e desenvolverá atividades de ensino, pesquisa e extensão junto à comunidade acadêmica da UnB, profissionais e estudantes em formação, pessoas idosas, famílias, gestores e ativistas no tema do envelhecimento na universidade e na cidade. Possui um caráter interdisciplinar na sua concepção e está articulado aos trabalhos desenvolvidos pelo Grupo de Trabalho “Envelhecimento Saudável e Participativo” da Diretoria de Atenção à Saúde da Comunidade (DASU) vinculada ao Decanato de Assuntos Comunitários e ao Programa de Extensão “Envelhecimento Saudável e Participativo com cidadania: UnB como Universidade Promotora de Saúde”.
As atividades do projeto se organizam segundo as ações estabelecidas pela Política Nacional da Pessoa Idosa, Estatuto da Pessoa Idosa, Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa e Política Distrital da Pessoa Idosa.
O livro contêm 60 depoimentos, conforme um formulário de entrevista que associa a biografia dos entrevistados a sua atuação na UnB.
Fui um desses entrevistados e compartilho meu depoimento como efeito demonstração do roteiro memorialista que acaba caracterizando a obra:
Como você entra na história da UnB? Já antes de conhecê-la, chegando em Brasília (1971) e descobrindo a univer(c)idade. Depois, na advocacia de cidadania e defesa das garantias constitucionais, em tempos sombrios (Ditadura), participando das ações da Ordem dos Advogados em defesa da universidade sempre sob investida autoritária, com ocorrências graves ao seu projeto e à sua comunidade. Depois, como aluno de pós-graduação, a partir de 1978, na Faculdade de Direito. Em seguida (1985), sendo admitido na UnB, na redemocratização, no Reitorado Cristovam Buarque, primeiro como procurador-geral (PJU) depois como chefe de Gabinete do Reitor e, finalmente, também desde 1985, admitido como docente (1985) até hoje (aposentado como professor titular na compulsória dos 75 anos) mas permanecendo como pesquisador voluntário sênior. Nesse ínterim, exercendo atividades de gestão, desde coordenador – graduação, pós-graduação), diretor de unidade, reitor (2008-2012), nessa condição, atuando ou presidindo todos os Conselhos de Unidade e Superiores da Universidade.
O que a UnB representa na sua história? É minha própria história e eu sou parte de sua história. É minha mais definida identidade social.
TEMPO PRESENTE E TEMPO FUTURO
O que você tem feito? Continuo a docência e pelo acumulado, com alguma projeção, que me abre interlocução cultural e política. Tenho colunas permanentes em meios de comunicação o que amplia meu auditório e no modo presencial mantenho um diálogo interativo com um público muito extenso. Tendo sido reitor, me recuso exercer qualquer outra atribuição pública senão a de ex-reitor, mas não me furto de atuação honorífica ou benemérita em organismos civis: Ordem dos Advogados, Comissão Justiça e Paz (Arquidiocese), Instituto dos Advogados Brasileiros (fundado em 1843).
Você tem algum hobby? Até 3 anos atrás futebol society; atualmente, caminhadas ao ar livre.
Qual seu projeto de vida? Projeto de vida eu o compreendo como uma categoria do bem viver. O que me constitui nesse entendimento é contribuir para compreender as condições de dignidade da existência, notadamente em sentido coletivo e social. O que procuro realizar por meio das dimensões que agregam os fundamentos e princípios desse projeto: democracia, cidadania, justiça e direito/direitos humanos. A síntese desses fundamentos se concentra num programa teórico-político que co-organizo há 30 anos: O Direito Achado na Rua.
PERSPECTIVA SOBRE A VELHICE
O que você teria a dizer sobre envelhecimento e aprendizados da velhice? Em 40 anos de docência, cumprindo todos os fundamentos – ensino, pesquisa e extensão – tendo a leitura e a escrita como hábitos diários e ainda, mantendo ativo o engajamento acadêmico e associativo, estou disponível para a troca cotidiana ensinando, aprendendo, desaprendendo (como diz Manoel de Barros em Didática da Invenção) e de novo ensinando.
COMPARTILHANDO SABERES
Que aprendizado de vida gostaria de repassar às outras pessoas/gerações? O ganho biográfico que conhecimentos, saberes e vivências me fizeram “acumular”. Espaço para falar sobre algo não contemplado nas questões anteriores Apenas para indicar o endereço da plataforma na qual estão organizados os fatos principais desse projeto de vida: www.odireitoachadonarua.blogspot.com
Não há indicação no livro, mas na transmissão do evento de lançamento, a professora Leides exibiu as ilustrações que ornam o livro, indicando a capa – O céu que não vemos 2 – de Lígia de Medeiros e arte a seguir – Preciosidades da UnB – de Elda Evelina Vieira.
Cícero escreveu De Senectute (Da Velhice), aos sessenta anos; Norberto Bobbio, também escreveu Da Velhice, aos oitenta anos; o ministro Evandro Lins e Silva, o seu O Salão dos Passos Perdidos, perto nos noventa anos. E me dizia, com seu ânimo sempre jovial, quando o cumprimentei por ter se tornado imortal logo que admitido na Academia Brasileira de Letras, que o que ele queria mesmo era ser imorrível.
A obra, com depoimentos de quem chegou e ultrapassou os 60 anos, para se identificar com a UnB, neste ano, sexagenária, mostra que a memória nos deixa imorríveis. O livro abre com uma epígrafe que bem diz sobre a sua motivação: ‘Minha máquina do tempo é feita com memória e palavras. Entrando na memória, eu voo para o passado. Escrevendo as minhas memórias, eu levo outros a voar comigo.’’ (Rubem Alves)
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.5
Cultura e Vida Noturna em Brasília: Poder, espaço, coletividade e o Direito achado na noite
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Willy da Cruz Moura. Cultura e Vida Noturna em Brasília: Poder, espaço, coletividade e o Direito achado na noite. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania. CEAM/Universidade de Brasília, 2022, 145 folhas.
É grande a coincidência, mas a defesa da Dissertação tema da Coluna Lido para Você, perante Banca na qual tomei parte como docente arguidor e que foi formada pelos Professores Alexandre Bernardino Costa – Orientador, da Universidade de Brasília – UnB, Manuel Gándara Carballido – membro externo, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e Menelick de Carvalho Neto –suplente, da Universidade de Brasília – UnB, aconteceu um dia depois da publicação de sentença lavrada pelo Juiz Carlos Frederico Maroja de Medeiros, da Vara de Meio Ambiente, Desenvolvimento Urbano e Fundiário do DF, em processo de reintegração/manutenção de posse (Processo número: 0003872-11.2015.8.07.0007), na qual reconheceu que o Movimento Ocupação Cultural Mercado Sul Vive atende “ao interesse social e às diretrizes constitucionais e legais relativas à função socioambiental da propriedade e ao direito à cidade” e negou a remoção forçada dos artistas e produtores culturais.
Logo depois da defesa, aprovada a Dissertação e mobilizado pela decisão do juiz Maroja, escrevi e foi no mesmo dia publicada, minha coluna quinzenal no Jornal Brasil Popular, com o título Mercado Sul Fica! (https://www.brasilpopular.com/mercado-sul-fica/), oportunidade para relacionar o objeto de decisão e o trabalho contido na Dissertação.
Com efeito, inseri no artigo uma nota acentuando essa proximidade, ao dizer que o trabalho de Willy da Cruz Moura, “Cultura e Vida Noturna em Brasília: Poder, espaço, coletividade e o o Direito Achado na Noite”, o autor sustenta, num aspecto que guarda relevância com a Sentença do Juiz Maroja, que pode-se falar em espaço político, o território no qual “sujeitos podem adquirir consciência coletiva, estabelecer redes, operar afetos, desenvolver práticas sociais, visibilizar e consolidar direitos, conduzir transformação social emancipadora, estruturar solidariedade e materializar alternativas contra-hegemônicas, como sugere o percurso de O Direito Achado na Rua”. Espaços que se afiguram, ontologicamente, nesse passo citando a mim e a meu colega co-autor Antonio Escrivão Filho (Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos. Belo Horizonte: Editora D‘Plácido, 2016) como lugares de criação e realização do direito, apresentado e posto à disposição do povo na qualidade de sujeito histórico com capacidade criativa, criadora e instituinte de direitos, e, metaforicamente, como a esfera pública onde se reivindica a cidadania e os direitos, onde se agregam cidadãos, onde se lhes protege da dispersão e da desmobilização.
Aludi assim, aspecto que levantei em minha arguição, que espaços de cidadania, como sustenta Milton Santos, formam “cidades educadoras”, enquanto compreendem territórios como lugares em disputa na construção das cidades, quando se envolve relações humanas e suas produções materiais, formando uma geografia cidadã e ativa, conforme lembram Sara da Nova Quadros Cortes e Cloves Araújo, em belo texto – “Dialética Social no Rastro dos Pensamentos de Roberto Lyra Filho e de Milton Santos: aportes teóricos no campo do direito e da geografia” – também publicado nesse dia 1º de setembro, na Revista Direito.UnB (volume 6, número 2 – maio/agosto 2022), com um dossiê em homenagem a O Direito Achado na Rua e a Contribuições para a Teoria Crítica do Direito. Aí aonde bebe, teórica e politicamente, o agir interpelante e comprometido com a emancipação, dos jovens militantes da Assessoria Jurídica Popular Universitária Roberto Lyra Filho e da Assessoria Jurídica Popular Candanga que promovem a causa do Movimento Ocupação Cultural Mercado Sul Vive.
Para os estudantes da UnB e os advogados populares, que acompanham a causa, decisão reconhece que o movimento requalificou o espaço como equipamento cultural e como tal deve ter a proteção do Estado: “Por isso, seguiremos esperançando e cobrando do governo ações que fortaleçam a produção cultural realizada ali”. Pois, na Sentença, o Juiz qualifica a Ocupação Cultural Mercado Sul Vive, representada nos autos do processo por artistas, artesãos, produtores culturais, repudiando os termos depreciativos dos pretensos proprietários da área abandonada, acolhendo o argumento de “não ter havido invasão, já que o espaço estava abandonado há mais de dez anos, servindo apenas de especulação imobiliária, além de propiciar a propagação da dengue; menciona que os ocupantes são pessoas reivindicando direito constitucional à moradia, cultura e exercício profissional; enfim, a ocupação é antiga, sendo o espaço conhecido como Beco da Cultura, de modo que o Movimento Cultural Mercado Sul Vive apenas para estabelecer função social ao local”.
O juiz considerou, de fato, que o imóvel litigioso tendo permanecido em estado de franco abandono por razoável período de tempo, donde despontou a oportunidade para a ocupação perpetrada pelos réus. Embora ilegal em sua forma e origem, a ocupação acabou por revitalizar o imóvel até então abandonado, tornando-se um reconhecido centro de produção e reprodução de cultura. O imóvel outrora abandonado agora passou a acolher ateliês, luthiers e outros artistas, além de se tornar palco de eventos dedicados à cultura e lazer, requalificando, na prática, toda uma região que até então era vista pela comunidade apenas como um lugar degradado e perigoso. Antes de ser ocupado, o imóvel abandonado encontrava-se em acelerada deterioração. Sendo um imóvel de razoável proporção, sua deterioração impactava diretamente sobre a região onde está situado, causando notória degradação de todo o espaço urbano local.
Para o juiz, “são deveras conhecidas as externalidades negativas sobre o espaço urbano causadas pelo abandono e degradação de imóveis da cidade. Deveras representativo do que se está a falar é a célebre teoria das janelas quebradas (“broken windows theory”), tão conhecida pelos criminalistas: se uma janela de um imóvel não é prontamente consertada, parte da população se sente estimulada a quebrar outras, ocasionando uma desordem crescente no ambiente urbano. Embora tematizada entre os criminalistas a partir de uma leitura simbólica, a teoria das janelas quebradas é também uma abordagem de direito urbanístico, pois enfoca exatamente a influência do uso e conservação dos imóveis urbanos sobre todo o ambiente social e, por conseguinte, do bem-estar da comunidade (interesse primordial das ponderações urbanísticas): regiões degradadas e abandonadas tendem a contaminar todo o entorno, expandindo a degradação urbana, em prejuízo crescente ao bem-estar da população, inclusive da situada no entorno dos locais abandonados”.
Assim, segundo a Sentença, “o imóvel litigioso hoje tem a nítida função de bem cultural da cidade, e é assim reconhecido pela comunidade. A relevância do bem cultural é característica inerente ao próprio bem, que não carece da chancela de atos formais como o de tombamento ou registros (os quais têm caráter meramente declaratório, ou seja, apenas certificam a relevância preexistente do bem cultural)”. Portanto, ele conclui, “no caso concreto, é inequívoco que o imóvel assumiu a condição de bem cultural, o que atrai a exigência legal ora referida de se prover a sua proteção e preservação. O mesmo princípio ora enfocado é também consagrado no art. 312, VI, da Lei Orgânica do Distrito Federal, como instrumento da política urbana distrital”.
Em resumo, para a sentença, “é inequívoco que a posse exercitada pelos réus atende, em muito maior medida, ao interesse social e às diretrizes constitucionais e legais relativas à função socioambiental da propriedade e ao direito à cidade, o que impede o acolhimento da pretensão autoral”.
Claro que a Dissertação, um trabalho acadêmico rigoroso e inédito, trabalha uma articulação teórico-política com um alcance epistemológico num patamar inédito e avançado. Basta ver o resumo da Dissertação:
Desde o início deste Século, Brasília vem experimentando o incremento de reiteradas ações contra a sua cena sociocultural noturna e boêmia vivida em bares, festas e espaços públicos. Verifica-se especialmente por parte da Administração a expedição de normas repressivas, restritivas ou proibitivas — afora as omissões —, executadas de forma arbitrária e autoritária, bem como a adoção de políticas públicas indiretamente (bastante) nocivas, notadamente as voltadas a um mercado imobiliário residencial que afasta as atividades notívagas culturais e comerciais para lugares cada vez mais distantes e inóspitos. As iniciativas do Estado, porém, são apenas um braço mais evidente de um comportamento que se retroalimenta junto a uma parcela hegemônica, conservadora e influente da sociedade e a agentes econômicos, principalmente os que se beneficiam do comércio imobiliário. A noite, compreendida — para além de mera temporalidade — como espaço construído social e culturalmente por seus boêmios, artistas, empresários e trabalhadores, coalhada da transgressão representada nas festas e da criatividade expressa na arte, sobretudo música, afigura-se palco de disputas e conflitos entre processos culturais de viés emancipatório e processos reguladores que reforçam a ideologia impositiva. O contexto do neoliberalismo, infletindo lei, cultura e subjetividade política na realidade, revela-se indispensável chave de compreensão do problema, na medida em que os eixos político-administrativo, econômico-financeiro e moralista tradicional extraídos da motivação das medidas hostis ao espaço-noite articulam-se dinamicamente entre os projetos moral e de mercado desse sistema normativo capitalista. Outrossim, a progressiva recrudescência desse cenário adverso nos últimos vinte e cinco anos no Distrito Federal conferiu-lhe uma visibilidade que despertou consciência coletiva e mobilização em atores interessados em conferir dimensão política à sua existência notívaga e suas respectivas manifestações socioculturais: a luta pelo direito à cultura, à cidade e ao trabalho vem-se afigurando não apenas como postura passivo-reativa a aguardar violações ou a pleitear o simples acesso a bens públicos e a bens culturais, mas como processo cultural popular, construtivo e criativo que traduz a prática de direitos humanos e aponta para uma utopia de liberdade lúdica e artística, de solidariedade e comunhão
O trabalho, de resto, se desenvolve pelo eixo teórico-político a que aludi, conduzido por um sofisticado sumário, compreendido entre uma introdução e considerações finais, que convida ao conhecimento de uma realidade em conta de desafiar novos conceitos provocados por um peculiar modo de construir narrativas apropriadoras da concepção de Brasília, cidade e espaço político que envolve relações humanas e suas formas de produção social.
CAPÍTULO 1. VIDA NOTURNA EM BRASÍLIA
1.1. A noite de Brasília como espaço: definição e recorte da pesquisa
1.1.1. Antes um recorte que uma definição
1.1.2. Festa
1.1.3. Noite como espaço
1.1.4. Boemia
1.2. Administração Pública e políticas nocivas à vida noturna em Brasília, de 1999 aos dias de hoje
1.2.1. Antes de 1999
1.2.2. Governo Roriz 1999-2006. Ações negativas (repressivas, restritivas, proibitivas). Moral e bons costumes. Segurança e ordem pública
1.2.3. Gestão Arruda/Paulo Octavio/Rosso 2007-2010. Choques de ordem. Lei do Silêncio
1.2.4. Governo Agnelo Queiroz 2010-2014. Desligam o som
1.2.5. Governo Rodrigo Rollemberg 2015-2018. Golpes de morte
1.2.6. Governo Ibaneis Rocha e a pandemia de Covid
1.2.7. Conformação urbanística do Distrito Federal: avanço do uso residencial sobre setores
mistos e criação de bairros residenciais
1.3. Uma proposta de classificação
1.3.1. Considerações iniciais
1.3.2. Quanto à ação
1.3.3. Quanto à motivação
1.3.4. Quanto ao agente
1.3.5. Considerações finais
CAPÍTULO 2. VIDA NOTURNA E PODER EM BRASÍLIA
2.1. Brasília e contexto cultural
2.2. Brasília: processo sócio-histórico
2.3. Crítica contemporânea ao neoliberalismo: abordagens neomarxista e foucaultiana
2.4. Neoliberalismo e moralidade tradicional
2.5. O Estado, autoritário
2.6. Aspectos econômico-financeiros. Destruição criativa e formação de consenso
2.7. Considerações finais
CAPÍTULO 3. LUTA, RESISTÊNCIA, INSURGÊNCIA
3.1. Direitos humanos como processo e luta. Visibilizar para concretizar.
3.2. Consciência coletiva. Disposição. Mobilização e rotinas de interação
3.3. Questionamentos e possibilidades
3.4. Das festas ocupação à ressignificação de espaços
O Autor assume que o seu estudo se insere “na concepção de direitos humanos como uma construção histórica implementada por meio de ações coletivas voltadas para a conquista da dignidade humana por intermédio da luta cotidiana a garantir e criar novos direitos”. Que a sua guia é demarcada “pela fortuna crítica de Joaquín Herrera Flores, na compreensão dos direitos humanos como produtos culturais, resultantes de processos de luta pela dignidade humana, num continuum de forma a propiciar e consolidar espaços de luta; e na de cultura como processo sócio-histórico, que cria significados e conforma identidades num espaço relacional sem perder sua capacidade de promover emancipação, como crítica e proposta de alternativa a relações dominantes”.
Mas confirma que seu marco teórico ancora-se na formulação de Roberto Lyra Filho, em sua concepção dialética do direito pautada no pluralismo jurídico. Daí que adota “a proposta não dogmática do Direito Achado na Rua, nos sentidos de legitimidade atribuídos ao direito a partir das práticas sociais, da rua, para a construção de uma rede urbana popular e para a própria criação do direito à cidade, em movimento, bem como no seu objetivo central de (i) determinar o espaço político no qual se desenvolvem as práticas sociais que enunciam direitos ainda que contra legem; (ii) definir a natureza jurídica do sujeito coletivo capaz de elaborar um projeto político de transformação social e elaborar a sua representação teórica como sujeito coletivo de direito; e (iii) enquadrar os dados derivados destas práticas sociais criadoras de direitos e estabelecer novas categorias jurídicas”. Nessa disposição, vale-se de meus enunciados, juntamente com meus co-autores Alexandre Bernardino Costa e Antonio Escrivão Filho, “na medida em que se pretende ler festas como possibilidade emancipatória, a noite como espaço socialmente construído e os sujeitos notívagos como coletivos sociais articulados ou articuláveis. O movimento ainda subsidia este trabalho em suas incursões sobre a peculiaridade da formação sócio-histórica, política e urbanística de Brasília”.
São esses referenciais que vão lhe dar confiança para aventar categorias inéditas como “a noite como espaço”, nessa fortuna crítica que em O Direito Achado na Rua tem levado a alargar, na ação dos sujeitos coletivos de direitos e suas práticas instituintes de novos direitos, a demarcação de novos espaços sociais, para além da metáfora da rua, e assim discernir, ressignificando, espaços críticos como direitos achados na rede, nas águas, nas aldeias, nas florestas, no campo, no cárcere, no manicômio, no armário, no gueto…na noite. Uma construção que dialoga com os sujeitos em seu protagonismo inter-subjetivo quando assumem a titularidade coletiva de direitos. Nesse passo, anoto sem surpresa, a designação do empírico forjado pelo Movimento Quem Desligou o Som?, a partir de sua atuação tão nitidamente exibida pela caríssima Gabriela Tunes (“Por que perguntamos quem desligou o som?”. In: Cultura Alternativa. 1 mai. 2015. Disponível em: <https://culturaalternativa.com.br/por-que-perguntamos-quem- desligou-o-som-por-gabriela-tunes/>. Acesso em 03 setembro. 2022). Querida amiga Gabriela, ela própria personagem da cena cultural brasiliense, excelente flautista, além de ensaísta sutil e elegante, como se fosse uma João do Rio, a encantara alma das quadras brasilienses, conforme já procurei mostrar aqui neste espaço da Coluna Lido para Você (http://estadodedireito.com.br/mascaras-no-varal-a-revolucao-e-preta-feminista-e-imparavel/).
Tudo muito bem articulado na discursividade própria e textual oferecida pela leitura da Dissertação e, também, na excelente exposição perante a Banca apoiada em sínteses esclarecedoras contidas nas lâminas do bem posto power point, tal como pode ser conferido na gravação disponível no Canal YouTube (www.odireitoachadonarua.blogspor.com) do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua (https://www.youtube.com/watch?v=zMI3bNVfe18).
O que lhe permite concluir que “a noite, nas perspectivas avançadas neste trabalho, é mais que temporalidade: é, pois, espaço político no qual não apenas boêmios solitários afogam suas mágoas, mas onde sujeitos podem adquirir consciência coletiva, estabelecer redes, operar afetos, desenvolver práticas sociais, visibilizar e consolidar direitos, conduzir transformação social emancipadora, estruturar solidariedade e materializar alternativas contra-hegemônicas, como sugere o percurso de O Direito Achado na Rua. A noite é objetivo, mas também é meio e processo. E é a Rua que se afigura, ontologicamente, como espaço de criação e realização do direito, apresentado e posto à disposição do povo na qualidade de sujeito histórico com capacidade criativa, criadora e instituinte de direitos, e, metaforicamente, como a esfera pública onde se reivindica a cidadania e os direitos, onde se agregam cidadãos, onde se lhes protege da dispersão e da desmobilização”.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
Liberdade de Expressão. Direito na Sociedade da Informação: Mídia, Globalização e Regulação
Criminologia Dialética, 50 Anos: Um Diálogo com o Legado de Roberto Lyra Filho
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
Criminologia Dialética, 50 Anos: Um Diálogo com o Legado de Roberto Lyra Filho. Autores Co-organizadores: José Geraldo de Sousa Júnior, José Carlos Moreira da Silva Filho e Salo de Carvalho. Autores: Carvalho, Salo de , Sousa Junior, José Geraldo de , Costa, Alexandre Bernardino , Cerqueira Filho, Gisálio , Castilho, Ela Wiecko Volkmer de , Lemos, Eduardo Xavier , Dornelles, João Ricardo W. , Rubio, David Sánchez , Pandolfo, Alexandre Costi , Adeodato, João Maurício , Silva Filho, José Carlos Morei , Ferreira, André da Rocha , Anitua, Gabriel Ignacio , Neder, Gizlene , Coelho, Inocêncio Mártires , Santos, Juarez Cirino dos , Oliveira, Lair Gomes de , Santos, Lorena Silva , Souza, Marcel Soares de , Dinis, Marcia , Noleto, Mauro Almeida , Souza Júnior, Ney Fayet de , Andrade, Vera Regina Pereira de , Capeller, Wanda. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2022, 548 páginas.
Na Descrição apropriada pela Editora para a sua página, extraída de meu texto prefacial, está:
(…) a título de explicação pessoal, abrindo a edição de 1972, da Borsoi, da Criminologia Dialética, Lyra Filho indica que seu o livro assinala um movimento de reconstrução intelectual, cuja autenticidade parece evidente. Certamente não se continha numa autorreflexidade como balanço de percurso, mas como esboço de um programa de uma virada político-epistemológica que assinalasse uma convocatória para um trânsito paradigmático; na política, com a intensificação de um paroxismo autoritário e que o campo penal para o controle seletivo de condutas, notadamente em relação às subjetividades ativas que resistiam à exceção, abriam mobilizações para o protesto social. O ano é 1972. Tempo cruento. No plano epistemológico, a abertura de uma passagem da dogmática penal positivista pela interpelação do social em movimento, sugerindo leituras que se inspirassem em esforços de sociologização do delito.
Diz Roberto Lyra Filho na explicação pessoal, justificando: primeiro, porque ela ressalta (o movimento de reconstrução intelectual), do esforço para vencer preconceitos e reorientar o produto de longo estudo e reflexão. O ponto de partida é a criminologia crítica; a sugestão apresentada é a criminologia dialética, em que ela se consuma. Segundo, porque esta disposição positiva exige, apesar de tudo, certa coragem, a uma altura da vida em que se costuma deixar morrer a inquietação. O risco, então, é aceitar aquela maturidade prudente e só atenta ao cultivo do prestígio acadêmico.
Com a publicação, tem início todo um programa de lançamentos que transforma a edição num projeto de ano jubileu para marcar a contribuição de um dos mais instigantes pensadores brasileiros.
Já agora em agosto, no dia 29, das 10 às 12 horas, no espaço da Semana Universitária da Universidade de Brasília, teremos um evento com o título: 50 Anos da “Criminologia Dialética”: homenagem do Grupo Candango de Criminologia ao Prof. Roberto Lyra Filho
Trata-se de uma atividade em formato de Seminário de integrantes do Grupo Candango de Criminologia (GCCRIM) sobre a obra “Criminologia Dialética”. Organizado sob a responsabilidade da professora Ela Wieko Volkmer de Castilho, também autora na obra, para realizar os objetivos de comemorar o cinquentenário da obra “Criminologia Dialética”, um dos marcos da criminologia crítica brasileira; de expor as premissas epistemológicas e os conceitos fundamentais desenvolvidos por Lyra Filho em “Criminologia Dialética” e de tornar mais conhecido o pensamento criminológico de Lyra Filho entre estudantes de Direito.
No mesmo dia, ao final de Seminário será feito um primeiro lançamento do livro.
Em setembro, no dia 14/9, o programa do 13o Congresso de Ciências Criminais que acontecerá na PUCRS, aceitou incluir também um lançamento do livro.
Logo depois, em 13 de outubro, data em que Roberto Lyra Filho completaria 96 anos, o Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), fundado em 1843, também fará um lançamento da obra. O evento está sendo preparado pelo Presidenta da Comissão de Criminologia do IAB Márcia Dinis, também autora na obra. Márcia está preparando um ciclo de estudos em homenagem a Roberto Lyra Filho, que integrou os quadros do IAB, previsto para realizar-se em novembro deste ano. Aliás, integram a Comissão de Criminologia vários membros autores no livro.
Com efeito, é de se esperar que com tantos autores e autoras e o rico painel que forma o livro, é legítimo esperar que o ano jubileu favoreça um auditório ampliado para a atualização e a emergência de novos temas que possam robustecer o campo dos estudos criminológicos.
Basta percorrer esse conteúdo traduzido no Sumário do livro. Ele abre com uma Apresentação a cargo de José Carlos Moreira da Silva Filho e Salo de Carvalho, seguindo-se meu texto, Criminologia Dialética de Roberto Lyra Filho, 50 Anos: um Manifesto Crítico à Crítica Criminológica (um Prefácio).
Logo, o conjunto de textos que compõem a Obra e seus respectivos autores e autoras:
A Criminologia Crítica em Articulação com a Epistemologia Decolonial, de Alexandre Bernardino Costa | Lorena Silva Santos
Estado e Estudo: Considerações Dialéticas, Alexandre Costi Pandolfo
Roberto Lyra Filho: Dialéctica Humanista, Pluralismo Jurídico y Procesos de Lucha por la Libertad y la Dignidad, de David Sánchez Rubio
A Criminologia Dialética e o Humanismo Dialético: o Projeto de uma Legítima Organização Social da Liberdade de Roberto Lyra Filho, de Eduardo Xavier Lemos
A Teoria Emerge do Contato com a Práxis, de Ela Wiecko Volkmer de Castilho
Roberto Lyra Filho y los Antecedentes de una Criminología Crítica Latinoamericana: Dialéctica, Integralidad y Pluridisciplinariedad en los Comienzos de los Años Setenta, de Gabriel Ignacio Anitua
A Lyra de um Hegeliano, de Gizlene Neder | Gisálio Cerqueira Filho
Roberto Lyra Filho e Miguel Reale: Duas Visões da Dialética Jurídica, de Inocêncio Mártires Coelho
O Sistema Jurídico dos Estados Unidos da América Hoje (no exemplo do Estado da Geórgia), de João Maurício Adeodato
A Criminologia Dialética de Roberto Lyra Filho e a Atualidade da Criminologia Crítica, de João Ricardo Dornelles
Criminologia Dialética, Danos Sociais e Crimes dos Poderosos – Um Diálogo a Partir dos Questionamentos Essenciais de Roberto Lyra Filho no Âmbito Criminológico, de José Carlos Moreira da Silva Filho
Foucault: Poder, Biopolítica e Guerra, de Juarez Cirino dos Santos
Apontamentos para uma Contextualização Urbana da Criminologia Dialética de Roberto Lyra Filho, de Lair Gomes de Oliveira
Em Defesa da Despenalização: uma Análise do Projeto de Lei nº 4540/2021 a Partir de Roberto Lyra Filho, de Marcia Dinis
O Problema da Subjetividade Jurídica no Direito que se Ensina Errado, de Mauro Almeida Noleto
O Direito Penal Achado na Aldeia: a Possibilidade de uma Autonomia Penal Indígena a Partir da Criminologia Dialética de Roberto Lyra Filho, de Ney Fayet de Souza Júnior | André da Rocha Ferreira
Projeções da “Criminologia Dialética” na Teoria do Delito: a Construção de um Modelo Integrado Crítico de Ciências Criminais em Roberto Lyra Filho, de Salo de Carvalho
Uma Lírica Efeméride. Notas sobre os Cinquenta Anos de Criminologia Dialética, de Vera Regina Pereira de Andrade | Marcel Soares de Souza
Roberto Lyra Filho, uma Arqueologia do Campo Penal: Tensões Epistêmicas e Hibridações Paradigmáticas, de Wanda Capeller
Os textos e o representativo painel de autoras e autoras, conquanto se concentrem no legado de Roberto Lyra Filho contido na obra copernicana de seus estudos criminológicos, abrangem também o campo da filosofia e da teoria crítica do Direito, para o qual converge seus mais agudos ensaios.
Conforme dizem Salo de Carvalho e José Carlos Morteira Silva Filho, autores e co-organizadores da edição, em seu texto de apresentação: “a síntese da força inovadora de “Criminologia Dialética”, trabalho mais relevante de Lyra Filho nas ciências criminais é a “certidão de nascimento” da Criminologia Crítica brasileira. Mas para além da abordagem de questões próprias das ciências criminais, “Criminologia Dialética” também inaugura a crítica de Lyra Filho no campo da Teoria Geral do Direito, pois contém a proposição de uma revisão da teoria das fontes a partir do pluralismo jurídico”.
Por isso que, “a data comemorativa e a importância histórica do trabalho para a crítica do Direito no Brasil incentivaram a propor um estudo coletivo que pudesse revisitar o texto original de Lyra Filho, prestando-lhe a devida Apresentação homenagem, e discutir a sua atualidade. Somos muito gratos pelo privilégio de poder organizar esta obra comemorativa junto com nosso mestre José Geraldo de Sousa Junior e de ter entre as autoras e autores tantas pessoas representativas e importantes para nossa própria trajetória, seja caminhando ao nosso lado, seja nos orientando e nos mostrando o caminho”.
Em Roberto Lyra Filho, segundo ele mesmo, conforme digo no meu prefácio, apontando para o que está na Carta Aberta a um Jovem Criminólogo, um programa atualizado para os fundamentos que lançou com a Criminologia Dialética, na perspectiva das questões teóricas, técnicas e de práxis que dele resultam, se encarna a dupla missão dos intelectuais: “a inflexibilidade dos princípios e a flexibilidade conjuntural das táticas”, pois, “se afrouxam os princípios a caverna platônica os engole; se enrijecem as táticas, ajudam sem querer o adversário, pelo triunfalismo arrogante com que escondem a própria impotência”, sobretudo quando, em realidades como atualmente no Brasil, “a alienação nunca é morna; é escaldante e dramática. A realidade queima, as repressões são brutais; a miséria popular, extrema; a demissão, um escândalo. É preciso a inconsciência absoluta ou a completa falta de caráter para dormir no ‘berço esplêndido’”. Por isso ele chama a atenção para “teorias despistadoras, o distinguo solerte dos intelectuais desfibrados e autocomplacentes, as erudições de fachada”, e adverte para “as concessões [que] adquirem boa consciência, porque se apresentam como abordagem matizada, complexa, cheia de manhosas ‘divergências’, ante a forma reta do pensar, [para lembrar] A Curva da Estrada, a magistral obra de Ferreira de Castro que lhes descreveu a origem e o desfecho”.
50 anos depois da publicação da Criminologia Dialética, a formidável antecipação de Roberto Lyra Filho continua animando os debates de atualização da Criminologia Crítica. E mais, nele, espraiado para uma concepção bem mais geral projetada para a teoria crítica do Direito, no projeto por ele esboçado, de um Direito Achado na Rua.
É que cuidei de expor em O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris,2015), contra alguns que viam datadas e esgotadas na conjuntura pós-constituinte as proposições de O Direito Achado na Rua e, porque estivessem os enunciados de Roberto Lyra Filho represados no seu momento histórico, já superado. Ao contrário do que considera tais objeções, essas posições revelam críticos que sequer chegaram a estudar ou absorver “no processo dialético, em vista da violência que vivemos nos anos 90, especialmente, na construção do conhecimento, com o celebrado fim das utopias, o fim da história e instalação de um pensamento único”, como se demonstrou sobejamente no balanço da fortuna crítica desse projeto, formalizado ao final dos anos 1980, à luz de tudo que se exibiu no Seminário O Direito como Liberdade: 30 anos do Projeto O Direito Achado na Rua (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al (orgs). Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade. Brasília: Editora UnB/Editora da OAB Nacional, 2021)
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
8 n. 2 (2022): Dossiê: “IPDMS, 10 anos de história e desafios”. Julho a dezembro de 2022. Organização do dossiê: Carla Benitez Martins, Diego Augusto Diehl, Luiz Otávio Ribas e Ricardo Prestes Pazello. DOI: https://doi.org/10.26512/revistainsurgncia.v8i2. Publicado: 31.07.2022, 535 p.
Eis a boa notícia trazida pelos Editores: É com imensa felicidade que a InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais torna público o Dossiê “IPDMS, dez anos de história e desafios”, cuja proposta é celebrar uma década de existência de nosso Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais. Com a curadoria de Carla Benitez Martins, Diego Augusto Diehl, Luiz Otávio Ribas, Ricardo Prestes Pazello, o dossiê narra a trajetória do IPDMS por meio das contribuições teóricas, artísticas e militantes de dezenas de pesquisadoras e pesquisadores participantes do Instituto.
A edição, referente ao semestre de julho a dezembro de 2022, pode ser consultada na página * https://periodicos.unb.br/index.php/insurgencia/issue/view/2441* e está disponível também na íntegra, em arquivo. Agradecemos a contribuição de todo mundo que tornou possível o dossiê de nossos dez anos, mas, sobretudo, de todo o conjunto de investigadoras e investigadores que dedicam parte de sua vida, pesquisa e militância à construção deste necessário instrumento de disputa pela batalha das ideias no campo jurídico crítico.
Além dos artigos que compõem o dossiê e fazem um balanço da produção de seus GTs, a edição conta ainda com as entrevistas do professor da UnB José Geraldo de Sousa Junior e da militante do MST Ayala Lindabeth Dias Ferreira, mas também com verbetes, expressões poéticas, resenhas de publicações do IPDMS e alguns de seus documentos históricos, além de textos inéditos na temática de direitos e movimentos sociais.
Convidamos todas e todos à leitura e ao debate!
Um viva aos dez anos do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais! E que venham as próximas décadas!
Saudações insurgentes,
Equipe editorial e comissão organizadora do dossiê,
31 de julho de 2022
Um viva aos dez anos do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais! é também o título da Apresentação do dossiê “IPDMS, 10 anos de história e desafios”, feita por Carla Benitez Martins, Diego Augusto Diehl, Luiz Otávio Ribase Ricardo Prestes Pazello
Em 2012, na Cidade de Goiás-GO, dois eventos históricos significativos tiveram lugar: a formatura da primeira turma de graduação em Direito no âmbito do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária –PRONERA; e a fundação do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais –IPDMS.
Fruto de dois seminários nacionais de “Direito, Pesquisa e Movimentos Sociais”, organizados em São Paulo-SP (2011) e Cidade de Goiás-GO (2012), o IPDMS foi fundado em Assembleia Geral realizada em 28 de abril de 2012 por 123 (cento e vinte três) militantes, pesquisadoras e pesquisadores, advogadas e advogados populares de todas as regiões do Brasil, que viam a necessidade de formar um espaço para se configurar como um centro de produção de saberes críticos, militantes e insurgentes que fortalecessem as lutas dos movimentos sociais por direitos.
Sob o formato de uma associação de abrangência nacional, constituída por Seções Regionais (Norte, Nordeste 1, Nordeste 2, Centro-Oeste, Sudeste, Sul) e uma seção Estudantil, que formam um Conselho das Seções, por uma Secretaria Executiva nacional e por dez Grupos Temáticos (aos quais posteriormente se somaram outros três GTs), o IPDMS foi criado para realizar pesquisas, organizar encontros e seminários, ministrar cursos e minicursos, publicar obras individuais e coletivas, entre outras tarefas relacionadas à batalha das ideias no campo jurídico.
Ao longo dos dez anos de vida do IPDMS, foram realizados oito seminários nacionais; fundou-se, em parceria com o Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos da Universidade de Brasília –PPGDH-UnB, a InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais, um periódico internacional, sob a batuta imprescindível do professor Alexandre Bernardino Costa, que promove produções teóricas e/ou empíricas comprometidas com o conhecimento crítico e libertador sobre o campo dos “direitos e movimentos sociais”, nos contextos brasileiro, latino-americano e internacional; publicaram-se livros de autoria coletiva (entre os quais, a coleção A luta pela terra, água e florestas e o direito, com artigos de estudantes e egressos das turmas de Direito do PRONERA, em parceria com a editora Lumen Juris); constituiu-se a parceria com a Comissão Pastoral da Terra –CPT para a realização da pesquisa nacional intitulada “Massacres no campo na Nova República: crime e impunidade, 1985-2019”; inaugurou-se a coluna “Direitos e Movimentos Sociais” no portal Brasil de Fato; entre tantas outras iniciativas, como a realização de cursos e minicursos presenciais e, mais recentemente, em formatos virtuais, passando a constituir uma galeria de conteúdos no canal do IPDMS no YouTube.
Mais importante que essas realizações em si são as aprendizagens, os novos horizontes, novos temas que estes e outros fazeres relacionados às atividades do IPDMS proporcionaram. Novas gerações de estudantes, militantes sociais, advogadas e advogados populares foram formadas a partir dessa experiência, de modo que já se torna possível estabelecer um balanço sobre a atuação do IPDMS ao longo desta década, além de projetar os próximos dez anos e os novos desafios que deverão ser enfrentados no campo das reflexões sobre a relação entre “direitos e movimentos sociais”.
Essa trajetória se deu em uma décadamarcante –e por que não dizer dramática? –da história brasileira. Anos de turbulências sociais, ameaças à frágil democracia burguesa do país, retrocessos e retiradas de direitos, intensificação dos processos de mercantilização de todas as dimensões da existência e precarização da vida. Cenário este que trouxe implicações à luta das oprimidas e oprimidos, levando a uma escalada de ameaças e assassinatos de lutadores e lutadoras, bem como ao esgarçamento de suas organizações, inaugurando uma nova etapa de violências e criminalização de movimentos sociais.
A existência do IPDMS não poderia deixar de se ver impactada por esse quadro de coisas, impondo novos desafios e agendas para sua atuação.
Com esse objetivo, a InSURgencia: revista de direitos e movimentos sociais convidou todas e todos que participaram de sua história (comunidade de pesquisadoras e pesquisadores, bem como de militantes de movimentos sociais) a produzir reflexões que contemplassem os fazeres, as aprendizagens e os desafios futuros que o IPDMS enfrentará no campo das áreas temáticas abordadas pelos GTs, dos territórios de abrangência das Seções Regionais, das ferramentas de batalha das ideias mobilizadas pelo Instituto (seminários, publicações, audiovisual, artigos, revista etc.), da necessária internacionalização das agendas e dos grupos de pesquisa, da constituição de novos projetos e equipes de investigação. Sempre com o objetivo de incidir mais qualificadamente na conjuntura das lutas dos movimentos sociais por direitos, marcada nos últimos anos pela ascensão da extrema direita no Brasil e no mundo, é que o décimo-sexto volume da revista traz, a público, o balanço dos dez anos da fundação do IPDMS.
Assim é que, neste dossiê intitulado “IPDMS, dez anos de história e desafios”, a trajetória do Instituto é contada em cada uma das seções da revista. A narração é estimulada pelo comitê organizador do volume, composto pelo atual secretário nacional e anteriores –Ricardo Prestes Pazello (2012-2016), Luiz Otávio Ribas (2016-2018), Carla Benitez Martins (2018-2021) e Diego Augusto Diehl (2021-) –, que fizeram a curadoria do conjunto de contribuições de autoras e autores integrantes da edição.
Desde a capa, assinada por Anna Galeb e trazendo recortes fotográficos das Assembleias Gerais do IPDMS (de baixo para cima, estão respectivamente registradas as AGs de 2012, na Cidade de Goiás, de 2014, em Curitiba, de 2016, em Vitória da Conquista, de 2018, no Rio de Janeiro, e de 2022, em Brasília),este objetivo se cumpre, uma vez que elas simbolizam a construção do Instituto no curso desses dez anos. Por sua vez, a abertura do dossiê, como sempre, marca nossa proposta de interlocuções. Nessa oportunidade, os “Diálogos insurgentes” foram feitos com José Geraldo de Sousa Junior e Ayala Lindabeth Dias Ferreira. Com Sousa Junior, professor da UnB (sede do nosso seminário de dez anos), a conversa foi “Dos 30 anos do Direito Achado na Rua aos 10 anos do IPDMS: a relação entre direito e movimentos sociais mediada pela crítica dos juristas”, em que Diego Augusto Diehl, Ricardo Prestes Pazello e Anna Caroline Kurten (estudante da graduação da Universidade Federal do Paraná) puderam situar, no diálogo, o papel do IPDMS dentro de um quadro mais amplo das teorias críticas do direito no Brasil. Já com Ayala Ferreira –paraense e representante do Setor de Direitos Humanos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra –, a conversa “Sobre reaprender o significado do trabalho de base, reinventá-lo diante das atuais configurações da realidade e poder ‘arrancar alegria ao futuro’”, conduzida por Carla Benitez Martins e Luiz Otávio Ribas, nos brindou com afiada análise da conjuntura latino-americana e brasileira, tecendo os desafios que se impõem à reconstrução das lutas sociais em um tempo que exige coragem e ousadia na reinvenção de nossos instrumentos de intervenção na realidade social.
Os treze textos que compõem o “Dossiê”, por seu turno, dão conta de expressar a riqueza da produção enraizada no (e pelo) IPDMS. O primeiro artigo, como enuncia seu título –“10 anos do IPDMS: realizações, limites e desafios” –, se propõe a realizar um breve histórico do que seria a antessala da construção do Instituto, bem como os intuitos e realizações nesta sua década de existência desde um balanço prospectivo tomando em conta o ponto de vista de dois de seus fundadores e ex-secretários gerais: Carla Benitez Martins (professora da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afrobrasileira) e Luiz Otávio Ribas (doutor em direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro).
Em seguida, apresentamos as contribuições de professores internacionais que participaram dos nossos seminários nos três primeiros anos do Instituto. O texto de Jesús Antonio de la Torre Rangel, professor da Universidade Autônoma de Aguascalientes (México), é o exato conteúdo preparado por ele para nosso seminário de fundação, em 2012, na cidade de Goiás, para o qual ele fora convidado para falar sobre “La experiencia indígena mexicana –Pluralismo jurídico: derecho al margen del sistema”. No semináriode 2013, realizado em Natal, houve a contribuição de Norman José Solórzano-Alfaro, professor da Universidade Nacional e da Universidade da Costa Rica (Costa Rica) e, para o presente dossiê, foi realizada a reelaboração da temática de então, a qual agora se intitulou de “Reflexiones sobre pensamiento crítico e inversión ideológica de derechos humanos”. No caso do terceiro texto internacional, houve a degravação (feita por Anna Sandri) da conferência de abertura do IV Seminário Nacional do IPDMS, realizada por George Andrew Mészáros, professor da Universidade de Warwick (Inglaterra), relativa aos “Movimentos sociais, direito e políticas de reforma agrária”.
O conjunto dos demais artigos representa, na maioria dos casos, um exercício de avaliação dos dez anos dos GTs do IPDMS, trazendo consigo um balanço das atividades do período bem como formulações teóricas a respeito. É o caso do ensaio denominado “Entre o equilíbrio catastrófico e um jardim suspenso: dez anos de direito e marxismo, em movimento”, escrito por Ricardo Prestes Pazello (professor da Universidade Federal do Paraná) e Moisés Alves Soares (professor da Universidade Federal de Jataí), que resgata a organização do GT de “Direito e Marxismo” e as principais produções teóricas realizadas pelos autores que, em vários momentos, assumiram a coordenação do GT.
Já o artigo “Lutas Socioambientais e os desafios da pesquisa-ação junto aos movimentos populares”, de autoria de Anna Galeb (integrante da atual secretaria nacional do IPDMS), Emiliano Maldonado (professor do Instituto Federal do Rio Grande do Sul) e Tchenna Fernandes Maso (coordenadora do GT de “Pensamento crítico e pesquisa militante na América Latina”), propõe repensar o modo de fazer investigações participativas, contribuindo para o campo de “direitos e movimentos sociais”, em geral, e para o GT dedicado a trabalhar as epistemologias do sul, dentro do IPDMS, em especial.
Ainda, seguindo a linha do balanço, no artigo “Questão agrária e direitos: o desmonte do Estado e da democracia nos últimos 10 anos”, Erika Macedo Moreira (professora da Universidade Federal de Goiás), Mariana Trotta Dallalana Quintas e Ana Claudia Diogo Tavares (ambas professoras da Universidade Federal do Rio de Janeiro) evidenciam, desde o GT “Povos e comunidades tradicionais, questão agrária e conflitos socioambientais”, uma incisiva conclusão à qual se pode chegar ante a destruição da política de reforma agrária no Brasil: a profunda crise do estado democrático de direito, notabilizada pela implementação de contrarreformas.
Em seguida, temos a contribuição “Por um direito crítico além do patriarcado: a inserção da abordagem de gênero e sexualidades na agenda do IPDMS” de Fabiana Cristina Severi (professora da Universidade de São Paulo) e Mariana Prandini Assis (professora da Universidade Federal de Goiás). Situando-se em dois lugares diferentes na história do Instituto, da fundação ao encabeçar de tarefas mais recentes, as autoras ensaiam historicizar a inserção da abordagem de gênero e sexualidades no direito crítico brasileiro, nas articulações militantes nesse campo e, dentro disso, no próprio IPDMS.
Nesta mesma toada, como literalmente o nome do artigo nos evidencia, “Balanço do Grupo de Trabalho Cidade e Direito do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais”, escrito a muitas mãos por aquelas e aqueles que se dedicaram a essa história, André Felipe Soares Arruda (professor da Universidade Federal de Jataí), Anna Carolina Lucca Sandri (advogada popular), Henrique Botelho Frota (advogado, pesquisador e consultor), João Aparecido Bazzoli (professor da Universidade Federal do Tocantins) e Marcelo Eibs Cafrune (professor da Universidade Federal do Rio Grande), apresentam um panorama crítico das reflexões e desenvolvimentos teóricos que foram apresentadas e debatidas nos espaços coletivos do GT, especialmente durante os Seminários Nacionais e na organização de um dos dossiês da Revista InSURgência, refletindo sobre a pertinência dessa agenda de pesquisa, especialmente em tempos de tantos ataques a direitos e desmonte de políticas sociais.
Em “Uma década contra o trabalho: debates desde o direito sobre os desafios postos ao movimento de trabalhadores e trabalhadoras”, Paula Talita Cozero (professora universitária em Curitiba), Alexandre Mandl (advogado popular) e Gustavo Seferian (professor da Universidade Federal de Minas Gerais) se debruçam sobre o contraditório cenário em que tanto contrarreformas –que em suas perspectivas individuais e coletivas, afetando trabalhadores e trabalhadoras da iniciativa privada e do serviço público, marcaram o período –quanto reinvenções da luta sindical se deram. Passando por aspectos concernentes à reorganização do mundo do trabalho voltada ao aprofundamento da acumulação do capital, seus impactos na subjetividade de trabalhadores e trabalhadoras e suas interdições no âmbito organizativo –sobretudo na lida com o direito de greve –, o texto frisa os desafios que se colocam ao movimento sindical no empenhar de suas lutas para o próximo período.
Depois temos “Por uma política criminal não fascista”, contribuição de fôlego de Diogo Pinheiro Justino de Souza (professor do Mestrado em Ciência, Tecnologia e Educação da Faculdade Vale do Cricaré) e Marco Alexandre Serra (professor universitário em Maringá), na qual nos proporcionam apurada análise das continuidades e vicissitudes da política criminal brasileira nos últimos trinta anos, destacando as tendências desde o retrocesso advindo do governo de Jair Bolsonaro e sua política de morte, caracterizando-o como um “neofascismo dependente”, que tem na militarização das vidas e recrudescimento do sistema penal seus elementos centrais.
Na mesma linha de analisar os retrocessos brasileiros nesta última quadra histórica, “Balanço crítico de um triste tempo pandêmico para a infância e juventude brasileira”, escrito a seis corações, Italo Guedes (pesquisador), Márcio Berclaz (promotor de justiça no Paraná), Assis Oliveira (professor da Universidade Federal do Pará), Homero Bezerra (professor da Universidade de Pernambuco), Jenair Alves (psicóloga e pesquisadora) e Ilana Paiva (professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte) realizam uma análise de conjuntura marcada pelas lentes dos retrocessos das políticas contra a infância e contra a juventude, especialmente a negra, indígena, periférica e LGBTQIA+, com ênfase do período que vai do golpe de 2016 aos anos de (des)governo de Jair Bolsonaro.
Para encerrar a seção “Dossiê”, contamos com o texto “Disputas narrativas sobre prisões e pandemia: o projeto Infovírus à luz da criminologia jornalística”, de Marília de Nardin Budó (professora da Universidade Federal de Santa Catarina), Julia de David Chelotti (pesquisadora) e Pietra Lima Inácio (advogada e pesquisadora), que expõe fundamental iniciativa de alguns grupos de criminologia espalhados pelo país ao realizarem um exercício de controle social, em busca de parceria com movimentos de familiares de pessoas em situação de prisão, da situação dramática e invisível dos impactos da pandemia do novo coronavírus no sistema prisional brasileiro. O IPDMS acompanhou e divulgou a iniciativa deste Projeto, considerando sua relevância social e a possibilidade de incidirmos neste contexto de crise sanitária. Contar com esse balanço do Infovírus por algumas de suas participantes é significativo nessa edição comemorativa.
Após a dialogicidade insurgente e os artigos científicos do dossiê, a edição abre espaço aos “Temas Geradores”, momento em que se pode acessar de maneira didática e sintética algumas das mais presentes idéias que fazem parte das investigações do IPDMS. Para o contexto do dossiê de nossos dez anos, contamos com os verbetes sobre “Advocacia Popular”, de Flávia Carlet (pesquisadora), “Assessoria Jurídica Popular”, de José Humberto de Góes Junior (professor da Universidade Federal de Goiás), e “Direitos Humanos das Mulheres”, de Diana Melo Pereira (advogada popular), nos quais as autoras e o autor trazem conceituações e reflexões sobre problemáticas tão candentes ao campo direitos e movimentos sociais.
Todo dossiê conta, também, com a seção de “Poéticas políticas”, porque nem só de ciência vivem os pesquisadores militantes. Como prova da diversidade artística que, igualmente, integra o IPDMS temos um conjunto de expressões estéticas que desenovelam uma parte significativa de nossa história. O primeiro texto é o poema “O abraço”, de Carlos Rodrigues Brandão (educador popular, com carreira universitária na Universidade Estadual de Campinas), nosso mestre –discípulo de Paulo Freire –que participou do seminário de fundação do IPDMS e que, agora, nos oferece este abraço para que saiamos da pandemia, que a modernidade capitalista nos impôs, o mais pujantemente fortalecidos. O segundo texto é obra de Ana Lia Almeida (professora da Universidade Federal da Paraíba), quem vem se dedicando, além de à assessoria jurídica popular, também à literatura, sendo Rita, a personagem de suas curtinhas na quarentena, alguém que não poderia deixar de visitar o IPDMS no marco de seus dez anos. Em seguida, Pádua Fernandes (pesquisador em São Paulo), um de nossos poetas mais sofisticados, ofereceu um trecho de sua última produção literária, nos fazendo refletir sobre o território da juridicidade e nos levando à conclusão de que é um “Lugar nenhum”. Como o não-ser também é, o próximo poema é fruto do espírito irrequieto de um dos membros da comissão editorial da InSURgência, Guilherme Cavicchioli Uchimura (doutorando em políticas públicas pela UFPR), que dá nome ao não-lugar, exterioridade subsumida ao capital: Gesteira Velho, uma das localidades atingidaspelos crimes, ainda sem reparação, das mineradorasSamarco, Vale e BHP Billiton. A quinta aparição literária são os “Retratos estéticos de uma trajetória”, de Ana Hupp (advogada popular e mestra em direito pela UFPR), que, com sua jovem sensibilidade, conta a trajetória de uma estudante do PRONERA no ecossistema do direito, da universidade e da desconhecida cidade fria e grande, realizando um mundo de descobertas. “Viveremos um amanhã” é a mensagem otimista e esperamos que não utópica de Assis da Costa Oliveira (professor da Universidade Federal do Pará e da Universidade de Brasília), pesquisador que integrou a primeira secretaria nacional do IPDMS e agora vem prognosticar boas-novas para nosso futuro breve. Por fim, se o abraço inicial era poético, agora ele pode ser imagético, a partir do conjunto de fotografias que o “Foco na luta”, de Isabella Cristina Lunelli (pesquisadora em Brasília), não só proporciona mas instiga e também sugere como compromisso de toda a comunidade do IPDMS. Para completar, cada um dos textos vem acompanhado por uma imagem, escolhida pelas pessoas autoras das poéticas.
Além de diálogos, artigos, temas e poéticas, o espaço destinado às resenhas que chegam às edições de nossa revista via “Caderno de retorno” representa a possibilidade, nesta ocasião de celebração da militância, de sistematizar algumas leituras das publicações coletivas que o IPDMS estimulou e organizou. Daí que o presente volume traz interpretações sobre algumas das obras que o Instituto viabilizou: Maria do Socorro Diógenes Pinto (advogada popular e pesquisadora no Rio Grande do Norte) escreve sobre o livro Direitos territoriais de povos e comunidades tradicionais em situação de conflitos socioambientais, de 2015, que teve a organização coletiva de Carlos Frederico Marés de Souza Filho, Priscylla Monteiro Joca, Assis da Costa Oliveira, Bruno Alberto Paracampo Miléo, Eduardo Fernandes de Araújo, Erika Macedo Moreira e Mariana Trotta Dallalana Quintans; já Kerlley Diane Silva dos Santos (pesquisadora no Pará) apresenta o primeiro volume da série A luta pela terra, água, florestas e o direito, de 2017, organizado por Luiz Otávio Ribas, Carla Benitez Martins e Euzamara de Carvalho; em seguida, Jéferson da Silva Pereira (advogado popular de Pernambuco) resenha o livro de Rodrigo de Medeiros Silva, Dano existencial coletivo ascomunidades tradicionais, com ênfase nas comunidades quilombolas, publicado em 2017; Ana Beatriz Castro do Prado (graduanda na Universidade Federal do Paraná) comenta as Lutas Populares no Paraná, também de 2017, livro sob organização de Ana Inês Souza, Jonas Jorge da Silva e Ricardo Prestes Pazello; e, por fim, Daiane Machado (advogada popular no Paraná) sintetiza a obra Saúde, direito e movimentos sociais, de 2020, organizada por Elda Coelho de Azevedo Bussinguer, André Filipe Pereira Reid dos Santos e Ricardo Prestes Pazello.
A última seção da revista é a da “Práxis de Libertação”, que conta com documentos históricos e relevantes sobre a temática em destaque no dossiê. Neste número, trazemos uma coletânea de dez documentos que representam importantes momentos e iniciativas nesta década de trajetória.
Conforme a história do Instituto, contada em alguns dos artigos desta edição, o primeiro documento trata-se de um relato publicado no blogue Assessoria Jurídica Popularsobre o I Seminário de Direito, Pesquisa e Movimentos Sociais, ocorrido na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo –USP, na capital paulista, um ano antes da fundação do Instituto. O segundo é justamente uma cartilha de apresentação e uma Carta-conviteaos pesquisadores e lutadores para a construção do Instituto recém-criado, em 2012.
Os três próximos documentos são aqueles mais afetuosamente concebidos em nossa trajetória, quais sejam, os Cadernos Insurgentes. O primeiro, de 2013, representante da “Coleção Pedras e Galos”, contém proposta metodológica para estudos de caso de processos de criminalização de movimentos sociais. O segundo, de 2015, é a coletânea Poesia Crítica do Direito, contendo poesias e outras expressões artísticas de várias pessoas associadas ao Instituto, além da recuperação de poesias de Noel Delamare, pseudônimo literário de Roberto Lyra Filho. Já o último, publicado em 2018 e intitulado Caderno insurgente 3: a luta dos movimentos sociais populares em tempos de golpe e o papel do direito na resistência, foi lançado e distribuído no VII Seminário Nacional, no Rio de Janeiro, e se deu desde a abertura de um edital para contribuições de integrantes de movimentos sociais parceiros quanto à conjuntura, trazendo reflexões sobre o espaço do direito nos processos de resistência.
Em seguida, trouxemos a petição na qual o IPDMS, junto à Clínica de Direitos Fundamentais da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro –UERJ, atuou como amicus curiaena Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4650, em 2013, referente à violação de princípios constitucionais na legislação brasileira quanto ao financiamento privado de campanhas.
O sétimo documento é aqui reunido com a finalidade de simbolizar a busca contínua pela construção de apoios e parcerias do Instituto junto às turmas de Direito do PRONERA. No caso, trata-se da “Carta de compromisso das advogadas, advogados e estudantes de direito da Via Campesina Brasil e dos movimentos camponeses e sindical dos trabalhadores e das trabalhadoras rurais da agricultura familiar”, documento resultante do Encontro das Turmas de Direito do PRONERA, em abril de 2017, no qual pudemos participar, colaborando em algumas atividades de rodas de discussão e apresentação de trabalhos, mas, mais do que tudo, como convidados a celebrar aquele importante momento.
Os dois materiais seguintes se referem a articulações políticas que o IPDMS participa ou mesmo promove. Um deles é a nota de divulgação da assinatura, por parte do Instituto, do pedido coletivo e popular de impeachment de Bolsonaro. Essa assinatura foi fruto de debates internos quanto à importância desta movimentação, combinada com outras de enfrentamento ao (des)governo nas ruas, e resultou na participação das articulações em torno da apresentação deste pedido, bem como na promoção de atividades sobre o tema. A outra seria uma Carta Pública do IPDMS sobre a prisão ilegal e ilegítima do advogado popular José Vargas Júnior, importante defensor dos trabalhadores rurais no sul do Pará e que vem sofrendo processos de criminalização no último período. A Carta Pública foi apresentada aos desembargadores que julgariam Habeas Corpus de sua prisão, coletando mais de duzentas assinaturas de juristas e intelectuais na área criminal.
Por fim, mas não menos importante, temos a satisfação de poder republicar artigo escrito pela coordenação da pesquisa nacional “Massacres no campo na Nova República: crime e impunidade, 1985-2019” que compõe o Caderno Conflitos no Campo, de 2021, organizado pela Comissão Pastoral da Terra e o Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno. O texto, intitulado “Conflitos agrários e massacres no campo na Nova República: um balanço no marco dos 35 anos dos relatórios da CPT”, nos fornece um importante panorama dos conflitos no campo neste período de atuação da CPT e, mais, uma análise das próprias transformações e aperfeiçoamentos metodológicos e conceituais nessas mais de três décadas de registros e análises da violência no campo brasileiro.
Afora todo o material que compõe o Dossiê, a presente edição da revista também contacom a seção “Em defesa da pesquisa” que é integrada por artigos científicos de temas livres, selecionados no âmbito do fluxo contínuo do periódico e que já estavam pré-publicados na página da InSURgência. Ou seja, além de tudo, o presente volumecelebra ainauguração do sistema dePré-publicação (Ahead of rint) da revista InSURgência. É o caso dos textos; de Sandra Helena Ribeiro Cruz (professora da Universidade Federal do Pará), Taynah Marinho e Ana Caroline dos Santos Ferreira (ambas também pesquisadoras da Universidade Federal do Pará), intitulado de “Grandes projetos e conflitos pelo território em cidades paraenses”, de Ana Gabriela Camatta Zanotelli, intitulado “A contribuição da sociologia das profissões jurídicas à teoria crítica do direito: a assessoria jurídica popular em pauta” (doutoranda em pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro); bem como de Leura Dalla Riva (doutoranda pela Università degli studi della Campania Luigi Vanvitelli, na Itália), intitulado “Bem viver e o ‘constitucionalismo achado na rua’: um olhar a partir da teoria da ruptura metabólica”. As três pesquisas são completamente afins aos propósitos para os quais o IPDMS foi criado, confirmando o Instituto e sua revista como referências para a investigação crítica na área do direito.
A grandeza deste Dossiê, em quantidade de materiais, mas, mais do que tudo, em qualidade das reflexões e conteúdos aqui trazidos, nos evidencia a pulsação desta primeira década da jornada de nosso Instituto. Até por isso, gostaríamos de agradecer imensamente, por todo o empenho, a dedicação e a militância voluntária, a comissão editorial da InSURgência, especialmente na pessoa de Guilherme Cavicchioli Uchimura e, a seu lado,nas de Leonardo Evaristo Teixeira, Júlia Carla Duarte Cavalcante e Diogo Pinheiro Justino de Souza, que tornaram possível a finalização deste número da revista, dando corpo ao axioma dialético da passagem da quantidade à qualidade. Nesse sentido, incomensurável é a contribuição do trabalho desses camaradas ao nosso periódico!
Assim, clamamos para que, enquanto houver injustiça social, desigualdades, exploração e opressões de toda ordem, saibamos reinventar este e outros instrumentos de fortalecimento das resistências das classes trabalhadoras. Que venham mais dez anos e que possa, em breve, o IPDMS deixar de existir apenas porque o tempo da abundância e da solidariedade se imponha e o IPDMS seja superado em sua própria razão de existência.
Boa leitura a todas, todos e todes!
Essa introdução elaborada pelos editores sintetiza o substancioso conteúdo desse dossiê que completa o ciclo de celebração de 10 anos do IPDMS, forte no Seminário Nacional que se instalou em Brasília, na Universidade de Brasília.
Participei da sessão de encerramento do Seminário que se pautou por inserir O Direito Achado na Rua, sua concepção e prática como campo crítico do direito e dos direitos humanos e sua relação com os movimentos sociais e a insurgência. Em minha participação cuidei de sintetizar o que havia sido objeto de uma longa entrevista realizada às vésperas do Seminário e que é trazida, em sua extensão e alcance nesta edição de InSURgência: Dos 30 anos do Direito Achado na Rua aos 10 anos do IPDMS: a relação entre direito e movimentos sociais mediada pela crítica dos juristas.
Na publicação é indicado como citar o trabalho: SOUSA JÚNIOR, José Geraldo de. Dos 30 anos do Direito Achado na Rua aos 10 anos do IPDMS: a relação entre direito e movimentos sociais mediada pela crítica dos juristas.Entrevista concedida aDiego Augusto Diehl e Ricardo Prestes Pazello.Transcrição Anna Caroline Kurten. InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais, v. 8, n. 2, jul./dez. 2022, Brasília, p. 19-56.
A longa entrevista está assim resumida: “Dos 30 anos do Direito Achado na Rua aos 10 anos do IPDMS: a relação entre direito e movimentos sociais mediada pela crítica dos juristas Entrevista com José Geraldo de Sousa Junior, realizada por Diego Augusto Diehl e Ricardo Prestes Pazello e transcrita por Anna Caroline Kurten. Nossa entrevista com o professor José Geraldo de Sousa Junior marca um dia muito feliz na história do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS). Integra o presente volume especial da InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais, periódico construído em parceria entre o IPDMS e o Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania (PPGDH) da Universidade de Brasília (UnB), tendo o professor Alexandre Bernardino Costa como seu editor-chefe. Além disso, foi feita às vésperas de começar o “8° Seminário Nacional Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais: 10 anos do IPDMS nos 200 anos da independência do Brasil” (de 15 a 18 de junho de 2022), também realizado na UnB, no qual o entrevistado –e seu grupo de pesquisa e extensão –foi homenageado. Ou seja, nada melhor do que convidar para este diálogo José Geraldo de Sousa Junior, professor titular da mesma UnB onde se tornou mestre sob a orientação de Roberto Lyra Filho (em 1981), doutor sob a orientação de Luis Alberto Warat (em 2008), professor dos cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito, assim como do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (CEAM) e de seu PPGDH, reitor entre 2008 e 2012 e que reivindicou o legado de Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira. Sousa Junior tem, ainda, destacado papel na práxis da extensão universitária, com os cursos e publicações dedicados a O Direito Achado na Rua e o projeto de Assessoria Jurídica Universitária Popular –AJUP Roberto Lyra Filho; bem como na pesquisa e no ensino, a partir de uma perspectiva crítica sobre o direito, em que a formulação teórica a respeito de um Direito Achado na Rua atualiza a Nova Escola Jurídica (NAIR) –proposta por Lyra Filho entre os anos de 1970 e 1980 –e se realiza em campos de estudos como os que envolvem a teoria do direito, a sociologia jurídica ou os direitos humanos, entre outros. A conversa se deu, por meio virtual, no dia 27 de maio de 2022 e tratou de temas amplos tais como a conjuntura das lutas populares e o papel dos juristas; o campo de pesquisa sobre “direito e movimentos sociais”; as teorias críticas do direito, hoje; e o legado de O Direito Achado na Rua. O roteiro da entrevista foi pensado no coletivo organizador do dossiê, mas a mesma foi realizada por Diego Augusto Diehl e Ricardo Prestes Pazello, contando com a colaboração, na degravação, de Anna Caroline Kurten. A gravação, que ora transcrevemos, captou uma fala Dos 30 anos do Direito Achado na Rua aos 10 anos do IPDMS: a relação entre direito e movimentos sociais mediada pela crítica dos juristas introdutória de Sousa Júnior sobre a teoria crítica, a qual incluímos como uma espécie de epígrafe de nossa entrevista por representar o fio condutor do diálogo. Uma boa leitura para todo mundo.
Para além dos excelentes textos, destaco ainda o texto seminal de Jesús Antonio de la Torre Rangel – La experiência indígena mexicana – Pluralismo jurídico: derecho al margen del sistema. Faço-o por reconhecer no artigo os fundamentos de uma leitura pioneira na afirmação da condição de insurgência, que tem sido, junto com a hipótese teórica do pluralismo jurídico, uma referência marcante no pensamento jurídico crítico latino-americano. Com efeito, pude constatar essa referência ainda recentemente ao ser convidado pelo Autor para elaborar o prólogo a seu mais recente livro já no prelo no qual ele articula os fundamentos do pluralismo e da insurgência enquanto filosofia e teoria do Direito que nasce do povo, assertivamente, “uma nova teoria do Direito”, e o faz desde 1986, com El Derecho que nasce del pueblo, depois, em 2012, com El Derecho que sigue nascendo del pueblo. Movimientos sociales y pluralismo jurídico; e agora. 2022, com El Derecho que Nasce del Pueblo como Derecho Insurgente, de la Torre Rangel percorre um caminho disciplinado, imaginativo e criativo que consolida uma referência para o campo.
Finalmente, ponho ainda em relevo na publicação o artigo de Leura Dalla Riva (p. 406-421). Leura é doutoranda em Diritto Comparato e Processi di Integrazione pela Università degli Studi della Campania Luigi Vanvitelli, Italia. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Especialista em Direito Ambiental e Sustentabilidade pela Faculdade Educacional da Lapa (FAEL). Bacharel em Direito pela Universidade Regional de Blumenau (FURB). Pesquisadora do CONSTINTER-FURB e da REDEMARX, e o seu texto tem como título Bem viver e o “Constitucionalismo Achado na Rua”: um olhar a partir da teoria da ruptura metabólica.
Tomando o Resumo desse artigo temos que a Autora parte de uma análise da crise ecológica hodierna como resultado da ruptura metabólica existente entre seres humanos e natureza e suas consequências, este artigo focaliza o desenvolvimento do novo constitucionalismo latino-americano como um movimento “achado na rua”. A pesquisa tem como problema de pesquisa: em que medida o novo constitucionalismo latino-americano abre caminhos para a superação da ruptura metabólica ao consagrar a ideia de Bem Viver? Para tanto, utiliza-se abordagem dedutiva. Primeiramente, aborda-se a categoria “ruptura metabólica” com especial foco na exploração da natureza na América Latina, o que envolve a abordagem de questões como capitalismo dependente no continente e o histórico extrativismo. Num segundo momento, analisa-se qual o papel das constituições da Bolívia e do Equador como construtoras de um constitucionalismo achado na rua e apresentam-se as origens, conceitos e aspectos principais da ideia de “Bem Viver” a partir dos povos latino-americanos. Por fim, aborda-se em que aspectos essas constituições apontam para a superação da ruptura metabólica em prol da ideia de Bem Viver.
Esse texto vem se agregar a um bem constituído modo de pensar o constitucionalismo, enquanto constitucionalismo achado na rua, tal como temos os pesquisadores do Grupo de Pesquisa com a mesma denominação – O Direito Achado na Ria (certificado no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPQ), tal como o mais atualizado, até aqui, percurso dos estudos com essa concepção, conforme descrito a seguir.
Desde logo, uma mais estendida e circunstanciada aproximação entre O Direito Achado na Rua e o Direito Insurgente, foi apresentada pelo professor De la Torre Rangel, durante o Seminário Internacional O Direito como Liberdade 30 Anos do Projeto O Direito Achado na Rua, em sua contundente comunicação Constitucionalismo Achado na Rua en México: de los acuerdos de San Andrés al concejo indígena de gobierno (De la TORRE RANGEL, 2021).
As experiências registradas no México, tendo como base as lutas sociais por emancipação, têm o caráter de uma revisão crítica da historiografia do país, na percepção da insurgência e do processo instituinte de direitos, repondo o tema do constitucionalismo desde baixo, nas anotações de planos e acordos estabelecidos nos embates para estabelecer projetos de sociedade. Relevo para os acordos de San Andrés, pela conformação constitucional que os caracterizam.
Como anota a peruana Raquel Yrigoyen Fajardo (YRIGOYEN, 2011), aferindo as experiências constitucionais na América Latina, incluindo o Canadá, há um primeiro ciclo caracterizado como “constitucionalismo multicultural” (Canadá, 1982), (Guatemala, 1985), (Nicarágua 1987) e (Brasil, 1988). O segundo ciclo referente ao “constitucionalismo pluricultural” (Colômbia, 1991), (México e Paraguai, 1992), (Peru, 1993), Bolívia e Argentina, 1994), (Equador, 1996 e 1998) e (Venezuela, 1999). E o terceiro ciclo, finalmente, é reconhecido pelo alcance de um “constitucionalismo plurinacional”, a partir das inovadoras Constituições do (Equador, 2008) e (Bolívia, 2009), nas quais, diz Raquel, já se trata de um ciclo pluricultural, plurinacional e ecológico, nas quais “se pluraliza a definição de direitos, a democracia e a composição dos órgãos públicos e as formas de exercício do poder”.
Raquel Yrigoyen, que já inscrevera em sua concepção a tese de um constitucionalismo plurinacional, tem avançado fortemente, desde seu diálogo com as cosmogonias e cosmovisões dos povos ancestrais, em direção a um constitucionalismo ecológico ou eco-constitucionalismo (YRIGOYEN, 2021), sem contudo abdicar de suas teses originais sobre o pluralismo jurídico.
Ainda que nessa passagem o foco da leitura do pluralismo jurídico, desde a leitura de Raquel Yrigoyen, compreendido propriamente como pluralismo jurídico igualitário (consulte-se entre outros estudos, os escritos fundamentais com aberturas inéditas para a aplicação dessa categoria, de Boaventura de Sousa Santos – sempre presente nas atividades do IIDS -, até o mais recente de Antonio Carlos Wolkmer e de Maria de Fatima S. Wolkmer, (WOLKMER; WOLKMER, 2020), se dirija aos povos indígenas e originários, essa acepção, orientada “por uma racionalidade jurídica diferente”, que nela, alcança também os ronderos campesinos, em enfoque autoral bem conhecido:
“Outro claro ejemplo de racionalidade jurídica diferente, resulta em palavras de Raquel Yrigoyen, la de las Rondas Campesinas, que si bien nacen em uma primera etapa, como respuesta a uma demanda de seguridade, frente al robo y el abigeato se traduce finalmente, en prácticas sociales de auto administración de justicia” (SONZA, Bettina. 1993).
Tal como dissemos eu e meu colega Antonio Escrivão Filho (ESCRIVÃO FILHO; SOUSA JUNIOR, 2019), mais que reconhecimento de direitos, tais ciclos tratam do grau de abertura à efetiva participação constituinte das distintas identidades, aliado à efetiva incorporação de seus valores sociais, econômicos, políticos e culturais não apenas no ordenamento jurídico, mas no desempenho institucional dos poderes, entes e entidades públicas e sociais.
Ou seja, a partir do que atualmente, com as experiências constituintes em curso na América Latina, com as novidades trazidas pela proposta de Constituição do Chile, aprofundam-se temas emergentes de um constitucionalismo em chave decolonial, que para Antonio Carlos Wolkmer em texto publicado há poucos dias – Notas para Pensar la Descolonización del Constitucionalismo en Latinoamérica in Constitucionalismo en clave descolonial / Amélia Sampaio Rossi … [et al.].; Liliana Estupiñán- Achury, Lilia Balmant Emerique, editoras académicas. — Bogotá: Universidad Libre, 2022.
A novidade agora vem do Chile, e aponta para o que Wolkmer identifica como propostas de um constitucionalismo crítico na ótica do sul global referida a aportes do constitucionalismo transformador de que fala Boaventura de Sousa Santos, do constitucionalismo andino, pluralista, horizontal decolonial, comunitário da alteridade, ladino-amefricano e, ainda, do constitucionalismo achado na rua.
É a partir dessa perspectiva, algo que deixo como sugestão ao autor para suas pesquisas futuras considerando que o que vou dizer não se colocava quando o trabalho foi publicado. Ou seja, a partir do que atualmente, com as experiências constituintes em curso na América Latina, aprofundar temas emergentes de um constitucionalismo em chave decolonial.
Disso cuida Antonio Carlos Wolkmer em texto publicado há poucos dias – Notas para Pensar la Descolonización del Constitucionalismo en Latinoamérica in Constitucionalismo en clave descolonial / Amélia Sampaio Rossi … [et al.].; Liliana Estupiñán- Achury, Lilia Balmant Emerique, editoras académicas. — Bogotá: Universidad
Para Wolkmer, “la propuesta de un constitucionalismo crítico bajo la óptica del sur global puede ser contemplada en los aportes innovadores de la propuesta del consti tucionalismo transformador de Sousa Santos, B. de y de las variaciones presentes que tienen en cuenta las epistemologías del sur y, más directamente, del constitucionalismo andino, ya sea en la vertiente del constitucionalismo pluralista (Yrigoyen Fajardo, 2011; Wolkmer, 2013, p. 29; Brandão, 2015), del constitucionalismo horizontal descolonial (Médici, 2012), constitucionalismo comunitario de la alteridad (Radaelli, 2017), constitucionalismo crítico de la liberación (Fagundes, 2020), constitucionalismo ladino-amefricano (Pires, 2019) o aún del constitucionalismo hallado en la calle (Leonel Júnior, 2018)”.
Realmente Gladstone Leonel Junior trouxe essa designação, ainda sem a aprofundar em seu livro de 2015, reeditado – Novo Constitucionalismo Latino-Americano: um estudo sobre a Bolívia, 2a. Edição. SILVA JUNIOR, Gladstone Leonel. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, (SILVA JUNIOR, 2018).
Na segunda edição, novas questões ensejam novas análises para a construção de um projeto popular para a América Latina a partir do que a experiência na Bolívia e em outros países nos apresenta. Das novidades dessa edição, a Editora e o Autor destacam: Um capítulo a mais. Esse quarto capítulo debate “O Constitucionalismo Achado na Rua e os limites apresentados em uma conjuntura de retrocessos”. A importância do mesmo está na necessidade de configurar um campo de análise jurídica que conjugue a Teoria Constitucional na América Latina com o Direito Achado na Rua, situando então, o Constitucionalismo Achado na Rua.
O livro, aliás, pavimenta o caminho para estudos e pesquisas nessa dimensão do constitucionalismo e o próprio professor Gladstone Leonel, em sua docência na Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense, criou a disciplina “O Constitucionalismo Achado na Rua e as epistemologias do Sul”, ofertada no programa de pós-graduação em Direito Constitucional na UFF. O programa da disciplina e maiores informações podem ser obtidos no seguinte site: http://bit.ly/2NqaABn.
Resenhei esse percurso em http://estadodedireito.com.br/novo-constitucionalismo-latino-americano-um-estudo-sobre-bolivia/. Claro que em O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática, volume 2, cit., no capítulo (Parte IV): O Direito Achado na Rua: Desafios, Tarefas e Perspectivas Atuais, já inscrevemos uma anotação programática nessa direção, ao indicar (p. 224): que “Essas experiências refletem uma espécie de ‘Constitucionalismo Achado na Rua’, em que os atores constituintes, os protagonistas desses processos, que envolveram povos indígenas, feministas, campesinas e campesinos, trabalhadoras e trabalhadores e setores historicamente excluídos, arrancam do processo constitucional novas formas de pluralismo jurídico e conquistas de Direitos”.
Com Gladstone eu também trabalhei o tema, procurando fixar a sua mais precisa enunciação. Assim, em Revista Direito e Práxis, On-line version ISSN 2179-8966 (http://old.scielo.br/scielo.php?pid=S2179-89662017000201008&script=sci_abstract&tlng=pt). LEONEL JUNIOR, Gladstone and GERALDO DE SOUSA JUNIOR, José. A luta pela constituinte e a reforma política no Brasil: caminhos para um “constitucionalismo achado na rua”. Rev. Direito Práx. [online]. 2017, vol.8, n.2, pp.1008-1027. ISSN 2179-8966. https://doi.org/10.12957/dep.2017.22331, valendo o resumo: “A crise política brasileira, evidenciada a partir de junho 2013, enseja novas reflexões para a conjuntura recente. A reforma do sistema político é necessária e um das formas de viabilizá-la é por meio de uma Assembleia Constituinte. Sobretudo, se observado os movimentos político-jurídicos dos últimos 15 anos nos países da América Latina. Cabe refletir sobre o momento e as possibilidades dessa aposta pautando-se em um ‘constitucionalismo achado na rua’”.
Quase que simultaneamente, também com Gladstone publicamos em La Migraña… Revista de Análisis Político, nº 17/2016. Vicepresidencia del Estado Plurinacional de Bolívia: La Paz, o artigo La lucha por la constituyente y reforma del sistema político em Brasil: caminhos hacia um ‘constitucionalismo desde la calle’.
Com essas referências, alcança-se o patamar que, juntamente com Antonio Escrivão Filho (ESCRIVÃO FILHO; SOUSA JUNIOR, 2016), especialmente no Capítulo V – América Latina, desenvolvimento e um Novo Constitucionalismo Achado na Rua, páginas 123-150), enunciamos, vale dizer, que o Constitucionalismo Achado na Rua vem aliar-se à Teoria Constitucional que percorre o caminho de retorno a sua função social. Uma espécie de devolução conceitual para a sociedade, da função constitucional de atribuir o sentido político do Direito, através do reconhecimento teórico-conceitual da luta social como expressão cotidiana da soberania popular. Um reencontro entre a Teoria Constitucional, e o Direito compreendido como a enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade (p. 149).
Com pesquisadores do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua (Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq), organizamos o livro O Direito Achado na Rua: questões Emergentes, revisitações e travessias (SOUSA JUNIOR, 2021), um capítulo é dedicado ao tema: Constitucionalismo Achado na Rua, com os temas A Democracia Constitucional e a Proposta para um Constitucionalismo Inclusivo no Brasil, de Bárbara R. R. C. de Oliveira, Jean Patrício da Silva, João Paulo Santos Araújo, Samuel Barbosa dos Santos e Betuel Virgílio Mvumbi; e O Constitucionalismo Achado na Rua, os Sujeitos Coletivos Instituintes de Direito e o Caso APIB na ADPF nº 709, de Marconi Moura de Lima Barum, Mauro Almeida Noleto, Priscila Kavamura Guimarães de Moura e Renan Sales de Meira.
É sempre estimulante poder construir com os compromissos de engajamento, sobretudo epistemológico, escoras teóricas para anaçar nessas emergências, revisitações e travessias, em arcos de cooperação não apenas orgânicos – os Grupos de Pesquisa – mas nos encontros conjunturais com aliados acadêmicos nos eventos, disciplinas e projetos que nossos coletivos de ensino, extensão e pesquisa proporcionam.
É nesse ambiente que podemos localizar abordagens instigantes que acolhem os achados desse processo, assimilando-os as suas estruturas de análise e de aplicação, e prorrogando seu alcance heurístico para novos níveis de discernimento. Assim, nesse recorte aqui realizado, o texto de Antonio Carlos Bigonha (Subprocurador-Geral da República, atua na 2a. Seção do Superior Tribunal de Justiça, proferindo pareceres em Direito Privado. Foi presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (2007/2011) e coordenador da 6a. Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais da PGR (2019/2021), além de destacado compositor, pianista e mestre em Música pela Universidade de Brasília. O texto, originalmente publicado na página do IREE, Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa, foi reproduzido pelo Expresso 61 (https://expresso61.com.br/2022/02/17/darcy-ribeiro-a-unb-e-o-constitucionalismo-achado-na-rua/), com o título Darcy Ribeiro, a UnB e o constitucionalismo achado na rua:
“A interpretação constitucional que setores retrógrados da magistratura e do Ministério Público adotaram para o exercício arbitrário de suas prerrogativas e atribuições, ao longo dos últimos 30 anos, faria corar monges de mármore, para usar uma expressão muito referida pelo ministro Gilmar Mendes, em sessões de julgamento no STF. Desconheço em que fonte foram beber seu fundamento teórico, fruto talvez de uma corrupção semântica, resultado da leitura equivocada da matriz germânica ou estadunidense. Neste contexto, o Direito Achado na Rua afirma-se como um poderoso vetor hermenêutico, uma abertura capaz de barrar os exageros do neoconstitucionalismo e oferecer novas epistemologias que conduzam à interpretação da Constituição e das leis do País para a afirmação e o fortalecimento dos direitos humanos, segundo uma agenda comprometida com os interesses do nosso povo. E ouso supor que Darcy Ribeiro e Machado Neto subscreveriam, novamente, esta virada hermenêutica”.
Em comunicação oral realizada no GT 12- Constitucionalismo achado na rua, por ocasião do Seminário Internacional O Direito como Liberdade – 30 Anos do Projeto O Direito Achado na Rua, Menelick de Carvalho Netto e Felipe V. Capareli, com o título “O Direito Encontrado na Rua, a Luta por um Constitucionalismo Plural e Inclusivo, e a necessidade de enfrentar o risco autoritário de uma política simplista e privatizante. Visão dicotômica do Estado e do Direito” (Revista da Defensoria Pública do Distrito Federal (RDPDF, 2019, vol. 1, n. 2) – Dossiê Ordenamentos jurídicos, monismos e pluralismos: O Direito Achado na Rua e as possibilidades de práticas jurídicas emancipadoras), também extraem consequências dessa dimensão constitucional estabelecida na rua.
É com esse acumulado que chegamos ao Seminário Internacional O Direito como Liberdade: 30 Anos do Projeto O Direito Achado na Rua, realizado em Brasília, na UnB, em dezembro de 2019. No programa toda uma seção (Seção III) para o tema Pluralismo Jurídico e Constitucionalismo Achado na Rua. Esse material veio para o volume 10 da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade. Brasília: Editora UnB/Editora da OAB Nacional, 2021. Na seção podem ser conferidos os textos: Pluralismo Jurídico Comunitário-Participativo: processos de descolonização desde o Sul, de Antonio Carlos Wolkmer; A Contribuição do Direito Achado na Rua para um Constitucionalismo Democrático, de Menelick de Carvalho Netto; Constitucionalismo Achado na Rua em México: de los acuerdos de San Andrés al concejo indígena de gobierno, de Jesús Antonio de la Torre Rangel; O Direito à Alimentação como um Direito Humano Coletivo dos Povos Indígenas, de Raquel Z. Yrigoyen Farjado; e Constitucionalismo Achado na Rua: reflexões necessárias, de Gladstone Leonel Júnior, Pedro Brandão, Magnus Henry da Silva Marques (SOUSA JUNIOR, 2021).
É importante “recordar que o constitucionalismo é permanente tentativa de se instaurar e se efetivar concretamente a exigência idealizante que inaugura uma modernidade no nível da organização de uma sociedade complexa, incapaz de lançar mão de fundamentos absolutos e que, por isso, só pode legitimar seu próprio sistema de direitos na medida em que os potenciais podem se reconhecer como coautores e autoras das normas que os regem. Ou seja, ou o direito é constitucionalmente achado na rua e nas ruas, e com as ruas, é construído e reconstruído de forma plural e inclusiva, ou, sem dúvida, tende-se a privatizar o próprio Estado, mediante a colonização do direito por uma lógica simplista binária de cunho plebiscitário e na da democrática, pois infensa a qualquer eficaz de bate”.
Para o constitucionalista português J. J. Gomes Canotilho, em sede de debate que envolve teorias de sociedade, teorias de justiça e teorias constitucionais, cuida-se de ter atenção à multiplicidade de sujeitos que se movem no debate constitucional contemporâneo que tende a abrir expectativas de diálogo político estruturado na linguagem do direito, gerando na expressão dele, “posições interpretativas da Constituição” que emergem desse processo e formam uma luta por posições constituintes, luta que continua depois de aprovada a constituição (CANOTILHO, J. J. Gomes. Cf. Entrevista que me concedeu: Pela Necessidade de o Sujeito de Direito se Aproximar dos ‘Sujeitos Densos’ da Vida Real. Constituição & Democracia. Brasília: Faculdade de Direito da UnB, n. 24, julho de 2008, p.12-13), luta travada pela disposição a ir para o meio da rua, pois “do outro lado da rua, o ‘direito achado na rua’ e, perante o sangue vivo que brota dos vasos normativos da realidade e a sedução de um direito outro, ao direito formal das constituições, códigos e leis, compreende-se que o discurso hermenêutico dos juristas mais não seja que um manto ocultador do insustentável peso do poder” (CANOTILHO, 2008a).
Ao final uma nota para novas aproximações a partir do diálogo que a instigante reflexão do professor Jesús Antonio de la Torre Rangel provoca, considerando que a sua obra atual, em ser uma continuidade adensadora de pressupostos epistemológicos para a crítica jurídica, é um completo catálogo de experiências confirmadoras do direito alternativo, do uso alternativo do Direito, do pluralismo jurídico e, ao fim e ao cabo, do direito insurgente, que surge do povo, pela emergência de sujeitos coletivos de direitos (SOUSA JUNIOR, 1990), que se inscrevem nos movimentos sociais, protagonistas de sua própria experiência de humanização e de emancipação, já que o humano é projeto, experiência na história (ESCRIVÃO FILHO; SOUSA JUNIOR, 2019a): “El derecho insurgente, del que trata este libro, forma parte de um processo de liberación de la alienación u opresión; se opone a la legalidade de la injusticia. Em el texto hemos destacado, sobre todo, las luchas indígenas y campesinas, por la autonomia y la defensa del território, como uma práctica jurídico-política de pueblos índios y campesinos; práctica en que [se materializa] el derecho que nace del pueblo como derecho insurgente”.
Por tudo recupero a exortação dos organizadores e editores dessa edição de InSURgência: Boa leitura a todas, todos e todes!
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Título original: Larissa Ramina (Org). Coleção Mulheres no Direito Internacional. Volumes IV, V e VI (co-organizador VI Lucas da Silva de Souza). Lawfare. Guerra Jurídica e Retrocesso Democrático. Curitiba: Editora Íthala, 2022. Vol. IV, págs. 1-470 p; vol. V, págs. 471-686; vol. VI, 303 p. Disponível também em e-book.
Recebi diretamente de Larissa Ramina, a organizadora dessa formidável obra, os recém lançados volumes IV, V e VI, tema deste Lido para Você. O pacote dos Correios trazia uma singela carta da professora Ramina, como só os mais antigos como eu, valorizam. De próprio punho, numa caligrafia elegante, expressando amizade e coleguismo, com a liberdade de te enviar o resultado das minhas pesquisas e do meu trabalho durante a pandemia.
Eu já acompanhava, meio a distância, mais por referências de colegas comuns, o trabalho de Larissa. Mas a pandemia, num de seus efeitos, no Brasil intensificado pelo vírus que a perversão política inoculou no social, teve a atuação antiviral da professora paranaense (até para salvaguardar a formidável qualidade ética e teórica que sempre caracterizou o pensamento crítico e democrático no plano jurídico ali nas araucárias, não por acaso Roberto Lyra Filho se fez sepultar em Curitiba sob os pinheiros do meu adotivo Paraná). A Coleção é uma demonstração eloquente dessa atuação.
O certo é que na pandemia Larissa se apresentou elevada a máxima potência, multiplicada em lives, programas acadêmicos, intercâmbios culturais, atos públicos. Enquanto escrevo recebo notícia de sua atuação, prorrogando o que já fizera durante o Fórum Social Mundial Temático Justiça e Democracia, seu protagonismo no debate sobre sistemas de justiça, dessa feita junto ao MST, na sua Escola Nacional Florestan Fernandes. Não exagero em constatar que seu trabalho, de Carol Proner e de um pugilato de juristas integrantes de coletivos altamente mobilizados (os mesmos que se juntaram para convocar e instalar o Forum Social Mundial Temático Justiça e Democracia), foram determinantes para o resgate do utópico e de reservas democráticas que o institucional do Direito, o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral, haviam feito perigar engolfados no lawfare, mas que aos poucos vão se recompondo para preservar a democracia, o sistema de justiça e o processo eleitoral que quase entregaram ao fascismo e à exceção que em surto autoritário assaltaram o país e o povo brasileiro, na conjuntura.
A pandemia, é fato, gerou esse processo de reposição de imunidade que é o se manter ativo na solidariedade e no compromisso político e cultural no existencial comunitário e fraterno. Lembrei isso há poucos dias, depois que recebi de Gabriela Tunes dois livros. Um deles Contos de Quarentena (Organizador Léo Bueno. São Paulo: Terra Redonda, 2020) uma coletânea, na qual, com o último texto, página 253, ela menciona A quarentena reversa. Um efeito peculiar de toda quarentena (http://estadodedireito.com.br/mascaras-no-varal-a-revolucao-e-preta-feminista-e-imparavel/).
Assim Gabriela, também Larissa se lançaram nessa energização criativa na arte e na ciência. Aliás, no distanciamento social, que impõe um necessário recolhimento, os que não se rendem ao imobilismo depressivo, mas que sabem exercitar suas angústias, ao invés de a elas sucumbir, disse Boaventura de Sousa Santos, há algum tempo, acabam construindo no isolamento um campo fecundo para a criatividade e para a reflexão em profundidade. Na quarentena Boaventura escreveu muito. Entre esses escritos A Cruel Pedagogia do Vírus. Coimbra: Edições Almedina, 2020 (http://estadodedireito.com.br/a-cruel-pedagogia-do-virus/) e O Futuro Começa Agora. Da pandemia à utopia. São Paulo: Boitempo, 2021).
Diz-se que William Shakespeare escreveu o Rei Lear, Macbeth e Antônio e Cleópatra, em quarentena, ou pelos menos para vencer as dificuldades da ocasião, ao tempo da peste bubônica que se alastrou em Londres, por volta dos 1606 quando, em conformidade com as posturas os teatros foram fechados, incluindo o The King’s Men, do qual era ator e acionista.
Outro dramaturgo, seu contemporâneo, Thomas Nashe, também durante a febre bubônica que atingiu Londres em 1592, retirou-se para o interior da Inglaterra para evitar infecções. Data desse período a peça Summers’ Last Will and Testament, na qual expõe suas experiências durante a pandemia.
Nessa mesma época, um pouco mais à frente, em 1665, Isaac Newton, também em quarentena retirado de Cambridge e confinado na propriedade da família em Woolsthorpe Manor, teria, nessa ocasião, esboçado a Teoria da Gravidade. Nesse período, um quarto da população de Londres morreu por causa da doença.
Antes deles, o escritor e poeta florentino Giovanni Boccaccio foi pessoalmente afetado pela peste bubônica. Quando atingiu Florença em 1348, seu pai e madrasta sucumbiram à doença. Boccaccio sobreviveu ao surto fugindo da cidade e se refugiando na zona rural da Toscana. O Decamerão conta as estórias de amigos que vivenciaram a quarentena durante a peste.
Outro artista, Edvard Munch, pintor do célebre quadro O Grito, não só testemunhou, mas sofreu a pandemia da gripe espanhola, ao contrair a doença no início de 1919, na Noruega. O seu autorretrato figura-o com as feições ainda abatidas, à frente do leito de doente.
Ninguém atravessa uma condição tão avassaladora e permanece insensível ao que ela interpela, no que somos e no que vivenciamos, mesmo após o amainar da condição tormentosa. Não será extravagante supor que a voz de Próspero, em A Tempestade, (Ato IV), de Shakespeare, não carregue esse sentido de uma reflexão sobre a vida humana, tanto quanto sobre os escombros de um mundo em necessária transformação. Algo que não escapou à observação de Marx e sua aplicação depois, no manifesto para um mundo em transformação.
Aqui está a fala de Próspero, na tradução de Bárbara Heliodora (Nova Aguilar, 2006):
Próspero [dirigindo-se a Ferdinando] – Você parece, meu filho, consternado, como se estivesse preso de algum temor. Anime-se, senhor. Nossa diversão chegou ao fim. Esses nossos atores, como lhe antecipei, eram todos espíritos e dissolveram-se no ar, em pleno ar, e, tal qual a construção infundada dessa visão, as torres, cujos topos deixam-se cobrir pelas nuvens, e os palácios, maravilhosos, e os templos, solenes, e o próprio Globo, grandioso, e também todos os que nele aqui estão e todos os que o receberem por herança se esvanecerão, nada deixará para trás um sinal, um vestígio.
Agora, os três novos volumes. “A presente coletânea de artigos, intitulada LAWFARE: ASPECTOS CONCEITUAIS E DESDOBRAMENTOS DA GUERRA JURÍDICA NO BRASIL E NA AMÉRICA LATINA, – anuncia a Editora – é produto de trabalhos realizados no âmbito do Grupo de Pesquisas Inter – Abordagens Críticas ao Direito Internacional, registrado no CNPq, aos quais se somaram estudos resultantes de disciplina ofertada no Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR em 2021, a respeito da temática. A escolha da femenageada se deve a sua inestimável contribuição para o direito internacional, para as relações internacionais e áreas afins em sua compreensão mais crítica e emancipadora, e que pretende interferir positivamente nos processos sociais latino-americanos”.
Intitulada “Lawfare: guerra jurídica e retrocesso democrático”, informa na sequência dos volumes, que “a obra consiste na compilação de estudos realizados por pesquisadores atentos ao processo de erosão da democracia brasileira a partir de 2014, que culminou com a eleição da extrema-direita em 2018. A instrumentalização criminosa do direito para fins políticos foi levada a cabo por operadores do sistema de justiça, mediante o apoio escandaloso da mídia. A escolha da femenageada, Professora Tatyana Friedrich, se deve à sua inestimável contribuição para o direito internacional em sua compreensão mais crítica e emancipadora, e que objetiva interferir positivamente nos processos sociais”.
Do que trata a edição, registro o Sumário dos Volumes IV e V, que se desenvolvem nos dois primeiros tomos, assim anotados:
INTRODUÇÃO
Apresentação da Coleção e da Femenageada
A “COLEÇÃO MULHERES NO DIREITO INTERNACIONAL” E SUAS ‘FEMENAGEADAS’, Larissa Ramina
FEMENAGEM A TATYANA FRIEDRICH, Larissa Ramina
Prefácio, Carol Proner
Palavras de companheirXs
Apresentação, José Antônio Peres Gediel
“LAWFARE. Guerra jurídica e retrocesso democrático”, Romeu Felipe Bacellar Filho
Foreword, Jennifer Gordon
Homenagem à Professora Tatyana, Cristiane Maria Sbalqueiro Lopes
Uma academia ativa e comprometida com a inclusão social de Migrantes e Refugiados, Gisele Ricobom
PARTE 1
LAWFARE E CONTEXTO INTERNACIONAL
Democracia, soberania popular e o impeachment: o papel do Direito Internacional, André de Carvalho Ramos
Cui prodest? O STF, o reconhecimento multidimensional da Operação Lava Jato e a compreensão da guerra híbrida contra o Brasil, Larissa Ramina | Carol Proner |Gisele Ricobom
Os efeitos do poder da mídia na democracia e a relação com o lawfare na América Latina, Luís Renato Vedovato | Maria Carolina Gervásio Angelini de Martini | Viviane de Arruda Pessoa Oliveira
O LAWFARE NA GUERRA AO TERROR: CRIMES DE GUERRA VINTE ANOS DEPOIS DA PRE-TENSÃO ESTADUNIDENSE DE MUDANÇA DO DIREITO INTERNACIONAL HUMANITÁRIO, Isabela Chimelli Stacheski | Rui Carlo Dissenha
Entre populismos e investimentos: a disputa entre Argentina e Uruguai sobre o uso do Rio Uruguai na era de Lawfare, Tatiana Cardoso Squeff | Thales Romano Coelho
O Direito Internacional contemporâneo e o acesso à justiça, Wagner Menezes
PARTE 2
LAWFARE, DEMOCRACIA E ESTADO DE EXCEÇÃO
LAWFARE NO BRASIL: AOS AMIGOS OS BENEFÍCIOS DA LEI, AOS INIMIGOS O ABUSO DA LEI, Claudia Maria Barbosa
Lawfare e crise da democracia: contribuições da experiência brasileira para compreensão da erosão democrática, Eneida Desiree Salgado | João Guilherme Walski de Almeida
A retórica sobre a “democracia racial” e as estratégias de mordaça e censura nas escolas, Paulo Vinicius Baptista da Silva
LAWFARE E FASCISMO, Tarso Cabral Violin
Democracia constitucional brasileira: ladeira acima e ladeira abaixo, Vera Karam de Chueiri | Katya Kozicki
Lawfare, corrupção e Estado de exceção, Charlotth Back | Nathalia Penha Cardoso de França
ESTADO ENTRE DIREITO E NÃO-DIREITO: LEGALIDADE, EXCEÇÃO E TÉCNICAS SECURITÁRIAS, Heloisa Fernandes Câmara | Gustavo Glodes Blum
PARTE 3
LAWFARE E SISTEMA DE JUSTIÇA
O PROCESSO PENAL DEMOCRÁTICO BRASILEIRO NO CONTEXTO DO LAWFARE NA AMÉRICA LATINA: O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA, Andréa Regina de Morais Benedetti
Novos autoritarismos e Lawfare: o Judiciário como vítima?, Estefânia Maria de Queiroz Barboza | Adriana Inomata
Ética pública e parcialidade no combate à corrupção: o caso The Intercept Brasil vs. Operação Lava Jato, Emerson Gabardo | Gabriel Strapasson Lazzarotto | Nicholas Andrey Monteiro Watzko
Tribunal Popular da Lava Jato: análise do julgamento do sistema de (in)justiças, Leandro Franklin Gorsdorf | Paula Gabriela Barbieri
VOLUME V
PARTE 4
LAWFARE E RETROCESSOS SOCIAIS E AMBIENTAIS
LAWFARE TRABALHISTA. A GUERRA JURÍDICA CONTRA OS DIREITOS SOCIAIS, Alberto Emiliano de Oliveira Neto
A educação como ato político: o legado de Paulo Freire em tempos antidemocráticos e de retrocessos sociais, Fabiane Lopes de Oliveira
EMERGÊNCIA CLIMÁTICA E CRISE AMBIENTAL NO BRASIL: UMA PERSPECTIVA TANGENCIANDO O LAWFARE, Francisco Mendonça | Pedro Augusto Breda Fontão | Wilson Flavio Feltrim Roseghini
LAWFARE E DIREITOS SOCIAIS, Marco Aurélio Serau Junior
LAWFARE ESTRUTURAL: DA LAVA JATO À REFORMA TRABALHISTA, Paulo Ricardo Opuszka | Matheus Felipe Manika
OS “TRABALIVRES” E A RESENHA DE UM FILME DE TERROR: AS INIMIZADES ENTRE DIREITO E TRABALHO NA CONTEMPORANEIDADE, Sandro Lunard Nicoladeli
PARTE 5
LAWFARE E MIGRAÇÕES
MIGRANTS RIGHTS LAWFARE: O caso brasileiro diante da Pandemia, Danielle Annoni
Pandemia e estigma: nota sobre as expressões “vírus chinês” e “vírus de Wuhan”, Deisy de Freitas Lima Ventura
O acolhimento em tempos de retrocessos: a ética do encontro no atendimento a migrantes e refugiados, Elaine Cristina Schmitt Ragnini | Bruna Pupatto Ruano
A POLÍTICA MIGRATÓRIA BRASILEIRA DIANTE DA PANDEMIA DO COVID-19: UMA ANÁLISE A PARTIR DO PENSAMENTO DE GIORGIO AGAMBEN, Lavínia Cavalcante da Silva | Thiago Oliveira Moreira
PARTE 6
LAWFARE E TEORIA CRÍTICA
Aportes da teoria crítica do direito sobre o lawfare, Clarissa Maria Beatriz Brandão de Carvalho Kowarski
Lawfare: breve análise a partir da teoria crítica do Direito, Luasses Gonçalves dos Santos | Márcio Soares Berclaz
VOLUME VI
INTRODUÇÃO
APRESENTAÇÃO DA COLEÇÃO E DA FEMENAGEADA
A “COLEÇÃO MULHERES NO DIREITO INTERNACIONAL” E SUAS ‘FEMENAGEADAS’, Larissa Ramina
FEMENAGEM A SILVINA ROMANO, Larissa Ramina e Lucas Silva de Souza
O GRUPO DE PESQUISAS INTER – ABORDAGENS CRÍTICAS AO DIREITO INTERNACIONAL, Larissa Ramina
APRESENTAÇÃO DA OBRA, Larissa Ramina e Lucas Silva de Souza
PREFÁCIO, Carol Proner
PARTE 1
LAWFARE: ASPECTOS CONCEITUAIS
SOBRE LAWFARE ENQUANTO CONCEITO JURÍDICO, Igor Maestrelli
ANÁLISE DO LAWFARE NA AMÉRICA LATINA E SEU ENFOQUE A PARTIR DAS TWAIL – THIRD WORLD APPROACHES TO INTERNATIONAL LAW, Raquel Freitas de Carvalho
LAWFARE NO DIREITO INTERNACIONAL DOS REFUGIADOS: OS MEANDROS DA DEFINIÇÃO DE REFUGIADO DA CONVENÇÃO DE 1951, Laura Maeda Nunes
LAWFARE COMO VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA NÃO-INTERVENÇÃO: UM DEBATE SOBRE A NECESSIDADE DE ATUALIZAÇÃO DA INTERPRETAÇÃO DO ART.2 (4) DA CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS, Danielle Cevallos Soares
PARTE 2
LAWFARE: DESDOBRAMENTOS NO BRASIL E NA AMÉRICA LATINA
AS NOVAS ESTRATÉGIAS DE CONTROLE HEGEMÔNICO DOS EUA NA AMÉRICA LATINA: LAWFARE E CRUZADA ANTICORRUPÇÃO, Lucas Silva de Souza
LAWFARE E SECURITIZAÇÃO DO COMBATE A CORRUPÇÃO: IMPACTOS DO FOREIGN CORRUPT PRACTICES ACT – FCPA NO CENÁRIO POLÍTICO BRASILEIRO, Maria Eduarda Rodrigues
LAWFARE NA AMÉRICA LATINA, COLONIALIDADE DO PODER E COLONIALIDADE DO SABER: UMA ANÁLISE DOS IMPACTOS DO LAWFARE NA PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO, Larissa Ramina | Laura Maeda Nunes
IMPACTOS DO LAWFARE NA CRISE AMBIENTAL, Luciana Ricci Salomoni
O GOLPE DE ESTADO NA BOLÍVIA E A ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS – OEA COMO AGENTE VIABILIZAR DO LAWFARE, Larissa Ramina
LAWFARE NAS FRONTEIRAS DO NEOEXTRATIVISMO: O CASO AYMARAZO E A CRIMINALIZAÇÃO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS DE ORIGEM INDÍGENA NO PERU, Marcus Vinicius Porcaro Nunes Schubert
AUTORIAS E ACESSO AO CV LATTES
Retiro da página da Editora, a descrição do objetivo da “Coleção Mulheres no Direito Internacional”. Um texto, no qual reconheço a escrita de Larissa Ramina. A Coleção “tem como inspiração o desejo de ‘femenagear’ mulheres que se destacam na área do direito internacional, das relações internacionais e das áreas afins. Quanto mais iniciativas afeitas à temática geral da mulher e das mulheres cientistas tomem conta dos ambientes progressistas da sociedade, mais condições reuniremos para uma mudança concreta na triste realidade da desigualdade de gênero, incompatível com o processo civilizatório. Nesse sentido, o uso da linguagem também é fundamental, e a escolha da palavra ‘femenagem’ foi feita propositada e convictamente. Como as palavras nascem, desenvolvem-se e ressignificam-se, novos vocábulos são agregados à língua portuguesa, portanto entender o modo como ocorrem os fenômenos que criam as palavras é também descobrir os mecanismos que movem a sociedade através da comunicação. É preciso se apoderar do discurso, subverter a linguagem e centralizar as mulheres. É preciso, portanto, ‘femenagear’ essas mulheres incríveis que se conscientizam de suas capacidades e potencialidades e, portanto, de seu próprio poder”.
Certamente ‘femenagear’ agudiza o significado da obra, tanto mais que, conforme diz Carol Proner, no Prefácio, se o tema “responde a interrogações de extrema atualidade no contexto jurídico-político do país, por outro lado, o estudo do lawfare está intrinsecamente ligado ao direito internacional ou, mais precisamente, ao descumprimento do direito internacional”. Razões ponderáveis para que “um livro em homenagem à trajetória de [mulheres internacionalistas] não deixem de fora os principais temas de [suas] experiências: migração, refúgio, emergências sociais, climáticas e ambientais, temas devidamente tratados a partir do pano de fundo ‘estado de exceção’ e lawfare contemporâneo”.
Eu próprio, a convite de Larissa Ramina, contribui para um dos volumes da Coleção (Volume III, Carol Proner: Intelectual e Militante da Democracia, da Justiça e dos Direitos Humanos) e, posteriormente, elaborado uma recensão para esta Coluna Lido para Você (http://estadodedireito.com.br/lawfare-e-america-latina-a-guerra-juridica-no-contexto-da-guerra-hibrida/), na qual cuidei de distinguir a abertura editorial oferecida pela Editora Íthala. Reponho o trecho: “Belíssima edição. Quase artesania. Conversei com Eliane Peçanha, a Editora e fiquei bem impressionado com seu engajamento editorial. Lembrei-me do modo personalizado de meu velho editor Sergio Fabris, sempre mais amigo que empreendedor. Minha conversa com Eliane, ao telefone, desbordou do contato comercial e já parecíamos velhos amigos. Em nossa conversa, mais para devaneio, não pude deixar de pensar em Borges (Cinco Visões Pessoais. Brasília: Editora UnB, 2ª edição, 1987): um livro é produzido para eternizar memórias. Este livro é para que não se esqueça, para que não mais aconteça”. Assim, a Íthala, sob a direção de Eliane Peçanha, vai conectando a sua expressão editorial com uma marca que a distingue no cenário de publicações de vanguarda. Algo semelhante ao Selo do Editor gaúcho Sergio Antonio Fabris, que todo autor crítico no campo do direito desejou imprimir em suas obras: Luiz Alberto Warat, Plauto Faraco de Azevedo, Cláudio Souto, Roberto Lyra Filho…eu próprio tive os meus Para uma Crítica da Eficácia do Direito (1984), Sociologia: Condições Sociais e Possibilidades Teóricas (2002), Ideias para a Cidadania e para a Justiça (2008) e a minha tese doutoral O Direito como Liberdade: O Direito Achado na Rua (2011), lançados pelo querido amigo e editor, edições cult.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
O Campo Social do Direito e a Teoria do Direito Indigenista
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Luiz Henrique Eloy Amado (Eloy Terena). O Campo Social do Direito e a Teoria do Direito Indigenista. Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2022, 223 f.
A Tese de que trata este Lido para Você foi apresentada, defendida e aprovada perante a Banca Examinadora, da qual fui membro e que foi integrada pelas professoras e professores Ana Maria Motta Ribeiro, Orientadora – PPGSD/UFF; Gizlene Neder, Examinadora Interna – PPGSD/UFF; Carlos Frederico de Souza Filho, Examinador Externo – PPGD/Puc-PR; Eloísa Machado, Examinadora Externa – FGV-SP; e Antonio Carlos de Souza Lima; Examinador Externo – Museu Nacional/UFRJ.
Para mim foi uma satisfação amplificada em razão de múltiplas razões, carregadas de emotividade.
A primeira, o poder examinar um trabalho de elevado nível político-epistemológico, no ano de celebração do bicentenário da independência do Brasil em relação à metrópole colonizadora, mas que em si representa uma ação concreta de descolonização porque defendido por uma autoria orgulhosa de sua identidade e que se apresenta autônoma no salto tremendo entre a sua condição originária no momento da conquista, entre o que já fora a sua representação como bestializado, desalmado, silvícola, para a afirmação plena do tornar-se humano, tal qual considerava Hegel, um processo inscrito na experiência da História. Um salto que liga a Sublimis deus (1537, Papa Paulo III, reconhecendo ao índio a condição de pessoa humana) à Constituição brasileira de 1988, constituição cidadã, reconhecendo os indígenas sujeitos de sua própria história, instituintes de direitos e de cidadania plena. Assim como o Autor da tese, que em conjunto com seus parentes, afirmou seu lugar acadêmico na descolonização da universidade e seu currículo, nas lutas afirmativas por inclusão e desse lugar, também a descolonização da tribuna do Supremo Tribunal Federal, para afirmar alto e em bom som, que sua história cria um direito autêntico, próprio, um outro direito, anterior ao estado e com jurisdição autônoma.
A segunda, o poder compartilhar com brilhantes colegas, entre eles amigos diletos, que nessa banca se reencontram e renovam valores e conhecimentos que partilham.
A terceira, é estar presente num evento acadêmico, no espaço de um programa de pós-graduação, um dos primeiros propriamente interdisciplinares credenciados na pós-graduação em direito, que me toca fundamente por ter sido o parecerista ad hoc, designado pelo coordenador de área Aurélio Wander Bastos, para estar presente na sessão do Comitê da Capes que o aprovou. Foi uma novidade não só na grande área de ciências sociais aplicadas, certamente a primeira no campo jurídico, estrito senso.
Do que trata a Tese, remeto ao seu resumo:
A tese tem por objeto o direito produzido pelo Estado para os povos indígenas, ou seja, um direito imposto, construído e aplicado sem a participação dos povos originários. Para analisar tal direito, elegeu-se três fatores determinantes que devem ser levados em consideração na elaboração daquilo que estamos denominando de teoria do direito indigenista, quais sejam: a) a política indigenista brasileira analisada em suas várias conjunturas históricas, desde o Brasil colonial aos dias atuais; b) o contexto político-econômico em que as normas jurídicas foram produzidas; e, c) a análise situacional dos povos indígenas consideradas em sua totalidade, ou seja, não como povos estanques na história e isolados do mundo, mas como agentes políticos imersos e diretamente afetados por estruturas do sistema-mundo. O objetivo é apresentar um produto do somatório de experiências e reflexões forjadas na prática da advocacia indígena. Para tanto a teoria que se pretende ofertar terá como base a experiência da atuação judicial de defesa de comunidades indígenas, a partir da experiência do Departamento Jurídico da APIB e COIAB, especialmente no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF) e instâncias internacionais de direitos humanos. O método adotado é o materialismo histórico dialético para entender como as estruturas econômicas e políticas impactam os territórios indígenas e a produção de um direito imposto. Ao fim, busca-se oferecer uma leitura crítica de um direito que, mesmo sendo produzido para servir ao interesse do capital, tem sido ocupado pelos povos indígenas e manejados numa fricção jurídica intercultural.
Leal ao enunciados do programa em que o trabalho se desenvolveu, o Autor articula fundamentos retirados de teorias de sociedade e de justiça, para orientar sua própria investigação. De fato, essa é a indicação de J J Gomes Canotilho, que em sua Teoria da Constituição e do Direito Constitucional afirma fazer possível liberar o conhecimento para romper com o formalismo estiolante do jurídico e, orientar-se pelo olhar vigilante sobre as exigências do justo, abrindo-se a outros modos de realização do Direito.
O Autor, com efeito, fixa bem esse ponto de partida:
Este trabalho possui dois campos reflexivos, tendo em vista que foi desenvolvido no âmbito de um programa de pós-graduação em sociologia e direito. A leitura dos clássicos da teoria sociológica e da teoria do direito, aliado à prática da advocacia indígena, nos permite oferecer uma análise do desenvolvimento da política e do direito indigenista brasileiro. Resta consignar de maneira preliminar que partimos do pressuposto fundamental que no Brasil, não existe apenas um direito indígena, mas vários direitos indígenas, que nascem da aldeia e possuem resguardo jurídico, e portanto, devem ser respeitados. Entretanto, neste trabalho não estou analisando o direito indígena, mas sim o direito indigenista, aquele direito produzido e imposto pelo Estado aos povos indígenas.
Por se tratar de um trabalho sócio jurídico realizado por advogado indígena com atuação nas principais organizações indígenas, costuma-se esperar que o mesmo aborda sobre os regimes jurídicos próprios presentes nas comunidades, sobre a teoria da jusdiversidade ou sobre o pluralismo jurídico e os povos indígenas. Mas, frisa-se, aqui está se propondo entender o direito indigenista, e ao analisá-lo, reconhecer que é direito ocidental imposto, em grande medida criado pela ausência da efetiva participação indígena, mas que mesmo assim, os povos indígenas tem se posto a entender, dialogar e utilizar esta estrutura jurídica desenhada pelos não indígenas.
Destaco no trabalho de Luiz Eloy, uma consideração que tem dimensão epistemológica, se assim consideramos, com Boaventura de Sousa Santos, que o conhecimento é simultaneamente, consciência e existência, vale dizer, ação no mundo e biografia. Noto que isso está nítido na atitude de pesquisa do Autor, dizendo de certo modo, o mesmo que disse Ailton Krenak ao receber o título de Doutor Honoris Causa na UnB, que a distinção não o exaltava como pessoa, senão como expressão de uma biografia de povo, um reconhecimento ao coletivo que marca a formação de sua identidade comunitária.
Diz Eloy que “de igual modo, o texto é resultado de trabalho coletivo, pois grande parte das reflexões empossadas tem origem na árdua atuação no âmbito do Departamento Jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), da Coordenação das Organização Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) e do Conselho do Povo Terena, que reúne um time jurídico excepcional e tem atuação dialógica com outros importantes jurista que acompanham e apoiam a luta dos povos indígenas no Brasil”,. E que “é importante que se registre que a pandemia do Covid-19 impactou o andamento dessa pesquisa, o período fora do Brasil, em Paris, que seria dedicado à escrita, foi sobrecarregado pelo sentimento de perda e exaustão. A rotina diária de contabilizar mortes indígenas, aliado à omissão sistemática do Estado, exigiu dedicação total ao trabalho na APIB, COIAB e Conselho Terena. Se não bastasse, a perda de familiares neste contexto, ora paralisou, ora acelerou a escrita. Mudou os rumos da pesquisa e proporcionou o trabalho que se apresenta”.
Assim ele arremata: “Esta tese de doutorado carrega vários sentidos que vão desde a dimensão pessoal, passando pela característica política e alcançando a sua importância acadêmica. Ela foi desenvolvida num período muito conturbado para os direitos dos povos indígenas do Brasil. Isto porque, como se verá no desenrolar da escrita, mesmo a Constituição Federal de 1988 tendo consagrado a proteção constituição a tais povos, assumindo o Estado brasileiro o compromisso com os povos originários, presenciamos os mais severos ataques a estes direitos, de forma declarada e institucionalizada, a violência que sempre abateu povos e comunidades, nas profundezas do nosso Brasil, agora se irradia da conduta institucionalizada dos poderes constituídos em Brasília”.
Chamam a atenção notícias seguidas que indicam uma continuada postura de conflito entre a Funai, o órgão governamental incumbido da proteção dos direitos indígenas, o sujeito da diretriz constitucional de reconhecimento e proteção.
Esse último registro dá conta de que a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) ingressou, no marco dos 33 anos da promulgação da Constituição Federal (CF), com uma Ação Civil Pública (ACP) na Justiça Federal de Brasília (JF-DF) para pedir o afastamento do Presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai).
Não só nesse tema, como igualmente na questão do racismo, à luz do que se passa, também como conflito de interesses entre a Fundação Palmares e as mobilizações antirracistas no Brasil, essa postura antidemocrática e hostil à Constituição fica cada vez mais evidente.
Não é uma postura nova, ela se revela em toda vocação autoritária e anti-povo. Ainda que a Constituição atual, artigos 231 e 232 tenha reconhecido a capacidade ativa dos índios, ela manteve o dever de proteção pelo Estado dos direitos originários desses povos, tanto que atribuiu ao Ministério Público acompanhar todos os atos que digam respeito à salvaguarda desses direitos e manteve como obrigatoriedade governamental, não havendo mais o regime de tutela, de exercitar essa obrigação, atribuindo a Fundação Nacional do Índio (Funai) como órgão indigenista oficial responsável pela promoção e proteção aos direitos dos povos indígenas de todo o território nacional.
Ora, é legítimo o repúdio indígena aos posicionamentos hostis que a partir desse órgão, começam a caracterizar a quebra de lealdade ao dever constitucional de Proteção, violando os direitos indígenas.
É preciso lembrar que mesmo no curso da ditadura do regime imposto em 1964 e ainda sob a égide de uma Constituição de traços colonialistas, que não reconhecia a capacidade plena aos indígenas, mantendo-os subalternos e tutelados, nunca se perdeu o horizonte emancipatório de respeito aos seus direitos, usos e tradições originários.
Num artigo que publiquei no Jornal de Brasília, edição de 29/04/1984 –Os Índios e o Direito –trato desse tema. Nele aludo a decisão proferida em mandado de segurança que estudantes terenas, representados por membros da Comissão de Direitos Humanos, da OAB-DF, impetraram contra a Funai, ocasião para que o íntegro juiz Dario Abranches Viotti, da Justiça Federal em Brasília, reconhecendo a incompatibilidade de interesses entre o tutor e seus assistidos, nomeou curador especial um dos advogados, para o fim específico de representa-los na ação. Essa curatela especial coube a mim, um dos advogados da OAB, investido no processo pelo magistrado.
Essa decisão não trouxe, a rigor, eu disse no artigo, nenhuma inovação técnica. A remoção do tutor, no âmbito da legislação cível, ou a interdição de direitos, como pena acessória, nos casos de incompatibilidade manifesta, na esfera penal, implicam na perda do exercício da tutela, constituindo alternativas adequadas para a verificação da responsabilidade do tutor em face de suas obrigações para com o tutelado.
Tanto é assim que, no caso relatado, o Juiz simplesmente adotou a solução sugerida pela lei processual civil, identificando, na situação litigiosa, uma hipótese de colisão de interesses.
O inusitado da medida não chega a ser, sequer, o seu pioneirismo jurisprudencial, embora mereça relevo a determinação, no particular, que resultou em abandono de postura, evidentemente inibida da magistratura brasileira. O que repercute nessa decisão, sem precedente a nível judiciário, é o seu alcance instrumental para a defesa de interesses e direitos diferenciados no seio da sociedade civil, como garantia de acesso à Justiça de segmentos sociais dela alienados.
Com efeito, relativamente às comunidades indígenas, a decisão rompe, definitivamente, o círculo férreo com o qual o tutor especial procura privatizar as relações entre os índios e o Estado, isolando as suas reivindicações específicas do conjunto das lutas gerais da sociedade pelos direitos de cidadania.
A decisão, em todo o seu alcance, aponta para o caráter público dessas reivindicações e confirma o Poder Judiciário na condição de instância privilegiada para a fundamentação jurídica de suas implicações não vislumbradas. Assim, por exemplo, o sentido da fidelidade como categoria cogente do tipo de tutela especial, suscetível de avaliação plena em sua peculiaridade teleológica.
Há, assim, incindível entre cidadania e Justiça. Esse vínculo, aliás, foi acentuado pelo ex-Presidente da OAB-DF Antonio Carlos Sigmaringa Seixas (pai do advogado Luiz Carlos Sigmaringa Seixas, patrono do Grupo Prerrogativas que reúne juristas pela justiça e pela democracia) em sua bela tese sobre a democratização da justiça, apresentada no 1º Encontro de Advogados do Distrito Federal. Nela, mostra o autor o quanto a estrutura judiciária reflete a face do Estado que a organiza, esclarecendo que a condição para a concretização de uma justiça democrática é a própria reconstrução democrática da sociedade. Tanto mais, diz ele, quanto seja necessário para elaborar, inclusive, teoricamente, instrumentos jurídicos de intervenção compatíveis com a exigência atual da prática da cidadania.
Nesse contexto é que, demonstra Sigmaringa Seixas, se coloca a necessidade imperiosa de ampliação da tutela jurisdicional para a garantia de acesso à Justiça de pretensões fundadas na defesa de interesses difusos ou coletivos da sociedade.
E este é, precisamente, o campo de exercício da concepção atualizada da cidadania, compreendida como espaço de emergência de novos direitos. Na verdade, um processo de busca de reconhecimento de valores, elaborados a partir das contradições da estrutura econômico-social e que reclamam instrumentalização política e fundamentação jurídica, até como direitos humanos. Aliás, conforme o que fez o Juiz Dario Abranches Viotti, aliás um homem conservador, mas um juiz íntegro, cujo desvelo pela justiça mais expõe os maus juízes que oficiam hoje no país (conferir aqui no Jornal Brasil Popular o meu artigohttps://www.brasilpopular.com/os-integros-e-os-maus-juizes).
A tese ganha relevo e alcança por todos esses motivos os requisitos de ineditismo do estudo e revela o salto doutoral que a articulação teoria e prática requer a trabalhos que servem não só para interpretar o mundo mas a orientar ações políticas que se disponham a nele agir para transformá-lo. Cuida-se, lembra Marilena Chauí, a propósito do pensamento dialético de Roberto Lyra Filho e de sua concepção do direito como emancipação direito achado na rua, de abrir a consciência para saltar da história para a política, pela mediação do direito que desaliena, emancipa e humaniza.
Nessa dimensão aberta de uma consciência que se abre reflexivamente para a práxis transformadora, afirma Eloy que “A importância política do trabalho está ligada à realidade social. O tema central é o direito dos povos indígenas e sua luta está ligada às lutas sociais empreendidas no país. Como se verá, estou defendendo neste trabalho, a existência de um campo específico do direito público interno brasileiro que trata dos interesses e direitos dos povos indígenas – que neste momento estou chamando de direito indigenista. Ora, isto tem implicação direta ao desenvolvimento da política brasileira, pois são interesses que estão conflitando e se relacionando com o campo econômico, social e político. Nos últimos anos assistimos temas relacionados aos direitos dos povos indígenas na puta do Supremo Tribunal Federal , do Congresso Nacional (Câmara e Senado) e dos discursos do chefe do poder executivo, presidente Jair Bolsonaro . De igual forma, no cenário internacional fica evidente a importância do tema, pois ocupou as discussões das Nações Unidas ( ONU) , da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e do Tribunal Penal Internacional (TPI)”.
E, “no que tange a justificativa de ordem científica, o tema merece profunda reflexão por parte da academia. Ao tempo que se reconhece os outros direitos e sistemas de justiça próprio dos povos indígenas, põe-se como missão inicial analisar e estruturar o direito produzido pelo Estado para os povos indígenas (direito indigenista). Para tanto, não está se propondo a fazer uma análise pura da lei, seguindo a ortodoxia jurídica, mas se propõe a fazer uma análise sociojurídica, olhando não apenas para a letra fria da norma, mas também para as forças sociais ( movimento indígena), para desenvolvimento da política indígena e os interesses econômicos que conflitam com tais direitos”.
Na linha da interdisciplinaridade que caracteriza o Programa da UFF, a bibliografia rica arrolada pelo Autor está apta a sustentar a sua tese. Ela, aliás, se faz viva na Banca para conduzir o debate de conteúdo. Eu só sugiro ao Autor que incorpore a sua reflexão futura, quando retorne ao âmbito teórico do pluralismo jurídico e ao constitucionalismo latinoamercano emancipatório participativo, os estudos imprescindíveis de Rosane Freire Lacerda, professora da UFPE e antiga assessoria jurídica do CIMI, juntamente com Paulo Machado Guimarães, quando era seu coordenador o querido amigo Antonio Brand, tão afetuosamente honrado pelo Autor. Com Paulo Guimarães, formulamos nos anos 1980 a tese da legitimidade ad causam da Comunidade Indígena Pataxó Hã Hã Hãe (não os caciques ou capitães, ou a Funai), para fundamentar a retomada de seus territórios tradicionais. Foi um de meus referências para balizar a tese que apresentei na XIII Conferência Nacional da Ordem dos Advogados, em 1990 (está nos Anais) “Movimentos Sociais – a Emergência de Novos Sujeitos: o Sujeito Coletivo de Direito”, categoria – sujeito coletivo de direito – que se constitui como um dos fundamentos de investigação de O Direito Achado na Rua, em sua concepção e prática.
Refiro-me à Dissertação e à Tese defendidas por Rosane na UnB, que tive o privilégio de orientar: Diferença não é incapacidade: gênese e trajetória histórica da concepção da incapacidade indígena e sua insustentabilidade nos marcos do protagonismo dos povos indígenas e do texto constitucional de 1988. (Dissertação, 2007):
Este trabalho trata da questão da capacidade civil dos indígenas no Brasil e de sua sujeição ao regime tutelar especial previsto e m leis infra−constitucionais. Partindo do pressuposto da ruptura histórica da Constituição Federal de 1988 com o antigo paradigma da incorporação dos índios à comunhão nacional brasileira, busca−se compreender e m que medida tal ruptura introduziu. ou não, alterações na compreensão e na prática dos juristas e das instituições do Estado brasileiro a respeito do tema. No último capítulo é feito um diagnóstico do tratamento dado pela literatura jurídica à questão da capacidade civil indígena tanto na fase da vigência do Código Civil de 1916, quanto a partir do Código Civil de 2002, e como tal discussão se insere no âmbito das práticas dos poderes do Estado. Tendo e m vista as resistências da maioria dos atores jurídicos na compreensão da questão da capacidade civil indígena a partir dos novos parâmetros constitucionais, a pesquisa aponta para a importância da sua análise no âmbito da sistemática adotada pelo Direito Civil Constitucional, para ali potencializar a superação da concepção da incapacidade indígena. Trata−se, enfim, de uma pesquisa documental, fruto das inquietações da autora enquanto advogada atuante há muitos anos na defesa dos direitos indígenas, e que identifica na questão da tutela indígena u m dos problemas ainda enfrentados por aqueles povos na busca pelo respeito à sua autonomia e diversidade étnica e cultural.
“Volveré, y Seré Millones”: Contribuições Descoloniais dos Movimentos Indígenas Latino Americanos para a Superação do Mito do Estado-Nação (Tese, 2014, prêmio Capes):
A tese trata da emergência do modelo plurinacional de Estado na América Latina a partir das demandas históricas dos povos indígenas. São demandas pelo seu reconhecimento enquanto sujeitos políticos e jurídicos autodeterminados, no marco do Estado territorial moderno. O foco central está na importância e contribuição dos movimentos indígenas latino-americanos, em especial os da Bolívia, Equador e Brasil, para a construção de um modelo de Estado que desafie e supere as relações coloniais e eurocêntricas de poder e de conhecimento presentes no modelo de Estado-nação. O trabalho busca responder a duas indagações: (a) o chamado modelo “plurinacional” de Estado consiste no simples reconhecimento da diversidade étnica e cultural da sociedade e na concessão, a estas identidades diversas, de direitos específicos? e (b) o Estado Brasileiro, tendo em vista os reconhecimentos do art. 231 da Constituição Federal de 1988, possui os elementos ou pode ser considerado um Estado “plurinacional”? A hipótese é a de que o Estado plurinacional, longe do simples reconhecimento da heterogeneidade e da concessão de direitos específicos, constitui um modelo cujas bases axiológicas e institucionais são construídas a partir da pluralidade de concepções éticas, jurídicas e políticas próprias das diversas identidades “nacionais”. No caso do Brasil, a hipótese é a de que apesar do reconhecimento da diversidade étnica e cultural expressa no art. 231 da CF/88, o modelo institucional de Estado continua uni-nacional e marcado pelas relações coloniais de poder. O objetivo geral do trabalho é identificar e analisar, a partir das reivindicações e contribuições políticas dos movimentos indígenas e de seus reflexos no movimento do chamado Novo Constitucionalismo Latino-americano, o significado e a importância constitucionais do modelo “plurinacional” de Estado, em especial as possibilidades que este oferece para a ruptura com históricas relações de dominação no interior de Estados marcados pela diversidade étnica e cultural. A análise teórica tem por base os estudos sobre a “colonialidade” (Quijano), em especial as modalidades “colonialidade do poder” (Quijano), “do saber” ou “epistêmica” (Mignolo e Sousa Santos), e “do ser” (Maldonado-Torres). Considerando a ideia de homogeneidade étnica e cultural como subjacente à concepção da identidade necessária entre Estado e nação, e como uma produção ideológica baseada no não reconhecimento da diversidade, afirma-se a incapacidade do Estado-nação na América Latina para dar conta de sua pretensão de promover uma integração social democrática, justa y solidaria. Procura-se demonstrar, na trajetória histórica do constitucionalismo latinoamericano pós-independência, que os Estados uni-nacionais na região desenvolveram-se e constituem-se enquanto espaços de manutenção das relações coloniais de poder, de ser e de saber, que invisibilizam a diversidade étnico-cultural e colocam os indígenas em condições de subalternidade política e epistêmica. A partir daí são analisadas as históricas lutas de resistência indígena a este quadro, bem como as mobilizações em torno da recente construção dos modelos plurinacionais de Estado na Bolivia (2009) e Equador (2008), como expressões de uma atitude “descolonial” (Quijano), fundada na “desobediência epistêmica” (Mignolo) e na “interculturalidade crítica” (Walsh). Conclui-se que no Novo Constitucionalismo Latino-Americano as demandas indígenas trouxeram a plurinacionalidade como uma tentativa de construção um novo modelo de Estado, em bases descoloniais.
Para a vertente crítica que pensa o Direito como emancipação e o compreende como criação do social, a hipótese do pluralismo jurídico e a condição da insurgência, são critérios constitutivos do campo, das referências possíveis de teorias de sociedade e de justiça, e de qualquer consideração que se elabore sobre o tema.
Assim, por exemplo, em minhas leituras, articulando questões sociais e possibilidades teóricas, com esse objetivo, quando tratei de esboçar a minha crítica sobre o processo de formação, conforme por exemplo, meus primeiros estudos, se mostrou inafastável abrir um capítulo sobre a pluralidade de ordenamentos e, simultaneamente, na sequência, situar a questão nas articulação entre as condições sociais e as possibilidades teóricas que abrem ensejo para a materialização do jurídico, na tensão dialética entre o instituinte e o instituído.
Algo, anota Marilena Chauí, que abre a perspectiva para a “apreensão do Direito no campo das relações sociais e políticas entre classes, grupos e Estados diferentes [que] permite melhor perceber as contradições entre as leis e ajustiça e abrir a consciência tanto quanto a prática para a superação dessas contradições [o que] significa abrir o Direito para a História e, nessa ação, para a política transformadora”.
Na consideração dessas interpelações, tanto políticas quanto epistemológicas, nenhum estudo terá sido desenvolvido sob a perspectiva da crítica jurídica e dos direitos humanos, sem que se estabeleça um vínculo de interlocução com a precedência de pesquisas e de análises de Jesús Antonio de la Torre Rangel, na sua sofisticada e engajada concepção de Derecho que Nace del Pueblo como Derecho Insurgente,
De fato, no plano teórico, considerando as principais abordagens, todos os autores e autoras (pelo menos aqueles com os quais mais proximamente mantenho diálogo) – Boaventura de Sousa Santos, Carlos Maria Cárcoca, Oscar Correas, Raquel Yrigoyen Fajardo, David Sanches Rubio, Miguel Pressburger, Miguel Baldez, Luiz Edson Fachin, Antonio Carlos Wolkmer, Salo de Carvalho, José Carlos Moreira Silva Filho conformaram suas aproximações, em diálogo constante e intenso com o professor de la Torre Rangel, entre esses Carlos Frederico Marés de quem adota várias expressões, principalmente quando adverte para o risco da técnica jurídica converter-se emconcepção univocista do jurídico, operando como um ‘procedimento mata Direito’.
Na articulação dos fundamentos do pluralismo e da insurgência enquanto filosofia e teoria do Direito que nasce do povo, assertivamente, “uma nova teoria do Direito”, desde 1986, com El Derecho que nasce del pueblo, depois, em 2012, com El Derecho que sigue nascendo del pueblo. Movimientos sociales y pluralismo jurídico; e agora. 2022, com El Derecho que Nasce del Pueblo como Derecho Insurgente, de la Torre Rangel percorre um caminho disciplinado, imaginativo e criativo que consolida uma referência para o campo.
Nas suas próprias palavras, sempre atualizando “la exposición del pluralismo jurídico como base y mejor entendimento de la propuesta y recogemos varias de las experiências analizadas” nesse formidável percurso, com a novidade que se estriba “em que el pluralismo jurídico lo reforzamos teoricamente; analizamos otras nuevas experiências sociojurídicas” e, com mais pressupostos teóricos, “destacando la categoria de derecho insurgente – direito insurgente – desarrolhada por juristas brasileños militantes em la asesoría jurídica popular, para analizar las experiências de Derecho que nace del pueblo”.
Folgo em me encontrar junto com colegas brasileiros, nesse diálogo interpretativo. Esse diálogo estabelecido desde antes, nas reflexões sobre o tema do pluralismo jurídico, já me inscrevera entre as referências do professor De la Torre Rangel, sob a perspectiva de minha abordagem enquanto direito achado na rua (SOUSA JUNIOR, 2007). Agora, nesta nova obra, o professor De la Torre Rangel me inscreve em suas referências com um ítem de seu livro O Direito Achado na Rua, como fundamento teórico y su relación com otras miradas críticas al Derecho. E o faz, fico satisfeito, porque ele percebe a utilização de uma racionalidade analógica (categoria hermenêutica fundamental na concepção do Autor), que expressa “no una visión unívoca, que pretenda uniformar las posiciones críticas del Derecho desde los empobrecidos em sus derechos, podemos decir que El Derecho Hallado em la Calle es estrictamente derecho alternativo, es outro derecho respecto del derecho positivo, expressión éste muchas veces de injusticia; parte, además, de aceptar um pluralismo jurídico comunitário participativo, que constituye su base, al aceptar el Derecho como uma producción social em processo; tabién pude identicarse com el derecho insurgente, ya que em ciertos momentos los sujetos sociales oponen al Estado y a las clases sociales hegemónicas um derecho em resistência y lucha política”.
Uma mais estendida e circunstanciada aproximação entre O Direito Achado na Rua e o Direito Insurgente, foi apresentada pelo professor De la Torre Rangel, durante o Seminário Internacional O Direito como Liberdade 30 Anos do Projeto O Direito Achado na Rua, em sua contundente comunicação Constitucionalismo Achado na Rua em México: de los acuerdos de San Andrés al concejo indígena de gobierno.
As experiências registradas no México, tendo como base as lutas sociais por emancipação, têm o caráter de uma revisão crítica da historiografia do país, na percepção da insurgência e do processo instituinte de direitos, repondo o tema do constitucionalismo desde baixo, nas anotações de planos e acordos estabelecidos nos embates para estabelecer projetos de sociedade. Relevo para os acordos de San Andrés, pela conformação constitucional que os caracterizam.
É importante “recordar que o constitucionalismo é permanente tentativa de se instaurar e se efetivar concretamente a exigência idealizante que inaugura uma modernidade no nível da organização de uma sociedade complexa, incapaz de lançar mão de fundamentos absolutos e que, por isso, só pode legitimar seu próprio sistema de direitos na medida em que os potenciais podem se reconhecer como coautores e autoras das normas que os regem. Ou seja, ou o direito é constitucionalmente achado na rua e nas ruas, e com as ruas, é construído e reconstruído de forma plural e inclusiva, ou, sem dúvida, tende-se a privatizar o próprio Estado, mediante a colonização do direito por uma lógica simplista binária de cunho plebiscitário e na da democrática, pois infensa a qualquer eficaz de bate”.
Para o constitucionalista português J. J. Gomes Canotilho, em sede de debate que envolve teorias de sociedade, teorias de justiça e teorias constitucionais, cuida-se de ter atenção à multiplicidade de sujeitos que se movem no debate constitucional contemporâneo que tende a abrir expectativas de diálogo político estruturado na linguagem do direito, gerando na expressão dele, “posições interpretativas da Constituição” que emergem desse processo e formam uma luta por posições constituintes, luta que continua depois de aprovada a constituição (CANOTILHO, J. J. Gomes. Cf. Entrevista que me concedeu: Pela Necessidade de o Sujeito de Direito se Aproximar dos ‘Sujeitos Densos’ da Vida Real. Constituição & Democracia. Brasília: Faculdade de Direito da UnB, n. 24, julho de 2008, p.12-13), luta travada pela disposição a ir para o meio da rua, pois “do outro lado da rua, o ‘direito achado na rua’ e, perante o sangue vivo que brota dos vasos normativos da realidade e a sedução de um direito outro, ao direito formal das constituições, códigos e leis, compreende-se que o discurso hermenêutico dos juristas mais não seja que um manto ocultador do insustentável peso do poder”.
Ao final uma nota para novas aproximações a partir do diálogo que a instigante reflexão do professor Jesús Antonio de la Torre Rangel provoca, considerando que a sua obra atual, em ser uma continuidade adensadora de pressupostos epistemológicos para a crítica jurídica, é um completo catálogo de experiências confirmadoras do direito alternativo, do uso alternativo do Direito, do pluralismo jurídico e, ao fim e ao cabo, do direito insurgente, que surge do povo, pela emergência de sujeitos coletivos de direitos, que se inscrevem nos movimentos sociais, protagonistas de sua própria experiência de humanização e de emancipação, já que o humano é projeto, experiência na história: “El derecho insurgente, del que trata este libro, forma parte de um processo de liberación de la alienación u opresión; se opone a la legalidade de la injusticia. Em el texto hemos destacado, sobre todo, las luchas indígenas y campesinas, por la autonomia y la defensa del território, como uma práctica jurídico-política de pueblos índios y campesinos; práctica en que [se materializa] el derecho que nace del pueblo como derecho insurgente”, tanto como aplicação alternativa a partir do jurídico instituído, com abertura hermenêutica para a expansão de categorias e de conceitos, quanto na perspectiva para a emergência de outro direito, este propriamente insurgente, orientado por outro projeto de sociedade e de interrelações re-descritas a partir das lutas sociais para um direito verdeiramente emancipatório.
A tese, tal a conclusão de seu Autor, “trouxe um somatório de reflexões forjadas a partir da experiência. No caso dos povos indígena esta experiência é a resistência qualificada pelo contínuo processo de fricção jurídico estatal. Pois mesmo sendo povos autônomos, detentores de sistemas próprios, trava-se diariamente um árduo processo de entender e se fazer entender. Do lado dos povos indígenas a abertura dialógica cultural, mas do lado do Estado, o autoritarismo racional. Um dos desafios postos na atualidade mundial é entender as identidades culturais, saber lidar com a diferença, respeitando as cosmovisões do outro. Neste quesito os povos indígenas têm muito a oferecer e ensinar. Ao se propor entender o direito imposto e produzido para os povos indígenas e como manejá-los, mesmo ciente que esta estrutura jurídica foi projetada para atender os interesses do capital, estamos chamando atenção para a dimensão indígena de se relacionar com os mundos e eleger projetos políticos no único intuito de continuar existindo enquanto povo diferenciado e capaz de transitar entre diversos sistemas. Portanto, este esforço reflexivo individual de um advogado demonstra de igual modo um ganho coletivo, baseado na insistência em entender e fazer seus símbolos serem entendidos”.
Não é pouco, considerando o acervo corrente de poderosos enunciados que os povos indígenas, por seus advogados, Eloy Amado com grande capacidade de locução, lograram fixar na mentalidade dos principais agentes em fóruns nacionais e internacionais que discutem os direitos constitucionais, fundamentais, convencionais e das gentes. Não obstante o obstáculo do positivismo, mencionado por Antonio Augusto Cançado Trindade, duas vezes presidente da CIDH, para que os enunciados internacionais de direitos humanos seja inseridos nos ordenamentos nacionais; ou, a própria abertura cognitiva dos magistrados, demarcava o ministro Lewandowiski na presidência do STF para assimilarem matérias relativas a direitos humanos ou decisões de cortes internacionais nesse campo, que não aprenderam nas escolas, as primeiras, ou solenemente desconhecem para poder aplicar. Condição para o reconhecimento do direito que nasce na aldeia, a avançada formulação que o próprio Eloy Terena fez por ocasião do Seminário Internacional O Direito como Liberdade: 30 Anos do Projeto O Direito Achado na Rua.
É por isso que – diz Eloy – que a tese “parte da análise situacional do desenvolvimento da política indigenista, passando pela constitucionalização dos direitos e defende-se uma teoria do direito indigenista. Na verdade todo esse esforço intelectual é para fazer os brancos entenderem o que nossas lideranças estão há muito tempo dizendo. Não se trata de privilegiar os dogmas jurídicos em detrimento das categorias indígenas, mas sim, de reduzir a dimensão indígena a rótulos do mundo ocidental com o único objetivo de estabelecer diálogo, se fazer entender, e quem sabe, ser correspondido”. Nem se render, eu acrescento, à elegância mistificadora, encantatória, cântico de sereias, dos neo-constitucionalismos e pós-positivismos, a cujo embalo temos assistido adormecer altas reputações da crítica jurídica, para júbilo gratificante do agro-negócio. Vimos isso acontecer agora no debate em curso no STF.
Essa é uma pergunta implícita que poderia ser feita ao Autor da Tese, mas que nos fazemos a nós próprios todos e todas nós. A resposta não será a que ele nos possa oferecer aqui ao cabo da arguição. Mas a que virá, vitoriosa ou não, ao final do julgamento da tese hoje apresentada no STF sobre a precedência do direito originário dos povos ao direito do Estado. A alternatividade abriu possibilidade para a emergência desse direito? E virá também do Tribunal Penal Internacional quando julgue a questão já apresentada, em face de violações de direitos dos povos originários, que caracterizam a atuação do presidente da República por violação de seus direitos pré-estatais, pré-colombianos, pré-cabralinos, numa ação que se caracteriza como crime de lesa humanidade.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
Título original: Manuela de Santana Passos. A Voz dos(as) Invibilizados(as) no STF e STJ: a Eficácia do Grupo de Atuação Estratégica das Defensorias Públicas Estaduais nos Tribunais Superiores (GAETS) para a Defesa dos Direitos Humanos de Grupos Vulneráveis. Dissertação de Mestrado. Brasília: UnB/Faculdade de Direito, 2022, 161 f.
Anne Carolline Rodrigues da Silva Brito. Diálogos entre Justiça Comunitária e Justiça Restaurativa: um estudo a partir da experiência do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Dissertação de Mestrado. Brasília: Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, 2022, 133 f.
Do que trata o trabalho, seu desenvolvimento e as conclusões a que chega, com o conforto de qualificada bibliografia que lhe dá sustentação, e com a nítida e segura orientação, conduzida pela professora Débora Bonat, do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito, da UnB, diz bem o seu Resumo:
O presente trabalho acadêmico investiga as atividades desenvolvidas pelo Grupo de Atuação Estratégica das Defensorias Públicas estaduais nos Tribunais Superiores (GAETS) para a formação de precedentes favoráveis aos direitos humanos de pessoas vulneráveis. Objetiva avaliar se as ações desenvolvidas por seus membros, como o uso de técnicas de litigância estratégica e advocacy, contribuem de maneira efetiva para a persuasão dos ministros em demandas judiciais sensíveis ao público assistido pela instituição Defensoria Pública e quais pontos podem ser potencializados. A metodologia empregada incluiu entrevistas semi diretivas com membros do GAETS, análise quantitativa dos processos com participação das Defensorias estaduais no STF e STJ e exame qualitativo de julgados destes órgãos com intervenção do grupo de defensores públicos. Os resultados obtidos demonstraram que a participação dos membros do GAETS nos processos criminais do STJ ocorre em cerca de 31% dos feitos, enquanto que nas ações em geral essa participação se reduz a aproximadamente 8% dos processos. Há, pois, uma preponderância de atuação do coletivo em matéria de Direito Penal no STJ. No âmbito do STF, a proporção de processos com atuação das Defensorias estaduais é reduzida, girando em torno de 1% das demandas, também com prevalência na seara criminal. Constatou-se que existe considerável diferença entre a demanda das diversas Defensorias estaduais do GAETS. Qualitativamente, concluiu-se que as atribuições do GAETS, seus peticionamentos enquanto amicus curiae, sustentações, uso de pesquisas, reuniões com ministros e outros instrumentos de litigância estratégica contribuem positivamente para que as cortes superiores emanem jurisprudência benéfica aos socialmente excluídos e expostos. Sugestionou-se, ainda, que a designação de profissionais com atuação exclusiva nas atividades do GAETS, criação de um sistema informatizado para o grupo e de uma estrutura administrativa própria (com coordenação) poderiam otimizar os resultados do labor desenvolvido.
Não tenho ressalvas de fundo a opor ao bem elaborado trabalho. Considero que a Mestranda, além de coordenar com pertinência os elementos empíricos de sua pesquisa para dar consistência a análise que desenvolve em face dos objetivos de sua pesquisa, realiza uma outra dimensão de sua disposição acadêmica que é a de estabelecer um ponto de vista para a sua observação, potencializando o alcance de essencialidade atribuída pela Constituição ao órgão de sua atuação, a Defensoria, naquilo que mais acentua a sua subjetividade conduzida para a consecução dessa essencialidade.
Por isso que me sinto autorizado a lhe oferecer uma indicação sobre o alcance desse posicionamento, que a meu ver, melhor corresponde aos seus objetivos e pressupostos, vale dizer, orientar-se segundo a compreensão de que a Defensoria é “uma instituição incumbida constitucionalmente de promover os direitos humanos dos vulneráveis, a Defensoria Pública tem o dever de garantir-lhes o acesso à justiça em todos os níveis e zelar para que esta defesa esteja além do plano formal. Os obstáculos a enfrentar com este fim são muitos, vez que enraizadas na sociedade brasileira estruturas de opressão do público alvo da Defensoria Pública, a exemplo da população preta e indígena, pessoas em situação de rua ou com deficiência, mulheres, idosos(as), crianças e adolescentes, LGBTQIs e outros grupos que lutam por dignidade e igualdade”.
Assim, aliás, ela começa o seu texto. Gosto de avaliar, logo no primeiro parágrafo, como um texto começa. Se a redação carrega força condutora para o que vem a seguir. Nunca me saiu da memória a primeira frase do Espírito das Leis, de Montesquieu: “As leis são as relações necessárias que derivam da natureza das coisas”. Em que pese poder divergir do autor depois, em muitos pontos, sente-se logo a vitalidade desse enunciado a se desenvolver com a qualidade que caracteriza essa obra fundacional.
Para aludir a Robert Musil, em sua disposição de conferir qualidade, ela própria de quem, diferente do que é sem qualidade (Robert Musil, O Homem sem Qualidades), se recusa a uma “existência [que não seja] feita, naturalmente, de ações, não de discursos de que assimilamos o ponto de vista, de opiniões e de contra-opiniões correspondentes numa palavra da acumulação impessoal de tudo quanto sabemos ou ouvimos”.
Confrontando o que é opinião e contra-opinião, me chama a atenção as três primeiras notas de roda-pé:
1 O uso da terminologia “direitos humanos” em detrimento de vernáculos como “direitos fundamentais” ou “direitos”, lato sensu, decorre do viés do trabalho desenvolvido pela Defensoria Pública, no sentido de ampliação da proteção jurídica, política e normativa de vulneráveis, para incluir direitos consagrados internacionalmente, indo além da mera tutela de direitos individuais. O termo “direitos” pode dar a entender que a instituição protege apenas direitos individuais, enquanto que o termo “direitos fundamentais” refere-se apenas aos direitos humanos consagrados constitucionalmente. A expressão “direitos humanos”, por sua vez, engloba os direitos fundamentais e ainda outros previstos em documentos internacionais, mesmo que não oficialmente incorporados ao ordenamento interno. 2 Este trabalho pretende utilizar linguagem de gênero inclusiva. 3 Inicialmente foi utilizado o termo “invisíveis” para tratar dos grupos vulneráveis assistidos pela Defensoria Pública. Todavia, considerando que as pessoas não são de per si invisíveis e apenas não são enxergadas por estruturas sociais opressoras, o termo foi substituído por inviabilizados(as)
Essas três notas são para mim como que chaves de leitura do trabalho. E por essa razão questiono por que a Autora, tão vivamente interpelada pela perspectiva hermenêutica de desvendamento, conforme aliás sugere Boaventura de Sousa Santos para vencer silenciamentos de toda ordem e ater-se ao que é ausente e emergente, incluindo posições descolonizadoras, não se valeu da expressão vulnerabilizados(as) ao invés de vulneráveis.
Já no título da Dissertação, mas na abertura de posicionamento constato o que me parece ser uma exigência de posicionamento. Diz a Autora:
Todos devem ter voz e visibilidade para que a democracia realmente se consolide no Brasil e, assim, seja possível sonhar com a efetiva justiça social. O fortalecimento e o êxito de instituições contramajoritárias é condição indispensável para tanto, pois elas são muralhas que barram ataques às liberdades, em tempos tormentosos de arroubos antidemocráticos. A missão da Defensoria Pública é árdua, ainda mais porque os recursos estatais são minguados quando direcionados aos(às) invisibilizados(as), o que provoca o atual estágio de não implementação plena do órgão em todas as cidades do país. A instituição precisa utilizar a inteligência, numa realidade de recursos materiais e humanos muito limitados, e assim obter os melhores resultados possíveis em defesa dos direitos humanos. Para além da atuação casuística em processos judiciais, os(as) defensores(as) públicos(as) precisam articular-se e, com uma litigância estratégica, contribuir para a formação de jurisprudência favorável aos(às) seus(suas) assistidos(as), irradiando efeitos com a construção judicial do direito. Defender os direitos dos(as) necessitados(as) não se resume ao mero peticionamento e o patrocínio de causas individuais ou coletivas. Envolve principalmente o empoderamento e a consciência de direitos das minorias, dos movimentos sociais, o entusiasmo político, jurídico e social dos direitos humanos, no plano judicial, extrajudicial, nacional e internacional.
É certo que na passagem ela retoma o termo inscrito na Constituição e na Lei Complementar sobre a defesa de necessitados(as). Mas a expressão vulnerabilizados(as) já tem curso firme em posicionamentos da Instituição e de seus quadros mais conscientes.
Em texto de recensão, conforme está em coluna (Lido para Você), que mantenho no Jornal Estado de Direito, tratei do livro Defensoria Pública e a tutela estratégica dos coletivamente vulnerabilizados ((Orgs): Lucas Diz Simões, Flávia Marcelle Torres Ferreira de Morais, Diego Escobar Francisquini. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019, 948 p.), conferir em http://estadodedireito.com.br/defensoria-publica-e-a-tutela-estrategica-dos-coletivamente-vulnerabilizados/.
Lançamento primoroso da Editora D’Plácido, este livro, conforme a nota de seus organizadores “aborda temas sensíveis à atuação das defensoras e defensores públicos na seara transindividual, pautando-se pela narrativa doutrinária atrelada a casos práticos relevantes”.
As suas 948 páginas compreendem uma apresentação, a cargo de Maria Tereza Aina Sadek, um prefácio assinado por Boaventura de Sousa Santos uma nota dos organizadores, seguindo-se doze partes. Além desses, 62 autores e co-autores assinam textos, distribuídos nessas doze partes, examinando-se no seu conjunto: 1 – diversos ramos do direito material – liberdades (religiosa, de expressão etc), infância e juventude, idoso, mulher, populações de rua, imigrantes, quilombolas, indígenas, direito à cidade, trabalho, moradia, saúde, pessoas com deficiência, em privação de liberdade, consumidor, meio ambiente etc; 2 – atuação judicial e extrajudicial via projetos de educação em direitos, de mediação, grupos de trabalho, requisições administrativas, recomendações, audiências públicas, TAC e outras formas de resolução consensual de conflitos, acordos de cooperação, atuação em rede, ações civis públicas, mandado de injunção coletivo, HC’s coletivos etc; 3 – Defensoria como parte e também 3ª interveniente via amicus curiae, custos vulnerabilis, custos plebis, amicus communitas, ombudsman (defensor del pueblo) e 4 – concepção das vulnerabilidades e sua organização coletivizada.
Para a apresentadora os artigos que compõem a obra “apresentam teses inovadoras e práticas que demonstram não apenas a preocupação de defensores públicos, professores e operadores do direito com questões relevantes, mas sobretudo evidenciam como suas atuações, em diferentes áreas, têm concretizado direitos, contribuindo para superar situações vividas por vulnerabilizados”.
O livro, conforme o prefácio de Boaventura de Sousa Santos, mostra de modo eloquente como “um conjunto notável de juristas profissionalmente bem preparados e com um sentido extraordinariamente vincado de compromisso com mandato da Constituição, se manteve firme na defesa dos direitos das classes e dos grupos sociais coletivamente vulnerabilizados”.
Com Alberto Carvalho Amaral, Defensor Público em Brasília e como minha colega professora na Universidade de Brasília Talita Tatiana Dias Rampim, contribuímos para a obra com o artigo “Exigências críticas para a assessoria jurídica popular: contribuições de O Direito Achado na Rua”, p. 803-826.
Também com Albeto Amaral e Talita Rampin, organizei o livro Direitos Humanos e Covid-19. Grupos sociais vulnerabilizados e o contexto de pandemia. Prefácio de Boaventura de Sousa Santos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2021, cf. em http://estadodedireito.com.br/direitos-humanos-e-covid-19/).
Já o Prefácio de Boaventura de Sousa Santos – O coronavírus, nosso contemporâneo, começa por oferecer uma leitura panorâmica mas crítica que abrange o campo interpretativo da pandemia e a afetação de grupos vulnerabilizados sob a perspectiva dos direitos humanos.
Em nosso texto de organizadores, que abre o livro, está assim resumido: “a partir dos pressupostos teóricos de O Direito Achado na Rua e visualizando as mudanças drásticas de rotinas, vidas e relacionamentos, o texto procura situar o acesso à justiça em tempos de pandemia do Covid-19, problematizando uma situação de isolamento que é marcada pelas dessemelhanças estruturais, que fragiliza ainda mais os grupos socialmente. Compreender o acesso à justiça exige, com ainda maior força, visualizar para além da letra positivada e visualizar o não-dito, mas socialmente inegável, na busca de minorar a exclusão de direitos dos excluídos”.
Em nossaa abordagens nesses trabalhos, colocadas as questões pressupostas, focalizamos dois aspectos destacados que pede enfoque teórico e também prático: 1- A Defensoria Pública como necessário ator qualificado para o alargamento e a democratização do acesso à justiça; 2 – O projeto “Defensoras e Defensores Populares do Distrito Federal”: ação difusora e conscientizadora sobre direitos humanos, cidadania e ordenamento jurídico.
No primeiro aspecto, para nós, o acesso à justiça constitui-se direito fundamental garantido pela Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada aos 5 de outubro de 1988 – CF/88 e não significa, necessariamente, acesso ao Judiciário. Partimos de uma visão axiológica da expressão “justiça”, que representa uma determinada ordem de valores e direitos fundamentais para o ser humano. Esse tema tem sido pesquisado por juristas e sociólogos, como Mauro Cappelletti e Bryant Garth , que consideram que o acesso à justiça pode ser encarado como o mais básico dos direitos humanos inseridos no contexto de um sistema jurídico moderno e igualitário, comprometido com a garantia (e não apenas com a proclamação) do direito de todos .
E com certeza, a Autora da Dissertação parece perfilhar essa dimensão alargada de acesso, para inferir, até em concordância comigo no que toca ao transbordar o próprio institucional, do papel de defesa interinstitucional que a Defensoria realiza, a possibilidade de fortalecer uma atuação sem a qual não alcança salvaguardar, diz ela, os direitos “da população vulnerável”:
a instituição também cumpre importante papel na defesa interinstitucional da população vulnerável, cooperando e fiscalizando o trabalho de outras instituições (a exemplo de órgãos do Poder Executivo, do Judiciário e do Ministério Público) para a adoção de providências para o avanço dos direitos fundamentais dos vulneráveis. Sousa Júnior, ao tratar sobre o alargamento do acesso democrático à justiça, indica como estratégia para ir além da institucionalização a consideração da participação popular no processo democrático além de seu formato individualizado, priorizando a organização coletiva.
A partir de entrevista que concedi ao Boletim DPU Escola Superior Fórum DPU Defensoria Pública e Acesso à Justiça, nota-se a emergência de uma agenda relevante de temas estratégicos, nos planos teórico e de aplicação, que logo se fez interpelante para prosseguir em análises que aprofundem a relação entre o sentido institucional-funcional da Defensoria Pública e a questão desafiante do acesso à justiça. Apesar de inicialmente pensados na articulação da Defensoria Pública da União e de suas atribuições específicas, dada a própria temática da entrevista, esses temas são instigantes para a atuação de todas as Defensorias Públicas estaduais e do Distrito Federal, emergindo como vórtices para uma atuação para além dos fixos quadros de processualização formal das violações a direitos.
Uma primeira questão para organizar essa agenda se coloca quase intuitivamente: quais seriam os principais desafios institucionais, econômicos e sociais de acesso à justiça?
Uma forte consideração nesse tema e, sobre ele, registros e reflexões que estão contidas em trabalhos nos quais as aproximações desde O Direito Achado na Rua, sua concepção e prática vem acumulando, sempre pensando um modo alargado de concepção do tema que leve em conta exatamente confrontar e superar esses obstáculos. O pressuposto para tal é apostar na democratização da sociedade e da justiça, abrindo-as à crescente participação da cidadania de modo a reduzir as barreiras econômicas, institucionais e sociais por meio de reconhecimento de sujeitos coletivos e de protagonismos que desindividualizem as demandas, pela afirmação das dimensões políticas que ordenam os conflitos mais agudos em nossa sociedade. Esse é um modo para deslocar a questão dos entraves burocráticos que pedem medidas modernizadoras – novos códigos, mais agentes, novos procedimentos – quando a questão é o questionamento da Justiça a que se tem acesso e o modo democrático de ampliar esse acesso.
Em resumo desse acumulado, o que baliza uma aproximação, que nos caracteriza, é conceber a assessoria jurídica popular como uma estratégia para promover o acesso ao direito e à justiça dos cidadãos, especialmente os subalternizados, na medida em que atua para que estes conheçam seus direitos e não se resignem em relação às suas violações bem como tenham condições para superar os obstáculos econômicos, sociais e culturais a esse acesso. Tomando os pressupostos da assessoria jurídica popular, na perspectiva de O Direito Achado na Rua, trata-se de acentuar a relação de compromisso político com os sujeitos coletivos organizados e movimentos sociais cuja atuação expressa práticas instituintes de direitos, e a combinação de instrumentais pedagógicos, políticos e comunicacionais com a dimensão jurídica. O que significa realizar um exercício analítico que desloca a centralidade e prioridade da norma estatal enquanto referencial de legitimidade e validade do direito, para encontrar como referencial os processos sociais de lutas por libertação e dignidade.
Voltando a minha Entrevista para o Boletim da DPU, e no interesse do debate nesta arguição, transcrevo uma pergunta que me foi posta: “Em que medida a atuação junto a instituições internacionais pela DPU são relevantes para a garantia do acesso à justiça?”.
Lembro essa questão para acentuar a relevância da atuação da Defensoria nesse âmbito caracterizado na Dissertação como o de “atuação da Defensoria Pública nos Sistemas de Justiça Nacional, Interamericano e Internacional de Direitos Humanos, um campo fundamental para abrir ensejo à plena atenção aos interesses dos vulnerabilizados no espaço de litigação estratégica.
Na minha resposta lembro que num tempo de globalização e de internacionalização das lutas sociais e dos direitos humanos, não é apenas uma exigência de natureza interlocutora ou de intercâmbio, para trocas de conhecimentos e de experiências, é um requisito de desempenho porque a salvaguarda dos direitos segue o princípio do jus cogens e caminha para a consolidação do reconhecimento da jurisdição universal relativamente a direitos da humanidade. A DPU precisa se instalar no âmbito dessa jurisdição porque nesse campo é inevitável prosseguir a defesa de direitos nas cortes internacionais. Por isso, o desafio político de estar sempre reavaliando a sua função social e política e ao mesmo tempo atualizando criticamente os pressupostos de sua cultura epistemológica de formação jurídica, algo que não se esgota com a diplomação acadêmico-universitária.
Retomei esse tema em duas oportunidades recentes de diálogo com a Instituição. Primeiro, em curso de formação para os defensores recém-nomeados (XXIV Curso Oficial de Preparação à Carreira de Defensora e Defensor Público Federal, em Brasília, modos de pensar o Direito, inspirado em teorias de sociedade e teorias de justiça para abrir o jurídico para dimensões ampliadas e complexas que o social coloca de maneira instituinte desafiando o agir constituído. Então eu discorria sob a perspectiva formulada por O Direito Achado na Rua, sua concepção e prática.
Depois, em programa de formação da Escola Superior da Defensoria Pública do Estado da Bahia, participar do “Curso Sobre o Sistema Interamericano de Direitos Humanos”, desenvolvendo, exatamente, o módulo “História e internacionalização dos direitos humanos, pela perspectiva da teoria crítica dos direitos humanos”. Nesse passo, praticamente, o capítulo II, de meu livro em co-autoria com Antonio Escrivão Filho (Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019), voltado para o tema Um Panorama do Cenário Internacional dos Direitos Humanos, porém recortado em duas partes, a primeira tratando do Direito Internacional dos Direitos Humanos e a segunda, Sobre a exigibilidade e justiciabilidade, e o ambiente do Sistema Interamericano de Direitos Humanos.
Com a Autora da Dissertação tenho que sem a projeção para o plano de litigação estratégica, em defesa dos direitos humanos dos vulnerabilizados, não se completa o exercício pleno das atribuições da Defensoria Pública.
Em artigo de opinião – Crime de Desacato Viola Direitos Fundamentais e a Liberdade de Expressão – Jornal Brasil Popular em 11 de março de 2022 (https://www.brasilpopular.com/crime-de-desacato-viola-direitos-fundamentais-e-a-liberdade-de-expressao/ ), trouxe a debate a notícia de que a CIDH – Comissão Interamericana de Direitos Humanos, acolhera denúncia da DPU – Defensoria Pública da União por considerar que crime de desacato viola direitos fundamentais e a liberdade de expressão. Para o órgão internacional, que vai debater o assunto, condenação de homem que insultou PF pode violar a liberdade de expressão.
A notícia esclarecia que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) havia admitido petição da Defensoria Pública da União (DPU) contra o Estado brasileiro conforme relatório publicado dia 21/2. Nesse relatório consta que a petição alegou violações à liberdade de expressão de um homem condenado pelo crime de desacato por chamar um agente da Polícia Federal de “vagabundo”.
Conforme relato da DPU, o cidadão foi denunciado pelo Ministério Público Federal (MPF) e julgado pela Vara Criminal de Florianópolis, cujo magistrado o condenou com base em depoimentos de outros policiais federais. A suposta vítima recorreu à Turma Recursal e teve a sentença mantida. Seu pedido ante a Turma Nacional de Uniformização (TNU) foi inadmitido, e os embargos de declaração, rejeitados.
A Defensoria Pública sustentou o esgotamento dos recursos internos, vez que uma inadmissão proferida pela Presidência da TNU é irrecorrível, enquanto um recurso extraordinário no Supremo Tribunal Federal (STF) não seria efetivo, pois a Corte já havia se pronunciado sobre outros casos de desacato, reforçando a condenação dos réus. Completou afirmando que a revisão criminal não seria um recurso efetivo e que a condenação não poderia ser discutida na esfera civil.
Para além do aspecto constitutivo do tema em debate, que afronta um princípio nuclear da carta americana de direitos, relativo à salvaguarda do processo democrático, o tema expõe um grau acentuado do modo de atuação do judiciário brasileiro que tende a esvaziar as promessas constitucionais e legislativas de realização emancipatória do jurídico. Do piso (instâncias ordinárias), ao teto (o próprio Supremo Tribunal Federal).
Com efeito, na contra-mão de um continuado adensamento que a OEA (Organização dos Estados Americanos) por seus instrumentos de monitoramento dos direitos fundamentais derivados da Convenção Americana, vem estabelecendo no sentido de que legislações nacionais e decisões jurisprudenciais em temas como desacato e difamação penal (Relatorias Especiais 1998, 2000, 2002, 2004), para afirmar “a necessidade de derrogar esta normativa a efeitos de ajustar a legislação interna aos padrões consagrados pelo sistema interamericano quanto ao respeito ao exercício da liberdade de expressão. É intenção da Relatoria continuar este acompanhamento a cada dois anos, já que é um tempo prudente para permitir, aos distintos Estados membros, levar adiante os processos legislativos necessários para as derrogações ou adaptações legislativas recomendas”; enquanto, “lamentavelmente, a Relatoria considera que não houve avanços significativos desde a publicação do último relatório sobre a questão: são muito poucos os países que derrogaram de sua legislação as leis de desacato” (https://www.oas.org/pt/cidh/expressao/temas/desacato.asp).
Admitida a petição a DPU adverte sobre o impacto que resultará desse debate quando o próprio STF em julgamento precedente, de junho de 2020, na ação de ADPF 496/2015, proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), fixou a tese de constitucionalidade e convencionalidade do crime de desacato.
Parte da ementa do acórdão ((ADPF 496, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 22/06/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-235 DIVULG 23-09-2020 PUBLIC 24-09-2020), sustenta, a meu ver impropriamente, que “de acordo com a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos e do Supremo Tribunal Federal, a liberdade de expressão não é um direito absoluto e, em casos de grave abuso, faz-se legítima a utilização do direito penal para a proteção de outros interesses e direitos relevantes”.
Ressalvem-se os votos vencidos dos ministros Luiz Edson Fachin e Rosa Weber. Para Fachin, seja por ofender os tratados internacionais, seja por ofender diretamente o próprio texto constitucional, o crime é inconstitucional. Para a ministra Rosa Weber na mesma linha, no caso da tipificação do crime de desacato, sobressai o particular interesse social em que seja assegurada a livre opinião relativamente ao exercício de função de interesse público. Segundo ela, em consonância com a diretriz contínua da OEA, “uma sociedade em que a manifestação do pensamento está condicionada à autocontenção, por serem os cidadãos obrigados a avaliar o risco de sofrerem represália antes de cada manifestação de cunho crítico que pretendam emitir, não é uma sociedade livre, e sim sujeita a modalidade silenciosa de censura do pensamento”.
Aliás, os Relatórios de monitoramento têm sido enfáticos (http://www.oas.org/es/cidh/expresion/docs/informes/desacato/Informe%20Anual%20Desacato%20y%20difamacion%202004.pdf), no sentido da incompatibilidade das leis de desacato com o artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos. O problema reside, se vê, lembrava o ex-Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, Antonio Augusto Cançado Trindade, em vencer o obstáculo do positivismo que ainda impede, no país, internalizar no direito nacional, as decisões cogentes das Cortes Internacionais de Direitos Humanos sobre Tradados e Convenções relativas a Direitos Humanos.
De todos esses aspectos tratou a Dissertação, conduzido para a conclusão do que bem responde a sua pergunta de pesquisa: “a atuação das Defensorias Públicas estaduais e do GAETS está sendo eficiente para a construção de jurisprudência favorável aos direitos humanos de grupos vulneráveis no STF e STJ. Ademais, buscou analisar a sistemática de trabalho do grupo e indicar aspectos a serem aprimorados para o melhor desenvolvimento de suas funções. As hipóteses levantadas para a investigação foram em sua maioria confirmadas. Com efeito, a litigância estratégica das Defensorias Públicas estaduais e a atividade de advocacy dos(as) defensores(as) no STF e STJ trouxeram importantes resultados na evolução da jurisprudência em favor dos invisibilizados”.
A Autora teria grande proveito para a continuidade de seus estudos, a partir do criterioso levantamento de dados que realizou, no diálogo com estudos muito avançados que tomaram a promessa institucional de implantar serviços de atenção aos vulnerabilizados, para potencializar acesso à justiça.
Faço referência especial à tese de Doutoramento em Coimbra, de Élida de Oliveira Lauris dos Santos – Acesso para quem precisa, justiça para quem luta, direito para quem conhece : dinâmicas de colonialidade e narra(alterna-)tivas do acesso à justiça no Brasil e em Portugal. Coimbra : [s.n.], 2013, Orientador Boaventura de Sousa Santos. Participei como arguidor de sua banca e fiquei muito bem impressionado com a densidade de sua análise, que tem como base empírica no estudo comparado, o sistema português de listas de advogados para a assistência jurídica e o modelo brasileiro de Defensoria Pública, no caso, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo.
Com seu estudo, resume Élida, “convoca-se tanto o realismo da carência, quanto o potencial da promessa de acesso à justiça. Na conjugação dessas duas extremidades, reinvidica-se uma reflexão crítica quer sobre as condições de desenvolvimento dos mecanismos de acesso, quer sobre as direções apontadas e seguidas pelos estudos sociojurídicos. Com suporte em métodos de análise qualitativa e ancorados numa abordagem culturalista do direito, os resultados do estudo apuram uma constelação de significados, interpretações e experiências subjetivas inerente aos processos societais de criação, aplicação e uso do direito. As condições de cumplicidade entre a proposta de igualdade jurídica formal e as relações de dominação consagradas pelo sistema jurídico são desveladas a par do conhecimento ilustrativo do funcionamento dos serviços jurídicos de assistência”.
Finalizando, folgo em que a Autora da Dissertação, em sua conclusão, tenha firmado a condição de uma atuação que se faz em favor dos invizibilizados, assim tornados pelas políticas públicas e por uma governança anti-povo útil a um sistema de produção de ranço colonizador ao extremo da alienação da dignidade – portanto, quem mais precisa de acesso e quem luta por justiça. Assim, a Autora já não usa o vocábulo invisíveis. Pergunto: Não pode, por tudo que sugeri, substituir a expressão vulneráveis por vulnerabilizados(as)?
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.5
Diálogos entre Justiça Comunitária e Justiça Restaurativa: um estudo a partir da experiência do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Anne Carolline Rodrigues da Silva Brito. Diálogos entre Justiça Comunitária e Justiça Restaurativa: um estudo a partir da experiência do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Dissertação de Mestrado. Brasília: Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, 2022, 133 f.
A Dissertação de Anne Brito, defendida perante a Banca Examinadora constituída pela Professora Talita Tatiana Dias Rampin – FD/UnB,Orientadora e pelos membros Gabriela Maia Rebouças – PPGDH/Unit e Antonio Sergio Escrivão Filho – FD/UnB, comigo também presente como membro arguidor, me impressiona por diferentes razões.
Primeiro, o esmero do trabalho, um valioso estudo de caso, apresentado pela descrição e avaliação de duas experiências, trazidas para análise com um milimétrico cuidado comparativo. Os elementos de aproximação dos casos são absolutamente equivalentes em seus termos, de modo que a sua descrição guarda proporção e equivalência.
O Resumo da Dissertação revela esse cuidado:
Esta pesquisa estuda como os programas Justiça Comunitária e Justiça Restaurativa do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) têm sido desenvolvidos dentro da lógica judicial e institucional na qual são gestados. A partir da empiria, identifica onde se localizam dentro da estrutura formal de justiça, quais movimentos desenvolvem, quais as práticas restaurativas e comunitárias adotadas pelos mesmos, e como suas práxis se aproximam e se distanciam, compreendendo as suas limitações e potencialidades dentro desse sistema. Para tanto, realiza um estudo de caso acerca das práticas restaurativas e comunitárias dos referidos programas do TJDFT, e utiliza as técnicas de revisão de literatura sobre justiça restaurativa e justiça comunitária – a fim de apresentar um panorama de como esses conceitos têm sido mobilizados –, de análise de conteúdo de documentos e de normativos relacionados aos programas analisados – com o intuito de conhecer o funcionamento dos programas, de consultas baseadas na Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/2011) ao Ministério da Justiça e da Segurança Pública e aos supracitados programas do TJDFT, e de conversas semiestruturadas inspiradas em entrevistas com informantes desidentificados desses órgãos – para contextualizar e complementar os dados coletados através da análise documental. Enfim, assimila como essas experiências dialogam entre si, mas assumem contornos próprios mediante suas vivências particulares, movimentando-se em direções e lógicas diversas conforme os sujeitos que as sensibilizem e a localização em que se posicionem dentro do aparato judicial.
Curiosamente, voltadas para, per se, o exame dos dois modelos designados na pesquisa de Anne, ainda que por ela não referidos, certamente porque não lançados ao tempo do desenvolvimento de seu estudo, acompanhei na UnB, localizadamente no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania (CEAM), dois trabalhos focados em cada uma das duas experiências, bem poderiam ter um efeito de de parametrização.
A Dissertação de Calimério Gonçalves Junior, com a Orientação da Professora Sinara Zardo, tem como título Agentes comunitários de justiça e cidadania: trajetórias e práxis de Direitos Humanos. 2021. 169 f., il. Dissertação (Mestrado em Direitos Humanos e Cidadania) — Universidade de Brasília, Brasília, 2021. Calimério é servidor do TJDFT, atuando no sistema de Justiça Comunitária. O objetivo da Dissertação tratando-se de um programa de direitos humanos, volta-se, “a partir de um contexto de violações de direitos humanos em realidades periféricas e da importância da educação em direitos humanos nesse contexto, o presente trabalho teve como objetivo geral investigar como se organiza o Programa Justiça Comunitária do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios e identificar a compreensão de direitos humanos dos agentes comunitários que atuam na cidade de Ceilândia – Distrito Federal (DF)”.
O segundo trabalho, também Dissertação defendida no mesmo programa (PPGDH), por Lilia Simone Rodrigues da Costa Vieira, com a Orientação da Professora Nair Heloisa Bicalho de Sousa. Lília é Juíza de Direito e sua Dissertação tem como título – Pedagogia da Restauração: aproximações entre a pedagogia da libertação de Paulo Freire e a Justiça Restaurativa a partir da experiência do Tribunal de Justiça do Distrito Federal. 2021. 209 f., il. Dissertação (Mestrado em Direitos Humanos e Cidadania) — Universidade de Brasília, Brasília, 2021, com o objetivo de “analisar as aproximações entre a proposta pedagógica de Paulo Freire para libertação dos/as oprimidos/as e a Justiça Restaurativa, tomando como parâmetro a sua aplicação no âmbito do Tribunal de Justiça do Distrito Federal”. A pesquisa, nesse caso, com apoio na Criminologia, concentrou-se na análise da “evolução do tratamento do crime e as respostas que a ele tem sido oferecidas ao longo do tempo, busca entender quais os reais objetivos da pena e quais os fundamentos para busca por outros meios de resposta à prática delitiva. Também a partir da Criminologia Crítica, intenta estabelecer os contornos teóricos da Justiça Restaurativa, seus valores, princípios e regulamentação, para posterior análise em confronto com a Pedagogia da Libertação”.
A novidade e distinção que o trabalho de Anne proporciona, em sua singularidade, é que, tal como ela propõe, “especificamente esses dois modelos nominados restaurativos e comunitários de justiça chamam a atenção da autora por proporem, dentro de uma conjuntura predominantemente estatal e judicial, uma maior abertura à comunidade, além de demandarem, ao menos em tese, por mais protagonismo social e pela pluralidade sobre o que pode ser o direito. Inclusive, em algumas de suas vertentes – sobretudo quanto à justiça comunitária, guarnecem expectativas de redesenhar essas instituições profusas de tecnicismos e positivismo jurídico”.
Com efeito, já ao abrir a Introdução, a Autora cuida de distinguir, nas expressões “justiça comunitária” e a “justiça restaurativa”, uma redução de “conceitos amplos, dinâmicos e em construção, que guardam relação com movimentos de formas consensuais de administração de conflitos, num espectro mais alargado do acesso à justiça”. Valendo-se de enunciado que eu próprio sugiro, em texto que ela evoca, previne que essas expressões “não se encerram nessa única área de atuação […] são conceitos em disputa, que têm estampado diversas práticas e experiências no país, sobretudo no âmbito do Poder Judiciário”. Aliás, em homenagem ao criterioso e avançado trabalho Gabriela Maia Rebouças, integrante da Banca, et pour cause, esse tem sido o eixo de uma linha de pensamento, com o qual tenho contribuído, presente entre outros estudos em REBOUÇAS, Gabriela Maia; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; CARVALHO NETO, Ernani Rodrigues (Orgs). Experiências Compartilhadas de Acesso à Justiça: Reflexões Teóricas e Práticas. Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo (e-book Editora), 2016; REBOUÇAS, Gabriela Maia; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; ESTEVES Teixeira (Orgs). Políticas Públicas de Acesso à Justiça: Transições e Desafios. Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo (e-book Editora), 2017; incluindo reflexões em tudo próximas ao tema da Dissertação, da ilustre Orientadora Professora Talita Rampin e do Professor Antonio Escrivão, entre outros autores e autoras vinculados ao Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua.
Ainda guardando essa perspectiva emancipatória para pensar estratégias de alargamento concepções e práticas de acesso à Justiça, os textos de Gláucia Foley – Justiça Comunitária. Justiça e Democracia Muito Além dos Tribunais; de Gabriela Maia Rebouças – Acesso à Justiça e Neoliberalismo: o Direito a se Achar na Rua, publicados em SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al. (Orgs). Série O Direito Achado na Rua vol. 10: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade. Brasília: Editora UnB/Editora OAB Nacional, 2021.
Às fls. 20 ela traça seu programa de estudo:
Organizamos a pesquisa em três momentos centrais, os quais se substancializam sob a forma dos seguintes capítulos. Em linhas gerais, a primeira parte é dedicada a apresentar o tema da Justiça Comunitária em dois sentidos elementares: enquanto uma concepção em movimento e em construção, evocando algumas elaborações conceituais para tanto, e principalmente, como força motriz do Programa Justiça Comunitária do TJDFT, descrevendo seu funcionamento como um todo, suas atividades, os atores que a integram e suas vertentes principais. Para mais, um espaço do capítulo é destinado a tecer algumas breves elucidações sobre a proposta nacional de Justiça Comunitária do Ministério da Justiça.
No segundo capítulo, realizamos um movimento similar com o tema da Justiça Restaurativa. Inicialmente, abordamos brevemente algumas tentativas conceituais e o contexto em que a discussão da temática está inserida, para em um segundo momento desenvolvê-la enquanto experiência do Programa Justiça Restaurativa do TJDFT. Neste momento medular, apresentamos sua atuação geral, suas práticas, seu histórico e diversos aspectos concernentes ao seu desenvolvimento.
O desígnio dessas duas primeiras seções do texto é, precipuamente, de retratar as vivências dos programas Justiça Comunitária e Justiça Restaurativa dentro do TJDFT, de forma que possamos identificar práticas restaurativas e comunitárias, espaços, atores, conceitos e significados manuseados por cada um dos programas em sua relação institucional. A partir desses esforços descritivos, nos encaminhamos para o terceiro e último capítulo, no qual focamos em assimilar como e em quais aspectos os dois programas se relacionam entre si e com o Poder Judiciário.
Por meio deste percurso, pretendemos sinalizar onde essas práticas têm se localizado, se cruzado e se distanciado dentro da estrutura judicial. Não há a pretensão, contudo, de comparar qualitativamente esses dois programas, considerando que se tratam de percursos, abordagens e propostas diferentes; mas de perceber seus pontos de encontro e de distanciamento, suas potencialidades, limitações e relações com a conjuntura que os abarca.
Esse roteiro organizativo conduz a Autora ao desfecho de seu trabalho, assumindo ela, em suas Considerações Finais, que “todo esse trajeto da pesquisa nos fez perceber que os programas Justiça Comunitária e Justiça Restaurativa do TJDFT desenvolvem práticas similares – tais quais as mediações e os processos circulares no âmbito da administração de conflitos, e também atividades didáticas, no campo da educação para direitos –, porém, em sentidos diferentes. Como demonstramos no terceiro capítulo da pesquisa, o programa Justiça Restaurativa é inserido, dentro da estrutura do TJDFT, no contexto do sistema de justiça criminal e restrito aos casos judicializados, ao passo que o Programa Justiça Comunitária atende uma quantia ínfima de casos que envolvam essa área e é mais voltado para a atuação na comunidade”.
Muito bem descritas as duas experiências, elas carregam a virtualidade metodológica já enunciada por Engels, segundo a qual, “a descrição verdadeira do objeto é, simultaneamente, a sua explicação” (Contribucion al Problema de La Vivienda, Obras Escogidas de Marx y Engels, Tomo I, Editorial Fundamentos, Madrid, 1975).
Mas a Autora, recuperando a sua premissa centrada na tese de alargamento da noção de acesso à Justiça, não se deixa conformar só no descritivo. Para ela, “embora essas duas experiências integrem a mesma estrutura administrativa institucional, conformem-se como contra-hegemônicas e complementares em relação à predominância adjudicatória judicial, e informalmente mantenham diálogos entre si, suas práticas são conduzidas por direções distintas. Os agentes atuantes, o grau de formalidade e de normatização institucional, os tipos de casos e seus procedimentos de entrada nos programas revelaram uma atuação mais aberta à comunidade e orientada por uma lógica de coletividade por parte do PJC, e mais focada em demandas interpessoais e institucionalizadas pelo PJR”.
E por isso, o seu fecho: “Enfim, esses movimentos de convergência e divergência entre os dois programas e a instituição judicial à qual são vinculados despertaram algumas indagações, potencialidades e limitações acerca dessas relações, as quais foram sintetizadas principalmente no terceiro capítulo. Essas pontuações abarcam desde riscos à sustentabilidade dos programas até à extensão de problemáticas inerentes ao sistema formal de justiça. Contudo, tendo em vista que o aprofundamento em cada uma dessas questões demandaria a convocação de outros trabalhos para além desta dissertação, nos limitamos a apresentá-las e referenciá-las junto a alguns aportes teóricos, com o fim de instigar novas pesquisas acerca do tema”.
Muito me instiga essa disposição para novos e mais avançados estudos, principalmente porque entendo que a Autora traçou enunciados para esse projeto. E folgo que eu possa ter contribuído de algum modo para a abertura dos horizontes que ela parece vislumbrar. É o que percebo quando ela indica – fls. 119-120 – que “essa percepção nos revela que, embora existam diversas limitações em relação a ambos os programas – inclusive advindas da própria relação com o aparato judicial, como em relação à autonomia, sustentabilidade e impacto dessas iniciativas150, há também potencialidades e possibilidades de transformações – ainda que a nível local – a serem reconhecidas. Em um contexto judicializado no qual “cidadãos que têm consciência de seus direitos (…) intimidamse ante as autoridades judiciais que os esmagam com a linguagem esotérica, o racismo e o sexismo mais ou menos explícitos, a presença arrogante, os edifícios esmagadores, as labirínticas secretarias” (SOUSA JUNIOR, 2008, p. 08), são de grande relevância as iniciativas que consigam propagar maior sentimento de acesso, acolhimento e aproximação entre cidadãos e justiça”.
Trata-se de um retorno aquele plano da abertura (fls. 21) para o balizamento do tema conceitual necessário ao deslinde a questão, que a Autora prefigurou na abertura de seu trabalho, para aludir ao que ela adverte como “espectro mais amplo e geral do conceito de justiça comunitária, encontramos uma constância na atribuição de algumas características e terminologias à tal categoria, tais quais as qualificações como uma justiça democrática, participativa, plural, não neutra, intercultural, de caráter coletivo e que considera parâmetros culturais específicos de cada comunidade. Diversos desses debates envolvem o pluralismo jurídico – sobretudo relacionados às teorias de Wolkmer (2001), acompanhadas de críticas à justiça estatal e sua racionalidade”.
Numa boa leitura de Antonio Carlos Wolkmer, a Autora, entende com ele, o risco que essas práticas – justiça comunitária e justiça restaurativa – carregam de “se conformam no pluralismo de Estado, no sentido de que suas práticas se limitam a serem reconhecidas e impulsionadas institucionalmente, sem necessariamente romper por completo com lógicas liberais e individuais presentes em tais espaços, ou provocar relevantes mudanças estruturais. Contudo, ainda assim podem ser agentes de transformação em suas zonas de atuação, na medida em que introduzem e reconduzem práticas, atores, teorias e saberes”.
Fico contente, à luz de bons debates que travamos no período de sua formação, de poder ter-lhe sido útil. Afinal, diz ela, “como bem traduz José Geraldo de Sousa Junior, para ‘alargar’ o acesso democrático à justiça, é necessário ir além da institucionalização de métodos e ferramentas provenientes desse princípio, “é preciso também reorientá-los para estratégias de superação desses mesmos pressupostos. Principalmente pelo Poder Judiciário que tem se mostrado extremamente recalcitrante à abertura de espaços para a ampliação das condições democráticas de realização da justiça”.
Sousa Junior (2020) realiza, inclusive, algumas propostas para que se alargue esse acesso democrático à justiça: “Nesse sentido, algumas contradições precisam ser resolvidas. Primeiro, criar condições para inserir no modelo existente de administração da justiça, a ideia de participação popular que não está inscrita em sua estrutura; segundo, superar o obstáculo de uma demanda de participação popular não estatizada e policêntrica, num sistema de justiça que pressupõe uma administração unificada e centralizada; terceiro, fazer operar um protagonismo não subordinado institucional e profissionalmente, num sistema de justiça que atua com a predominância de escalões hierárquicos profissionais; quarto, aproximar a participação popular do cerne mesmo da salvaguarda institucional e profissional do sistema que é a determinação da pena e o exercício da coerção; quinto, considerar a participação popular como um exercício de cidadania, para além do âmbito liberal individualizado, para alcançar formas de participação coletiva assentes na comunidade real de interesses determinados segundo critérios intra e trans-subjetivos.”. SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Justiça Comunitária. Lido para você. Jornal Estado de Direito, 18 nov. 2020)”.
É importante que nesses estudos futuros Anne possa aproveitar propostas mais expandidas conforme a síntese que formulamos, em pesquisa desenvolvida sob os auspícios da antiga Secretaria de Reforma do Judiciário – Observar a Justiça: Pressupostos para a Criação de um Observatório da Justiça Brasileira – dentro do Projeto Pensando o Direito (nº 15/2009 – versão publicação). Fiz referência a esse relatório em (http://estadodedireito.com.br/observatorio-do-judiciario/), com hiperlink para seu inteiro teor, lembrando uma chave de interpretação para os achados da pesquisa quanto à questão do acesso à justiça, compreendida em dimensão “atualizada e modernizada para além do simplesmente funcional-burocrático-legal [ou seja]: “respeito às temporalidades democráticas”, “fortalecimento comunitário”, “educação em Direitos Humanos”, “uso dos meios de comunicação”, “conscientização e sensibilização” e, em síntese, “reconhecimento e acreditamento do protagonismo das experiências de mediação social realizadas fora das instâncias estatais”. Remete-se, para melhor conhecimento, ao texto do relatório publicado no volume indicado e também aqui, acima, especialmente, as ementas explicativas das categorias destacadas.
Assim que, conforme Anne Brito, “Essas adjetivações desdobram-se ainda em várias outras percepções e aspectos, como a caracterização da justiça comunitária enquanto um formato de administração da justiça que direciona o foco para as relações de uma comunidade, que considera múltiplos saberes, práticas e conhecimentos, e que problematiza a realidade social, cultural, política e jurídica. Por conseguinte, é relacionada à emergência de condições para a emancipação social, conformando um “paradigma de culturalidade, juridicidade e politização advindo de baixo, da periferia do sistema mundo, da América Latina, para seus próprios problemas herdados do processo colonial”.
O que me leva a uma nota designativa para ratificar concepções que derivem dessa perspectiva, que pode ser encontrada em Raquel Yrigoyen Fajardo, no sentido de apoiar povos tradicionais originários indígenas do Peru, e aos camponeses, principalmente das Rondas Campesinas titulares da construção político-jurídica de autonomia na gestão administrativa e de acesso à justiça, partir de seus territórios de produção e de existência.
Sobre isso cuidei em minha recensão sobre o livro Rondas Campesinas. Principios de Organización y Trabajo. Oscar Sanchez Ruiz. Chiclayo, Peru: Ediciones e Impressiones Frías/Grupo Cultural Wayrak/Colección Bicentenario, 2021 (http://estadodedireito.com.br/principios-de-organizacion-y-trabajo/), pondo em relevo a posição de Raquel Yrigoyen Fajardo: “desde a invasão, os colonizadores buscam anular, reduzir ou subordinar a autoridade indígena, para facilitar a expropriação de seus recursos e impor-lhes o seus valores. Não obstante isso, os sistemas jurídicos indígenas têm resistido e se recriado para enfrentar problemas contemporâneos. Desde há uma três décadas, o direito internacional e o constitucionalismo pluralista reconhecem os direitos dos povos indígenas a sua identidade, territórios, ao controle de suas instituições, formas de vida e a seus sistemas jurídicos, incluindo funções jurisdicionais. Isso tem permitido passar do paradigma do monismo jurídico ao do pluralismo jurídico igualitário”. (sobre esses fundamentos cf. YRIGOYEN FAJARDO, Raquel. Qué es el Pluralismo Jurídico Igualitário?;. Revista Alertanet 2017 Em Litígio Estratégico y Formatión em Derechos Indígenas. IIDS – Instituto Internacional Derecho y Sociedad. Lima: IIDS/IILS, año 2, nº 1. 140, marzo 2017, p. 10-17).
E é um alento constatar, o trânsito político-epistemológico nessa, diz Boaventura de Sousa Santos, troca desigual de juridicidade, quando os sistemas (oficial e não oficial, estatal e comunitário, constituinte e instituinte), intercambiam dimensões de direitos que se co-implicam.
A partir da disciplina O Direito Achado na Rua desenvolvida em programa interinstitucional de pós-graduação (Mestrado) entre a UnB/Faculdade de Direito e a Escola de Magistratura do Tribunal de Justiça do Amapá, foi eloquente a abertura dos alunos-magistrados para outros modos de pensar o jurídico com inspiração em teorias de sociedade e de justiça e sob a perspectiva do movimento O Direito Achado na Rua, como sugere o constitucionalista J. J. Gomes Canotilho. Isso se deu com a criação de uma coluna semanal no Jornal Gazeta do Amapá: O Direito Achado nas Ruas, nos Campos, nos Rios e nas Florestas Amapaenses, espaço para relato e reflexões sobre experiências da jurisdição que reconhece a equivalência de direitos em registro de pluralismo jurídico.
Observe-se, numa das primeiras colunas, assinada por Esclepíades de Oliveira Neto, Professor da Escola Judicial do Amapá (EJAP); Graduado pela UFMA; Mestrando da UnB; Juiz de Direito do TJAP, essa disponibilidade epistemológico-política:
Essa proposta, associada ao conceito de democracia participativa enquanto um direito de luta e resistência através da repolitização da legitimidade – como diria Paulo Bonavides –, encontra em seu trafegar a ideia de “novos sujeitos coletivos de direitos”, ou seja, movimentos sociais consolidados que, reivindicando um novo papel conferido por meio da legitimidade democrático-participativa constitucional atual – o poder emana do povo e pode ser por ele exercido diretamente –, afirmam-se de modo instituinte como protagonistas no processo de reconhecimento de direitos novos e ampliação da mediação democrático-participativas, levando a um registro expansivo de um rol sem limites de novas categorias jurídicas, como assinala José Geraldo de Sousa Junior em seu artigo “O Direito Achado na Rua: concepção e prática” (In: Introdução crítica ao direito. 4. ed. Brasília: Editora UnB, 1993; Série O Direito Achado na Rua, v. 1).
No curso destas correntezas filosófico-sociológico-jurídicas, não é difícil encontrar pontos de ancoragem para o Programa de Justiça Itinerante Fluvial do TJAP que, lançando os olhos para a população ribeirinha, desde 1996 busca assegurar o acesso à justiça e à cidadania a milhares de amapaenses, especialmente os moradores do Arquipélago do Bailique, localizado na foz do rio Amazonas, distante aproximadamente 170 quilômetros de Macapá, capital do Estado do Amapá.
A conclusão do artigo, na linha do que expõe a Autora da Dissertação, caminha na direção de um encontro entre juridicidades que se abrem a um trânsito recíproco de co-implicação:
O modelo mental do Programa de Justiça Itinerante Fluvial do TJAP preconiza uma construção jurídica que se identifique como síntese entre o aparato formal da Justiça tradicional e um projeto comunitário-participativo que visa priorizar os anseios sociais da comunidade amapaense. Ou seja, uma das características mais importantes da Justiça Itinerante como elemento conceitual no âmbito do TJAP é a consciência de que tal programa é um produto da atuação do Poder Judiciário (e de diversos parceiros) em sintonia com a participação popular comunitária dos moradores locais.
Nesse contexto, a comunidade é vista como agente de transformação do modelo jurídico tradicional, capaz de propor uma pluralidade de formas de soluções legítimas de conflitos. Os sujeitos coletivos presentes, atuantes e com forte posição de liderança têm potencial para, a partir da prática de autogestão de direitos, suplementar ou suprir a atuação do ordenamento formal.
Daí a necessidade de aprofundar o empoderamento da comunidade ribeirinha, com a identificação dos grupos sociais, lideranças legítimas comunitárias, representantes naturais de coletividades, que atuam no âmbito dos conflitos que surgem no Arquipélago do Bailique, identificando suas capacidades, atuação e posicionamento diante das questões jurídicas sob uma perspectiva dialética e dialogal que sintetiza os modelos formais e alternativos de solução de conflitos.
Penso que é nessa mesma direção que se propõe a Autora fazer incidir seus estudos futuros, mais avançados, conforme os pressupostos indicados de modo muito consistente, em sua Dissertação.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
Máscaras no Varal: a revolução é preta, feminista e imparável
Três Gabrielas. Três mulheres incríveis. Minhas amigas de longa data. Amizades descobertas por trás de suas máscaras de mulheres empoderadas, mas que não ocultam a forte intelectualidade e profissionalismo, que imprimem à ciência e à arte. Duas juristas, a Delgado e a Jardon, acadêmicas altamente tituladas em seus mestrados e doutorados; uma musicista, flautista virtuose, na ascendência, na descendência e na colateralidade, um encantamento na cena brasiliense musical (também uma campeã no nado em piscina, no Paranoá e no Oceano Atlântico).
Mulheres sentipensantes. Na linha da reflexão, lembra Orlando Fals Borda (sociólogo colombiano), com engajamento; mulheres que sabem (conhecimento é sabor), mulheres com qualidade, para se afirmarem, aludindo a Robert Musil, em sua disposição a cravo e canela, que se expressam como atitude de qualidade, própria de quem, diferente do que é sem qualidade (Robert Musil, O Homem sem Qualidades), se recusam a uma “existência [que não seja] feita, naturalmente, de ações, não de discursos de que assimilamos o ponto de vista, de opiniões e de contra-opiniões correspondentes numa palavra da acumulação impessoal de tudo quanto sabemos ou ouvimos”.
Aqui neste espaço da Coluna Lido para Você, em geral focalizando sugestões para pesquisadores e editores, com a leitura de livros, teses, dissertações, monografias, relatórios, quase sempre em formato acadêmico, mais de uma vez fixei a atenção em leituras que não escondem o pensamento crítico e reflexivo, também mediado pela aproximação interpretativa e em última análise, epistemológica, na combinação de diferentes e integráveis racionalidades.
Como sustenta Eduardo Lourenço (A Mitologia da Saudade, Companhia das Letras), a literatura não é um delírio, mas a apropriação do real por meio de outra linguagem. Ou, como mostra Roberto Lyra Filho (aliás, Noel Delamare, seu pseudônimo poético), o reflexionar humano é uma combinação de atitudes que se inter-relacionam de forma integrada ou com ênfases, o explicar, causal da ciência; o divertir-se, do lúdico; o intuir, do artista; o fundamentar, do filósofo; o revelar, da experiência mística (Filosofia Geral e Filosofia Jurídica em Perspectiva Dialética, in Palácios, Carlos, Cristianismo e História, Edições Loyola).
Também aqui neste espaço trouxe ao auditório outras referências de expressões literárias do feminino multiverso: A Rua de Todo Mundo. Carolina Nogueira. Brasília: Longe/Edição da Autora. 2 edição, 2015; A História de Você. Carolina Nogueira. Brasília: Longe/Edição da Autora, 2015. Carolina Nogueira conta e também ilustra as histórias. Certamente ela está falando de seu filho, entre o Antes e o Para Sempre. Também ela vai falar e ilustrar A Rua de Todo Mundo, “livro que nasceu da generosa colaboração dos meus amigos do mundo todo”, numa história “da maior rua do mundo, a mais legal de todas. A rua de todo mundo”. Uma rua na qual “os vizinhos são ao mesmo tempo diferentes e bem parecidos”. Eu cheguei a esses livros “infantis” de Carolina Nogueira, da forma como em geral se chega a essas histórias escritas para crianças, mas que nos alcançam de modo inesperado (http://estadodedireito.com.br/a-rua-de-todo-mundo/).
Com a mesma disposição, em Farol, Ancoradouro, Oásis e Sal. Vozes Femininas na Literatura. Organização Bel Parolim. Bauru-SP: Editora Mireveja, 2021; Fazia Calor e Usávamos Máscaras. Volume II. Lara Ovídio (Organização), Marília Panitz (Prefácio). Bragança Paulista: Hecatombe, 2021 e Rabeca Conquista a Orquestra. Luciana Lorens Braga. São Paulo: Biruta, 2009, de novo vozes femininas, simultaneamente profissionais e seiva transformadora do mundo, Ísis, Erika e Luciana Lorens Braga, assim como as autoras trazidas aqui neste Lido para Você, todas plurais e multidimensionais, “brincam com as palavras”, como diz Luciana, psiquiatra e psicanalista, doutora (Unifesp) nesse campo, mas apostando “nas próprias loucuras como forma de ser feliz e escrever [que] é uma delas” (http://estadodedireito.com.br/29288-2/).
De cuidado, de amizade e de como ser feliz na forma de estória infantil é como se expressa também minha querida colega de universidade (UnB) e de atenção ao que salvaguarda a dignidade do humano, Gabriela Delgado. Fundamento inarredável de todos os muitos e referenciados trabalhos jurídicos que ela publica. Em sua estreia (ao que me consta) nesse campo do imaginário infantil, amplificado pelas magnificas ilustrações de sua parceira na obra Rosângela Grafeti, é de acolher as pessoas com delicadeza, cuidado, respeito e amizade para ser potente. Assim como seus personagens: “O tempo passou. Chico e Bella (Francisco e Isabela são filhos crianças da Autora) continuavam espalhando alegria e, a cada dia, um novo cuidado. A estrelinha se deixou transformar por aquela sincera amizade. Preenchida pela graça da infância, [e] recuperou sua cor, ganhando força e luz”.
Na edição ano 2, volume 10, de Subtextos, Revista Digital Especializada em Contos, encontro entre textos e autores e autoras: Corpo Mole, Jamyle Dionísio; Dali pra frente, Peterson Nogueira; Aspirações, Rodrigo Domit; Inventário, Benjamim Franco; Para onde vamos?, George Amaral; Ivanzinho, Davi Bernardo; Menino no ônibus, Guilherme Balarin; Voltas, Caroline Rodrigues; Pororoca, Aura Grube; Pombas Palace, Noah Mancini; e Putão, Putinho, Plutão de Gabriela Jardon.
Que boa surpresa re-encontrar minha aguda orientanda autora de uma dissertação primorosa (conferir meu Lido para Você sobre seu trabalho: http://estadodedireito.com.br/o-direito-de-escuta-das-partes-processuais/). Gabriela está em programa de doutoramento em Coimbra, no Centro de Estudos Sociais, sob a direção de meu dileto amigo Boaventura de Sousa Santos. Enquanto espero sua carta(s) de viagem para o Blog Diálogos Lyrianos (www.odireitoachadonarua.blogspot.com), constato que ela segue refinando sua habilidade de cronista. Volta e meia o facebook me exibe seus arranjos nesse fundamento.
E agora, encontro Gabriela Jardon em Subtextos. Claro que para mim, não houve surpresa. A experiência de orientação descortinara esse talento e seu estilo, o que levara a exibi-lo, bem antes, em seu estrito sentido literário ao ler trabalho de crônica da Autora. Assim, nesta Coluna Lido para Você – http://estadodedireito.com.br/retratofalado/ – quando trouxe para os leitores a obra Retratofalado. Ensaios em Estado de Imagem. Textos Danielle Martins, Gabriela Jardon, Mariana Carvalho. Fotografias Wanessa Montoril. Brasília: Edição das Autoras/Athalai Gráfica e Editora, 2019. Aqui reencontro na juíza a contista refinada, que enfabula um narrador-personagem no texto Buenos Aires, assinado por GJ: “(Ou pensei que entendi. Ou fingi que entendi. Ou queria tanto que tivesse entendido que de fato entendi.)”.
Com Gabriela Jardon – GJ, já não deveria haver surpresa mas mesmo assim ela surpreende. Eu já dissera que por trás ou por dentro da Juíza togada, ardia a quentura de um vulcão prestes lançar larvas incandescentes. Antes de acolhê-la como colega pesquisadora nos grupos de pesquisa da UnB (Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania), já tinha divisado as frestas de uma vivacidade literária, na leitura de sua Coluna Enquanto Isso na Sala de Justiça, publicada no Jornal Metrópoles. Ali, na crônica Reflexões sobre uma inspeção judicial: “A lei é morta, o juiz é vivo”, ela se indaga: “A cruzada judicial contra a corrupção vem sendo feita por um juiz vivo? Será que as ruas, o povo, o passado, a história vêm sendo devidamente inspecionados tanto por este juiz quanto pelos que o criticam? A decisão do HC foi uma vitória de juízes vivos sobre uma lei morta? Ou ali, ao contrário, na intenção de se vivificar uma lei, a realidade foi apagada, ninguém se lembrando de “inspecionar” o que de fato ocorreu travestido de processo?” (http://estadodedireito.com.br/retratofalado/).
Em Putão, Putinho, Plutão, a escuta profunda permanece sintonizada e a juíza, tal qual o magistrado de Tolstói (A Morte de Ivan Ilitch) vai discernindo o fio tênue entre vida e morte; entre estar na zona do ser e a zona do não-ser (F. Fanon): mesmo que a identidade se forje na condenação negadora de si mesmo, confessando-se autor de crime que não cometeu: “O ziguezague na sua cabeça o jogava num abismo e só de uma coisa mantinha certeza: nunca foi de ter medo de altura; iria cair em pé. “Terminar com isso de uma vez. Sou homem de atitude, não de conversa”, definiu-se pra si mesmo. “Fui eu, sim, senhor juiz. Eu, Plutão.”.
Recebi de Gabriela Tunes dois livros. Um deles Contos de Quarentena (Organizador Léo Bueno. São Paulo: Terra Redonda, 2020) uma coletânea, na qual, com o último texto, página 253, ela menciona A quarentena reversa. Um efeito peculiar de toda quarentena.
No distanciamento social, que impõe um necessário recolhimento, os que não se rendem ao imobilismo depressivo, mas que sabem exercitar suas angústias, ao invés de a elas sucumbir, disse Boaventura de Sousa Santos, há algum tempo, acabam construindo no isolamento um campo fecundo para a criatividade e para a reflexão em profundidade. Na quarentena Boaventura escreveu muito. Entre esses escritos A Cruel Pedagogia do Vírus. Coimbra: Edições Almedina, 2020 (http://estadodedireito.com.br/a-cruel-pedagogia-do-virus/) e O Futuro Começa Agora. Da pandemia à utopia. São Paulo: Boitempo, 2021).
Diz-se que William Shakespeare escreveu o Rei Lear, Macbeth e Antônio e Cleópatra, em quarentena, ou pelos menos para vencer as dificuldades da ocasião, ao tempo da peste bubônica que se alastrou em Londres, por volta dos 1606 quando, em conformidade com as posturas os teatros foram fechados, incluindo o The King’s Men, do qual era ator e acionista.
Outro dramaturgo, seu contemporâneo, Thomas Nashe, também durante a febre bubônica que atingiu Londres em 1592, retirou-se para o interior da Inglaterra para evitar infecções. Data desse período a peça Summers’ Last Will and Testament, na qual expõe suas experiências durante a pandemia.
Nessa mesma época, um pouco mais à frente, em 1665, Isaac Newton, também em quarentena retirado de Cambridge e confinado na propriedade da família em Woolsthorpe Manor, teria, nessa ocasião, esboçado a Teoria da Gravidade. Nesse período, um quarto da população de Londres morreu por causa da doença.
Antes deles, o escritor e poeta florentino Giovanni Boccaccio foi pessoalmente afetado pela peste bubônica. Quando atingiu Florença em 1348, seu pai e madrasta sucumbiram à doença. Boccaccio sobreviveu ao surto fugindo da cidade e se refugiando na zona rural da Toscana. O Decamerão conta as estórias de amigos que vivenciaram a quarentena durante a peste.
Outro artista, Edvard Munch, pintor do célebre quadro O Grito, não só testemunhou, mas sofreu a pandemia da gripe espanhola, ao contrair a doença no início de 1919, na Noruega. O seu autorretrato figura-o com as feições ainda abatidas, à frente do leito de doente.
Ninguém atravessa uma condição tão avassaladora e permanece insensível ao que ela interpela, no que somos e no que vivenciamos, mesmo após o amainar da condição tormentosa. Não será extravagante supor que a voz de Próspero, em A Tempestade, (Ato IV), de Shakespeare, não carregue esse sentido de uma reflexão sobre a vida humana, tanto quanto sobre os escombros de um mundo em necessária transformação. Algo que não escapou à observação de Marx e sua aplicação depois, no manifesto para um mundo em transformação.
Aqui está a fala de Próspero, na tradução de Bárbara Heliodora (Nova Aguilar, 2006), com grifos meus, em negrito e em itálico:
“Próspero [dirigindo-se a Ferdinando] – Você parece, meu filho, consternado, como se estivesse preso de algum temor. Anime-se, senhor. Nossa diversão chegou ao fim. Esses nossos atores, como lhe antecipei, eram todos espíritos e dissolveram-se no ar, em pleno ar, e, tal qual a construção infundada dessa visão, as torres, cujos topos deixam-se cobrir pelas nuvens, e os palácios, maravilhosos, e os templos, solenes, e o próprio Globo, grandioso, e também todos os que nele aqui estão e todos os que o receberem por herança se esvanecerão, nada deixará para trás um sinal, um vestígio.”.
Essa a característica também de Fazia Calor e Usávamos Máscaras. Volume II. Lara Ovídio (Organização), Marília Panitz (Prefácio). Bragança Paulista: Hecatombe, 2021, que mencionei antes. Aliás, Gabriela Tunes bem ensaiara alguns textos em postagens do facebook que me davam a certeza de uma obra em progresso.
Ela me confirma isso. Na dedicatória manuscrita de Contos de Quarentena, um mimo juntamente com Máscaras no Varal, ela diz: “Querido professor José Geraldo, esse livro contém minha primeira aventura literária. É o último conto. O nosso Parque Olhos D’Água está presente. Tomara que goste”. Como não gostar?!
Em Máscaras no Varal ela se reafirma nesse operar em progresso. Também em dedicatória afetuosa e autobiográfica ela me diz: “Prezado Professor José Geraldo, Espero muito que goste do meu texto e da minha escrita. Nunca me esquecerei de um encontro no Parque Olhos D’Água, caçando duendes, em que me disseste para escrever, e que leria meu livro. Ei-lo, então. Agradeço de coração o apoio e o incentivo, foram de muita importância nessa realização que agora tens em mãos”.
Li seu livro Gabriela Tunes, e reconheci você entre “as mulheres [que] sabem o que fazer”, como você afirma em seu prefácio.
Sabem que “uma pandemia é um período denso da história, em que os acontecimentos se precipitam uns sobre os outros sem que a racionalidade civilizatória seja capaz de digeri-los”. Mas sabem também, que têm a matéria da “mulher abrigo de semente moto-contínuo do mundo”, tal a eu-mulher de que fala Conceição Evaristo, na epígrafe que você escolheu parar marcar a sua própria escrita.
A foto do livro Máscaras no Varal que usei para ilustrar este Lido para Você foi tirada do facebook. Ela está em postagem de Karla Andrade, parceira de Gabriela Tunes no projeto “Direitos Humanos e Política”, Aliás, na postagem, ela diz: “A escrita da Gabi é muito “dedo na ferida”, um tapa cheio nas classes média e alta. Li alguns trechos com olhos de contentamento de quem diz: Boa, Gabi! Li outros trechos quase me escondendo atrás das almofadas, como quem diz: Eu já me vi aqui! Mulheres brancas, leiam Máscaras no Varal! Nós precisamos nos constranger com as verdades ditas, com os números calculados e estimados, e com o cenário que encontrarmos do lado!”.
Então, é disso que trata a escrita de Gabriela Tunes. Do exercitar a existência, quer dizer, deixar o pessimismo para tempos mais promissores e apaziguados e prosseguir no “viver uma pandemia [o que significa] aprender a conviver com o medo e a incerteza sobre futuros”, sem se deixar sucumbir por esses sentimentos desmobilizadores, exercitando escolher os caminhos que quer percorrer e o ponto utópico que quer alcançar pela força de seu pensamento de sujeito que age para transformar a realidade. Uma característica comum às minhas “Gabrielas”.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
Sistema Punitivo e Direitos Fundamentais: Paradoxo das Penas Radicais
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Wagner Amorim Madoz. Sistema Punitivo e Direitos Fundamentais: Paradoxo das Penas Radicais. Tese de Doutorado em Direito. Centro Universitário de Brasília – UniCEUB. Brasília: UniCEUB, 2022, 365 f.
Voltei ao exame dessa densa Tese, para a sua sabatina final, na sessão de defesa, presidida pelo ilustre Orientador Professor Inocêncio Mártires Coelho e integrada pelos Professores Antonio Henrique Graciano Suxberger, Arnaldo Sampaio de Moares Godoy e Alexandre Araújo Costa.
Eu já participara do exame de qualificação e considero que as observações que fiz foram todas consideradas pelo Autor para a versão definitiva, com zêlo de atualização. No que me concerne, tal como aparece nas Considerações Finais, abertas com uma referência a artigo de conjuntura em Coluna que mantenho no Jornal Brasil Popular, publicado ainda neste mês de junho. Não obstante a característica de texto de opinião, o Autor abre suas conclusões, convalidando seu fundamento humanista dialético estribado na pré-inscrição cogente dos direitos humanos, base de todo direito fundamental.
Conforme está escrito: “Do mesmo que entendo que existe um direito fundamental a não morrer de fome, existe um direito fundamental a não morrer na cadeia, no cumprimento de uma sentença condenatória à pena radical ou absurda. Isso decorre da inconstitucionalidade que reconheço desses tipos de penas criminais que hipotecam a vida do condenado, uma vez que a Constituição Federal proíbe as penas de caráter perpétuo”.
A referência está na nota 706, com um acréscimo de sentido trazido pelo Autor: “Inspirado na lição do professor José Geraldo de Sousa Junior, “O direito de não passar fome”, publicado no Jornal Brasil Popular/DF em 9 de junho de 2022: “Eis aí uma consideração que aponta para o núcleo ético de satisfação da liberdade de não passar fome, direito fundamental exigível e justificador de qualquer ação que vise a realizá-lo, inclusive, nos termos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que segue lícita ainda quando compelida, como último recurso, à rebelião contra tirania e a opressão. Como dissemos na abertura do livro, é irrenunciável o dever de ‘Exigir Direitos, [para] Alimentar a Vida’”.
Reconheço na referência a força inafastável da exigência de uma disposição humanista, inscrita na concepção filosófico-criminológica de Roberto Lyra Filho, tão presente na Tese, até porque é dela que vem a possibilidade de estabelecer-se critérios e indicadores do exame de condutas cuja orientação se dá numa clara de disputa de pontos de vista sobre o social, para fixar o que injuria a convivência em co-existência e o que no comum pode legitimamente constituir o social em sentido mais amplo e o comunitário em perspectiva concreta, até o limite do lícito e do ilícito e do tipificável como delito ou crime.
Lembrando o critério de Chambliss, adotado por Roberto Lyra Filho, conforme explicitarei adiante. O que desejo por em relevo aqui, seguindo a tomada de posição do Autor da Tese, é o não se deixar arrastar pela derrocada do humano, alienado de de sua historicidade e portanto de seu projeto de contínua humanização, seguindo Hegel, para quem o humano não é uma derivação de sua origem biológica, mas uma experiência na História, um permanente fazer-se humano, na trama de suas interrelações e agência de redenção.
Não nos serve de aviso o que está no Gênesis 4, 9-22, mesmo no paradigma do “olho por olho, dente por dente”?:
Genesis 4, 9-16: 9Então o Senhor perguntou a Caim: “Onde está seu irmão Abel?”. Respondeu ele: “Não sei; sou eu o responsável por meu irmão?”. 10Disse o Senhor: “O que foi que você fez? Escute! Da terra o sangue do seu irmão está clamando. 11Agora amaldiçoado é você pela terra, que abriu a boca para receber da sua mão o sangue do seu irmão. 12Quando você cultivar a terra, esta não lhe dará mais da sua força. Você será um fugitivo errante pelo mundo”. 13Disse Caim ao Senhor: “Meu castigo é maior do que posso suportar. 14Hoje me expulsas desta terra, e terei que me esconder da tua face; serei um fugitivo errante pelo mundo, e qualquer que me encontrar me matará”. 15Mas o Senhor lhe respondeu: “Não será assim; se alguém matar Caim, sofrerá sete vezes a vingança”. E o Senhor colocou em Caim um sinal (estigma), para que ninguém que viesse a encontrá-lo o matasse. 16Então Caim afastou-se da presença do Senhor e foi viver na terra de Node, a leste do Éden…
Exilado do Éden, à leste, a marca não inibiu e não o travou Caim de formar e uma descendência. Caim e sua geração foram fundadores de cidades e forjadores dos ofícios e atributos dos que realizam projetos de sociedade:
Em 4, 9-17 temos que Caim fundou uma cidade, à qual deu o nome do seu filho Enoque… descendentes seus, 4, 9-20. Jabel foi o antepassado dos pastores nômades; 4, 9-21. Jubal foi o pai dos que habitam em tendas e têm gado… 4, 9-22. Tubalcaim, foi mestre de toda a obra de cobre e ferro.
Tenho que, ao delinquir, ainda que descolado de suas relações inter-subjetivas, desassistido da solidariedade que os coletivos sociais proporcionam, ainda que excluídos do alcance das conquistas dos movimentos que ativam no social o democrático e instituem direitos, o sentenciado, de qualquer modo punido, conserva uma reserva inalienável de cidadania, irredutível à incriminação, e que deve encontrar formas de reconhecimento e de exercício (cf. SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Negociar com Facção Criminosa? In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Ideias para a Cidadania e para a Justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008), no que o Autor, por sua vez, refere ao encarcerado como sujeito de direito por vida e dignidade.
A pesquisa aborda a relação entre o sistema punitivo e os direitos fundamentais, situando no centro da análise as penas criminais existentes no ordenamento jurídico brasileiro, em contraposição à proposta de limitação das penas radicais. Busca observar as penas previstas ou aplicadas em condenações criminais que estão em conflito com os princípios que a ordem constitucional procura salvaguardar, através da punição, e que pode revelar um desprezo ao direito à vida (biológica e social) do condenado criminalmente.
O Sumário, deixando de lado os elementos pré-textuais e os relativos à metodologia e a introdução, organiza o conteúdo da Tese em três Partes.
Na Primeira Parte, os pressupostos teóricos – Fundamento da Punição Criminal, compreendendo: A Justificação da Punição Criminal;Prometeu Acorrentado;Punição e Religião – A Pena como Expiação;Punição em Platão ou a Virtude do Castigo;O Iluminismo Penal de Cesare Beccaria;A Fundamentação Moral do Castigo em Kant;A Dialética da Punição em Hegel;A Prevenção do Crime Segundo Jeremy Bentham;Feuerbach e a Coação Psicológica;O Sonho de von Liszt e a Prevenção de Crimes;A Punição na Teoria Sistêmica;Observações de Primeira e Segunda Ordem;O Funcionalismo Radical de Günther Jakobs;Racionalidade Penal Moderna;A Teoria Unificadora ou Dialética da Pena de Claus Roxin;Teoria Agnóstica da Pena.
Ainda na Primeira Parte, sob a rubrica Sociedade, Crime e Punição: Função das Penas, compreendendo: O anti-humanismo de Michel Foucault; O banimento do suplício; A prisão como pena; A arquitetura da punição; Os precursores da vigilância e controle na Inglaterra e França; Punição e Estrutura Social; O princípio da less elegibility; A evolução da prisão como pena criminal; Modos de confinamento; O nascimento da prisão sob a perspectiva de Cárcere e Fábrica; Pequena análise da formação histórica do Brasil; O nascimento da prisão no Brasil; O pensamento criminológico no Brasil; As punições antigas até as modernas prisões atuais; A Criminologia Dialética e a Criminologia Radical; A criminologia da Libertação; A sociologia do castigo e as punições na sociedade moderna; A sociologia das prisões e as sociedades dos cativos; Sociedade dos cativos do Brasil; O código dos condenados na sociedade dos cativos como folkways e mores; A importância da abordagem histórica da pena de prisão; A função da punição no Estado Democrático de Direito; Superando o maniqueísmo ideológico, positivismo e jusnaturalismo, na punição; O Humanismo Dialético; Conflito entre punição e direitos fundamentais e apelo ao Direito Natural; Política criminal e direitos fundamentais: Justiça como balcão de valores?; Opções trágicas da punição: maximizar a dor dos maus para garantir a felicidade dos bons; História das penas como história da irracionalidade e crueldade humanas?.
Sob a rubrica O Sistema Constitucional de Garantias Penais, explicita o Sumário, nessa Parte: O ponto cego das teorias das penas; Teoria da Pena no Código Penal- Teoria Mista ou Unificadora da Pena; A busca da pena na medida justa; Penas Radicais e Absurdas; Frustração quanto ao estudo das comunidades epistêmicas.
Na Segunda Parte – O Cativeiro em Números, o quadro cruento do Sistema Penal Brasileiro: Sistema Penitenciário Brasileiro: Penas e seu cumprimento; O efeito retardado do novo limite de execução de pena de reclusão; Dados até junho de 2022:a. População Carcerária Nacional; b. Regime de cumprimento; c. Déficit de vagas no sistema prisional; d. Divisão das penitenciárias segundo a destinação; e. A população carcerária segundo as penas; f. Quanto ao espaço físico; g. A cor da pele, raça e etnia; h. Quanto ao estado civil; i. Classificação quanto ao grau de instrução; j. Classificação da população carcerária pelo tipo penal; k. Encarcerados com doenças transmissíveis; l. A população carcerária pela faixa etária; m. Morrer na cadeia.
Na Terceira Parte, passando para o plano de aplicação: Tentativas de Contenção da Punitividade. Nessa Parte os enunciados: Propostas estudadas: alternativas ao grande encarceramento: a. O que fazer com os perversos?; b. O olhar das vítimas no espelho infiel; c. Estado de coisas inconstitucional – inconstitucionalidade e inconvencionalidade; d. Contagem em dobro das penas em ambiente degradante (Decisões da Corte IDEH e STJ sobre cumprimentode pena em ambiente degradante); e. Inconstitucionalidade das penas radicais e absurdas; f. Penas radicalíssimas?; g. Revogação da Súmula 715 do Supremo Tribunal Federal; h. Opção pela ressocialização como finalidade da pena; Nothing Works? – A cultura do linchamento. Como não ser cruel? Manifestos Anticarcerários; O novo panóptico: futuro da prisão?..
Seguem-se as Considerações Finais, Referências e Apêndices.
Valendo-me da indicação do próprio Autor, conforme ele expõe na Introdução, a pesquisa que resultou na Tese aborda a relação entre o sistema punitivo e os direitos fundamentais, situando no centro da análise as penas criminais existentes no ordenamento jurídico brasileiro, em contraposição à proposta de limitação das penas radicais. Busca observar as penas previstas ou aplicadas em condenações criminais que estão em conflito com os princípios que a ordem constitucional procura salvaguardar, através da punição, e que pode revelar um desprezo ao direito à vida biológica e social do condenado criminalmente.
O aparente paradoxo das penas radicais pode se revelar ou se manifestar nas longas penas previstas, proposições legislativas, ou aplicadas, sentenças condenatórias, para além da vida biológica do condenado, além da utilização dos direitos humanos para impor mais punição e, assim, causar mais sofrimento.
A questão que se coloca é fundamentalmente saber se é possível, tendo em conta aqueles valores baseados em princípios basilares da ordem constitucional, impor penas de reclusão a condenados além de sua vida biológica.
Procura, ainda, refletir sobre a possível existência de barreira epistemológica para a construção do direito criminal na perspectiva dos fundamentos dos direitos humanos, adotando, no entanto, a atitude crítica – utilizando a hermenêutica da suspeita, conceito elaborado por Boaventura de Sousa Santos para designar as contradições da previsão e aplicação dos direitos humanos.
Para o Autor, “o resultado de todo o longo percurso histórico e doutrinário identificou enormes desafios que a sociedade brasileira enfrenta e terá que enfrentar, no que se refere à punição criminal e ao grande encarceramento que dela resulta, principalmente quando se tem em vista os fundamentos vinculantes que a Constituição Federal estabeleceu. Essa compreensão foi fruto da exaustiva análise dos dados do sistema criminal, do ambiente prisional, da população carcerária ou da sociedade dos cativos como a utilizava Sykes. Do confronto desses dados com os pressupostos teóricos que abordei, os quais serviram de bússola para navegar no rico processo histórico, de significações decorrentes de embates em torno da justificativa do castigo, tanto do porquê quanto do para que castigar, e o papel que a punição estatal, como modalidade de sanção criminal, ocupa na sociedade brasileira atual”.
O Autor, justifica ter verificado ao longo da construção de sua Tese “a existência de fascinantes períodos da humanidade, onde se buscou o exercício, ou pelo menos a afirmação desse discurso, de pleno exercício da inteligência, na luta contra um mundo de obscurantismo, seja religioso, como o medieval, seja pelas tiranias secularizadas. O triunfo sobre as perversidades da cultura – principalmente a intolerância institucionalizada e a repressão aos costumes -, parecia ter sido completa. A história e a rebelião dos fatos mostraram, entretanto, que aqueles sentimentos que embasavam a crueldade no trato dos seres humanos voltam, num movimento pendular, o que sugere que eles fazem parte da condição humana”.
Por outro lado, diz ele, “o Direito Penal e a Política Criminal repressora que ele veicula, como vimos, pode ser concebido como um instrumento para conter a bestialidade humana, da vingança popular, sob as mais diversas modalidades, por esse motivo ele, sob todos os protestos, parece ainda ser necessário, como controle social, sem o qual não teria a sociedade meios racionais de conter os massacres, as rebeliões de presos, os justiçamentos, os linchamentos, os espetáculos de horror e brutalidade, em nome de uma justiça primitiva, cujas imagens percorrem o mundo com a facilidade dos dispositivos digitais, mas também como forma de combater aqueles criminosos, perversos descobertos, que praticam crimes absurdos, com requintes de crueldade, como o torturador e assassino de uma ditadura militar, ou pedófilo e assassino que matou várias crianças, como analisamos”.
Estaremos diante de uma disposição ingênua, frágil e conformista em face das tensões, conflitos e impasses críticos que se armam no social? Regressamos a uma ancestralidade de terra sem males, edênico, numa ciranda comunitária, constituída pelo trabalho de todos e a satisfação plena das necessidades? Estamos intelectualmente imobilizados num pensamento utópico, retido numa continuidade ahistórica sem fim?
Há 50 anos da publicação da obra copernicana de Roberto Lyra Filho, A Criminologia Dialética, estamos eu próprio, com meus colegas professores Salo de Carvalho e José Carlos Moreira Silva Filho, preparando uma obra de celebração, já no prelo (Lumen Juris), com a contribuição notável de grandes pensadores, da Criminologia e da Teoria Crítica do Direito. O professor Inocêncio Coelho, ilustre Orientador, ofereceu um belo texto para a Coletânea: Roberto Lyra Filho e Miguel Reale: Duas Visões da Dialética Jurídica.
De minha parte, me incumbi também do Prefácio da Obra – Criminologia Dialética de Roberto Lyra Filho, 50 anos: Um Manifesto Crítico à Crítica Criminológica (Um Prefácio). Nesse texto, valho-me de referências da Tese de Wagner Maldoz, que dou já como aprovada, e o organizo, recuperando de Lyra Filho a exigência de autorreflexividade para exercitar um pensamento diligente, que se atualize.
Enquanto isso, na sua autorreflexividade, Roberto Lyra Filho, pelo fecho da síntese dialética que propôs para a sua Criminologia, continua a sua diligência cognitiva no mesmo impulso de autorreflexão. Sara da Nova Quadros Côrtes em um texto instigante – A ‘Dignidade Política do Direito’ e a ‘Dignidade Jurídica da Política’. No Caminho de Roberto Lyra Filho – coloca essa questão, a partir do próprio Roberto Lyra Filho:
Continua o pensamento de Roberto Lyra Filho a ser marginal? Está ainda mais na periferia, hoje, do que no seu tempo ou conseguiu penetração na comunidade jurídica? A força da sua crítica foi aproveitada de forma autêntica no pensamento jurídico brasileiro?
Para alguns, a força do pensamento de Lyra ficou represada no seu momento histórico, que foi superado, fato que ele mesmo anuncia no segundo trecho. Pergunto se o pensamento deste autor não foi afastado por alguns juristas sem ter nem mesmo sido estudado ou absorvido no processo dialético, em vista da violência que vivemos nos anos 90, especialmente, na construção do conhecimento, com o celebrado fim das utopias, o fim da história e instalação de um pensamento único.
Por outro lado, vimos o desenvolvimento do seu pensamento em todo o País, assistimos na década de 90 a reformulação do ensino jurídico seguindo as linhas do pensamento deste autor, rejeitando a matriz dogmática e técnica como eixo dos cursos, reinventando o perfil dos estudantes de direito, inserindo, como obrigatórias, que leva a reprodução ideológica da prática profissional no ensino do direito. Vimos ainda, nesta década, o surgimento de contradições dentro das instituições, como a magistratura com o movimento do direito alternativo e Juízes para a Democracia fruto da reflexão acerca do papel do Poder Judiciário na realização da justiça social.
Entendo que a força de seu pensamento não se encontra presa no seu momento histórico, pois ainda estamos vivendo as repercussões deste momento e desenvolvendo as contradições geradas por ele, especialmente, no que tange ao ensino do direito. Acredito que é preciso estudar mais este autor, reafirmando a sua atualidade utópica, demonstrando o quanto de utopia já se concretizou no processo histórico, utilizando a força do seu pensamento para qualificar o processo de libertação e quiçá, atualizando sua obra no que efetivamente tenha sido superado, não pelo ceticismo, mas pelo processo dialético, ‘segundo padrões de reorganização da liberdade que se desenvolvem nas lutas sociais do homem.
Essa autorreflexividade, originalmente dirigida pelo próprio Roberto Lyra Filho (“para atualizar-me, sem risco de desatualizar a atualização, ao fazê-la, seria preciso deter a minha elaboração”, mesmo movendo-se no cipoal das controvérsias político-epistemológicas, sendo e não sendo (aqui alusivo ao Prefácio que fez para o livro de Gylberto Freire Como e Porque Sou e Não Sou Sociólogo), se projeta também para o movimento que ele animou, com articulação de um coletivo de pensamento jurídico crítico, que ele denominou Nova Escola Jurídica Brasileira – NAIR.
Foi no arranque dessa articulação que se engendrou o Projeto O Direito Achado na Rua, denominação também de Roberto Lyra Filho. Na experiência dessa elaboração vale por em relevo O Seminário Internacional 30 Anos do Projeto O Direito Achado na Rua, ocasião para balanço e projeção de continuidade da própria experiência. Refletindo sobre as tradições do Coletivo O Direito Achado na Rua, mas também, debatendo e projetando seu futuro, sobressaiu de modo forte entre os participantes, a mesma ordem de inquietação: teria o Coletivo o Direito Achado na Rua sido represado em uma concepção teórico-conceitual e política temporalmente limitada? Ou haveria espaço para novas reflexões, proposições, perspectivas, e, portanto, possibilidades de contribuição para o enfrentamento de desafios presentes e futuros?
Essa ordem de indagação, que se inscreveu na convocatória do Seminário, apareceu em várias intervenções. Tomamos aqui, notadamente, entre tantas, as de Maurício Azevedo e de Sara da Nova Quadro Côrtes, porque de modo contundente se apresentam com a demanda direta de buscar o “achado”, em questões emergentes, em revisitações e em desafios que levem a travessias possíveis.
Ambos, por sua inserção originária e cogente na constituição de O Direito Achado na Rua, em sua prática política e em sua fortuna crítica, carregam a percepção amigável porque internos ao projeto, mas sem qualquer concessão, mantendo a atenção aguda, crítica, autorreflexiva para o desafiar. E em ambos, vivamente presentes, os elementos de atualização para indagar temas ainda não trabalhados que se estendem temporalmente para além dos recortes usuais, e que recuperam o acervo analítico inscrito no pensamento decolonial do qual extraem as aporias “às agências” do epistemicídio, do escravismo e do racismo.
Em Maurício, na sua apresentação durante o Seminário dos 30 anos, o chamamento, a partir de seu texto de apresentação – “Enegrecendo a teoria crítica do direito: Epistemicídio e as novas epistemologias jurídicas na diáspora” – é no sentido de “ocupar e abrir caminhos”: [que] o “pensamento jurídico negro desloca os espaços de saber e poder na teoria crítica do direito, tanto na afirmação de teóricos negros e negras em um ambiente masculino e branco, como na crítica racial e decolonial dos encobrimentos, silenciamentos e práticas de interdição de seus saberes e experiências. Ao apontar a necessidade de uma teoria que dê conta do direito e as relações raciais, as epistemologias jurídicas negras inserem-se no campo crítico do direito, aponta os limites e projeta o desafio de construção de uma teoria crítica negra que aponte horizontes emancipatórios a partir de saberes e práticas gestados na diáspora negra, pois como salienta Samuel Vida “Quem dorme com os olhos dos outros, não acorda a hora que quer”.
O contexto de afirmação das lutas negras, “o processo de implementação de políticas afirmativas na graduação, pós-graduação, concurso de docentes e carreiras jurídicas e a consolidação de uma epistemologia jurídica afrodiaspórica, permitem a ampliação de juristas negros e negras e a ascensão de outros olhares sobre o Direito. Oxalá que possamos romper com o epistemicídio e construir uma nova cultura jurídica onde o Direito seja encontrado na rua, nos terreiros, nos quilombos, nas favelas, periferias, malocas, guetos e nas encruzilhadas”.
Em Sara respondendo a uma interpelação por ela própria dirigida ao pensamento fundante de Roberto Lyra Filho. Refutando, o que cuidei de fazer também em O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática, contra alguns que viam datadas e esgotadas na conjuntura pós-constituinte as proposições de O Direito Achado na Rua e, portanto represadas no seu momento histórico, já superado, Sara mais desconsidera tais objeções, porque para ela, essas posições revelam críticos que sequer chegaram a estudar ou absorver “no processo dialético, em vista da violência que vivemos nos anos 90, especialmente, na construção do conhecimento, com o celebrado fim das utopias, o fim da história e instalação de um pensamento único”.
Mas em Sara, sobretudo, a disposição desafiadora vem embalada numa armadura que anuncia um combate político-epistemológico, uma vez que, afastando o conjunto raso de uma crítica exterior facilmente refutável, a de a força e antidialeticamente querer inserir O Direito Achado na Rua no nevoeiro metafísico, ela põe a descoberto o “Achado” da expressão, por dentro da epistemologia que nos junta, identificando-o como “o elo fraco” de O Direito Achado na Rua, sua concepção e sua prática.
É importante, conforme diz Sara “levantar agendas de pesquisa que possam perguntar sobre o sentido metodológico e político do elo “achado” do “Direito Achado na Rua”. Em texto publicado no volume 10, da Série O Direito Achado na Rua, – “Direito achado na Rua: por que (ainda) é tão difícil construir uma teoria crítica do Direito no Brasil?” – há menos eloquência discursiva que na performance oral na sessão do Seminário, mas não menos rigor propositivo: “No que nos cabe neste trabalho penso ser importante levantar agendas de pesquisa que possam perguntar sobre o sentido metodológico e político do elo “achado” do “Direito Achado na Rua”, não para, numa erudição estéril, criar questiúnculas metodológicas, mas sim para perguntar quem achou o que e onde? Esta questão alimenta um imaginário para dar vida longa a esta que, se configura, ainda hoje, como uma das mais potentes e permanentes escolas de pensamento crítico pois articula e orienta gerações na atuação da assessoria jurídica aos movimentos sociais. Em tempos de rupturas sociais e políticas profundas o questionamento sobre o “sujeito que acha” e qual o sentido do “achado” são tão importantes quanto o debate sobre o “direito” e a “rua” para alimentar uma vida longa para esta escola”.
Tanto mais quanto essa agenda, ainda que reorientada para a perspectiva mais ampla da emancipação pela mediação do jurídico e dos direitos humanos para pensar um projeto de sociedade, não descura, o plano originário dos impasses que se expressam em realidades extremamente marcadas por conflitos de uma sociedade desigual e hierárquica, pelo seu lastro colonial. Mesmo nesse âmbito, no qual a questão do processo de criminalização está posto, do que se cuida é, diz Lair Gomes de Oliveira, “o revisar o problemas apresentados e a verificação das hipóteses levantadas pelo pensamento lyriano” aplicado ao direito penal e à criminologia.
Tal como o próprio Lyra Filho ao fazê-lo, contudo, tendo em mira que “todo domínio que sacrifica os direitos dos indivíduos, classes e grupos é, em si, uma violência, inerente à estrutura social, uma espoliação ou opressão ilegítima, determinando o conflito, na medida em que as classes e grupos espoliados e oprimidos conscientizam a sua posição de inferioridade social e lutam, em defesa de seus direitos sacrificados, pressionando os dominadores. A dialética social do Direito começa na infraestrutura econômica”. Para ser apreendida, diz Marilena Chauí, “no campo das relações sociais e políticas entre classes, grupos e Estados diferentes [o que] permite melhor perceber as contradições entre as leis e a justiça e abrir a consciência tanto quanto a prática para a superação dessas contradições. Isso significa abrir o Direito para a História e, nessa ação, para a política transformadora”.
Nesse aspecto, é bem sugestivo o estudo de Paula Pereira Gonçalves Alves, rastreando as narrativas brasileiras em torno da criminologia. O estudo de Paula Alves tem tanto mais interesse quanto ela procura “mapear discursos relacionados às criminologias da reação social e críticas, com o fim de refletir significados e eventuais problemáticas em termos dessa temática no Brasil”, por meio de “uma pesquisa empírica realizada por meio de entrevistas semidirecionadas, cujo recorte amostral para seleção dos interlocutores iniciais foi construído a partir da ‘Carta a um Jovem Criminólogo’, escrita por Roberto Lyra Filho em 1979”.
O curioso é que a Carta representa a virada de Roberto Lyra Filho em seguida à Criminologia Dialética, para desembaraçar-se da própria infradialetização que ele pressentiu pudesse estar em seu fecho, passando ela a representar, no debate que travou com as mais fortes expressões da criminologia crítica, aquelas mais radicais, de orientação marxista; e aquelas mais inscritas no pensamento liberal de defesa e reação social, mesmo que tenham trazido o aporte da crítica, de resto, por se tratar de uma carta aberta, que preservou em anonimato o interlocutor, se constituiu num programa avançado de abordagem dialética, ao tratar de teoria, práxis e táticas atuais.
A reserva de anonimato na publicação e na atitude de Roberto Lyra Filho enquanto vivo, compartilhada por seus colaboradores mais próximos, não impediu que o seu mais destacado destinatário – Álvaro Penna Pires – se identificasse ele próprio nessa qualidade. De fato, em encontro circunstancial em Brasília, no Ministério da Justiça, ao nos conhecermos, ele logo se apresentou como o jovem criminólogo interpelado por Lyra Filho.
Em seguida, ele o fez expressamente, em entrevista publicada na Revista de Estudos Empíricos em Direito:
Além disso, durante todo o meu mestrado mantive trocas epistolares com o Roberto Lyra Filho. Eu lhe enviei a minha tese de mestrado que ele adorou e também outros trabalhos de curso. Ele recebia, lia e mandava comentários. Uma dessas trocas foi até muito divertida e deu bastante “pano pra manga”, no sentido de ter dado todos os elementos para uma viva discussão intelectual entre nós sobre a criminologia crítica, sempre com esse pano de fundo de uma grande e sólida amizade, mas no plano intelectual, a troca de argumentos era feita sem concessão. O ponto de partida foi justamente um paper escrito para o seminário do Baratta (em 1978) com o título “La criminologie à la recherche de son objet: dualisme vs monisme critiques”. O Roberto não se conformou com esse trabalho e chegou a publicar uma longa carta que me escreveu (e que quis que ficasse completamente anônima, embora eu o tivesse autorizado a me nomear). A carta saiu com o título “Carta aberta a um jovem criminólogo”. Essa carta foi muito interessante e eu fiz também uma longa resposta, mas como ficou decidido em favor do anonimato, nem me lembro mais o porquê exatamente, a resposta nunca foi publicada. Claro, mais de 30 anos depois, não me lembro de grande coisa. Só me lembro que achei que ele não havia percebido bem a minha hipótese central naquele paper. Lembro-me também que fiz uma crítica à criminologia marxista alemã, excluindo o Baratta, e que tratei da “invenção do crime”, nos termos do Foucault em A Verdade e as Formas Jurídicas. O Roberto que era mais ligado à formação dialética hegeliana, me disse: “não Álvaro, está muito cedo para tirar essa conclusão!”. Me deu um esculacho histórico nessa carta, mas nada disso nunca abalou nossa amizade. Dois planos diferentes. E eu respondia e ele aceitava também a discussão. Aprendi muito com ele.
Com muito zêlo, no cuidado conceitual, aliás sob a supervisão de orientação de Gisálio Cerqueira Filho, com quem Roberto Lyra Filho manteve longa, intensa e rica correspondência, João C. Galvão Jr mergulhou profundamente no programa dialético que Lyra Filho propôs para a Criminologia, e produziu uma alentada dissertação – Lyra Filho, Meu Amigo: Diálogo com Roberto sobre Direito, Criminologia e Dialética. O título de certo modo uma paráfrase ao livro de Roberto Lyra Filho Karl meu Amigo, Diálogos com Marx sobre o Direito. Na Dissertação, o autor quer “demonstrar a importância dos conceitos de Direito, Crime, Dialética e conceitos afins em Roberto Lyra Filho a partir de uma Teoria Dialética do Direito e Teoria da Criminologia ou Teoria Dialética do Crime”. E o faz, movendo-se com diligência para não incidir em qualquer sorte de apriorismo, positivo ou metafísico, que não desborde do critério adotado por Lyra Filho, nesse tema, extraído de Chambliss, segundo o qual, diz Lyra “o valor da Criminologia Crítica é precisamente este: acabar com a mania de ‘definir o crime’ no prólogo dos tratados, uma forma idealista e burguesa de pensar. O conceito de crime, na medida em que trata dos conteúdos incriminados, passou para o interior da disciplina, como nota Chambliss. Não se parte mais de – ‘o crime é isso’ – para seguir perguntando: ‘por que ele ocorre?’. Parte-se do processo de normação, incriminação e desincriminação, isto é, da Sociologia do Direito”. E arremata: “O deslocamento não cria, como tu pensas (dirigindo-se diretamente ao jovem criminólogo), um impasse. O impasse está no idealismo, que precisa saber, primeiro o que é ‘bem’ e o que é ‘mal’, o que é ‘dever ser’ e o que é ‘ser’, destacados e isolados da totalidade e do movimento”. Em Galvão Jr, “nesse processo histórico dialético do Direito e do Crime, toda síntese refletiria de certo modo um verdadeiro e legítimo Direito, considerando-o um instante histórico de libertação”.
Ao contrário, ele oferece perspectivas para o alternativo, construindo um pensamento crítico da alternatividade, que não seja uma mera troca de sinais, para articular condições sociais e possibilidades teóricas que tragam consistência para os operadores do direito no discernir e aplicar seus fundamentos, como procurou mostrar Marcos José de Oliveira Lima Filho, em sua Dissertação de Mestrado Uma Investigação Acerca da Validade da Teoria Dialética do Direito a Partir da Verificação de sua Utilização pelos Advogados Populares.
Numa conjuntura de lawfare, com táticas jurídicas no contexto de guerras híbridas, penso que um tanto desse apelo ao midiático, reduzido ao que se tem chamado de ideologia do punitivismo, explica o esgarçamento institucional em curso no país. Esse desvio esteve no cerne do conjunto de medidas de combate à corrupção – erigida em metonímia da categoria criminalidade – reunidas no PL 4850/16 – (Estabelece Medidas Contra Corrupção, que tomou na Comissão Especial da Câmara instalada para o examinar o Número: 1017/16 24/08/2016-16).
Convidado pela Presidência da Comissão e pela Relatoria da proposta a expor no plenário minha posição sobre o assunto (conferir o inteiro teor do depoimento conforme as notas taquigráficas da sessão, arquivadas no Departamento de Taquigrafia e acessíveis pela WEB, comecei por lembrar, por exemplo, que a crítica ao punitivismo é uma leitura de um sentido civilizatório., cujo roteiro, sustenta Evandro Lins e Silva, revela a história do Direito Penal como a história da contínua mobilização na direção da abolição da pena de prisão. Em texto precioso, ele traz para nossa atenção uma leitura do então Ministro Francisco de Assis Toledo, ex-integrante do Superior Tribunal de Justiça, que presidiu a Comissão Especial para reforma do Código Penal, segundo o qual em grave equívoco incorrem, frequentemente, a opinião pública, os responsáveis pela administração e o próprio legislador, quando supõem que, com a edição de novas leis penais, mais abrangentes ou mais severas, será possível resolver-se o problema da criminalidade crescente: “Essa concepção do direito penal é falsa porque o toma como espécie de panaceia que logo se revela inútil diante do incremento desconcertante das cifras da estatística criminal, apesar do delírio legiferante de nossos dias. Não percebem os que pretendem combater o crime com a só edição de leis que desconsideram o fenômeno criminal como efeito de muitas causas e penetram em um círculo vicioso invencível, no qual a própria lei penal passa, frequentemente, a operar ou como fator criminógeno ou como intolerável meio de opressão”.
Em Roberto Lyra Filho, segundo ele mesmo, como está na Carta Aberta, se encarna a dupla missão dos intelectuais: “a inflexibilidade dos princípios e a flexibilidade conjuntural das táticas”, pois, “se afrouxam os princípios a caverna platônica os engole; se enrijecem as táticas, ajudam sem querer o adversário, pelo triunfalismo arrogante com que escondem a própria impotência”, sobretudo quando, em realidades como atualmente no Brasil, “a alienação nunca é morna; é escaldante e dramática. A realidade queima, as repressões são brutais; a miséria popular, extrema; a demissão, um escândalo. É preciso a inconsciência absoluta ou a completa falta de caráter para dormir no ‘berço esplêndido’”. Por isso ele chama a atenção para “teorias despistadoras, o distinguo solerte dos intelectuais desfibrados e autocomplacentes, as erudições de fachada”, e adverte para “as concessões [que] adquirem boa consciência, porque se apresentam como abordagem matizada, complexa, cheia de manhosas ‘divergências’, ante a forma reta do pensar, [para lembrar] A Curva da Estrada, a magistral obra de Ferreira de Castro que lhes descreveu a origem e o desfecho”.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
O Direito Constitucional à Alimentação Adequada e a Alimentação como vetor de “tratamentos cruéis, desumanos, degradantes e tortura” no sistema penitenciário brasileiro
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
O Direito Constitucional à Alimentação Adequada e a Alimentação como vetor de “tratamentos cruéis, desumanos, degradantes e tortura” no sistema penitenciário brasileiro. Dissertação apresentada ao programa de pós-graduação em Direitos Humanos e Cidadania da Universidade de Brasília, Brasília: 2022, 1788 p.
Perante a Banca Examinadora da pesquisa do estudante José de Ribamar de Araújo e Silva, que presidi na qualidade de Orientador e que foi constituída pelos professores Alexandre Bernardino Costa, Membro interno – Universidade de Brasília e Luciano Mariz Maia, Membro externo – Universidade Federal da Paraíba, foi apresentada, defendida e aprovada a dissertação tema deste Lido para Você.
O Autor, um experiente pesquisador engajado de longa data no serviço pastoral de Justiça e Paz e, na ação política se afirmou em atuação no Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, e a partir desse organismo, mediante processo seletivo, passando a integrar já na primeira composição e depois reconduzido, como Perito no Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura.
Muito dessa experiência foi carreada para o estudo contido na Dissertação que, como indica o Resumo: “busca retratar a caminhada de um estudante que sucessivamente pode interagir com pessoas privadas de liberdade, sobretudo no sistema penitenciário. Essa interação ocorreu a partir de diferentes atuações: desde 1984, como agente da Pastoral Carcerária no Carandiru, como agente de outras pastorais sociais, como militante da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Luis, como Ouvidor dos sistemas penitenciário e de segurança pública do Maranhão e, posteriormente, como Perito do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. Numa perspectiva inversa dos estudos doutrinários e acadêmicos juridicistas, este trabalho apresenta um debate teórico e conceitual a partir das experiências vividas e problematiza como a mobilização contra a fome e a conquista tardia do preceito legal do Direito Humano à Alimentação Adequada não superaram a negação histórica desse direito. Seja pela acessibilidade, quantidade, qualidade ou até regularidade, ele é sistematicamente violado, o que lhe converte em vetor de tratamento cruel, desumano, degradante e tortura dentro do sistema penitenciário”.
O Resumo, aliás, exibe uma combinação entre existência e consciência. É pois, biografia e conhecimento de uma realidade dramática que e desnuda a dimensão do não ser, para usar uma categoria de Fanon, que não fique reduzida à exclusão pela negritude, mas que abra uma perspectiva de resgate teórico-político, dos que sejam alienados do humano em face da perversa divisão maniqueísta imposta pelo colonialismo.
O Autor, declaradamente, se diz intonizado com a perspectiva de “O Direito Achado na Rua – Experiências Populares de Criação de Direito”, por sua própria natureza que “articula nos planos teórico e prático o potencial emancipatório do direito, tomado como expressão da liberdade e da igualdade que são constitutivas da sociedade plural e democrática”. E para tanto, contar com a possibilidade de se inserir, e poder ter uma oportunidade de intercambiar expe riências, aprofundar estudos, sistematizar conhecimentos e oferecer uma contribuição para a sociedade sobre tão relevante tema. E dentro do universo plural e diante do paradoxo dialético proposto dialogar com o “Direito achado nas celas”.
Daí ele orienta essa experiência e motivação na busca do aprofundamento do conhecimento sobre processo de construção do direito constitucional a alimentação e nutrição adequada, consagrado no Capítulo 6º da Constituição Federal e a sua sucessiva violação, sobretudo nos espaços de privação de liberdade prisional, onde se converte em vetor de tratamentos cruéis, desumanos, degradantes e tortura, ferindo a um só tempo a Lei de Execução Penal (LEP), o preceito constitucional e o compromisso internacional assumido quando da ratificação do OPCAT/ONU.
O paradoxo – diz ele – entre a mobilização contra a fome, a conquista do consagrado preceito legal do Direito Humano à Alimentação Adequada e a negação histórica desse direito lhe converte em vetor de tratamento cruel, desumano e degradante, violando um preceito constitucional, é a principal questão a ser analisada em nossa proposta e se constitui em objeto de estudo da presente dissertação de mestrado.
Por isso que, nessa perspectiva, quer contribuir com a investigação social e a formulação teórica e capacidade de diálogo cooperativo e articulação com os diferentes interlocutores, do sistema de justiça, e as entidades de defesa dos direitos humanos, familiares e vítimas das violações, com foco específico no sistema penitenciário visitado pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura nas 27 unidades da Federação do Brasil, bem como dialogar com aqueles segmentos que trabalham na gestão dessa política nos diferentes níveis. Numa amostra significativa dos presídios estaduais, masculinos e femininos, considerando a população LGBTI+, nas cinco unidades dos presídios federais. E o faço sobre diferente locus, de Perito com sete anos de mandato a se completarem agora em junho, próximo, como Coordenador adjunto em dois mandatos, dois anos e Coordenador Geral, do MNPCT, por um ano. Em pleno contexto de pandemia da Covid-19 e do Estado de exceção que se pretende implantar no Brasil.
Esse objetivo se desdobra nos campos descritivo-analíticos de seu estudo, conforme sumaria, discorrendo sobre A Construção do Ordenamento Legal do Direito Humano à Alimentação Adequada; O Direito Achado na Rua e o Direito Achado nas Celas: um Salto Epistemológico; O Mapa da Fome: a Fome tem Cor, Endereço e Classe Social – Dos navios negreiros às novas senzalas: a seletividade penal como estratégia de segregação; DHANA – Da Caridade a Exigibilidade; O Estado Provedor é o Estado Violador; As Múltiplas Violações e a Fome: o ‘Estado de Coisas Inconstitucionais’ e a Falência múltipla dos órgãos; A Responsabilidade do Estado Brasileiro ‘Sem Reparação não Existe Abolição e sem Abolição não Existe Nação”.
Com uma boa bibliografia de apoio, o Autor ainda que subjetivamente, tanto por ofício quanto por engajamento missionário, logra prevenir a objetividade apta com um distanciamento analítico possível mesmo quando opte por metodologia na forma de observação participante.
E mais que isso, logra inserir seu estudo na oferta de avaliações urgentes para uma realidade de exclusão que revela o desprezo das políticas para o humano, assumindo deliberadamente a opção do descarte de marginalizados que o econômico empurra para a zona do não ser.
De fato, conforme procurei chamar a atenção em artigo recente – O Direito de não Passar Fome, publicado em minha coluna no Jornal Brasil Popular (https://www.brasilpopular.com/31541-2/), atravessamos um tempo em nosso País de exacerbada afronta à cidadania e à dignidade humanas. Um tempo tanático, necropolítico. Terrível porque amolda o fazer política, governar. A vida é banalizada e se torna cálculo dos objetivos de negócios. Vida mercadoria, carne barata se se é negro, indígena, mulher, pobre.A marca da conjuntura, na política, é o fascismo (em quase todas as formas do que Umberto Eco caracterizou como fascismo eterno); no social, a fome. Uma dramática violação do mais fundamental dos direitos.
Em 1941, na efervescência de uma época mundial conturbada, o Presidente dos Estados Unidos Franklin D. Roosevelt, num discurso sobre o Estado da União, no que ficou conhecido como Four Freedoms speech (Discurso das Quatro Liberdades) como objetivos para assegurar a todos os seres humanos o patamar de realização da dignidade.
Ainda que o discurso partisse de uma motivação para designar o papel dos Estados Unidos no balanço de poder que começava a se desenhar no ambiente conflagrado daquela conjuntura, ele procurava apoiar-se em princípios éticos arguidos para o fim de estabelecer um grande arsenal da democracia.
Como quer que seja, depois da morte de Roosevelt, contando com forte protagonismo de sua viúva Eleanor, o conceito das “quatro liberdades” influenciou a redação da Carta das Nações Unidas, aprovada em 1945, e, de modo muito explícito, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada em 10 de dezembro de 1948, cujo comité de redação foi presidido pela própria Eleanor Roosevelt.
As quatro liberdades fundamentais assim designadas são a liberdade de expressão, a liberdade religiosa, a liberdade de viver sem medo e a liberdade de viver sem penúria, de ter um nível de vida adequado, de não passar fome.
Quatro carências que caracterizam o Brasil atual, epicentro de uma investida canibalizadora do sistema mundo neoliberal que exaure o povo devorando sua economia e interditando seu futuro, porque sufoca a sua esperança de bem viver, sem medo e sem passar fome.
Por isso que o Papa Francisco no discurso que proferiu no 1º Encontro Mundial dos Movimentos Populares, em Santa Cruz de la Sierra, no dia 09-07-2015, admoestou declaradamente o capitalismo no que produz uma “realidade injusta que vos foi imposta e a que não vos resignais opondo uma resistência ativa ao sistema idólatra que exclui, degrada e mata”, ao mesmo tempo que exortou para uma mobilização transformadora ética, democrática, solidária e fraterna, dessa realidade: “Queremos uma mudança nas nossas vidas, nos nossos bairros, no vilarejo, na nossa realidade mais próxima; mas uma mudança que toque também o mundo inteiro, porque hoje a interdependência global requer respostas globais para os problemas locais. A globalização da esperança, que nasce dos povos e cresce entre os pobres, deve substituir esta globalização da exclusão e da indiferença”.
No Brasil, conforme dados recém divulgados, 33 milhões de pessoas passam fome, numa situação que faz retroceder o nível de penúria para o mesmo patamar de 30 anos atrás; 6 em cada 10 convivem com insegurança alimentar hoje. Esse dado cruel consta do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, feito pela Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional) e executado pelo Instituto Vox Populi.
Na interpretação dos dados, em 2022, 1 de cada 3 brasileiros já fez alguma coisa que lhe causou vergonha, tristeza ou constrangimento para conseguir alimento. Para Francisco Menezes, consultor da ONG internacional ActionAid e ex-presidente do Consea (2004-2007), três das principais causas do aumento da fome no país são o empobrecimento da população, o desmonte de políticas sociais e de abastecimento, e a crise climática.
Também em meu espaço do Jornal Brasil Popular (https://www.brasilpopular.com/ossos-de-boi-arroz-e-feijao-quebrados-e-pe-de-galinha-fome-no-brasil/), em texto de agosto de 2021, eu já chamara a atenção para essa condição, de crescente, violação dos direitos fundamentais e da escalada de exclusão. Na pandemia de coronavírus o desemprego aumentou, os preços subiram e a fome explodiu. São mais de 19 milhões de brasileiros passando fome, segundo a última pesquisa da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN). Em 2018, eram 10,3 milhões. A perda de poder aquisitivo deixou, ainda, mais da metade do Brasil sem acesso pleno e permanente a alimentos. São 116,8 milhões de brasileiros (55,2% da população) que não necessariamente comem as três refeições por dia (insegurança alimentar). Três anos atrás, o IBGE registrava 36,7% da população nesse status, o que já era alto em comparação com 2013: 22,9%.
O dado trazido por essa pesquisa é especialmente preocupante porque aponta para danos futuros. Estudos sugerem que o impacto da fome entre crianças e adolescentes tem efeitos deletérios imediatos na saúde e no bem-estar, com potencial comprometimento das potencialidades desses indivíduos.
Comentando a pesquisa, conforme depoimentos em matéria publicada pelo sítio do Instituto Humanitas da Unisinos (Universidade do Vale do Rio dos Sinos (https://www.ihu.unisinos.br/619351-fome-atinge-33-milhoes-de-pessoas-no-brasil-mesmo-numero-do-inicio-da-decada-de-90-diz-pesquisa), os especialistas ouvidos advertem para o fato de que já não fazem mais parte da realidade brasileira aquelas políticas públicas de combate à pobreza e à miséria que, entre 2004 e 2013 reduziram a fome a apenas 4,2% dos lares brasileiros (tirando o País do mapa da fome mundial)”, e que “as medidas tomadas pelo governo para contenção da fome hoje são isoladas e insuficientes, diante do cenário de alta inflação, sobretudo dos alimentos, do desemprego e da queda de renda da população, com maior intensidade nos segmentos mais vulneráveis.”.
Conforme diz o jornalista argentino Martín Caparrós, num sistema que expande a exclusão“a fome é a metáfora mais brutal da desigualdade e sua causa não é a pobreza, mas a riqueza de uns poucos”, uma forma de gestão de governos que servem a esse modelo perverso de produção de desigualdades (https://www.ihu.unisinos.br/619296-morrer-de-fome).
Realmente, não só o contexto adverso agudizado pela pandemia pode explicar a tragédia em curso. Há muito desgoverno e mesmo uma intencionalidade administrativa necropolítica, ressalvadas as iniciativas positivas locais. O resultado é que com o “agravamento da pobreza o estado não [têm] mais estruturas para responder à altura. Não por acaso, 15,9 milhões de pessoas (8,2% da população) relataram ‘sensação de vergonha, tristeza ou constrangimento” por terem sido obrigadas a usar de meios “social e humanamente inaceitáveis para obtenção de alimentos’”.
Em O Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas: enunciados jurídicos. Organizadoras e organizadores Valéria Torres Amaral Burity, Antonio Escrivão Filho, Roberta Amanajás Monteiro, José Geraldo de Sousa Junior (Organizadores). Brasília: FIAN Brasil e O Direito Achado na Rua, 2021,- http://estadodedireito.com.br/28954-2/ – já procuramos resgatar essa dimensão humanizadora da alimentação e da nutrição como direitos humanos. Esse texto, aliás, foi judiciosamente examinado pelo Autor na Dissertação.
O Autor junta à Dissertação, como apêndice, um Quadro-Síntese do Diagnóstico e das Recomendações do MNPCT referentes a alimentação no sistema penitenciário do Brasil, por unidade federativa (Excertos dos Relatórios de Visitas a Unidades). Seu valor descritivo se acentua pelo horror que revela. Vale como explicação, lembrando o relatório de Engels sobre o problema da habitação na Inglaterra, indicando que “a descrição verdadeira do objeto é simultaneamente a sua explicação”.
Por essa razão, talvez, o Autor pontifique, em conclusão: “Pelo que se reafirma não haverá um autêntico projeto de nação se não for garantida a obrigação do Estado de prover o Direito Humano à Alimentação e Nutrição Adequada, sobretudo do custodiado. Isso nos desafia a ficar sempre mais atentos e mobilizados para reverter politicamente esse cenário que nos condena a ser um dos países que mais mata de fome ou extermina, quando não encarcera condenando a ‘Pena de Fome’”
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
O Direito Achado na Favela – A Dinâmica do Pluralismo Jurídico na Favela do Vidigal
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
O Direito Achado na Favela – A Dinâmica do Pluralismo Jurídico na Favela do Vidigal. Osias Pinto Peçanha. Rio de Janeiro: Editora Processo, Edição: 1ª, 2022, 170 p.
Conforme a descrição preparada pela Editora, a pesquisa que originou esta obra tem, pelo menos, dois objetivos. Como objetivo declarado, o propósito foi investigar a existência de práticas legais dentro de microssistemas sociais. Práticas não necessariamente postas pelo Estado, mas que funcionam nesses locais, favelas e demais regiões periféricas, como instrumentos de pacificação de conflitos. O objetivo não expressamente declarado é mostrar a existência de vida cidadã e busca por dignidade nas regiões tradicionalmente não contempladas por adequado investimento público. O morador de favelas e demais periferias titula, consome, é tributado e contribui para a manutenção do Estado. O mínimo que merece e espera é o acesso efetivo aos bens públicos. O mínimo que merece é respeito.
Elaborar prefácios tem sido uma nota característica de minha produção intelectual recente. Em parte, o grisalho da carreira deixou uma trilha demarcada por mais de quarenta anos de docência, num percurso feito em conjunto com muitos caminhantes, num andamento recortado pela orientação ou pela discussão sobre mais de duas centenas de monografias, dissertações e teses.
Certamente um ofício, mas muito em geral um deleite, um gosto cultivado nas ricas interlocuções e no sempre atualizado aprendizado. Prefácios têm sido o testemunho ou antes, a memória desse enredo de gosto e de trabalho. Tarefa e prazer continuados.
Aqui, um exemplo desse enlace. Prefacio o livro de OSIAS PINTO PEÇANHA. O Direito Achado na Favela: A Dinâmica do Pluralismo Jurídico na Favela do Vidigal, originalmente uma Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Estácio de Sá como requisito para a obtenção do Grau de Mestre em Direito, sob a orientação do Professor Enzo Bello e, com a publicação da obra, me valho do texto para compor este Lido para Você.
Ora, não faz muito, me incumbi de também prefaciar, em primeira e em segunda edições, o livro Curso de Direito à Cidade: Teoria e Prática, obra organizada por Enzo Bello e Rene José Keller, lançada em 2018, pelo selo da Editora Lumen Juris, do Rio de Janeiro.
Ao fazer o prefácio dessa obra, distingui a perspectiva de seus organizadores, de buscar “suprir uma lacuna editorial, condensando temas e estudos que por vezes não passam por um processo de sistematização, com o intento de oferecer aos leitores, dos mais variados níveis e áreas de formação, em linguagem didática e acessível, um curso que tenha por premissa o exame do Direito à Cidade sob a perspectiva crítica”.
E assim, designar aproximações que são mediadas pela Ciência Política, Economia Política, Serviço Social, Sociologia Urbana, Arquitetura e Urbanismo, Geografia e Direito, que as leituras trazidas pelo livro, seguindo um padrão lógico-conceitual comum à construção de cada unidade (capítulos), a obra abrange temas que tratam do Direito à Cidade no Viés Interdisciplinar (Conceito, questões, problemas, contradições, possibilidades), suas Regulações e os desafios da Prática (Envolvendo estudos de casos), que interpelam o Direito Urbanístico na sua exigência de contínua atualização.
Nos tempos sombrios que estamos atravessando, marcados por surtos de desdemocratização e de desconstitucionalização, notadamente no bloqueio ao processo recente de construção social dos direitos, “tempos de cerceamento dos direitos e de tentativas de restrição da sua garantia pela via estatal como forma de favorecer os agentes do mercado, parece oportuno refletir acerca das problemáticas que envolvem a cidade”, dizem os organizadores, a obra assume fortemente a função de peça de resistência, Ela exibe e “projeta grande parte das contradições do modo de produção capitalista, expondo as desigualdades sociais ínsitas a este modo de produção da vida social e sistema econômico”, prestando-se ao enfibramento das consciências que se formam nas lutas por reconhecimento de dignidade e de direitos e que precisam se armar para não recuar das conquistas da cidadania.
Essa é uma das chaves para orientar leituras desses temas, porque em tempos de golpe, é importante resistir e esgrimir o requisito da legitimidade para aferir reconhecimento aos sujeitos que se colocam no protagonismo da política, tal como venho insistindo desde 2016 (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Resistência ao Golpe de 2016: Contra a Reforma da Previdência. In GIORGI, Fernanda et al, orgs, O Golpe de 2016 e a Reforma da Previdência. Narrativas de Resistência. Bauru: Projeto Editorial Praxis/Cabnal6Editora, 2017, pp, 242-246); SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Direitos não são quantidades, são relações (Entrevista), IHU OnLine, Revista do Instituto Humanitas da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. São Leopoldo, n. 494/ano XV, 2016, pp. 64-72).
Uma outra chave possível é, talvez, contribuir para designar as condições pedagógicas para constituir cidades educadoras (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Cidades Educadoras. Revista do SINDJUS-Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário e do Ministério Público da União no DF, Brasília: ano XVII, n. 59, 2009, p. 4), cidades que partam da constatação de que elas tem um governo eleito democraticamente e seu dirigentes se empenham em incentivar projetos de educação para a cidadania. Cidade nas quais as pessoas que nelas vivem acabem conhecendo melhor as situações que fundamentam as decisões relativas à sua sociabilidade e vivenciem de forma efetiva a experiência democrática. Cidades que permitam exercitar experiências de sociabilidade, desde as práticas de orçamento participativo, às de educação para a democracia, direitos humanos, cultura de paz, mobilizando redes e instituições que insiram nas regulamentações pactuadas e nas posturas, a lógica da inclusão e da solidariedade.
Num sentido valioso de atualização temática, trata-se de confirmar a necessidade de seguir firme no propósito de enfrentar os desafios teóricos e sociais e, mais ainda no presente, os desafios políticos que se colocam para os que estudam, pesquisam e formulam no campo do direito urbanístico e do direito à cidade.
Há que se continuar a incentivar os estudos e pesquisas, no âmbito acadêmico, acolhendo e oferecendo direções epistemológicas para a designação de temas e questões pontuais, no plano micro, para incentivar trabalhos (teses, dissertações), que contribuam para organizar as novas agendas não só para as teorias críticas, como também para qualificar as lutas urbanas que demandam a construção de repertórios para o melhor conhecimento e a mais orientada direção de intervenções necessárias nesse campo.
Assim pode ser qualificado o livro de Osias Pinto Peçanha. O trabalho tem por propósito pesquisar a existência de práticas jurídicas em grupos sociais ou étnicos e em favelas. Enfatiza a insuficiência da definição normativista do Direito, além do esgotamento do modelo jurídico normativo baseado em uma estrutura excludente e segregadora.
A pesquisa demonstra que países latino-americanos, dada a diversidade étnica e cultural de seus povos, buscaram reconhecer, dentro de seus respectivos marcos territoriais, as diversas nações existentes baseadas em questões de plurinacionalidade, pluriculturalidade e plurijuridicidade.
Inicialmente retrata o cenário e características de uma favela carioca, o Vidigal, expondo alguns aspectos geográficos e etnográficos da região, para que restasse demonstrado o ambiente no qual seria desenvolvida a pesquisa. Ato contínuo, a pesquisa aborda teorias críticas à concepção estatal do direito, além do estudo da legislação pertinente. Por fim, demonstra a busca por novos paradigmas visando a uma concepção jurídica que alcance de forma igualitária todos os sujeitos de direitos, sejam estes coletivos ou individuais.
A pesquisa que lhe deu origem teve como objetivo principal analisar possíveis práticas legais existentes no seio da favela do Vidigal. Referidas práticas legais seriam tanto baseadas no Direito estatal quanto desenvolvidas e aplicadas pelos próprios protagonistas em razão dos objetivos e costumes locais, e podem ser complementares ou até opostos ao Direito oficial. Essas práticas jurídicas não oficiais demonstrariam a existência de um direito achado na favela, externando a possibilidade de uma espécie de pluralismo jurídico oriundo de uma nova fonte de normatividade e legitimidade.
A partir de observação não participante iniciei estudo investigando as origens e espécies dos conflitos de interesses entre os moradores do Vidigal entre finais dos anos de 2012 e 2015, no período pós-UPP3, como esses moradores administram esses conflitos, como e onde são buscadas as soluções, quais os atores envolvidos na solução dos conflitos, e quais os meios utilizados. Antes mesmo de iniciar a coleta de dados constatei que, dos conflitos de interesse entre os moradores da favela do Vidigal, o tema mais discutido envolve o direito de propriedade da terra, propriedade do espaço e ocupação de espaço. A propriedade discutida nesses conflitos de Unidade de Polícia Pacificadora, programa implementado pelo Governo estadual objetivando a presença do Estado, mediante representação da Polícia Militar, no interior de algumas favelas/comunidades.
Forte no livro a questão do Pluralismo Jurídico com base na qual o Autor quer analisar: (i) se existe um Direito não oficial; (ii) se existir um Direito não-oficial, qual sua legitimidade?; (iii) o Direito é um saber local? No Brasil, seria possível reconhecer o Pluralismo Jurídico?; (iv) as tensões sociais na Favela podem ser resolvidas por um Direito não estatal? (v) há legitimidade nos atores que participam da administração dos conflitos entre osmoradores da Favela?
Conforme ele indica, para desenvolver a pesquisa foi necessário perquirir as razões que levaram ao surgimento, crescimento e fortalecimento das favelas na cidade do Rio de Janeiro; estudar o surgimento da favela do Vidigal, os aspectos relacionados às tentativas de remoção dos moradores e sua luta pela resistência; identificar a existência e conhecer a natureza de conflitos sociojurídicos entre os moradores da favela do Vidigal; levantar e analisar dados relacionados aos conflitos identificados; investigar a legitimidade dos atores envolvidos na pacificação dos conflitos identificados; verificar a existência, ou não, de práticas que caracterizem um Pluralismo Jurídico.
Sinto-me contemplado e em boa companhia, pela aplicação teórica que faz no exame do tema, com base nas contribuições de Boaventura de Sousa Santos e Antonio Carlos Wolkmer sobre o pluralismo jurídico; e no campo teórico-jurídico, no que propõe Roberto Lyra Filho e os vários aportes de O Direito Achado na Rua.
O pluralismo jurídico, que o Autor adota, como uma construção crítica do Direito, opõe-se à concepção normativista-estatal, monista, segundo a qual, em síntese, direito é um conjunto de normas, oriundas do Estado, dotadas de sanção. A teoria pluralista estabelece o Direito como uma construção descolonizante, importante para uma mudança nas estruturas de dominação e controle existentes no Estado, mas não apenas dessa forma. Há pluralismo jurídico também nas práticas legais próprias de povos ou grupos nacionais ou étnicos, baseadas em sua cultura ou costumes, bem como em uma estrutura de plurinacionalidade e pluriculturalidade, existentes no marco territorial do Estado.
Não obstante, há microssociedades ou microssistemas sociais que não estão inseridas nas concepções sociais de plurinacionalidade ou pluriculturalidade, eis que insertas na mesma lógica capitalista-neoliberal do Estado, como no caso das favelas cariocas. Nestas, também são encontradas práticas legais próprias não relacionadas a qualquer mudança de estrutura de dominação ou poder, nem baseada em questões de culturalidade/ancestralidade, mas fundamentadas em costumes locais e no desejo de pacificação e harmonia das relações sociais locais.
Considero o livro uma novidade depois que fui mobilizado pelo trabalho de Adriana Nogueira Vieira Lima: Do Direito Autoconstruído ao Direito à Cidade. Porosidades, conflitos e insurgência em Saramandaia. Salvador: EDUFBA, Coleção PPG-AU, 2019, originalmente uma tese prêmio Capes em Arquitetura.
A tese, da qual deriva o livro, diz o seu resumo, “busca analisar a produção de direitos urbanos pelos sujeitos coletivos de direito em um contexto assimétrico de acesso à cidade. Para isso, adota a teoria da pluralidade jurídica como instrumental analítico. Parte-se do pressuposto de que o processo instituinte de direitos urbanos é interescalar e envolve complexas fontes de legitimação que têm na sua base relações de conflito, reciprocidade e autonomia. A pesquisa, que adota uma perspectiva interdisciplinar, foi desenvolvida com base no trabalho de campo realizado no Bairro de Saramandaia, localizado em Salvador, Bahia, Brasil. A etnografia foi eleita como método privilegiado de apreensão da realidade. Essa opção refletiu-se nas relações travadas em campo construídas através de interações e diálogos. Os pressupostos da pesquisa foram analisados através de três eixos que se interconectam: os direitos autoconstruídos pelos moradores face à ausência do Estado na prestação de serviços urbanos; constituição de direitos urbanos através de relações ambíguas com o Estado; e a (des)construção de direitos urbanos: insurgências, conflitos e disputas pelo espaço urbano. A pesquisa revelou que os direitos urbanos autoconstruídos encontram na necessidade de morar o seu principal parâmetro de legitimação social, emergindo daí as características do que denominamos Direito Autoconstruído: flexibilidade, reciprocidade e atrelamento entre forma e substância. Ficou evidenciado ainda que o Direito Autoconstruído ganha força nos processos de interação social, levando os sujeitos coletivos de direito a participarem da construção de um projeto político de transformação social que repercute no modo como ocorre a interação entre as escalas de juridicidades. Os resultados apontam também que as relações de porosidade entre as escalas de juridicidade são marcadas por conflitos, transgressões e permeabilidades e se nutrem das táticas potencialmente insurgentes praticadas pelos moradores. A partir dessa constatação, verificou-se que essas características se comportam de forma diferenciada em Saramandaia a depender do momento e do espaço do Bairro em que ocorrem, predominando relações de conflitos nas fronteiras e limites entre o Bairro e a Cidade. As análises evidenciaram a necessidade do fortalecimento de uma visão plural e democrática do Direito que contribua para o fortalecimento dos sujeitos coletivos e sua capacidade infindável de inventar novos direitos e caminhar em direção ao Direito à Cidade”.
A mim, que participei da Banca e da Comissão da Capes que outorgou o prêmio, a tese não se revelou tão só uma expressão atualizada de um tema com o qual venho me envolvendo desde os começos dos anos 1980 (“Fundamentação Teórica do Direito de Moradia”, in Direito & Avesso. Boletim da Nova Escola Jurídica Brasileira, Ano I, n. 2, 1982), mas a constatação, primeiro incluída na pesquisa pioneira (Joaquim Falcão, Invasões Urbanas: Conflitos de Direitos de Propriedade), organizada a partir da Fundação Joaquim Nabuco, quando então já se identificavam as estratégias sociais de acesso à terra urbana traduzidas em demandas às institucionalidades e ao direito positivo legislado e exegeticamente adjudicado, na forma do discurso de legitimidade de um direito justo contra o formalismo de enquadramento dessa matéria no direito civil, no direito processual, no direito administrativo, no direito constitucional e até no direito internacional dos direitos humanos que, ao impulso dos novos movimentos sociais e de direitos achados na rua, insurgentes, abrindo ensejo à constituição de novos campos – o direito urbanístico, de novas formas de reconhecimento cogente em declarações (Habitat) e de um constitucionalismo achado na rua (Silva Junior, Gladstone Leonel da e Sousa Junior, José Geraldo de. O Constitucionalismo achado na rua – uma proposta de decolonização do Direito. Rev. Direito e Práxis., Rio de Janeiro, Vol. 08, N.4, 2017, p. 2882-2902).
Os anos seguintes foram pródigos na construção de um campo demarcado pela construção do chamado direito à cidade, num percurso de formulação de muitos instrumentos técnicos, jurídicos, políticos, institucionais demarcado pela organização do Instituto Pólis em São Paulo e sua importante revista de estudos em que cuja organização muitas referências contribuíram para o adensamento desse campo – Ana Amélia Silva, Raquel Rolnik, Nelson Saule Jr, Emília Maricato – servindo à metodologias de pesquisa, de formulação de políticas públicas e de modos de governar, de organizar assessorias jurídicas populares (lembrando aqui o exercício genético e político dos Alfonsins – Jacques e Betânia -, culminando com o desenho que a Constituição de 1988 recepcionou, acolhendo as formulações dos movimentos sociais difundidos pelo país.
Encontro também na abordagem que desenvolvi em Prefácio para o Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador (Elizabeth Santos, coordenação geral et al., Salvador: UFBA, Escola de Administração, CIAGS: Faculdade 2 de Julho, 2012), a condição ontológica a que já me referi, no campo do direito, para responder à tarefa de instrumentalizar as organizações populares para a criação de novos direitos e de novos instrumentos jurídicos de intervenção, num quadro de pluralismo jurídico e de interpelação ao sistema de justiça para abrir-se a outros modos de consideração do Direito (Fundamentação Teórica do Direito de Moradia, Direito e Avesso. Boletim da Nova Escola Jurídica Brasileira, Editora Nair, ano I, n. 2, Brasília, 1982; Um Direito Achado na Rua: o direito de morar, Introdução Crítica ao Direito, Série O Direito Achado na Rua, vol. 1, Brasília, Editora UnB, 1987; com Alayde Sant’Anna, O Direito à Moradia, Revista Humanidades, Ano IV, n. 15, Brasília, Editora UnB, 1987; com Alexandre Bernardino Costa, orgs., Direito à Memória e à Moradia. Realização de direitos humanos pelo protagonismo social da comunidade do Acampamento da Telebrasília, Universidade de Brasília/Faculdade de Direito, Ministério da Justiça/Secretaria de Estado de Direitos Humanos, Brasília, 1998).
Elas dão base, seja enquanto processo para impulsionar a exigência de função social que a propriedade deve realizar, seja para ressignificar a semântica das lutas sociais por acesso à própria propriedade, descriminalizando o esbulho por meio da recusa a se deixar tipificar invasor e politizando o acesso com a retórica da ocupação, desde que atendendo à promessa constitucional de realizar reforma agrária e reforma urbana, tal como referiu referiu Ana Amélia Silva, aludindo à “trajetória que implicou uma concepção renovada da prática de direito, tanto em termos teóricos quanto da criação de novas institucionalidades” (Cidadania, Conflitos e Agendas Sociais: das favelas urbanizadas aos fóruns internacionais, Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de Sociologia da USP, São Paulo, 1996), consoante ao que indicou, nesse passo, Eder Sader, quando este aponta para o protagonismo instituinte de espaços sociais instaurados pelos movimentos sociais com capacidade para constituir direitos em decorrência de processos sociais novos que passam a desenvolver (Quando Novos Personagens Entraram em Cena, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1995).
É desse modo que Adriana Lima fala de um “direito achado nos becos de Saramandaia em Salvador”, para inferir a luta pela cidade, a partir de incursões singelas que revelam o protagonismo cotidiano para inserir no social novas juridicidades. Aqui é “o direito de laje”, agora positivado e enfim adjudicado a partir de novas decisões judiciais abertas “à exigência do justo, inspiradas em teorias de sociedade e de justiça”. No caso, registre-se recente decisão do judiciário pernambucano, na qual o magistrado constata que casa construída na superfície superior à do pai da autora da ação, carrega a pretensão de aquisição da propriedade e se coaduna ao direito de laje, previsto no art. 1.510-A do Código Civil, incluído pela Lei n. 13.465/2017, que dispõe: “O proprietário de uma construção-base poderá ceder a superfície superior ou inferior de sua construção a fim de que o titular da laje mantenha unidade distinta daquela originalmente construída sobre o solo”.
Para o magistrado Rafael de Menezes, autor da sentença pioneira nesse reconhecimento, é “óbvio que o ideal na sociedade seria todos terem suas casas separadas e registradas, diante da importância da habitação para a dignidade do cidadão. Mas em face do déficit habitacional que existe no país, o legislador acertou em adaptar o direito a uma realidade social. A sociedade cria o fato pela necessidade, e cabe ao direito regulamentar em seguida. O direito é testemunha das transformações sociais, ele regula o que já existe. A sociedade precisa ter o protagonismo sobre o Estado, não o inverso”.
Para Osias, na favela do Vidigal, microssistema social inserido em uma lógica capitalista-neoliberal, as práticas legais identificadas estão relacionadas à busca da prevenção e repressão de conflitos sociais que possam colocar em risco a paz e harmonia sociais. Essas práticas jurídicas podem ser identificadas como pluralidade jurídica dentro da teoria da construção dialética do Direito à medida em que representam o Direito produzido por aquele a quem o mesmo será aplicado, é o Direito aplicado ao seu protagonista – o povo.
Nesse diapasão, o desafio é pensar a matriz jurídica a partir da construção social de maneira a alcançar o mais amplamente possível as demandas sociais. No que diz respeito às favelas, mesmo que de forma controversa, a positivação do denominado “direito de laje” mostra que é possível admitir a existência de um pluralismo jurídico em microssistemas sociais, o que no caso do Rio de Janeiro são as favelas. Soma-se a isso o fato de não existir registros de quaisquer demandas no Juizado Especial Criminal que abrange a área onde estão localizadas as favelas da Rocinha, Vidigal, Chácara do Céu, Tabajaras, Pavão, Pavãozinho e Chapéu Mangueira.
As práticas legais existentes no ambiente da favela, respeitados os direitos e garantias fundamentais, podem ser consideradas pluralismo jurídico uma vez que este, para sua existência, não depende necessariamente de mudanças na estrutura de poder e dominação. A dinâmica do pluralismo jurídico na favela do Vidigal produz, ainda, o efeito de proporcionar segurança jurídica às transações realizadas entre os moradores, além de promover a prevenção de violações à paz local.
O livro do professor Osias Pinto Peçanha vem agregar sentido e novidade aos estudos do campo. Trata-se de não se perder o impulso dialógico que o jurídico pode vir a conduzir, para que, lembra J. J. Gomes Canotilho (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Editora Almedina, Coimbra, 1998), não reste o direito “definitivamente prisioneiro de sua aridez formal e de seu conformismo político” e, deste modo, incapaz de abrir-se a outros modos de compreender as regras jurídicas e de alargar “o olhar vigilante das exigências do direito justo e amparadas num sistema de domínio político-democrático materialmente legitimado”.
É nesse passo, agora numa marcha em cuja andadura vem lhe trazer ritmo o trabalho de Osias Pinto Peçanha, com toda a novidade da subjetividade ativa que motivou sua investigação (participante), que se apreende a tônica desse impulso dialógico que o jurídico pode vir a conduzir, tal como se divisa no projeto O Direito Achado na Rua, exatamente quando se refere ao Direito Urbanístico (conferir nesse sentido Introdução crítica ao direito urbanístico [recurso eletrônico] / organizadoras e organizadores, José Geraldo de Sousa Junior… [et al.]. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2019. 496 p. – (Série O Direito Achado na Rua; vol. 9). Formato: PDF. ISBN 978-85-230-0930-4. 1. Direito à cidade. 2. Movimentos sociais. 3. Direito urbanístico. I. Sousa Junior, José Geraldo de (org.). II. Série. CDU 34:711(81). Para acesso livre à obra, ver (https://livros.unb.br/index.php/portal/catalog/book/17). E sobre a publicação, aqui neste espaço Lido para Você: http://estadodedireito.com.br/introducao-critica-ao-direito-urbanistico/.
O que se tem é que O Direito Achado na Rua e o Direito Urbanístico se retroalimentam ao longo das suas trajetórias — seja por razões temporais, seja por razões territoriais —, pois é no espaço urbano que se verifica com mais intensidade a emergência de novos sujeitos coletivos capazes de reivindicar e produzir direitos no país.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
O juiz-legislador, a criação do Direito e o processo de efetivação dos Direito Fundamentais.
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Em livro que foi tema de meus comentários nesta Coluna Lido para Você – SOUSA JUNIOR, José Geraldo de (Organizador). Na Fronteira: Conhecimento e Práticas Jurídicas para a Solidariedade Emancipatória. Porto Alegre: Editora Síntese, 2003 – referi-me ao que ele representou como resultado de um belo projeto que inaugurou a política de cooperação interinstitucional promovida pela Faculdade de Direito da UnB.
Então, em relação ao livro exibido na coluna – http://estadodedireito.com.br/na-fronteira-conhecimento-e-praticas-juridicas-para-a-solidariedade-emancipatoria/ – mencionei que seu mais imediato resultado, enquanto antes de tudo, autoria havia sido, em primeiro lugar, a autoria explícita dos textos que o compõem. Cada um deles contribuição de autores professores docentes e de professores discentes do Programa Interinstitucional de Mestrado em Direito que as Faculdades de Direito da Universidade de Brasília (UnB) e do Centro Universitário da Grande Dourados (UNIGRAN) desenvolveram, em convênio, para a formação de mestres em Direito para a instituição sul-mato-grossense.
Mas o livro era também, síntese de muitas autorias, individuais e coletivas. Seus textos representavam as autorias individuais, ao menos uma parte da rica contribuição que, no período de realização do programa interinstitucional, os professores discentes agregados pela Faculdade de Direito da UNIGRAN ofereceram à discussão pública. A experiência foi pródiga em sugerir outras contribuições, além das dissertações finais, destacando-se como repositórios principais a revista Notícia do Direito Brasileiro, da Faculdade de Direito da UnB, e a Revista Jurídica, da Faculdade de Direito da UNIGRAN.
Mas o livro é, também, resultado da autoria coletiva que imanta o projeto que lhe deu origem. Essa autoria coletiva é a síntese dos esforços de mais de cinco anos de negociação, preparação, programação e execução de um cuidadoso projeto de capacitação acadêmica, mobilizador das energias solidárias das duas instituições que com ele se comprometeram.
Começo com referência a essa obra porque nela teve participação Bráulio Cézar da Silva Galloni, um dos docentes da Unigran que participou do projeto de formação e que contribuiu para a publicação com um ensaio desenvolvido durante o desenvolvimento do programa, como parte de atividades de estudos e pesquisas: As Atividades de Interpretação no Processo de Mutação Constitucional como Garantia dos Direitos Fundamentais: Limites, p. 193-204.
Já nessa etapa Bráulio demonstrava o bom manejo de temas da hermenêutica constitucional e dos direitos fundamentais, com a competência que mobilizou para a elaboração de sua dissertação, logo transformada no livro que objeto deste Lido para Você.
Embora não tenha sido o orientador da dissertação, tendo coordenado o curso e ministrado disciplina prevista na estrutura curricular do projeto, fui convidado pelo Autor para fazer o prefácio do livro.
O livro Hermenêutica Constitucional, de Bráulio Cézar da Silva Galloni, publicado pela Editora Galloni, eu disse no prefácio, é uma importante contribuição para o processo contemporâneo de realização da Constituição e de concretização dos direitos fundamentais.
O livro aprofunda uma discussão que o autor iniciara durante o desenvolvimento de um programa interinstitucional de pós-graduação, que me coube coordenar, em nome de minha instituição, a Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, visando à capacitação de docentes da Faculdade de Direito do Centro Universitário da Grande Dourados, em Mato Grosso do Sul.
Naquela ocasião, o autor orientou seu interesse para o tema da “atividade interpretativa no processo de mutação constitucional como garantia dos direitos fundamentais” e este, de fato, foi o título do artigo que publicou em obra que organizei e que reuniu ensaios dos professores e pesquisadores que participaram daquele esforço, conforme referência acima.
O objeivo do autor, em seu ensaio, foi “demonstrar que o juiz, diante do paradigma do atual Estado Democrático de Direito não pode continuar desenvolvendo sua atividade galgado na lógica dedutiva de antes, que servia muito bem ao positivismo kelseniano, mas não para a efetivação ou concretização dos direitos fundamentais trazidos pela nova realidade constitucional (p. 193)”.
Desde então, o autor avançou em suas pesquisas, consolidando os fundamentos de seu ponto de partida, afinal sustentados com vigor na dissertação de mestrado que defendeu em coroamento de seus estudos, obtendo o assentimento acadêmico aos seus pressupostos teóricos, pela exigente banca que o examinou, composta pelos professores da UnB Inocêncio Mártires Coelho, seu orientador, ex-Procurador-Geral da República, Gilmar Ferreira Mendes, Ministro do Supremo Tribunal Federal e Marcus Faro de Castro, à época, Diretor da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília.
Bráulio traz ao debate, em seu livro, esses fundamentos, contribuindo para repensar a Constituição e o Direito Constitucional e oferecer novas bases para o conhecimento e a interpretação do Direito.
Com efeito, conforme salienta o autor, a concepção de Constituição que baliza suas ideias, distancia-se “do positivismo jurídico estatal, de feição formalista, para voltar-se ao sentido, ao fim, aos princípios políticos e às teses ideológicas que a animam”. Insere-se, pois, o autor naquela perspectiva que J. J. Gomes Canotilho aponta para o Direito Constitucional, de recuperação do “impulso dialógico e crítico que hoje é fornecido pelas teorias da justiça e pelas teorias críticas da sociedade”, sob pena de restar “definitivamente prisioneiro de sua aridez formal e de seu conformismo político”.
Nessa linha, o autor, da mesma maneira que o constitucionalista português, faz apelo à ampliação das possibilidades de compreensão e de explicação dos problemas fundamentais do direito constitucional, de modo a orientar uma hermenêutica vigilante “das exigências do direito justo e amparadas num sistema de domínio político-democrático materialmente legitimado”, como indica Canotilho.
É nesse cadinho hermenêutico que o autor vai situar a outra baliza de sustentação de seu trabalho, contida na ideia de que a interpretação deve ser “entendida como recriação e inserção em um mundo comprometido com a intencionalidade e os valores”, para reivindicar uma disposição criadora para a atividade judicial e do juiz.
A abordagem que o autor desenvolve, bem fundamentada e apoiada em leituras muito atualizadas, ressalta a compreensão plena do ato de julgar, rejeitando a falsa oposição entre o político e o jurídico. Por isso ela revela, também, a dupla crise que perpassa o tema em discussão. De um lado, uma crise de conhecimento traduzida na perda de confiança epistemológica acerca da formação teórica dos juristas; e de outro, uma crise de legitimidade presente na atuação dos operadores de direito, afetando a sua própria função social, especialmente os magistrados, colocados em face de problemas e conflitos novos que sequer dão conta de compreender.
O livro de Bráulio Cézar da Silva Galloni é, pois, por tudo isso, um exercício exemplar de estruturação de novas categorias aptas a abrigar as direções evolutivas do conhecimento e da interpretação do Direito Constitucional, especialmente frente à necessidade de proteção aos direitos fundamentais.
Essas direções transparecem do sumário da obra, judiciosamente analítico em suas demarcações problematizantes, a partir da sinopse que expressa a organicidade da obra: 1. O Direito e suas manifestações históricas; 2. A ideia de Direito e o poder que o cria; 3. A atividade interpretativa no processo de criação; 4. Constitucionalismo, Constituição e Hermenêutica; 5. A criação jurisdicional no processo de efetivação dos Direito Fundamentais.
No esquema proposto pelo autor, em que pese a abertura neoconstitucionalista que as promessas das constituições nas re-emergências democráticas, tal como no Brasil no movimento constituinte de 1988, não se deve perder de vista que a simples positivação não garante todos os avanços assim realizados. Aquele efeito encantatório, imobilizador e de ordem que faz o encantamento das disposições pós-positivistas, não deve perder de vista que a só constitucionalização não assegura o cumprimento de promessas só pela força dos textos.
Os movimentos sociais nunca deixaram de reivindicar a rua como espaço de afirmação, conquista e avanço da juridicidade. Os eventos de 2016, no Brasil, e a conjuntura de desdemocratização ainda em curso, advertem para esse cuidado.
. Nesse ponto, sobre esse tema, cuida-se imediatamente, aliás como o autor divisa no livro, mais que nunca de abrir a preocupação já anunciada por Gomes Canotilho, acerca da multiplicidade de sujeitos que se movem no debate constitucional contemporâneo que tende a abrir expectativas de diálogo político estruturado na linguagem do direito, gerando na expressão dele, “posições interpretativas da Constituição” que emergem desse processo e formam uma luta por posições constituintes, luta que continua depois de aprovada a constituição (CANOTILHO, J. J. Gomes. Cf. Entrevista que me concedeu: Pela Necessidade de o Sujeito de Direito se Aproximar dos ‘Sujeitos Densos’ da Vida Real. Constituição & Democracia. Brasília: Faculdade de Direito da UnB, n. 24, julho de 2008, p.12-13) tal como se deu, por exemplo, no STF na decisão unânime em reconhecimento à constitucionalidade das cotas raciais para acesso à universidade (ADPF 186).
No arsenal dessa luta, o social (direitos) se posiciona contra a mercadorização intensificada pelo mercado (educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, assistência aos desamparados) e se busca o acesso público contra a onda de privatização que quer avançar sobre os bens da vida. Por isso a luta é, inclusive, semântica, quando se disputa até no plano judicial, a politização da reivindicação social (ocupação da moradia, terra e território), em face da tentação criminalizadora (invasão e esbulho possessório), o que levou o STJ a decidir não poder ser considerado esbulhador aquele que ocupa terra para fazer cumprir a promessa constitucional da reforma agrária.
Ainda com Canotilho, na Entrevista citada, cabe pôr em relevo a necessidade de recuperar no Direito Constitucional, sobretudo no campo dos direitos sociais, retomo o que ele mencionou e reproduzi acima, o impulso dialógico e crítico que hoje é fornecido pelas teorias políticas da justiça e pelas teorias críticas da sociedade, que o fazem definitivamente prisioneiro de sua aridez formal e do seu conformismo político. É preciso incluir, pois, no Direito Constitucional outros modos de compreender as regras jurídicas, orientadas pelas indicações de O Direito Achado na Rua, enquanto perspectiva de direitos verdadeiramente emancipatórios. (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de (org). O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2015).
É a partir dessa perspectiva, algo que deixo como sugestão ao autor para suas pesquisas futuras considerando que o que vou dizer não se colocava quando o trabalho foi publicado. Ou seja, a partir do que atualmente, com as experiências constituintes em curso na América Latina, aprofundar temas emergentes de um constitucionalismo em chave decolonial.
Disso cuida Antonio Carlos Wolkmer em texto publicado há poucos dias – Notas para Pensar la Descolonización del Constitucionalismo en Latinoamérica in Constitucionalismo en clave descolonial / Amélia Sampaio Rossi … [et al.].; Liliana Estupiñán- Achury, Lilia Balmant Emerique, editoras académicas. — Bogotá: Universidad
Para Wolkmer, “la propuesta de un constitucionalismo crítico bajo la óptica del sur global puede ser contemplada en los aportes innovadores de la propuesta del consti tucionalismo transformador de Sousa Santos, B. de y de las variaciones presentes que tienen en cuenta las epistemologías del sur y, más directamente, del constitucionalismo andino, ya sea en la vertiente del constitucionalismo pluralista (Yrigoyen Fajardo, 2011; Wolkmer, 2013, p. 29; Brandão, 2015), del constitucionalismo horizontal descolonial (Médici, 2012), constitucionalismo comunitario de la alteridad (Radaelli, 2017), constitucionalismo crítico de la liberación (Fagundes, 2020), constitucionalismo ladino-amefricano (Pires, 2019) o aún del constitucionalismo hallado en la calle (Leonel Júnior, 2018).
Realmente Gladstone Leonel Junior trouxe essa designação, ainda sem a aprofundar em seu livro de 2015, reeditado – Novo Constitucionalismo Latino-Americano: um estudo sobre a Bolívia, 2a. Edição. SILVA JUNIOR, Gladstone Leonel. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2018.
Na segunda edição, novas questões ensejam novas análises para a construção de um projeto popular para a América Latina a partir do que a experiência na Bolívia e em outros países nos apresenta. Das novidades dessa edição, a Editora e o Autor destacam: Um capítulo a mais. Esse quarto capítulo debate “O Constitucionalismo Achado na Rua e os limites apresentados em uma conjuntura de retrocessos”. A importância do mesmo está na necessidade de configurar um campo de análise jurídica que conjugue a Teoria Constitucional na América Latina com o Direito Achado na Rua, situando então, o Constitucionalismo Achado na Rua.
O livro, aliás, pavimenta o caminho para estudos e pesquisas nessa dimensão do constitucionalismo e o próprio professor Gladstone Leonel, em sua docência na Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense, criou a disciplina “O Constitucionalismo Achado na Rua e as epistemologias do Sul”, ofertada no programa de pós-graduação em Direito Constitucional na UFF. O programa da disciplina e maiores informações podem ser obtidos no seguinte site: http://bit.ly/2NqaABn.
Resenhei esse percurso em http://estadodedireito.com.br/novo-constitucionalismo-latino-americano-um-estudo-sobre-bolivia/. Claro que em O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática, volume 2, cit., no capítulo (Parte IV): O Direito Achado na Rua: Desafios, Tarefas e Perspectivas Atuais, já inscrevemos uma anotação programática nessa direção, ao indicar (p. 224): que “Essas experiências refletem uma espécie de ‘Constitucionalismo Achado na Rua’, em que os atores constituintes, os protagonistas desses processos, que envolveram povos indígenas, feministas, campesinas e campesinos, trabalhadoras e trabalhadores e setores historicamente excluídos, arrancam do processo constitucional novas formas de pluralismo jurídico e conquistas de Direitos”.
Com Gladstone eu também trabalhei o tema, procurando fixar a sua mais precisa enunciação. Assim, em Revista Direito e Práxis, On-line version ISSN 2179-8966 (http://old.scielo.br/scielo.php?pid=S2179-89662017000201008&script=sci_abstract&tlng=pt). LEONEL JUNIOR, Gladstone and GERALDO DE SOUSA JUNIOR, José. A luta pela constituinte e a reforma política no Brasil: caminhos para um “constitucionalismo achado na rua”. Rev. Direito Práx. [online]. 2017, vol.8, n.2, pp.1008-1027. ISSN 2179-8966. https://doi.org/10.12957/dep.2017.22331, valendo o resumo: “A crise política brasileira, evidenciada a partir de junho 2013, enseja novas reflexões para a conjuntura recente. A reforma do sistema político é necessária e um das formas de viabilizá-la é por meio de uma Assembleia Constituinte. Sobretudo, se observado os movimentos político-jurídicos dos últimos 15 anos nos países da América Latina. Cabe refletir sobre o momento e as possibilidades dessa aposta pautando-se em um ‘constitucionalismo achado na rua’”.
Quase que simultaneamente, também com Gladstone publicamos em La Migraña… Revista de Análisis Político, nº 17/2016. Vicepresidencia del Estado Plurinacional de Bolívia: La Paz, o artigo La lucha por la constituyente y reforma del sistema político em Brasil: caminhos hacia um ‘constitucionalismo desde la calle’.
Com essas referências, alcança-se o patamar que, juntamente com Antonio Escrivão Filho (Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos, Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016, especialmente no Capítulo V – América Latina, desenvolvimento e um Novo Constitucionalismo Achado na Rua, páginas 123-150), enunciamos, vale dizer, que o Constitucionalismo Achado na Rua vem aliar-se à Teoria Constitucional que percorre o caminho de retorno a sua função social. Uma espécie de devolução conceitual para a sociedade, da função constitucional de atribuir o sentido político do Direito, através do reconhecimento Teórico-conceitual da luta social como expressão cotidiana da soberania popular. Um reencontro entre a Teoria Constitucional, e o Direito compreendido como a enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade (p. 149).
Com pesquisadores do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua (Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq), organizamos o livro O Direito Achado na Rua: questões Emergentes, revisitações e travessias (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al (org). Coleção Direito Vivo volume 5. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2021), um capítulo é dedicado ao tema: Constitucionalismo Achado na Rua, com os temas A Democracia Constitucional e a Proposta para um Constitucionalismo Inclusivo no Brasil, de Bárbara R. R. C. de Oliveira, Jean Patrício da Silva, João Paulo Santos Araújo, Samuel Barbosa dos Santos e Betuel Virgílio Mvumbi; e O Constitucionalismo Achado na Rua, os Sujeitos Coletivos Instituintes de Direito e o Caso APIB na ADPF nº 709, de Marconi Moura de Lima Barum, Mauro Almeida Noleto, Priscila Kavamura Guimarães de Moura e Renan Sales de Meira.
É sempre estimulante poder construir com os compromissos de engajamento, sobretudo epistemológico, escoras teóricas para anaçar nessas emergências, revisitações e travessias, em arcos de cooperação não apenas orgânicos – os Grupos de Pesquisa – mas nos encontros conjunturais com aliados acadêmicos nos eventos, disciplinas e projetos que nossos coletivos de ensino, extensão e pesquisa proporcionam.
É nesse ambiente que podemos localizar abordagens instigantes que acolhem os achados desse processo, assimilando-os as suas estruturas de análise e de aplicação, e prorrogando seu alcance heurístico para novos níveis de discernimento. Assim, nesse recorte aqui realizado, o texto de Antonio Carlos Bigonha (Subprocurador-Geral da República, atua na 2a. Seção do Superior Tribunal de Justiça, proferindo pareceres em Direito Privado. Foi presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (2007/2011) e coordenador da 6a. Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais da PGR (2019/2021), além de destacado compositor, pianista e mestre em Música pela Universidade de Brasília. O texto, originalmente publicado na página do IREE, Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa, foi reproduzido pelo Expresso 61 (https://expresso61.com.br/2022/02/17/darcy-ribeiro-a-unb-e-o-constitucionalismo-achado-na-rua/), com o título Darcy Ribeiro, a UnB e o constitucionalismo achado na rua. Atente-se para o seguinte excerto:
As academias de Direito, públicas e privadas, adotaram, desde o advento da nova ordem democrática, uma visão do constitucionalismo hodierno que se tornou uma forma aprimorada de positivismo, como alerta Luiz Moreira, para o monopólio da normatividade e submissão das demais disciplinas à sua formalização. Os critérios principiológicos abertos na interpretação constitucional, segundo Moreira, conduziram praticamente ao esvaziamento dos resultados obtidos pela atividade política e pela atividade parlamentar constituinte, cuja legitimação proveio diretamente da soberania popular. Um truque hermenêutico que possibilitou aos juízes e aos promotores subjugar a democracia, malgrado sejam agentes públicos imunes ao sufrágio crítico das urnas, instaurando em todo o sistema uma grave crise de legitimidade.
Em suas Confissões Darcy Ribeiro descreve em detalhes as discussões que travou com o procurador da República “Manes” quando esteve preso em um batalhão do Exército. Em longos interrogatórios realizados na presença de seu advogado, Darcy apelava para o senso de Justiça de seu carrasco, na tentativa de demovê-lo do compromisso com a acusação sistemática, formulada para agradar ao governo ditatorial. Os militares, entre as múltiplas imputações de subversão, não o perdoavam pelo que havia feito na Universidade: seu crime maior era ter reunido na UnB intelectuais capazes de pensar o Brasil com independência. O estatuto da magistratura foi estendido ao Ministério Público pela Assembleia Nacional Constituinte para evitar que cenas deploráveis como esta se repetissem na vigência da Constituição de 1988.
A interpretação constitucional que setores retrógrados da magistratura e do Ministério Público adotaram para o exercício arbitrário de suas prerrogativas e atribuições, ao longo dos últimos 30 anos, faria corar monges de mármore, para usar uma expressão muito referida pelo ministro Gilmar Mendes, em sessões de julgamento no STF. Desconheço em que fonte foram beber seu fundamento teórico, fruto talvez de uma corrupção semântica, resultado da leitura equivocada da matriz germânica ou estadunidense. Neste contexto, o Direito Achado na Rua afirma-se como um poderoso vetor hermenêutico, uma abertura capaz de barrar os exageros do neoconstitucionalismo e oferecer novas epistemologias que conduzam à interpretação da Constituição e das leis do País para a afirmação e o fortalecimento dos direitos humanos, segundo uma agenda comprometida com os interesses do nosso povo. E ouso supor que Darcy Ribeiro e Machado Neto subscreveriam, novamente, esta virada hermenêutica.
Em comunicação oral realizada no GT 12- Constitucionalismo achado na rua, por ocasião do Seminário Internacional O Direito como Liberdade – 30 Anos do Projeto O Direito Achado na Rua, Menelick de Carvalho Netto e Felipe V. Capareli, com o título “O Direito Encontrado na Rua, a Luta por um Constitucionalismo Plural e Inclusivo, e a necessidade de enfrentar o risco autoritário de uma política simplista e privatizante. Visão dicotômica do Estado e do Direito” (Revista da Defensoria Pública do Distrito Federal (RDPDF, 2019, vol. 1, n. 2) – Dossiê Ordenamentos jurídicos, monismos e pluralismos: O Direito Achado na Rua e as possibilidades de práticas jurídicas emancipadoras), também extraem consequências dessa dimensão constitucional estabelecida na rua.
É importante, eles dizem, “recordar que o constitucionalismo é permanente tentativa de se instaurar e se efetivar concretamente a exigência idealizante que inaugura uma modernidade no nível da organização de uma sociedade complexa, incapaz de lançar mão de fundamentos absolutos e que, por isso, só pode legitimar seu próprio sistema de direitos na medida em que os potenciais podem se reconhecer como coautores e autoras das normas que os regem. Ou seja, ou o direito é constitucionalmente achado na rua e nas ruas, e com as ruas, é construído e reconstruído de forma plural e inclusiva, ou, sem dúvida, tende-se a privatizar o próprio Estado, mediante a colonização do direito por uma lógica simplista binária de cunho plebiscitário e na da democrática, pois infensa a qualquer eficaz de bate”.
É com esse acumulado que chegamos ao Seminário Internacional O Direito como Liberdade: 30 Anos do Projeto O Direito Achado na Rua, realizado em Brasília, na UnB, em dezembro de 2019. No programa toda uma seção (Seção III) para o tema Pluralismo Jurídico e Constitucionalismo Achado na Rua. Esse material veio para o volume 10 da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade. Brasília: Editora UnB/Editora da OAB Nacional, 2021. Na seção podem ser conferidos os textos: Pluralismo Jurídico Comunitário-Participativo: processos de descolonização desde o Sul, de Antonio Carlos Wolkmer; A Contribuição do Direito Achado na Rua para um Constitucionalismo Democrático, de Menelick de Carvalho Netto; Constitucionalismo Achado na Rua em México: de los acuerdos de San Andrés al concejo indígena de gobierno, deJesús Antonio dela Torre Rangel; O Direito à Alimentação como um Direito Humano Coletivo dos Povos Indígenas, de Raquel Z. Yrigoyen Farjado; e Constitucionalismo Achado na Rua: reflexões necessárias, de Gladstone Leonel Júnior, Pedro Brandão, Magnus Henry da Silva Marques.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
Não é a maçã podre que deteriora a fruteira, mas a omissão de quem não a remove
por José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DFem
A condenação da ex-presidente e do chefe das Forças Armadas por golpe na Bolívia e a doutrina ou teoria dos frutos da árvore envenenada
Há no Direito uma teoria ou doutrina dos frutos da árvore envenenada (em inglês, “fruitsofthepoisonoustree”) derivada de uma metáfora que faz comunicar o vício da ilicitude da prova obtida com violação a regra de direito material a todas as demais provas produzidas a partir daquela. Essa teoria foi muito comentada entre nós em tempos de lawfare, para caracterizar uma tática de contrafação que se prestou para afastar por meio do sistema parlamentar-judicial, adversários políticos.
A metáfora jurídica procede de uma imagem produzida pelo senso comum, de que uma maçã podre tem o poder de estragar todas as outras. Claro que o fenômeno tem uma explicação científica, que identifica um hormônio gasoso chamado etileno que acelera o processo de maturação e, inclusive, apodrecimento, de outras frutas que estiverem ao lado.
Não é possível, pois, ter frutas em bom estado na fruteira enquanto não se remover as maçãs podres. Claro que uma razão sutil não ignora o nexo que desloca para as coisas o que é responsabilidade dos sujeitos: não é imediatamente a maçã podre que estraga o material da fruteira, e sim a omissão de quem não a remove da fruteira.
Notícia vindo da Bolívia ((https://www.poder360.com.br/internacional/ex-presidente-da-bolivia-e-condenada-a-10-anos-de-prisao/), dá conta que a ex-presidente, JeanineÁñez foi condenada a 10 anos de prisão por organizar golpe de Estado no País, por violação de deveres e resoluções contrárias à Constituição. Além da ex-presidente, foram também condenados a 10 anos de prisão o ex-comandante das Forças Armadas e o ex-chefe de polícia, ambos foragidos. Outros ex-comandantes militares receberam sentenças que variam de 2 a 4 anos de detenção.
Na Bolívia, como em outros países da América Latina, está em curso um processo, iniciado com a destituição das ditaduras dos anos 1970 em diante, que começou com a prisão e condenação, alguns a penas perpétuas que estão sendo cumpridas, dos militares argentinos que em seu processo autoritário de usurpação ou de desvio de finalidade no exercício do poder político, exercitaram uma atuação cruenta reconhecidamente violadora dos direitos fundamentais e dos direitos humanos. Esse processo se fortalece, para além da responsabilização judicial, com a extensão da disposição democrática que tem contagiado o protagonismo das mobilizações no continente, por justiça e por democracia.
A Bolívia é um bom exemplo, como o Chile, que depois do indiciamento de Augusto Pinochet, um dos mais sanguinários ditadores, vive nesse momento, a rica experiência de reconstitucionalização por meio de uma assembleia constituinte, com ampla participação social.
A prisão de Augusto Pinochet foi o cumprimento de ordem de prisão por violações contra os direitos humanos cometidos pelo ditador chileno, expedida pelo magistrado espanhol Baltasar Garzón e cumprida a 10 de outubro de 1998 em Londres seis dias depois com a prisão domiciliar que durou um ano e meio até sua libertação em março do ano 2000 pelo Governo do Reino Unido; Pinochet foi a seguir acusado por vários crimes pelo juiz Juan Guzmán Tapia. Morreu em 10 de dezembro de 2006 (que ironia, dia internacional dos direitos Humanos) sem que viesse a sofrer condenações.
Mas esse fato, que não se restringiu à prisão do chefe da ditadura militar que tomou o poder no Chile entre 1973 a 1990, foi um marco histórico por ter sido a primeira vez em que se aplicou o princípio da jurisdição universal, o que habilita o judiciário de outras nações a aplicar sanções contra crimes praticados por chefes de estado em um país, apesar da existência de leis de anistia locais.
Valeu para a construção desses conceitos de jurisdição universal, de exigência cogente dos princípios de responsabilização contra violações de direitos humanos, de reparação não só indenizatória mas simbólica das violências perpetradas, de imprescritibilidade dos crimes e de inaplicabilidade de auto-anistias, e de aplicação forte dos enunciados da justiça de transição, a notável contribuição do juiz Antonio Augusto CançadoTrindade, por duas vezes presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos e em exercício na Corte Internacional de Justiça (Haia) das Nações Unidas, quando faleceu em final de maio, valendo a citação como homenagem e tributo.
O exemplo da Bolívia, os precedentes da Argentina e do Chile, advertem que a justiça de transição formulou categorias muito consistentes para o juízo de responsabilidade política e histórica dos contraventores contra a Justiça e a Democracia, num processo que não prescreve.
O exemplo serve para que as tentações autoritárias, que optam pela exceção, se acautelem e temam.Como diz AntonioMuñoz Molina o escritor e acadêmico espanhol, autor entre outros de “Nada do Outro Mundo” (1993) e “A noite dos tempos” (2009): “Quando a barbárie triunfa, não é graças à força dos bárbaros, mas à capitulação dos civilizados. A única forma de pregar a democracia é pelo exemplo. É extraordinário como passamos a vida com olhos fechados, ouvidos entorpecidos, pensamentos preguiçosos”.
Não se deve ser omisso, indolente, preguiçoso ou negligente quando as maçãs começam a apodrecer na fruteira. Essa disposição ativa está designada na “Nota contra as intimidações das Forças Armadas”, de 11 Junho, 2022, da Associação Juízes para a Democracia, à vista dos termos do Ofício nº 14845/GM-MD, datado de 10/06/2022, assinado pelo Ministro de Estado da Defesa e endereçado ao Presidente do Tribunal Superior Eleitoral, no qual expressa que “as Forças Armadas não se sentem devidamente prestigiadas” pelo TSE em razão das respostas aos questionamentos feitos ao sistema de urnas eletrônicas no bojo da Comissão de Transparência Eleitoral, e ainda que “a todos nós não interessa concluir o pleito eleitoral sob a sombra da desconfiança dos eleitores” vem manifestar sua perplexidade e indignação em face de seus termos.
Assim como se fez presente na tremenda mobilização que levou à realização do Forum Social Mundial Temático Justiça e Democracia, instalado em Porto Alegre, neste primeiro semestre de 2022. De todo modo, tal como mencionei aqui no Jornal Brasil Popular (https://www.brasilpopular.com/eleicoes-caminho-para-realinhar-acoes-democraticas/), com as eleições, caminho para realinhar ações democráticas, abre-se o ensejo para limpar a fruteira, começando pelas maçãs podres que instilam o veneno do golpe de estado, da quebra da institucionalidade, de agressão à constitucionalidade, de violência contra os direitos humanos, segundo os fundamentos da justiça de transição.
(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)
José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.
Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.
Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).
Bárbara de Alencar a heroína de Exu. A primeira presa política do Brasil.
Foi lançado em Brasília, no último 25 de maio, esse singular texto de Fernando Mousinho, escritor potiguar radicado no Distrito Federal. Eu até deveria ter estado presente no lançamento, a convite de Mousinho, para dizer algumas palavras. Mas os imprevistos do dia acabaram por me impedir participar do evento.
Uma pena. Não é uma penitência, é uma consideração trazer o livro para este Lido para Você. Eu queria muito ter confraternizado com meu conterrâneo potiguar (sou natalense por afeto e afinidade). Contemporâneo de Mousinho. Eu, mais transeunte pelo bairro de Petrópolis, ali onde está o Atheneu, onde estudei, num tempo de hegemonia do ensino público. Mesmo voltado para o ensino médio, naquele prédio histórico, havia catedráticos eméritos como Câmara Cascudo e meu avô Floriano Cavalcanti, professor de História (enquanto na Faculdade de Direito era titular da cadeira de Filosofia do Direito).
Não tive aulas com meu avô no Atheneu. Aulas célebres. Mas eu frequentava suas lições em casa, no alpendre ou na mesa patriarcal de refeições, no casarão da avenida Nilo Peçanha (hoje um grande edifício de apartamentos levantado no quintal da minha infância e que leva o nome do Desembargador Floriano Cavalcanti). Uma avenida curta mais que se fazia altiva numa ladeira que desembocava num balcão magnífico debruçado sobre a praia do forte e a praia do meio (hoje praia dos artistas, nome para o qual muito contribuiu minha irmã Dulce e a sua galeria do povo, instalada no muro de nossa casa na avenida Presidente Café Filho), à beira-mar (https://nominuto.com/noticias/ciencia-e-saude/se-essas-paredes-falassem/6351/).
A foto acima aparece como figura 11 da Monografia: A Galeria do Povo: um Movimento Histórico da Arte Potiguar, de Ébeson Rolim Lemos, Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Departamento de Artes. Curso de Licenciatura em Artes Visuais. Natal, 2015. Legenda da foto, p. 35: Figura 11 – Exposição da Galeria do Povo, no muro da casa de Dulce, Praia dos Artistas. Natal, novembro de 1977. Acima: Dulce Valladares (sobre o muro de sua casa) à esquerda e na ponta direita Ângela Lyra Lima. Abaixo: Cristina Câmara, Eduardo Alexandre, Haroldo Maranhão e Fernando Gurgel. Foto: Marcus Ottoni (file:///C:/Users/Jos%C3%A9%20Geraldo/Downloads/TCC%20-%20%C3%89beson%20Rolim%20Lemos%20-%202015.pdf).
No Atheneu tive aulas de latim com o Cônego Luiz Wanderley, vestido com sua batina preta surrada, cheia das cinzas de seu indefectível cigarro Astória. O cônego tocava o terror na hora das declinações. Meio surdo, não se prendia na articulação correta embora hesitante das palavras no rosa, rosae, no singular e no plural, nominativo rosa, rosae; vocativo rosa, rosae; acusativo rosam, rosas; genitivo rosae, rosarum; dativo rosae, rosis; ablativo rosa, rosis. Já desqualificava o arguido. Para ele o que valia era o ritmo. Cascudinho, decline o qui, quae, quod. E lá ia o esperto, numa fluência de quem tudo sabe: qui, quae, quod, quem tem barba tem bigode, só não come quem não pode, qui, quae, quod!. Brilhante, latinista, nota 10. “Seu Babau, quantas declinações existem no Latim”. “Sei não, professor”. “Sente, zero. Nominativo, genitivo, dativo, acusativo, vocativo e ablativo.” Era o Cônego Luiz Wanderley arguindo o saudoso Raimundo Torquato, apelidado de Babu, mas o padre já declinava no acusativo: “Babau” (ver Valério Mesquita, O Atheneu, Lembrança que o Tempo não Desfez, http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/o-atheneu-lembrana-a-que-o-tempo-na-o-desfez/515949).
Mousinho se fez escritor, com estórias sobre o Tirol, o bairro vizinho. Ele é autor, junto com outros tirolenses, que oferecem mais de duzentos “causos” e histórias engraçadas, vividas nas décadas de 1960 e 1970 que foram contadas no livro “Amigos do Tirol – causos e histórias verídicas do tempo que, em Natal, assalto era apenas uma festa de carnaval, e quadrilha uma dança junina” (http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/as-historias-de-um-bairro/165344).
Esse título dado a Bárbara de Alencar por volta de 1817, reposto no livro de Mousinho, está na história e veio para a lei que determinou sua inscrição no Livro de Heróis da Pátria.
Nascida no sertão pernambucano em 1760, na cidade de Exu, foi uma das poucas mulheres participantes da Revolução Pernambucana de 1817. Carrega, pois, o título da primeira presa política no Brasil, apesar de alguns questionamentos já que outras mulheres negras e indígenas também teriam participado da insurreição.
Num ensaio trazido para a Plataforma Dhesca (http://www.global.org.br/blog/mulher-e-o-seu-protagonismo-na-historia-do-brasil/), a propósito do 8 de março – A mulher e o seu protagonismo na história do Brasil, há uma consideração muito pertinente, ao chamar a atenção para o fato de que “o tempo e a atualidade mostram que o legado do país tem gênero”: “Neste 8 de março gostaríamos de exaltar mulheres que marcaram a história do Brasil, na luta por liberdade e direitos. Nomes como Dandara dos Palmares, Zeferina, Maria Felipa de Oliveira, Maria do Espírito Santo e Marielle Franco –aos quais eu gostaria de incluir Esperança Garcia, a escrava considerada a primeira advogada brasileira (Ordem dos Advogados do Piauí) – nos fazem relembrar da importante tarefa que temos – a de manter viva na história e na memória, esse legado. O Brasil carrega historicamente trajetórias de mulheres inspiradoras que revolucionaram o país na luta pela garantia de direitos não somente para elas, mas para todas e todos. Mas ainda assim, ainda que suas lutas fossem para a garantia dos direitos humanos, tiveram seus gritos silenciados por lutar contra uma política de extermínio, de corpos, de falas, de ideias”.
São mulheres, essas que foram mencionadas, mulheres negras, cujas histórias marcaram a formação social do País “e que deixaram seus legados para mostrar que são as verdadeiras protagonistas da luta e resistência em nosso país. Que os nossos corações e ideais estejam alinhados e juntas lutaremos contra toda e qualquer ameaça de governos e toda forma de autoritarismo. Porque a nossa vida pode acabar, mas os nossos sonhos são eternos”.
É conforme esse protagonismo que se destacou o nome da psiquiatra Nise da Silveira, para registro no Livro de Heróis, mas que teve a lei inteiramente vetada pelo Presidente da República.
Bem disse o cineasta, escritor, jornalista Jorge Oliveira, que com sua esposa e parceira Ana Maria Rocha, criaram uma filmografia da saga alagoana – Floriano, O Mestre Graça, Perdão Mister Fiel e o premiadíssimo Olhar de Nise, reagindo ao veto do Presidente da República ao projeto de lei que inscreve o nome da psiquiatra Nise da Silveira no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria. O veto à proposta foi publicado na edição do Diário Oficial da União (DOU) da quarta-feira (25/05), e poderá ser mantido ou rejeitado pelo Congresso.
”Bolsonaro vetou o projeto aprovado pela Câmara que incluiria o nome da psiquiatra Nise da Silveira no pantheon dos heróis e heroínas do Brasil. Ora, o que se pode esperar de um sujeito que tem como líder o torturador Brilhante Ustra? A Nise certamente não iria gostar de ter na sua homenagem a assinatura de um fascista”.
A matéria (PL 6.566/2019), de autoria da deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ), foi aprovada pelo Plenário do Senado em 24 de abril, com parecer favorável da senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA). Mas a Presidência da República argumentou que, após ouvir a Casa Civil, decidiu vetar a proposta, por representar “contrariedade ao interesse público” (Fonte: Agência Senado – https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/05/25/bolsonaro-veta-titulo-de-heroina-da-patria-para-nise-da-silveira.
Nise terá certamente esse merecido reconhecimento num futuro próximo quando o Brasil recupere seu ascendente curso democrático. O Livro de Aço, também chamado Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria, registra indicações aprovadas em lei que lhes confere o status de heróis e heroínas nacionais.
O Livro foi aberto com a inscrição do Alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, em 21 de abril de 1992, por ocasião do bicentenário de sua execução. Incluído pela lei 7.919, de 11 de dezembro de 1989,seguindo-lhe Francisco Zumbi, mais conhecido como Zumbi dos Palmares, líder quilombola, inserido em 21 de março de 1997, pela lei 9.315, de 20 de novembro de 1996.
O Livro tem já 53 nomes nele inscritos, enquanto mais três já aprovados ainda aguardam registro. Anna Justina Ferreira Nery, Ana Maria de Jesus Ribeiro, mais conhecida como Anita Garibaldi, Clara Camarão, indígena, considerada precursora do feminismo no Brasil, Zuleika Angel Jones (Zuzu Angel), Sóror Joana Angélica de Jesus,Maria Felipa de Oliveira, heroína negra da Independência do Brasil na Bahia, Dandara dos Palmares e Luiza Mahin, guerreiras negras do período colonial do Brasil, são as mulheres que constam desse elenco.
São muito poucas mulheres. Entre elas Bárbara de Alencar, reconhecida para fins da distinção primeira presa política do Brasil. Heroína da Revolução Pernambucana, líder independentista, republicana e abolicionista. Incluída pela Lei 13.056 de 22 de Dezembro de 2014.
Não há que se questionar esse título. Certo que outras mulheres terão se engajado e terão sofrido a repressão nos seus mais graves termos, em diferentes períodos e nesse conturbado momento de instabilidade que marca o primeiro reinado em seguida a independência (cf. Lília M. Schwarcz e Heloisa M. Starling. Brasil: uma Biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015). No capítulo 9 – Habemus Independência: Instabilidade Combina com Primeiro Reinado – as Autoras explicam a Revolução Pernambucana de 1817, de caráter republicano, liberal, mas que se manifestara como revolta por autonomia local para o mais efetivo desempenho dos interesses dos proprietários, da gente de bem.
Gente como a heroína republicana, mãe dos também revolucionários José Martiniano Pereira de Alencar e Tristão Gonçalves e avó do escritor José de Alencar, além de quinta avó do escritor Paulo Coelho.
O escritor Caetano Ximenes de Aragão publicou em 1980 o livro-poema Romanceiro de Bárbara sobre a Confederação do Equador com ênfase na saga desta heroína em 77 poesias, recentemente reeditado pela secretaria de cultura do Ceará sob a coleção Luz do Ceará.
Bárbara Pereira de Alencar é a mulher que apoiou as ideias republicanas que emergiam em Pernambuco em pleno século XIX. Integrante de uma família com destaque social, Bárbara era uma mulher rica e fazendeira da região Caririense – que naquela época, eram fazendas que foram construídas em vilas e dominadas pelos senhores de escravos que defendiam a monarquia, ou seja, eram a favor do rei. A senhora que aos 57 anos impulsionou os ideais republicanos no Ceará e participou das discussões e reuniões da Revolução, teve que fugir do sítio onde morava, o “Sítio Pau Sêco”. A mando do contrarrevolucionário e participante do reino, Joaquim Pinto Madeira, os soldados foram atrás dela para prendê-la, mesmo assim ela conseguiu se esconder nas casas vizinhas.
Segundo escreve Juarez Aires, no livro Dona Bárbara do Crato, “a revolucionária foi acolhida por Dona Matilde, que era mãe do capitão Manoel Joaquim Teles, que era também Juiz Ordinário do Crato. Dona Matilde já vendo que amiga iria ser presa a qualquer momento, pediu que seu filho recolhesse todos os documentos que comprovassem a participação na revolta. Os documentos foram levados a D. Matilde que os queimou de tal modo que nem a ata da independência, nem as proclamações e decretos do governo revolucionário foram encontrados, na devassa judicial”. Esse fato, de acordo com o Autor, “salvou dona Bárbara da pena de morte, mas não da prisão. Foi num presídio subterrâneo do Forte de Nossa Senhora de Assunção, em Fortaleza, que a revolucionária pagou sua pena de três anos de trabalho forçado. De lá, saiu com uma sede maior pela libertação do país e ainda defendeu seus ideais na Confederação do Equador, em 1824”.
O livro de Fernando Mousinho reúne prefácios que avalizam seu ensaio central na obra – Bárbara de Alencar, heroína de Exu – para demonstrar que apesar de seu lugar social, a personagem histórica se revelou com a fibra de uma disposição emancipatória:
Bárbara de Alencar, mulher de têmpera forjada no seio de uma organização social caracterizada pelas lutas de poder entre famílias tradicionais, de senhores de terra, de gado e gente; ou dito de outra forma, de senhores de baraço e cutelo. Portanto, em ambientes notadamente ocupados por homens, desafiou os poderes sociais e políticos do seu tempo.
Ainda na infância, ela aprendeu a ler e a escrever, uma ousadia feminina que facilitaria seu contato com as ideias revolucionárias e separatistas em ebulição nos seminários de Recife e Olinda. Bárbara levou às últimas consequências o fogo revolucionário de 1817.
Contrariando os padrões sociais da época – cujo núcleo essencial era o clã patriarcal rural, que se traduz em hegemonia econômica, social e política tão bem expressa na obra clássica de nossa literatura, Coronelismo, enxada e voto de Victor Nunes Leal – Bárbara de Alencar rompeu com a tradição exclusiva de homens no século XVIII e foi uma das mais importantes articuladoras e militantes do movimento emancipacionista de signo liberal, ao lado de nomes não menos aquilatados como Domingos José Martins; Antônio Carlos de Andrada e Silva; Abreu e Lima (padre Roma); José de Barros Lima, o “Leão Coroado”; padre João Ribeiro Pessoa de Melo Montenegro; Cruz Cabugá; Frei Caneca; Manuel Arruda Câmara; Padre Miguelinho, entre outros.
O livro recolhe material biográfico apto a inserir no existencial a dimensão política de um protagonismo que possa expandir o papel social da protagonista para além de seu lugar de classe ou estamental:
Bárbara enfrentou preconceitos machistas de toda ordem e lutou de armas em punho no movimento emancipacionista de 1817, na então Província de Pernambuco. O movimento entrou para a História como Revolução Pernambucana e também foi chamado de Revolução dos Padres, devido à participação de mais de meia centena de clérigos entre os insurretos.
Seus últimos dias foram um verdadeiro exílio domiciliar. Além das sequelas sofridas pelas prisões, torturas, fugas e perseguições, teve seus bens confiscados pelo Império e seu nome difamado pelos adversários políticos. Morreu em 28 de agosto de 1832, aos setenta e dois anos. Seu enterro ocorreu numa rede simples como pedira em vida, igualmente como eram sepultados seus escravos, que, segundo ela, eram seus amigos leais.
O livro de Fernando Mousinho abre espaço para retirar da dupla sombra que a obscurece a participação histórica de Bárbara de Alencar, que não reste reduzida em registros locais e incidentais. O primeiro é o empalidecer de 1817 em face da repercussão ampliada dos acontecimentos de 1824, com a Confederação do Equador; o segundo, a pouca atenção ao protagonismo feminino numa cultura insistentemente patriarcal.
Para o segundo aspecto Mousinho revela a sua intenção. Mostrar o pioneirismo de uma mulher que não se deixou subjugar aos preconceitos de seu tempo: “Bárbara Pereira de Alencar representa exemplo de mulher que superou o seu tempo e fez história, ao contrário do que aludem aos quatro cantos do mundo as versões preconceituosas a respeito da participação feminina na sociedade e nas lutas libertárias”.
Sobre o primeiro, uma reflexão. Com a Confederação do Equador, um movimento republicano e separatista – segundo Schwarcz e Starling – “os confederados reivindicavam que o Brasil fosse organizado de maneira análoga ‘às Luzes do século’, seguindo o ‘sistema americano’ e não o exemplo da ‘encanecida Europa’. Na bandeira dos revoltosos figuravam não só os dois produtos da região – o algodão e a cana – como representações da República e do federalismo”. O Imperador debelou a revolta e sentenciou os revoltados, ordenando que fossem condenados. Assim que, “alguns líderes foram assassinados, enquanto outros, como Frei Caneca, acabaram presos. Quinze foram condenados a morte, entre eles Frei Caneca”.
O poeta e escritor João Cabral de Mello Neto descreveu, em versos, o último dia de Frei Caneca, em sua obra O Auto do Frade. Seu irmão, o historiador Evaldo Cabral de Mello, foi o organizador e redigiu a introdução ao livro Frei Joaquim do Amor Divino Caneca Coleção Formadores do Brasil, Editora 34, Ltda., 2001, intitulada Frei Caneca ou a Outra Independência. De João Cabral no Poema O Auto do Frade, vale o Fragmento: “Acordar não é de dentro,acordar é ter saída.Acordar é reacordar-seao que em nosso redor gira”.
Também Bárbara, com Fernando Mousinho, ganha o seu Auto:
A bandeira de Pernambuco foi criada pelos revolucionários de 1817 e confeccionada pelo padre João Ribeiro de Melo Montenegro. No Brasão, 1817 figura como uma das datas históricas mais importantes do estado.
Portanto, a semente da expansão da liberdade popular nacional se confunde com a fantástica odisseia revolucionária de Bárbara de Alencar, marcada pelo exemplo de patriotismo e valentia sertaneja que anteciparam a independência do Brasil, que, com júbilo, eleva seu nome ao mais alto panteão da glória reverberando no altar da política nacional.
‘ Eis que Bárbara ganha com Mousinho, se não aquele impulso pela luz, como a Diotima amorosa imaginada por Sócrates (Platão, O Banquete), mas aquela do ímpeto por se realmar que provêm da fonte transbordante das paixões humanas e das desordens que provocam suas ideias revolucionárias, tal qual a Diotima, descrita por Robert Musil (O Homem sem Qualidades) plena em sua autonomia viril de mulher madura, pronta para desencadear as ações fortes, tempestuosas, em suas consequências inesperadas e contraditórias, que lhe deram lugar na História.
Foi lançado em Brasília, no último 25 de maio, esse singular texto de Fernando Mousinho, escritor potiguar radicado no Distrito Federal. Eu até deveria ter estado presente no lançamento, a convite de Mousinho, para dizer algumas palavras. Mas os imprevistos do dia acabaram por me impedir participar do evento.
Uma pena. Não é uma penitência, é uma consideração trazer o livro para este Lido para Você. Eu queria muito ter confraternizado com meu conterrâneo potiguar (sou natalense por afeto e afinidade). Contemporâneo de Mousinho. Eu, mais transeunte pelo bairro de Petrópolis, ali onde está o Atheneu, onde estudei, num tempo de hegemonia do ensino público. Mesmo voltado para o ensino médio, naquele prédio histórico, havia catedráticos eméritos como Câmara Cascudo e meu avô Floriano Cavalcanti, professor de História (enquanto na Faculdade de Direito era titular da cadeira de Filosofia do Direito).
Não tive aulas com meu avô no Atheneu. Aulas célebres. Mas eu frequentava suas lições em casa, no alpendre ou na mesa patriarcal de refeições, no casarão da avenida Nilo Peçanha (hoje um grande edifício de apartamentos levantado no quintal da minha infância e que leva o nome do Desembargador Floriano Cavalcanti). Uma avenida curta mais que se fazia altiva numa ladeira que desembocava num balcão magnífico debruçado sobre a praia do forte e a praia do meio (hoje praia dos artistas, nome para o qual muito contribuiu minha irmã Dulce e a sua galeria do povo, instalada no muro de nossa casa na avenida Presidente Café Filho), à beira-mar (https://nominuto.com/noticias/ciencia-e-saude/se-essas-paredes-falassem/6351/).
A foto acima aparece como figura 11 da Monografia: A Galeria do Povo: um Movimento Histórico da Arte Potiguar, de Ébeson Rolim Lemos, Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Departamento de Artes. Curso de Licenciatura em Artes Visuais. Natal, 2015. Legenda da foto, p. 35: Figura 11 – Exposição da Galeria do Povo, no muro da casa de Dulce, Praia dos Artistas. Natal, novembro de 1977. Acima: Dulce Valladares (sobre o muro de sua casa) à esquerda e na ponta direita Ângela Lyra Lima. Abaixo: Cristina Câmara, Eduardo Alexandre, Haroldo Maranhão e Fernando Gurgel. Foto: Marcus Ottoni (file:///C:/Users/Jos%C3%A9%20Geraldo/Downloads/TCC%20-%20%C3%89beson%20Rolim%20Lemos%20-%202015.pdf).
No Atheneu tive aulas de latim com o Cônego Luiz Wanderley, vestido com sua batina preta surrada, cheia das cinzas de seu indefectível cigarro Astória. O cônego tocava o terror na hora das declinações. Meio surdo, não se prendia na articulação correta embora hesitante das palavras no rosa, rosae, no singular e no plural, nominativo rosa, rosae; vocativo rosa, rosae; acusativo rosam, rosas; genitivo rosae, rosarum; dativo rosae, rosis; ablativo rosa, rosis. Já desqualificava o arguido. Para ele o que valia era o ritmo. Cascudinho, decline o qui, quae, quod. E lá ia o esperto, numa fluência de quem tudo sabe: qui, quae, quod, quem tem barba tem bigode, só não come quem não pode, qui, quae, quod!. Brilhante, latinista, nota 10. “Seu Babau, quantas declinações existem no Latim”. “Sei não, professor”. “Sente, zero. Nominativo, genitivo, dativo, acusativo, vocativo e ablativo.” Era o Cônego Luiz Wanderley arguindo o saudoso Raimundo Torquato, apelidado de Babu, mas o padre já declinava no acusativo: “Babau” (ver Valério Mesquita, O Atheneu, Lembrança que o Tempo não Desfez, http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/o-atheneu-lembrana-a-que-o-tempo-na-o-desfez/515949).
Mousinho se fez escritor, com estórias sobre o Tirol, o bairro vizinho. Ele é autor, junto com outros tirolenses, que oferecem mais de duzentos “causos” e histórias engraçadas, vividas nas décadas de 1960 e 1970 que foram contadas no livro “Amigos do Tirol – causos e histórias verídicas do tempo que, em Natal, assalto era apenas uma festa de carnaval, e quadrilha uma dança junina” (http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/as-historias-de-um-bairro/165344).
Esse título dado a Bárbara de Alencar por volta de 1817, reposto no livro de Mousinho, está na história e veio para a lei que determinou sua inscrição no Livro de Heróis da Pátria.
Nascida no sertão pernambucano em 1760, na cidade de Exu, foi uma das poucas mulheres participantes da Revolução Pernambucana de 1817. Carrega, pois, o título da primeira presa política no Brasil, apesar de alguns questionamentos já que outras mulheres negras e indígenas também teriam participado da insurreição.
Num ensaio trazido para a Plataforma Dhesca (http://www.global.org.br/blog/mulher-e-o-seu-protagonismo-na-historia-do-brasil/), a propósito do 8 de março – A mulher e o seu protagonismo na história do Brasil, há uma consideração muito pertinente, ao chamar a atenção para o fato de que “o tempo e a atualidade mostram que o legado do país tem gênero”: “Neste 8 de março gostaríamos de exaltar mulheres que marcaram a história do Brasil, na luta por liberdade e direitos. Nomes como Dandara dos Palmares, Zeferina, Maria Felipa de Oliveira, Maria do Espírito Santo e Marielle Franco –aos quais eu gostaria de incluir Esperança Garcia, a escrava considerada a primeira advogada brasileira (Ordem dos Advogados do Piauí) – nos fazem relembrar da importante tarefa que temos – a de manter viva na história e na memória, esse legado. O Brasil carrega historicamente trajetórias de mulheres inspiradoras que revolucionaram o país na luta pela garantia de direitos não somente para elas, mas para todas e todos. Mas ainda assim, ainda que suas lutas fossem para a garantia dos direitos humanos, tiveram seus gritos silenciados por lutar contra uma política de extermínio, de corpos, de falas, de ideias”.
São mulheres, essas que foram mencionadas, mulheres negras, cujas histórias marcaram a formação social do País “e que deixaram seus legados para mostrar que são as verdadeiras protagonistas da luta e resistência em nosso país. Que os nossos corações e ideais estejam alinhados e juntas lutaremos contra toda e qualquer ameaça de governos e toda forma de autoritarismo. Porque a nossa vida pode acabar, mas os nossos sonhos são eternos”.
É conforme esse protagonismo que se destacou o nome da psiquiatra Nise da Silveira, para registro no Livro de Heróis, mas que teve a lei inteiramente vetada pelo Presidente da República.
Bem disse o cineasta, escritor, jornalista Jorge Oliveira, que com sua esposa e parceira Ana Maria Rocha, criaram uma filmografia da saga alagoana – Floriano, O Mestre Graça, Perdão Mister Fiel e o premiadíssimo Olhar de Nise, reagindo ao veto do Presidente da República ao projeto de lei que inscreve o nome da psiquiatra Nise da Silveira no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria. O veto à proposta foi publicado na edição do Diário Oficial da União (DOU) da quarta-feira (25/05), e poderá ser mantido ou rejeitado pelo Congresso.
”Bolsonaro vetou o projeto aprovado pela Câmara que incluiria o nome da psiquiatra Nise da Silveira no pantheon dos heróis e heroínas do Brasil. Ora, o que se pode esperar de um sujeito que tem como líder o torturador Brilhante Ustra? A Nise certamente não iria gostar de ter na sua homenagem a assinatura de um fascista”.
A matéria (PL 6.566/2019), de autoria da deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ), foi aprovada pelo Plenário do Senado em 24 de abril, com parecer favorável da senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA). Mas a Presidência da República argumentou que, após ouvir a Casa Civil, decidiu vetar a proposta, por representar “contrariedade ao interesse público” (Fonte: Agência Senado – https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/05/25/bolsonaro-veta-titulo-de-heroina-da-patria-para-nise-da-silveira.
Nise terá certamente esse merecido reconhecimento num futuro próximo quando o Brasil recupere seu ascendente curso democrático. O Livro de Aço, também chamado Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria, registra indicações aprovadas em lei que lhes confere o status de heróis e heroínas nacionais.
O Livro foi aberto com a inscrição do Alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, em 21 de abril de 1992, por ocasião do bicentenário de sua execução. Incluído pela lei 7.919, de 11 de dezembro de 1989,seguindo-lhe Francisco Zumbi, mais conhecido como Zumbi dos Palmares, líder quilombola, inserido em 21 de março de 1997, pela lei 9.315, de 20 de novembro de 1996.
O Livro tem já 53 nomes nele inscritos, enquanto mais três já aprovados ainda aguardam registro. Anna Justina Ferreira Nery, Ana Maria de Jesus Ribeiro, mais conhecida como Anita Garibaldi, Clara Camarão, indígena, considerada precursora do feminismo no Brasil, Zuleika Angel Jones (Zuzu Angel), Sóror Joana Angélica de Jesus,Maria Felipa de Oliveira, heroína negra da Independência do Brasil na Bahia, Dandara dos Palmares e Luiza Mahin, guerreiras negras do período colonial do Brasil, são as mulheres que constam desse elenco.
São muito poucas mulheres. Entre elas Bárbara de Alencar, reconhecida para fins da distinção primeira presa política do Brasil. Heroína da Revolução Pernambucana, líder independentista, republicana e abolicionista. Incluída pela Lei 13.056 de 22 de Dezembro de 2014.
Não há que se questionar esse título. Certo que outras mulheres terão se engajado e terão sofrido a repressão nos seus mais graves termos, em diferentes períodos e nesse conturbado momento de instabilidade que marca o primeiro reinado em seguida a independência (cf. Lília M. Schwarcz e Heloisa M. Starling. Brasil: uma Biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015). No capítulo 9 – Habemus Independência: Instabilidade Combina com Primeiro Reinado – as Autoras explicam a Revolução Pernambucana de 1817, de caráter republicano, liberal, mas que se manifestara como revolta por autonomia local para o mais efetivo desempenho dos interesses dos proprietários, da gente de bem.
Gente como a heroína republicana, mãe dos também revolucionários José Martiniano Pereira de Alencar e Tristão Gonçalves e avó do escritor José de Alencar, além de quinta avó do escritor Paulo Coelho.
O escritor Caetano Ximenes de Aragão publicou em 1980 o livro-poema Romanceiro de Bárbara sobre a Confederação do Equador com ênfase na saga desta heroína em 77 poesias, recentemente reeditado pela secretaria de cultura do Ceará sob a coleção Luz do Ceará.
Bárbara Pereira de Alencar é a mulher que apoiou as ideias republicanas que emergiam em Pernambuco em pleno século XIX. Integrante de uma família com destaque social, Bárbara era uma mulher rica e fazendeira da região Caririense – que naquela época, eram fazendas que foram construídas em vilas e dominadas pelos senhores de escravos que defendiam a monarquia, ou seja, eram a favor do rei. A senhora que aos 57 anos impulsionou os ideais republicanos no Ceará e participou das discussões e reuniões da Revolução, teve que fugir do sítio onde morava, o “Sítio Pau Sêco”. A mando do contrarrevolucionário e participante do reino, Joaquim Pinto Madeira, os soldados foram atrás dela para prendê-la, mesmo assim ela conseguiu se esconder nas casas vizinhas.
Segundo escreve Juarez Aires, no livro Dona Bárbara do Crato, “a revolucionária foi acolhida por Dona Matilde, que era mãe do capitão Manoel Joaquim Teles, que era também Juiz Ordinário do Crato. Dona Matilde já vendo que amiga iria ser presa a qualquer momento, pediu que seu filho recolhesse todos os documentos que comprovassem a participação na revolta. Os documentos foram levados a D. Matilde que os queimou de tal modo que nem a ata da independência, nem as proclamações e decretos do governo revolucionário foram encontrados, na devassa judicial”. Esse fato, de acordo com o Autor, “salvou dona Bárbara da pena de morte, mas não da prisão. Foi num presídio subterrâneo do Forte de Nossa Senhora de Assunção, em Fortaleza, que a revolucionária pagou sua pena de três anos de trabalho forçado. De lá, saiu com uma sede maior pela libertação do país e ainda defendeu seus ideais na Confederação do Equador, em 1824”.
O livro de Fernando Mousinho reúne prefácios que avalizam seu ensaio central na obra – Bárbara de Alencar, heroína de Exu – para demonstrar que apesar de seu lugar social, a personagem histórica se revelou com a fibra de uma disposição emancipatória:
Bárbara de Alencar, mulher de têmpera forjada no seio de uma organização social caracterizada pelas lutas de poder entre famílias tradicionais, de senhores de terra, de gado e gente; ou dito de outra forma, de senhores de baraço e cutelo. Portanto, em ambientes notadamente ocupados por homens, desafiou os poderes sociais e políticos do seu tempo.
Ainda na infância, ela aprendeu a ler e a escrever, uma ousadia feminina que facilitaria seu contato com as ideias revolucionárias e separatistas em ebulição nos seminários de Recife e Olinda. Bárbara levou às últimas consequências o fogo revolucionário de 1817.
Contrariando os padrões sociais da época – cujo núcleo essencial era o clã patriarcal rural, que se traduz em hegemonia econômica, social e política tão bem expressa na obra clássica de nossa literatura, Coronelismo, enxada e voto de Victor Nunes Leal – Bárbara de Alencar rompeu com a tradição exclusiva de homens no século XVIII e foi uma das mais importantes articuladoras e militantes do movimento emancipacionista de signo liberal, ao lado de nomes não menos aquilatados como Domingos José Martins; Antônio Carlos de Andrada e Silva; Abreu e Lima (padre Roma); José de Barros Lima, o “Leão Coroado”; padre João Ribeiro Pessoa de Melo Montenegro; Cruz Cabugá; Frei Caneca; Manuel Arruda Câmara; Padre Miguelinho, entre outros.
O livro recolhe material biográfico apto a inserir no existencial a dimensão política de um protagonismo que possa expandir o papel social da protagonista para além de seu lugar de classe ou estamental:
Bárbara enfrentou preconceitos machistas de toda ordem e lutou de armas em punho no movimento emancipacionista de 1817, na então Província de Pernambuco. O movimento entrou para a História como Revolução Pernambucana e também foi chamado de Revolução dos Padres, devido à participação de mais de meia centena de clérigos entre os insurretos.
Seus últimos dias foram um verdadeiro exílio domiciliar. Além das sequelas sofridas pelas prisões, torturas, fugas e perseguições, teve seus bens confiscados pelo Império e seu nome difamado pelos adversários políticos. Morreu em 28 de agosto de 1832, aos setenta e dois anos. Seu enterro ocorreu numa rede simples como pedira em vida, igualmente como eram sepultados seus escravos, que, segundo ela, eram seus amigos leais.
O livro de Fernando Mousinho abre espaço para retirar da dupla sombra que a obscurece a participação histórica de Bárbara de Alencar, que não reste reduzida em registros locais e incidentais. O primeiro é o empalidecer de 1817 em face da repercussão ampliada dos acontecimentos de 1824, com a Confederação do Equador; o segundo, a pouca atenção ao protagonismo feminino numa cultura insistentemente patriarcal.
Para o segundo aspecto Mousinho revela a sua intenção. Mostrar o pioneirismo de uma mulher que não se deixou subjugar aos preconceitos de seu tempo: “Bárbara Pereira de Alencar representa exemplo de mulher que superou o seu tempo e fez história, ao contrário do que aludem aos quatro cantos do mundo as versões preconceituosas a respeito da participação feminina na sociedade e nas lutas libertárias”.
Sobre o primeiro, uma reflexão. Com a Confederação do Equador, um movimento republicano e separatista – segundo Schwarcz e Starling – “os confederados reivindicavam que o Brasil fosse organizado de maneira análoga ‘às Luzes do século’, seguindo o ‘sistema americano’ e não o exemplo da ‘encanecida Europa’. Na bandeira dos revoltosos figuravam não só os dois produtos da região – o algodão e a cana – como representações da República e do federalismo”. O Imperador debelou a revolta e sentenciou os revoltados, ordenando que fossem condenados. Assim que, “alguns líderes foram assassinados, enquanto outros, como Frei Caneca, acabaram presos. Quinze foram condenados a morte, entre eles Frei Caneca”.
O poeta e escritor João Cabral de Mello Neto descreveu, em versos, o último dia de Frei Caneca, em sua obra O Auto do Frade. Seu irmão, o historiador Evaldo Cabral de Mello, foi o organizador e redigiu a introdução ao livro Frei Joaquim do Amor Divino Caneca Coleção Formadores do Brasil, Editora 34, Ltda., 2001, intitulada Frei Caneca ou a Outra Independência. De João Cabral no Poema O Auto do Frade, vale o Fragmento: “Acordar não é de dentro,acordar é ter saída.Acordar é reacordar-seao que em nosso redor gira”.
Também Bárbara, com Fernando Mousinho, ganha o seu Auto:
A bandeira de Pernambuco foi criada pelos revolucionários de 1817 e confeccionada pelo padre João Ribeiro de Melo Montenegro. No Brasão, 1817 figura como uma das datas históricas mais importantes do estado.
Portanto, a semente da expansão da liberdade popular nacional se confunde com a fantástica odisseia revolucionária de Bárbara de Alencar, marcada pelo exemplo de patriotismo e valentia sertaneja que anteciparam a independência do Brasil, que, com júbilo, eleva seu nome ao mais alto panteão da glória reverberando no altar da política nacional.
‘ Eis que Bárbara ganha com Mousinho, se não aquele impulso pela luz, como a Diotima amorosa imaginada por Sócrates (Platão, O Banquete), mas aquela do ímpeto por se realmar que provêm da fonte transbordante das paixões humanas e das desordens que provocam suas ideias revolucionárias, tal qual a Diotima, descrita por Robert Musil (O Homem sem Qualidades) plena em sua autonomia viril de mulher madura, pronta para desencadear as ações fortes, tempestuosas, em suas consequências inesperadas e contraditórias, que lhe deram lugar na História.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
Caderno de estudos práticos: Direitos Humanos e Acesso à Terra. Caderno 1: Sistema de justiça e movimentos sociais do campo
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Caderno de estudos práticos: Direitos Humanos e Acesso à Terra. Caderno 1: Sistema de justiça e movimentos sociais do campo [livro eletrônico] : um guia prático contra a criminalização de defensores e defensoras do direito humano à terra / Oona de Oliveira Caju…[et al.]. – – 1 . ed. – – Mossoró, RN : Queima-Bucha, 2022. PDF. Outros autores: Vagner de Brito Torres, Antônio de Freitas Freire Júnior , João Paulo Holanda Costa.
Quando da implementação do Programa de Pós-Graduação Interinstitucional de Direito, cumprindo acordo entre a Universidade de Brasília – UnB e a Universidade Federal do Semiárido – UFERSA, em Mossoró, RN, vivenciei a rica experiência de intercâmbio com os professores em formação, não somente no espaço acadêmico das disciplinas que ali regemos – O Direito Achado na Rua – entre elas, mas nas trocas riquíssimas de vivências de extensão e pesquisa, realizadas em seus centros de estudos e de pesquisa, integrados às dinâmicas de engajamento com temas emancipatórios e agendas construídas como s movimentos sociais.
Assim, por exemplo, o contato com o GEDIC – Grupo de Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina, com sede na UFERSA e atuação no semiárido potiguar. O GEDIC, tal como encontro em seus registros, surgiu em 2010, concomitante ao nascimento do curso de Direito da Universidade Federal Rural do Semiárido – UFERSA, com o objetivo de articular ensino, pesquisa e extensão. A partir de lentes marxistas, se debruçou ao longo de sua história sobre o Direito e a América Latina. Na extensão, realizou projetos junto ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), a trabalhadores sindicalizados e terceirizados, associações de catadores de materiais recicláveis e na temática das relações patriarcais de sexo. Em 2018, sediou o III Congresso Internacional Direito e Marxismo, promovendo o encontro de pesquisadores e pesquisadoras marxistas de todo o país e do exterior. Na pesquisa, voltou-se nos últimos anos ao projeto “Marxismo e América Latina: Lutas Políticas e Novos Processos Constituintes”.
Numa das visitas a UFERSA em Mossoró até me integrei aos eventos de celebração de 5 anos do Coletivo, mobilizado pelos contato com os professores Oona Caju, Daniel Valença e Gilmara Medeiros. Ali conheci a estudante Rayane Andrade que anos depois, já professora em Goiás, viria a ser minha aluna no Programa de Pós-Graduação (doutorado) em Direitos Humanos e Cidadania, na UnB.
O encontro acadêmico com Gilmara Medeiros, forte na construção das interlocuções que demarcaram o lugar dos direitos humanos nesse espaço de interseção entre universidade e sociedade, prorrogou-se no acompanhamento como Orientador na elaboração de sua tese, em tudo brilhante, sobretudo no seu duplo arranque teórico e político.
De fato, tal como ela pretendeu, um “aventurar-se no estudo e compreensão dos direitos humanos como um fenômeno histórico, social e jurídico é enveredar num labirinto de diversas teorias e concepções que provocam espanto, encantamento e confusão. De certa maneira, podemos afirmar que a sua investigação requer de nós, nos dias de hoje, sensibilidade e coragem de se posicionar para que não recaiamos no senso comum raso e nas análises limitadas, tão comuns a área. Por esta razão, consideramos que o desafio do presente trabalho é demonstrar qual o conceito de direitos humanos é o adotado e como ele pressupõe uma práxis social (porque dela nasce), isto é, um engajamento na mudança do mundo, sobretudo, no rompimento das diversas relações de exploração, opressão e dominação. E porque buscamos entender como esta práxis modifica, formula e constrói uma nova perspectiva a seu respeito, consideramos o nosso objeto de estudo complexo e em permanente transformação”.
Ofereci uma sugestão para mergulho em seu belo trabalho – OS DIREITOS HUMANOS E AS METAMORFOSES DO TEMPO: COMPREENDENDO A SUA (RE)INVENÇÃO CRÍTICA. Gilmara Joane Macêdo de Medeiros. Tese de Doutorado. Universidade de Brasília/Faculdade de Direito e Universidade Federal Rural do Semiárido-Mossoró, RN/Faculdade de Direito. Brasília, 2019 – conforme está na Coluna Lido para Você (cf. em http://estadodedireito.com.br/os-direitos-humanos-e-as-metamorfoses-do-tempo-compreendendo-a-sua-reinvencao-critica/).
Agora é Oona de Oliveira Caju quem traz esse Caderno de estudos práticos: Direitos Humanos e Acesso à Terra. Caderno 1: Sistema de justiça e movimentos sociais do campo: um guia prático contra a criminalização de defensores e defensoras do direito humano à terra.
O texto traz o seguinte Sumário:
Apresentação
O “Sistema de Justiça”: um pedaço do Estado Brasileiro
Criminalização dos movimentos sociais e garantias processuais penais
Notas
Referências
Resgato aqui a Apresentação preparada pelo autores e autoras e organizadora.
Caro leitor, cara leitora. Como vai? Temos imensa alegria de apresentar a você este material. Ele é a primeira síntese dos temas estudados durante o II Curso de Educação em Direitos Humanos e Acesso à Terra, realizado em 2019. Ambos são parte do Programa de Extensão Centro de Referência em Direitos Humanos do Semiárido: na linha de frente da Educação em Direitos Humanos e da Extensão Popular, da Universidade Federal Rural do Semiárido (UFERSA).
Na discussão sobre essas dificuldades, durante o curso, surge a síntese do que daria a linha de concepção deste material: aqueles e aquelas que lutam pela reforma agrária precisam entender como a burocracia da justiça funciona e como se protegerem contra a criminalização, que, infelizmente, tem sido um método empregado para silenciar defensores e defensoras de direitos humanos.
Nossos trabalhos de escrita (assim como todo o Programa de Extensão) foram interrompidos pela pandemia de COVID-19, em 2020, e, com a retomada das atividades, ajustamos nossa proposta inicial. Em razão da riqueza das discussões surgidas tanto no II Curso, como na comissão organizadora, e da importância dos temas tratados, decidimos elaborar esta obra em dois volumes, que chamamos Caderno 1 e Caderno 2.
Neste primeiro Caderno, tentamos trazer algumas informações importantes e bem embasadas sobre essas questões. Nas próximas páginas, você encontrará orientações jurídicas. Elas foram elaboradas a partir das dúvidas e questionamentos levantados por muitas pessoas que, como você, estão na linha de frente da defesa dos direitos humanos!
O núcleo da publicação, neste Caderno 1 está sustentado nos dois textos que estruturam o volume. O primeiro texto cuida didaticamente do sistema de justiça. Conforme o texto, a partir de uma questão pedagogicamente importante: O que é esse “sistema de justiça”?
Sim, o sistema de justiça é apresentado como um conjunto de órgãos, instituições, funcionários(as) públicos, poderes que são responsáveis pela “aplicação da lei”. O “sistema de justiça” pertence ao Estado e é ele quem dá a solução final dos processos judiciais. Mas com a cautela de reduzir a caracterização a sua estrutura, em si, funcionalmente, não necessariamente, uma abertura para acesso à Justiça.
O segundo texto, está orientado para o tema Criminalização dos movimentos sociais e garantias processuais penais, no que se inclui, de algum modo, como alvo, os próprios defensores de direitos humanos, pois, diz o texto, “Como já vimos, muitos direitos humanos estão reconhecidos na lei, mas não são cumpridos na realidade. Defensoras e defensores de direitos humanos atuam para garantir a realização dos direitos humanos na sociedade”.
Não por outras razões, as Conclusões se concentram nesse aspecto estratégico da publicação:
Como vimos, a criminalização dos movimentos sociais não é algo novo. A luta pelos direitos sempre enfrentou diversas dificuldades, muitas vezes por meio da lei, que impediam grande parte da população de ter acesso a coisas tão básicas e essenciais, como direitos trabalhistas, lazer, casa e vida privada.
A luta por direitos, igualdade e pelas mesmas oportunidades para todos/as ou, pelo menos, pelo acesso dessas oportunidades, levou tempo e custou muitas vidas. A própria ditadura militar, de 1964, foi contra os movimentos sociais, contra todos aqueles que resistiam a um governo autoritário, antidemocrático e injusto.
Com a Constituição de 1988, o Brasil saiu da ditadura formal e deveria construir uma democracia, numa direção onde a sociedade como um todo pudesse crescer, diminuindo a pobreza, dando maiores oportunidades a todos e todas, com garantias de direitos como saúde, educação, moradia, alimentação, entre tantos outros. Mas isso não é feito de forma instantânea, através da lei, mas sim da luta social.
Apesar da previsão constitucional e legal que garante os direitos humanos, o Estado e grupos poderosos na sociedade continuam cometendo abusos, usando leis, que deveriam proteger as pessoas, para atacá-las. Isso é ainda mais sentido quando o Estado age como Estado penal. Quem defende o Estado penal propõe o emprego de mais repressão, castigo e punição para todos os problemas da sociedade. Mas, como a experiência histórica mostra, os problemas da sociedade têm uma raiz profunda, em estruturas que geram fome, desigualdade e violência.
Por isso, é importante que os movimentos sociais não caminhem na direção de se utilizarem apenas da política criminal, para lidar com os desafios da luta por direitos humanos. O sistema de justiça criminal pode ser seletivo e discriminatório, no sentido de não escutar interesses das minorias, como as mulheres, as pessoas negras, os LGBTQIA+, entre outros grupos vulneráveis. Ele é um instrumento que, desde a sua origem, tem reproduzido as desigualdades sociais
Veja o caso das mulheres: embora tenham conquistado, nos últimos anos, muitos direitos importantes, como a Lei Maria da Penha, elas são julgadas, muitas vezes, por sua conduta sexual, mesmo quando são vítimas de violência. Há casos em que a polícia e a justiça tratam de forma diferente pessoas negras e pessoas brancas, pobres e ricas
Lembra do exemplo de Rafael Braga? E dos trabalhadores ocupantes da Usina Santa-Helena? Um problema social não necessariamente é resolvido com a penalização legal, tendo em vista que o sistema criminal pode criar uma relação de violência e poder. Nós queremos a proteção do Estado, mas também somos vítimas dele. É uma contradição difícil. A violência institucional é seletiva: ela pune, mas também deixa de punir. Do mesmo caminho, saem culpados e inocentes, e não pelo devido processo legal e pelo correto julgamento, pois, no final das contas, o/a juiz/a e o Estado podem ser arbitrários. Mesmo sendo impostos a um/a magistrado/a os princípios de imparcialidade, muitas vezes ele/a impõe os seus valores nos julgamentos. Mesmo com a existência das garantias processuais penais, é sempre possível que haja arbitrariedades e abusos.
Essa realidade pode fazer com que você fique desanimado/a ou desestimulado/a a ter que lutar em uma sociedade onde, mesmo quando se conquista um direito, ainda não pode confiar ferrenhamente no Sistema de Justiça. Porém, reconhecer essa contradição e seus perigos não significa que não se deva mais lutar por direitos ou combater os abusos do Estado.
A filósofa Marilena Chauí disse algo muito importante, que nos ajuda a pensar: “Se um dia a democracia for possível neste país, ela nascerá dos movimentos sociais e populares, do contrapoder social e político que transforma a plebe em cidadã e os cidadãos em sujeitos que declaram suas diferenças e manifestam seus conflitos” (CHAUÍ, Marilena. Conformismo e resistência: aspectos da cultura popular no Brasil. 6ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994).
Ou seja, a transformação do Brasil num país melhor depende do avanço das lutas dos movimentos sociais populares. A conquista de direitos na lei também faz parte da tática dessa luta. A criminalização dos movimentos sociais é uma forma de fragilizar a luta pelos direitos humanos e a mudança do sistema para algo melhor. Muitas vezes, o Estado pune, de várias formas diferentes, quem está manifestando opiniões contra ele, apontando erros e falhas em seu sistema, e reivindicando direitos desprezados.
O sistema penal esconde a real face causadora da violência, da repressão, e não se pode admitir a perda da liberdade, do livre exercício de direito, da manifestação e, principalmente, da democracia. São os protestos populares e as ações dos movimentos sociais que mantém a democracia viva. A criminalização dos movimentos sociais fragiliza os nossos direitos fundamentais.
Se já é difícil lidar com um Estado que não facilita nada a vida da gente, difícil mesmo é se ver calado e parado perante isso. Por isso, mesmo com todas as dificuldades da luta, é preciso que ela exista, para se construir a democracia no nosso país, que precisa constantemente ser provocado pelo poder popular, pelas nossas reivindicações, de tudo pelo o que lutamos.
Constato, com ânimo renovado, que o enquadramento trazido pelo texto cabe na moldura modelada pelo Fórum Social Mundial Temático Justiça e Democracia que se realizou agora em abril, de 26 a 30 em Porto Alegre.
Fiz um artigo síntese, cujos termos reproduzo aqui, do que foi o rico debate proporcionado por esse encontro, não apenas reflexivo mas programático, mobilizado para orientar protagonismos (https://www.ihu.unisinos.br/categorias/618520-carta-de-porto-alegre-do-forum-social-mundial-tematico-justica-e-democracia-artigo-de-jose-geraldo-de-sousa-junior).
Desde que iniciadas em 2021, as mobilizações para a realização de um Fórum Social Mundial Temático Justiça e Democracia, o conjunto de entidades que o propôs, organizou e realizou agora ao final de abril – mais de uma centena de organizações e movimentos – mantiveram a motivação de sua convocação (disponível aqui), conforme os termos propostos pelas seis entidades que subscreveram o texto original: os coletivos Transforma MP, Associação Brasileira dos Juristas pela Democracia, Associação Juízes para a Democracia, Associação Advogadas e Advogados Públicos para a Democracia, Coletivo Defensoras e Defensores Públicos pela Democracia e Movimento Policiais Antifascismo.
Buscando ampliar contatos e agregar novos movimentos e organizações durante mais de um ano, até a instalação presencial do Fórum, cuidou-se de “promover um espaço de encontros e de compartilhamentos de percepções e informações e, num segundo momento, buscar construir condições para ações concretas e coletivas frente a desafiadora conjuntura atual”, ao acicate de motivos e urgências bem descritos no documento convocatório.
Entre esses motivos e urgências, tratou-se de não se acomodar “ante as milhares de situações de violações de direitos humanos, com destaque especial ao escancarado racismo estrutural que nos assola e à manipulação da democracia através de técnicas cada vez mais sofisticadas de disseminação de notícias falsas”, culminando numa estratégia em que o assim denominado lawfare sequestrou o espaço democrático do sistema de justiça para fazê-lo cúmplice de um processo desconstituinte de assalto ao projeto de sociedade que se organizava em base de uma amplo programa de mais equitativa distribuição da riqueza socialmente realizada e num experimento sem precedente de compartilhamento de poder político, numa modelagem criativa de participação popular democrática.
Cumprindo um rico e denso programa, os dias do Fórum permitiram uma completa interpretação da conjuntura global e local, econômica, política, ética, jurídica e funcional, de nossa realidade.
O Fórum Social Mundial Justiça e Democracia – movimento de arregimentação das forças sociais para permanente de avaliação, de denúncia e de transformação dos sistemas de justiça para a garantia da democracia – identifica, conforme a Carta, “a ação dos sistemas de justiça fragilizados na sua independência, que se prestam a aprofundar o fosso entre a institucionalidade e a cidadania. Denuncia, então, tais sistemas instruídos pelo neoliberalismo, conformados à burocracia e pouco entusiastas da democracia, que se mostram antes propensos a abrir do que fechar as portas para o fascismo”.
Mas com a clareza de que “tal propensão, além de gerar críticas, impõe a autocrítica como necessidade inescapável de quem atua no interior desses sistemas. Ela demanda um agir concentrado para extrair o racismo, o poder patriarcal cis-heteronormativo e o elitismo que contaminam os sistemas de justiça instituídos nos territórios dos países colonizados e que contribuem para sequestrar a democracia”.
Mas o Fórum não foi só diagnóstico, na forma de um seminário que permita a discursividade elegante da crítica acadêmica. Ele se constituiu de urgência, para ser também “uma autocrítica disposta a mirar essas marcas históricas e a comprometer-se com a superação delas”.
Pessoalmente, também participante das mobilizações e da construção do evento, eu já carregava a convicção sobre ser possível estabelecer diálogos com os movimentos sociais e suas assessorias jurídicas para extrair dessa interlocução, a visão negativa dos modelos adjudicatórios do sistema legal e judiciário, presos às normas constituídas como unidade de análise das relações de conflito e incapazes de realizar até mesmo as promessas constitucionais de realização da Justiça, entre outros fatores, pela “resistência a trabalhar com o direito da rua”, pela “baixa sensibilidade para as demandas da comunidade”, pelos “limites culturais para a percepção de sujeitos e demandas inscritas nos conflitos sociais”, pela manutenção de “corpo com formação técnica desvinculada das experiências do mundo da vida”, pela “postura institucional burocrática” e pela “pouca permeabilidade ao controle social”.
E, em contrapartida, desafiar os sistemas à luz das agendas assim construídas, para traduzir como reivindicação, uma Justiça atualizada e modernizada para além do simplesmente funcional-burocrático-legal: “respeito às temporalidades democráticas”, “fortalecimento comunitário”, “educação em Direitos Humanos”, “uso dos meios de comunicação”, “conscientização e sensibilização” e, em síntese, “reconhecimento e acreditamento do protagonismo das experiências de mediação social realizadas fora das instâncias estatais”.
A Carta é, pois, forte na afirmação de que o Fórum “oferece e ressalta a importância de ‘vencermos o obstáculo epistemológico dos paradigmas que isolam o jurídico na forma e na lei’, distanciando o Direito da vida concreta. Ele nos lembra que ‘a função do Direito é contribuir para a obra da humanização’ e que ‘a humanidade é uma experiência histórica e social’.
E mais, que “ao desvelar as falhas dos sistemas de justiça por meio de depoimentos de pessoas que foram afetadas por eles ou por meio de estudos bem sistematizados, este Fórum presencial contribui para mensurar a extensão dos danos para a democracia que um sistema de justiça corroído acarreta. Também permite dimensionar os desafios com os quais nos deparamos para reafirmar a opção por um modelo de sociedade que seja alicerçado no princípio da igualdade, organizado em torno da ideia de emancipação política dos seus membros e, ainda, combativo quanto ao avanço do neoliberalismo econômico que leva ao exaurimento dos recursos naturais e objetifica as pessoas, automatizando-as. Isso sem contar que o neoliberalismo tenta apagar os saberes de povos originários (ainda resistentes) e solapa qualquer ideia de implantação do bem-viver para a maioria da população, consagrando o poder absoluto de alguns indivíduos ou corporações, pretensamente onipresentes por meio de plataformas digitais”.
A Carta termina com uma constatação: “Com nossas atividades, alcançamos o discernimento de que Democracia e Justiça não são resultado de lei ou regimento, mas estão inscritas no seio da sociedade e são impulsionadas pela avaliação e pela injunção crítica e contínua dos sujeitos coletivos que fazem a mediação entre sociedade e direito. São eles que constroem coletivamente a sua independência social com base nas interações permanentes no sentido de fazer a temática do nosso fórum: democracia e justiça, a nossa vida”.
Mas termina também com uma disposição sensível não fosse Porto Alegre a terra de Mário Quintana, prorrogada pela voz do artista gaúcho, teórica, política e culturalmente atuante no FSMTJD, Mauro Moura:
“Hoje se renova, no nosso coração de estudante, ‘a aurora de cada dia’: a esperança de uma utopia que ‘pode estar aqui do lado, bem mais perto que pensamos’. ‘Se o poeta é o que o sonha o que vai ser real, sejamos poetas’! Tenhamos em mente ‘a presença distante das estrelas’! Encorajando a revoada do eu passarinho, sejamos nós passarada! ‘Sob o sol da justiça social, nossa voz a resistir / ocupa-se de marginal, o bloco que ousa colorir / Lutando por direitos na rua, atravessando a alma minha e tua / São as procissões que se encrustam na via, multidões, utopia / Tivera a coragem das flores, que no temporal embelezam o dia / Tendo a sorte breve como os amores, mesmo despetaladas são valentia / Se eu cair, vou cair lutando / Se o fim chegar, não há de me encontrar chorando / Mas isso é coisa de quem não negocia a humanidade, a democracia”.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
Caderno Encantar a Política. Democracia. Rede Brasileira de Fé e Política/Comissão Episcopal Pastoral para o Laicato/CNBB
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Caderno Encantar a Política. Democracia. Rede Brasileira de Fé e Política/Comissão Episcopal Pastoral para o Laicato/CNBB, 2022, 58 p. file:///C:/Users/Jos%C3%A9%20Geraldo/Downloads/CADERNO%20ENCANTAR%20A%20POLITICA%20DIGITAL%20(1)%20(1).pdf
A Rede de Fé e Política, composta por diversas organizações, entre elas o Movimento Nacional Fé e Política, lançou em abril o Projeto Encantar a Política. O objetivo é atuar na formação dos eleitores através de uma leitura crítica do momento atual e que contribua para o exercício da cidadania buscando o bem comum. O projeto busca uma formação e consciência política permanentes, portanto, não encerra nas eleições de 2022.
Inicialmente, à convite do Conselho Nacional do Laicato do Brasil – CNLB (@cnlb.nacional), do Regional Sul 1 (@cnlb.sul1), as Pastorais Fé e Política das Regiões Episcopais Lapa e Belém e da Forania Fátima, de Guarulhos, realizaramo Seminário Encantar a Política, durante os dias 13 a 15 de maio, em Brasília.
Reunindo aproximadamente 90 pessoas, entre leigos e clero, no Centro Cultural de Brasília (@centroculturaldebrasilia), praticamente todo o país esteve ali representado para receber a capacitação do projeto Encantar a Política e ajudar a planejar os próximos passos da campanha.
De acordo com os organizadores do seminário, esse é um projeto que não visa apenas as Eleições 2022 – que ocorrerão em outubro – mas sim, os próximos anos. Para eles, “o momento pelo qual o país atravessa é crítico e necessita de reafirmar a nossa escolha pela democracia e por candidatos com valores éticos”.
Entre os objetivos dessa inciativa, pela qual há um chamado para multiplicar os fundamentos, foi preparado o Caderno Encantar a Política. Democracia, num engajamento que leve a contribuir para que a sociedade brasileira de (re)encante com a política.
O material retoma questões centrais das encíclicas do Papa Francisco – Laudato si’ e Fratelli Tutti, da exortação apostólica pós-sinodal, Alegria do Evangelho (AE) – que tratam a Política como consequência do mandamento do amor. Dessa forma, contribui para a prática e engajamento das pessoas ao convite do Papa.
O caderno foi pensado para leitura e reflexão coletiva, nos grupos de base das comunidades, escolas de fé e política, entre outros espaços. Isso para alcançar as pessoas que estão na comunidade de base com uma vida pastoral ativa, como animadoras e animadores de culto, catequistas, ministras e ministros da Palavra, participantes de grupos e movimentos, e agentes de pastoral em geral.
A partir da leitura crítica espera-se que os leigos e leigas se animem a atuar na política como “forma sublime de caridade” exercendo assim uma cidadania ativa o que possibilitará a superação dos problemas cotidiano.
A recomendação é a de que o Caderno não resulte apenas numa leitura de ilustração, mas que seja estudado em grupo, de preferência, para que as reflexões propostas provoquem bons questionamentos. Que elas toquem a nossa consciência e o coração, sem a pretensão de solucionar os problemas de nosso cotidiano. O grupo será mais proveitoso se contar com a assessoria de alguma pessoa com formação em temas de Política.
Os textos foram produzidos para dar confiança aos cristãos leigos e leigas que se animam a atuar na política como, diz o PAPA Francisco na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, se constitua a “forma sublime de caridade”, de amor social. Mas eles estão longe de esgotar a riqueza do tema e enfrentar todos os seus desafios. Se o leitor ou leitora quiser aprofundar-se no assunto, recomenda-se que entre em contato com uma Comissão Justiça e Paz ou com uma Escola de Fé e Política de seu Regional ou Diocese.
Faz parte do projeto Encantar a Política – Eleições 2022 a criação de um hotsite no portal do CNLB (www.cnlb.org.br), com pequenos vídeos e cards para as redes sociais, podcasts, artigos e declarações; também este caderno encantar a política está lá para download gratuito e servirá também como um subsidio valioso para que grupos, dioceses e regionais elaborem seus próprios subsídios (Círculos Bíblicos, Roda de Conversas, Programas de Rádio, Cordéis, entre tantas iniciativas).
O texto está organizado em cinco capítulos:
No PRIMEIRO fala da universalidade do Amor cristão. Retoma o ideal das primeiras comunidades cristãs dos Atos dos Apóstolos; trabalha o conceito do amor ao próximo na Fratelli Tutti, a solidariedade como valor, e buscar o bem comum como ampliação e organização política da solidariedade.
No SEGUNDO CAPITULO, o tema é a amizade social e a ética política. Neste capítulo refletimos sobre a Política como “amizade social” e como “ciência e arte do bem-comum”; são abordados aspectos da Política que raramente são expostos na vida cotidiana – e menos ainda – nos meios de comunicação e redes virtuais; apresentamos a realidade atual da política no Brasil e proposta para a ação e os diferentes espaços da política.
No TERCEIRO CAPITULO são abordadas as grandes causas do Evangelho; o que a Igreja quer, quando nos convida à ação transformadora no campo da Política; o que política tem a ver com a Evangelização, qual é sua missão específica; Evangelização e Política; a Paz fundada na Justiça; as causas estruturais da pobreza e, finalizando, retomamos a expressão “Civilização do Amor”, cunhada por São Paulo VI e muito querida de São João Paulo II e Papa Francisco para expressar o projeto político que a Igreja quer para a Humanidade.
O QUARTO CAPÍTULO aponta como a parábola do Bom Samaritano ajuda a expor a necessidade da amizade social em nossos dias. O Papa Francisco abre o horizonte da espiritualidade cristã para a Política como “ciência e arte do bem comum” e nos convida a dar mais um passo: alargar o âmbito da política para nele incluir a “nossa irmã Terra”; para isso ele se inspira na figura do irmão universal, que é São Francisco de Assis. Ecologia Integral; Grito da terra, Grito dos pobres e qual o lugar da política são temas também tratados neste capítulo.
O QUINTO E ÚLTIMO CAPÍTULO fala das eleições e democracia.Tendo refletido sobre diferentes campos da política como amor social, seguindo o ensinamento do Papa Francisco em suas encíclicas, cabe agora levantar a questão eleitoral. Embora a política seja muito mais do que eleições, este é um tema que não pode ser ignorado. Com mais razão ainda porque o Brasil está numa crise político-econômica que abalou seriamente a confiança do povo nas instituições e o processo eleitoral é o momento mais favorável para um grande debate nacional a fim de encontrar a melhor saída para a crise. O capítulo quinto ainda recorda a crise política e institucional do Brasil; aponta os princípios éticos para um governo de união nacional; destaca o papel dos movimentos populares e sociais e convida a participar ativamente nas eleições.
Para apoiar a interlocução relativa a aprofundar a consciência de cidadania e de partilha comunitária ao ensejo das eleições, e não só, como exercício cotidiano da ação pastoral no campo da política, recomenda-se os seguintes sites para formação política: Centro Nacional de Fé e Política Dom Helder Câmara: http://www.cefep.org.br/; Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular: https://ceseep.org.br/; Comissão Brasileira Justiça e Paz: https://www.justicapaz.org; Conselho Nacional do Laicato do Brasil: https://www.cnlb.org.br/; Núcleo de Estudos Sociopolíticos: https://nesp.pucminas.br; Movimento Nacional Fé e Política: https://fepolitica.org.br/. Nessa linha do exercício de ampliação de consciência chamo a atenção para o Programa de Justiça e Paz da Comissão Justiça e Paz de Brasília, que integro como membro Encantar a Política, entrevista com o padre Paulo Adolfo, assessor da CNBB, também Coordenador do Centro Nacional de Fé e Política: https://www.youtube.com/watch?v=xJke6XMot-Y.
Voltando ao Caderno para dele extrair a percepção presente na Apresentação que faz Dom Walmor Oliveira de Azevedo, Arcebispo de Belo Horizonte (MG) e Presidente da CNBB:
“Trata-se de caminho desafiador, mas essencial para que a política seja efetivamente um serviço – e não atalho para conquistas pessoais. O Papa Francisco, considerando a realidade latino-americana, as dificuldades enfrentadas no continente, orienta: “Fazer política inspirada no Evangelho a partir do povo em movimento pode se tornar uma maneira poderosa de sanar nossas frágeis democracias e de abrir o espaço para reinventar novas instâncias representativas de origem popular.
É importantíssimo, pois, qualificar sempre mais a cidadania com a luz que vem de Cristo, efetivando uma genuína cidadania eclesial – a serviço da fraternidade social, do enfrentamento das exclusões e injustiças. Esta publicação é fruto de uma oferta que marca o sentido do protagonismo dos cristãos leigos e leigas, pela propriedade de sua cidadania eclesial, qualificando e contribuindo com a sua cidadania civil. Trata-se de mais uma possibilidade formativa enquanto contribuição importante no âmbito da educação política cidadã, pela verdade na política, reunindo densas lições de nosso amado Papa Francisco, para inspirar estudos, reflexões e atitudes que tenham no horizonte este propósito: ajudar cada pessoa a se reconhecer importante, essencial, na edificação de um mundo com as feições do Reino de Deus, todos à procura dele em plenitude”.
O Caderno foi entregue ao Presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Ministro Fachin, pelos representantes da Comissão Brasileira de Justiça e Paz – CBJP e da Comissão Justiça e Paz de Brasília, integrantes da Coalização para a Defesa do Sistema Eleitoral, recebida no TSE porta-voz de um verdadeiro manifesto em defesa da Justiça Eleitoral, destacando a importância das eleições de outubro para a defesa da democracia e da realização da constituição.
Integrante da representação da CJP-DF, preparei para a minha coluna no Jornal Brasil Popular, um texto – Eleições: Caminho para Realinhar Ações Democráticas, com um relato descritivo-analítico sobre esse encontro.
Conforme matéria já publicada na página do TSE, incluindo acesso ao texto completo da Carta entregue ao Ministro Fachin, seu presidente (https://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2022/Maio/representantes-da-sociedade-civil-entregam-manifesto-em-defesa-do-sistema-eleitoral), a Coalização para a Defesa do Sistema Eleitoral, por meio da representação das entidades que a formaram, se fez porta-voz de um verdadeiro manifesto em defesa da Justiça Eleitoral, destacando a importância das eleições de outubro para a defesa da democracia e da realização da constituição.
Participaram do encontro a Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), Associação de Juízes para a Democracia (AJD), Comissão Brasileira Justiça e Paz (CBJP), Comissão Justiça e Paz de Brasília (CJP-DF), Coletivo Transforma MP, Fórum Social Mundial Justiça e Democracia, Associação Brasileira de Estudos do Trabalho (ABET), Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (ANADEP), Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Coalizão Negra por Direitos, Coletiva Mulheres Defensoras Públicas do Brasil, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Associação Americana de Juristas (Grupo Prerrogativas) e Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Enquanto que a cúpula do TSE, o Ministro e todo o a direção do Tribunal, diretores e assessores, além do Procurador Eleitoral com assento no Plenário, demonstraram a importância que atribuíram ao ato e se valeram da circunstância para reafirmar a disposição de conduzir com toda a segurança o procedimento, tomá-lo como garante legitimador da vontade popular (o ministro citou o filósofo Habermas) e assegurar a diplomação dos eleitos como expressão nacional e internacional da maturidade democrática brasileira.
Nas palavras do Ministro Fachin, que ao receber a Coalizão, fez questão de cumprimentar um a um e uma a uma, as 18 personalidades credenciadas, “a presença dessa coalizão pela defesa do sistema eleitoral demonstra a preocupação que a sociedade brasileira organizada tem em assegurar o direito do exercício da cidadania e o cumprimento constitucional de eleições seguras e transparentes. O voto é seguro, auditável e seu procedimento é transparente. Circunstância que aponte situação adversa disso não é verdade. A Justiça Eleitoral está do lado da sociedade e também do lado da Constituição”, afirmou.
Estivemos presentes à audiência, em representação, Tânia Oliveira – ABJD, Claudia Maria Dadico – AJD, Ivônio Barros – CBJP, Eduardo Xavier Lemos – CJP-DF, Felício Pontes – CJP-DF, Edson Baeta – TRANSFORMA MP, Rui Portanova – Associação Juízes para a Democracia, Raquel Braga – Forum Social Mundial Justiça e Democracia, Renata Dutra – ABET – Associação Brasileira de Estudos do Trabalho, Rivana Ricarte – ANADEP – Associação de Defensoras e Defensores Públicos, Kleber Karipuna – APIB – Articulação dos Povos indígenas do Brasil, Mariana Andrade – Coalizão Negra por Direitos, Juliana Braga – ColetivA Mulheres Defensoras Públicas do Brasil, Alexandre Conceição – MST, Alessandra Camarano – Associação Americana de Juristas e Grupo Prerrogativas e José Carlos Silva, da CPT, na ausência de Dom Ionilton, bispo de Itacoatira, que não retornou a tempo do Vaticano, de sua visita ad limina.
Todos os representantes se apresentaram logo que instalada a reunião e, conforme o protocolo construído pela Coalizão, seguimos uma introdução a cargo do Desembargador Rui Portanova (AJD), e de mim (CJP-DF). Kleber Karipuna (APIB), fez a leitura da Carta preparada pela Coalizão e a entregou ao Ministro. Raquel Braga falou sobre o Fórum Social Mundial Temático Justiça e Democracia que se realizou em Porto Alegre entre 26 e 30 de abril e também entregou ao Ministro a Carta do FSMTJD e Cláudia Maria Dadico, da AJD, proferiu as palavras de clausura.
Em minha exposição, tal como registrado na matéria do TSE, procurei dar relevo, conforme o título deste artigo, “à união de esforços de vários integrantes da sociedade brasileira engajados no espírito de fortalecimento institucional vem também na intenção de realinhar, por meio das eleições que se avizinham, o caminho das ações democráticas já conquistadas”. Com efeito, a democracia não é uma dádiva, é uma conquista; a cada instante é preciso resistir contra as investidas que as recalcitrâncias autoritárias e as vocações para a exceção lhe fazem, mas é preciso também avançar para novas conquistas, porque a democracia é uma afirmação contínua na história e é uma construção dos sujeitos coletivos, em seus movimentos, que se fazem força instituinte de direitos. Por isso diz a filósofa Marilena Chauí, “a democracia não é apenas uma forma de governo, é uma forma de sociedade”.
As fotos do encontro, no álbum preparado pela Comunicação do TSE – https://www.flickr.com/photos/tsejusbr/albums/72177720299016553 – dão um vislumbre da dimensão cerimonial do evento aliás, com alta e imediata repercussão, nos meios de comunicação, os corporativos e os alternativos independentes.
O encontro havia sido programado para 45 minutos e durou 2 horas. O ministro e sua equipe técnica cuidaram de apresentar as ações do TSE, tanto as programáticas, pedagógicas, quanto aquelas diretamente ligadas ao aprimoramento do processo eleitoral, sempre em acordo a uma metodologia de “diálogo que amplia a participação social, plural e encoraje o exercício da democracia”.
Para a Coalizão, conforme o documento entregue ao Ministro Fachin, “é inadmissível que o cargo do chefe do Executivo seja utilizado para proferir ataques e críticas infundadas contra as urnas”, pois “o presidente da República tem o dever de dirigir os rumos do país com serenidade e responsabilidade”.
Ao abrir a 59ª Assembleia Geral da CNBB (abril), os bispos, em Mensagem ao Povo Brasileiro, chamaram a atenção para “Tentativas de ruptura da ordem institucional, hoje propagadas abertamente,[que] buscam colocar em xeque a lisura do processo eleitoral e a conquista irrevogável do voto. Tumultuar o processo político, fomentar o caos e estimular ações autoritárias não são, em definitivo, projeto de interesse do povo brasileiro. Reiteramos nosso apoio às Instituições da República, particularmente aos servidores públicos, que se dedicam em garantir a transparência e a integridade das eleições”.
No mesmo sentido, a Carta, entregue pela Coalizão para a Defesa do Sistema Eleitoral, repudia “as agressões, bravatas e afirmações desprovidas de respaldo técnico, científico e moral servem a um único propósito: o de gerar instabilidade institucional, disseminando a desconfiança da população brasileira e do mundo acerca da correção e regularidade das eleições brasileiras”. Ao mesmo tempo que firmemente, e de forma a ainda mais ampliar as alianças em coalização, toma posição: “Não aceitamos a condição de reféns de chantagens e ameaças de ruptura institucional após pouco mais de três décadas em que a normalidade democrática foi restabelecida em nosso país”.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
O Tempo como Elemento de Justiça: os efeitos da mora no julgamento da inconstitucionalidade da EC 95.
| Redação Jornal Estado de Direito
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
LAYLA JORGE TEIXEIRA CESAR. O Tempo como Elemento de Justiça: os efeitos da mora no julgamento da inconstitucionalidade da EC 95. Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Direito pela Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais – FAJS do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). Orientador: Prof. Rodrigo Augusto Lima de Medeiros. Brasília, 2022.
Tomo como ponto de partida para o exame em banca (também arguidora a colega e querida amiga professora Sabrina Durigon Marques) de um tema que tem o tempo como elemento de justiça, a consideração que meu estimado colega e amigo Cristiano Paixão oferece nesse assunto, referindo-me entre seus estudos principalmente ao texto Tempo, memória e escrita: perspectivas para a história constitucional, publicado em MARTINS, Argemiro; ROESLER, Cláudia; PAIXÃO, Cristiano (Orgs). Os Tempos do Direito: diacronias, crise, historicidade. São Paulo: Editora Max Limonad, 2020:
Há vários percursos possíveis para a tematização do fenômeno temporal a partir do direito. A experiência moderna permite que sejam visualizados, comparados, medidos e contrastados os diversos tempos da sociedade e uma dada temporalidade do direito. Pode-se em falar na religião, na moral, na política e na economia como exemplos de âmbitos da vida social que projetam temporalidades próprias que poderão deparar-se com uma regulação jurídica que refletirá uma outra – e própria – temporalidade.
Porém, há também outras dimensões temporais que auxiliam a desvelar os diversos ritmos e durações inerentes à vigência do direito. Há um tempo da elaboração da norma jurídica (que não é uma atividade “livre”, pois está vinculada e limitada por exigências procedimentais que estipulam prazos e ritos distribuídos ao longo do tempo para que seja válida), há um tempo da aplicação dessa norma (por diversos públicos e por diversos atores, em situações concretas perante um órgão decisório ou em meio a execução/implementação de políticas públicas, limitadas e reguladas pelo direito vigente). Há igualmente um tempo da estabilização da norma: a partir de quando é possível traçar uma descrição histórica acerca das interpretações produzidas pelos juízes e tribunais? Que usos do tempo são permitidos para que se materialize uma estabilidade mínima de padrões e conteúdos emanados do texto da norma? Há, ainda, algo que é inerente à própria existência do direito moderno: as diversas modulações temporais que se apresentam à tarefa de aplicar a norma (como a retroatividade, repristinação, recepção, prescrição, decadência) exigem e permitem uma certa “gestão da relação entre passado, presente e futuro”.
Cristiano retoma, nesse passo, uma questão, antes objeto de sua reflexão em Modernidade, Tempo e Direito. 1ª ed. BELO HORIZONTE: DEL REY, 2002, na qual tratou de analisar a dimensão temporal do direito da sociedade moderna, procurando compreender a correlação existente entre o aumento do grau de abertura do futuro na dimensão temporal do direito e a mudança da semântica do conceito de tempo ocorrida na Modernidade, atento aos problemas advindos dos riscos e conseqüências da positivação, todos vinculados à questão temporal: ameaças de “des-diferenciação”, tensão no aspecto funcional do direito e existência de normas que conformem o institucional, no caso do estudo de Cristiano, as que limitam o poder de reforma das constituições.
Conquanto nesses seus estudos originários sua cogitação estivesse vinculada à noção de tempo social, com base Luhmann, pode-se dizer que o alcance de sua análise mais se vinculará, posteriormente, àquela ordem de preocupação filosófica que se apresentará forte em de François Ost (Le Temps du Droit, Paris,Éditions Odile Jacob, 1999; O Tempo do Direito. Editora da Universidade Sagrado Coração, de Bauru, 2005, tradução de Élcio Fernandes), partindo-se da ideia de que o tempo pertence ao sentido e que ele mais se institui, configurando-se como um tempo público ou social, movido pela memória coletiva e portanto como um fator constitutivo do processo democrático na sociedade.
Com Layla, ainda que se trate de um trabalho de fecho de graduação, é preciso desbravar mesmo nesses estudos, no seu caso, nunca preliminares, eu bem o sei porque tanto me beneficiei de sua soberba autoria quando de seu assessoramento ao meu ofício reitoral, mesmo antes de seu brilhante desempenho em ciências sociais (ao se doutorar na área interdisciplinar do CEAM/UnB em Desenvolvimento Social e Cooperação Internacional), esse “território de dragões”, que ela desenha do mesmo modo como se fazia na cartografia náutica das grandes navegações, como simbólico do ainda não explorado, único espaço de onde poder emergir achados, descobertas, resultados criativos.
Por isso tomo o estudo monográfico de Layla Jorge, já inscrito nessa perspectiva de alta indagação sobre o tempo do direito, não só como manual de uso, procedimental, mas como tempo público ou social. Basta ver sua proposta contida no resumo da monografia.
Esta monografia objetiva analisar o uso do tempo, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), como um recurso processual. Isto é, a mora intencional no julgamento de determinadas ações, que posteriormente sofreriam a perda superveniente do objeto. Conforme nos aponta a literatura especializada sobre o tema, esta estratégia seria adotada pelo órgão para escapar à necessidade de: consolidar uma decisão e se indispôr com os demais Poderes; assumir o ônus simbólico e político das consequências de suas decisões junto à população; ou mesmo criar precedentes que comprometeriam a coerência jurisprudencial do Tribunal. Para dar substrato a esta análise, se adotou como estudo de caso as Ações Diretas de Inconstitucionalidade 5633, 5643, 5655, 5658, 5715 e 5743, propostas em oposição à Emenda Constitucional 95, de 15 de dezembro de 2016, popularmente conhecida como emenda do Teto de Gastos, que estabeleceu o Novo Regime Fiscal (NRF) no âmbito dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social da União. Este novo regime vigorará por vinte exercícios financeiros – medida de austeridade inédita por sua longa duração – sendo que, a partir de 2017, o gasto primário da União fica limitado ao gasto realizado em 2016, sendo apenas reajustado anualmente pela inflação acumulada, medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), desconsiderando o crescimento populacional e a expansão da demanda de serviços públicos. Para melhor delinear os impactos do NRF, o presente estudo deu destaque particular à área de Educação, apresentando projeções do declínio orçamentário na esfera federal e a urgência na avaliação da constitucionalidade da emenda a fim de salvaguardar direitos fundamentais sob iminente risco de violação, em notório retrocesso social. A conclusão é que o tempo foi, sim, adotado nestes processos como elemento estratégico pelo STF, indicando a condição do Tribunal menos como guardião do texto constitucional do que como aparelho ideológico do Estado.
Do que se trata é, para além de uma leitura que traga a crítica, mas que não se contente em ser juízo elegante e contemplativo, para não ser aquela redução sociológica a que adverte Guerreiro Ramos (RAMOS, Alberto Guerreiro. A Redução Sociológica. Rio de Janeiro: UFRJ, 1995), em sua disposição partindo da premissa de que a perspectiva segundo a qual os objetos são tomados os constitui, não podendo ser estudados desligados de seu contexto.
Anoto, para exemplo, o estudo de Pedro Pompeo Pistelli Ferreira – Direitos Humanos e Tenebrosas Transações: Um Estudo sobre os Usos do Direito na Aprovação da PEC do Congelamento dos Gastos Públicos, Dissertação de Mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania (PPGDH), do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (CEAM), da Universidade de Brasília (UnB), Brasília, 28/06/2019.
Em sua Dissertação Pedro Pompeo Pistelli Ferreira, examinando a mesma matéria sobre a qual Layla se debruça, se propõe: “compreender a concepção de direitos humanos subjacente nos argumentos e usos do direito empregados em defesa da aprovação da Emenda Constitucional 95/16” analisando os discursos “utilizados por grupos defensores dessa medida que têm alguma implicação de uso de direito e posterior possibilidade de construção de uma noção de direitos humanos”. Teoricamente Pedro Ferreira vale-se da “dialética social do direito de (Roberto) Lyra Filho, com centralidade dada à constante e dinâmica contradição entre classes espoliadas e espoliadores, grupos oprimidos e opressores” num amálgama ideológico que exponha a ideologia jurídica que embale a apropriação retórica de uma “concepção restrita de direitos humanos” , com a qual se costura “as mediações necessárias para aglutinar as frações da burguesia brasileira e internacional constituída em frente estatal-empresarial unificada em torno da implantação de um neoliberalismo puro em solo nacional”.
Embora conscientemente engajada, não só pela expressa opção de compromisso exposta na dedicatória (Às esfarrapadas e aos esfarrapados do mundo) e na adoção de pressupostos radicalmente críticos que se arrimam nas filosofias e teorias da libertação, eco certamente de sua iniciação acadêmica sob a orientação lá na UFPR de Celso Ludwig e do marxismo heterodoxo sintetizado pelo humanismo dialético de Roberto Lyra Filho, o trabalho de Pedro Ferreira, muito forte nesses fundamentos epistemológicos, previne-se de ceder ao verbalismo de conjuntura, para atribuir vigor significativo à retórica artificiosa das diatribes economicistas do arranjo neoliberal em curso no país (http://estadodedireito.com.br/um-estudo-sobre-os-usos-do-direito-na-aprovacao-da-pec-do-congelamento-dos-gastos-publicos/).
Claro que sociologicamente, a seguir Engels, quando a descrição do objeto é verdadeira, simultaneamente ele é explicado. Mas Engels terá tido em conta o cuidado proposto por seu parceiro de práxis teórica e política, acerca da diretriz de ação transformadora do mundo (11ª tese sobre Feuerbach).
Incidindo essa diretriz na mobilização para resgatar a Justiça do seu enclausuramento pelo Sistema, como perder de vista que as disputas envolvidas no controle da administração da justiça “têm um componente político partidário estruturante, que se imbrica às pautas remuneratórias e corporativas das carreiras jurídicas, que propomos o deslocamento do foco das análises que consideram apenas a judicialização da política no equacionamento democrático da separação ideal entre os poderes, para trazer à luz também a agenda do Poder Executivo dentro das instituições de justiça. Trazemos à baila, neste debate, a influência dos processos de decisão política sobre a independência judicial, considerando práticas que não se localizam necessariamente nos espaços mais visíveis da dinâmica formal e normativa da separação de poderes”. É o que aponta Luciana Zaffalon Leme Cardoso, em sua tese (de cuja banca, aliás, participei) FGV (2017): Uma espiral elitista de afirmação corporativa: blindagens e criminalizações a partir do imbricamento das disputas do sistema de justiça paulista com as disputas da política convencional (publicada pela Editora Hucitec, 2018: A política da justiça: Blindar as elites, criminalizar os pobres).
Na sua monografia Layla desenvolve, apoiada em suas escolhas autorais, fundamentação teórica para configurar o elemento tempo na atuação do Judiciário, pondo em relevo “processo de ideologização do STF” para caracterizar a “expansão da autoridade dos tribunais – seja do Supremo em relação às demais instâncias do judiciário ou em relação aos demais poderes – refletindo um fenômeno global de avanço do sistema jurídico diante da deterioração de instituições puramente políticas, como os parlamentos”, para fixar entre as hipóteses explicativas deste fenômeno “a expansão do sistema de mercado [que] ocuparia posição central, já que, aos olhos de investidores, os tribunais seriam fontes muito mais estáveis para garantia da segurança jurídica e previsibilidade das normas econômicas do que os legisladores democráticos, divididos entre demandas populares e lobistas”, além de uma “hiper constitucionalização da vida contemporânea [que] é resultado da desconfiança na democracia, e não sua causa, mas o reforço do papel do judiciário como guardião da Constituição aprofundaria o amesquinhamento do sistema representativo”.
Tais hipóteses coincidem com leituras em profundidade sobre os vínculos que o Sistema de Justiça acaba estabelecendo com o Sistema Político e o Sistema Econômico, mobilizando a introspecção de sua própria lealdade.
Veja-se a esse respeito, RAMPIN, Talita Tatiana Dias. Estudo sobre a reforma da justiça no Brasil e suas contribuições para uma análise geopolítica da justiça na América Latina. 2018. 436 f., il. Tese (Doutorado em Direito)—Universidade de Brasília, Brasília, 2018. Em seu estudo, muito bem documentado Talita “estuda a reforma da justiça no Brasil e suas contribuições para uma análise geopolítica da justiça na América Latina, mapeando as reformas da justiça enquanto fenômeno nas Américas, para identificar suas características, atores participantes e estratégias. Sua análise põe em causa a participação de instituições financeiras internacionais no direcionamento das reformas da justiça no contexto latino-americano, problematizando as relações que são desenvolvidas entre o centro, a semiperiferia e a periferia do sistema mundial e, com base no exame do conteúdo de documentos (acordos, relatórios, empréstimos e outros instrumentos normativos), extrai deles elementos que sinalizam o direcionamento que as instituições financeiras, com destaque ao Banco Mundial, para que os Estados-nacionais latino-americanos configurando que seu objetivo é adaptar suas estruturas estatais de justiça, em sentido amplo, aos interesses estabelecidos no contexto de mundialização da economia”, vale dizer, à estabilidade dos negócios.
Essa realidade está presente nas conclusões da pesquisa objeto da monografia. De fato Layla conclui que o tempo é adotado pelo STF, no caso estudado, como “elemento estratégico, um caminho de procrastinação [que] se apresenta para o Tribunal como uma rota alternativa que permite ao STF escapar à necessidade de consolidar uma decisão e se indispôr com os demais Poderes; assumir o ônus simbólico e político das consequências de suas decisões junto à população; ou mesmo criar precedentes que comprometeriam a coerência jurídica e da jurisprudência do Tribunal”.
Para Layla, em consonância com seus interlocutores teóricos, a “inação diante de pautas que afetam as estruturas sociais, é um sinal do alinhamento entre as elites judiciárias e as elites políticas e econômicas, o que consolida a posição do Tribunal como um aparelho ideológico do Estado, na conservação do status quo, e demonstra sua falha na função típica de guardião do texto constitucional”, em boa medida provocada, diz Layla, diante do que pode observar, por “um sequestro ideológico do judiciário pelo sistema de mercado financeiro”.
Guardião ou Porteiro?
Ao conferir a ocorrência de uma expansão política do judiciário em face de sua interação com o sistema político e a sociedade civil, um modo mais preciso de considerar nesse processo, é também compreender a ideologia que compromete a ação individual de juízes para entender o fluxo de interação ideológica entre tribunais e academia, mídia, grupos sociais organizados e outras instituições políticas.
Nesse passo, não é difícil estimar um potencial curto-circuito, quando se constata a súbita sobrecarga política sobre uma estrutura destreinada a participar democraticamente da deliberação sobre conflitos de elevada intensidade política, econômica e social, na medida da fórmula que alia expansão política e blindagem institucional e em oposição à sua abertura democrática ao dialogo nos termos da participação e controle social.
Para Antonio Escrivão Filho – Porteiro ou Guardião? O Supremo Tribunal Federal em Face aos Direitos Humanos. São Paulo: Friedrich-Ebert-Stiftung (FES) Brasil/Articulação Justiça e Direitos Humanos (JusDh), maio de 2018 – “ao contrário da disposição de fomentar noções de autonomia e independência concebidas como princípios políticos próprios da função judicial diretamente referentes à garantia da sociedade contra a arbitrariedade do Estado, as alianças então construídas sobretudo durante a mediação constituinte (1988), ao invés de forjar requisitos de neutralização do sistema – reconhecimento ontológico da condição política da justiça – deixou que esse se visse permeado pela ideologia da neutralidade – enredando-o em injunções a serviço da reprodução das tradições de uma cultura institucional acostumada e orientada à manutenção do status quo”.
Então, o que fazer? Pergunta Layla na exposição oral e eu devolvo a Layla a indagação. A pergunta tem a ver com preocupações válidas que têm mobilizado as expressões mais atentas do Sistema de Justiça. Desde que iniciadas em 2021, as mobilizações para a realização de um Fórum Social Mundial Temático Justiça e Democracia, o conjunto de entidades que o propôs, organizou e realizou agora ao final de abril – mais de uma centena de organizações e movimentos – mantiveram a motivação de sua convocação (http://estadodedireito.com.br/para-uma-revolucao-democratica-da-justica/), conforme os termos propostos pelas seis entidades que subscreveram o texto original: os coletivos Transforma MP, Associação Brasileira dos Juristas pela Democracia, Associação Juízes para a Democracia, Associação Advogadas e Advogados Públicos para a Democracia, Coletivo Defensoras e Defensores Públicos pela Democracia e Movimento Policiais Antifascismo.
Buscando ampliar contatos e agregar novos movimentos e organizações durante mais de um ano, até a instalação presencial do Fórum, cuidou-se de “promover um espaço de encontros e de compartilhamentos de percepções e informações e, num segundo momento, buscar construir condições para ações concretas e coletivas frente a desafiadora conjuntura atual”, ao acicate de motivos e urgências bem descritos no documento convocatório.
Entre esses motivos e urgências, tratou-se de não se acomodar “ante as milhares de situações de violações de direitos humanos, com destaque especial ao escancarado racismo estrutural que nos assola e à manipulação da democracia através de técnicas cada vez mais sofisticadas de disseminação de notícias falsas”, culminando numa estratégia em que o assim denominado lawfare sequestrou o espaço democrático do sistema de justiça para fazê-lo cúmplice de um processo desconstituinte de assalto ao projeto de sociedade que se organizava em base de uma amplo programa de mais equitativa distribuição da riqueza socialmente realizada e num experimento sem precedente de compartilhamento de poder político, numa modelagem criativa de participação popular democrática.
A Carta de Porto Alegre do Fórum Social Mundial Temático Justiça e Democracia, aprovada agora no dia 30 de abril, na assembleia de encerramento do Fórum é forte na afirmação de que o Fórum “oferece e ressalta a importância de ‘vencermos o obstáculo epistemológico dos paradigmas que isolam o jurídico na forma e na lei’, distanciando o Direito da vida concreta. Ele nos lembra que ‘a função do Direito é contribuir para a obra da humanização’ e que ‘a humanidade é uma experiência histórica e social’. E mais, que “ao desvelar as falhas dos sistemas de justiça por meio de depoimentos de pessoas que foram afetadas por eles ou por meio de estudos bem sistematizados, este Fórum presencial contribui para mensurar a extensão dos danos para a democracia que um sistema de justiça corroído acarreta. Também permite dimensionar os desafios com os quais nos deparamos para reafirmar a opção por um modelo de sociedade que seja alicerçado no princípio da igualdade, organizado em torno da ideia de emancipação política dos seus membros e, ainda, combativo quanto ao avanço do neoliberalismo econômico que leva ao exaurimento dos recursos naturais e objetifica as pessoas, automatizando-as. Isso sem contar que o neoliberalismo tenta apagar os saberes de povos originários (ainda resistentes) e solapa qualquer ideia de implantação do bem-viver para a maioria da população, consagrando o poder absoluto de alguns indivíduos ou corporações, pretensamente onipresentes por meio de plataformas digitais”.
A Carta termina com uma constatação: “Com nossas atividades, alcançamos o discernimento de que Democracia e Justiça não são resultado de lei ou regimento, mas estão inscritas no seio da sociedade e são impulsionadas pela avaliação e pela injunção crítica e contínua dos sujeitos coletivos que fazem a mediação entre sociedade e direito. São eles que constroem coletivamente a sua independência social com base nas interações permanentes no sentido de fazer a temática do nosso fórum: democracia e justiça, a nossa vida”.
O que fazer então Layla, diante das constatações de sua monografia, muito coincidentes com as conclusões expostas na Carta do Fórum Social Mundial Temático Justiça e Democracia?
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
O Capitalismo sem Máscaras em Tempos de Crime Sistémico e Outras Pandemias
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
Antonio José Avelãs Nunes. O Capitalismo sem Máscaras em Tempos de Crime Sistémico e Outras Pandemias. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2021, 372 p.
O mais recente livro de António José Avelãs Nunes, lançado no Brasil, com o sele da Lumen Juris, é um sopro de alento na pobreza e aridez das leituras sobre a realidade e a conjuntura. Deixando de percorrer o caminho raso do medíocre, Avelãs Nunes, um homem com qualidade, a partir dos textos que compõem a obra, propõe ensaios instigantes que, em conjunto, oferecem uma interpretação sobre as interpelações econômico-políticas de nosso tempo.
Fiz alusão a homem com qualidade em alusão a Musil e seu notável O Homem sem Qualidades, para configurar em Avelãs, o estofo de concepções presentes em suas obras, muito diversas daquelas concepções e de homens novos, que em certas circunstâncias derrapam no medíocre, ainda que, diz Musil, “estas concepções, estes homens novos, não eram com certeza totalmente maus; apenas existia neles um pouco mais de mau naquilo que era bom, um pouco de erro a mais na verdade, um pouco de maleabilidade a mais na definição” (cito aqui a partir da edição portuguêsa, volume I. Lisboa: Livros do Brasil, sem data).
No meu testemunho, formado a partir de um afetivo e institucional intercâmbio com o autor, o que o caracteriza é ver Avelãs verdadeiramente um homem com qualidades. Já deixei isso registrado em várias oportunidades e, em mais de uma anotação, aqui neste espaço da Coluna Lido para Você.
Reporto-me para sintetizar, aos textos de recensão já lançadas por mim, conforme http://estadodedireito.com.br/neoliberalismo-e-direitos-humanos/. Também em http://estadodedireito.com.br/25767-2/, neste último a propósito de RETRATOS ESCRITOS. Homenagem a ANTÓNIO AVELÃS NUNES. Coordenadores: Augusto Monteiro, Fernando Martinho, Inês Seabra, José Vitória, Maria José Ribeiro, Rogério Leal. Coimbra: Editora Lápis de Memórias, 2019, no qual também contribuo.
Este livro, aliás, digo em minha resenha, carrega intrinsecamente as marcas desse sentido de contribuição que um homem de universidade imprime a sua docência e ao movimento de espírito que busca oferecer disposição de entendimento para as questões que desafiam a compreensão das comunidades de inteligência.
Por isso que, o livro, se inspira em diálogos inter-universitários, em atenção ao interesse acadêmico, para aferir o significado econômico da política de globalização que marca a fase atual do capitalismo em escala mundial. Isso se identifica bem ao analisar as relações entre neoliberalismo e direitos humanos, matéria de sua intervenção em workshop sobre políticas neoliberais e direitos fundamentais (Onãti, Instituto Internacional de Sociologia Jurídica, julho de 2002), cujas notas se revelam nos textos que compõem a obra Neoliberalismo & Direitos Humanos.
O Capitalismo sem Máscaras, designa o Editor certamente com texto preparado pelo Autor, é uma antologia de textos dispersos, dos quais se destacam três: aquele em que se analisa a intervenção dos tribunais brasileiros em matéria de proteção do direito à saúde; o que se ocupa do neoliberalismo para tentar mostrar que ele é incompatível com a democracia; aquele em que se procura justificar a classificação capitalismo do crime sistémico.
Percorrendo os ensaios, o tema da globalização, sua caracterização e seus problemas, opera como um fio condutor, que culmina com o ensaio sobre a Europa enquanto projeto colonialista.
A globalização, referindo-me à descrição da obra, é uma realidade e um problema dos dias de hoje. Por isso, vários textos deste livro ocupam-se dela, na tentativa de mostrar que a globalização não é uma consequência inevitável do desenvolvimento científico e tecnológico. Este é o caminho da libertação dos homens, não a fonte dos nossos males. O veneno da globalização está na ideologia neoliberal que a inspira e nas políticas neoliberais que a concretizam. Porque o neoliberalismo conduziu ao capitalismo do crime sistémico e ó incompatível com a democracia.
As mesmas preocupações de desmistificar as ideias feitas e difundidas aos quatro ventos pelos órgãos ao serviço da ideologia dominante estão na origem do estudo em que se procura explicar os objectivos colonialistas do projecto de integração europeia.
A realidade brasileira está presente, abertamente, no estudo sobre a intervenção dos tribunais na concretização do direito à saúde.
O autor incluiu no livro três entrevistas, uma delas que me foi concedida. Nesta entrevista, a meu ver, permite entrever a linha condutora de seu pensamento ou melhor dizendo, sua leitura da realidade. A entrevista foi originalmente publicada no Observatório da Constituição e da Democracia – C & D (sobre o C & D conferir Coluna Lido para Você: http://bit.ly/2unYJIg). Porque considero que nela o entrevistado demarca o ângulo forte de sua reflexão e, mais do que isso, expõe a sua visão de Justiça sobre a crítica ao que representa o capitalismo hegemônico, mostrando o caráter de exclusão social provocado por esse processo e a sua face de desenvolvimento injusto, perverso, senão maligno, julgo valioso reproduzi-la como fecho deste Lido para Você.
ENTREVISTA COM ANTÓNIO JOSÉ AVELÃS NUNES (Desenvolvimento como respeito integral às pessoas e à afirmação plena das suas capacidades)
1. Uma linha significativa de sua produção científica tem se orientado pela busca de interligação entre economia, globalização e direito. É possível falar-se em justiça social ou em estratégias aceitáveis de desenvolvimento pela mediação das instituições e de políticas forjadas nos parâmetros do capitalismo ainda hegemônico no mundo atual?
É verdade que, sendo jurista de formação (a minha tese de mestrado é sobre um tema de direito societário), fiz o meu doutoramento e toda a subsequente carreira unviersitária na área das ciências económicas. E acredito que é importante que se faça investigação e ensino das ciências económicas nas Faculdades de Direito. Na minha Faculdade (a Faculdade de Direito de Coimbra) ensina-se Finanças Públicas e Economia Política desde 1837. Nos dias de hoje, é para mim indiscutível que um bom jurista não pode desconhecer as instituições e os mecanismos da vida económica.
Nos últimos anos, tenho dado alguma atenção à problemática da globalização. Refiro-me ao que costumo chamar a terceira onda daglobalização, marcada por um processo acelerado de desenvolvimento científico e tecnológico, especialmente no que toca aos transportes, às telecomunicações e à informática.
Para as classes dominantes, para as multinacionais e para o seu estado, pouco importa que milhões de pessoas morram de fome e de doenças provocadas pela fome. O que importa, num quadro como este, é melhorar o poder de compra dos clientes (a pequena camada de ricos) e, se possível, acrescentar mais uns quantos privilegiados a este núcleo de elite. O que, evidentemente, aconselha a (e pressiona no sentido da) concentração dos rendimentos ainda mais acentuada e desigual.
A exclusão social crescente é a outra face deste tipo de desenvolvimento perverso ou maligno. E a exclusão social é um dos fenómenos mais dramáticos do nosso tempo. Como escreveu um autor, quando se falava de exploradores e explorados, havia que contar com estes, porque os explorados estavam dentro do sistema (sem explorados não pode haver exploradores), enquanto os excluídos estão, por definição, fora do sistema, são inexistentes.
É importante salientar, porém, que a crítica da globalização não pode confundir-se com a defesa do regresso a um qualquer ‘paraíso perdido’, negador da ciência e do progresso. A saída desta caminhada vertiginosa para o abismo tem de assentar na confiança no homem e nas suas capacidades. Tem de partir da rejeição da lógica de uma qualquer inevitabilidade tecnológica, que nos imporia, sem alternativa possível, a actual globalização neoliberal, uma das marcas incontornáveis desta civilização fim-da-história.
Assim como esta globalização não é um ‘produto técnico’ deterministicamente resultante da evolução tecnológica, antes é um projecto político levado acabo de forma consciente e sistemática pelos poderes dominantes, enquadrado e apoiado pelas grandes centrais produtoras da ideologia dominante, assim também a luta por uma sociedade alternativa pressupõe que a política prevaleça sobre as pretensas ‘leis naturais’ do mercado ou da economia, pressupõe um espírito de resistência e um projecto político inspirado em valores e empenhado em objectivos que o ‘mercado’ não reconhece nem é capaz de prosseguir.
Todos sabemos, porém, que as mudanças necessárias não acontecem só porque nós acreditamos que é possível um mundo melhor. Essas mudanças hão-de verificar-se como resultado das leis de movimento das sociedades humanas, e todos sabemos também que o voluntarismo e as boas intenções nunca foram o motor da história. Mas a consciência disto mesmo não tem que matar o nosso direito à utopia e o nosso direito ao sonho.
De resto, talvez a utopia de Marx esteja a confirmar-se: o desenvolvimento científico e tecnológico conseguido pela civilização burguesa proporcionou um aumento meteórico da produtividade do trabalho humano, criando condições novas no que toca à capacidade de produção. Este desenvolvimento das forças produtivas (entre as quais avulta o próprio homem enquanto produtor e utilizador do conhecimento e do saber) só carece de novas relações sociais de produção, de um novo modo de organizar a vida colectiva, para que a humanidade possa saltar do reino da necessidade para o reino da liberdade.
Que possibilidades reais o Senhor identifica para a adoção nos novos arranjos constitucionais atualmente em curso, sobretudo na América Latina, para a adoção de estratégias alternativas de desenvolvimento fundadas em imperativos morais impulsionados pela participação de cidadãos na formulação, na aplicação e na avaliação de políticas sociais e econômicas?
Devo confessar que não conheço suficientemente bem a realidade da América Latina e não sou especialista em Direito Constitucional. O que posso dizer é que Amartya Sen tem razão quando defende que “o desenvolvimento é um processo de expansão das liberdades reais de que as pessoas desfrutam” e que a expansão da liberdade humana é tanto o principal fim como o principal meio de desenvolvimento”.
Isto significa que o verdadeiro desenvolvimento pressupõe o respeito intgegral das pessoas, a afirmação plena das suas capacidades, a liberdade para exercer em consciência os seus direitos, não apenas os clássicos direitos, liberdades e garantias, mas também os direitos económicos, sociais e culturais. E isto exige uma democracia que não se limite ao voto de tantos em tantos anos, mas uma democracia participativa, um verdadeiro governo do povo, pelo povo e para o povo. Se assim não for, não haverá, certamente, um “desenvolvimento do povo, pelo povo e para o povo”.
Em 2001, o Forum Social Mundial, reunido em Porto Alegre, afirmou o direito dos povos a organizarem-se livremente em vastas comunidades de nações solidárias, com o objectivo de evitar o domínio dos mais poderosos sobre os mais fracos, de proteger os povos por meio de barreiras de preferências comunitárias, de controlar os movimentos de capitais especulativos, que arruínam as actividades produtivas e mergulham as populações na incerteza, na crise e na miséria.
O Forum defendeu o direito dos povos à protecção das suas actividades vitais, o direito à livre escolha do modo de valorizar o seu território e os seus recursos, o direito a promover e a preservar a sua auto-suficiência alimentar, e rejeitou a lógica globalizadora que reduz à dimensão de simples mercadorias os valores sociais, as culturas e todos os valores que constituem a essência da identidade dos povos.
Creio que hão-de passar por aqui os caminhos do futuro. Todos concordaremos com Amartya Sen quando defende que o facto de haver pessoas que passam fome ¾ e que morrem de fome… ¾ só pode explicar-se pela falta de direitos e não pela falta de bens. O problema fundamental que se nos coloca não é, pois, o da escassez, mas o da organização da sociedade.
Num ensaio instigante e de ampla circulação o Senhor qualificou a tentativa européia de criar uma norma fundamental comum, de “constitucionalização do neo-liberalismo”. Por que essa iniciativa fracassou e quais as chances de retomada desse projeto ainda sob impulso neo-liberal?
Hoje, ao menos no quadro europeu, parece claro que a social-democracia assumiu muito consciente e empenhadamente a sua função de gestão leal do capitalismo. E vem assumindo cada vez mais a inspiração doutrinal, os métodos e os objectivos políticos do pensamento neoliberal dominante, não fosse ela a principal responsável pelo processo de integração europeia que, segundo alguns observadores, “teve como efeito tornar praticamente impossível qualquer alternativa ao neoliberalismo” (é a opinião de Ignacio Ramonet). Como escreveu Um dissidente do Partido Socialista francês (George Sarre) defendeu, durante o debate preparatório do referendo sobre a chamada Constituição Europeia, que “a Europa transformou-se no joker de uma esquerda sem projecto nem reflexão”, uma “esquerda que não tem outro projecto para além da construção europeia, a Europa”, uma esquerda que, para ser credível e não assustar os mercados, defende e pratica “uma política ainda mais à direita do que a direita”.
O menos que se pode dizer é que o estado social (que, desde o final da Segunda Guerra Mundial, foi a menina dos olhos da social-democracia europeia) não vive hoje na Europa uma hora feliz. E os resultados estão à vista: taxas de crescimento muito baixas; precariedade do emprego; desemprego acentuado (prolongado para os jovens e os desempregados com mais de 45 anos); deslocalização de empresas; deterioração acentuada dos resultados no que toca à distribuição funcional do rendimento (a parte dos rendimentos do trabalho passou, na UE/15, de 65% em 1980 para 57% em 2005); desigualdades crescentes, com manchas de pobreza significativas, mesmo nos países mais ricos; prática generalizada de dumping fiscal, social e salarial; baixa dos níveis salariais e dos níveis de protecção social.
Esta é a Europa construída, em grande parte, por obra dos dirigentes socialistas e sociais-democratas europeus, quase sempre à custa de conciliábulos entre ‘élites’, retirando à ponderação do voto popular as opções de fundo tomadas. E é hoje inquestionável que esta ‘Europa’, construída sob a invocação beata do modelo socialeuropeu, acabou por se transformar, para os povos europeus, como observou Bernard Cassen, num verdadeiro “cavalo de Tróia da globalização neoliberal”.
A chamada Constituição Europeia, não acrescentando nada de novo, pretendia apenas consolidar este acquis communautaire através da sua constitucionalização. E como ela seria praticamente inalterável (por tal exigir a vontade unânime dos países da UE) este acquis ficaria como que fora do quadro das opções políticas, transformado em verdade indiscutível, definitiva, válida para todo o sempre como o é o capitalismo para os defensores do fim da história.
Muitos europeus (entre os quais me incluo) entendem que, mais do que a questão de saber se seria correcto ou não falar-se de Constituição Europeia (e esta é sem dúvida uma questão importante, no plano jurídico e, sobretudo, no plano político), a questão decisiva residia em saber se a Europa que queremos é a que estava desenhada naquele projecto de ‘constituição’. Na minha opinião, a resposta é NÃO. Os europeus e o mundo inteiro precisam de uma outra Europa, uma Europa governada por princípios de solidariedade social e não a Europa orientada pela livre concorrência, que aceita (resignada, ou exultante) a “violência da concorrência (…) sem regulação nem limite”; uma Europa dos direitos sociais e do progresso social e não a Europa da precariedade do trabalho, da desigualdade crescente, da exclusão social, que quer fazer andar duzentos anos para trás o relógio da história; uma Europa livre de tutelas e capaz de definir os seus objectivos na cena internacional e não a Europa de joelho dobrado perante o império norte-americano; uma Europa dos cidadãos e dos trabalhadores, e não a Europa dos negócios e do capital financeiro; uma Europa (e um mundo), em suma, em que o mercado não substitua a política, a concorrência não substitua a cidadania, a eficiência e a competitividade não substituam o direito e a justiça. Para tanto, é imperioso que a União Europeia, enquanto comunidade de estados soberanos e iguais, seja uma comunidade de povos e de culturas, uma comunidade de afectos, coesa e solidária, uma comunidade de valores democráticos, acima de tudo fiel a um dos objectivos estratégicos iniciais, uma comunidade de paz, uma comunidade promotora da paz, através do combate ao subdesenvolvimento, ao racismo, à pobreza, à exclusão.
Pela minha parte, apesar de os tempos presentes não alimentarem grandes optimismos, quero acreditar que a construção da Europa continua a ser um projecto em aberto. Porque o neoliberalismo não é o fim da história. E porque os caminhos da história não passam por aqui.
Apesar de suas tarefas atuais extremamente exigentes o Senhor tem encontrado tempo para freqüentes visitas ao Brasil e tem contribuído com os esforços institucionais para a afluente qualificação da pesquisa e da pós-graduação em Direito. De fato, o Senhor participou na condição de observador internacional de várias jornadas de avaliação da pós-graduação em Direito no Brasil, a convite da CAPES. Como observador, que tendências podem ser postas em relevo, pensando, por exemplo, temas como desenvolvimento justo, processos de deliberação conformes a um constitucionalismo democrático, direitos humanos?
Considero um privilégio ter podido participar, como observador estrangeiro convidado pela Direcção da CAPES, nos trabalhos da Comissão de Avaliação Trienal dos Programas de Pós-Graduação em Direito, nos anos de 2001, 2004 e 2007. Creio que fiquei com uma ideia bastante informada sobre o ensino pós-graduado do Direito no Brasil e senti-me feliz por ter observado a melhoria verificada, no conjunto da Área, durante o período referido. A este propósito, é-me grato deixar aqui a minha opinião muito positiva sobre o trabalho realizado pelos Colegas com quem partilhei as tarefas da avaliação, sob a orientação dos Professores Luiz Edson Fachin, Fernando Scaff e Jacinto Miranda Coutinho. Conheço bem e sou amigo do novo Coordenador da Área, Prof. Gilberto Bercovici. E estou certo de que ele saberá dar continuidade ao trabalho desenvolvido nos últimos anos, contribuindo para o reforço da qualidade da Pós-Graduação em Direito no Brasil e garantindo a seriedade e o rigor das tarefas de acreditação e de avaliação dos respectivos programas.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
Sonhos que viram pesadelos” para a zona do não-ser: o tráfico de pessoas e a cidadania inexistente
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Sabrina Beatriz Ribeiro Pereira da Silva. DOS “SONHOS QUE VIRAM PESADELOS” PARA A ZONA DO NÃO-SER: O Tráfico de Pessoas e a Cidadania Inexistente. Monografia apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Brasília como requisito para obtenção do grau de bacharela em direito, sob a orientação da professora Doutora Talita Tatiana Dias Rampin, 2022
Tenho Lido para Você, neste espaço, em geral livros, mas também teses e dissertações, às vezes relatórios, sempre com o intuito de sugestões a pesquisadores e a editores. Aqui e ali, por conta de ofício, acabo me deparando com excelentes monografias e TCCs, concluídos depois de sabatinados, e aptos à publicação como artigos e até, boas plaquetes perfeitamente editáveis.
Esse é bem o caso dessa monografia, que tive a oportunidade de examinar na Faculdade de Direito da UnB, integrando Banca Examinadora, que poderia ter sido montada para uma qualificada tese de doutorado: Professoras e Professores: Talita Tatiana Dias Rampin – FD/UnB, Orientadora; Ela Wiecko Volkmer de Castilho – FD/UnB; Marcelo da Costa Pinto Neves – FD/UnB.
A autoria fala pela atenção que deu ao trabalho a super-qualificada banca examinadora. Venho acompanhando a trajetória acadêmica de Sabrina Beatriz Ribeiro Pereira da Silva, com seu sobrenome tão brasileiro, ela própria um ideal tipo de todo o empenho de nossa universidade para se realizar como a universidade necessária proposta por Darcy Ribeiro, capaz de exercer lealdade com o povo e poder contribuir para satisfazer as expectativas do social, até poder se expandir em atualização como universidade emancipatória tal como me empenhei em meu reitorado, para se fazer ainda mais democrática, participativa, inclusiva (cf. SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Da Universidade Necessária à Universidade Emancipatória. Brasília: Editora UnB, 2012).
Sobre assim se posicionar, basta ver o depoimento de Sabrina, nos Agradecimentos, nos quais o reconhecimento ao institucional que a acolheu em políticas de acesso e de permanência, foi apto a recepcionar todo o potencial que sua inteligência e caráter e lhe apoiar para que se realizasse em plenitude transportando para o instante de certificação todas as expectativas de um projeto tanto pessoal – projeto de vida, quanto coletivo, de seus familiares, de sua comunidade, de sua raça, de seu gênero, de sua classe – projeto de sociedade. Sabrina revela todos esses vínculos, os apoios que teve, a confiança que conquistou, tudo expresso na qualidade de sua formação, que o tema da monografia expõe, solarmente.
Que o confirme o resumo da Monografia:Qualquer um pode ser vítima da coisificação da pessoa realizada pelo crime de tráfico humano, mas, além do fato de terem sido exploradas e comercializadas como se coisa fosse, o que as vítimas do tráfico de pessoas têm em comum? A partir do método de pesquisa empírica – com a realização de pesquisa participante, entrevistas semiestruturadas – e qualitativa – com revisão bibliográfica, análise documental –, este estudo observou que, tendo essa prática criminosa vínculo direto com a vulnerabilidade socioeconômica e estando a desigualdade social brasileira intrinsecamente relacionada à fatores raciais, existe uma situação de sobre e subintegração que empurra os seres racializados para uma zona de negação de existência, zona do não-ser, que ainda se divide em sub-humanos e não-humanos, que intersecciona questões de orientação sexual e identidade de gênero. Estruturado em três capítulos, esta monografia primeiro desconstrói os mitos e falácias da narrativa “quando o sonho vira pesadelo”; depois apresenta um panorama histórico, organiza dados, ideias e explana o arranjo social nacional do tráfico humano; por fim, o terceiro capítulo foca-se em responder o problema de pesquisa, apresentando dois exemplos de cidadanias inexistentes marcadas pela construção racializada da zona do não-ser e pela subalternidade das identidades de gênero e orientações sexuais que fogem à cis e heteronormatividade do padrão branco.
E o revele o sofisticado sumário do trabalho:
INTRODUÇÃO 1. TRÊS MITOS SOCIAIS QUE CIRCUNDAM O TRÁFICO DE PESSOAS E OS PRECONCEITOS TRADICIONAIS DA CONCEPÇÃO DE “QUANDO O SONHO VIRA PESADELO”
1.1. Mito 1. As máfias internacionais são as principais responsáveis pelo tráfico de pessoas
1.2. Mito 2. Tráfico de gente só acontece internacionalmente
1.3. Mito 3. Perfil das vítimas: Do “Jeca Tatu” ao pânico moral
TRÁFICO DE PESSOAS: os problemas conceituais, a atual legislação brasileira (Lei n° 13.344/2016) e o descaso com a prevenção
2.2.1. Iniciativa da sociedade civil: Associação dos Travestis, Transexuais e Trangêneros de Goiás (Astral – GO)
2.2.2. Iniciativa da sociedade civil: Projeto Vez e Voz
ZONA DO NÃO-SER: a cidadania inexistente das vítimas do tráfico de pessoas
3.1. O trabalho escravo contemporâneo e a zona do não-ser
3.2. Cidadania inexistente: o “resgate” das travestis vítimas de exploração sexual
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
Ainda antes de ler a monografia de Sabrina, na condição de coordenador acadêmico no projeto Vez e Voz na UnB, eu já vinha me debruçando sobre relatórios e avaliação da execução desse projeto, formulando meus juízos críticos sobre o que ele representa.
Assim é que, depois do exame de relatórios mais recentes pude elaborar artigo de divulgação: “Tráfico de pessoas: crime agravado pela desigualdade social”, publicado no qualificado espaço da REVISTA IHU ON-LINE (https://www.ihu.unisinos.br/611641-trafico-de-pessoas-crime-agravado-pela-desigualdade-social), para concordar com o que é praticado nesse projeto, no sentido, eu disse no texto, de que “Inscreve-se nos esforços para o enfrentamento desse flagelo, o Projeto Vez e Voz desenvolvido na Universidade de Brasília com o objetivo de desvelar uma prática criminosa que acontece demais nas periferias do Brasil. Seu objetivo é levar a temática invisível do tráfico de pessoas às escolas, dialogando com os estudantes, proporcionando informações para que se previnam dos aliciadores. Segundo os coordenadores do projeto, em Relatório, ‘é impossível falar de Tráfico sem falar de vulnerabilidade social, racismo, violência de gênero e sem citar a evidente desigualdade social, em que uns ganham muito e outros nada’”.
Também no artigo fiz remissão, tratando do projeto, ao que disseram sua coordenadora executiva, a educadora popular Rosa Maria Silva dos Santos, e estudante estagiária, Sabrina Beatriz Ribeiro Pereira da Silva, em programa de TV (TVExpreso61 | Programa O Direito Achado na Rua): Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Projeto Vez e Voz (cf. em https://www.youtube.com/watch?v=KaT3sUwW-RE&list=PLuEz7Ct3A0Uj9NU2BYmgSIM0rWv7IRAjK&index=22).
Tenho que elas remetem, em suas manifestações, tal como agora reitera Sabrina na monografia, ao Protocolo de Palermo (2000), texto adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, 2000, ratificado pelo Brasil (Decreto n. 5017/2004), definindo o tráfico de pessoas: “o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou ao uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou de situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tem autoridade sobre outra, para fins de exploração. A exploração deverá incluir, pelo menos, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, a escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a extração de órgãos”, de onde deriva a atualização do Código Penal brasileiro, com a inclusão tipo definido no artigo 149-A incluído pela Lei 13.344/2016.
Mesmo com essa avançada normativa internacional, ainda é o muito difícil vencer a sutileza ocultadora de “práticas” naturalizadas de relações sociais patriarcais que nem as autoridades de controle criminal, nem os meios de comunicação, nem as muitas catequeses, delas se dão conta. Todavia, como mostra Rosa Maria, elas carregam o núcleo do tipo criminal: o “amor romântico” que encobre o chamado “escravismo branco”; a ilusão do patrocínio na prática do sugar baby e, tão comum no trânsito entre desigualdades, a “generosidade” da casa grande que mantém a senzala quando recruta nas periferias os serviços de jovens que serão acolhidas como parte da família, para serem educadas, terem uma oportunidade, claro, com a retribuição de alguns serviços domésticos, sem limite de jornada, muitas vezes sem salário (porque lhes damos tudo), praticamente em cárcere privado.
A atualidade dessa avaliação, aliás, no mesmo momento em que Sabrina submete sua monografia a julgamento crítico, ela vem toda exposta a crivo social e político em mesa que o Projeto Vez e Voz submeteu ao Forum Social Mundial Temático Justiça e Democracia que se realiza entre 26 e 30 de abril em Porto Alegre.
Nessas expressões concomitantes, cuida-se de afrontar desafios e perspectivas para o enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil, que na UnB, desde antes vem sendo campo de sistemática intervenção. Menciono para estabelecer interconexões, ao menos duas obras, “Desafios e perspectivas para o enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil. Série Educando para os Direitos Humanos: Pautas pedagógicas para a cidadania na Universidade Vol. II”. Organizadoras: Nair Heloísa Bicalho de Sousa, Adriana Andrade Miranda e Fabiana Gorenstein. Brasília: Ministério da Justiça / NEP-CEAM-UnB (Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos-Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares, Universidade de Brasília), 2011; e “Tráfico de Pessoas e Mobilidade Humana”. Organizadora Maria Lúcia Leal. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2018.
Sobre elas ofereci recensão (http://estadodedireito.com.br/desafios-e-perspectivas-para-o-enfrentamento-ao-trafico-de-pessoas-no-brasil/), para estabelecer pertinência e os vínculos teórico e político que ligam uma a outra obra, na linha de posicionamento a favor do paradigma dos direitos humanos em contraposição à xenofobia e ao apartheid; de defender uma epistemologia de valorização dos sujeitos sociais; de propor o esclarecimento de conceitos capazes de instrumentalizar um movimento em prol da globalização contra-hegemônica, tendo em vista uma ação transformadora capaz de articular “saberes e teorias com práticas concretas de mediação do ser social por meio de alianças locais e transnacionais contra o tráfico de pessoas para fins de exploração sexual” (LEAL, Maria Lúcia Pinto. Desafios e Perspectivas…op. cit. pp. 31 e 274).
Mas sobretudo para recuperar do corpo das obras examinadas, dois registros que têm inteira vinculação com elementos esgrimidos na monografia.
O primeiro, porque guardando concepção próxima, também apresentada na Faculdade de Direito da UnB, refere a artigo de pesquisador que se fez mestre no Programa de Pós Graduação em Direito (Faculdade de Direito) da UnB, Patrick Noordoven, oferecido como atividade avaliativa da disciplina ofertada O Direito Achado na Rua, no âmbito deste mesmo programa, por isso valendo-se de conceitos e elementos teóricos e práticos de O Direito Achado na Rua, base adequada para a sua pesquisa sobre o tema da adoção internacional e o direito à identidade.
Com efeito, nesse sentido, Patrick Noordoven, conforme ele próprio revela no artigo, entrelaça a sua trajetória de um recém-nascido traficado ilegalmente do Brasil para Holanda e, portanto, privado de sua identidade, à pesquisa que desenvolve atualmente no Programa da Faculdade de Direito da UnB. Patrick, aliando seu percurso à pesquisa e à prática de seu projeto de vida, é fundador da ONG Brazil Baby Affair (http://bit.ly/2MMeOQ8) que auxilia pessoas na luta pelo direito à identidade e pelo direito de conhecer suas raízes e obter acesso às suas origens.
No artigo apresentado, cujo título é The Right to Identity – Conquering Access to Justice in Brazil (O Direito à identidade – conquistando o direito de acesso à Justiça no Brasil), Patrick, ao partir da clareza política de O Direito Achado na Rua, de que o direito, para ser verdadeiramente emancipatório, deve passar pela disputa de sua apropriação e realização, ele reconhece que a legislação de direitos humanos sobre o direito à identidade também precisa ainda ser disputada, sobretudo no Brasil, em que ainda prevalece o entendimento preconceituoso de que seria melhor para uma criança ser adotada por uma família rica do norte-global ao invés de o país prover formas de assistência a uma família carente ou de superar a desigualdade social no país. Conclui o autor, ao final de seu artigo, que O Direito Achado na Rua, em sua perspectiva teórica e prática, representa uma esperança para os movimentos sociais que estão articulados nesta luta, sendo plausível crer que a conquista do acesso à justiça está efetivamente ao alcance dos adotados, pelo menos a longo prazo.
O segundo, o artigo de Luísa Mendes Lara, Direito Achado na Rua e Educação Popular na Prevenção ao Tráfico de Pessoas com Crianças e Adolescentes em Águas Lindas de Goiás: Experiência do Projeto Vez e Voz (pp. 129-138). E a razão decorre de meu vínculo com o projeto, na condição de seu coordenador para o sistema de extensão da UnB. Embora, na prática, o projeto seja auto-gestionado por suas participantes, seguindo o modelo de seu projeto de origem, ainda em execução contínua, o Projeto PLP – Capacitação de Mulheres em Direitos Humanos e Gênero. Finalmente porque o projeto se escora teoricamente em O Direito Achado na Rua, Grupo de Pesquisa (Diretório do CNPq) e Linha de Pesquisa dos Programas de Pós-Graduação em Direito (Faculdade de Direito) e Direitos Humanos e Cidadania (CEAM), combinando, na análise da Autora, os fundamentos teórico-críticos da concepção de Direito que o abriga (Direito entendido com enunciação de princípios de uma legítima organização social da liberdade, conforme Roberto Lyra Filho) e a educação popular (conforme a Pedagogia da Autonomia, de Paulo Freire), uma relação, de resto, perfeitamente estabelecida, entre outros, com mais pertinência, por Ana Maria Araújo Freire (Nita Freire), em Acesso à Justiça e a Pedagogia dos Vulneráveis (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al. O Direito Achado na Rua vol. 8: Introdução Crítica ao Direito à Comunicação e à Informação. Brasília: FAC Livros, 2017, edição impressa; edição e-book: http://bit.ly/2wbNe7C).
Nesse material, conforta-se o que parece ser o escopo do trabalho de Sabrina: de um lado, por em relevo o que ela configura como os “três mitos sociais que circundam o tráfico de pessoas e os preconceitos tradicionais da concepção de ‘quando o sonho vira pesadelo’ (o mito das máfias internacionais como as principais responsáveis pelo tráfico de pessoas) – esse primeiro mito se mostra já no subtítulo da matéria que diz: “Em busca de uma vida melhor, mulheres migram para países desenvolvidos, mas acabam caindo nas mãos de máfias internacionais e enfrentando a prostituição, maus-tratos, escravidão e até a morte”. Essa descrição apresenta a ideia equivocada de que as máfias internacionais são as grandes responsáveis pela migração e pela exploração no tráfico internacional de pessoas, porém, em verdade, trata-se de uma narrativa mitológica com potencial de prejudicar o trabalho de prevenção. (O mito de que o tráfico de gente só acontece internacionalmente) – esse segundo mito é a abordagem do tráfico humano como um acontecimento que se dá apenas e tão somente em âmbito internacional. Assim como na matéria “Quando o sonho vira pesadelo” e na novela Salve Jorge, a imagem midiatizada desse tipo de tráfico costuma estar mais atrelada à internacionalização das vítimas. Como será aprofundado em capítulo específico, tal percepção se sustenta a partir do vínculo que o tráfico de pessoas tem com a migração internacional desde a origem de seu conceito. Porém, trata-se de uma narrativa limitada e ultrapassada, pois o tráfico interno de pessoas acontece bastante e tem demonstrado ascendência. (O mito sobre o perfil das vítimas: Do “Jeca Tatu” ao pânico moral) – esse terceiro mito caracterizado por ser uma conclusão preconceituosa de peso dúplice: por uma perspectiva, põe em xeque a mínima capacidade de autopercepção da pessoa vitimada; e, por outra, impulsiona uma espécie de ajuda contraproducente do Estado para “resgatar” quem nem é vítima.
Vem daí duas assertivas fortes na monografia. A primeira, no afirmar que o “tráfico de pessoas é um conceito jurídico, e não é uma categoria sociológica, inventado desde a preocupação e “discursividade da necessidade de policiamento das fronteiras transnacionais”. As rejeições ao tráfico de pessoas negras, dos mais diversos países do continente africano, para práticas escravistas tomaram força na comunidade internacional em meados do século XIX”.
A segunda, diz a Autora, forte na verificação do “recorrido histórico, a conceituação de tráfico de seres humanos presente no Protocolo de Palermo é uma consequência mais elaborada do mesmo debate originado a partir de uma iniciativa branca, eurocêntrica, racista, sexista e, verdadeiramente, pouco (ou nada) preocupada com a dignidade sexual das vítimas, pois, inicialmente, o que se buscava tutelar era uma suposta moralidade pública sexual e a construção de pureza e fragilidade da mulher branca. Todavia, ainda assim, trata-se de um documento oficial elaborado, aprovado e firmado pelas Nações Unidas, destarte foi ratificado pelo Estado brasileiro no ano de 2004 pelo Decreto nº 5.017”.
A articulação desses mitos sobre exibir as contradições de um social clivado de hierarquias e lugares legitimados, acaba permitindo à análise de Sabrina, ainda que que se ancore numa caracterização do fundamento criminal do tráfico mas que vai fixar um achado de sua monografia. Determinar empiricamente a afirmação de um pânico moral que abre ensejo para mobilizar ações de resgate social, mais designadamente uma empreitada moral conforme suas referências teóricas: “As percepções de que “elas não se percebem exploradas” são justificadas pela síndrome pós-traumática de reação aguda ao stress, no campo da ciência é dita psi ou transtorno de adaptação . Nesse caso, a “atuação dos poderes jurídicos, outorgados aos detentores dos saberes ‘psi’ o direito de dizer sobre o outro, é tema relevante de reflexões e debates no campo da sexualidade”.
Na prática, uma modelagem colonizadora, permeada por vises raciais, patriarcais e de classe, segundo o que “se verifica é que o não reconhecimento – por parte das supostas vítimas – de que foram exploradas ou traficadas cria uma situação ambivalente: ora o discurso oficial empregado pelas autoridades desconsidera as declarações das pessoas e as colocam na posição de quem necessita de proteção e ora “as deslocam para a situação de ‘perigosas e bandidas’ [ou cúmplices] ao vincular a prostituição à marginalidade e à (des)ordem pública” .
Com esses pressupostos, Sabrina insere no capítulo que cataloga iniciativas da sociedade civil para descrever o Projeto Vez e Voz:
O Vez e Voz é um projeto de extensão continuada ligado à Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB). A atuação diária do Projeto conta com a orientação direta das promotoras legais populares (PLPs) e educadoras populares Laerzi Inês e Rosa Maria; na institucionalidade da UnB, por sua vez, é coordenado pelo professor José Geraldo de Sousa Junior e conta com o suporte ativo e atento das professoras Lívia Gimenes e Talita Rampin.
O Projeto Vez e Voz atua por meio de oficinas e a metodologia empregada é baseada nas teorias de Paulo Freire, tanto é assim que o termo “educação popular” é carregado já no nome oficial do Projeto. A educação popular é um movimento pedagógico e político, particularmente latino-americano, e defende que é por meio da educação que podemos conceber estratégias para concretizar transformações sociais a favor dos setores populares, conscientes de que ninguém aprende tudo, ninguém ignora tudo e por isso estamos aprendendo sempre.
O Projeto Vez e Voz foi criado na perspectiva de que promover direitos humanos está além de apresentar aos cidadãos os diversos instrumentos legais, tratados e declarações existentes. Promover direitos humanos comporta, sobretudo, a abertura de espaços para que os indivíduos mais vulneráveis se reconheçam como sujeitos de direito e a partir de suas vivências, consigam identificar e compreender os fatos sociais para que possam verdadeiramente transformar criticamente a sociedade e até o próprio Direito. O nome do Projeto foi pensado já com a finalidade de situar o protagonismo das formações de prevenção e enfrentamento ao tráfico de pessoas.
Portanto, a metodologia do Projeto se fundamenta no pressuposto de que o diálogo problematizador é base para a construção de conhecimentos. A problematização da realidade é necessária para a sensibilização em relação à pobreza, ao racismo, à violência, à injustiça, bem como tudo que ofende a dignidade da pessoa humana. Ao mesmo tempo, tal problematização é crucial para que as/os participantes da ação educativa se sintam mobilizadas/os para agir pela mudança social.
Em síntese, como pondera Rosa Maria Silva dos Santos , não é possível falar sobre o tráfico de pessoas sem falar sobre desigualdade social, racismo, inacesso à justiça, violência de gênero, LGBTfobia, violência contra a mulher, assédio sexual e de outras vulnerabilidades sociais, pois os aliciadores do tráfico humano se aproveitam dessas situações para oferecer à vítima tudo que ela quer, mas no fim acaba tirando tudo que ela tem, o que inclui também a sua dignidade, saúde física, mental, liberdades e até a própria vida.
No ano de 2018, o Projeto Vez e Voz recebeu, da Subsecretaria de Apoio às Vítimas de Violência (SUBAV) – órgão da Secretaria de Estado e Justiça e Cidadania do Distrito Federal (SEJUS-DF) – o reconhecimento aos meritórios serviços prestados à sociedade brasileira. No ensejo das celebrações dos 70 anos de existência da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948-2018), ao Projeto de Extensão Vez e Voz foi conferido o Troféu de Defensores da Justiça e da Cidadania.
Enquanto a OnG Astral encontra grandes adversidades financeiras, sobretudo para manter sua casa de acolhimento, o Projeto Vez e Voz tem “problemas de pessoal”. Quando questionada sobre quais seriam as dificuldades do Projeto, Rosa Maria responde: “Se dependêssemos de dinheiro para existir nem teríamos nascido. É a disponibilidade de pessoas da sociedade, sem vínculo e sem dependência dos governos, que nos mantém vivos”.
Neste ano de 2022, o “Vez e Voz” completa dez anos de existência e é o único grupo da sociedade civil que oficialmente compõe o Comitê Distrital de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, vinculado à SEJUS-DF. Ou seja, para além das atividades nas escolas, cursinhos e institutos, o Projeto também atua na articulação institucional de prevenção e enfrentamento ao tráfico humano, sendo sua autonomia característica fundamental que proporciona a liberdade necessária para opinar e propor, sem a preocupação de desagradar qualquer autoridade política ou administrativa justamente por ser insubordinado e independente.
Um cuidado que não pode ser negligenciado. Embora haja necessária singularidade na construção de sentido intelectual que se manifesta na monografia, a Sabrina não pode desconsiderar o arranjo coletivo que proporcionou muito dos seus achados. O tema que ela realiza em autoria própria, em outro recorte, mas tangenciado, já foi objeto de sua co-autoria em trabalho que precisa ser referido: “Projeto Vez e Voz: a Educação Popular na Prevenção e no Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas nas Escolas do Distrito Federal”, publicado em SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; FONSECA, Lívia Gimenes Dias da; BAQUEIRO, Paula de Andrade (Orgs). Promotoras Legais Populares Movimentando Mulheres pelo Brasil: Análises de Experiências. Brasília: Universidade de Brasília, 2019, p. 187-206 – https://drive.google.com/drive/u/1/folders/1PjSpxTzFgSNThU1zyfLKet7vz20eTP7m. Também fiz uma recensão dessa obra, impressionado com o recorte nela exposto de que “Nasce uma Ideia: a Prevenção como Esperança”.
Também nessa linha de referências, Sabrina de novo co-autora, o texto “Projeto Vez e Voz: a Extensão Universitária Popular Trabalhando a Prevenção ao Tráfico de Pessoas na Pandemia da Covid-19”, em SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; RAMPIN, Talita Tatiana Dias; AMARAL, Alberto Carvalho (Orgs). Direitos Humanos & Covid-19. Respostas Sociais à Pandemia. Vol. 2. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2022, p. 239-272 (http://estadodedireito.com.br/direitos-humanos-covid-19-vol-2-respostas-sociais-a-pandemia/), centrado na afirmação de que “Quando uma pessoa é explorada numa situação de tráfico, ela é tratada como se coisa fosse, o que gera grandes danos físicos e psicológicos, por vezes irreversíveis, é por isso que a prevenção é o melhor caminho”. Certo que esse trabalho não poderia ser referido aqui agora porque o livro está sendo lançado exatamente hoje. Mas até o depósito da monografia poderá ser incluído nas referências e merecer, quem sabe, uma nota.
Retomando o fio condutor de minha leitura. Muito eloquente, pois, recorrer a Fanon, com a sua metáfora da Zona do não-ser, referida à condição de cidadania inexistente das vítimas do tráfico de pessoas. Conforme Fanon, “Há uma zona de não-ser, uma região extraordinariamente estéril e árida, uma rampa essencialmente despojada, onde um autêntico ressurgimento pode acontecer”.
Encaminhando sua conclusão, em que pese reivindicar o pressuposto incriminador do tipo, o que afirma Sabrina (será uma contradição?!):
“Vê-se, portanto, que condições de desemprego, pobreza, insegurança alimentar e instabilidade residencial é realidade na vida dos seres racializados que se localizam na zona do não-ser. E é importante não se olvidar que essas situações permanecem porque o Estado e toda sua estrutura branca e padronizada fazem essa escolha política. O Brasil não é um país pobre, é um país desigual e sustentado por uma estrutura racista e lgbtfóbica. No que tange à especificidade do tráfico de pessoas, os impactos de fazer parte da zona do não-ser podem ser visualizados em diferentes aspectos e amplitudes. Vejamos a seguir dois exemplos distintos que ilustram a sub-cidadania de vítimas do tráfico de pessoas e do descaso do Estado brasileiro para acolher e integrar, constitutiva de um trabalho escravo contemporâneo favorecido pela zona do não-ser: “o tráfico humano com a finalidade de exploração do trabalho escravo é a modalidade que é mais retratada no Brasil. Nesse momento vale destacar que a invisibilidade do tráfico de pessoas, tanto pela desinformação com pela subnotificação por incapacidade técnica de algumas autoridades, é uma condição que dificulta a observância do verdadeiro panorama dessa prática criminosa”.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
Democracia, Autoritarismo e Resistência: América Latina e Caribe
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Democracia, Autoritarismo e Resistência: América Latina e Caribe. Roberto Bueno (Organizador). São Paulo: Editora Max Limonad, 2021
São fortes e enunciativas as designações do Professor Roberto Bueno, organizador da obra.
Este livro – diz ele – foi concebido, escrito e organizado em tempos de radical crise que se abate sobre o Brasil e também sobre a América Latina e o Caribe, embora a gestação do colapso imposto à periferia ocorra em centros de poder globais. Estes são tempos em que recrudesce o autoritarismo em alta densidade sob a organização da classe privilegiada que ocupa os mais altos postos de poder e na burocracia do Estado, superando a fase de concepção e desenho do fenômeno neofascista para dedicar-se a sua implementação a partir do coração do império ocidental, os EUA, cuja decadência se expressa precisamente neste recurso do capital às estruturas do neofascismo que, paradoxalmente, alimentam as vias de resistência popular tanto no núcleo duro do império como na periferia. A abordagem deste fenômeno e suas decorrências em diversas áreas da vida humana foi o objetivo do organizador desta obra coletiva e proposto para todos os(as) autores(as) no sentido de contemplar tal perspectiva em seus textos desde o recorte metodológico escolhido em suas áreas de especialidade, tanto do ponto de vista histórico como de sua aplicação prática”.
Esse é o sentido e alcance dos textos e das leituras dos autores e autoras convocados para compor a obra, na medida crítica que transparece do seu Sumário:
Apresentação, Roberto Bueno
Prefácio – As Razões da América Latina, Maria Cecília Pedreira de Almeida
Prefácio – Os Desafios para a Democracia na América Latina, Delamar José Valpato Dutra
Prefácio – Os Povos Indígenas como Prova das Contradições e Limites do Discurso Institucional Brasileiro, Luís Filipe Trois Bueno e Silva
Posfácio – Por uma Assembleia Popular Instituinte: uma constituinte especificamente política é a melhor solução para nossa crítica, Willis Santiago Guerra Filho
Estudo Introdutório – A recolonização da América Latina: o grande saque imperial, Roberto Bueno
Capítulo I – Determinaciones del Estado dependentiente y razones de las rupturas políticas, Jaime Sebastián Osorio Urbina
Capítulo 2 – A lógica neoliberal e a desconstrução da democracia, Roberto Bueno
Capítulo 3 – Ontologia e soberania: reflexões sobre Agamben e Negri, Miroslav Milovic (in memoriam)
Capítulo 4 – La economia política de lo público y lo privado em la transición al socialismo em Cuba, Jaime Gabriel García Ruiz
Capítulo 5 – Fórmula e formação: deficiências deialéticas para a revolução brasileira, Clarisse Gurgel; Frederico Duarte Irias
Capítulo 6 – Necesidad y possibilidad de la democracia em América Latina del siglo XXI, Edgardo R. Romero Fernández
Capítulo 7 – Civilização e barbárie: sobre resistência e desobediência na América Latina, Caio Henrique Lopes Ramiro
Capítulo 8 – Democracia racial y formas de blanquitud, Ángel Octavio Álvarez Solis
Capítulo 9 – La guerra contra el terrorismo, Rodrigo Karmy Bolton
Capítulo 10 – El pueblo que deviene em población y la emergencia del movimiento feminista en las democracias actuales, Natalia Paz Morales Cerda
Capítulo 11 – O direito de existir como pessoa no mundo do trabalho: o eterno retorno do direito do trabalho, Alessandro Severino Valler Zenni
Capítulo 12 – Ativismo judicial e Estado de exceção: apontamentos a partir da politização da Lava Jato, Victor de Oliveira Pinto Coelho
Capítulo 13 – Autoritarismo líquido e exceção, Pedro E. A. P. Serrano
Capítulo 14 – Democracia y derecho al voto em el Perú: encuentros y desencuentros, Ada L. D. Paccaya; Dennis J. Almanza Torres
Capítulo 15 – Chile: la democracia desafiada, Claudia Heiss Bendersky
Capítulo 16 – Latinoamericanidade, lugares políticos, reencontro de humanidades, José Geraldo de Sousa Junior
Capítulo 17 – Por entre questionamentos às irregularidades: em busca do diálogo, Erika Ribeiro de Albuququerque
Capítulo 18 – A soberania econômica e o desmonte do Estado no Brasil, Gilberto Barcovici
Capítulo 19 – A produção intensificada da desigualdade social na América Latina pelos capitalistas financeiros rentistas, Joelma Lúcia Vieira Pires
Nota biográfica dos (as) autores (as)
Esse elenco e respectivos temas traduzem, diz o Organizador, “o objetivo declarado de refletir sobre as condições históricas e as consequências do avanço do neofascismo na América Latina e as formas de resistência que incluem os notáveis esforços no Caribe foram convidados especialistas de diversas áreas, do direito à história, da sociologia e à filosofia, da ciência política à economia. Embora com extensão insuficiente para a complexidade do tema proposto o planejamento deste livro contemplou especialistas originários de tradição intelectual e formação acadêmica a qual pertencem ademais dos(as) autores(as) do Brasil, do Chile, Cuba e México. Resta projetada a expectativa de que proximamente seja publicado segundo título com idêntica proposta a esta presente publicação com abordagens teórico-analíticas que contemplem as vicissitudes dos dias e dos tempos, e que, paralelamente, tomem por preocupação a dimensão normativa do ponto de vista filosófico-política, do que é exemplo o capítulo 7 intitulado “Civilização e barbárie: sobre resistência e desobediência na América Latina”, assinado por Caio Henrique Lopes Ramiro.
Os textos incluídos neste livro têm em comum a preocupação com o autoritarismo nas diversas formas que pode assumir historicamente. Ao longo do livro os autores(as) elaboram e analisam conceitos centrais da política nos países periféricos e como a dominação instruída a partir do imperialismo se concretiza na área econômica, sociológica, etc., especialmente em seu movimento de pressão e cooptação realizado na América Latina. Há diálogo interno entre os autores(as) sobre a emersão dos conceitos de ditadura e Estado de exceção, que aparecem horizontalmente em diversos capítulos que compõem o livro”.
O perfil dos processos políticos autoritários ora em curso e seu esforço por solapar os fundamentos da democracia guarda similaridades em diversos países, sugerindo sua elaboração por uma matriz comum. A sua elaboração e aprofundamento encontra expressão concreta nas políticas adotadas pelo decadente império norte-americano para a América Latina e Caribe, mas também por suas estratégias subterrâneas de dominação dos países da região. A preocupação e o ataque a esta tradição e seus referenciais antilibertários são calçados nos princípios de reconhecimento da soberania política popular, e este é um dos pontos da análise do capítulo 9 intitulado “La guerra contra el terrorismo”. Assinado por Rodrigo Karmy Bolton, o texto articula a crítica sobre a política externa imperialista com os seus instrumentos implícitos de controle e domínio global, caracterizados por seu perfil de interesses eminentemente econômico orientado a partir de seu complexo industrial-militar conduzido a concretizar guerras de dominação cuja lógica interna requer incessante acionamento.
Tal como é possível observar no livro, o eixo teórico e analítico em torno do qual oscilam os textos incluídos neste livro é a preocupação, explícita ou implícita, com a alienação de riquezas nacionais em detrimento do favorecimento de potências estrangeiras, a preocupação com a emasculação da soberania, virtualmente alienada em favor dos interesses da grande potência imperial que espraia a sua decisiva influência tanto através de pressões comerciais quanto militares. Estas últimas são hoje expressas por meios distintos do que os de antanho através de golpes militares. Hoje as pressões militares ocorrem por meios distintos, tendo a inteligência e o mundo digital como eixo coordenador do projeto de (re)colonização, alerta que aparece já no Estudo Introdutório deste e intitulado “A recolonização da América Latina: o grande saque imperial”, texto que tem por foco o que o título expressa com clareza, a saber, a pressão expropriatória realizada pelos EUA sobre a América Latina e Caribe, sem prejuízo de outras áreas do globo em que sobressaiam seus interesses econômicos e geopolíticos.
Como se nota no sumário, contribuo com um texto, originado de intervenção que fiz, com o mesmo título, no XXIII Congresso Internacional de Humanidades (janeiro de 2021), realizado sob os auspícios da UnB (Instituto de Letras) e da Faculdade de Historia, Geografía e Letras da UMCE (Universidad Metropolitana de Ciencias de la Educación) do Chile. Minha participação se deu na qualidade de Conferencia Inaugural do Congresso. O tema do Congresso: Poder, Conflito e Construção Cultural nos Espaços Latino-Americanos.
Eu pretendia fazer aqui uma síntese de meu ensaio, mas não resisto a aproveitar lisonjeado, a que o próprio Organizador, dileto amigo, preparou para a edição:
“O livro é encerrado em seu capítulo 16 com texto de José Geraldo de Sousa Junior que evoca a cultura latino-americana que este livro sugere ser a chave para a afirmação da soberania latino-americana por intermédio da constituição de identidade cultural com reflexos políticos imediatos capazes de alavancar a unidade popular afirmada estavelemente sobre a diversidade mas não cristalizadamente. A riqueza da heterogeneidade cultural latino-americana precisa ser afirmada e defendida através de ancoragem em pontos de convergência políticos capazes de reunir o continente e marcar a homogeneização relativamente à política externa. Esta é via eficiente para consolidar a soberania nacional dos países da América Latina através do estreitamento das relações internacionais de bloco de poder continental.
Intitulado “Latinoamericanidade, lugares políticos, reencontro de humanidades”, o texto de Sousa Junior é sugestivo sobre aspectos culturais e políticos, pois à partida sugere a necessidade de “nos constituirmos um espaço comum latino-americano social e político”. Tal forja comunitária pressupõe menos a superação de dificuldades culturais e interesses comuns divergentes do que, em verdade, o empenho político popular e da superação e final derrota dos interesses da elite de cada um dos países da região cooptadas pelo poder imperial.
O sonho do desenvolvimento coletivo da América Latina esbarra no propósito imperial de dar continuidade ao projeto expropriatório que reclama a aplicação de métodos e estratégias para dar azo a drenagem incessante das riquezas da região, evitando destiná-la ao seu próprio povo. Enfrentar esta continuidade da política invasiva imperial pressupõe a formação da comunidade de afetos para a qual alerta Sousa Jr., que desperte para a aspiração comum para horizonte coletivo. Aponta o autor que dispomos de diferenças que nos separam enquanto povos latino-americanos, mas é preciso reconhecer este como um elemento característico da riqueza que potencializa a união da diversidade sob horizonte compartilhado e não da debilidade que fomenta a homogeneidade”.
Um registro final que insisto em fazer é sobre a participação de Miroslav Milovic na edição. Conforme Roberto Bueno, o Organizador, esclarece em nota, o “livro já se encontrava em avançada fase de produção quando ocorreu o falecimento do grande colega e excepcional intelectual Miroslav Milovic (1955, Iugoslávia), por motivos decorrentes da Covid-19, no dia 11 de fevereiro de 2021. Miroslav concluiu seu doutoramento em Filosofia na Universidade de Frankfurt em 1987, e um segundo doutoramento em Estado na Universidade Sorbonne, Paris IV, já no ano de 1990. Foi professor de Filosofia em seu país natal e também na Turquia, Espanha e Japão. Entre nós desempenhou funções docentes na Universidade de Brasília (UnB), inicialmente na Faculdade de Filosofia e, posteriormente, como professor Titular da Faculdade de Direito, ministrando aulas na graduação e pós-graduação”.
A referência é, pois, in memoriam. Mas não só, como está na Apresentação, aludindo a essa contribuição, “Milovic chama atenção para a leitura schmittiana de Agamben assim como para os ataques contra a cultura das democracias liberal-parlamentares e o conjunto de sua estrutura normativa, sendo notável a relativização de seu poder de controle sobre os fatos, a respeito do que Milovic é claro ao ancorado em Schmitt destacar que não é o caos não pode ser contido com normas, nem são elas exatamente que o introduzem, senão que está na esfera política e, segundo a gramática schmittiana, na decisão soberana, cujas fronteiras de ação são maleáveis, ora atuando sob a lei, ora sobre ela, não sendo raro que a exceção seja tornada a regra, confirmando assim a relevância da continuada análise sobre as formas de autoritarismo que os diferentes capítulos deste livro, de uma ou outra forma, se preocupam em desenvolver”.
Aproveito para me juntar ao preito saudoso do grande intelectual e colega. A seu respeito, logo do impacto de seu sacrifício na ara de um desgoverno necropolítico, que deixa algo de podre aqui (Hamlet, ato I, cena IV), não posso deixar de dar atenção ao risco de despolitização a que adverte Miroslav. Projetando essa ordem de preocupação, anoto o que diz em obra recente, o livro Política e Metafísica, de 2017, tecendo críticas aos processos de globalização, o quanto eles se desenvolvem como “forma de colonização do mundo”, até para advertir as opções que se colocam para o Brasil, nesse processo, afirmando que “o futuro do Brasil não é seguir os caminhos estabelecidos e metafísicos da globalização. Isso seria muito estranho”, pois, “um país tão grande ficar como uma pequena nota de rodapé na história“.
Claro que em seu pensamento filosófico, muito mais instigado por uma percepção sistêmica, racional ao impulso espiral dos grandes processos, hegelianamente falando, Miro se propunha pensar o Brasil num movimento dialético inscrito na historicidade. Não podia sequer imaginar que se pusesse intencionalmente numa vocação redutora para descer ao nível de rodapé, tangido pelo banal malicioso convertido em ação política. Quem poderia imaginar esse regresso? Esse suicídio histórico? Essa politização despolitizadora do social?
Penso que na obra que Roberto Bueno gestou e que agora vem a lume, há uma advertência próxima a que faz Miroslav. Mencionei isso em texto de homenagem (https://www.ihu.unisinos.br/sobre-o-ihu/78-noticias/606856-miro-compromisso-com-a-filosofia-politica-e-o-mundo). Ao ferir a questão da despolitização da modernidade como um sintoma de tipo de fenômeno profundo de nosso tempo, Miro apontava para o que considerava um fenômeno característico de nosso tempo, a despolitização, indicando a exigência de reinvenção da política como perspectiva de articulação das novas subjetividades.
Com ele é também sobre essa condição dramática que devemos estar mobilizados não só para discernir, mas para agir. Lembra Miroslav, em aguda entrevista que concedeu ao sítio IHU Unisinos, para a EDIÇÃO 438 | 24 MARÇO 2014, na inteligente instigação de Márcia Junges e Ricardo Machado, afinal resumidas no título que indexa seus comentários: “Contemplar para compreender, entender a si mesmo para fazer o bem”, pois, para Miro, “agir no mundo requer, antes de tudo, saber o que é o mundo, o que é a própria natureza, para nos entendermos”. Por isso ele diz: “Tantos crimes, mas quase sem culpados. O indivíduo que não pensa e se torna cúmplice dos crimes: essa é a banalidade do mal diagnosticada por Hannah Arendt como a consequência dessa tradição filosófica que quase mumificou a estrutura do ser e nos marginalizou”.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
Direitos Humanos & Covid-19, vol. 2. Respostas Sociais à Pandemia
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
Direitos Humanos & Covid-19, vol. 2. Respostas Sociais à Pandemia. José Geraldo de Sousa Junior, Talita Tatiana Dias Rampin, Alberto Carvalho Amaral (orgs.). Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2022, 918 p.
Já publicado, com lançamento marcado para o dia 28 de abril, em evento presencial com protocolo sanitário, a D’Plácido ilustra seu catálogo com esta obra seminal. Aliás, formando um conjunto, em dois volumes, ambos com Prefácio de Boaventura de Sousa Santos, abrindo uma perspectiva singular de abordagem crítica da pandemia, a partir do contexto dos vulnerabilizados (vol. 1) e com o protagonismo social em face da pandemia, respostas de nós por nós (vol. 2), quando o governamental colapsa ou assume disposição negacionista, anti-povo, contra a vida, associada aos negócios em subordinação ao econômico e ao mercado.
Lançado no ano passado, o volume 1 vem cumprindo uma boa fortuna, emprestando seu conteúdo para programas acadêmicos na área de direito à saúde, direito sanitário e bioética. O seu lançamento, no crescendo da pandemia, foi virtual, em formato de seminário ou roda de conversa. Sobre esse volume conferir aqui neste espaço – Lido para Você – a resenha: http://estadodedireito.com.br/direitos-humanos-e-covid-19/ e no Blog de O Direito Achado na Rua (www.odireitoachadonarua.blogspot.com). Assim como na rica e expressiva apresentação que pode ser conferida na live de lançamento: https://www.youtube.com/watch?v=0j6-JRRBVFU. Ver também entrevista sobre a obra no Programa UnBTV Entrevista Em Casa: (https://www.youtube.com/watch?v=RH3KmMvauS4).
Os eixos que organizam a obra e que servem de fio condutor são deduzidos do chamamento proposto no Prefácio a cargo de Boaventura de Sousa Santos e da Apresentação que fizemos os Organizadores, tal como enunciado no Sumário do Livro, com a designação ao lado, das autoras e dos autores:
Da participação à pertença, ideias emprestadas a título de prefácio ao livro Direitos Humanos & Covid-19: respostas sociais à pandemia, BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS.
Direitos Humanos e Covid-19: resposta sociais à pandemia, JOSÉ GERALDO DE SOUSA JUNIOR, ALBERTO CARVALHO AMARAL e TALITA TATIANA DIAS RAMPIN
PARTE 1 – Quando o Estatal colapsa é o social organizado que institui direitos: nós por nós
A história contada da pandemia em Paraisópolis: um registro da experiência da UDMC, ANA DO CARMO CARDOSO COSTA, ETEVALDO ALVES DA SILVA, JOSÉ MANOEL DA SILVA, JOSÉ MARIA LACERDA OLIVEIRA, LOURIVAL ZACARIAS ALVES, MARIA BETÂNIA FERREIRA MENDONÇA e WILLIAM BASTOS DE OLIVEIRA
Direitos Humanos e pandemia: solidariedade ativa, EUZAMARA DE CARVALHO e MARÍLIA LOMANTO VELOSO
Pandemia do coronavírus e organização social: respostas exitosas das comunidades periféricas, ANA PAULA DALTOÉ INGLÊZ BARBALHO.
Migrar para sobreviver ou sobreviver para migrar: o deslocamento de venezuelanos no Brasil em tempos de pandemia, MERILANE PIRES COELHO
Conviver para viver: formação e atuação das Mulheres Coralinas no enfrentamento aos efeitos perversos da pandemia do coronavírus, ADRIANA ANDRADE MIRANDA, EBE MARIA DE LIMA SIQUEIRA e NAIR HELOISA BICALHO DE SOUSA
PARTE 2 – Quando a universidade é pública, a pesquisa e a educação não se submetem ao mercado, não se mercadorizam
Solidariedade, Direitos Humanos e extensão popular em tempos de pandemia, ADDA LUISA DE MELO SOUSA, KELLE CRISTINA PEREIRA DA SILVA, MARCOS VÍTOR EVANGELISTA PRÓBIO, MARIA ANTÔNIA MELO BERALDO, MOEMA OLIVEIRA RODRIGUES e RAYSSA CAVALCANTE MATOS
Projeto vez e voz: a extensão universitária popular trabalhando a prevenção ao tráfico de pessoas na pandemia da Covid-19, HELENA PEIXINHO CAMPOS, LAERZI INÊS DE SOUZA CHAUL, LUDMILLA NAIVA CERQUEIRA, ROSA MARIA SILVA DOS SANTOS, SABRINA BEATRIZ RIBEIRO PEREIRA DA SILVA e YASMIM FERREIRA DE SOUSA
Promotoras Legais Populares: relato de experiência, CARLA ADRIANA OLIVEIRA SILVA , CAROLINA FREIRE NASCIMENTO, CLÉIA PEREIRA DE SOUSA FERREIRA, ERIKA SILVA FIGUEREDO , JANAÍNA DA SILVA RODRIGUES, LAERZI INÊS DE SOUZA CHAUL, LUDMILLA AMARAL PONTES, MARIA LAURA ROMERO, NARA MENEZES SANTOS, ROSA MARIA SILVA DOS SANTOS, SHEILA DE SOUSA OLIVEIRA, SONIA MARIA HAUTSCH REINEHR e TALITA TATIANA DIAS RAMPIN
O compromisso social das universidades públicas na construção de estratégias de enfrentamento à Covid-19, OLGAMIR AMANCIA FERREIRA
“Existirmos, a que será que se destina?”: notas reflexivas sobre Direitos Humanos em tempos de Bolsonarismo, GILMARA JOANE MACÊDO DE MEDEIROS
PARTE 3 – Quando o mundo do trabalho confronta o capital e defende a vida
O sindicato cidadão: a campanha “petroleiro solidário” como instrumento de conscientização e consciência de classe
Circuitos do capital, desigualdade, fome e doenças: agronegócio e pandemia desde o capitalismo dependente periférico brasileiro, HELGA MARIA MARTINS PAULA, LARISSA CARVALHO OLIVEIRA, KAROLINA DADU NUNES, CLAUDIA CRISTINA NASCIMENTO, JULYANA MACEDO REGO e LAÍSA MIRANDA SANTOS
A mulher no mercado de trabalho e os entraves impostos pela pandemia, MARINA JUNQUEIRA DE FREITAS, RENATA SILVEIRA VEIGA CABRAL
Trabalho teleguiado por meios eletrônicos: quando o novo é a repetição do velho modo da expropriação do trabalho vivo pelo capital e não desnatura a relação de emprego, GRIJALBO FERNANDES COUTINHO e CATHERINE FONSECA COUTINHO
Pandemia da Covid-19 e profissionais da saúde no Brasil: desafios e violações de direitos vivenciados por trabalhadoras/es da linha de frente, LUCIANA LOMBAS BELMONTE AMARAL
Negociar para sair da crise: resistência do movimento sindical e sua redescoberta como ator necessário para o enfrentamento das consequências da pandemia para o trabalho JOSÉ EYMARD LOGUERCIO, FERNANDA CALDAS GIORGI e ANTONIO FERNANDO MEGALE LOPES
Denúncias de trabalho escravo – Direitos e resistências das trabalhadoras domésticas na pandemia, ENEIDA VINHAES BELLO DULTRA, MYLLENA CALASANS DE MATOS e ADRIANA ANDRADE MIRANDA
As Centrais Sindicais no enfretamento da crise sanitária do novo coronavírus, CLEMENTE GANZ LÚCIO
PARTE 4 – Quando a crise sanitária constata os limites do sistema de justiça e problematiza a justiça a que quer acesso
Do vírus à jurisdição: notas sobre a pandemia e a relação ‘justiça e direitos humanos’ a partir das ADPFs 709 e 742 no STF, ROBERTA AMANAJÁS MONTEIRO e ANTONIO ESCRIVÃO FILHO
Justiça comunitária e o acesso à justiça na pandemia, LARISSA ESTEVAN RODRIGUES DA SILVA
Disputa de narrativas e hermenêutica constitucional: ADPF 822 e a declaração do “estado de coisas inconstitucional” na gestão da saúde pública na pandemia, JOSÉ EYMARD LOGUERCIO, MAURO DE AZEVEDO MENEZES e RICARDO QUINTAS CARNEIRO
Direitos emergentes: violações a preceitos fundamentais dos Povos Quilombolas e luta pela imunização da população quilombola em contexto de pandemia, VERCILENE FRANCISCO DIAS
O protagonismo indígena na defesa da vida: a pandemia da Covid-19 em São Gabriel da Cachoeira, RENATA CAROLINA CORRÊA VIEIRA e MARIVELTON BARROSO BARÉ
PARTE 5 – Quando a resposta social à pandemia pede um novo paradigma para a institucionalidade e a governança
Cidadania, políticas sociais e a pandemia de Covid-19 no Brasil: um olhar popular latino-americano, PAMELA MOTA CONTE CAMPELLO e GLADSTONE LEONEL JÚNIOR
“Toda prisão é crueldade, tem corpo e cara da tristeza”: medidas de enfrentamento à Covid-19 e o sistema manicomial carcerário da Paraíba, LUDMILA CERQUEIRA CORREIA e OLÍVIA MARIA DE ALMEIDA
Resistência e a afirmação de direitos humanos no enfrentamento à sindemia COVID-19, o caso do Consórcio Nordeste no Brasil, ARIADNE MURICY BARRETO, EVA MARIA DAL CHIAVON e PAULA RAVANELLI LOSADA
Direitos Humanos e Covid-19: a Fiocruz e as respostas à pandemia, SWEDENBERGER DO NASCIMENTO BARBOSA, MARIA FABIANA DAMASIO PASSOS e LEANDRO PINHEIRO SAFATLE
China, Cuba e Pandemia: o socialismo no enfrentamento à Covid-19, DANIEL ARAÚJO VALENÇA, THIAGO MATIAS DE SOUSA ARAÚJO e GUSTAVO FREIRE BARBOSA
A Defesa da moradia na pandemia: uma análise sobre a aprovação do projeto de lei que suspende despejos durante a crise sanitária da Covid-19, NATÁLIA BONAVIDES e LORENA CORDEIRO.
De certo modo, o segundo volume dá continuidade aos enunciados propostos no primeiro volume. O texto dos Organizadores que abre o primeiro volume (os mesmos Organizadores editam o segundo volume): estabelece a filiação da obra: “ O texto dos organizadores, que abre o livro, está assim resumido: “a partir dos pressupostos teóricos de O Direito Achado na Rua e visualizando as mudanças drásticas de rotinas, vidas e relacionamentos, o texto procura situar o acesso à justiça em tempos de pandemia do Covid-19, problematizando uma situação de isolamento que é marcada pelas dessemelhanças estruturais, que fragiliza ainda mais os grupos socialmente. Compreender o acesso à justiça exige, com ainda maior força, visualizar para além da letra positivada e visualizar o não-dito, mas socialmente inegável, na busca de minorar a exclusão de direitos dos excluídos. E ainda que se tenha, em tempos de pandemia, a rua sensivelmente esvaziada, já que são preenchidas, com todos os riscos e adversidades inerentes, pelos necessitados, precarizados, obrigados a se expor para garantir uma condição mínima para si e sua família, ao lado dos impertinentes negativistas, negadores e afrontadores, que amealharam uma discussão política mais profunda em um triste episódio de desrespeito à razoabilidade, sem qualquer empatia para os demais e, pior, sem qualquer estima por sua própria situação e das pessoas próximas a si. Mas se a rua é esvaziada, de outro lado, esta rua indiscutivelmente irá adentrar nos lares e os locais, antes públicos, são publicizados por formas diversas, que acabam por ressignificar e reposicionar questões históricas e sentidos novos” (http://estadodedireito.com.br/direitos-humanos-e-covid-19/).
Na divulgação, a Editora pôs em relevo na sua página web um recorte do Prefácio de Boaventura de Sousa Santos que é como uma senha para a sua compreensão: “Uma lição que a história pode nos ensinar se estivermos dispostos a aprender, nessa quadra em que a pandemia parece acentuar a deriva da participação da pertença, sobretudo no colapso que os governos autoritários e antipovo revelam, é a que encontramos nas respostas sociais, autogestionadas, comunitárias que os movimentos e organizações sociais estão a oferecer. Neste livro há uma boa mostra dessas respostas, que representam um alento para conter a deriva, extremamente dramática, na realidade brasileira”.
Para nós os Organizadores, o fracasso na gestão da pandemia, por incompetência e por malícia, põe em risco a saúde do povo e a própria democracia. O livro busca responder a questões que nos fazemos, a partir de uma indagação básica: “Estaremos, então, dados à destruição, assim como nossa democracia? Acreditamos que não”.
Para nós, a pandemia reforçou o nosso entendimento de que é necessário transformar a realidade a partir da revisão da forma como realizamos nossa reprodução social. Construir outro modelo de sociedade é tarefa imperativa, inclusive, enquanto espécie. E essa transformação, a nosso ver, vem sendo historicamente pautada por sujeitos coletivos de direitos, que formulam e vivenciam outras formas de construção do real, tendo em seu horizonte a preservação da vida.
O primeiro cenário, que inaugura a obra, destaca um importante ator no vetor histórico de transformação social: o sujeito coletivo de direitos.
O Direito Achado na Rua tem como uma de suas categorias centrais o sujeito coletivo de direitos, que contribui para o desenvolvimento da abordagem dialética humanista do direito formulada por Roberto Lyra Filho e pela Nova Escola Jurídica Brasileira (NAIR), na década de 1980.
Refletimos, no primeiro volume de “Direitos humanos e Covid-19: grupos sociais vulnerabilizados e o contexto da pandemia”, que a metáfora “é um convite à ampliação da reflexão sobre os espaços de reprodução do direito a partir da consideração da reprodução social”, e por isso é “direito construído em movimento, ‘em casa e na rua’, ‘na encruza’, ‘no campo’, ‘no cárcere’, ‘na rede’, ‘no rio’, ‘no lixo, nos becos, nas aldeias, nas matas’” . Trata-se de uma provocação à identificação das zonas em que as ambiguidades, as contradições e as vindicações sociais são mobilizadas em torno da formação de sociabilidades reinventadas que permitem abrir a consciência de novos sujeitos para uma cultura de cidadania e de participação democrática .
Assim, como o social se expressa, atua e é constituído é o que a obra oferece. Por isso que na obra buscamos reunir relatos e análises de algumas dessas respostas sociais, que acabaram sendo formuladas pela sociedade civil e pelos sujeitos coletivos de direito, categoria central para O Direito Achado na Rua, diante cinco cenários que impulsionaram a organização interna da publicação: Quando o Estatal colapsa é o social organizado que institui direitos: nós por nós (parte 1); Quando a universidade é pública, a pesquisa e a educação não se submetem ao mercado, não se mercadorizam (parte 2); Quando o mundo do trabalho confronta o capital e defende a vida (parte 3); Quando a crise sanitária constata os limites do sistema de justiça e problematiza a justiça a que quer acessar (parte 4); Quando a resposta social à pandemia pede um novo paradigma para a institucionalidade e a governança (parte 5).
Nossa expectativa é a de que, com a difusão dessa obra, possamos, Editora, autoras e autores contribuir para o aprofundamento da própria experiência democrática, destacando iniciativas e reações de resistência e luta social com potencial emancipador, não obstante nosso momento histórico ainda seja marcado por um sistema econômico e governo federal alinhados não com a vida, mas com a morte. Certamente, o livro contém potencialidade para diálogos que serão necessários – e ainda o são -, quando o futuro voltar seus olhos para o passado e para esse momento da história brasileira, que no âmbito da crise sanitária, retirou as cortinas do descaso, da incompetência, da falta de humanidade de diversos setores diante daqueles por eles próprios vulnerabilizados.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
Lawfare e América Latina: a guerra jurídica no contexto da guerra híbrida
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Dicionário de Direitos Humanos. José Luiz Quadros de Magalhães; Lucas de Alvarenga Gontijo; Bárbara Amelize Costa; Mariana Ferreira Bicalho (Orgs.). Editora Fi de Acesso Aberto (https://www.editorafi.org/). 572 p. (LINK DO LIVRO: https://www.editorafi.org/323dicionario).
Antes de mergulhar no exame da obra, um registro com sabor de novidade editorial. Conforme Lucas Fontella Margoni, proprietário, editor e fundador da Editora Fi!, a proposta dessa nova Editora é se constituir “um modelo e referência em edição, publicação e distribuição de livros sob Acesso Aberto, focada em produções acadêmicas/científicas de relevância. Um novo e importante conceito de divulgação e disponibilização de pesquisa e conhecimento! Publicamos exclusivamente monografias, dissertações e teses, destacadas por excelência, assim como projetos e coletâneas de artigos, vinculadas às instituições de ensino superior mais tradicionais e inovadoras. Tenho muito orgulho em ver hoje nomes reconhecidos e de referência fazendo parte do catálogo, apoiando uma proposta voltada à Ciência Aberta. Como os livros não são vendidos, todos se enquadram perfeitamente sob a política de regulação da Creative Commons, o que possibilita melhor aproveitamento de conteúdo de mídia, artístico de terceiros. O trabalho original aprovado tradicionalmente por bancas ou comitês, que segue uma normalização técnica obrigatória (ex.: ABNT), é adaptado para nosso layout/design, elaborando uma capa à altura da qualidade do escrito, sempre aberto a sugestões e inspirações ;)”.
Portanto, no link da Editora o conteúdo pode ser baixado gratuitamente. Para aferir a qualidade, fiz a encomenda da edição impressa. Até para manuseio à moda antiga, (“extendendo memória e imaginação”, cf. BORGES, Jorge Luis. O Livro. São Paulo: Edusp, 2008, p. 10), tendo-o ali à mão, enquanto circulo entre as estantes para, “sempre, mais relê, do que lê” (BORGES, idem p. 33).
Apresentando a obra os organizadores, entre eles o querido amigo José Luiz Quadros de Magalhães, para marcar a intenção da Obra, pontuam:
O filósofo italiano Franco Berardi, no seu livro lançado também no Brasil “Depois do Amanhã”, oferece-nos uma belíssima reflexão sobre a linguagem. Ele comenta sobre o momento quando os seres humanos começaram a desenvolver um idioma, criando sons, palavras, que eram atribuídas a referências de objetos, animais, sentimentos, eventos, gradualmente criando uma gramática e um sentido de tempo próprio de cada cultura. É sempre importante lembrar que não há uma única relação com o tempo, e que o tempo linear é uma visão universalizada pela violência a partir do início da construção do primeiro sistema mundo, colonial moderno. Entre os milhares idiomas sobreviventes entre outros milhares extintos pela violenta uniformização imposta pelos impérios coloniais europeus, encontramos muitos que não tratam o tempo de forma linear. Existem idiomas em um presente contínuo, em um viver em permanente mutação, como por exemplo muitos povos da floresta. Não há passado, não há futuro e nem um presente congelado, como pretendem os modernos, mas uma vida em permanente mutação, que acompanha o ritmo permanente de mudança das terras férteis e da floresta tropical. Trata-se de uma visão de um mundo em um presente contínuo, em permanente mudança, não congelado, de outras regiões e de outras culturas. O olhar sobre o mundo surge da vida integrada a ambientes naturais. Um futuro de ambientes artificiais vai se afirmando como um futuro monolítico, monocromático, sem vida, onde as mudanças são apenas tecnológicas. Um mundo ideal para o poder centralizado, hierarquizado e opressor. Poder que se pretende permanente, congelado. Este dicionário tem uma intenção: entender algumas dessas novas palavras, ajudar a combater o vazio de sentido do empobrecimento da linguagem e lutar pela possibilidade de volta da comunicação. Só há comunicação efetiva se a palavra é envolvida pelo sentimento, sensibilidade, afeto, olhar, gesto e sons. As palavras viajam no tempo, são aprisionadas pelo poder e libertadas pelo povo, em um combate pela diversidade. O mundo contemporâneo não mais se encaixa nas palavras e conceitos modernos. Sempre converso com meus alunos sobre a tentativa de encaixar o mundo e sua radical transformação nas palavras e conceitos modernos.
Um notável esforço, empreendido por um pugilato autoral reunido pelos Organizadores, todos e todas versáteis no tema, que logram articular enunciados (verbetes extendidos), no sentido de emancipar a língua da armadilha de sentido que Roland Barthes denuncia como seu caráter fascista (Aula, São Paulo: Cultrix, s/d – original das Éditions du Seuil, 1978, p. 14: “a língua, como desempenho de toda linguagem, não é nem reacionária, nem progressista; ela é simplesmente: fascista; pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer”); e ao mesmo tempo, contribuir para que se projetem em sua viagem (conforme também CANOTILHO, J.J. Gomes. Novos ‘paradigmas’, novos ‘saberes’, novos ‘direitos’, as ‘palavras viajantes’. OAB Anais da XIII Conferência Nacional. Belo Horizonte: Conselho Federal da OAB, 1990: “Em crise estão muito dos ‘vocábulos designantes’ – ‘Constituição’, ‘Estado’, ‘Lei’, ‘Democracia’, ‘Direitos Humanos’… que acompanharam, desde o início, a viagem do constitucionalismo…palavras viajantes”, p. 105-106).
A Obra, incluindo a Apresentação e o Prefácio, contêm 78 verbetes: Abuso de Autoridade (Jamilla Monteiro Sarkis), Accountability Social (Mateus Vaz e Greco), Adolescentes em Cumprimento de Medidas Socioeducativas (Isabela Gonçalves Almeida e Guilherme Scodeler de Souza Barreiro), Autoritarismo (Lilia Schwarcz), Comissão da Verdade (Fernanda Nalon Sanglard),Comissão Interamericana de Direitos Humanos (Samella de Pinho e Santos e Gabriel de Souza Salema), Comunidades Quilombolas (Márcia Cristina Gama Zanon, Arthur Carvalho Pereira e Matheus de Mendonça Gonçalves Leite), Contratações Públicas Sustentáveis (Daniel Lin Santos), Crianças, Adolescentes e seu Estatuto. Lei n. 8.069/90 (Gabriella Véo Lopes da Silva), Crimes Contra a Humanidade (Ana Carolina de Rezende Oliveira), Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão: Uma Breve Revisitação Crítica (Débora Caetano Dahas), Defensoras e Defensores de Direitos Humanos (Gladstone Leonel Júnior, Antonio Escrivão Filho e Patrick Mariano Gomes), Defensoria Pública (Rômulo Luiz Veloso de Carvalho), Democracia (Lucas de Alvarenga Gontijo e Mariana Ferreira Bicalho), Desastres e Direitos Humanos (Fernanda Dalla Libera Damacena), Desenvolvimento Sustentável (Raíssa Dias de Freitas), Desinformação (Gregório de Almeida Fonseca), Devido Processo Legal e Devido Processo Constitucional (Igor Alves Noberto Soares), Dignidade Humana (Nelson Camatta Moreira), Direito à Alimentação (João Pedro Stédile), Direito à Diferença (José Luiz Quadros de Magalhães), Direito à Diversidade (José Luiz Quadros de Magalhães), Direito ao Meio Ambiente Ecologicamente Equilibrado (Raíssa Dias de Freitas), Direitos de Acesso à Informação e à Comunicação (Rene Morais), Direitos Humanos no Brasil (Robson Sávio Reis Souza), Direitos Políticos (Carolina Lobo e Mariane dos Santos Almeida Costa), Ditadura e Direitos Humanos (Igor Alves Noberto Soares), Educação em Direitos Humanos (Guilherme Scodeler de Souza Barreiro e Raíssa Nayady Vasconcelos Santos), Estado Democrático de Direito (Jordânia Cláudia Gonçalves Torquette), Execução Penal (Flávia Ávila Penido), Familiar de Pessoa em Privação de Liberdade (Monique Pena Kelles e Samuel Rivetti Rocha Balloute), Feminismo e Gênero (Mariana Cardoso Magalhães), Garantias Constitucionais Processuais (Jordânia Cláudia Gonçalves Torquette), Igualdade (Wânia Guimarães Rabello de Almeida), Igualdade das Mulheres na Política e Sub-Representação Feminina (Larissa de Moura Guerra Almeida), Indígenas e Igualdade Eleitoral (Keila Francis de Jesus da Conceição), LGBTQIA+ (Mateus Vaz e Greco), Liberdade (Francisco Celso Calmon), Liberdade de Associação (Bárbara Nascimento), Literatura, Direitos (Humanos) e Democracia (Débora Caetano Dahas), Memória e Verdade (Fernanda Sanglard), Mínimo Existencial Ecológico (Flávia Alvim de Carvalho), Movimentos Feministas no Brasil: Noções Introdutórias (Bruna Camilo de Souza Lima e Silva), Nacionalidade (Nankupé Tupinambá Fulkaxó), Necropolítica (Mariana Lara Corgozinho), Paridade de Gênero (Gisleule Maria Menezes Souto e Luana Mathias Souto), Pena (Monique Pena Kelles), Pessoa com Deficiência (Ligia Veloso), Pessoa de Ocupação (Bárbara Nascimento), Pessoa em Privação de Liberdade (Monique Pena Kelles), Pessoas com Crença Religiosa e/ou Espiritual (Alanys Valença Martins e Guilherme Scodeler de Souza Barreiro), Pessoa em Situação de Rua (Mariana de Souza Godinho e Wânia Guimarães Rabello de Almeida), Poder Executivo, Poder Judiciário e Poder Legislativo (Igor Alves Noberto Soares), Políticas Afirmativas (Pâmela Guimarães-Silva), Políticas Públicas de Direitos Humanos (Bárbara Amelize Costa), População em Situação de Rua (Ana Célia Passos Pereira Campos e Igor de Souza Rodrigues), Populações Atingidas por Desastres (Anna Carolina Murata Galeb, Guilherme Cavicchioli Uchimura, João Marcos Rodrigues Dutra, Leandro Gaspar Scalabrim, Sara Brígido Oliveira e Tchenna Fernandes Maso), Pós-Verdade (Rafael Geraldo Magalhães Vezzosi), Povos e Comunidades Tradicionais (Graziele Aparecida de Jesus, Inara Brenda Luisa de Oliveira e Matheus de Mendonça Gonçalves Leite), Racismo (Gil Ricardo Caldeira Hermenegildo e Laura Alves de Oliveira), Reconhecimento, Resistência e Direitos Humanos da População LGBTQIA+ (Débora Caetano Dahas e Maria Eduarda Parizan Checa), Refugiados, Migrantes, Apátridas e Deslocados Internos (Mayra Thais Andrade Ribeiro), Representatividade LGBT na Política (Ana Clara Serrano Mendes e Guilherme Scodeler de Souza Barreiro), Revisão Periódica Universal do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (Luana Mathias Souto), Saúde (Luciana de Melo Nunes Lopes), Seguridade Social (Juliana Sequeira Borges Costa e Guilherme Scodeler de Souza Barreiro), Sistema Prisional (Flávia Ávila Penido), Soberania (Lucas de Alvarenga Gontijo e Mariana Ferreira Bicalho), SUS (Luciana de Melo Nunes Lopes), Testemunho (Fransuelen Silva), Trabalhadora e Trabalhador Sexual (Bárbara Natália Lages Lobo), Trabalho e Direitos Humanos (Cléber Lúcio de Almeida), Trabalho Escravo ou Análogo (Maíra Dias de Freitas), Tribunal Penal Internacional (TPI) (Gabriel de Souza Salema e Sanmella de Pinho e Santo), Tributos e Desigualdades (Marciano Seabra de Godoi), Verdade (Rafael Geraldo Magalhães Vezzosi), Violência (Paulo Henrique Borges da Rocha e Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia), Violência Política e Gênero (Jô Moraes).
São autoras e autores com diferentes graus de inserção no sistema acadêmico e militante de proteção e promoção de direitos e de direitos humanos. Aqui, foram reunidos pelo Grupo de Estudos e Extensão Redes de Direitos Humanos do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC-Minas.
O Redes, diz Mariana Bicalho na Apresentação, “é voltado paraa efetivação dos Direitos Humanos em Minas Gerais (embora, na Obra, haja pesquisadoras e pesquisadores de todo o Brasil, com diferentes percursos) e para construção de conhecimentos e ações com e para a rede de entidades governamentais e não-governamentais que atuam na proteção e promoção de direitos.
Distingo, entre tantos, companheiros do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, forte também em objetivos próximos: Antonio Sérgio Escrivão Filho, Gladstone Leonel Silva Junior e Patrick Mariano Gomes. O faço pela confiança político-epistemológica. E pela parceria estreita. Escrivão, meu colega na Congregação Docente da Faculdade de Direito da UnB é coautor, comigo, de Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos (Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016, cf, aqui, em Lido para Você: http://estadodedireito.com.br/para-um-debate-teorico-conceitual-e-politico-sobre-os-direitos-humanos/. Com Gladstone, professor na UFF, tenho investido, em aproximações co-autorais, na tese de um Constitucionalismo Achado na Rua, conforme La Lucha por La constituyente y reforma Del sistema político en Brasil: caminos hacia un ‘constitucionalismo desde La calle’ La Migraña, n. 17/2016 e a publicação na Revista Direito e Práxis, vol. 8, n. 2 (2017): “A luta pela constituinte e a reforma política no Brasil: caminhos para um ‘constitucionalismo achado na rua’”, seguindo o percurso original desse brilhante pesquisador. Ver a propósito: http://estadodedireito.com.br/novo-constitucionalismo-latino-americano-um-estudo-sobre-bolivia/, sobre o seu livro Novo Constitucionalismo Latino-Americano: um estudo sobre a Bolívia, 2a. Edição. SILVA JUNIOR, Gladstone Leonel. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2018.
Com Patrick nossa parceria é a de trincheira, no campo da advocacia pro bono, de interesse público. Junto com colegas advogados e parlamentares do campo progressista, subscrevemos representações no Ministério Público Federal e no Conselho de Ética Pública contra ministros de estado e seu chefe na governança atual, por afronta à Constituição e por desvio de poder ou de finalidade notadamente em suas investidas desdedemocratizantes e desconstituintes tendo como foco a universidade pública, sua autonomia e a liberdade de ensino.
Com respaldo em excelente bibliografia, mas principalmente na combinação de elementos teórico-políticos que se adensam no percurso dos autores, o verbete por eles publicado, começa por caracterizar os sujeitos da sua enunciação: “Os Defensores e as Defensoras de Direitos Humanos são aquelas pessoas ou coletivos que pautam as suas trajetórias pela luta por direitos para além de si mesmo, apontam um horizonte de respeito ao outro e de transformação das mazelas da vida social. Para isso é fundamental que seus direitos sejam garantidos dentro do contexto das lutas que encampam”.
Ao longo do texto, sem perder de vista a existência de “diversas normas internacionais e nacionais que garantem a proteção de Defensor/a de Direitos Humanos (DDHs) e determinam ao Estado a responsabilidade de assegurar os seus direitos e proteger as ações empreendidas”, os Autores organizam a sua exposição de modo a: 1) Propor uma caracterização do termo; 2) Estabelecer a contextualização internacional do tema; 3) Esboçar a articulação nacional que sobre o tema se formula; 4) Traçar o cenário atual e casos emblemáticos
Nesse último tópico os Autores explicam que “desde 2017, a agenda de direitos humanos no Brasil sofre com o desmantelamento de políticas públicas, diversos conflitos territoriais, crescente militarização no campo político-social, desinformação e violência de todos os tipos. Questões que impactam diretamente a atuação dos defensores e defensoras de direitos humanos, os/as quais vivenciam uma realidade de incertezas, por vezes, ameaças, quando não assassinados.
Segundo a organização Global Witnes (2020), no ano de 2019 foram assassinados 24 defensores do meio ambiente no Brasil, sendo 10 indígenas, o que colocou o Brasil no ranking de 4º país mais violento do mundo para Defensores/as de Direitos Humanos.
No Brasil, cabe salientar, é característica a falta de proteção do Estado às lideranças ameaçadas, mesmo havendo programas públicos voltados para a proteção de defensores/as, dada a sua ineficácia por falta de interesse político, recursos pessoal capacitado.
Em 2018, o assassinato da vereadora carioca Marielle Franco e do seu motorista Anderson Gomes é um caso emblemático da falta de proteção daqueles que além de lutarem, representam o povo. Passados alguns anos, se mantém a incógnita em relação aos mandantes e as razões do assassinato de Marielle, o que acaba por representar de modo emblemático a característica marcante dos casos de violência e assassinato de defensoras e defensores de direitos humanos no Brasil: impunidade.
Um dos casos mais recentes foi o assassinato de Fernando dos Santos Araújo em janeiro de 2021. Ele era sobrevivente e testemunha central de um dos massacres mais violentos dos últimos anos, o massacre de Pau D´Arco, em 2017, no Pará, que tinha como suspeitos policiais militares. Nessa ocasião, dez trabalhadores rurais foram assassinados durante uma ocupação de terra. Fernando recebia ameaças de morte e foi executado dentro da própria casa”.
O pano de fundo de todas essas questões, postas em evidência em suas relevâncias no conjunto da Obra e dos verbetes que a compõem, pressupõem um viés crítico para seu mais pertinente enquadramento. Tenho tido essa preocupação ao exame de abordagens nesse sentido, podendo ser conferidos aqui neste espaço (Lido para Você), de alguns desses aspectos. Assim, em http://estadodedireito.com.br/diccionario-critico-de-los-derechos-humanos/, a propósito de SORIANO DÍAZ, Ramón; ALARCÓN CABRERA, Carlos; MORA MOLINA, Juan (Directores). Diccionario Crítico de los Derechos Humanos. Huelva (España): Universidad Internacional de Andalucia, Sede Iberoamericana, 2000; ou em http://estadodedireito.com.br/enciclopedia-latino-americana-dos-direitos-humanos/, sobre a Enciclopédia Latino-Americana dos Direitos Humanos. Antonio Sidekum, Antonio Carlos Wolkmer e Samuel Manica Radaelli (Organizadores). Blumenau: Edifurb; Nova Petrópolis: Nova Harmonia, 2016.
Essas leituras críticas tem permitido cavucar o terreno inesperado de contribuições notáveis, incluindo aquelas procedentes de um reconhecimento que se poderia dizer até improvável, quando se pensa a concepção e a prática de projetos como aquele a que se vinculam os autores do verbete que pus em relevo.
Esses dias, coincidentemente, a plataforma facebook ativada por seu algoritimo que associa temas que possam guardar interesse para o assinante, resgatou republicando em meu perfil matéria da UOL (Folha de São Paulo), alusiva a pronunciamento do Ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (aliás, meu colega e do Escrivão na Congregação docente da Faculdade de Direito da UnB), na qual, segundo a minha leitura e também do Escrivão, ele afirma a disposição criativa de O Direito Achado na Rua: “Colocar HC na pauta do STF é “coisa de direito achado na rua”, diz Gilmar… – Veja mais em https://noticias.uol.com.br/politica/eleicoes/2018/noticias/2018/03/19/colocar-hc-na-pauta-do-stf-e-coisa-de-direito-achado-na-rua-diz-gilmar.htm?cmpid=copiaecola. O ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Gilmar Mendes afirmou nesta segunda-feira (19) que colocar habeas corpus em pauta no pleno da suprema corte brasileira é algo novo e que isso é “coisa de direito achado na rua“. “A rigor nunca ninguém discutiu a pauta ou não de um HC [habeas corpus]. Isso é tudo novo. Digo que isso é coisa de direito achado na rua”, afirmou ao ser questionado sobre o habeas corpus coletivo protocolado no STF por advogados do Ceará contra a prisão de “todos os cidadãos que se encontrem presos e que estão na iminência de serem”. O processo caiu nas mãos de Gilmar Mendes por sorteio….”.
Será esse o Gilmar que é em geral posto de modo hostil a concepções como a de O Direito Achado na Rua, de resto, muito mais no que é dele apropriado do que por ele mesmo exposto. Valho-me de um incidente que anotei em texto por mim publicado na coluna que mantive por anos na Revista do Sindjus-DF – Sindicato dos Servidores do Judiciário e do Ministério Público em Brasília. Em seu nº 51, setembro de 2008, p. 5, com o título O Direito se Encontra na Lei ou na Rua?, fiz referência ao julgamento da ADPF nº 144, na qual o Ministro, então Presidente do Supremo Tribunal Federal fez uma afirmativa que teve ampla repercussão: “cada vez mais nós sabemos que o Direito deve ser achado na lei e não na rua”, logo reivindicada como citação sua pelo jornalista Reinaldo Azevedo, que em Veja (edição 2016, 11/07/2007), arrepia-se também em face de “O Direito Achado na Rua” porque “tal corrente entende que o verdadeiro direito é o que nasce dos movimentos sociais” (quero dizer que a mim, pessoalmente, o Ministro na sala de professores na Faculdade de Direito da UnB afirmou que no julgamento estava falando sobre algemas e não sobre O Direito Achado na Rua enquanto concepção teórica)?
O conjunto de enunciados (verbetes) contidos na Obra, remonta, tal como dissemos Antonio Escrivão Filho e eu em nosso Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos, vale dizer, “cogitar da teoria e da história dos direitos humanos, especialmente, a partir do Brasil, parece algo pertinente, sobretudo desde uma aproximação que encontra, na America Latina, novos horizontes epistêmicos; no Estado, um complexo agente de garantia e, simultaneamente, de violação de direitos; e nas lutas sociais, o compromisso ético-político que põe em movimento e dá fundamento a uma sociedade livre, justa e solidária”.
A edição da obra se faz no memento em que a Corte Interamericana de Direitos Humanos se reúne em audiência pública – dias 22 e 23 de março – para debater a denúncia sobre o assassinato de Gabriel Sales Pimenta (Caso Sales Pimenta vs Brasil). Trata-se de caso relacionado à suposta responsabilidade do Estado pela suposta situação de impunidade nos fatos relacionados à morte de Gabriel Sales Pimenta, advogado do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Marabá. Em decorrência de seu trabalho, teria recebido diversas ameaças de morte, pelas quais teria solicitado proteção estatal em diversas ocasiões perante a Secretaria de Segurança Pública de Belém, no Estado do Pará. Ele foi finalmente assassinado em 18 de julho de 1982. A referida morte teria ocorrido em um contexto de violência relacionada às reivindicações de terras e reforma agrária no Brasil. A Comissão concluiu que a investigação dos fatos relacionados à morte de Gabriel Sales Pimenta, encerrada em 2006 com decisão de prescrição, foi marcada por omissões do Estado.
O caso está relacionado à suposta responsabilidade do Estado pela suposta situação de impunidade nos fatos relacionados à morte de Gabriel Sales Pimenta, advogado do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Marabá. Em decorrência de seu trabalho, teria recebido diversas ameaças de morte, pelas quais teria solicitado proteção estatal em diversas ocasiões perante a Secretaria de Segurança Pública de Belém, no Estado do Pará. Ele foi finalmente assassinado em 18 de julho de 1982. A referida morte teria ocorrido em um contexto de violência relacionada às reivindicações de terras e reforma agrária no Brasil. A Comissão concluiu que a investigação dos fatos relacionados à morte de Gabriel Sales Pimenta, encerrada em 2006 com decisão de prescrição, foi marcada por omissões do Estado.
Caso emblemático porque ele põe em causa, exatamente, a necessidade de proteção a defensores de direitos humanos. Em suma, do que se cuida é compreender os direitos humanos dentro de “um programa que dá conteúdo ao protagonismo humanista, conquanto orienta projetos de vida e percursos emancipatórios que levam à formulação de projetos de sociedade para instaurar espaços recriados pelas lutas sociais pela dignidade”.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
Entre Relações de Cuidado e Vivências de Vulnerabilidade: dilemas e desafios para o trabalho doméstico e de cuidados remunerado no Brasil
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Entre Relações de Cuidado e Vivências de Vulnerabilidade: dilemas e desafios para o trabalho doméstico e de cuidados remunerado no Brasil / organizadores: Luana Pinheiro, Carolina Pereira Tokarski, Anne Caroline Posthuma. – Brasília: IPEA; OIT, 2021. 236 p. : il. Judith Cavalcanti. PDF da obra para acesso livre: file:///C:/Users/Jos%C3%A9%20Geraldo/Downloads/Entre%20rela%C3%A7%C3%B5es%20de%20cuidado%20e%20viv%C3%AAncias%20(2).pdf
No espaço de reflexão do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, o tema dos direitos inscritos no mundo do trabalho e as resistências de trabalhadores e de trabalhadoras tem um lugar fortemente estabelecido. Inclusive no que toca às trabalhadoras domésticas.
Na edição do volume 2 de Direitos Humanos & Covid-19: Respostas Sociais à Pandemia (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; RAMPIN, Talita Tatiana Dias; AMARAL, Alberto Carvalho – Orgs – Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2022), um eixo inteiro da obra é dedicado ao tema (Parte 3 – Quando o mundo do trabalho confronta o capital e defende a vida) e nele se dá relevo – p. 509-538 – ao assunto, com um artigo elaborado pelas pesquisadoras Eneida Vinhaes Bello Dultra, Myllena Calasans de Matos e Adriana Andrade Miranda com o título: “Denúncias de Trabalho Escravo – Direitos e Resistências das Trabalhadoras Domésticas na Pandemia”.
Coincidentemente, as Autoras fazem referência à Convenção 189 da OIT, para advertir:
“O Relatório da OIT, lançado em junho de 2021, intitulado Hacer del trabajo doméstico un trabajo decente – Avances y perspectivas una década después de la adopción del Convenio sobre las trabajadoras y los trabajadores domésticos, (núm. 189) avalia as condições de trabalho dos trabalhadores domésticos dez anos após a adoção da Convenção 189 e informa a gravidade da situação dessas trabalhadoras no mundo com a pandemia da Covid 19. Segundo a OIT:
Desde la adopción del Convenio sobre las trabajadoras y los trabajadores domésticos, 2011 (núm. 189), los trabajadores domésticos han obtenido protección legal en muchos países. Cabe señalar, no obstante, que para demasiados trabajadores domésticos el trabajo decente sigue sin ser una realidad. Al menos 75,6 millones de personas en todo el mundo realizan este trabajo esencial en los hogares. Un sorprendente número de trabajadores domésticos –ocho de cada diez (61,4 millones) – están empleados de manera informal, por lo que carecen de protecciones laborales y sociales efectivas.
Los trabajadores domésticos se encuentran entre los más afectados por las consecuencias de la actual pandemia de COVID-19. En comparación con otros trabajadores, el número de trabajadores domésticos que ha perdido su puesto de trabajo o está registrando una drástica reducción de sus horas de trabajo con la correspondiente disminución de su salario es mayor. En comparación con el último trimestre de 2019, en el segundo trimestre de 2020 el número de trabajadores domésticos disminuyó entre un 5 y un 20 por ciento en la mayoría de los países europeos cubiertos, y en alrededor del 50 por ciento en América Latina y el Caribe, llegando a reducirse en más de un 70 por ciento en el Perú. Hasta la fecha, la pérdida de puestos de trabajo entre los trabajadores domésticos ha sido, por lo general, mayor para aquellos con un empleo informal y sistemáticamente mayor que para otros trabajadores. Los trabajadores domésticos migrantes internos se enfrentan a situaciones especialmente extremas. A pesar de prestar servicios esenciales a clientes a menudo vulnerables, es frecuente que carezcan de un acceso adecuado a equipos de protección personal. Los trabajadores domésticos informales son los que menos posibilidades tienen de acceder a ayudas a los ingresos u otras medidas de emergencia adoptadas para hacer frente a la pandemia de COVID-19. (OIT, 2021; p. 7 – Resumo Executivo)”.
Também Entre Relações de Cuidado e Vivências de Vulnerabilidade: dilemas e desafios para o trabalho doméstico e de cuidados remunerado no Brasil guarda relação direta com a Convenção 189.
Com efeito, na Apresentação da Obra a cargo de Carlos Von Doellinger, Presidente do Ipea e de Martin Georg Hahn, Diretor do escritório da OIT no Brasil, eles destacam que seu objetivo é convidar a uma reflexão “sobre o quanto o trabalho doméstico e de cuidados remunerado é uma ocupação vulnerável, desvalorizada e desprestigiada socialmente, faltando ainda o pleno reconhecimento jurídico das trabalhadoras domésticas como categoria profissional. Contudo, ela segue sendo essencial para a sociedade brasileira, a qual investe pouco em políticas públicas de cuidado e tem um nível limitado de compartilhamento entre homens e mulheres”. Para eles, conforme a Apresentação, “talvez seja apenas em momentos de intensa crise, como a vivenciada com a pandemia da covid-19, que o manto da invisibilidade do trabalho doméstico e de cuidados caia e sua relevância e importância saltem aos olhos de toda a sociedade. São em momentos como esses, em que muitas trabalhadoras domésticas não podem estar mais presentes na casa de seus patrões por motivo dos riscos de contágio e transmissão do novo coronavírus, que a sociedade passa a perceber a quantidade de trabalho que é, todos os dias, delegada a mulheres dos mais diferentes perfis, sejam elas remuneradas ou não para tanto. É necessário zelar por uma sociedade mais igualitária, com compartilhamento dos trabalhos de cuidados entre famílias, Estado e mercado. Por enquanto, contudo, a realidade nos impõe a necessidade de garantir condições dignas e decentes de trabalho para uma categoria que é muito expressiva tanto em termos de seu tamanho quanto em termos da importância do trabalho que executa para o bom desempenho da sociedade, das famílias e da sua força de trabalho”.
Em seguida à Apresentação, o Sumário da obra se desdobra em Introdução e Prefácio, este a cargo de Nadya Araujo Guimarães: Entre Relações de Cuidado e Vivências de Vulnerabilidade: Dilemas do Viver, Desafios do Interpretar, em consonância com o título do Livro.
Na Introdução, que expõe o conteúdo da publicação, há a referência de sua motivação: a celebração de dez anos de adoção da Convenção 189, aprovada na Conferência Internacional do Trabalho (CIT), conduzida anualmente pela Organização Internacional do Trabalho (OIT):
“relativa ao trabalho digno para trabalhadores e trabalhadoras domésticas remuneradas (OIT, 2011). Esse documento é um importante marco na luta da categoria pela redução da vulnerabilidade do emprego doméstico e para a garantia de melhores condições de vida e trabalho para os milhões de trabalhadores, especialmente, de mulheres, que ganham suas vidas trabalhando diariamente no cuidado dos domicílios de seus empregadores e das pessoas que neles habitam, sejam elas dependentes (em geral, crianças, idosos, doentes, pessoas com deficiência) ou não”.
Assim é que, Entre relações de cuidado e vivências de vulnerabilidade: dilemas e desafios para o trabalho doméstico e de cuidados remunerado no Brasil”, está no Prefácio, “ocupará um lugar importante no conhecimento produzido sobre o trabalho doméstico no Brasil contemporâneo. Do ponto de vista acadêmico, este livro inova ao articular o tema com o debate em curso sobre as relações de cuidado. Isso lhe permite fertilizar o conhecido, agregando novas formas de mirar o fenômeno do trabalho assalariado em domicílios brasileiros e capturando tanto as suas múltiplas personagens quanto a variedade de formas pelas quais as desigualdades nas condições de emprego e nas relações de trabalho ali se expressam. Ademais, esta obra é igualmente rica em consequências e indicações para as políticas públicas, urgentes em um país em que tem sido exígua a presença do Estado, seja na proteção às condições de trabalho de quem cuida, seja no provimento de formas de cuidado, em especial aos idosos dependentes”.
Em torno desses dilemas e desafios vão se desdobrar os capítulos da Obra:
CAPÍTULO 1
A ECONOMIA DE CUIDADO E O VÍNCULO COM O TRABALHO DOMÉSTICO: O QUE AS TENDÊNCIAS E POLÍTICAS NA AMÉRICA LATINA PODEM ENSINAR AO BRASIL, Anne Caroline Posthuma
CAPÍTULO 2
O TRABALHO DOMÉSTICO REMUNERADO: UM ESPAÇO RACIALIZADO, Angélica Kely de Abreu
CAPÍTULO 3
OS DESAFIOS DO PASSADO NO TRABALHO DOMÉSTICO DO SÉCULO XXI: REFLEXÕES PARA O CASO BRASILEIRO A PARTIRDOS DADOS DA PNAD CONTÍNUA, Luana Pinheiro, Fernanda Goes, Marcela Rezende, Natália Fontoura
CAPÍTULO 4
A HETEROGENEIDADE DO TRABALHO DOMÉSTICO NO BRASIL, Natália Fontoura, Adriana Marcolino
CAPÍTULO 5
CARACTERÍSTICAS DEMOGRÁFICAS E SOCIOECONÔMICAS DAS FAMÍLIAS CONTRATANTES DE TRABALHO DOMÉSTICO REMUNERADO NO BRASIL, Maria de Fátima Lage Guerra,Lúcia Garcia dos Santos, Edgard Rodrigues Fusaro
CAPÍTULO 6
NEGOCIAÇÃO COLETIVA NO TRABALHO DOMÉSTICO NO BRASIL: O CASO DA CONVENÇÃO COLETIVA DE TRABALHO DO SINDICATO DOS TRABALHADORES DOMÉSTICOS DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO, Laura Tereza Benevides, Luísa Cruz, Anna Bárbara Araujo, Krislane de Andrade Matias
CAPÍTULO 7
VULNERABILIDADES DAS TRABALHADORAS DOMÉSTICAS NO CONTEXTO DA PANDEMIA DE COVID-19 NO BRASIL, Luana Pinheiro, Carolina Tokarski, Marcia Vasconcelos
CAPÍTULO 8
CUIDADOS PARA A POPULAÇÃO IDOSA E SEUS CUIDADORES: DEMANDAS E ALTERNATIVAS, Ana Amélia Camarano
NOTAS BIOGRÁFICAS
SOBRE A CAPA DESTE LIVRO
AGRADECIMENTOS
Por muitas razões me interessei pela leitura desse livro, preparado como ação da Diretoria de Estudos e Políticas Sociais, dirigida há um longo tempo pela querida amiga Lenita Maria Turchi. Nesse ambiente, onde atuou até a sua aposentadoria a minha esposa a professora Nair Heloisa Bicalho de Sousa, ela também Técnica de Planejamento e Pesquisa do IPEA pude, observando o seu trabalho, acompanhar muitos dos relevantes projetos do Instituto (Nair, inclusive, entre outros trabalhos de pesquisa, foi editora, entre 1994 e 1995, da Revista Planejamento e Políticas Públicas, do IPEA), conhecer seus excelentes quadros e partilhar de relações de afeto e de amizades. Assim é que, também da Disoc, partilhei do companheirismo da competentíssima Beth Barros, que acaba de nos deixar de modo precoce. Com Beth também convivi ao tempo da preparação da 8ª Conferência Nacional de Saúde, na qual tomei parte em estudos preparatórios e nos debates plenários, sendo a saudosa amiga uma das mais destacadas formuladoras no campo das políticas de saúde. Fazer este Lido para Você é meu modo de render homenagem a Elizabeth Diniz Barros.
E ainda, ao conjunto de mulheres (só há um pesquisador homem) que, provenientes do próprio IPEA, de agências públicas governamentais e não governamentais, sindicais e da academia, se associaram para a realização dos estudos trazidos para o livro:
Adriana Marcolino, Técnica do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese). Doutoranda em sociologia do trabalho pela Universidade de São Paulo (USP). Tem experiência nas áreas de sociologia econômica e ciência política, com ênfase nas temáticas relacionadas ao trabalho e aos movimentos sindicais e sociais.
Ana Amélia Camarano, Pesquisadora na Diretoria de Estudos e Políticas Sociais (Disoc) do Ipea. Pós-doutora pela Universidade Nihon (Tóquio/Japão) na área de envelhecimento populacional e arranjos familiares. Doutora em estudos populacionais pela London School of Economics. Mestra em demografia e graduada em economia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Tem como temas de interesse de pesquisa o envelhecimento populacional, os cuidados e arranjos familiares.
Angélica Kely de Abreu, Pesquisadora nos grupos de pesquisa Direito, Justiça e Pluralismo Étnico-Racial Anastácia Bantu; e no grupo de estudo do mundo do trabalho (Gemut). É bolsista da Coordenação de Igualdade de Gênero, Raça e Gerações na Disoc/Ipea. Mestra e doutoranda em ciências sociais e ciências jurídicas pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Bacharel em direito pela mesma instituição.
Anna Bárbara Araújo, Pesquisadora de pós-doutorado (processo Fapesp 2020/05176-3) no departamento de sociologia da USP. Pesquisadora em um projeto sobre cuidadoras de idosos e pandemia da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Pesquisadora associada ao Núcleo de Estudos de Sexualidade e Gênero da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Neseg/UFRJ) e ao Laboratório de Estudos de Gênero e Interseccionalidade (Labgen/UFF). Foi professora substituta no Departamento de Sociologia e Metodologia das Ciências Sociais da UFF e realizou consultoria técnica para a Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres (ONU Mulheres) sobre a organização política das trabalhadoras domésticas no Brasil. Doutora e mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA/UFRJ). Tem interesse nos seguintes temas: cuidado, trabalho doméstico, trabalho intermediado, interseccionalidades, desigualdades, políticas públicas e emoções.
Anne Caroline Posthuma, Diretora do Centro Interamericano para o Desenvolvimento de Conhecimento na Formação Profissional da Organização Internacional do Trabalho (Cinterfor/OIT). Doutora e mestra em desenvolvimento industrial e trabalho pela Universidade de Sussex. Antropóloga social pela Universidade de Stanford. Tem como temas de interesse e de publicações a formação profissional, a economia de cuidado, o trabalho doméstico, o emprego juvenil e a governança do trabalho nas cadeias globais de produção.
Carolina Pereira Tokarski, Especialista em políticas públicas e gestão governamental, atua como pesquisadora na Coordenação de Igualdade de Gênero, Raça e Gerações, na Disoc/Ipea. Trabalhou na Secretaria de Políticas para as Mulheres e na Escola Nacional de Administração Pública. Foi coordenadora no Ministério da Educação. Mestra e graduada em direito pela Universidade de Brasília (UnB).
Edgard Rodrigues Fusaro, Técnico do Dieese, com atuação na pesquisa de emprego e desemprego (PED) e consultoria estatística em demandas associadas ao movimento sindical e ao mundo do trabalho. Consultor e assessor técnico para grandes projetos, com experiência de trabalho junto a entidades renomadas, como o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), USP, Fundação do Desenvolvimento Administrativo (Fundap), Fundação Universitária para o Vestibular (Fuvest), Fiocruz, Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), entre outras. Bacharel em estatística pela USP, com formação complementar em software estatísticos, análise do mercado de futuros e geoprocessamento.
Fernanda Lira Góes, Técnica de planejamento e pesquisa do Ipea, atualmente em exercício na Divisão de Compliance, Integridade e Gestão de Riscos (Dicor), no Gabinete da Diretoria de Administração e Planejamento (DAP), do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Doutora e mestra em geografia pela UnB. Graduada em relações internacionais na Faculdades Integradas da Bahia (FIB). Coordenadora do Atlas das Periferias no Brasil (Ipea/no prelo). Vivência com pesquisas nas áreas de política externa entre Brasil e África, diáspora africana, racismo estrutural e financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para exportação de empresas de engenharia e construção, desigualdade racial, população negra, especialmente juventude, violência perpetrada contra população negra e quantificação de sobreviventes a homicídios, racismo ambiental e situação social de catadores de material reciclável, território negro, pesquisas de uso do tempo relacionadas ao trabalho doméstico e políticas para as mulheres.
Krislane de Andrade Matias, Consultora da área de gênero da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal). Foi pesquisadora do Programa de Pesquisa para o Desenvolvimento Nacional (PNPD) na Coordenação de Igualdade de Gênero, Raça e Gerações na Disoc/Ipea. Foi professora substituta do Instituto Federal de Goiás (IFG) e lecionou sociologia na rede pública e particular do Distrito Federal. Mestra em antropologia e graduada em ciências sociais (bacharelado e licenciatura) pela UnB. Possui experiência nas seguintes áreas: violência doméstica e familiar contra mulheres e sistema de justiça, antropologia do direito, estudos de gênero.
Laura Tereza de Sá e Benevides Inoue, Técnica do Dieese, atuando nas áreas de pesquisas sindicais, gênero e negociação coletiva. Atualmente também ministra aulas no curso de bacharelado da Escola Dieese de Ciências do Trabalho. Em trabalho de assessoria técnica ao movimento sindical de trabalhadores e trabalhadoras, já atuou em estudos sobre negociação coletiva, gênero, pesquisas de perfil de categoria, trabalho doméstico, entre outros temas. Foi responsável pela elaboração do estudo Negociação de Cláusulas de Trabalho relativas à Igualdade de Gênero e Raça 2007-2009. Mestra em educação pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Graduada em Ciências Sociais pela USP.
Luana Pinheiro, Técnica de planejamento e pesquisa da Coordenação de Igualdade de Gênero, Raça e Estudos Geracionais na Disoc/Ipea. Foi coordenadora geral de planejamento e gestão da informação na Secretaria de Políticas para as Mulheres, da Presidência da República, entre 2007 e 2011. Foi coordenadora de gênero e raça no Ipea entre 2011 e 2016. Doutora e mestra em sociologia pela UnB, graduada em economia pela mesma instituição. Tem elaborado e publicado estudos na área de gênero, especialmente sobre desigualdades de gênero no mercado de trabalho e trabalho doméstico remunerado e não remunerado.
Lucia Garcia dos Santos, Técnica do Dieese e professora na Escola de Ciências do Trabalho da mesma instituição. Integrante do núcleo de pesquisa em economia feminista da Faculdade de Ciências Econômicas e do grupo de pesquisa em trabalho e contexto digitais da Escola de Administração, ambos vinculados à Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Foi coordenadora da Pesquisa de Emprego e Desemprego na Região Metropolitana de Porto Alegre (PED-RMPA) e do Sistema de Pesquisas de Emprego e Desemprego (SPED). Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Economia da UFRGS. Economista pela mesma instituição. Especialista em mercado de trabalho e pesquisas socioeconômicas domiciliares.
Luisa Cruz de Melo, Técnica do Dieese, atuando nas áreas de pesquisas sindicais, negociação coletiva, entre outros temas do mundo do trabalho. Graduada em geografia pela USP.
Marcela Rezende, Pesquisadora da Coordenação de Igualdade de Gênero, Raça e Gerações, na Disoc/Ipea. Mestra em antropologia social pelo Museu Nacional/UFRJ. Especialista em políticas públicas e gestão governamental. Trabalha com questões de gênero.
Marcia Vasconcelos, Co-fundadora da Associação Internacional Maylê Sara Kali e consultora da ONU-Mulheres. Mestra em sociologia pela UnB. Possui mais de vinte anos de experiência e atuação em Organizações não Governamentais e Internacionais em temas relacionados à promoção da igualdade de gênero e raça.
Maria de Fátima Lage Guerra, Integrante e ex-coordenadora do grupo temático de população e trabalho da Associação Brasileira de Estudos Populacionais (Abep). Técnica do Dieese, na subseção da Central Única dos Trabalhadores de Minas Gerais (CUT/MG). Foi supervisora técnica do escritório regional do Dieese em Minas Gerais. Doutora em demografia e mestra em economia pela UFMG. Possui interesse de pesquisa nas áreas de demografia, políticas públicas, economia do trabalho e economia da família e gênero.
Natália Fontoura, Trabalhou na Secretaria de Políticas para as Mulheres, entre 2002 e 2006, e no Ipea, na área de igualdade de gênero, entre 2006 e 2019. Foi coeditora do periódico Políticas Sociais: acompanhamento e análise e compôs seu conselho editorial por alguns anos. Doutoranda em política social no Instituto de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa. Mestra em ciência política pela UnB. Especialista em políticas públicas e gestão governamental. Pesquisa sobre trabalho doméstico, trabalho doméstico não remunerado, políticas de cuidado, desigualdades de gênero, pesquisas de uso do tempo e políticas para as mulheres.
Judith Cavalcanti é também pesquisadora do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua e tem em seu percurso acadêmico estudos no tema, conforme “Quebrando as correntes invisíveis: uma análise crítica do trabalho doméstico no Brasil. 2010. 120 f., il. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade de Brasília, Brasília, 2010” (https://repositorio.unb.br/handle/10482/8484).
A dissertação, que tive a oportunidade de orientar, tem o seguinte Resumo: “A presente dissertação apresenta um debate crítico sobre o trabalho doméstico no Brasil, com base no novelo patriarcado racismo-capitalismo. A proposta foi reconstruir as bases históricas do trabalho doméstico em si e da luta sindical, assim como acompanhar o desenvolvimento normativo sobre o tema, e a partir daí analisar as condições de discriminação e precariedade nas relações de trabalho doméstico no país. No entanto, a pesquisa revelou que, para além dessa realidade excludente em que há pouco reconhecimento social e jurídico, a categoria das trabalhadoras domésticas constitui-se como um sindicalismo heróico. Com estrutura física pouco adequada, baixa sindicalização, ausência de contribuição sindical efetiva e reconhecimento jurídico-legal restrito, as trabalhadoras domésticas redimensionaram as estratégias de ação e criaram formas alternativas de luta e construção de direitos”.
Logo, trata-se de arte que não é só suporte mas é também conceito. Título: Cabeça Feita #2. Técnica (original): Acrílico s/papel 120g. Dimensão (original): 40,5 x 29,5 cm. Ano: 2020
DESCRIÇÃO DA OBRA
A obra Cabeça feita #2, de Judith Cavalcanti, faz parte de uma série chamada Cabeça Feita, em que a artista se utiliza do figurativo de uma mulher como elemento de engate de uma discussão sobre gênero. Na série, a mulher não é meramente um objeto pictórico, senão a representação de uma ancestralidade feminina, tendo em vista que os cachos dos seus cabelos contêm os nomes de mulheres importantes por sua contribuição no mundo das artes, ciências, esportes, política etc.
Essa simbologia enfatiza ainda, para a artista, a importância daquelas que “vieram antes”, ao mesmo tempo que traduz a esperança no futuro construído pelas que as terão como referencial. Em Cabeça Feita #2, são destacadas várias lideranças do movimento nacional de trabalhadoras domésticas. Mais uma vez, os elementos são escolhidos com um propósito. Aqui, a escolha de uma mulher negra tem um caráter político, dado que a maior parte da categoria é formada por este grupo social. Espera-se que tal alusão funcione como registro das pessoas que foram, são e serão sempre importantes para o movimento de trabalhadoras domésticas, mas sobretudo para a democracia, no Brasil e na América Latina.
SOBRE A ARTISTA
Judith Cavalcanti é artista visual. Nasceu em Recife (PE), em 1981. É feminista e ativista de direitos humanos há mais de vinte anos. Em 2006, foi educadora no Projeto Trabalho Doméstico Decente em Pernambuco, quando passou a se considerar parceira do movimento de trabalhadoras domésticas no Brasil. Entre 2008 e 2010, debateu a legislação trabalhista constitucional sobre o trabalho doméstico no Mestrado em Direito, na Universidade de Brasília (UnB). Nos anos seguintes, na Universidade Católica de Brasília (UCB), coordenou o projeto de Extensão Promotoras Legais Populares para o Trabalho Doméstico Decente. Atualmente, dedica-se ao ativismo político por meio da arte. Vive e trabalha em Lisboa, Portugal.
Finalmente, oriento a atenção especialmente para o Capítulo 7, “Vulnerabilidades das Trabalhadoras Domésticas no Contexto da Pandemia de Covid-19 no Brasil”, autoria de Luana Pinheiro, Carolina Tokarski e Marcia Vasconcelos. Aí está a contribuição de Carolina Tokarski, também co-organizadora do livro e pesquisadora sênior do Grupo O Direito Achado na Rua, âmbito no qual foi pioneira na institucionalização do Projeto Promotoras Legais Populares – PLPs, capacitação de mulheres em gênero e direitos humanos (cf. http://estadodedireito.com.br/promotoras-legais-populares-movimentando-mulheres-pelo-brasil-analises-de-experiencias/).
Com elas fecho este Lido para Você: “É importante ressaltar que a manutenção da sobrecarga do trabalho doméstico sobre as mulheres, que sempre foi penosa e injusta, agrava os custos e a penalidade sobre as mulheres – trabalhadoras domésticas ou não – em um contexto de pandemia. Estes custos podem estar associados à sua saúde física e mental, por exemplo, ou a avaliações negativas em suas vidas profissionais – como é o caso de reportagem que mostra que as mulheres em quarentena produziram muito menos que os homens no campo científico (Kitchener, 2020). A experiência vivida pelas famílias ao redor do mundo, sem apoio do Estado ou de trabalhadoras domésticas para compartilhar o trabalho reprodutivo, pode provocar uma reflexão sobre o papel de homens e mulheres no interior das famílias. Pode também alterar, em alguma medida, o entendimento do que é o trabalho diário de cuidado da casa e das famílias, seu peso, seu impacto e sua relevância para que as famílias e a sociedade em geral funcionem, contribuindo, assim, para sua visibilidade, sua valorização e seu reconhecimento”.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
Educação e justiça de transição na era digital: análise comparativa dos cursos à distância relacionados ao direito à memória e à verdade no Brasil
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Thelma Yanagisawa Shimomura. Educação e justiça de transição na era digital: análise comparativa dos cursos à distância relacionados ao direito à memória e à verdade no Brasil (2015-2020) – Belo Horizonte, 2021. 74 f.
Excelente e oportuna a Dissertação defendida por Thelma Yanagisawa Shimomura, tema deste Lido para Você.
Conforme diz a Autora, nas conclusões, “na atual conjuntura, o discurso da extrema-direita tem sido o de assumir os crimes de lesa-humanidade e o de criar para os violadores uma aura de heróis nacionais, além de construírem um discurso de passado idílico. Desta forma, altera-se o entendimento de que os crimes devem ser negados ou esquecidos para serem afirmados e exaltados. Vive-se, no tempo presente, as consequências de uma justiça transicional incompleta, na qual prevaleceu a impunidade dos crimes cometidos. A educação e a Justiça de Transição, como política de Estado, iniciaram sua jornada na modalidade virtual e estão ainda em estágio inicial. Têm sido aprimoradas com a experiência de instituições que abordavam esta temática em cursos presenciais e necessitam de expansão e fortalecimento em todos os meios”.
E não só. Há em curso uma ação que se diria, de governo, direcionada ao apagamento de registros dessa realidade sombria. Nesses dias, com o título “Servidores denunciam o descarte de documentos sobre a ditadura. A ameaça estende-se a dados financeiros que nem sequer foram analisados pelo TCU” – https://www.cartacapital.com.br/politica/servidores-denunciam-o-descarte-de-documentos-sobre-a-ditadura/, a Carta Capital publicou matéria denúncia sobre o assunto: “Não é só de fake news nas redes sociais que vive a desinformação propagada pelo governo federal. Internamente, um insidioso processo de apagamento da memória nacional espalha-se por instituições responsáveis pela análise e guarda de documentos histór… Leia mais em https://www.cartacapital.com.br/politica/servidores-denunciam-o-descarte-de-documentos-sobre-a-ditadura/. O conteúdo de CartaCapital está protegido pela legislação brasileira sobre direito autoral. Essa defesa é necessária para manter o jornalismo corajoso e transparente de CartaCapital vivo e acessível a todos”.
Daí a minha preocupação em face dessa atitude criminosa de censura e de silenciamento, por isso que abri uma discussão pública em minha Coluna no Jornal Brasil Popular, por último, conforme meu artigo Para que não se esqueça. Para que nunca mais aconteça. Censura e Silenciamento (https://www.brasilpopular.com/para-que-nao-se-esqueca-para-que-nunca-mais-aconteca-censura-e-silenciamento/):
Em Nota Pública um conjunto expressivo de Entidades e vítimas da ditadura “condenam censura à Comissão da Verdade”, manifestada em decisão judicial (6a Vara da Justiça Federal de Pernambuco, determinando a retirada de trechos do relatório da Comissão Nacional da Verdade – CNV).
Na Nota seus subscritores afirmam que esse tipo de sentença judicial é ofensiva aos familiares e vítimas da ditadura, fere a Lei de Acesso à Informação (LAI) que proíbe a restrição de acesso a “informações ou documentos que versem sobre condutas que impliquem violação dos direitos humanos praticada por agentes públicos ou a mando de autoridades públicas” e determina que“a restrição de acesso à informação relativa à vida privada, honra e imagem de pessoa não poderá ser invocada com o intuito de prejudicar processo de apuração de irregularidades em que o titular das informações estiver envolvido, bem como em ações voltadas para a recuperação de fatos históricos de maior relevância“.
E ainda, que a decisão judicial ofende também a ampla jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos em matéria de memória, verdade e justiça, além das sentenças especificamente dirigidas ao Brasil (Caso Gomes Lund e Caso Vladimir Herzog) que determinou a todas as autoridades de todos os poderes do país a adotar medidas para garantir o direito à memória e à verdade. Ademais, a ação judicial da Vara de Pernambuco foi conduzida sem a necessária intervenção do Ministério Público Federal, obrigatória em matéria de justiça de transição, especialmente quando se discute o direito à verdade e à memória.
Têm razão os subscritores. Tenho sustentado esses mesmos fundamentos para afirmar o caráter cogente do direito à memória e à verdade e o conjunto de enunciados que formam o que atualmente se adensa como justiça de transição. Em texto publicado em 2008 –Memória e Verdade como Direitos Humanos (in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Ideias para a Cidadania e Para a Justiça. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor), sintetizo esses enunciados e lembro Hanna Arendt para dizer com ela, que “uma das lições que podem ser apreendidas das experiências totalitárias é a assustadora confiança de seus dirigentes no poder da mentira e na capacidade de reescreverem a história para a adaptar a uma linha política”. Esse é o pressuposto que se faz núcleo da concepção de justiça de transição e que se projeta para o objetivo de que não se esqueça; para que nunca mais aconteça.
Desconfio da legitimidade de fundo da sentença criticada pelas Entidades e vítimas. Até posso admitir alguma boa-fé hermenêutica no sentido de preservar algum direito subjetivo que não deva ser protegido por outros meios e sem afrontar a dimensão cogente da justiça de transição inscrita na precedência fundante do juízo da Comissão Nacional da Verdade. Até aceito que a atitude não tenha sido a de censurar. Mas de qualquer modo ela se soma a posições recalcitrantes de violadores que buscam escapar ao juízo de responsabilização por seus atos de lesão, configurados como crimes contra a humanidade.
Em outro texto sobre esse tema (Revista do Sindjus • Fev-Mar/2010, ano XVIII, n. 64), anotei que a reivindicação de incluir uma Comissão de Verdade e Justiça, mesmo na forma atual de Comissão de Verdade, decorreu da Conferência Nacional de Direitos Humanos realizada em dezembro de 2008 com caráter deliberativo. Decorre também da natureza cogente do direito internacional dos direitos humanos, expressa em decisões de tribunais internacionais que indicaram ao Brasil a necessidade de concluir o processo de democratização com a verdade sobre os fatos, para evitar repetições de ciclos de violência. E que essa reivindicação inscreve-se nos fundamentos do que se denomina justiça de transição, que pode ser definida como esforço para a construção da paz sustentável após um período de conflito, violência em massa ou violação sistemática dos direitos humanos.
Por isso que, se não for considerada censura, a decisão se presta a fortalecer as posições de silenciamento da verdade e a robustecer o que Hanna Arendt designava de mentira na política. Atitude que parece caracterizar na conjuntura, o modo de se manifestar oficialmente, sobre essas incidências de nosso passado recente que a Constituição determinou fossem submetidas ao juízo da verdade e da justiça (para o que foi instituída a Comissão Nacional da Verdade), ao lado das Comissões de Anistia e de Mortos e Desaparecidos.
Essa atitude transparece, registra notícia do sítio UOL, no desalento vivido durante décadas, pelo jornalista César Fernandes, ao buscar reparação para Maria da Conceição Chaves Fernandes, sua esposa, ambos membros da RAN (Resistência Armada Nacional), que ficaram presos no Rio por 40 dias, em 1972, ela violentamente torturada pela repressão. O testemunho de César Fernandes sobre as torturas infligidas a sua mulher, ultrapassa o cenário do horror, instituído como política de Estado que se prorroga na conclusão da Comissão na sua composição e com sua ideologia atual de que “apenas foi aplicada a legislação vigente, sem excessos, abusos ou qualquer ato ilícito pelo Estado”.
Penso que se integra a essa perspectiva de silenciamento e de ocultação da verdade, situação aqui no Distrito Federal, em relação à qual já me manifestei aqui no Brasil Popular (Honestino Guimarães: Reparação de Projeto de Vida – Brasil Popular), acentuada com o veto do Governador ao projeto de lei que renomea para Honestino Guimarães a Ponte Costa e Silva (alusão a personalidade identificada com uma das fases mais duras da Ditadura instalada no País em 1964-1985).
Tive um sobressalto pensando que entre os oito vetos derrubados pelos deputados distritais, conforme notícia dessa semana, estivesse o de restauro de memória e verdade, como marca de historicidade e iluminação sobre um passado cruento. Frustrei-me. Os líderes ainda não formaram acordo sobre essa exigência civilizatória.
É preciso, pois, insistir no “não esquecimento” que é o pressuposto para o “nunca mais”. Conforme eu disse na matéria de Brasil Popular, essa é uma lição que a ausência às classes de estudos políticos sobre conceitos de democracia e de teoria do Direito, sobre concepção de direitos fundamentais convencionais e também constitucionais, pode não ter sido aprendida. Mas é igualmente uma demonstração de rendição apequenadora (a estilo de guarda de quarteirão, conforme a advertência de Pedro Aleixo quando o texto do AI-5 foi colocado à assinatura dos ministros, entre eles aquele que “mandou às favas os escrúpulos”), aos autoritarismos renitentes naquilo que Umberto Eco denominou de fascismo eterno”.
Também aqui neste espaço do Jornal Estado de Direito, dediquei um Lido para Você ao tema – http://estadodedireito.com.br/relatorio-da-comissao-anisio-teixeira-de-memoria-e-verdade-da-universidade-de-brasilia/, no qual resgato artigo que escrevi em 1987 (Anistia, o compromisso da liberdade, Revista Humanidades nº 13, Editora da UnB), mostrei como já em 1964, a partir do Ato Institucional nº 1, que abriu o ciclo das cassações de direitos políticos e de demissões sumárias de trabalhadores, várias vozes, muitas de escritores, como Tristão de Athayde e Carlos Heitor Cony, se fizeram ouvir em apelo de “anistia já!”.
No ano de 1964 mesmo, a Editora Civilização Brasileira lançava a sua revista – a Revista da Civilização Brasileira -, marcando com o primeiro número, a convicção de que a saída para a crise que se instalava, tinha que carregar um elemento de superação democrática: “que os cárceres se abram, e os tribunais absolvam, e os lares recebam os que serviam de vítimas”. Neste mesmo número, a revista, que logo seria vítima do ciclo de retrocesso, trazia o belo artigo de Cony – “Anistia”: “É preciso – ele dizia – que a palavra cresça: invada os muros e as consciências”.
Agora, é tempo de reivindicar a verdade e de resgatar a memória, como referências éticas para conter a mentira na política. Em comentário anterior no espaço da Revista do Sindjus (Memória e Verdade: os mortos do Araguaia, Revista do Sindjus, agosto de 2003), referi-me à grande pensadora Hanna Arendt, para reter a sua advertência de que “uma das lições que podem ser apreendidas das experiências totalitárias é a assustadora confiança de seus dirigentes no poder da mentira e na capacidade de reescreverem a história para adaptá-la a uma linha política”.
Por isto é tão urgente abrir os arquivos dessa conjuntura histórica. Não se trata apenas de resgatar a memória e a verdade, mas de completar a transição e abrir-se à experiência plena da democracia, da justiça e da paz. Se essa tarefa já se fazia urgente como continuidade de um processo de redemocratização, ele é ainda mais necessário quando há uma reagrupação de forças obscurantistas, já instaladas em golpe de força, na institucionalidade, para ameaçar essa institucionalidade e repristinar o autoritarismo ditatorial.
Mencionei, no artigo, recente aula magna do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, da UnB, na qual o professor Paulo Sergio Pinheiro, que coordenou a Comissão de Memória e Verdade do Brasil (A Comissão Nacional da Verdade (CNV), órgão temporário criado pela Lei 12.528, de 18 de novembro de 2011, encerrou suas atividades em 10 de dezembro de 2014 (conheça o seu Relatório: http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/index.php/outros-destaques/574-conheca-e-acesse-o-relatorio-final-da-cnv), nos lembrou a todos e todas que a “vigência de um regime tendencialmente democratizante não é condição automática para o alastramento e consolidação de direitos” (veja a sua bela exposição em: https://www.youtube.com/watch?v=qon6RVukYjo). E confira a fidelidade ao que já dizia em 1987 (Dialética dos Direitos Humanos. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de – org, O Direito Achado na Rua. Curso de Extensão à Distância, Série O Direito Achado na Rua. Brasília: Editora UnB, 1987), salientando que “os direitos individuais somente podem prevalecer na medida direta em que foram reconhecidos como direitos sociais para todos os grupos marginalizados, mortificados e anulados na sociedade brasileira”.
Desta e de outras questões candentes trata o livro organizado por minha colega de Faculdade Eneá de Stutz e Almeida, ex-integrante da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. Conforme – http://justicadetransicao.org/a-transicao-brasileira-memoria-verdade-reparacao-e-justica-1979-2021/ (A transição brasileira: memória, verdade, reparação e justiça (1979-2021), Salvador: Soffia10 Editora, uma publicação do Grupo de Pesquisa Justiça de Transição, da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília).
O livro, dizem os organizadores (Eneá de Stutz e Almeida) “atualiza, complementa e sistematiza ideias e conceitos iniciados em textos anteriores. A autora analisa a anistia política implementada a partir de 1979 no Brasil: uma anistia da memória, que não impede a responsabilização dos violadores de direitos humanos. Estuda os mecanismos da justiça de transição brasileira até o ano de 2021, concluindo que o País vive uma justiça de transição reversa”.
De todos esses temas, reordenados em preocupação pedagógica de educar para os direitos humanos e de avaliar a dimensão emancipadora da educação à distância, cuida a Dissertação, defendida perante a Banca Examinadora, assim constituída: Professor Dr. José de Sousa Miguel Lopes (Orientador) Universidade do Estado de Minas Gerais – Faculdade de Educação, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; Professor Dr. José Eustáquio de Brito, Universidade do Estado de Minas Gerais – Faculdade de Educação; Professora Dra. Maria de Nazaré Tavares Zenaide Miranda (suplente), Universidade Federal da Paraíba; e Professora Dra. Vanda Lúcia Praxedes (suplente), Universidade do Estado de Minas Gerais.
O trabalho, segundo o seu resumo, cuida da “relação entre educação e justiça de transição diz respeito à reconstrução do sistema educacional após períodos de conflito armado ou autoritarismo, como também à análise dos legados específicos de políticas repressivas e de violações de direitos humanos por parte do Estado. Estes legados são relevantes em contextos nos quais a educação foi utilizada para discriminar grupos com fins ideológicos (RAMÍREZ-BARAT; DUTHIE, 2017). No Brasil, o governo federal conduziu uma primeira iniciativa de educação à distância sobre Justiça de Transição após os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, em 2015.
Inicialmente, o objetivo da pesquisa foi analisar este curso, porém, ao observar que apesar de poucas, outras instituições públicas também o fizeram, pareceu importante sistematizar um mapeamento desses cursos e entender como tem sido o processo de construção deste campo no Brasil. Foram identificados quatro cursos durante o período de 2015 a 2020 – dois realizados antes da pandemia do novo coronavírus e dois ocorridos durante a pandemia – e realizado estudo comparado utilizando a metodologia de Bartlett e Vavrus (2017).
Percebeu-se que sobre os espaços de diálogo, os cursos realizados antes da pandemia ocorriam de forma assíncrona na linguagem escrita dentro da plataforma moodle; enquanto os cursos pós-pandemia utilizaram plataformas de videoconferência e haviam diálogos síncronos com transmissão audiovisual. Os cursos pré-pandemia inseriam-se nas políticas públicas de Estado e destinavam-se exclusivamente para o ambiente virtual de aprendizado; ao passo que os cursos pós-pandemia foram gestados para serem realizados presencialmente e, devido à pandemia, foram transformados na modalidade virtual. Avanços tecnológicos permitiram uma melhor forma de interação através do diálogo oral nos cursos pós-pandemia. Nos cursos pré-pandemia, o enfoque foi no tema da Justiça de Transição e nos cursos pós-pandemia, abordou-se os Lugares de Memória e a Educação em Direitos Humanos, havendo uma complementariedade da temática do Direito à Memória e à Verdade. Em um cenário de Justiça de Transição reversa (ALMEIDA, 2021) e de impossibilidade da presencialidade física em ambientes educacionais, os cursos online tiveram papel contra-hegemônico.
A educação e a Justiça de Transição, como política de Estado, iniciaram sua jornada na modalidade virtual e estão ainda em estágio inicial. Têm sido aprimoradas com a experiência de instituições que abordavam esta temática em cursos presenciais e necessitam de expansão e fortalecimento em todos os meios”.
Esses temas estão coerentemente distribuídos num sumário elucidativo:
INTRODUÇÃO
1.1. Envolvimento com o tema
COMO SUPERAR UM PASSADO DE VIOLÊNCIA ESTATAL
2.1. Ditadura e Lei de anistia
2.2. Memória, Verdade e Justiça nos Direitos Humanos
2.3. Justiça de transição
EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS
3.1 Educação para o nunca mais
EDUCAÇÃO À DISTÂNCIA
4.1. A EAD na cibercultura
4.2. EAD: alienação ou emancipação
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
APRESENTAÇÃO DOS CASOS
6.1. Curso Introdução crítica à Justiça de Transição na América Latina: o direito achado na rua (2015)
6.2. Curso Formação em direitos humanos: entendendo a ditadura e as comissões da verdade (2018)
6.3. Curso Lugares de Memória e Direitos Humanos no Brasil (2020)
6.4. VII Curso Intensivo de Educação em Direitos Humanos, Memória e Cidadania (2020)
ANÁLISE DOS RESULTADOS
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
Analiticamente, diz a Autora, o texto divide-se em oito capítulos. “O primeiro capítulo consta desta Introdução e de um breve relato sobre as experiências que me levaram a querer realizar a pesquisa, no subtítulo Envolvimento com o tema.
O segundo capítulo, abrange uma breve perspectiva histórico-jurídica sobre a responsabilização estatal de crimes de lesa humanidade e a última ditadura militar no Brasil. No subcapítulo Ditadura e Lei de Anistia aborda-se propriamente sobre o período de 1964 a 1985, analisando a importância do sistema judiciário para a sustentação do Estado autoritário e o valor ambíguo da Lei de Anistia, com base nos trabalhos de Pereira (2010), Reis Filho (2010) e Meyer (2012). O subcapítulo intitulado Memória, Verdade e Justiça nos Direitos Humanos, relata-se o surgimento da Declaração Universal dos Direitos Humanos e do Tribunal Penal de Nuremberg como reação aos horrores do Estado nazista. Foram brevemente apontados os regulamentos internacionais sobre o direito à verdade e demonstrou-se como, ao longo do tempo, este direito teve seu significado ampliado e vinculado ao direito à memória. Observou-se que o Direito à verdade originou todos os outros pilares da justiça de transição (reparação, judicialização e reformas institucionais). E no subcapítulo Justiça de Transição, discorre-se sobre o conceito deste termo, ancorado nos preceitos de quatro pilares: justiça, reparação, reformas institucionais e Direito à Memória e à Verdade (ONU, 2012). Este capítulo apresenta, também, o conceito de Justiça de Transição Reversa cunhada por Almeida (2021), para explicar o atual momento da justiça transicional no país e relaciona os temas da auto-anistia com o direito à memória, verdade e justiça.
No terceiro capítulo, Educação em Direitos Humanos, foram descritos o conceito e as transformações ocorridas neste campo na América Latina desde a década de 1960. Para tanto, foram selecionados os estudos de Vivaldo (2009), Rodino (2016), Rodino et al. (2016), Candau e Sacavino (2013), Sacavino (2007) e do Instituto Interamericano de Direitos Humanos (2004). No subcapítulo Educação para o nunca mais, foi apresentada a origem do termo nunca mais como sinônimo de ponto final às condutas de violação de direitos humanos de Estados autoritários e a utilização da educação como mecanismo preventivo de semelhantes situações no futuro. Estes conceitos foram abordados por Santos (2019), Ferreira et al. (2017) e Candau e Sacavino (2013).
No capítulo quarto, Educação à distância (EAD), fez-se uma análise sobre essa modalidade de ensino no Brasil, especificamente sobre o seu crescente aumento na graduação, segundo dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (2017, 2019) e o conceito de EAD na legislação do país. No subcapítulo A EAD na cibercultura foram expostas as mudanças de significado de EAD nas décadas de 1990 a 2000 (ALONSO; SILVA, 2018) e como ela foi se constituindo como elemento da cibercultura (LÉVY, 1999). No subcapítulo EAD: Alienação ou emancipação?, apresentam-se a teoria de formação do sujeito e as práticas pedagógicas emancipatórias para cursos de EAD desenvolvidos por Lapa (2005, 2007).
O capítulo cinco, Procedimentos metodológicos, apresenta a metodologia de estudo de caso de Yin (2005) e a metodologia de estudo de caso comparado de Bartlett e Vavrus (2017).
No capítulo seis, Apresentação dos casos, foram descritos em subcapítulos os seguintes cursos: Introdução crítica à justiça de transição na América Latina: o direito achado na rua (2015); Formação em direitos humanos: entendendo a ditadura e as comissões da verdade (2018); Lugares de Memória e Direitos Humanos no Brasil (2020) e Educação em Direitos Humanos, Memória e Cidadania (2020).
No capítulo sete, Análise dos resultados, apresenta-se um quadro comparativo dos cursos, identificando suas semelhanças e diferenças quanto às variáveis: ano, contexto político/sanitário, instituição responsável pela elaboração do conteúdo, financiamento, público alvo, número de vagas, horas-aula, tempo estimado para completar o curso em meses, plataformas/aplicativos, espaço virtual para diálogo e criação de projeto visando aplicabilidade do conteúdo ensinado.
Por último, no capítulo oito, Considerações finais, apontam-se as reflexões advindas da pesquisa e os desafios para a consolidação do campo de Educação e Justiça de Transição no país”.
A atenção à educação à distância, não é tão só uma questão instrumental, mesmo como razão, é também uma questão política. Acho fundamental esse relevo. Eu próprio atuo nesse campo e participo da mesma ordem de inquietações. Quando da edição da obra, pela Editora UnB – Memória da Educação a Distância na Universidade de Brasília (para consulta à edição conferir: https://livros.unb.br/index.php/portal/catalog/book/49)
pude contribuir, como um dos entrevistados pelas autoras para sustentar minhas considerações relativamente a esse duplo aspecto. O que pode ser aferido no exame da obra, tanto que o livro visa apresentar os sentidos atribuídos e as representações de alguns de seus inúmeros protagonistas sobre a educação a distância na UnB, enquanto um projeto que ainda se encontra em andamento mas que traz reflexões, ainda que ainda parciais, aos projetos de futuro da nossa universidade, certos da enorme contribuição daqueles que viveram intensamente essas experiências.
Em relação ao trabalho aqui Lido para Você, sobre o enlace estabelecido acima, distingo, na Dissertação, a apreensão que a Autora expõe quando examina o Curso Introdução crítica à Justiça de Transição na América Latina: o direito achado na rua (2015), no qual eu próprio logrei imprimir tais caracteres.
Este curso, resume a Autora, “foi criado pela Comissão da Anistia, órgão que, à época, pertencia ao Ministério da Justiça em parceria com a Universidade Nacional de Brasília (UNB) e realizado no período de 28 de setembro de 2015 a 24 de janeiro de 2016, com 120 horas/aula. O curso teve como público-alvo profissionais, estudantes, militantes e interessados no tema e foram disponibilizadas mil vagas, sendo que cerca de 6.500 pessoas se inscreveram. O objetivo foi disseminar o tema da justiça de transição na América Latina na perspectiva do Direito achado na rua. O conteúdo foi apresentado em 14 módulos semanais com o acompanhamento de uma equipe de tutores composta por alunos da pós-graduação em Direito da UNB, funcionários da Comissão de Anistia e outros atores com comprovada experiência no campo de estudos e ações institucionais da justiça de transição.
Os títulos dos 14 módulos do curso foram: 1. Apresentação; 2. Introdução ao Direito achado na Rua e à Justiça de Transição; 3. Sociedade civil e contexto internacional nas ditaduras de segurança nacional da América Latina; 4. Repressão e resistência dos trabalhadores do campo e das cidades; 5. Apoio da imprensa à ditadura e a perseguição contra as mulheres e à liberdade sexual; 6. Justiça de transição, memória e testemunho – a luta pela anistia no Brasil; 7. O conceito de justiça de transição e o direito internacional dos direitos humanos; 8. Justiça de transição, constitucionalismo e legalidade autoritária; 9. Casos paradigmáticos de justiça de transição na Europa e América Latina; 10. O pilar da reparação na justiça de transição brasileira; 11. Comissões da Verdade e sítios de consciência; 12. Justiça de transição e segurança pública no Brasil; 13. Encarceramento, tortura e justiça de transição; 14. Elaboração e entrega do projeto de fim de curso sobre justiça de transição.
Dentre os conteúdos que foram abordados pelo curso, destaca-se que a ditadura afetou a população brasileira de formas distintas, com destaque à população indígena, camponesa e carcerária, além de apontar especificidades da perseguição e tortura relacionadas ao gênero, trazendo reflexões sobre como os resquícios da ditadura continuam se manifestando na atualidade. O curso versou sobre a temática da Justiça de Transição pela perspectiva dos movimentos sociais e reuniu trabalhos abordados na Comissão Nacional da Verdade.
Os textos trabalhados no curso foram compilados e transformados no livro O direito achado na rua: introdução crítica à justiça de transição na América Latina de Sousa Junior (2015). Os alunos aprovados receberam pelo correio uma versão impressa do livro juntamente com o certificado ao concluírem o curso.
As turmas virtuais foram compostas por 50 alunos acompanhados e conduzidos por um ou dois tutores. Cada módulo ofertou de dois a três textos para leitura e um vídeo. Baseado nestes materiais, os alunos deveriam realizar atividades na plataforma moodle que consistiam na elaboração de textos e interação no fórum com outros cursistas e tutores em horários e datas pré-estabelecidos. Houve também comunicação dos tutores com os alunos através de e-mail.
Ao final do curso, o aluno tinha que elaborar um trabalho com intuito de promover uma intervenção concreta na sociedade. A parceria entre a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça e a UNB estabeleceu-se antes deste curso, iniciando em 2008 através do Projeto Marcas da Memória, com o objetivo de resgatar a memória das vítimas e a construção de um acervo de fontes orais e audiovisuais (ABRÃO; TAVARES, 2015).
Importante ressaltar que o este curso foi o primeiro a abordar a temática sobre justiça de transição na modalidade online no Brasil como uma política pública de âmbito federal. Foi realizado uma única vez, após a entrega do Relatório final da Comissão Nacional da Verdade, em um clima de grande tensão em torno da narrativa sobre os fatos ocorridos durante a última ditadura.
Para a elaboração e execução do Curso, participaram duas importantes unidades de pesquisa da UNB: o Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos e o Centro de Educação à Distância. O Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos foi criado em 1986, está vinculado ao Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares e abriga a linha de pesquisa O Direito achado na rua. A expressão o direito achado na rua foi criada pelo jurista Roberto Lyra Filho para designar uma nova forma de utilização do Direito. Para tanto, seus aplicadores deveriam questionar a violência, a injustiça e o formalismo das instituições, proporcionar mudanças estruturais e o acolhimento das demandas coletivas, vindas dos “espaços públicos – a rua – onde se dá a formação de sociabilidades reinventadas que permitem abrir a consciência de novos sujeitos para uma cultura de cidadania e de participação democrática” (SOUSA JUNIOR, 2008, p. 5).
A linha de pesquisa O direito achado na rua da UNB é uma referência nacional e internacional de atuação baseada no tripé ensino, pesquisa e extensão na área jurídica dos direitos humanos. Já o Centro de Educação à Distância é um órgão da UNB que desenvolve e viabiliza ações educativas à distância em diversas áreas do conhecimento desde 1979, sendo pioneiro no Brasil – no nível superior – na oferta de ensino à distância. Em sua fase inicial utilizou-se de correspondências e atualmente faz uso das novas tecnologias de informação e comunicação para a execução de seus cursos.
Para além da capacitação individual dos cursistas, era esperado reflexão sobre o impacto social através da elaboração de um projeto sobre justiça de transição direcionado à própria comunidade e serviu como avaliação final do curso”.
Vale, por tudo, a nota da Autora, constante de seus Agradecimentos: “Para a confirmação de dados colhidos na internet e esclarecimento de dúvidas contei com a disponibilidade de diálogo com José Carlos Moreira da Silva Filho, Talita Rampin, José Geraldo de Sousa Junior e funcionários do Centro de Educação à Distância da UNB pelos dados do Curso Introdução crítica à Justiça de Transição na América Latina: o direito achado na rua”.
De toda sorte, ponho em relevo para acentuar a importância da Dissertação, o que a própria Autora anota em suas conclusões ao advertir para “um cenário de Justiça de Transição reversa (ALMEIDA, 2021) e de impossibilidade da presencialidade física em ambientes educacionais devido à pandemia de Covid-19, os cursos online desempenharam papel contra-hegemônico”. E para dar ênfase aos “espaços de diálogo” que se abriram com os cursos analisados e com a radicalidade dos temas.
Diz ela: “os cursos realizados antes da pandemia realizaram-se de forma assíncrona, na linguagem escrita e dentro da plataforma moodle; enquanto os cursos pós-pandemia utilizaram plataformas de videoconferência e os diálogos eram síncronos com utilização de transmissão audiovisual. Observou-se que os avanços tecnológicos dos meios de comunicação possibilitou uma melhor forma de interação através do diálogo oral. Os cursos pré-pandemia eram oriundos de políticas públicas de estado, criados exclusivamente para o ambiente virtual visando o aprofundamento e ampliação ao Direito à memória e verdade, ao passo que os cursos pós-pandemia foram gestados para serem realizados presencialmente, sem serem políticas públicas estatais e, devido à pandemia, foram transformados na modalidade virtual”.
Intensificando o diapasão, sustenta a Autora: “O tema do Direito à Memória e à Verdade é amplo e percebeu-se a complementaridade dos cursos analisados. Nos cursos pré-pandemia, o enfoque foi no tema da Justiça de Transição e nos cursos pós-pandemia, abordou-se os Lugares de Memória e a Educação em Direitos Humanos. Aqui importa ressaltar a riqueza de possibilidades para se abordar este tema, pois ao analisar os conteúdos dos cursos, eles parecem proporcionar um aprofundamento no tema e indicar o início do campo educativo virtual de Educação para o nunca mais no Brasil, com características emancipatórias ao mesmo tempo que circunscritas ao momento de retrocessos democráticos advindos da própria incompletude do processo de Justiça de Transição do país e do estágio neoliberal do capitalismo”.
Para finalizar: “Todavia, faz-se necessário problematizar que a institucionalização da educação para o nunca mais perpassa uma disputa narrativa sobre o passado do país, em particular sobre a veracidade e as razões das violações de direitos humanos cometidos pelo Estado. Após os trabalhos da CNV, o julgamento da ADPF 153 e a eleição de Bolsonaro, parece ter ocorrido uma mudança em como se aborda este período. Durante a ditadura, a disputa narrativa tinha como mote a negação, por parte dos militares, de torturas e desaparecimentos forçados, o que foi contestado pelas próprias vítimas de tortura e pelos familiares de mortos e desaparecidos”.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
Cadernos do CEAM. Arte e Inovação em Tempos de Pandemia.
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Cadernos do CEAM. Arte e Inovação em Tempos de Pandemia. 1 Lives; 2 Artes Visuais; 3 Artigos; 4 Poesias. Rodolfo Ward Org. Anos XII, nºs 36, 37, 38, 39. Brasília: Universidade de Brasília/CEAM-Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares, janeiro de 2022. Links:
Pelos links se tem acesso às edições completas dos quatro números em que se desdobrou essa edição de Cadernos do CEAM – Arte e Inovação em Tempos de Pandemia. 1 Lives; 2 Artes Visuais; 3 Artigos; 4 Poesias. Rodolfo Ward Org. Anos XII, nºs 36, 37, 38, 39.
Impressionante edição, a cargo de seu organizador Rodolfo Ward. Uma proposta ousada, ele explica, que deriva do projeto “Arte e |Inovação em Tempos de Pandemia”, inicialmente um projeto de lives em meio a pandemia de Covid-19 e que se expandiu para uma publicação com cerca de noventa autores e autoras de diversas áreas de conhecimento e das mais prestigiadas Instituições de Ensino Superior do mundo. Um espaço criado no ciberespaço, estruturalmente pensado de forma transdisciplinar e com caráter inclusivo. Com o objetivo, ele acrescenta, de agregar e gerar conhecimento nas diversas áreas que compõem a heterogeneidade de nossa sociedade, principalmente a brasileira, eixo essencial e foco do trabalho.
O Organizador diz ainda, que todo o processo é desvelado à luz de importantes conceitos teóricos nas esferas da Arte, do Direito, Filosofia, Cultura Tradicional, Desenvolvimento Sustentável, Cultura Digital, Inovação e Serendipidade. Palavra pouco empregada, mas que significa a faculdade ou o ato de abrir-se ou de descobrir, ao caso, coisas agradáveis, inesperadas.
Inscrita na programação do CEAM, a Diretora Viviane de Melo Resende justifica a acolhida à proposta, oferecendo mais que um abrigo institucional, razões epistemológicas para esse apoio, conforme seu texto de fundo: “Arte, Cultura, Ciência e Inovação em Tempos de Pandemia: Reconhecer para Resistir”.
Desdobrado em quatro números para não quebrar a estética e o formato da publicação, os números se sequenciam guardando fidelidade às lives transcritas que deram origem à proposta, e se desdobram conforme os conteúdos poesia, artigos, artes visuais.
O resultado acaba sendo muito denso nesses desdobramentos e na qualidade e qualificação da interlocução que proporciona. Em seu texto a Diretora Viviane Resende fundamenta com razões epistemológico-político o alcance do projeto. Mas ela acrescenta uma nota para a relevância da necessidade de ação. Em tempos sombrios, é sim preciso ação. Como diz Frei Betto, o pessimismo, próprio da razão interpelante, deve ficar para tempos melhores.
Por isso, diz Viviane: “É preciso estar bem para resistir: a resistência não se faz sem alegria, sem poesia, sem arte. A resistência nestes nossos territórios foi sempre luta e dança, coro e riso, roda de samba e de capoeira. Por isso, apesar do presente que assombra, cantamos. Resistir com alegria é o contrário de curvar-se a um presente que assusta. Tampouco diante das ameaças às universidades, às pesquisas e às pesquisadoras nos curvamos”.
Voltando ao Organizador, ele esclarece que “Nas quatro seções que se seguem (aludindo ao conjunto da edição) iremos fazer uma viagem densa por praticamente todos os campos dos saberes e da cultura brasileira. Os autores convidados são grandes nomes do nosso tempo. Pessoas de referência e influência em suas áreas de atuação. As quatro seções que compõem essa obra dialogam entre si e buscam de alguma forma romper com as estruturas e discursos racistas, elitistas, misóginos que impregnam a história da evolução humana e da construção da sociedade contemporânea. É uma tentativa democrática de reconstrução histórica por diversos olhares, vozes, ações”.
São certa de 90 nomes distribuídos conforme seus temas nas quatro seções (volumes). Dispensa-se aqui designá-los. Eles expressam, como diz o Organizador, diversos olhares, vozes, ações. É um convite a uma rica interlocução.
A convite do Organizador Rodolfo Ward, participei logo no início do projeto de live, que uma vez transcrita, resultou no texto lançado no Caderno 1, páginas 46 a 70: “Arte, Direito e Inovação em Meio à Pandemia”. A live, de resto, pode ser conferida no Canal YouTube de O Direito Achado na Rua (www.odireitoachadonarua.blogspot.com), conforme: https://www.youtube.com/watch?v=KqX6b2OukG0.
Recuperei com Rodolfo a transcrição, na forma do documento que serviu à edição. Não vou transcrever o que está disponível pelos links. Mas, para os que não irão ao hiperlink, recorto aqui a pergunta de abertura que me fez o próprio Rodolfo Ward ao abrir a live:
Rodolfo Ward: Hoje é a segunda edição do projeto “Arte e Inovação em Tempo de Pandemia”. É um projeto de extensão aprovado em edital na Universidade de Brasília, e devido ao rápido avanço da covid-19 em solo brasileiro, as pessoas ficaram mais em casa, e a partir disso, propomos a utilização da transdisciplinaridade do conhecimento para a produção de conteúdo audiovisual por meio de lives com pesquisadores, artistas, membros da comunidade tradicional e da cultura popular. Esse projeto busca gerar conhecimento transdisciplinar e disseminá-lo pela sociedade geral e, assim, promover a democratização do conhecimento. Esse pensamento plural é incentivado e desenvolvido no âmbito do mídia LAB/UNB que integra a rede mídia LAB/BR. Nessa edição, nós termos a participação do professor José Geraldo que é ex-reitor da UNB e que é coordenador do projeto, “O Direito Achado na Rua”. O professor acabou de chegar da Bahia também, né (risos). Então, para iniciar, eu vou fazer uma breve apresentação e o senhor continua, então, assim, para Alfredo Pena-Vega, vivemos mais um momento que revela que o modelo hegemônico que vivemos, baseado no sistema econômico está esgotado, a sociedade se mostra inábil em lidar com a crise ambiental. Nossos antepassados legaram às gerações presentes um grande ônus ambiental, crentes que nós, com nossa tecnologia e evolução, pudéssemos acabar com a fome, apartação social e a finitude dos recursos naturais, e agora, passamos por novas crises sanitárias em que é preciso pensar em novas tecnologias sociais. Flusser argumenta que não devemos ser operários da máquina e que devemos clarificar a câmara escura, devemos clarificar o aparelho estatal chamado de universidade, subvertendo dogmas, normas e regras que oprimem a classe artística e a metodologia cientifica também é uma dessa, não “tô” dizendo que não deva ter metodologia cientifica, eu acho que nós devemos pensar novas formas de se pensar isso. Cada vez mais, as relações de poder resultam em relações de opressão, no meu entendimento, a filosofia do Direito achado na rua. Nós “diz” que o Direito emerge, ele surge em todos os espaços sociais, eles criam as leis e um colega seu que eu vi num vídeo, se não me engano, no primeiro do Direito achado na rua, Marcio Oliveira Puguina, fala algo bem interessante, ele diz que o Direito nasceu com uma única forma, que é dar a cada um o que é seu, ou defender isso, né, mas se vivemos em uma sociedade onde cada vez mais poucos detém muito e muitos não detém nada, significa dar aos ricos a sua riqueza e aos pobres a sua miséria. Então, assim, eu faço dois questionamentos “pra” passar a bola “pra” você, “pra” você me corrigir ou dar continuidade no pensamento. A arte é uma saída pré-dogmática do direito nas universidades? E a outra é, a arte aliada ao Direito podem construir juntas novas realidades, novas tecnologias sociais e novas formas de sociedade?
Logo a minha resposta:
José Geraldo: Então, eu agradeço o convite, eu vejo que esse projeto se insere na proposta Universidade de Brasília de apoiar iniciativas que se insiram nas ações universitárias nesse contexto de distanciamento que a pandemia provoca e, já de saída, colocando um duplo enfrentamento: o primeiro é lidar e vencer com o apoio da própria universidade essa política ou necrocropolítica que tem estrangulado a instituição, que tem submetido a instituição a uma propaganda de desqualificação. Dois exemplos: o primeiro é o fato de que, recentemente, se anunciou através das agências de fomento que não haveria mais financiamento das atividades de ciências humanas, sociais, quer dizer, se nós agora, nessa inciativa, dependêssemos dessas agências estaríamos frustrados. Felizmente, temos uma universidade autônoma, que pode fazer a gestão do seu orçamento e a nossa UnB e, imagino, a própria Universidade Federal de Goiás, pode orientar seus recursos e ela foi capaz de criar e manter financiamentos próprios “pra” manter os estudos em humanidades e artes, como referências igualmente prioritárias no ambiente universitário. Aliás, a nossa universidade é a mais mencionada ao ser hostilizada na linguagem das autoridades da área governamental da mais alta posição ao Ministério da Educação e soube reagir, e aí eu queria dizer que isso se deve à nossa reitora, à professora Marcia Abrão e ao Colegiado que a apoia. Nesse contexto de diferenças, ainda mantemos um espaço que é plural, mas que sabe se colocar convergentemente, em defesa da instituição. Então, esse é o primeiro dado importante que eu louvo de se manter iniciativas como essa e de poder contar com uma universidade altiva que é ciosa de sua vocação e de seu mandato social e de poder contar com o que as universidades recebem legado, a autonomia, que as singularizam ao longo de quase mil anos só em contexto ocidental, porque as universidade orientais ainda são mais antigas. A outra questão é que nessa condição atual que a gente vivencia, em que o pensamento, a construção de uma crítica universitária são postas na linha de enfrentamento, basta pensar uma reunião ministerial de poucos dias, um descalabro, mas ali também se falava antes da pandemia em poder passar à sorrelfa pela sombra desse processo, e presenciar um ministro dizer exatamente isso, “em passar a boiada”, enquanto a ameaça distrai a atenção, não é isso? Por trás das atenções, que no social estão dirigidas ao bem estar da população, à saúde do povo, naquele ambiente compurscado no qual a malícia anti-povo se insinua. Há poucos meses o Ministério da Educação encaminhou o projeto de lei do “Future-se” e muitos de nós o temos chamado “Fature-se” e eu próprio participei de um grande debate que o instituto Humanitas (Universidade Unisinos) organizou para discutir esse projeto. Ali, ao lado de Roberto Romano, Boaventura de Sousa Santos, Renato Janine Ribeiro e muitos outros, eu também escrevi um texto em que mostro que nesse espaço, o enfrentamento é salvaguardar uma universidade pública bem social, bem público como define a Constituição e não jogá-la numa bacia de negócios para servir a privatização própria do neoliberalismo e que é o projeto da atual governança de tirar a condição social do ensino superior, privatizar a universidade e mercadorizar a educação. Então, eu queria dizer que esses dois balizadores relevam ainda mais a importância de uma iniciativa como essa, que não só salvaguarda o espaço das humanidades dentro das universidades, mas coloca a arte como uma condição valiosa dentro desse contexto. O segundo ponto que eu queria dizer e que até mencionei na chamada da nossa UnB (Secom) dirigida esta live, é que duas motivações são importantes destacar nesse contexto: a primeira é pensar a arte no ambiente universitário como uma estratégia de conhecimento, um processo de racionalidade que foi fundamental na história civilizatória, porque, embora na universidade tenhamos uma atenção muito forte para o modo científico de conhecer, para o paradigma da cientificidade. Essa consideração é claramente moderna porque em toda experiência histórica pré-moderna, a ciência não estava estabelecida e o conhecimento se fazia por outras mediações, uma delas a arte. Se se recupera a fundamentação do conhecimento na pré-modernidade, o fundamento do conhecimento é a arte. Por exemplo, no meu campo o Direito, hoje se diz “pós-modernamente”, que “o Direito é a ciência das normas”. A cientificidade, paradigma que se constitui a partir da Idade Moderna, um período bastante recente na nossa história e que coincide com o começo da industrialização e o processo tecnológico de organizar o social, que são as navegações e os rudimentos do que veio a se chamar de ciência, mas, então, a partir daí, a gente ao se referir ao Direito, dizemos que o Direito é a ciência das normas. Com efeito, se se perguntar a qualquer estudante de Direito o que é o Direito, ele vai dizer que é a ciência que estuda os sistemas normativos, que organiza a vida social. Mas se se perguntasse a qualquer estudante de Direito de um contexto pré-moderno, quer dizer antes do século XV, ele iria dizer que o Direito é a arte do justo e do bom. Veja que na condição pré-moderna, a arte era o medidor do processo do conhecimento. Aristóteles, ao conceituar Lógica alude ao modo de conhecer e a arte de aplicar o conhecimento para demonstrar a verdade. A arte! Então, a arte, claro, se expressa por várias mediações ou intervenções, mas ela é, necessariamente, um modo, uma forma de conhecer, algo que foi a base da racionalidade pré-moderna, e que na pós-modernidade, se a ciência ganhou relevo e com muita luta e sacrifícios – Galileu, Giordano Bruno -, todos os que sofreram a crítica da inovação, vamos ver que o fato desse paradigma, pensando em Thomas Kuhn, ter tornado um referencial de validação a partir da comunidade de sentido, não retirou a arte de seu lugar de racionalidade, porque ela é também um modo de conhecer. Então, eu queria introduzir a minha perspectiva da relação do Direito com a arte, sustentando que não há conhecimento completo sem que todos os modos de conhecer se integrem, sem que se deixarem levar por uma espécie de colonialismo de um modo de conhecer sobre os outros e sem negar reconhecimento ao paradigma da ciência, não perder de vista essa noção de reconhecimento da arte como paradigma. Por isso a importância da universidade apoiar iniciativas como essa, sobretudo a nossa universidade, que nasceu com um projeto complexo. Você citava há pouco Alfredo Pena-Vega com o seu trabalho eloquente de cooperação com Edgar Morin no Observatório das Reformas das Universidades (ORUS) no mundo – dizer que um dos grandes horizontes epistemológicos, é reestabelecer esse diálogo entre saberes. Depois eu queria balizar o que tem importância no que eu acabei de dizer, isto é, retomar essas questões do ponto de vista especifico do Direito e, em seguida, trabalhar um pouco o que você já antecipou de que nós estamos falando em inovação, mas, evidentemente, retirando essa categoria inicial da tecnologia, das invenções, do empreendedorismo, do industrialismo, para usar a expressão que você usou, no sentido de tecnologia social, que é a condição de tornar a nossa vida mais digna, decente, feliz. E ainda sobre esse aspecto, para retomar, poder pensar que o processo de inovação da vida, o processo de construção de sentido para a nossa ação orientada no mundo, requer levar em conta que todos nós partilhamos de uma dupla natureza, tal como indicava o filósofo Ortega y Gasset. Dizia ele que nós nos constituíamos de uma dupla natureza: a primeira condição é a nossa vinculação a uma natureza enquanto parte da estrutura física do mundo, física e natureza são palavras equivalentes conforme o latim e o grego; mas ele dizia também que nós participamos de uma segunda natureza, que é uma natureza artificial, uma vida construída, uma vida que tem um grau natural no sentido de que faz parte do nosso modo de ser, mas é uma invenção da nossa consciência, a natureza como “vida inventada” que, ainda que possa ter um grau artificial de engajamento e seus artefatos, todavia, nos constituem porque esse modo de ser vai se inserir na nossa condição de interação social pela cultura. E a cultura, diferente da natureza, é essa invenção da nossa vida. Assim, eu e, mais O Direito Achado na Rua.
Referência de um esforço que a todos mobiliza, a obra no seu conjunto tenta vencer a obscuridade que o sombrio da conjuntura lança sobre nossas condições de discernimento. Visa a vislumbrar por entre, conforme diz Boaventura de Sousa Santos, a trágica transparência do vírus, o ponto de partida está em que “debates culturais, políticos e ideológicos do nosso tempo têm uma opacidade estranha que decorre da sua distância em relação ao quotidiano vivido pela grande maioria da população, os cidadãos comuns– «la gente de a pie», como dizem os latino-americanos. Em particular, a política, que devia ser a mediadora entre as ideologias e as necessidades e aspirações dos cidadãos, tem vindo a demitir-se dessa função. Se mantém algum resíduo de mediação, é com as necessidades e aspirações dos mercados, esse mega cidadão informe e monstruoso que nunca ninguém viu nem tocou ou cheirou, um cidadão estranho que só tem direitos e nenhum dever. É como se a luz que ele projeta nos cegasse. De repente, a pandemia irrompe, a luz dos mercados empalidece, e da escuridão com que eles sempre nos ameaçam se não lhe prestarmos vassalagem emerge uma nova claridade. A claridade pandêmica e as aparições em que ela se materializa. O que ela nos permite ver e o modo como for interpretado e avaliado determinarão o futuro da civilização em que vivemos. Estas aparições, ao contrário de outras, são reais e vieram para ficar”. (A Cruel Pedagogia do Vírus. Boaventura de Sousa Santos. Coimbra: Edições Almedina, 2020), e sobre esse texto, o meu Lido para Você: http://estadodedireito.com.br/a-cruel-pedagogia-do-virus/.
É que nos lembra, insistindo Viviane Resende em seu texto de apresentação: “A obra Arte e Inovação em Tempos de Pandemia é um bloco de sensações e sentimentos que no primeiro momento não pode ser dividido. A potência dela está aí. E por isso atraiu tantas pessoas interessantes. Estamos inovando, todo o projeto é fundamentado na cultura da inovação, na necessidade de se criar novas formas de pensar, novos produtos culturais e novas realidades. Está além do pensamento científico e adentra o artístico e filosófico”.
Mas sempre, eu disse aqui também num Lido para Você – http://estadodedireito.com.br/direitos-humanos-e-covid-19/ – sobre obra que co-organizei (DIREITOS HUMANOS E COVID-19. Grupos sociais vulnerabilizados e o contexto de pandemia. Organizadores: José Geraldo de Sousa Junior, Talita Tatiana Dias Rampin e Alberto Carvalho Amaral. Prefácio de Boaventura de Sousa Santos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2021), com o valioso respeito e consideração ao acumulado democrático de políticas públicas e sociais, sobretudo na área de saúde, que desde a Constituição de 1988 foi considerada direito de todos e dever do Estado, por meio de um sistema único de atenção universal mantida pelo orçamento público, portanto, direito e não mercadoria.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.5
Trabalho Decente: Uma Análise na Perspectiva dos Direitos Humanos Trabalhistas a Partir do Padrão Decisório do Tribunal Superior do Trabalho.
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Delaíde Alves Miranda Arantes. Trabalho Decente: Uma Análise na Perspectiva dos Direitos Humanos Trabalhistas a Partir do Padrão Decisório do Tribunal Superior do Trabalho. Dissertação de Mestrado. PPGD-Programa de Pós-Graduação em Direito. Brasília: Universidade de Brasília/Faculdade de Direito, 2022, 151 p.
Com a melhor disposição, animado pela leitura desse trabalho valioso, participei da Banca Examinadora da Dissertação de Delaíde Alves Miranda Arantes, cuidadosamente orientada pela professora Gabriela Neves Delgado, da Faculdade de Direito – UnB; professora Kátia Magalhães Arruda, da UDF e pelo professor Antônio Escrivão Filho, da UnB.
Aliás, comecei a leitura pelos agradecimentos. Algo que para mim diz muito sobre o entretexto de um autor, não tivesse já assinalado Roberto Lyra Filho, ser a filosofia conscientização e crítica dos subentendidos (Filosofia Geral e Filosofia Jurídica, em Perspectiva Dialética in Palácio, Carlos. Cristianismo e História. São Paulo: Edições Loyola, 1982, p. 161). Aí se vê no percurso da Mestranda que o término de sua obra se deve ao seu bom combate, tanto quanto a sua fé.
Os Agradecimentos expõem essa nota de subjetividade atenciosa, ninguém é esquecido, desde a mais simples copeira e do motorista, aos seus pares e professores. A Euzilene Moraes, nota obrigatória de agradecimento em toda dissertação ou tese defendidas na Faculdade de Direito da UnB. Mas é também uma nota de identidade, uma espécie de dize-me com quem andas…
Pontos de confluência de anotações comuns. Antigos alunos, Ricardo José Macedo de Britto Pereira, Marthius Sávio Lobato, Talita Rampin; colegas de percurso acadêmico, Maria de Assis Calsing, foi minha colega de mestrado; outros professores ou magistrados guardo reservas de admiração Carol Proner, Cristina Peduzzi, Maria Elizabeth Lobo, Valdete Severo, José Luciano de Castilho Pereira, este com muita saudade. Anoto entre essas referências, Haroldo Lima, constituinte destacado, antigo cliente entre aqueles parlamentares aguerridos que precisaram de assistência nos tempos duros da Lei de Segurança Nacional, em minha prática no Escritório Sigmaringa Seixas (o pai), não fosse Haroldo ainda sobrinho de Anísio Teixeira. Aldo Arantes, liderança da UNE, também parlamentar incisivo. Aldo talvez não lembre, mas acompanhei seu depoimento, juntamente com os de dona Elza Monnerat, José Genoino, Criméia Teles, em vara federal em Brasília, na ação de reparação promovida pelos familiares dos mortos e desaparecidos da Guerrilha do Araguaia, advogado constituído na causa, capitaneada por meus colegas Luis Eduardo Greenhalgh e Sigmaringa Seixas (o filho). E claro, todos os Delgados, Gabriela, Maurício e Lucília, pela visão humanista da História, do Direito e do Direito do Trabalho, agora também carregada de poesia.
Recolho o Resumo do trabalho e que juntamente com a Introdução, bem o designam:
“A pessoa humana na centralidade do trabalho, como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, a relevância da Organização Internacional do Trabalho na vanguarda da elaboração e aprovação de normas de direitos humanos trabalhistas e o papel do Judiciário Trabalhista brasileiro de concretizar o objetivo de justiça social foram os motivos da opção pela pesquisa do Trabalho Decente, na perspectiva dos direitos humanos trabalhistas, a partir do padrão decisório do Tribunal Superior do Trabalho. O estudo contempla a análise dos direitos humanos trabalhistas na perspectiva da OIT como base conceitual para compreender a criação, o conceito e a evolução do Trabalho Decente. Ainda investiga como o Tribunal Superior do Trabalho projeta, em seus acórdãos, as normas internacionais de direitos humanos trabalhistas, em especial a Agenda do Trabalho Decente, de 1999. A dignidade da pessoa humana, alçada ao status de princípio na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, e o Trabalho Decente, constante da agenda da Organização Internacional do Trabalho, acentuaram o protagonismo dos direitos humanos trabalhistas. É certo que alguns movimentos da esfera global, com reflexos em todas as nações, serviram de incentivo e pressão para as ações dos organismos internacionais. Nessa senda, pode ser mencionado o crescimento do projeto neoliberal para o estabelecimento do Estado mínimo, a ofensiva do mercado impondo suas regras de precarização do trabalho e de aumento desmedido dos lucros, entre outros.
Nesse cenário, as desigualdades sociais e econômicas foram se tornando cada vez mais acentuadas, principalmente com os avanços tecnológicos e seus reflexos no mundo do trabalho, a globalização sem limites e as sucessivas crises política, econômica e sanitária. Na esfera nacional, o Brasil está experimentando nos últimos anos, principalmente a partir de 2016, o agravamento da precarização das condições de trabalho gerada pela Lei nº 13.467/17 e por outras normas internas, além dos ataques ao Direito e à Justiça do Trabalho. Desse modo, é de grande relevância a pesquisa sobre o sistema de justiça, especialmente a Justiça do Trabalho, que instrumentaliza o Direito do Trabalho. Ao Tribunal Superior do Trabalho cabe uniformizar a jurisprudência em nível nacional e dar concretude às normas internacionais destinadas a assegurar o Trabalho Decente e conferir proteção à dignidade da pessoa humana trabalhadora”.
Para visualizar o conteúdo do trabalho, o sumários é sugestivo. Começa como uma Introdução, seguindo-se os capítulos. O primeiro, com a Análise Panorâmica dos Direitos Humanos Trabalhistas na Perspectiva da Organização Internacional do Trabalho (OIT); desdobrado 1.1 – na Análise Panorâmica dos Direitos Humanos; 1.1.1 Direitos Humanos: Origem e Abrangência; 1.1.2 Direitos Humanos e Direitos Fundamentais: Diferenciação e Status; 1.1.3 Eixos Jurídicos de Proteção aos Direitos Humanos; 1.2 Análise Panorâmica dos Direitos Trabalhistas;1.2.1 Nota Introdutória; 1.2.2 A Dignidade da Pessoa Humana como Núcleo Paradigmático dos Direitos Humanos e dos Direitos Fundamentais Trabalhistas; 1.2.3 Os Contornos do Estado Constitucional Contemporâneo e a Proteção aos Direitos Humanos e Fundamentais Trabalhistas; 1.3 A OIT e seu Contributo para a Efetivação de um Patamar Civilizatório de Direitos Humanos Trabalhistas; 1.3.1 Nota Introdutória; 1.3.2 A OIT e sua Contribuição para a Institucionalização e o Fortalecimento do Direito do Trabalho Brasileiro.
Logo o capítulo 2 – Trabalho Decente: Uma Análise na Perspectiva dos Direitos Humanos Trabalhistas; 2.1 Criação, Conceito e Evolução da Agenda do Trabalho Decente da Organização Internacional do Trabalho (OIT); 2.2 Trabalho Docente como Marco Civilizatório; 2.3 Agenda Brasileira para o Trabalho Decente; 2.4 O Trabalho Decente e os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) da Organização das Nações Unidas (ONU).
O Capítulo 3 aborda O Trabalho Decente na Construção Jurisprudencial do Tribunal Superior do Trabalho (TST); 3.1 Tribunal Superior do Trabalho (TST): Instância Suprema da Justiça do Trabalho e Órgão Uniformizador da Jurisprudência Nacional; 3.2 O Papel do TST na Interpretação e na Aplicação do Direito em Conformidade com o Estado Democrático de Direito e como o Referencial de Direitos Humanos; 3.3 Riscos e Reflexos da Reforma Trabalhista para o Trabalho Decente; 3.4 Controle de Convencionalidade: Aplicação das Normas Internacionais de Direitos Humanos Trabalhistas e o Trabalho Decente na Jurisprudência do TST; 3.5 Pesquisa Jurisprudencial: Análise da Projeção do Trabalho Decente na Jurisprudência Consolidada do Tribunal Superior do Trabalho. Neste capítulo, ainda, os temas metodológicos da pesquisa: 3.5.1 Metodologia de Pesquisa: Apresentação do Problema e das Hipóteses;3.5.2 Da Pesquisa Quantitativa; 3.5.3 Da Pesquisa Qualitativa.
Finalmente, a Conclusão e as Referências.
De que cuida a dissertação, a partir do Sumário, a própria Autora indica. “No primeiro capítulo, será realizada uma análise panorâmica dos direitos humanos trabalhistas na perspectiva da OIT, sendo estudadas a origem e a abrangência dos direitos humanos e dos direitos fundamentais. Segue-se a análise dos direitos humanos trabalhistas, em especial sob a ótica da dignidade da pessoa humana como núcleo paradigmático dos direitos humanos e dos direitos fundamentais trabalhistas. Serão analisados também o papel e a contribuição da OIT para a efetivação de um patamar civilizatório de direitos humanos trabalhistas.
O rico e amplo referencial bibliográfico disponível sobre os temas desta dissertação possibilitou a contextualização social, jurídica, política e econômica, desde a criação da OIT no remoto ano de 1919, seguida da Declaração de Filadélfia, em 1944, e da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948. Completam o quadro histórico dos temas aqui abordados a Carta Internacional de Direitos Humanos Trabalhistas, constituída pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), de 1948, e pelo Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos de 1966, bem como a Constituição Federal Cidadã de 1988, marco da constitucionalização dos direitos sociais e trabalhistas no Brasil.
Os direitos humanos, entre eles os trabalhistas, percorreram esse caminho até encontrar sérios obstáculos: o projeto neoliberal e a globalização “sem peias”, com as tentativas desesperadas de determinados segmentos da sociedade em percorrer às pressas o caminho de volta, com o estabelecimento do Estado Mínimo e a redução de garantias constitucionais e universais da pessoa humana trabalhadora.
Após a análise dos direitos humanos trabalhistas na visão da OIT, esta pesquisa passa ao tema do Trabalho Decente no capítulo segundo, em que se abordará a criação, o conceito e evolução da Agenda do Trabalho Decente, da Organização Internacional do Trabalho.
No plano internacional, as Convenções, Declarações e demais documentos da OIT se apresentam na pesquisa com importante papel na análise do Trabalho Decente como marco civilizatório; e, no plano interno, a Agenda Brasileira do Trabalho Decente colabora no estudo da temática. Os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), da Organização das Nações Unidas (ONU), composto por 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) também são investigados, mais especificamente o ODS nº 8, que se relaciona ao Trabalho Decente e ao crescimento econômico.
A Agenda do Trabalho Decente é um programa que visa ao reconhecimento do Trabalho Decente como um objetivo global, subdividido em ações tendentes a propiciar a todos os homens e mulheres do mundo o direito a um trabalho em condições de liberdade, igualdade, segurança e dignidade. Nesse contexto, será analisada a atuação da OIT, que redirecionou sua produção normativa passando a dar mais ênfase à cooperação internacional em torno do Trabalho Decente. Também será analisado o Relatório Trabalhar para um Futuro Melhor, elaborado pela Comissão Mundial sobre o Futuro do Trabalho, designada pela OIT, que posiciona o Trabalho Decente como marco civilizatório e passa a nortear a ação de todos os países-membros da OIT.
No terceiro capítulo, será investigado o papel do Tribunal Superior do Trabalho na interpretação e na aplicação do Direito, em conformidade com o Estado Democrático de Direito e com o referencial de direitos humanos trabalhistas. Para tanto, será analisado o controle de convencionalidade das normas internas, a aplicação das normas internacionais de direitos humanos e trabalhistas e o Trabalho Decente na jurisprudência do TST.
Note-se que a apreciação da convencionalidade das normas internas tem adquirido maior importância frente ao avanço do neoliberalismo, ao crescimento das novas tecnologias e ao aprofundamento da desigualdade. Não obstante, observa-se que o TST tem utilizado raramente o importante instrumento de controle de convencionalidade.
De forma a dar maior concretude à presente dissertação, também foi apresentado o problema de pesquisa: “a jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho contempla as normas internacionais de direitos humanos trabalhistas, em especial a Agenda do Trabalho Decente (1999) da OIT, como fundamento para a concretização do Trabalho Decente no Brasil?”. Foi adotado o procedimento de pesquisa documental, tendo sido analisados os textos dos acórdãos do TST tratando sobre o tema do Trabalho Decente. Foi utilizado, ainda, complementarmente, como método científico, o método hipotético-dedutivo. O propósito é identificar na jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho, em votos pesquisados para esse fim, a existência do argumento Trabalho Decente nas ementas e na íntegra dos votos, de maneira a possibilitar o reconhecimento da influência do conceito cunhado pela OIT na Agenda do Trabalho Decente, para a construção da jurisprudência da mais alta Corte Trabalhista do País, o TST.
A partir desses dados, é apresentado o projeto de pesquisa quantitativa e qualitativa, considerando o universo de acórdãos identificados com menção ao termo “Trabalho Decente”, na ementa do voto ou na sua fundamentação, em especial os que contêm o referido termo em suas ementas. Os votos pesquisados encontram-se registrados em quadros, tabelas e gráficos.
Finalmente, considerando os fundamentos teóricos estudados e os dados apresentam-se as conclusões da análise na perspectiva dos direitos humanos trabalhistas, a partir do padrão decisório do Tribunal Superior do Trabalho para a concretização do Trabalho Decente no Brasil”.
Li com bastante interesse a Dissertação, tanto mais que ela traz como tema de estudo uma questão para a qual orientei minha atenção há um pouco mais de tempo. Com efeito, por volta de 2010, por coincidência quase ao mesmo tempo, me engajei em dois eventos que guardam estreita relação no tocante às condições de desenvolvimento humano com justiça e dignidade. Deles fiz registro que agora recupero para o diálogo com o tema examinado na Dissertação (Trabalho Decente e Política de Direitos (Revista do Sindjus DF Ano XVIII – nº 69, Outubro de 2010).
O primeiro desses eventos, promovido pela Secretaria de Recursos Humanos do Ministério do Planejamento, mais precisamente pela Ouvidoria do Servidor Público, teve como objetivo central a implementação das diretrizes elaboradas pelo Fórum de Gestão da Diversidade na Administração Pública Federal, visando o combate ao preconceito e à discriminação nas relações de trabalho.
Foram convidados, para essa discussão, dirigentes, técnicos de ouvidorias e servidores incumbidos da gestão de pessoas no serviço público. Diferentes atores unidos pelo desafio comum de refletir sobre o tema da diversidade identitária no ambiente de trabalho, com foco nas exigências que se colocam para administrar e fazer mediações não discriminatórias num contexto de afirmação de políticas de direitos.
Basta ver as exigências atuais de inclusão decorrentes da promulgação do Estatuto da Igualdade Racial e aquelas originadas das várias edições do Programa Nacional de Direitos Humanos relativas a mulheres, idosos, portadores de necessidades especiais e integrantes de grupos LGBT para perceber a centralidade desse tema. Essas políticas precisam ser compreendidas e devem ser operacionalizadas como elementos norteadores de uma gestão orientada para pôr termo e abrir condições de superação às suas formas correntes de assédio moral e abuso de poder.
No centro dessa iniciativa, o que se vê é um elemento que ganhou relevância com o conceito de trabalho decente: a designação da igualdade de oportunidades e de enfrentamento a todas as formas de discriminação no ambiente de trabalho.
O segundo evento ao qual me referi inicialmente compartilha dessa preocupação. Foi promovido pelo Tribunal Superior de Trabalho (TST), já então com o objetivo de disseminar informações da Comissão de Peritos em Aplicação de Convenções e Recomendações da Organização Internacional do Trabalho (OIT), e assumiu também a dimensão de um Fórum Internacional sobre Direitos Sociais, com a designação de Trabalho Decente e Desenvolvimento Sustentável.
Ainda que não explicitamente estabelecidas, as referências comuns aos temas formulados nos dois eventos decorreram da definição que a OIT propõe para trabalho decente, entendido como aquele adequadamente remunerado, exercido em condições de liberdade, equidade e segurança, capaz de garantir uma vida digna. Por essa razão, como se destacou ao longo do evento, o trabalho decente é condição fundamental para a superação da pobreza, a redução das desigualdades sociais, a garantia da governabilidade democrática e o desenvolvimento sustentável. Não por outra razão a Autora associa seu enquadramento do tema também aos objetivos do milênio, conforme a Agenda das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável.
No Brasil, o trabalho decente passou a ser um compromisso assumido entre o governo e a OIT, com a assinatura, em 2003, de um Memorando de Entendimento que prevê o estabelecimento de uma Agenda Nacional de Trabalho Decente. Nessa agenda, pontos comuns concertados em todo o mundo seguem a orientação pactuada segundo quatro eixos centrais: a criação de emprego de qualidade para homens e mulheres, a extensão da proteção social, a promoção do diálogo social e o respeito aos princípios e direitos fundamentais no trabalho, expressos na Declaração dos Direitos e Princípios Fundamentais no Trabalho da OIT, adotada em 1998.
É este último aspecto que leva a impulsionar uma política de direitos, atribuindo ao trabalho decente o alcance de trabalho justo, à luz dos direitos humanos. Cuida-se de concretizar valores positivados de modo convencional: liberdade de associação e de organização sindical e reconhecimento efetivo do direito de negociação coletiva (Convenções da OIT 87 e 98); eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório (Convenções da OIT 29 e 105); abolição efetiva do trabalho infantil (Convenções da OIT 138 e 182); e eliminação da discriminação em matéria de emprego e ocupação (Convenções da OIT 100 e 111). Mais do que isso, contudo, cuida-se também de assegurar a dimensão emancipatória e dialógica do trabalho decente, como demonstra Eneida Vinhaes Bello Dultra, em dissertação de mestrado defendida na UnB (Cidadania em Diálogo no Estado Democrático de Direito: possibilidade de emancipação em espaço institucionalizado de participação democrática. Experiência do Fórum Nacional do Trabalho).
São temas interperlantes para que, no Brasil, a exemplo do que está a se passar em outros espaços no mundo, se organizem as forças sociais para a necessária reversão das perdas de direitos e sobretudo dos direitos trabalhistas, escopo da agenda neoliberal desdemocratizante e desconstituinte que se implantou no país. É o que, por exemplo, indica João Gabriel Lopes, advogado, coordenador da Unidade Salvador do escritório Mauro Menezes & Advogados e mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília – UnB, ele escreve, “Diante do fracasso das políticas implantadas desde 2017 no Brasil, é indispensável que se pensem estratégias de reversão da perda de direitos, ampliando a participação dos trabalhadores na renda nacional” (https://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/615981-a-necessaria-reversao-da-perda-dos-direitos-trabalhistas-no-brasil).
São tomadas de posição, que desde o momento constituinte brasileiro instaurado com a processo de redemocratização depois do período de exceção implantado com o Golpe de 1964, apontam para o protagonismo dos movimentos sociais, populares e sindicais que definiram o projeto de sociedade desenhado na Constituição de 1988.
Na Introdução do volume 2, da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito do Trabalho, Roberto A. R. de Aguiar e eu, que o organizamos, procuramos convocar um coletivo crítico de pesquisadores e de militantes, motivados por essa perspectiva: “o Direito do Trabalho não pode ser estudado ou praticado sem a constante interligação com o todo social. Isso significa a necessidade de ser abordado de forma interdisciplinar, pois a relação de trabalho é histórica, econômica, cultural, antropológica, psicológica e sobretudo política. Sem a construção de pontes com as ciências que tratam dessas facetas do fenômeno humano corre-se o risco de um reducionismo empobrecedor, que só servirá para enfraquecer a constante busca de relações de trabalho mais livres, mais justas e socialmente mais distributivas em termos de retribuição de salário e acesso aos produtos”.
Avancei um pouco mais na problematização dessas questões, de modo interrogante, quando fui chamado a contribuir para uma obra de celebração da Constituição Comentários Críticos à Constituição da República Federativa do Brasil. Gabriela Barreto de Sá, Maíra Zapater, Salah H. Khaled Jr, Silvio Luiz de Almeida (Coordenadores); Brenno Tardelli (Organizador). São Paulo: Editora Jandaíra (Carta Capital), 2020, com comentário ao artigo 6º da Constituição, a que dei o título de “Direitos Sociais sob Ameaça de Retrocesso?” (conferir a respeito em http://estadodedireito.com.br/comentarios-criticos-a-constituicao-da-republica-federativa-do-brasil/).
Num tempo de globalização econômica, de permanente revolução tecnológica, em que a criação de emprego e o próprio emprego perdem, aparentemente, o seu vínculo finalístico com o processo de criação social de riqueza, a ideia do trabalho como centralidade do sistema de produção e eixo da solidariedade democrática, passou a ser uma ideia vulnerável.
O trabalho havia sido, durante a construção da modernidade capitalista e do consenso liberal, o fator ético do próprio contrato social e a condição de acesso à cidadania e aos direitos. De fato, ao longo do século XIX e durante a segunda metade do século XX, as lutas operárias se constituíram um catalisador de conquistas sociais e o protesto operário foi, em grande parte, o garantidor da universalização de direitos civis e políticos e de conquista de novos direitos, não somente vinculados ao mundo do trabalho, mas também econômicos e sociais. Não apenas específicos para os coletivos de trabalhadores, mas universalizáveis, na sua expressão própria de direitos humanos.
Num sistema de produção e distribuição da riqueza social globalizados, com mercados livres de controles e com tecnologias que criam riquezas, mas não empregos, o trabalho entrou num nível de segmentação e de fragilização organizativa, comprimido num sistema regulatório que o fragiliza e enfraquece suas formas de organização. Estas condições, diz Boaventura de Sousa Santos, levam a uma lógica de exclusão, facilitada por mecanismos lenientes de flexibilização de garantias, levando a que, em muitos países, a maioria dos trabalhadores entrem no mercado de trabalho já desprovidos de qualquer direito.
Por essa razão, Boaventura de Sousa Santos indica que o direito e a redescoberta democrática do mundo do trabalho são fatores cruciais para a construção de novas sociabilidades, resgatando a globalização para a solidariedade e a produção da riqueza social para uma lógica de distribuição inclusiva.
É claro que essa tarefa não se realiza sem se conceber círculos amplos de alternativas e de estratégias, como por exemplo, o Fórum Social Mundial, realizado em Porto Alegre, com a realização temática neste ano de 2022, na forma de um Forum Social Mundial Justiça e Democracia, ainda com a sua projeção para um novo mundo possível. Mas não se realiza, também, sem um repensar das estratégias sindicais, mais politizadas na configuração de seus antagonismos sociais, mais conscientes do alcance internacional de suas reivindicações, mais engajadas na condição civilizatória das lutas que devam ser travadas por um mundo melhor, no qual, como diz Sousa Santos, nada que tenha a ver com a vida dos trabalhadores, mas também dos que não são trabalhadores de outros grupos ou movimentos sociais, seja deixado de fora de sua pauta de direitos.
A questão se coloca, atualmente, quando se trata de saber se os operadores e os agentes políticos estarão à altura das expectativas civilizatórias que os desafiam, no plano constitucional e no plano convencional (para a salvaguarda de direitos)? Nessa quadra dramática de interpelação a um paradigma civilizatório, serão alcançados nos seus misteres para, com a tempestade que desaba sobre o mundo, limpar “a maquilhagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso «eu» sempre preocupado com a própria imagem; (e deixar) a descoberto, uma vez mais, aquela (abençoada) pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos”, como exorta o Papa Francisco em sua Homilia Adoração do Santíssimo e Benção Urbi et Orbi, pronunciada em seu exemplar distanciamento social na grande praça de São Pedro, totalmente vazia, em 27 de março de 2020?
Será o Direito, realmente Direito se, como exortou Francisco, não for “capaz de resgatar, valorizar e mostrar como as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns (habitualmente esquecidas), que não aparecem nas manchetes dos jornais e revistas, nem nas grandes passarelas do último espetáculo, mas que hoje estão, sem dúvida, a escrever os acontecimentos decisivos da nossa história: médicos, enfermeiros e enfermeiras, trabalhadores dos supermercados, pessoal da limpeza, curadores, transportadores, forças policiais, voluntários, sacerdotes, religiosas e muitos – mas muitos – outros que compreenderam que ninguém se salva sozinho”, e operar para realizar e ser instrumento por meio da eficácia horizontal dos direitos humanos nas relações justrabalhistas, quando o horizonte civilizatório sempre se moveu pela concretização dos ideais de igualdade material, de democracia e de justiça social, com a consolidação do valor trabalho (digno) ancorado na centralidade da pessoa humana e sua dignidade.
Uma resposta já se apresenta de imediato, procedente daquela mesma fonte bi-centenária que expressamente inspirou a constituição do campo dos direitos sociais e do trabalho e a formação da OIT, a Rerum Novarum. Em Carta aos Movimentos Sociais no domingo de Páscoa (12/4) exortou o Papa Francisco: “Talvez seja a hora de pensar em um salário universal que reconheça e dignifique as tarefas nobres e insubstituíveis que vocês realizam; capaz de garantir e tornar realidade esse slogan tão humano e cristão: nenhum trabalhador sem direitos. Também gostaria de convidá-los a pensar no “depois”, porque esta tempestade vai acabar e suas sérias consequências já estão sendo sentidas. Vocês não são uns improvisados, têm a cultura, a metodologia, mas principalmente a sabedoria que é amassada com o fermento de sentir a dor do outro como sua. Quero que pensemos no projeto de desenvolvimento humano integral que ansiamos, focado no protagonismo dos Povos em toda a sua diversidade e no acesso universal aos três T que vocês defendem: terra e comida, teto e trabalho”.
Que tarefa! Se a Constituição não é só o texto, mas como diz Canotilho, a disputa narrativa para a sua concretização, ao fim e ao cabo, é estabelecer disposição de posicionamento crítico para que não nos deixemos enredar nas armadilhas de qualquer tipo que permeiam essa disputa, contrapondo hostes conservadoras e hostes progressistas pelo menos. No campo do Judiciário e no roteiro da Dissertação, uma dessas armadilhas pode ser, lembrou-se na arguição, incidir numa inversão que pode ter sido apreendida no seu escopo, qual seja, tomar a perspectiva dos direitos humanos trabalhistas a partir do padrão decisório do Tribunal Superior do Trabalho, ao invés de circunscrever o padrão decisório a partir dos direitos humanos, ainda que balizados pelos estandares das cortes internacionais.
Em qualquer caso, é o que já se começa a constatar em rearranjos políticos que buscam frear a voragem neoliberal, conforme exorta o Papa Francisco, na sua atitude contra essa descartabilidade do humano nas relações de trabalho. Na mensagem do Papa ao IV Encontro Mundial dos Movimentos Populares, 16 de outubro de 2021, ele afirma de modo contundente: “Este sistema, com sua lógica implacável de ganância, está escapando a todo domínio humano. É hora de frear a locomotiva, uma locomotiva descontrolada que está nos levando ao abismo. Ainda estamos em tempo.” – (https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2021-10/papa-francisco-mensagem-movimentos-populares.html).
Mas também no plano político. Assim é que na Espanha, nesse começo de 2022, foi revogada a reforma trabalhista que precarizou trabalho e não criou empregos. Conforme amplamente divulgado, entre outros – https://www.brasildefato.com.br/2022/01/03/espanha-revoga-reforma-trabalhista-que-precarizou-trabalho-e-nao-criou-empregos – “a reforma trabalhista da Espanha de uma década atrás foi uma das “inspiradoras” da “reforma” feita no Brasil em 2017, sob o governo de Michel Temer. Lá como aqui, o pretexto de baratear as contratações para se criarem mais empregos fracassou. Isso porque, a principal consequência foi a precarização do trabalho e a criação de vagas mal remuneradas, com menos direitos e condições ruins de trabalho. Dez anos depois, a Espanha volta atrás. O decreto de 30 de dezembro atende ainda a um compromisso do primeiro-ministro Pedro Sánchez com a Comissão Europeia, para garantir a próxima parcela de fundos da União Europeia. Atualmente, o país conta com taxa de desemprego de 14,5%, uma das mais altas do bloco econômico. O principal objetivo da nova reforma espanhola é acabar com abuso de contratações temporárias, que hoje responde por mais de um quarto das ocupações no país. A ideia é estimular a contratação por prazo indeterminado, que dão mais segurança aos trabalhadores e, portanto, à economia. Além disso, a nova regra extingue a chamada contratação “por obra ou serviço”, equivalente ao “trabalho intermitente” da reforma de Temer”.
Tomando por base a pesquisa, e uma das conclusões da Dissertação, segundo a qual “A análise do Trabalho Decente na construção da jurisprudência do TST está inserida no contexto da importância que se dá, principalmente na atualidade, ao seu papel de uniformização da jurisprudência nacional. Mormente se se considerar que o Brasil é um país de grande dimensão geográfica e com enormes diferenças de ordem social, econômica e política, atraindo a atenção para o mundo do trabalho em suas mais diversas nuances. O interesse pela pesquisa sobre o padrão decisório do TST, na perspectiva dos direitos humanos trabalhistas é relevante, tanto do ponto de vista de investigação sobre como tem evoluído a jurisprudência em relação ao tema, quanto da perspectiva de chamar a atenção para a importância do TST integrar ao padrão de suas decisões os direitos humanos trabalhistas”, volta-me a inquietação sobre esperar do sistema de justiça e do próprio perfil de seus principais agentes o assumirem as condições político-jurídicas para realizar em aplicação cotidiana a promessa convencional e constitucional de realizar os direitos humanos trabalhistas.
De um lado, o limite cultural que circunscreve, em modo hegemônico, o paradigma do positivismo jurídico que está na base da formação desses operadores, o que levou o então presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o brasileiro Cançado Trindade, professor aposentado da UnB, a considerá-lo o principal obstáculo à integração no direito nacional das normas cogentes de direitos humanos inscritas nas convenções e nos tratados (Caso Vllagrán Morales y Otros – Caso de los Niños de la Calle, 19/11/1999), conforme anotamos Antonio Escrivão Filho e eu em nosso Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2015, p. 199-200), texto, aliás, constante do rol da excelente bibliografia consultada pela Autora. Do mesmo modo o projeto constituído em ítem programático do Ministro Lewandowisk para sua gestão na presidência do Supremo Tribunal, vencer o atraso de formação dos magistrados brasileiros no tema direitos humanos raramente observado nas escolas de direito e de magistratura e a espantosa ignorância de decisões de cortes internacionais de direitos humanos, conhecida por menos de 6% dos juízes brasileiros. No TST, pelo menos, sempre se notou, ao menos em diretrizes de deus mais ilustrados dirigentes, uma atenção não apenas protocolar aos ditames dos direitos humanos trabalhistas. Fico feliz em poder registrar nesse aspecto, a gestão do meu estimado amigo e primo, ao menos por afinidade derivada de sua esposa a Promotora de Justiça, a querida Tania Marinho. Refiro-me ao Ministro e ex-Presidente Francisco Fausto Paula de Medeiros, firme no enfrentamento ao trabalho escravo no Brasil.
De outro lado, o difícil posicionamento do próprio sistema de justiça, quando todos os esforços funcionais de seu aparelhamento, incluindo o financiamento para reformas pensa o aparato mais como garante de negócios do que propriamente de mediadores para a expansão política dos direitos contidos entre os interesses econômicos da acumulação e a difícil afirmação das conquistas sociais por distribuição a partir dos protagonismos desencadeados desde o mundo do trabalho. Também dissemos algo a respeito disso Escrivão e eu. Mas para bem documentar as diretrizes neoliberais nesse campo, vale examinar em pormenor a tese de nossa colega Talita Rampin (Estudo sobre a Reforma da Justiça no Brasil e suas Contribuições para uma Análise Geopolítica da Justiça na América Latina. Brasília: UnB/Faculdade de Direito, 2018), aliás, escolhida como a melhor tese da Faculdade de Direito da UnB, no período 2017/2018, conforme o comitê institucional de seleção.
Serão excessivas essas preocupações? Nos anos sombrios do período autoritário aberto em 1964, não foram incidentais as intervenções do Judiciário para legitimar uma regulação de exceção e destituintes de Direitos. Em Direito do Capital e Direito do Trabalho (Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 1982, p. 41), Roberto Lyra Filho recupera voto escoteiro do Ministro Victor Nunes Leal, no Supremo, em manifestação divergente de disposição da ditadura restritiva ao direito de greve, com base em enunciados de atos institucionais e da lei de segurança nacional, para afirmar a inexigibilidade de outra conduta própria de dirigente sindical, por não poder a lei exigir do operário ser herói ou soldado a serviço do patronato. E agora, o que se vê, em tempos de flexibilização, de precarização, de prevalência do contratado sobre o legislado? Recente decisão do TRT do Maranhão (16ª Região) determinou a prisão de toda a diretoria do Sindicato dos Trabalhadores em Transportes Rodoviários no Estado do Maranhão (STTREMA) em virtude do não atendimento do percentual mínimo de funcionamento determinado pela Justiça do Trabalho durante o movimento grevista. Diante desse fato, os Debates REMIR-ABET nesse ano de 2022 já pautam discutir a *escalada autoritária do Poder Judiciário contra o direito de greve*, com evento marcado para o próximo dia *2/3, às 17h00*. Foram convidados para discutir o tema Marcelo Alves de Brito, Presidente do STTREMA; José Eymard Loguércio, advogado; Cristiano Paixão, professor da UnB e membro do Ministério Público do Trabalho; e Valdete Severo, professora da UFRGS e juíza do trabalho. Convidamos a REMIR e a ABET para participar da discussão, que será transmitida pelo canal da ABET no youtube, pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=P2dhNHp6Vnk.
A Dissertação, contudo, é um alento, pois nos seus fundamentos e nos seus achados, com o cuidado político-jurídico que deve mover o Direito do Trabalho, faz pressupor, que ao menos na UnB – Universidade de Brasília, espaço acadêmico de atuação da Autora, o seu trabalho, juntamente com seus colegas – tal como me referi em resenha sobre o livro de Renata Dutra – poderá servir de horizonte galvanizador para balizar os estudos do campo, notadamente no espaço crítico do Grupo de Pesquisa Trabalho, Constituição e Cidadania que dinamiza juntamente com o protagonismo da Professora Gabriela Delgado e outros notáveis pesquisadores, atenta movimento pendular, diz Gabriela Delgado, em face do qual “os paradigmas do Estado Constitucional Contemporâneo somente podem ser entendidos em movimento pendular, isto é, como estruturas que se transformam por meio de recuos e avanços permanentes dentro da marcha histórica”, permanecendo como horizonte de luta por democracia, cidadania, dignidade humana e trabalho decente.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55
DARCY. Revista de Jornalismo Científico e Cultural da Universidade de Brasília
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
DARCY. Revista de Jornalismo Científico e Cultural da Universidade de Brasília. UnB/SECOM – Secretaria de Comunicação. Nº 26, outubro de 2021 a janeiro de 2022, 51 p. (https://revistadarcy.unb.br/images/PDF/darcy26.pdf)
Já está circulando e é acessível livremente pelo Portal da UnB, na SECOM, o nº 26, da Revista Darcy, em edição comemorativa celebrando centenário de Paulo Freire, no contexto de manifestações de 60 anos da Universidade de Brasília (https://revistadarcy.unb.br/images/PDF/darcy26.pdf).
Não fosse o conteúdo da edição totalmente de homenagem ao Patrono da Educação Brasileira, membro do Conselho Diretor da Fundação Universidade de Brasília na sua fundação e Doutor Honoris Causa da Universidade, o próprio nome da revista já bastaria para expressar o relevo que a UnB atribui a um dos maiores educadores contemporâneos.
Com efeito, no que me diz respeito, a criação da Revista, ali pelos idos do jubileu da Universidade (2012, 50 anos), em meu reitorado, num projeto concebido pelos caríssimos colegas Luiz Gonzaga Motta e Ana Beatriz Magno (à época dirigentes da SECOM), atendia a uma razão simbólica que me levou a fixar no texto de abertura que mantive como Reitor em todos os números publicados em meu mandato: Porque Darcy.
Ali na edição nº 1 justifiquei, lembrando que no discurso que fez no Auditório Dois Candangos, em 16 de agosto de 1985, Darcy Ribeiro, fundador da universidade e inspirador desta revista, antecipou o que deve ser o espírito e a linha editorial de nossa nova publicação: o compromisso com o conhecimento e a disposição inquietante para divulgá-lo, levando em conta que “toda ideia é provisória e tem de ser posta em causa.” “Numa universidade,” ele dizia, “tudo é discutível.”
E continuei: “Esse compromisso não deve, aliás, parecer óbvio. Valho-me novamente de Darcy para acentuar: o ofício do cientista é realizar “um procedimento de desvendamento a fim de revelar a obviedade do óbvio”, tal como indicou no texto célebre que abre o 1º volume da série Encontros com a Civilização Brasileira, a revista que resistiu ao obscurantismo dos anos 60 e ao paroxismo da censura.
Esse compromisso, em uma universidade, é um processo de produção de sentidos, sob a forma de diferentes discursos que se articulam para dar conta do real e explicá-lo, valendose de saberes multi e transdisciplinares.
Eduardo Lourenço, filósofo português, está certo ao articular filosofia e literatura na busca de um modo mais abrangente de conhecimento. Em Fernando Pessoa, objeto de estudo de Lourenço, só esse conhecimento dará conta dos aparentes fragmentos heterônimos do poeta. Para Lourenço, “os avatares de Pessoa representam, ao fim e ao cabo, a tentativa desesperada de se instalar no real.”
No ano em que se comemora o bicentenário de Charles Darwin, Nikolai Gogol, Louis Braille, Edgar Allan Poe é bom ter em mente a disposição inquietante a que alude o antropólogo Darcy Ribeiro. E não perder de vista a consideração que nenhuma forma de conhecimento é, em si mesma, racional.
Somente a integração entre todas elas – ou o seu diálogo – pode conduzir à racionalidade. Deixadas em seu isolamento localizado, cada forma de conhecer produz conhecimento e desconhecimento equivalente.
Se esta revista Darcy puder ser esse espaço de diálogo possível entre saberes e se fazer galeria para o livre trânsito entre conhecimentos que possam se interligar, poderá se constituir numa expressão viva da utopia do fundador que homenageia e se tornar uma possibilidade de recriação, na UnB, da “universidade necessária” por ele projetada”.
A nomeação, recebida com muito acolhimento, tinha em correspondência editorial o mesmo alcance simbólico que, na Fundação Getúlio Vargas, se reconheceu na Revista Getúlio, uma marca emblemática da tradicional instituição. Aliás, no número que inseri para essa visualização, compartilho a distinção que recebi como pauta central da publicação, ênfase para a contribuição que dei ao campo da educação jurídica, forte na GV:
Nessa edição especial (nº 26), as editoras da publicação Serena Veloso e Vanessa Vieira, em Cartas das Editoras, com o título Comunicando Ideias Democráticas e Emancipadoras, justificam e expõem o conteúdo da edição comemorativa:
“Estávamos convencidos, e estamos, de que a contribuição a ser trazida pelo educador brasileiro à sua sociedade em ‘partejamento’ (…) haveria de ser a de uma educação crítica e criticizadora. (…) Uma educação que possibilitasse ao homem a discussão corajosa de sua problemática. De sua inserção nesta problemática.”
A convicção de Paulo Freire em 1964, registrada na obra Educação como prática da liberdade, revela a atualidade de seu pensamento: em tempos de ameaça à pluralidade de ideias e ao debate democrático nos campos educacional, político e social, pensar práticas acadêmicas pautadas numa educação “crítica” e “libertária” é um dos principais desafios lançados às universidades.
O Patrono da Educação Brasileira reuniu contribuições decisivas nessa missão, e a Darcy 26 resgata e faz pulsar seu legado. Endossando inúmeras iniciativas espalhadas mundo afora, bem como as atividades promovidas na Semana Universitária da UnB, este número celebra o centenário de nascimento do educador, datado em 19 de setembro de 2021. Parceria com a UnBTV repercute a temática com a série Memórias de Paulo Freire.
Seguindo a proposição freiriana da construção do conhecimento com protagonismo dos aprendizes, Bianca Mingote, Isabel Nascimento e Robson Rodrigues – estudantes de Jornalismo da UnB – assumem, nesta edição, em parceria com jornalistas da Secretaria de Comunicação, a autoria das três reportagens constituintes do Dossiê (p. 18 a 39), com a tarefa de resgatar a memória e o legado do educador pernambucano.
Retoma-se, assim, característica originária da revista: sua institucionalização no pilar extensionista. A partir do Projeto de Extensão da Revista Darcy, são consolidadas parcerias com escolas públicas de ensino médio do Distrito Federal para promover o diálogo sobre conteúdo da revista e estimular seu uso como material paradidático. A Darcy avança, portanto, em sua missão de democratizar o acesso ao conhecimento científico e fortalecer pontes com a sociedade.
Sob a curadoria da fotógrafa Anastácia Vaz, memórias do trabalho do pedagogo ilustram o Ensaio Visual (p. 42), dedicado à releitura de registros da experiência pioneira com o Método Paulo Freire de alfabetização, em 1963, na cidade de Angicos, no Rio Grande do Norte. As premissas pedagógicas da iniciativa são assunto da A última flor (p. 50), apresentadas pela revisora Vanessa Tavares, que aborda as diferenças entre letramento e alfabetização.
A reportagem Assédio se combate a todo momento (p. 12), da jornalista Thaíse Torres, mostra que o fortalecimento do diálogo e do respeito no convívio coletivo, temática cara ao pedagogo, segue norteando a atuação da UnB.
É também na busca por diálogo e respeito que publicamos a Darcy 26, compartilhando informação de qualidade como recurso contra notícias falsas que fomentam ataques ao legado do educador. Revisitando suas ideias, acreditamos que a comunicação, assim como a educação, ‘não pode temer o debate’”.
Também ponho em relevo o texto da Reitora Márcia Abrhão que tem se distinguido em imprimir a sua gestão da UnB, os enunciados e os valores freireanos, como se percebe em seu programa e na sua escrita confirmando, título de seu depoimento (Seção Diálogos), que Freire Está Entre Nós:
“Nesta edição da revista Darcy que homenageia Paulo Freire em seu centenário de nascimento, a Universidade de Brasília tem a certeza de que as lições do Patrono da Educação Brasileira são eternas. E esse aprendizado faz parte da existência da UnB desde o seu nascimento, há quase 60 anos. Temos compromisso com uma formação crítica e humana. Não nos basta pensar apenas dentro da gaveta da atuação profissional. A autonomia da Universidade é também a autonomia cidadã dos nossos estudantes.
Em seu campo de extensão, a UnB sabe que deve valorizar os saberes das populações com as quais dialoga. A vida prática das comunidades nos importa. E a Universidade não se coloca como detentora unilateral do conhecimento. A Universidade também entende a dimensão da pesquisa como aliada incontornável do ensino.
Reconhecidamente inclusiva, a UnB acredita na excelência acadêmica construída com todos os aspectos sociais particulares ao país em que vivemos, à nação em que estamos inseridos. A oferta de irrestrita educação pública de qualidade é uma premissa com a qual trabalhamos no cotidiano institucional.
A UnB está engajada em trazer para dentro dos seus campi as populações historicamente excluídas do processo educacional. Isso aparece de maneira evidente nos diversos processos de seleção e ingresso na Universidade destinados a preencher vagas por cotas para grupos específicos. Negros, estudantes vindos da escola pública, indígenas, quilombolas e demais povos originários.
Se é preciso dar o exemplo, a UnB apresenta seu pioneirismo. Universidade necessária para chamar a atenção do país para sua diversidade. Universidade atuante para colocar em debate os temas mais importantes para pensar o país – passado, presente e futuro.
A Universidade convoca a consciência crítica de todos e de cada um. Estamos de acordo com Paulo Freire na visão de que o papel do educador está na troca, e não na imposição de cima para baixo, para não incidir no que chama de “consciência bancária” ou incentivar a manutenção de uma “consciência ingênua”.
A UnB é lugar de transformação da realidade. “Na medida em que os homens, dentro de sua sociedade, vão respondendo aos desafios do mundo, vão temporalizando os espaços geográficos e vão fazendo história pela sua própria atividade criadora”, escreve Paulo Freire no livro Educação e mudança.
Os espaços da Universidade estão abertos à reflexão, ao debate, a argumentos e contra-argumentos, ao consenso e ao dissenso. Sempre com ética e estética, o ensino superior também não pode ser apenas “transferência de conhecimento”, sem dúvida. O jogo proposto pela prática da “pedagogia da autonomia” diz respeito a todos nós.
Um dos nossos maiores orgulhos é ver a força e a intensidade crítica dos egressos, que não se curvam com facilidade a exigências injustas do mercado de trabalho e são capazes de tomar decisões que levam em conta efeitos sobre toda a sociedade. O estudante da UnB carrega a marca do comprometimento coletivo.
Paulo Freire é nosso aliado por uma educação cada vez melhor e mais inclusiva. Docentes, discentes e técnicos se irmanam progressivamente na atuação acadêmica cotidiana e se expressam em voz alta na esperança de um futuro de liberdade plena, dentro e fora, com seriedade, solidariedade e “amorosidade”, para lembrar termos caros a Freire e imprescindíveis ao convívio universitário.
Vida longa, linda e livre ao inestimável legado de Paulo Freire”.
Tive a alegria de participar da edição, a partir de entrevista que concedi para os redatores, afinal vertida para matéria de Isabel Dourado e Vanessa Vieira, com ilustrações de Francisco George Lopes, que compõe as páginas 28 a 33 da edição.
A matéria forma o Dossiê crítico-interpretativo da edição. O meu depoimento, juntamente com os de meus colegas Renato Hilário dos Reis, Venício Lima, Francisco Thiago da Silva, se prestaram a apoiar a redação do dossiê por suas autoras, rastreando a formação do pensamento e da prática do grande educador até as contribuições atuais que se projetam de suas concepções.
A dimensão emancipadora está presente na filosofia de Paulo Freire desde suas primeiras grandes obras. É o caso do ensaio Educação como prática de liberdade, publicado em 1967, durante seu exílio no Chile. Nele, o educador sinaliza para uma práxis educativa voltada à justiça social e aos direitos humanos.
“O projeto de Paulo Freire era a fundamentação de um Direito Achado na Rua, o direito que traduz a dimensão autônoma da pedagogia como formação da cidadania e do emancipar-se”, declara José Geraldo de Sousa Junior, docente da Faculdade de Direito da UnB e referência no Direito Achado na Rua – concepção teórica que embasa noções de Direito em conceitos como liberdade e emancipação.
Na visão do professor, a filosofia freiriana diferencia-se pela busca da autonomia dos sujeitos e por ter como núcleo da educação a dimensão conscientizadora. “A metodologia dele leva em conta abrir a consciência dos subalternos para que eles se deem conta das opressões que reduzem sua dignidade e se organizem politicamente para transformar a realidade, autonomizar-se e tornar-se sujeitos”. (p. 30)
Cuidei de fixar esse posicionamento em minha leitura de Direitos Humanos e Educação Libertadora: Gestão Democrática da Educação Pública na Cidade de São Paulo. Paulo Freire. Organização e Notas de Ana Maria Araújo Freire e Erasto Fortes Mendonça. 1ª edição. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2019 (http://estadodedireito.com.br/direitos-humanos-e-educacao-libertadora/).
E o fiz no sentido de acolher com Nair Heloisa Bicalho de Sousa, motivada pela leitura de Nita Freire em aludir à “pedagogia dos direitos humanos” como proposta freireana de “inserção crítica dos homens e das mulheres nas suas sociedades ao possibilitar-lhes terem voz, dizerem a sua palavra, biografarem-se (FREIRE, Ana Maria Araújo (Nita Freire). Acesso à Justiça e a Pedagogia dos Vulneráveis. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al. Organizador. Introdução Crítica ao Direito à Comunicação e à Informação. Série O Direito Achado na Rua, vol. 8. Brasília: FAC/UnB Livros, 2017, p. 69-77), ser esse processo uma base consistente, apta a constituir um programa de educação em e para os direitos humanos e a orientar a “construção de saberes, práticas pedagógicas e metodologias participativas da educação em direitos humanos” (cf. Retrospectiva Histórica e Concepções da Educação em e para os Direitos Humanos. In PULINO, Lúcia Helena Zabotto et al. (Orgs). Educação em e para os Direitos Humanos. Biblioteca Educação, Diversidade Cultural e Direitos Humanos volume II. Brasília: Paralelo 15, 2016, p. 73-124).
Voltando à matéria do dossiê, nesse nº 26, encontro que “As décadas transcorridas desde a publicação das principais obras de Freire não diminuíram a atualidade de seu pensamento, presente, por exemplo, em programas nacionais de educação, como o Brasil Alfabetizado, que visa a superação do analfabetismo entre jovens, adultos e idosos. Apesar da repercussão em iniciativas governamentais, José Geraldo avalia que o Brasil ainda não atingiu uma educação democrática e igualitária.
Nossa sociedade não venceu os limites de hierarquia que se estruturam sobre as formas dramáticas de exclusão. Não se emancipou disso. Basta ver o debate atual com uma retomada das modelagens neoliberais e de hostilidade à cultura.
Há muita oposição ao pensamento crítico, que é o pensamento da educação para a emancipação”, avalia ele, que é também pesquisador em direitos humanos e cidadania. No modelo atual, “a educação é, de certo modo, adestramento, conformismo e não autonomia”, aponta o docente. Já a concepção freiriana seria, em sua visão, um “horizonte utópico”, mas que, por meio das “lutas sociais por emancipação”, pode mover a sociedade a buscar “uma educação apta a transformar as estruturas de alienação”.
Na opinião do educador Renato Hilário, “o paradigma tradicional de educação, nas reflexões de Freire, reflete a sociedade opressora e preconiza uma cultura pautada no silêncio”. Ele acredita que a educação atual deveria “seguir a concepção freiriana de diálogo, na qual os alunos buscam debater com autores, criar uma opinião própria e com caráter crítico”.
Venício Lima destaca que “Paulo Freire foi, acima de tudo, um grande humanista” e um “homem de profunda fé”. Para ele, com o avanço de “uma cultura de ódio e de intolerância no mundo atual”, o educador “tem uma imensa contribuição desse humanismo fundado no amor e na crença no outro”, que é a marca mais profunda de seu pensamento e sua obra. (p. 33).
Não sem razão concluo, voltando ao meu depoimento, na obra – Direitos Humanos e Educação Libertadora em Paulo Freire – para dizer que essa perspectiva, indicada no título de meu texto, é uma apreensão forte que pode se encontrar entre Paulo Freire, de uma ligação entre educação, justiça, direito e direitos humanos, que não seja apenas uma evocação de sua originária formação em Direito, depois de um rápido ensaio inicial na advocacia.
Essa ligação foi desde logo estabelecida por Nita Freire. É dela a leitura que desvela uma “pedagogia dos direitos humanos” como proposta freireana de “inserção crítica dos homens e das mulheres nas suas sociedades ao possibilitar-lhes terem voz, dizerem a sua palavra, biografarem-se” (FREIRE, Ana Maria Araújo (Nita Freire). Acesso à Justiça e a Pedagogia dos Vulneráveis. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al. Organizador. Introdução Crítica ao Direito à Comunicação e à Informação. Série O Direito Achado na Rua, vol. 8. Brasília: FAC/UnB Livros, 2017).
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
Direito do Trabalho: Uma Introdução Político-Jurídica
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Renata Queiroz Dutra. Direito do Trabalho: Uma Introdução Político-Jurídica. Belo Horizonte: RTM, 2021, 159 p.
No Prefácio dessa obra, escrito pela Professora Isabela Fadul de Oliveira, da Faculdade de Direito da UFBA, Líder do Grupo de Pesquisa “Transformações do Trabalho, Democracia e Proteção Social” (UFBA), espaço originário de qualificação de Renata Queiroz Dutra, diz sua subscritora que mais que uma obra sobre o Direito do Trabalho, trata-se, especificamente, de “um livro que tem o propósito de aproximar, introduzir, servir de ponte para um campo da regulação da vida social que ganha complexidade em razão das significativas mudanças no padrão de organização do capitalismo e do trabalho assalariado. Mudanças estas que põe em xeque a própria natureza autônoma deste ramo do direito. Daí que enfrentar o desafio de fazer ponte e construir diálogo em tempos de ruínas é também expressão de coragem, criatividade e perseverança, qualidades que sobram à autora desta obra, no exercício da sua profissão de educadora, pesquisadora e militante na área jurídico-trabalhista. Vale lembrar ainda que no Brasil, a Pandemia alcançou a comunidade acadêmica jurídica ao mesmo tempo em que novas diretrizes curriculares foram aprovadas nacionalmente para os cursos de graduação em Direito e estavam em vias de implementação nas diversas instituições de ensino superior do país”.
A Professora prefaciadora ainda acrescenta, que o “livro de Renata Dutra é escrito quando todos nós, professores de direito, fomos desafiados lidar com velhos e novos problemas pedagógicos: improviso dos recursos digitais, a dificuldade de interação do ensino não-presencial, a sobrecarga do trabalho em regime de home office, as limitações dos nossos repertórios didáticos. Assim, ao mesmo tempo em que sistematiza um conjunto de reflexões trabalhadas nos seus anos de docência nas turmas de Legislação Social e Direito do Trabalho, também pode ser visto como um relevante material didático de apoio ao manejo dos conteúdos programáticos da área trabalhista”.
O Prefácio põe em relevo o que a Autora explica na sua apresentação, que “sua escrita é guiada pelas indagações comumente presentes na sala de aula: por que proteger? E a resposta a esta pergunta é dada em cada um dos dez capítulos que integra a obra, que abarca o conjunto de conteúdos usualmente presentes nos programas das disciplinas trabalhistas que integram os currículos dos cursos jurídicos. Neles, temas chaves do direito do trabalho são apresentados e discutidos com as ferramentas da teoria crítica do direito, em que os problemas jurídicos são enfrentados na sua complexidade, parametrizados por uma abordagem que reconhece o Direito enquanto espaço de disputa e não como um conjunto de normas e procedimentos para a solução dos conflitos trabalhistas”.
E, com base na disposição da própria Autora, salienta que “já nos primeiros capítulos, a questão social do trabalho é localizada como central na conformação da vida em sociedade e nas suas disputas políticas. E neste contexto a proteção social, fundada em preceitos internacionais e constitucionais comprometidos com a justiça e a diminuição da desigualdade, é entendida como uma construção político-jurídica necessária ao enfrentamento das opressões de gênero, raça e classe, historicamente presentes na sociedade brasileira e no seu sistema de relações de trabalho. Ao afirmar a centralidade do trabalho na sociedade, Renata reivindica um horizonte jurídico em que o direito do trabalho assume centralidade na disputa pelo padrão de regulação social, baseado em mecanismos normativos antirracistas e feministas de proteção contra a exploração do trabalho humano”.
Posso ratificar essa disposição, por ter acompanhado os estudos avançados de Renata, notadamente na etapa doutoral, na Universidade de Brasília, na qualificação e na defesa de sua tese, já publicada (Trabalho, regulação e cidadania : a dialética da regulação social do trabalho / Renata Queiroz Dutra. — São Paulo : LTr, 2018).
Desde aí, a Autora, estudando a dialética da regulação e os desafios para a concretização da centralidade do trabalho protegido para os operadores de telemarketing, voltava a observação sensível sobre a (in)efetividade dos direitos sociais laborais e das complexas ações e reações que tal realidade de precarização engendra na esfera da regulação no contexto da reestruturação produtiva e de uma racionalidade neoliberal, atenta à discussão corrente sobre a regulação social do trabalho, a partir da perspectiva dos sujeitos que integram as dinâmicas regulatórias. A tese, em suma, cuidou do mapeamento das fragilidades e contradições dos processos de regulação do trabalho sob o paradigma constitucional, para “propor uma nova compreensão do sistema de regulação social do trabalho, por meio de uma releitura de seus sujeitos e objeto, concernidos ao paradigma constitucional do Estado Democrático de Direito e sob o prisma da ideia de cidadania”.
Vê-se, assim, que desde esses estudos de formação, constituídos no rigor acadêmico em sentido epistemológico-metodológico, Renata já inseria em sua abordagem analítica o arranque político-jurídico que traz agora para seus ensaios empírico-teóricos nesse Direito do Trabalho: Uma Introdução Político-Jurídica. São 10 ensaios, distribuídos em capítulos: 1. Por que uma introdução político-jurídica ao estudo do direito do trabalho?; 2. A centralidade do trabalho e seus desdobramentos; 3. A regulação do trabalho no capitalismo e ‘a grande transformação’; 4. Sujeitos coletivos: a força e a potência subversiva das organizações dos trabalhadores; 5. Paradigmas jurídicos em transformação; 6. O contrato como forma jurídica para o capital e o contrato de trabalho: entre contradições e possibilidades; 7. Trabalho humano e subjetividade: a delicada tessitura das trocas reguladas pelo direito do trabalho; 8. Direito de trabalho e democracia: diálogo social, negociação coletiva e cidadania no trabalho; 9. Direito do trabalho na periferia do capital: escravidão, informalidade e delinquência patronal; 10. Direito do trabalho e crise: neoliberalismo, ruptura e reinvenção.
São temas que galvanizam o engajamento da Autora, não apenas em sentido intelectual, a que responde com maestria, mas no sentido político, mobilizada num ativismo que a faz capaz de elaborar as agendas urgentes que a conjuntura pede nesse campo, e que a erige em protagonista nos espaços estratégicos que ocupa: REMIR – Rede de Estudos e Monitoramento Interdisciplinar da Reforma Trabalhista; RENAPEDTS – Rede Nacional de Grupos de Pesquisa em Direito do Trabalho e Previdência Social e por último a ABET – Associação Brasileira de Estudos do Trabalho, para a qual foi eleita presidenta para o biênio 2022-2023.
Os temas que Renata Dutra trabalha em seu livro, são interperlantes para que, no Brasil, a exemplo do que está a se passar em outros espaços no mundo, se organizem as forças sociais para a necessária reversão das perdas de direitos e sobretudo dos direitos trabalhistas, escopo da agenda neoliberal desdemocratizante e desconstituinte que se impantou no país. É o que, por exemplo, indica João Gabriel Lopes, advogado, coordenador da Unidade Salvador do escritório Mauro Menezes & Advogados e mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília – UnB, ele escreve, “Diante do fracasso das políticas implantadas desde 2017 no Brasil, é indispensável que se pensem estratégias de reversão da perda de direitos, ampliando a participação dos trabalhadores na renda nacional” (https://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/615981-a-necessaria-reversao-da-perda-dos-direitos-trabalhistas-no-brasil).
São tomadas de posição, que desde o momento constituinte brasileiro instaurado com a processo de redemocratização depois do período de exceção implantado com o Golpe de 1964, apontam para o protagonismo dos movimentos sociais, populares e sindicais que definiram o projeto de sociedade desenhado na Constituição de 1988.
Na Introdução do volume 2, da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito do Trabalho, Roberto A. R. de Aguiar e eu, que o organizamos, procuramos convocar um coletivo crítico de pesquisadores e de militantes, motivados por essa perspectiva: “o Direito do Trabalho não pode ser estudado ou praticado sem a constante interligação com o todo social. Isso significa a necessidade de ser abordado de forma interdisciplinar, pois a relação de trabalho é histórica, econômica, cultural, antropológica, psicológica e sobretudo política. Sem a construção de pontes com as ciências que tratam dessas facetas do fenômeno humano corre-se o risco de um reducionismo empobrecedor, que só servirá para enfraquecer a constante busca de relações de trabalho mais livres, mais justas e socialmente mais distributivas em termos de retribuição de salário e acesso aos produtos”.
Avancei um pouco mais na problematização dessas questões, de modo interrogante, quando fui chamado a contribuir para uma obra de celebração da Constituição Comentários Críticos à Constituição da República Federativa do Brasil. Gabriela Barreto de Sá, Maíra Zapater, Salah H. Khaled Jr, Silvio Luiz de Almeida (Coordenadores); Brenno Tardelli (Organizador). São Paulo: Editora Jandaíra (Carta Capital), 2020, com comentário ao artigo 6º da Constituição, a que dei o título de “Direitos Sociais sob Ameaça de Retrocesso?” (conferir a respeito em http://estadodedireito.com.br/comentarios-criticos-a-constituicao-da-republica-federativa-do-brasil/).
Num tempo de globalização econômica, de permanente revolução tecnológica, em que a criação de emprego e o próprio emprego perdem, aparentemente, o seu vínculo finalístico com o processo de criação social de riqueza, a ideia do trabalho como centralidade do sistema de produção e eixo da solidariedade democrática, passou a ser uma ideia vulnerável.
O trabalho havia sido, durante a construção da modernidade capitalista e do consenso liberal, o fator ético do próprio contrato social e a condição de acesso à cidadania e aos direitos. De fato, ao longo do século XIX e durante a segunda metade do século XX, as lutas operárias se constituíram um catalisador de conquistas sociais e o protesto operário foi, em grande parte, o garantidor da universalização de direitos civis e políticos e de conquista de novos direitos, não somente vinculados ao mundo do trabalho, mas também econômicos e sociais. Não apenas específicos para os coletivos de trabalhadores, mas universalizáveis, na sua expressão própria de direitos humanos.
Num sistema de produção e distribuição da riqueza social globalizados, com mercados livres de controles e com tecnologias que criam riquezas, mas não empregos, o trabalho entrou num nível de segmentação e de fragilização organizativa, comprimido num sistema regulatório que o fragiliza e enfraquece suas formas de organização. Estas condições, diz Boaventura de Sousa Santos, levam a uma lógica de exclusão, facilitada por mecanismos lenientes de flexibilização de garantias, levando a que, em muitos países, a maioria dos trabalhadores entrem no mercado de trabalho já desprovidos de qualquer direito.
Por essa razão, Boaventura de Sousa Santos indica que o direito e a redescoberta democrática do mundo do trabalho são fatores cruciais para a construção de novas sociabilidades, resgatando a globalização para a solidariedade e a produção da riqueza social para uma lógica de distribuição inclusiva.
É claro que essa tarefa não se realiza sem se conceber círculos amplos de alternativas e de estratégias, como por exemplo, o Fórum Social Mundial, realizado em Porto Alegre, e a sua projeção para um novo mundo possível. Mas não se realiza, também, sem um repensar das estratégias sindicais, mais politizadas na configuração de seus antagonismos sociais, mais conscientes do alcance internacional de suas reivindicações, mais engajadas na condição civilizatória das lutas que devam ser travadas por um mundo melhor, no qual, como diz Sousa Santos, nada que tenha a ver com a vida dos trabalhadores, mas também dos que não são trabalhadores de outros grupos ou movimentos sociais, seja deixado de fora de sua pauta de direitos.
A questão se coloca, atualmente, quando se trata de saber se os operadores e os agentes políticos estarão à altura das expectativas civilizatórias que os desafiam, no plano constitucional e no plano convencional (para a salvaguarda de direitos)? Nessa quadra dramática de interpelação a um paradigma civilizatório, serão alcançados nos seus misteres para, com a tempestade que desaba sobre o mundo, limpar “a maquilhagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso «eu» sempre preocupado com a própria imagem; (e deixar) a descoberto, uma vez mais, aquela (abençoada) pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos”, como exorta o Papa Francisco em sua Homilia Adoração do Santíssimo e Benção Urbi et Orbi, pronunciada em seu exemplar distanciamento social na grande praça de São Pedro, totalmente vazia, em 27 de março de 2020?
Será o Direito, realmente Direito se, como exortou Francisco, não for “capaz de resgatar, valorizar e mostrar como as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns (habitualmente esquecidas), que não aparecem nas manchetes dos jornais e revistas, nem nas grandes passarelas do último espetáculo, mas que hoje estão, sem dúvida, a escrever os acontecimentos decisivos da nossa história: médicos, enfermeiros e enfermeiras, trabalhadores dos supermercados, pessoal da limpeza, curadores, transportadores, forças policiais, voluntários, sacerdotes, religiosas e muitos – mas muitos – outros que compreenderam que ninguém se salva sozinho”, e operar para realizar e ser instrumento por meio da eficácia horizontal dos direitos humanos nas relações justrabalhistas, quando o horizonte civilizatório sempre se moveu pela concretização dos ideais de igualdade material, de democracia e de justiça social, com a consolidação do valor trabalho (digno) ancorado na centralidade da pessoa humana e sua dignidade.
Uma resposta já se apresenta de imediato, procedente daquela mesma fonte bi-centenária que expressamente inspirou a constituição do campo dos direitos sociais e do trabalho e a formação da OIT, a Rerum Novarum. Em Carta aos Movimentos Sociais no domingo de Páscoa (12/4) exortou o Papa Francisco: “Talvez seja a hora de pensar em um salário universal que reconheça e dignifique as tarefas nobres e insubstituíveis que vocês realizam; capaz de garantir e tornar realidade esse slogan tão humano e cristão: nenhum trabalhador sem direitos. Também gostaria de convidá-los a pensar no “depois”, porque esta tempestade vai acabar e suas sérias consequências já estão sendo sentidas. Vocês não são uns improvisados, têm a cultura, a metodologia, mas principalmente a sabedoria que é amassada com o fermento de sentir a dor do outro como sua. Quero que pensemos no projeto de desenvolvimento humano integral que ansiamos, focado no protagonismo dos Povos em toda a sua diversidade e no acesso universal aos três T que vocês defendem: terra e comida, teto e trabalho”.
Que tarefa! Se a Constituição não é só o texto, mas como diz Canotilho, a disputa narrativa para a sua concretização, ao fim e ao cabo, é estabelecer disposição de posicionamento crítico para que não nos deixemos enredar nas armadilhas de qualquer tipo que permeiam essa disputa, contrapondo hostes conservadoras e hostes progressistas pelo menos.
É o que já se começa a constatar em rearranjos políticos que buscam frear a voragem neoliberal, conforme exorta o Papa Francisco, na sua atitude contra essa descartabilidade do humano nas relações de trabalho. Na mensagem do Papa ao IV Encontro Mundial dos Movimentos Populares, 16 de outubro de 2021, ele afirma de modo contundente: “Este sistema, com sua lógica implacável de ganância, está escapando a todo domínio humano. É hora de frear a locomotiva, uma locomotiva descontrolada que está nos levando ao abismo. Ainda estamos em tempo.” – (https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2021-10/papa-francisco-mensagem-movimentos-populares.html).
Assim é que na Espanha, nesse começo de 2022, foi revogada a reforma trabalhista que precarizou trabalho e não criou empregos. Conforme amplamente divulgado, entre outros – https://www.brasildefato.com.br/2022/01/03/espanha-revoga-reforma-trabalhista-que-precarizou-trabalho-e-nao-criou-empregos – “a reforma trabalhista da Espanha de uma década atrás foi uma das “inspiradoras” da “reforma” feita no Brasil em 2017, sob o governo de Michel Temer. Lá como aqui, o pretexto de baratear as contratações para se criarem mais empregos fracassou. Isso porque, a principal consequência foi a precarização do trabalho e a criação de vagas mal remuneradas, com menos direitos e condições ruins de trabalho. Dez anos depois, a Espanha volta atrás. O decreto de 30 de dezembro atende ainda a um compromisso do primeiro-ministro Pedro Sánchez com a Comissão Europeia, para garantir a próxima parcela de fundos da União Europeia. Atualmente, o país conta com taxa de desemprego de 14,5%, uma das mais altas do bloco econômico. O principal objetivo da nova reforma espanhola é acabar com abuso de contratações temporárias, que hoje responde por mais de um quarto das ocupações no país. A ideia é estimular a contratação por prazo indeterminado, que dão mais segurança aos trabalhadores e, portanto, à economia. Além disso, a nova regra extingue a chamada contratação “por obra ou serviço”, equivalente ao “trabalho intermitente” da reforma de Temer”.
Os ensaios reunidos no livro de Renata Queiroz Dutra, para além de seu interesse pedagógico, se prestam a contribuir para esse momento de retomada democrática e de resgate do valor trabalho como centro ético das relações de produção. Conforme ela própria indica: “Ao pensar sobre esse projeto, me veio a curiosa percepção de que escrever um texto sobre o paradigma político-jurídico de afirmação do direito do trabalho e suas interfaces com diversos aspectos da regulação do trabalho, no lugar de me ocupar de um texto de crítica ao paradigma político-jurídico neoliberal, era algo pouco usual no período recente de minha vida acadêmica…Me fio na esperança de que esse texto, por sua pretensão introdutória e ao se propor a um nível mediano de aprofundamento dos conteúdos, possa se apresentar também como opção de aproximação de leitores e leitoras que não sejam necessariamente estudantes universitários/as, mas que, como pessoas que vivem do seu trabalho, possam se interessar pelo tema e encontrar aqui um canal de aproximação com a regulação social em torno do qual gira a vida da maior parte das pessoas: o trabalho”.
Ao menos na UnB – Universidade de Brasília, espaço acadêmico de atuação da Autora, o novo livro de Renata Queiroz poderá servir de horizonte galvanizador para balizar os estudos do campo, notadamente no espaço crítico do Grupo de Pesquisa Trabalho, Constituição e Cidadania que dinamiza juntamente com o protagonismo da Professora Gabriela Delgado e outros notáveis pesquisadores, atenta movimento pendular, diz Gabriela Delgado, em face do qual “os paradigmas do Estado Constitucional Contemporâneo somente podem ser entendidos em movimento pendular, isto é, como estruturas que se transformam por meio de recuos e avanços permanentes dentro da marcha histórica”, permanecendo como horizonte de luta por democracia, cidadania, dignidade humana e trabalho decente.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55
A Precariedade Politicamente Induzida e o Empreendedor de Si Mesmo no Caso Uber. Sob uma perspectiva de diálogo entre Butler, Dardot e Laval.
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Daniele Barbosa. A Precariedade Politicamente Induzida e o Empreendedor de Si Mesmo no Caso Uber. Sob uma perspectiva de diálogo entre Butler, Dardot e Laval. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2020, 208 p.
Conforme a própria descrição da Editora este livro, apoiando-se em Judith Butler, Christian Laval e Pierre Dardot, busca investigar se estaria em curso, no Brasil, uma política de precariedade induzida da vida dos motoristas em plataformas digitais de transporte e de que modo o Estado brasileiro estaria operando para a construção de um enquadramento de empreendedor de si mesmo. Foram ouvidas, para esse fim, as vozes dos motoristas da empresa Uber, no período de 2018 a 2019. Além disso, foram analisadas as principais alterações legislativas em relação ao tema, bem como decisões judiciais.
Saber se o Estado brasileiro, ao estimular a construção de um determinado enquadramento, está produzindo uma violência, geradora da maximização da precariedade da vida desses trabalhadores, parece fundamental para uma luta por condições que possam tornar as vidas mais vivíveis. Enxergar esse enquadramento é necessário, se pretendemos gestar resistências que afirmem que esses corpos precários importam!
No Prefácio da obra, o advogado (Instituto Declatra – Defesa da Classe Trabalhadora) e professor Wilson Ramos Filho (Xixo), põe em relevo que:
“o livro da professora Daniele Barbosa consegue, a partir de pesquisa qualitativa, desmistificar o chamado empreendedorismo daqueles que, por não terem mais nada para vender, comercializam-se, mercadorias, em longas jornadas de trabalho, sem direitos ou garantias, sob veladas formas de subordinação, para sobreviver, para ‘ganhar a vida’, gerando lucros para os acionistas de plataformas digitais. Trata-se de um livro jurídico que, sem dúvida, inova na abordagem contaminando os enunciados normativos e jurisdicionais com a vida real de todos nós e com as vidas que, perdidas, não merecem o luto, com as vidas daqueles que são explorados como empreendedores de si mesmos. São vidas que não importam. Essa superexploração precarizadora está na raiz do mal-estar em muitos daqueles que não se deixaram colonizar pelo frequente elogio da maneira capitalista de existir em sociedade”.
Em meu constante diálogo com as melhores expressões do protagonismo laboral organizadas nos coletivos de resistência democrática e de salvaguarda da dignidade do trabalho como núcleo inarredável dos direitos fundamentais e constitucionais – ABET, REMIR, Grupo de Pesquisa Trabalho, Constituição e Cidadania da UnB (Gabriela Delgado) – num posicionamento, em temas como esse tratado no livro de Daniele Barbosa, que acentua qualquer introdução ao direito do trabalho desde uma perspectiva político-jurídica, aliás, como designa Renata Queiroz Dutra, minha colega na Universidade de Brasília, uma de minhas interlocutoras, conforme seu livro com o mesmo título que, em breve, o terei Lido para Você.
Nessa perspectiva, é indispensável o cuidado de não se deixa perder em idealismo sob o pretexto de que o jurídico hipostasie a dureza e as contradições da realidade social e do mundo do trabalho num precário equilíbrio em que prevalece a expropriação do valor trabalho. Com Gabriela Delgado, tenho que “os paradigmas do Estado Constitucional Contemporâneo somente podem ser entendidos em movimento pendular, isto é, como estruturas que se transformam por meio de recuos e avanços permanentes dentro da marcha histórica”, permanecendo como horizonte de luta por democracia, cidadania, dignidade humana e projeto de vida. De resto, sigo nesse processo a advertência forte da querida amiga e antiga magistrada do trabalho Magda Barros Biavaschi (Direito do Trabalho: um direito comprometido com a justiça. In AGUIAR, Roberto A. R. e SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Série O Direito Achado na Rua, vol. 2: Introdução Crítica ao Direito do Trabalho. Brasília: CEAD/NEP/UnB, 1993).
Com efeito, ao ler o livro de Daniele Barbosa, e além dele esses outros a que faço referência, procuro estabelecer vínculos objetivos e subjetivos com as esferas teórico-epistemológicas, político-institucionais e jurídico-pedagógicas dadas pelo aporte do Direito como emancipação, direito achado na rua, conforme o enunciado de Roberto Lyra Filho, segundo o qual o direito não é norma, mas a enunciação da legítima organização social da liberdade, pensando o jurídico como criação do social, de sujeitos coletivos de direito inscritos nos movimentos sociais, fazendo emergir enquanto pluralidade tensa (Boaventura de Sousa Santos) um jurídico que se realize como direito emancipatório.
Assim é que, em outro contexto – http://estadodedireito.com.br/direito-material-e-processual-do-trabalho/ (Direito Material e Processual do Trabalho. VII Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho. Coordenadores: Maria Cecília Máximo Teodoro, Márcio Túlio Viana, Cleber Lúcio de Almeida e Marcos Paulo da Silva Oliveira. São Paulo: Editora LTR, 2019), o que serve também para enquadrar criticamente o trabalho de Daniele Barbosa, não perco de vista, tal qual a Autora, que na conjuntura as reformas que arrematam o projeto neoliberal em curso: a tributária, que preserva o lucro, a fortuna e a propriedade dos homens de “bens”; a trabalhista, que repõe a alienação do trabalhador, com a quebra dos fundamentos da legislação social, para assegurar a espoliação, por meio de “contratualização” que viabiliza terceirizações, precarização, expansão da jornada de trabalho, quebra da fiscalização sobretudo do trabalho escravo, criminalização do protesto e da ação sindical, com políticas punitivistas e de encarceramento, com os adereços flexibilizantes da função social da propriedade, da estrangeirização das terras e da alienação dos ativos nacionais, da uberização. E a previdenciária que desleal ao princípio de solidariedade com o esforço do trabalhador para poupar visando a sua aposentadoria, o sacrifica na ganância expropriatória, transferindo a sua poupança para usufruto da banca e para o onzenarismo do sistema financeiro.
Radica aí a disposição, presente no livro de Daniele, de resistir à voragem predatória dos rentistas e de seus agentes institucionalizados pela articulação golpista. E fazê-lo armado da inteligência crítica que Roberto Lyra Filho, o formulador dos princípios norteadores do que denominou “O Direito Achado na Rua”, antecipava em discurso de apoio à luta dos trabalhadores por direitos (Direito do Capital e Direito do Trabalho, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1982, pág. 39):
“todo o Direito de Vanguarda é Direito do Trabalho, enquanto este delineia a mudança social legítima e exprime o posicionamento jurídico dos trabalhadores, seus direitos individuais e coletivos. É assim que se atualizam as metas e ênfase dos Direitos Humanos, para a civilização do trabalho e contra as apropriações indébitas da propriedade privada dos meios de produção ou do controle gerencial deles por um grupo de burocratas aburguesados”.
Assim, diz a Autora na Introdução:
“Está em curso, no Brasil, uma política que induz a maximização da precariedade da vida dos motoristas em plataformas digitais de transporte? O Estado brasileiro tem induzido politicamente a precariedade da vida dessa parcela da população? Esses são os principais questionamentos que conduzirão a nossa investigação nessa pesquisa. A nossa hipótese é a de que está sendo construído, para essa parcela da população, um determinado enquadramento revelador de uma política que distribui, tática e desigualmente, a precariedade, para esse grupo de trabalhadores em plataformas digitais. Às atuais práticas institucionais brasileiras concernentes às empresas de plataformas digitais, em especial a Uber e aos seus motoristas, lançamos um olhar para observar aquilo que acreditamos ser a construção de um enquadramento de empreendedor de si mesmo, cuja pretensão parece concretizar uma moldura de responsabilidade individual para esses trabalhadores”.
Num arranque teórico consistente e atualizado, a Autora discorre no livro, um roteiro instigante e compreensivo que nos convoca a um mergulho radical em seus marcos sinalizadores. Ela o faz com adesão a um enunciado de uma autora arrimo de sua análise: Judith Butler. Com efeito, diz ela:
“Não importa se isso é colocado de maneira explícita ou não, todo esforço político para gerir populações envolve uma distribuição tática de precariedade, com frequência articulada por meio de uma distribuição desigual de precariedade, distribuição essa que depende das normas dominantes no que diz respeito às vidas que são passíveis de luto ou que são dignas apenas de um luto marginal e episódico e, nesse sentido, já estão perdidas em parte ou completamente e, portanto, merecem menos proteção e apoio”.
É contra essa descartabilidade, para usar uma expressão do Papa Francisco, que devemos mobilizar nossas energias de resistência e de protagonismo democratizante. Cito o Papa Francisco porque ele é uma voz potente na convocação do resgate da centralidade do humano e do trabalho, na esfera do econômico. Cito também para provocar o Xixo, que costuma se encrespar a referências procedentes de fontes eclesiais. Mas acho que ele teria enorme proveito se der mais atenção àqueles que são indicadores de alianças no plano da emancipação (teologia da libertação), atualmente muito fortes no profetismo de Francisco.
É o que transparece de modo contundente na mensagem do Papa ao IV Encontro Mundial dos Movimentos Populares, 16 de outubro de 2021: “Este sistema, com sua lógica implacável de ganância, está escapando a todo domínio humano. É hora de frear a locomotiva, uma locomotiva descontrolada que está nos levando ao abismo. Ainda estamos em tempo.” – (https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2021-10/papa-francisco-mensagem-movimentos-populares.html).
O roteiro do livro está demarcado por essa recusa de se deixar descartar: em seguida à Introdução, os temas que a obra sumaria: 1. A precariedade politicamente induzida no pensamento de Judith Butler; 2. O enquadramento do empreendedor de si mesmo no neoliberalismo; 3. Os relatos dos motoristas da plataforma Uber; 4. A precariedade no caso Uber está sendo politicamente induzida pelo Estado brasileiro?; 4.1. A construção de uma regulação brasileira no caso Uber; 4.2. Algumas decisões de tribunais superiores no caso Uber. Seguem-se a Conclusão e Anexos (com as entrevistas) e por fim, as referências bibliográficas.
Professora e pesquisadora de Direito do Trabalho na UERJ e na UFRJ, a Autora Daniele Barbosa não se autoconfina no plano intelectual, teórico. Ela se joga na práxis, se arisca, como pede o Papa, na atitude de “frear a locomotiva da ganância capitalista”. Hoje ela coordena um participativo projeto de intervenção, no espaço cedido pelo Jornal GGN (Luis Nassif): “Trabalho/Trabalhadores de APPS em cena”. Conforme diz a professora idealizadora do projeto explicando como concebeu, a sua ideia é implicar as instituições “porque o espaço público também é construído, motivação que permeia todo o projeto da coluna. Temos o papel fundamental de colocar em cena e dar visibilidade às condições de trabalho e de vida das trabalhadoras e dos trabalhadores de apps. É preciso que nos engajemos na disseminação dessas vozes com uma ação coordenada. Trata-se de uma ocupação na mídia, que foi, neste momento, albergada generosamente pelo GGN. Terão outras decorrências este projeto”.
Ao estilo de seu livro, em diálogo com pesquisadores de campo e sujeitos do sistema, os trabalhadores, ela demarca temas e estabelece a interlocução provocada por questionamentos de apoiadores do projeto e abre espaço para a locução autêntica dos sujeitos. Na primeira edição de 2021, o entrevistado é Carlos Bastos, entregador de plataforma digital em Recife. Membro do grupo “Caveiras do asfalto” (https://www.anamatra.org.br/imprensa/anamatra-na-midia/31859-trabalhadores-de-apps-em-cena-carlos-bastos-por-daniele-barbosa). Daniele conduz a entrevista com apoio em questões propostas por Adalberto Cardoso, Aldacy Coutinho, Christian Dunker, Gabriela Delgado, Gustavo Tadeu Alkmim, José Eymard Loguercio, Marcio Pochmann e Tarso Genro. Ela explica: “Com a academia, mas para além dela! É assim que continua a próxima etapa da coluna Trabalhadores de Apps em Cena, iniciada em 2021. Além dos acadêmicos de diversas áreas do conhecimento, em 2022, ampliaremos o diálogo com juízes, procuradores e advogados, uma vez que a luta contra a precariedade politicamente induzida deve implicar também os que atuam na Justiça do Trabalho no Brasil”.
Fui também convidado por Daniele a propor uma questão, articulada desde os temas que me têm interpelado e foi importante ter a atenção do entrevistado.
Transcrevo aqui a minha pergunta e a resposta do Marcelo Fraccaro, na publicação editada por Daniele Barbosa:
“JOSÉ GERALDO DE SOUZA JÚNIOR: Astúcia neoliberal a distribuição do trabalho através de plataformas digitais pretende isolar os trabalhadores, tirando o espaço físico de trabalho que sempre foi o chão para a sua organização corporativa e política. Mas, um pouco por todo lado, local e globalmente, vê-se que esses trabalhadores, formam redes, modos de contato e de encontros, elaborando estratégias de mobilização, planos de lutas, agendas de reivindicações, desenhos de direitos inéditos. O trabalho é a mais universal das formas de interação do social (para a produção e a reprodução da existência). O que pode já ser cartografado a partir desses processos, que direitos (outros direitos que derivem do regime ou dos princípios que afetam o constitucional) e qual a subjetividade ativa e titulável que deles resultam? Alô, alguém para deliverar uma resposta?!
MARCELO FRACCARO: Bem complexa, né. Tá. Eu vou procurar responder, né. Eu acho que todo esse contexto que nós vivemos, né, de fato, ele passa por uma transformação do modo de organização e mobilização da classe trabalhadora. Nós passamos aí por vários processos aí, tanto do ponto de vista econômico quanto social, quanto do ponto de vista também das organizações de trabalho, né, dos trabalhadores e das trabalhadoras. Como diz a primeira parte da entrevista, né, o espaço físico era praticamente o chão até aqui de todos esses trabalhadores. Eu, por exemplo, aqui, na Diocese, aqui, em Santo André, na Diocese, que eu sou coordenador da Pastoral Operária, né, então, nós temos uma trajetória de lutas, uma história de mobilização com esses trabalhadores, a partir dos sindicatos, dos movimentos sociais, das associações de trabalho, das cooperativas, da economia solidária. Isso, ao longo dos anos, vem mudando de uma forma muito rápida, uma vez que o desemprego, a terceirização, a informatização do trabalho acaba levando muito desses trabalhadores a terem que se individualizar, como a gente dizia na questão anterior, né. Trabalhar de uma forma individualizada, a não ter mais aquele espaço físico, aquele contato mais pessoal, mais coletivo, né, com a classe. E essa dificuldade realmente impõe à classe trabalhadora que ela encontre formas. Aí, é uma contradição, né, que acaba levando também a encontrar outros caminhos de mobilização e de organização. Por exemplo, a criação das redes atuais, né. Hoje, os espaços, eles acabam sendo espaços, muitas vezes, virtuais. Espaços aí, por exemplo, das redes digitais, sociais, das mídias, ou seja, os trabalhadores, eles vão encontrando outros caminhos pra poder se organizar. Por exemplo, nós tivemos contatos aí, por exemplo, com os Entregadores Antifascistas, né. Em 2020, eu tive a oportunidade de fazer uma live, inclusive, com o Paulo Galo, né, o líder dos Entregadores Antifascistas. Eu era candidato a vereador pelo PT de Santo André em 2020. Então, nós também trabalhávamos essa questão na nossa plataforma, no nosso programa. E esse contato com os Entregadores Antifascistas, com os trabalhadores por aplicativo, de uma forma em geral, além do trabalho que eu pessoalmente, Marcelo, desempenho como motorista de aplicativo, né, me leva a entender que realmente, de fato, existe aí uma nova concepção de organização e de mobilização, que tá surgindo e que tá se fortalecendo, a partir das redes, a partir de outros espaços, que não aqueles espaços antigos, de luta dos trabalhadores. Não que aqueles espaços não sejam mais importantes, né. O sindicato continua sendo importante como espaço de luta, de organização; o movimento social; as cooperativas; a economia solidária. Mas também agora se une também a outras formas, como as redes, como grupos, né, também. Muitas das vezes, grupos que tem aí, por exemplo, identidades muito próprias. Por exemplo, o grupo de trabalhadores e trabalhadoras, por exemplo, LGBT, o movimento negro, dos jovens. Enfim, eu acho que existem outras características na mobilização de hoje que levam esses trabalhadores a encontrar caminhos. Então, eu acho que a gente tem aí uma transição e eu quero ter esperança que sirva para fortalecer a luta da classe trabalhadora daqui pra frente”.
Como podemos ver, teórica e politicamente a Autora, se encarna de compromisso. No livro, aliás, ela exibe a sua tomada de posição: “Por meio da articulação das práticas institucionais com a escuta das vozes daqueles que vivenciam, no dia a dia, a experiência de uma nova lógica de acumulação do capital, pretendemos investigar, de uma forma mais complexa, esse sistema de regulação da vida dos trabalhadores em plataformas digitais. Assim, problematizaremos as tensões em torno do direito ao trabalho dos motoristas em plataformas digitais como uma urgência, para refletirmos acerca de quais vidas são passíveis de luto no Brasil de hoje”.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
O retorno de Xawara no território Yanomami: conflito, luta e resistência.
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
O RETORNO DE XAWARA NO TERRITÓRIO YANOMAMI: CONFLITO, LUTA E RESISTÊNCIA. SULIETE GERVÁSIO MONTEIRO (SULIETE BARÉ). Dissertação de mestrado submetido ao Programa de Pós Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, como requisito para a obtenção de Grau de Mestre em Direitos Humanos. Brasília: Universidade de Brasília, 2022, 143 p.
Com muita satisfação, em companhia da orientadora professora Vanessa Maria de Castro, da professora Elaine Moreira e do professor Wellington de Lourenço Almeida, suplente, participei dessa banca de defesa de dissertação, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, por Suliete Gervásio Monteiro (Suliete Baré). Num simbolismo de muita significação, Suliete decidiu, ainda que a sessão de defesa tenha sido realizada em plataforma virtual, fazê-lo, ela, no espaço da Maloca (veja a foto), o Centro de Convivência Multicultural dos Povos Indígenas da Universidade de Brasília, uma conquista dos estudantes indígenas da UnB durante o meu reitorado, conforme a própria Suli registra na dissertação.
Eu comecei a dialogar com o trabalho de Suliete Monteiro, antes mesmo de sua apresentação final, no formato de dissertação concluída, por ocasião da banca de qualificação. Já ali seu tema me provocou o interesse e logo, ao publicar meus comentários sobre a dissertação de Lucas Cravo de Oliveira, Fronteiras improváveis entre tempos e direitos, defendida na Faculdade de Direito, me vali do que extraíra do trabalho de Suli, conforme http://estadodedireito.com.br/fronteiras-improvaveis-entre-tempos-e-direitos/, na minha Coluna Lido para Você.
A propósito do trabalho de Lucas, referi-me a uma tensão de reconhecimento, que balizou meu esforço, há poucos meses, em procedimento ainda em curso, quando fui convidado a oferecer parecer sobre as implicações do “componente indígena na disputa pelo desenvolvimento”, sob o exame de interesses indígenas na implantação da BR 143, em território Kayapó.
O que importa considerar, em qualquer aproximação a esse tema é, lembrando Mia Couto, ter em conta que “a terra esteja aberta a futuros”. Mas a terra pensada de acordo com Gersem Baniwa (Gersem José dos Santos Luciano), que compreende que “a luta pela proteção dos territórios indígenas é o que unifica, articula e mobiliza todos, abordando especialmente a importância para a vida dos povos originários, sem o território não há saúde, educação, proteção do meio ambiente, não há vida, o território é fundamental na resistência dos povos indígenas, para além de bens materiais o território tem um significado que envolve espiritualidade, valores, conhecimentos e tradições. Território é onde se fortalece a identidade e a cultura de cada povo” (retirei a referência em MONTEIRO, Suliete Gervásio. O Retorno de Xawara no Território Yanomami: Conflito, Luta e Resistência. Projeto de Qualificação para o Mestrado em Direitos Humanos e Cidadania. Brasília: UnB/CEAM/Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, 2020).
Vali-me dessa passagem, em memorial assinado por mim, pela Orientadora Vanessa de Castro e pelos professores Marilena Chauí e Boaventura de Sousa, ao redigirmos a proposição de outorga de douramento honoris causa a Ailton Krenak, já aprovada pelo Conselho Universitário.
Com todo o engajamento inclusivo da UnB, por meio de suas ações afirmativas, temos hoje negros e indígenas ocupando os lugares de formação nos espaços universitários. Mas incluímos nesses espaços o conhecimento que promovem, as epistemologias que memorializam? Suas narrativas são reais, registra Catherine Fonseca Coutinho (Oralituras Munduruku: As histórias contadas e a justiça cognitiva. Dissertação de Mestrado em Direitos Humanos e Cidadania. Brasília: UnB/CEAM/Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, 2020), com Daniel Munduruku, sua fonte direta: “Elas aconteceram de verdade e marcaram profundamente o modo de ser do meu povo. É por causa da repetição constante dessas histórias que esse povo relembra seu sentido de existir e permanece atuante e lutando pelo direito de viver. É assim que damos sentido e valor à nossa existência”. Mas elas têm lugar nos arranjos pedagógicos do conhecimento que entre nós é compartilhado?
A dissertação tem como principal objetivo, conforme está no seu Resumo, formalmente elaborado nas línguas acadêmicas inglês, francês, espanhol, mas também na língua nheengatu:
apresentar os processos de invasões que o povo Yanomami sofreu em seu território, principalmente, durante a pandemia ocasionada pela Covid-19. Para compreender este momento complexo e difícil foram utilizados diversos documentos que tratam do tema e também fizeram parte da pesquisa lideranças indígenas. Considerando as riquezas naturais, minerais e culturais que existem na Terra Indígena Yanomami, avalio como essas invasões impactaram e impactam negativamente o meio ambiente, o modo de vida dos Yanomami e sua cultura. A importância do território para os povos indígenas, em especial os Yanomami, é adotada como referencial teórico. Nesse sentido, para entender a questão territorial, recorro ao pensamento de intelectuais e líderes indígenas. Ao final, conclui-se que a luta pela proteção do território ocorre desde a invasão, somos povos da resistência, a luta que nos une é em nome da defesa dos nossos direitos e do território, o qual engloba saúde, educação, meio ambiente e o fortalecimento da nossa identidade enquanto povos indígenas.
A Dissertação começa com um memorial, peça relevante que confirma a importância da autenticidade de fala no território universitário ocupado por sujeitos que são protagonistas de lutas por reconhecimento e, como diz a autora, no caso, “o fortalecimento da nossa identidade enquanto povos indígenas”. Por isso, certamente, a afirmação de posicionamento no texto do memorial: “Se tratando de terra e território para nós povos indígenas é como se estivéssemos falando da nossa própria vida e existência, pois, como muitas lideranças nossas dizem, sem território nós não existimos, não temos casa, saúde e educação. E assim lutamos diariamente pela defesa e proteção dos nossos territórios, diante de muita resistência e luta, conseguimos manter nossas culturas, línguas, crenças e tradições”.
O Sumário, um primor enunciativo, convida a um mergulho analítico sobre o tema, mas embalado no simbolismo característico do imaginário cultural dos povos indígenas:
INTRODUÇÃO
OS YANOMAMI E A URIHI
1.1. Origem da Hutukara e do povo Yanomami: Xapiri os protetores da floresta
1.2. URIHI: “ terra floresta”
1.3. Origem do nome “Yanõmami”
1.4. Os Yanomami: Localização e população
1.5. Urihi: Geografia física
1.6. Urihi: Composição florística, a terra-floresta
Histórico de invasões no Território Yanomami
2.1. Os primeiros contatos
2.2. A estrada Perimetral Norte
2.3. A corrida do ouro na década de 1980
2.4. O Projeto Calha Norte (PCN)
2.5. A Comissão Para Criação do Parque Yanomami (CCPY)
2.6. A demarcação da Terra Indígena Yanomami
2.7. O Massacre de Haximu: tudo pelo ouro
2.8. A (re) invasão da TIY
2.9. Cada centímetro do território (demarcado) importa, tem nome e tem história
Povo Yanomami: “Nossa Luta é Pela Vida”
3.1. Metodologia
3.2. A origem do tema
3.3. Os desafios de escrever a dissertação: “descolonizando metodologias”
3.4. Dissertação e a Pandemia
3.4.1. Os materiais e métodos
3.4.2. Pesquisa documental
3.4.3 Conversas com Yanomamis
3.5. O contato com os líderes Yanomami.
3.6. Fundamentação teórica: dialogando com intelectuais indígenas
O objetivo geral da dissertação, segundo a autora, é investigar o agravamento da situação de invasões no Território Yanomami durante a pandemia do Covid-19, e as consequências dessas invasões para o povo. Como objetivos específicos temos: ouvir os próprios Yanomami sobre as consequências das invasões em seus territórios, intensificado na pandemia do Covid-19; como lidar com os cuidados da saúde através dos conhecimentos tradicionais e também espiritual; e elucidar a importância de preservar e proteger os territórios indígenas.
Para a realização deste trabalho consegui dialogar com dois líderes Yanomami, mesmo em meio a algumas dificuldades devido a pandemia. Achei pertinente usar o diálogo, pois, entre nós povos indígenas a conversa, ou seja, a oralidade é comum, a forma como os conhecimentos e as informações são repassadas entre os indígenas é feita principalmente pela oralidade. Para isso escolhi a abordagem qualitativa como ferramenta de trabalho, portanto, detalho melhor a metodologia no início do capítulo 3.
Com esta dissertação espera-se contribuir com os estudos acerca da defesa dos seus direitos em relação à terra e ao território, bem como trazer elementos que ajudem e contribuam num diálogo sobre a temática entre os povos indígenas. Pois, nos últimos anos, a questão de exploração dos recursos naturais e minerais tornou-se uma das pautas mais importantes a ser discutida no Congresso Nacional, sobretudo no que diz respeito às Terras Indígenas.
Neste momento pandêmico que nós nos encontramos os ataques contra os nossos direitos se intensificaram facilitando invasão dos territórios indígenas, gerando conflitos devido a exploração dos recursos naturais e minerais nas terras, levando não só o coronavírus, mas também outras doenças.
A estrutura desta dissertação está dividida em três capítulos, o primeiro capítulo apresenta a geografia física e humana no Território Yanomami, fazendo o diálogo sobre a origem do mundo a partir da cosmovisão do povo Yanomami, a importância do território para o povo, e abordando o respeito com a natureza.
No segundo capítulo apresento processo histórico de invasão e genocídio que o povo sofreu desde os primeiros contatos com os colonizadores, pautando fatos importantes que ocorreram no território, como sua demarcação, por exemplo. No terceiro e último capítulo começo apresentando como a metodologia foi elaborada com mais detalhe, trazendo principalmente para a reflexão e o debate sobre a “pesquisa”, no segundo momento apresento o diálogo com o referencial teórico, com autores indígenas Gersem Baniwa, Ailton Krenak, Eloy Terena e Célia Xacriabá, apresento também o diálogo que tive com dois líderes Yanomami sobre a temática desta dissertação e entrevistas que o líder Davi Kopenawa em veículo de notícia.
Portanto esta dissertação apresenta como principal referencial teórico autores/autoras e intelectuais indígenas, trazendo para o diálogo o conhecimento tradicional dos povos indígenas e abordando como ciência indígena, mediante suas obras. Pois, falar sobre a importância do território para os povos indígenas se faz necessário ouvir a voz dos sujeitos, ou seja, os indígenas. Neste sentido, usando principalmente o pensamento e a cosmovisão de Davi Kopenawa Yanomami em relação ao território, pois, a saúde dos povos indígenas, do povo Yanomami depende do território protegido, sem doenças, sem Covid-19, garimpo.
A bem articulada e autêntica representação da realidade dramática revelada pela Autora na Dissertação, sustenta a constatação de que a resistência e autoresposta à pandemia não apenas como ameaça sanitária mas como ambiente que permite proliferar o oportunismo da agressão econômica e política, se dá por um protagonismo de sujeitos que são conscientes de suas identidades e de seus direitos, mas que sabem se organizar para se afirmarem em perspectiva de reconhecimento. Conforme a epígrafe que abre a conclusão do trabalho, extraída de enunciado da APIB, essa disposição é um ganho mobilizador que se expande para todo o social: “Acontece que decidimos não morrer, mas lutar incansavelmente em defesa da vida”.
Trata-se de registar esforços, que apoiados por setores aliados da causa indígena, contribuíram para criar base informativa de proteção sanitária na omissão estatal. Exemplo disso são os textos, informações importantes, oferecidas numa linguagem de compreensão que apreenda o imaginário dos destinatários, no que eles precisam saber: o que é o coronavírus (COVID-19)?, como pega a doença?, grupo de risco, o que fazer se sentir os sintomas?, como se proteger?, evitar aglomeração de pessoas ficar em nossas casas e comunidades é o mais importante agora; o que fazer se tiver alguém doente em casa?, cuidado com as notícias falsas; como se colocou no informativo em quatro línguas elaborado com a o apoio do ISA – Instituto Socioambiental (http://estadodedireito.com.br/coronavirus-covid-19-tome-cuidado-parente/).
O Informativo ajusta a repercussão geral da questão, aos cuidados e à condições próprias do local de vivência das comunidades, principalmente em São Gabriel da Cachoeira e lembra que na região do Médio e Alto Rio Negro não existem UTIs, e os casos graves têm que ser levados para Manaus, na logística do lugar com dias de viagem em barco. Chama a atenção para a necessidade de levar parentes recém-chegados, com ou sem sintomas a exame médico, para adotar os procedimentos recomendados; e orienta conforme os hábitos e usos culturais da Comunidade: “se alimentar bem com alimentos que contêm vitamina C, que ajudam na imunidade (ex. abóbora, cubiu, pupunha, jambu, mastruz, alho e cebola; não produzir o caxiri para não disseminar o vírus”.
O esforço não é pequeno quando se tem em conta a tremenda dificuldade que é circunscrever a atenção aos interesses indígenas em meio a uma concepção pós-colonial ainda generalizada e inscrita nos discursos assimilacionistas de altas autoridades para as quais indígenas são um pouco mais que pré-históricas mas ainda sub-humanos, como se o Papa Paulo III, em 1537, já não tivesse esclarecido essa questão, reconhecendo, após o Debate de Valladolid, a sua humanidade. Entretanto, lá como agora, essa disputa antropológico-teológica-jurídica, ainda encobre o seu fundo real, avançar sobre terra e território, para sequestrar da visão identitária da pachamama, segundo a qual a natureza é vida, para coisificá-la, privatizá -la e mercadorizá-la.
É mais que isso, como está na conclusão do trabalho de Suliete:
Desde o início da pandemia nós povos indígenas do Brasil nos unimos para enfrentarmos mais essa batalha, o Covid-19. O povo Yanomami representa neste momento todo o processo de violência e genocidio que outros povos indígenas sofreram durante todo o processo de colonização, representa também a força dos povos originários, os povos das florestas.
Quando falamos a palavra GENOCÍDIO, nos dirigimos ao conjunto de ações e posicionamentos do governo, principalmente o atual, que colaboram com o adoecimento e morte de milhares de pessoas no Brasil. Entre os povos indígenas, o genocídio está presente na nossa história desde a invasão europeia até os dias atuais, afirma (APIB, 2020). Junto com a invasão dos colonizadores em nossos territórios, hoje conhecido mundialmente como o país Brasil, veio o que os Yanomami chamam de xawara, as epidemias, inclusive foi através deles que a coronavírus chegou até os territórios indígenas. Pior que o xawara, é epidemia da ganância dos não indígenas, a colonização e exploração das nossas terras continua, agora disfarçado de desenvolvimento econômico.
Ressalto que em alguns momentos no decorrer da escrita desta dissertação me emocionei muito, principalmente quando falo sobre o massacre de Haximu, outro momento foi quando apresento a metodologia onde menciono mudança do tema e cito minha avó, que foi vítima do Coivd-19.
Até o presente momento, 1.248 indígenas foram vítimas fatais nesta pandemia da Covid19. Tendo 62.903 casos confirmados e 162 povos afetados (APIB, 2022). Muitas mortes poderiam ter sido evitadas se tivéssemos um governo engajado com o povo e que valorizasse a vida, os povos indígenas e a ciência O número de vítimas só não foi maior devido a intensa mobilização do movimento indígena do Brasil.
Infelizmente quem perdeu um avô, uma avó, um tio, uma tia, um irmão, uma irmã, um filho, uma filha, perdeu também parte da sua história. Com a perda de nossos anciões perdemos também parte dos nossos conhecimentos, se foram livros de sabedoria, que não encontramos em nenhuma biblioteca do mundo, com as crianças sendo vítimas da Covid-19, se foram também parte do nosso futuro.
Contudo, temos muita luta pela frente, em defesa da floresta, da biodiversidade e do planeta, em defesa do nosso território, por isso, devemos lutar juntos e juntas em sua defesa. Assim como abordei no capítulo três sobre a importância do território, a nossa identidade enquanto indígena está ligada ao território, a nossa terra, é lá que estão nossas raízes. Pois, sem terra não existe povo Baré, não existe povo Yanomami, não existe povo indígena. Da dor das violências e da perseguição que estamos sofrendo, não desistiremos de continuar lutando nem de dar continuidade às nossas (re) existências. A luta dos povos indígenas é única e coletiva. Nessa simples dissertação que abordo em especial a situação do povo Yanomami, representa também a luta do meu povo Baré e a luta dos 305 povos existentes hoje no Brasil. Procurei mostrar também, que não se trata apenas de omissão, de negligência ou de incapacidade do governo federal em suas diversas instâncias.
Trata-se de um projeto orquestrado e sistemático de não cumprir com as obrigações constitucionais, uma vez que a própria Constituição Federal estabelece para a União o dever de proteção territorial das terras indígenas.
Essa intencionalidade em não atuar torna o governo responsável pela devastação do território nacional e pela doença e morte que atingem povo Yanomami. Nos encontramos diante de um projeto genocida e ecocida.
O fato é que, em relação aos direitos dos povos indígenas no Brasil, a pandemia da Covid-19 agudizou as contradições do sistema capitalista e, em especial, aprofundou o ataque aos direitos coletivos indígenas, pedindo que o social, dissemos eu e Renata Carolina Corrêa Vieira em artigo Reflexões sobre o futuro e sobre o direito no pós-pandemia: uma perspectiva solidária aos povos indígenas (in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; RAMPIN, Talita Tatiana Dias; AMARAL, Alberto Carvalho. Direitos Humanos & Covid-19. Grupos Sociais Vulnerabilizados e o Contexto da Pandemia. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2021).
Estamos mobilizados para essa solidariedade? Sempre me fiz essa pergunta, tanto mais quanto vem me invadindo o sentimento do quanto as mobilizações indígenas arrastam em seu movimento uma expansão o conjunto das lutas por cidadania, que deixa o social em débito com os povos indígenas. Mencionei isso em texto de opinião (Brasil, Terra Indígena, por José Geraldo de Sousa Junior em 23 de setembro de 2021, https://www.brasilpopular.com/brasil-terra-indigena/).
E com que força política, educando partidos, corporações, grupos de interesse, a esquerda. De braços dados com os povos, as mulheres, a Igreja dos pobres e dos excluídos, o mais simbólico arco de alianças, a grande frente para um projeto de sociedade e de país. Todas as bandeiras reunidas, as feministas, as antirracistas, as identitárias, do campo e das cidades, por reconhecimento e participação, por teto, terra e trabalho.
Ou, ao contrário, essa luta ainda é só uma luta movida pela causa indígena. No Posfácio Suliete como que desabafa desse desassossego: “Eu enquanto indígena participo ativamente de mobilizações desde antes da pandemia, durante participei de forma virtual e ano passado o movimento indígena voltou as manifestações presenciais aqui em Brasília, começando pelo Levante pela Terra, Acampamento Terra Livre, II Marcha das Mulheres Indígenas e Fórum Nacional de estudantes Indígenas e Quilombolas, participei de todos, na tenda da saúde orientando os parentes indígenas, distribuindo máscaras e como palestrante. A nossa luta se faz nas ruas, nas universidades, nos espaços onde estivermos”. É uma luta que os indígenas lutam sós ou há solidariedade?
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
Revista Humanidades. Existindo, Resistindo e Reinventando: Universidades Públicas no Brasil Atual
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Revista Humanidades. Existindo, Resistindo e Reinventando: Universidades Públicas no Brasil Atual. Brasília: Editora UnB. Nº 65, dezembro de 2021, 118 p.
A notícia do lançamento da nova edição da Revista Humanidades, veio no Correio do Livro, edição de 17 de dezembro de 2021, a publicação tradicional da Editora da UnB, com notícias das novidades editoriais.
Mais que isso, como um mimo, considerando o suporte digital da nova edição, o Correio do Livro informa que já está disponível nova edição especial da revista Humanidades dedicada ao tema “Existindo, resistindo e reinventando: Universidades públicas no Brasil atual” e oferece acesso à publicação digital da Revista pelo link: https://www.editora.unb.br/Acessolivre_humanidades.php .
Em resenha, a editora da publicação Inês Ulhoa, anota que
“os desafios são imensos, mas também são grandes as resistências que acompanhamos vindas de cada uma das universidades federais brasileiras e a determinação de que vale a pena a luta forjada na existência dessas instituições comprometidas com a produção da ciência, da cultura, da arte e na defesa do conhecimento e da liberdade, reinventando os sonhos e os projetos cultivados nos ideais de uma universidade democrática e inclusiva com respeito às diversidades. Este número 65 da revista Humanidades é dedicado ao debate necessário que se faz hoje diante dos ataques sistemáticos contra as instituições públicas de ensino superior. Portanto, se faz necessário o exercício da crítica para reafirmar a disposição de reagir aos desmandos e fazer valer os compromissos com o saber e o valor da vida de que se nutrem as universidades públicas”.
Basta ver o sumário da edição:
Existir, resistir e reinventar: verbos intransitivos
Márcia Abrahão Moura
Territórios de conhecimentos e de intersubjetividades: um lugar social para a Universidade
José Geraldo Sousa Junior
Universidade pública: todos temos que lutar
Antonio Ibañez Ruiz
Educação superior deve ser mantida como bem público
Marco Antonio Rodrigues Dias
O exercício e a dignidade do pensamento: o lugar da Universidade brasileira
Marilena Chaui
O futuro da Universidade
Marco Antônio Rodrigues Barbosa
Da responsabilidade social e do papel histórico da Universidade necessária e emancipatória
Inês Ulhôa
As categorias público e privado no Brasil: O conflito na Educação desde a Assembleia Constituinte
Maria Francisca Pinheiro Coelho
Educação, Universidades e a Constituição: disputas sobre o futuro
Cristiano Paixão
Segunda leitura
UnB 30 anos
Geralda Dias Aparecida
A edição não poderia ser mais oportuna considerando todas as iniciativas, marcantemente simbólicas, que registram os eventos de celebração dos 60 anos da Universidade de Brasília.
Ainda há pouco, no dia 15 de dezembro, participei de solenidade, representando exatamente a Comissão dos 60 Anos, para celebrar a assinatura da lei 3.998, de 15 de dezembro de 1961, assinada pelo Presidente Jango Goulart (seu filho João Vicente, na qualidade de presidente do Instituto João Goulart estava presente na cerimônia), que autorizou o Poder Executivo a instituir a Fundação Universidade de Brasília.
Para mim o evento se carregou de duplo sentimento. O contemporâneo, poder me manifestar na sessão; e o evocativo, porque como Reitor, instalei em 2011, cerimônia idêntica para marcar os 50 anos da lei. Ocasião em que re-lancei em edição comemorativa, o livro organizado por Darcy Ribeiro em 1962, Universidade de Brasília. Projeto de organização, pronunciamento de educadores e cientistas e Lei n3.998 de 15 de dezembro de 1961.
“Certamente, muito terá se perdido a partir das sucessivas interrupções e retomadas desse belo e generoso projeto, que nunca se deixou descolar de seu impulso utópico originário. Quando se examina o texto da lei que autoriza a instituição da fundação, incumbida de criar e de manter a Universidade de Brasília, melhor se afere esse movimento. Criado para ser autônomo, sustentável, público mas não estatal, o novo ente recebe a atribuição de inovar, no mais profundo sentido experencial, a ponto de poder organizar seu regime didático, inclusive de currículo de seus cursos sem restar adstrito às exigências da legislação geral do ensino superior (art. 14). Assim, por ocasião do cinqüentenário da UnB, pensando o seu projeto várias vezes interrompido, conforme mostrou Roberto Salmeron, é importante revê-lo em sua originalidade e compreendê-lo com o apoio das percepções que dele tiveram os seus mais próximos contemporâneos, para melhor orientar suas possibilidades atuais, no salto em que, alem de necessária, conforme preconizava Darcy, ela se faça também emancipatória (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de (Organizador). Da Universidade Necessária à Universidade Emancipatória. Brasília: Editora UnB, 2012)”.
Nessa nova edição de Humanidades, agradecendo aqui o convite para dela participar, tive a oportunidade de expandir o alcance da inserção do experimento universitário no grande projeto de expandir e renovar conhecimentos, com o texto Territórios de Conhecimentos e de Intersubjetividades: um lugar social para a Universidade.
Tal como está na sua abertura, o texto foi originalmente tema de minha conferência inaugural do XXIIIº Congresso Internacional de Humanidades, realizado em Brasília na Universidade de Brasília. A conferência foi lida, na plataforma para a realização remota do evento, no dia 05 de janeiro de 2021. O Tema geral do Congresso foi: PODER, CONFLITO E CONSTRUÇÃO CULTURAL NOS ESPAÇOS LATINO-AMERICANOS.
Iniciei a minha conferência com uma saudação aos participantes, com uma indagação: apesar das diferenças de percurso para nos constituirmos um espaço comum latinoamericano social e político, qual a história comum que forja a comunidade de culturas e a comunidade de afetos que somos ou que podemos ser e na medida em que nos possamos constituir também como povos que se podem conceber como um destino compartilhado?
Apesar das diferenças de percurso para nos constituirmos um espaço comum latinoamericano social e político, qual a história comum que forja a comunidade de culturas e a comunidade de afetos que somos ou que podemos ser e na medida em que nos possamos constituir também como povos que se podem conceber como um destino compartilhado?
Temos sim, os povos que se expressam majoritariamente em línguas muito próximas, notadamente a espanhola e a portuguesa, e se somos cada um povo só o somos povos com vínculos comuns porque temos uma história comum que nos forja enquanto comunidade de culturas e comunidade de afetos, e que nos amalgama a partir de algum momento em nossas próprias histórias.
Mas, se temos uma história desde aí comum, o que temos de comum em nossa origem e em nossos destinos?
Ao meu perceber, o que há de comum entre nós, desde um momento objetivo de encontro e de qualquer possibilidade de um destino também comum, é o impacto dramático do colonialismo que se impôs sobre nossas identidades e as projeções decorrentes dessa experiência em nossa atualidade pós-colonial afetada econômica e politicamente pelas injunções do ultra-neoliberalismo e pelos desafios de toda ordem como exigências de libertação e de emancipação num processo de ação decolonial.
Sob a perspectiva da condição ultra-neoliberal, sigo pensando que para as classes dominantes, para as multinacionais e para o seu estado, para as oligarquias que ela fomenta, pouco importa que milhões de pessoas morram de fome e de doenças provocadas pela fome. O que importa, num quadro como este, é acrescentar mais uns quantos privilegiados a este núcleo de elite, que constitui o que entre nós, nos seus estudos sobre o Povo Brasileiro, Darcy Ribeiro denominou de engenho de moer gentes, na sua voragem de contínua concentração dos rendimentos, cada vez mais acentuada e desigual.
A exclusão social crescente é a outra face deste tipo de processo econômico, maliciosamente chamado de desenvolvimento, mas que é um processo perverso ou maligno. Porque a exclusão social é a sua consequência mais dramática, que gera os segmentos descartáveis segundo uma lógica de indiferença, que o MST entre nós qualifica de Brasil rejeitado. Falando de exploradores e explorados, há que levar em conta que se os explorados estavam dentro do sistema (sem explorados não pode haver exploradores), os excluídos estão, por definição, fora do sistema, são inexistentes, descartáveis conforme os tem denominado o Papa Francisco, ao avaliar as dimensões catastróficas desse processo globalizado.
Todos sabemos, porém, que as mudanças necessárias não acontecem só porque nós acreditamos que é possível um mundo melhor. Essas mudanças hão-de verificar-se como resultado das leis de movimento das sociedades humanas, se movidas pela consciência de que há culturalmente um direito à utopia mesmo que na forma de direito a sonhar.
A aproximação mediada pela economia política e pela filosofia, e mais propriamente por teorias da justiça ou instigações teológicas, segue uma linha civilizatória que mais se afasta das opções que mercantilizam a vida, enquanto se orienta para projeções que garantam o direito à vida plena, de homens e mulheres de carne e osso sim, porque ideologicamente o nosso percurso colonial separou seres humanos, para distinguir os que se inserem no contrato social os que ficam fora dele, os selvagens, os bestializados, os escravizados, os diminuídos, os segregados, os sobrantes “civilizatórios” todos alienados do humano.
Abri essa linha de problematização para ponderar o lugar entre nós latino-americanos do experimento colonial e indicar que desde esse lugar o modo decolonial é também uma condição para de minha parte figurar o que o XXIII Congresso está designando como PODER, CONFLITO E CONSTRUÇÃO CULTURAL NOS ESPAÇOS LATINO-AMERICANOS, a partir do que penso, possamos representar um projeto de libertação, de emancipação e de humanização possíveis.
Assim é que se apresenta muito instigante o eixo temático da publicação, na forma aliás como o amplia a Reitora Márcia Abrahão Moura, no seu artigo de abertura: Existir, resistir e reinventar: verbos intransitivos.
Para a Reitora, “sim: existir, resistir e reinventar são verbos muito caros ao momento atual. O tema que atravessa esta revista Humanidades é, portanto, crucial. Com a pandemia, a sociedade pôde perceber com mais clareza, a existência da universidade pública. E, assim, compreender a sua importância para um país em desenvolvimento”.
Por isso que, conforme escreve, “a ação intransitiva a reinventar é também necessidade de se reinventar. Em tempos sombrios, a Universidade se torna reflexiva, olha para dentro e enxerga, com todos os contornos, que a autonomia garante a prevalência das determinações acadêmicas sobre as ingerências políticas impostas pelos governos de plantão”.
O meu colega Cristiano Paixão, sobre essas ingerências dá a medida extrema em curso no Brasil hoje. Confira-se o seu artigo na publicação – Educação, universidades e a Constituição: disputas sobre o futuro. Nele, alude ao que chama “práticas desconstituintes verificadas no Brasil contemporâneo [que] atingem vários campos da experiência social e política: proteção ao meio ambiente, educação, cultura, combate ao racismo, preservação do patrimônio histórico, artístico e paisagístico. Há algo em comum entre essas matérias: todas elas pressupõem um projeto constitucional voltado ao futuro”.
Mas não estamos sós nessa ação de resistência e de reinvenção. Assim é que, “Reafirmando la necesidad de asegurar en el hemisferio el respeto y la plena vigencia de las libertades individuales y de los derechos fundamentales de todas las personas a través del Estado de Derecho, al igual que la importancia de promover debates y estándares para fortalecer la protección y garantía de la libertad académica en las Américas” a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, adotou, durante o 182º Período Ordinário de Sessões celebrado de 6 a 17 de dezembro de 2021, um conjunto de Principios Interamericanos sobre Libertad Académica y Autonomía Universitaria.
Na UnB, são 60 anos; no Brasil, 85 (considerando a criação da USP, pois a Universidade do Brasil não conta); na América, 500 anos; no Ocidente, 1000 anos; no Oriente, bem mais. Sempre se reinventando. Mesmo quando deixa de ser o lugar exclusivo da criação do conhecimento, ainda permanece e se recria, com firmes alianças civilizatórias, como lugar exclusivo para a sua livre circulação.
Ao final, duas notas de relevo. A primeira, a segunda leitura do marcante relatório de professora Geralda Dias Aparecida UnB 30 Anos. Reconfigurado sob a forma de artigo o texto foi a base para o processo da anistia prevista na Emenda 26 que convocou a Constituinte de 1988 e que permitiu a reparação, mais da dignidade que propriamente indenizatória, dos professores que sofreram a dramática diáspora conduzida pelo autoritarismo entre 1964 e 1968, sobretudo. Recentemente falecida a publicação tem o alcance de in memoriam.
A segunda nota é alusiva a um bônus da edição. As magníficas ilustrações, a cargo de Italo Cajueiro, também publicitário e professor universitário. O artista da edição é um premiadíssimo cineasta, animador, quadrinista, designer, artista plástico, roteirista, ilustrador, programador visual e diretor de curtas-metragens. Um bônus da edição.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
Rondas Campesinas. Principios de Organización y Trabajo.
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Rondas Campesinas. Principios de Organización y Trabajo. Oscar Sanchez Ruiz. Chiclayo, Peru: Ediciones e Impressiones Frías/Grupo Cultural Wayrak/Colección Bicentenario, 2021, 64 p.
Pelas mãos de Andréa Brasil e de Shyrley Aymara, ao regresso de visita técnica a Puno, às margens do Titicaca, em intercâmbio com o Instituto de Interculturalidad de Puno (https://www.youtube.com/watch?v=1qA-Q4_UEN0), recebi o livro objeto deste Lido para Você, com uma dedicatória amigável de Santos Saavedra Vasquez, Presidente da CUNARC (Central Única Nacional de Rondas Campesinas y Urbanas) del Perú: “Hermano professor Jose Geraldo lo saluda la Central Única Nacional de Rondas Campesinas del Perú, asismismo felicitar su aporte de la defensa de los derechos de los pueblos indígenas. Muchos êxitos em la lucha. Perú, 20 noviembre del 2021. Atentatemente”.
Eu conheci Santos, em Lima, numa de minhas participações, desde 1990, em Programas concebidos e desenvolvidos pelo Instituto Internacional Derecho y Sociedad, de Lima, dirigido pela professora Raquel Yrigoyen Fajardo, voltados para a formação em direito internacional interdisciplinar e intercultural, proteção internacional dos direitos de povos indígenas e litígio estratégico.
Também, mais recentemente, dezembro de 2021, a edição concluída, da segunda versão, com o tema geral Monitoreo Internacional de los Derechos Humanos de los Pueblos Indígenas: Derechos Territoriales y Consulta Previa em Tiempos de Pandemia, no qual, ainda com o objetivo de contribuir para a formação de uma rede de monitoramento regional (sistema OEA – Comissão Interamericana de Direitos Humanos), me incumbi, por designação de Raquel e de Soraya Yrigoyen Fajardo, de oferecer a fala de clausura (https://www.youtube.com/watch?v=rAV0LdyeCR8).
Uma nota designativa desses cursos e da concepção que os organiza, está a diretriz conceitual elaborada por Raquel Yrigoyen Fajardo, no sentido de que o Curso se desdobre do mandato de capacitação e de assessoria jurídica, em sede de litígio estratégico em direitos humanos e em direitos indígenas, em apoio aos povos tradicionais originários indígenas do Peru, e aos camponeses, principalmente das Rondas Campesinas titulares da construção político-jurídica de autonomia na gestão administrativa e de acesso à justiça, partir de seus territórios de produção e de existência.
E que, na “linha desse acumulado se ponha em relevo a série de Cursos (plataforma digital) ‘Sistemas Jurídicos Indígenas, Pluralismo Jurídico Igualitário e Descolonização’, cujos objetivos têm sido promover o respeito efetivo aos direitos humanos dos povos indígenas a seus sistemas jurídicos próprios (instituições, normas e funções jurisdicionais) e promover um diálogo intercultural e relações de coordenação igualitária entre sistemas jurídicos, desde um enfoque descolonizador e despatriarcalizador. O fundamento que orienta os respectivos programas é o de que os povos originários têm ancestralmente seus próprios sistemas jurídicos” (http://estadodedireito.com.br/memoria-del-i-curso-internacional-interdisciplinario-e-intercultural-proteccion-internacional-de-los-derechos-humanos-de-pueblos-indigenas/).
Conforme expõe Raquel Yrigoyen Fajardo, diretora do IIDS, que concebe e projeta esses cursos, “desde a invasão, os colonizadores buscam anular, reduzir ou subordinar a autoridade indígena, para facilitar a expropriação de seus recursos e impor-lhes o seus valores. Não obstante isso, os sistemas jurídicos indígenas têm resistido e se recriado para enfrentar problemas contemporâneos. Desde há uma três décadas, o direito internacional e o constitucionalismo pluralista reconhecem os direitos dos povos indígenas a sua identidade, territórios, ao controle de suas instituições, formas de vida e a seus sistemas jurídicos, incluindo funções jurisdicionais. Isso tem permitido passar do paradigma do monismo jurídico ao do pluralismo jurídico igualitário”. (sobre esses fundamentos cf. YRIGOYEN FAJARDO, Raquel. Qué es el Pluralismo Jurídico Igualitário?;. Revista Alertanet 2017 Em Litígio Estratégico y Formatión em Derechos Indígenas. IIDS – Instituto Internacional Derecho y Sociedad. Lima: IIDS/IILS, año 2, nº 1. 140, marzo 2017, p. 10-17).
Para ela, “Apesar dos avanços referidos, na região, segue-se desconhecendo efeitos jurídicos às decisões indígenas e continua-se a criminalizar as práticas consentidas dos sistemas jurídicos indígenas, seus usos culturais e o exercício de sua autoridade em seus territórios, especialmente quando a justiça indígena intervêm em casos graves ou relacionados a terceiros e a corporações. Daí a necessidade de um Curso que promova a troca de saberes; que difunda os avanços normativos e anime uma reflexão sobre como encarar os possíveis conflitos entre o direito indígena e os direitos humanos, desde uma perspectiva intercultural e descolonizadora”.
Raquel Yrigoyen, que já inscrevera em sua concepção a tese de um constitucionalismo plurinacional, tem avançado fortemente, desde seu diálogo com as cosmogonias e cosmovisões dos povos ancestrais, em direção a um constitucionalismo ecológico ou eco-constitucionalismo (cf. O Direito à Alimentação como um Direito Humano Coletivo dos Povos Indígenas. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al, organizadores. O Direito Achado na Rua – volume 10. Introdução Crítica ao Direito como Liberdade. Brasília: Editora OAB/Editora UnB, 2021), sem contudo abdicar de suas teses originais sobre o pluralismo jurídico.
Ainda que nessa passagem o foco da leitura do pluralismo jurídico, desde a leitura de Raquel Yrigoyen, compreendido propriamente como pluralismo jurídico igualitário (consulte-se entre outros estudos, os escritos fundamentais com aberturas inéditas para a aplicação dessa categoria, de Boaventura de Sousa Santos – sempre presente nas atividades do IIDS -, até o mais recente de Antonio Carlos Wolkmer e de Maria de Fatima S. Wolkmer, Horizontes Contemporâneos do Direito na América Latina. Pluralismo, Buen Vivir, Bens Comuns e Princípio do ‘Comum’. Criciúma, SC: UNESC, 2020), se dirija aos povos indígenas e originários, essa acepção, orientada “por uma racionalidade jurídica diferente”, alcança também os ronderos campesinos, em enfoque autoral bem conhecido:
Outro claro ejemplo de racionalidade jurídica diferente, resulta em palavras de Raquel Yrigoyen, la de las Rondas Campesinas, que si bien nacen em uma primera etapa, como respuesta a uma demanda de seguridade, frente al robô y el abigeato se traduce finalmente, em prácticas sociales de auto administración de justicia (SONZA, Bettina. El outro Derecho ‘Rondas Campesinas’ em la Selva y Sierra Peruana. In ETHOS. Boletin de Antropologia Juridica, ano 2 – número 4. Lima: Universidad de Lima/Facultad de Ciencias Humanas/Facultad de Drecho y Ciencias Políticas/Centro de Investigación Jurídica, 1993).
Até porque, no Perú, notadamente, a força protagonista das Rondas Campesinas logrou configurar em formato de proposta constitucional, o reconhecimento da capacidade das comunidades campesinas, nativas y rondas campesinas para ejercer jurisdicción de acuerdo a suscostumbres.
O livro Rondas Capesinas trata de todos esses temas relevantes, desde seu prólogo e introducción, histórico-político, até formar um arco altamente informativo para ativistas e pesquisadores: I. Transcendencia histórica de las Rondas; II. Benefícios de las Rondas; III. Nuevo modelo de organización; IV. Cómo surgió la Ronda?; V. Por qué surgieron las Rondas?; VI. Qué son las Rondas?; VII. Fines y objetivos; VIII. Princípios de organización; IX. Carácter de las Rondas; X. Mandamientos del rondero; XI. Cualidades del buen dirigente; XII. Justicia rondera; XIII. Fundamentos legales; XIV. Programa Reivindicativo; XV. Tareas de las Rondas; XVI. Slogans y símbolos.
Shyrley Tatiana Peña Aymara que com Andréa Brasil me regalou com o livro, está cumprindo um programa doutoral aqui na Universidade de Brasília, na Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, sob minha orientação, no marco da concepção pluralista de O Direito Achado na Rua.
Há poucos meses, sendo como é, da base política do recém presidente eleito, “rondero, campesino y maestro, Pedro Castillo Terrones”. Presente na cerimônia da posse, na popular Juramentación Simbólica en la Pampa de la Quinua en Ayacucho, região andina ao sul do Perú profundo, enviou um despacho para seus colegas de grupo de Pesquisa (http://odireitoachadonarua.blogspot.com/search?q=shyrley): CARTA DESDE LA PAMPA DE LA QUINUA PARA MIS COMPAÑERXS DEL “DERECHO HALLADO EN LA CALLE”.
Na Carta ela relata a emoção: “Dentro de la muchedumbre el pueblo gritaba: ‘Al fin tenemos presidente’ y: “por fin alguien que nos representa ha vencido al monstruo que quería que asumamos que esta victoria había sido producto de un fraude”, e constata:
Por ello y más, las rondas campesinas, líderes y lideresas de organizaciones populares, pueblos indígenas, mujeres, trabajadores, jóvenes, afrodescendientes, sindicatos, gremios, partidos políticos, etc. tuvieron que llegar hasta Lima para defender su voto y no permitir que las atrocidades disfrazadas en “legalidad” puedan vencer la voluntad popular. El día 19 de julio, nos congregamos con esos grupos que hace semanas estaban acampando frente al JNE. Estaban poniendo el cuerpo y el alma de manera autogestionada para rescatar la pobre y enclenque democracia que aún nos queda.
Al son de huaynos peruanos, zapateos democráticos, música en quechua, música rebelde y nuestros temas más originarios, celebrábamos esa noche en un lugar abierto al aire libre. Por un momento, olvidamos que vivíamos en una pandemia que había causado tanta desolación y desigualdad, principalmente para los más desposeídos históricamente. Este escenario se vestía de esperanza, pero también de muchos desafíos, pues tener nuestro primer gobierno de izquierda democráticamente elegido se mostraba como un gran hecho histórico y solo la historia, y nada más que ella nos demostrará el camino de sostenerlo.
Em artigo para o Portal da Universidade de Brasília (https://noticias.unb.br/artigos-main/5138-memorias-do-bicentenario-peruano-no-juramento-simbolico-do-presidente-pedro-castillo-terrones-em-ayacucho) – Memórias do Bicentenário peruano no Juramento Simbólico do Presidente Pedro Castillo Terrones em Ayacucho, a mesma Shyrley, mesmo considerando todas as dificuldades que o novo governo vai enfrentar, não deixa de esboçar uma esperança legítima que vem com a tremenda mobilização de todo o Perú profundo, território das Rondas Campesinas: “Diante disso, um homem como Pedro Castilho, que usa um chapéu da sua cultura originária, marca um precedente que leva muitas expectativas de mudança. Porém, a construção de um Peru sem desigualdade, racismo, homofobia e misoginia vai ser um projeto que deverá ser defendido por aqueles que acreditam em mudanças reais com projeção ao futuro. Sabemos que temos que aproveitar esse momento histórico e nos fortalecer com as energias de tantos peruanos patriotas que morreram em Pampa da Quinua por causa de uma pauta poderosíssima: emancipação e não só independência”.
De toda forma, no plano investigativo, todo esse percurso alimenta o interesse e a disponibilidade de Shyrley Aymara para acrescentar aos estudos sobre os protagonismos que se dão hoje na América ao sul do Rio Grande, e a avaliar sua pertinência política nos processos de transformação em curso nos países em luta por descolonização. Seu projeto de tese: AS FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DAS RONDAS CAMPESINAS EM CAJAMARCA (PERU) E AS RONDAS COMUNITARIAS EM CHERÁN (MÉXICO): CAMINHOS PARA DESCOLONIZAÇÃO DO DIREITO NA AMÉRICA LATINA, abre perspectivas para essa disposição.
A viagem de Shyrley a Puno e o seu encontro com os ronderos, constatam a força desse movimento emancipatório, tal como está no livro de Oscar Sanchez Ruiz – Rondas Campesinas. Principios de Organización y Trabajo. Um tanto ao estilo de manual de uso, a sua dupla condição de intelectual e de antigo presidente da Federação Departamental de Rondas Campesinas de Cajamarca, história e processo político são estudados enquanto um fenômeno singular, importante para os estudos sobre esse tema, mas há destaque para “um aspecto que muy pocos investigadores han advertido y estudiado: los princípios de organización estabelecidos em la primeira reunión histórica de las rondas de Cuyumalca (29 de enero de 1977) assumidos comio las líneas matrices del acionar ronderil, cuyo desarrollo práctico permitió la fortaleza de las rondas campesinas, su autonomia e independencia respecto de organismos estatales, a pesar de que los sucessivos governos primero pretendieron desconocerlas y perseguir a sus dirigentes, luego crear organizaciones paralelas, someterlas a control policial y militar, o convertirlas em apêndices del gobierno”, sem que esse cerco tenha logrado desviá-las de seus princípios de fundação.
Responsável direto pela aproximação não só minha mas de minhas queridas colegas de coletivo de pesquisa Andréa Brasil e Shyrley Aymara, meu dileto amigo Hernan Layme Yepez, juiz de direito em Puno no altiplano andino peruano e que conheci em Lima nas Jornadas do I Curso Internacional, Interdisciplinario e Intercultural – Protección Internacional de los Derechos Humanos de los Pueblos Indígenas Derechos Territoriales y Consulta Previa, organizado por IIDS-Instituto Internacional Derecho y Sociedad (Raquel Yrigoyen), nos havia convidado para participar da grande assembleia das rondas campesinas do altiplano, e da cerimônia de consulta a pachamama para a realização dos eventos, afinal adiado por conta da pandemia.
Hernan Layme Yepez, fiel a sua ancestralidade indígena, é um ativista na objeção à visão eurocentrada, pós-colonial do direito internacional e constitucional, repercutindo a mesma unidade de vida, (diz Hernan:
“La muerte no existe en nuestra cultura. Nuestros seres queridos viven con nosotros en cada instante. La cosmovisión andina ha generado saberes de derrotabilidad de la muerte, una cultura de respeto a la vida, armonía del cosmos. Vida-muerte-vida, una unidad dialéctica. ‘Así nomás nos iremos, así nomás volveremos’”).
Hernan aponta, pois, para um outro humanismo:
“Hasta cuándo TC, TC, TC… debemos soportarte?. Cómo puede impartirse justicia sin conocer el Perú profundo?. Deben viajar, sesionar en una comunidad campesina, nativa, ronda. La corrida de toros y la pelea de gallos son imposiciones culturales crueles de occidente y Asia, asimilados por los criollos peruanos; primero fueron explotados, torturados y asesinados nuestros ancestros; y, luego siguieron los animales inocentes. En nuestra cultura, en nuestros pueblos, no existe más que amor en la crianza de los animales, por eso le ponen sus nombres “Pepito”, “Panchito”, “Marianito”; son un integrante más de la familia y si los van a vender, le piden que los cuiden; y si les van a sacrificar le piden permiso con una quintuska (hojas de coca y vino), saben quiénes son los padres, pueden adivinar en sus rostros de que padecen. Los hacen “casar” a los ovinos para mayor reproduccion. Y aun, al zorro le tienen respeto, y le dicen: “Tiula” (de tío), le designan al mejor animalito para que se vaya a otro lugar y el zorro entiende y se va -vivencias contadas de los ronderos, el Arariwa; dicen: “ellos también tienen hambre, frío, tienen crías que alimentar, hay que hablarles, ellos entienden, si le odias es peor”-. Qué hermosa es nuestra cultura, no de fiesta de la sangre, de la crueldad, no de una cultura de la muerte. Se debe ir a las instancias internacionales”.
Sobre a possibilidade desse encontro com ronderos, Hernan justifica as suas razões que fazemos nossas: “Me siento inmerecidamente mencionado, solo soy un juez que vivo de cerca de los comuneros, ronderos. Sin escucharlos no podría saber qué pasa en sus mundos. He querido escribir sobre ellos, pero tengo temor de traicionar su confianza”.
Por isso é tão importante oferecer o livro nesse momento. Com o Autor Oscar Sanchez Ruiz, nos damos conta de que a obra “sintetiza históricas reivindicaciónes andinas: es uma original experiência y contribución a la edificación de um estado plurinacional, democrático, representativo, de todas las voces y todas las sangres”.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
O Direito de Escuta das Partes Processuais. Gabriela Jardon Guimarães de Faria. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, do CEAM – Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares. Brasília: Universidade de Brasília, 2021, 218 p.
Chegamos ao final do ano de 2021 e no meu ofício de orientador pude colocar em debate, para defesa, essa bela dissertação desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, da Universidade de Brasília.
A autora, Gabriela Jardon, é uma destacada magistrada do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, mas traz o lastro de excelente percurso acadêmico, no Reino Unido, onde obteve seu primeiro Master in Law (LLM) em International Human Rights Law, na Universidade de Essex, Inglaterra, mergulhando no mundo da teoria tradicional dos Direitos Humanos, com sua visão norte-global de tratados e convenções internacionais.
Por conta desse primeiro mestrado, e com os acréscimos de sua consistente formação, ela já foi admitida para o doutoramento no CES – Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, em programa fundado por Boaventura de Sousa Santos, diretor emérito do Centro.
No PPGDH, pela configuração da linha de pesquisa a que se vincula, a compreensão dos direitos humanos, de resto, assumida na tese, está mais carregada de historicidade, no sentido da materialidade que os constitui, ou antes, que os institui, conforme os fundamentos e fontes que adota para os designar.
Assim, conforme antecipa o resumo:
“estudo busca arregimentar uma base teórica para o que nomeia de direito da escuta das partes processuais, isto é, o direito das partes processuais de serem escutadas, antes dos julgamentos, pelos juízes e juízas responsáveis por suas ações judiciais. Inicia expondo e debatendo o que pesquisas empíricas sobre a satisfação do jurisdicionado com os serviços judiciários. Assumindo, no entanto, pela experiência pessoal da autora, que juízes e juízas tendem a não escutar as partes processuais ao longo das tramitações processuais, a não ser que o depoimento das mesmas tenha carga probatória, debate os Direitos Humanos, o Acesso à Justiça e o Direito Achado na Rua como possíveis molduras teóricas que alicerçariam o propugnado direito de escutas das partes processuais. Prossegue abordando o incremento em termos de democracia, humanismo e justiça que a escuta das partes processuais poderia aportar aos processos e à jurisdição como um todo. Traz, por fim, a importância da escuta para o humano, as aberturas processuais que permitem o reconhecimento e prática do direito de escuta das partes, esmiuçando de que escuta se está falando e como ela se viabilizaria na prática”.
Nesses termos se travou o diálogo com Banca Examinadora, que presidi, na qualidade de orientador, embora destituído, na forma regulamentar, da capacidade da competência de julgar, tarefa que foi atribuída aos membros, Professora Daniela Marques de Moraes, da Faculdade de Direito da UnB, Professora Bistra Stefanova Apostolova, também da Faculdade de Direito da UnB e Professor Antonio Sergio Escrivão Filho, membro externo (IESB/DF), no momento da constituição da banca, mas antes que instalada a banca, docente nomeado para ter exercício igualmente na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. A defesa, na sua integralidade e riqueza de interlocução, pode ser conferida no Canal YouTube de O Direito Achado na Rua (https://www.youtube.com/watch?v=RTz7NpTo9UA):
Mas a moldura do debate pode ser logo depreendida do sugestivo Sumário que organiza o roteiro da Dissertação. Abrindo com uma Introdução, na verdade, uma afirmação de pontos de partida, a Mestranda assinala os termos do trabalho:
De onde falo; De que falo; Quando falo; Como pretendo falar; mediante Notas e ressalvas.
Segue-se:
O Embarque: A (In)satisfação da população com o poder judiciário.
1.1 ICJBRASIL/FGV (2021;
1.2 ESTUDO DA IMAGEM DO JUDICIÁRIO BRASILEIRO AMB/FGV/IPESPE
(2019;
1.3 JUSBARÔMETRO DE SÃO PAULO – APAMAGIS/IPESPE (2021)
1.4 O JUDICIÁRIO SEGUNDO OS BRASILEIROS/FGV (2009)
1.5 CONCLUSÃO
2 OS TRILHOS: OS DIREITOS HUMANOS, O ACESSO À JUSTIÇA E O DIREITO ACHADO NA RUA
2.1 OS DIREITOS HUMANOS
2.2 O ACESSO À JUSTIÇA
2.3 O DIREITO ACHADO NA RUA
2.3.1 “O direito achado na sala de audiência” – o direito de escuta das partes
na moldura do Direito Achado na Rua
2.4 CONCLUSÃO
3 OS DESEMBARQUES: A DEMOCRACIA, O HUMANISMO, A
JUSTIÇA
3.1 A DEMOCRACIA
3.2 O HUMANISMO
3.3 A JUSTIÇA
3.3.1 O direito de escuta das partes como uma exigência de justiça
4 O PERCURSO: O DIREITO DE ESCUTA DAS PARTES PROCESSUAIS
4.1 PELA FORÇA-MOTRIZ DA ESCUTA
4.1.1 Por que os juízes e as juízas tendem a não escutar?
4.1.2 O novo juiz e a nova juíza
4.1.3 O direito de escuta das partes – manual de uso
4.2 PELA FORÇA-MOTRIZ PROCESSO
4.2.1 O princípio da colaboração/cooperação
4.2.2 E a imparcialidade, como fica?
4.2.3 Oralidade e escritalidade
4.2.4 É possível mas agora não
Seguem-se a Conclusão e as Referências Bibliográficas.
É um forte conteúdo, entretanto, embalado com a sutileza, a elegância e o ritmo que a escrita marcantemente literária da Mestranda permite, atributos logo distinguidos pelos examinadores e muito especialmente pela Professora Bistra Apostova, indicando, a seu gosto, a disponibilidade da cognição para se deixar enredar no arranjo argumentativo e convincente da Autora, desde uma condução, de saída, em primeira pessoa.
Claro que para mim, não havia surpresa. A experiência de orientação descortinara esse talento e seu estilo, o que levara a exibi-lo, bem antes, em seu estrito sentido literário ao ler trabalho de crônica da Autora. Assim, nesta Coluna Lido para Você – http://estadodedireito.com.br/retratofalado/ – quando trouxe para os leitores a obra Retratofalado. Ensaios em Estado de Imagem. Textos Danielle Martins, Gabriela Jardon, Mariana Carvalho. Fotografias Wanessa Montoril. Brasília: Edição das Autoras/Athalai Gráfica e Editora, 2019, dizendo com ênfase:
“Com Gabriela Jardon – GJ, não há surpresa. Eu já suspeitava que por trás ou por dentro da Juíza togada, ardia a quentura de um vulcão prestes lançar larvas incandescentes. Antes de acolhê-la como colega pesquisadora nos grupos de pesquisa da UnB (Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania), já tinha divisado as frestas de uma vivacidade literária, na leitura de sua Coluna Enquanto Isso na Sala de Justiça, publicada no Jornal Metrópoles. Ali, na crônica Reflexões sobre uma inspeção judicial: “A lei é morta, o juiz é vivo”, ela se indaga: “A cruzada judicial contra a corrupção vem sendo feita por um juiz vivo? Será que as ruas, o povo, o passado, a história vêm sendo devidamente inspecionados tanto por este juiz quanto pelos que o criticam? A decisão do HC foi uma vitória de juízes vivos sobre uma lei morta? Ou ali, ao contrário, na intenção de se vivificar uma lei, a realidade foi apagada, ninguém se lembrando de “inspecionar” o que de fato ocorreu travestido de processo?”.
No trabalho, são fortes as intersecções intercapitulares, em epígrafes, as aberturas literárias, com referências sobretudo a autores que compartilham suas referências (Rubem Alves, com a sua crônica Escutatória; Cervantes, com o Quixote; colegas magistrados da Autora e ela própria, valendo-se de seu acervo literário publicado).
Muito pertinente a apropriação da frase que corre solta e é distribuída em afiches e postares “Mudar o mundo, meu amigo Sancho, não é loucura, não é utopia, é justiça.” (Dom Quixote em diálogo com Sancho Pança, El ingenioso Hidalgo Don Quixote de La Mancha, 1605, Miguel de Cervantes), ainda que eu tenha lembrando no diálogo que essa frase, quem bem poderia ser do Quixote, não está na obra de Cervantes, que também não usa a expressão utopia.
“Quase poderia dizer que uma boa síntese dessas recomendações se encontra num enunciado com inusitada circulação, atribuída ao Quixote: “Cambiar el mundo, amigo Sancho, no es locura ni utopía. Sino justicia.”, não fosse a consideração de que em geral transcrita sem localização, por mais que procurasse, tanto eu quanto algumas outras indagações, não foi dado encontrá-la na obra de Cervantes, tanto quanto a palavra utopia que também se diz entre estudiosos, não aparece em seus escritos”.
Penso que um pressuposto forte que orienta o trabalho de Gabriela Jardon, movido pelos chamados de sua atuação profissional e de seu ofício, mas orientado teórica e metodologicamente para buscar respostas discerníveis e operativas tanto do ponto de vista funcional quanto discerníveis racionalmente, em que pese os cuidados a que a Banca (professor Escrivão e professora Daniela) indicaram em ambos os aspectos, está em que, segundo ela – p. 16 – “como não é reconhecido no campo do Direito o direito de escuta das partes, a escavação de uma base teórica argumentativa que sustente a sua existência persistiria atraente mesmo se chegando à conclusão, com a pesquisa de campo, de que, sim, a escuta das partes, ao contrário do suposto, costuma acontecer de modo satisfatório pelas e pelos juízes/as. Nesse hipotético caso, seria evidente que essa escuta não estaria se dando pelo reconhecimento de um direito, mas, quando muito, por iniciativa ética/humana individual do/a magistrado/a, pois a inexistência do direito de escuta das partes, do ponto de vista formal-positivo, é um dado posto. Logo, o trabalho dirigido a erigir o reconhecimento desse direito por meio da articulação teórica de razões, causas e condições, ainda assim, de toda forma, seguiria motivado e motivando”.
A Autora reuniu e interpretou, na primeiro capítulo da obra (veja-se o Sumário), as mais qualificadas pesquisas disponíveis para sustentar a importância do questionamento (existente ou inexistente; ausente ou emergente, sugeriu o professor Escrivão) do tema que responde a sua principal hipótese de trabalho:
A pesquisa de campo, por despicienda, foi, então, abandonada. De toda sorte, interessa a este estudo a revisão bibliográfica de pesquisas empíricas já realizadas, algumas muito recentemente, não sobre a escuta de partes processuais em específico, não tendo sido encontrado nada com essa minúcia, mas sobre a percepção da Justiça brasileira pela população, em termos de confiança e satisfação. Isso porque um dos pressupostos do qual o direito de escuta das partes parte é uma notória e sabida, e já antiga, insatisfação generalizada da sociedade em relação ao Judiciário. Essa insatisfação realmente existe? É atual? Quais seus elementos característicos, seus pormenores? Arrancar com este trabalho daí me pareceu um começo necessário.
Dito isso, passo a apresentar os principais achados das pesquisas existentes nessa temática e suas conclusões, discutindo-as. Apesar de ter dividido o capítulo em tópicos, cada um se referindo a uma das pesquisas principais examinadas, isso não se deu de forma estanque mas móvel, no sentido de que em todos os tópicos as pesquisas se interpenetram, de modo a trazer à baila os diferentes ou semelhantes dados encontrados para reforços, contradições e comparações.
Tudo com a expectativa de que (p. 32), “a escuta das partes seria, em essência, um admirável movimento de comunicação entre o Judiciário e suas e seus usuários/as, que se encontra à disposição da Justiça, com potencial de a conectar dialógica e diretamente a seu público, localizando-o no universo jurisdicional e o informando de maneira tão próxima que mais profunda e indelével”, um esforço para recuperar a humanização exaurida que possa se encarnar um sistema fundamental para qualquer projeto de sociedade:
Apesar de a Justiça ser comumente representada pela deusa grega Thêmis, que tem os olhos vendados, sustento nesta pesquisa que o verdadeiro sentido embotado do Judiciário é a audição, não a visão. Desumanizado, o Judiciário não escuta; ao não escutar, desumaniza-se ainda mais, objetificando as pessoas a quem se dirige. Com isso, além de estreitar as fronteiras do acesso à justiça, faz-se antidemocrático, negando aos envolvidos e envolvidas em conflitos judiciais o que provavelmente seria a maior chance de influência que poderiam ter em seus julgamentos: sua palavra viva. Sem a devida escuta, uma Justiça satisfatória, humana, acessível e democrática torna-se terra distante.
Com o uso franco de metáforas a Autora esquematiza o plano da Dissertação, com uma inversão narrativa quanto à descrição dos capítulos, que melhor que a metáfora do comboio (evocativa do fecho da escrita no percurso cotidiano entre o Porto e Coimbra, bem poderia ter tomado a outra metáfora, essa a do paradoxo do navio de Teseu, na sua versão original em Plutarco para os mais eruditos ou na versão juvenil dos gibis citada em WandaVision, em qualquer caso expondo a indagação sobre qual o navio real, o que partiu do ponto A, inteiramente reconstruído no itinerário, considerando o que chegou no ponto B:
O primeiro capítulo é por onde se embarca: o estado da arte do que se sabe sobre a satisfação ou insatisfação da população brasileira com o trabalho do Poder Judiciário. Na sensação da maioria dos usuários e usuárias, o Judiciário simplesmente não lhes entrega providências, modificações no estado das coisas e consequências que sejam percebidas como satisfatórias. Lentidão, custos e a complexidade de sua utilização são os fatores mais citados.
Para este estudo, no entanto, existe um fator crucial ainda bastante invisibilizado que contribui consideravelmente para o descontentamento: as pessoas deixam de ser devidamente escutadas. Veremos o que o exame das principais pesquisas de opinião da área tem a dizer.
Depois de embarcados, a ver por quais trilhos andar de forma a acomodar o percurso pretendido. O segundo capítulo refere-se à base teórica escolhida para alicerçar o direito de escuta das partes, que pertence ao campo dos Direitos Humanos, isto pela porta do Acesso à Justiça e sob a ótica do Direito Achado na Rua. Esses são os andaimes teóricos em que o direito de escuta das partes se escora na sua construção e soerguimento, explorados neste capítulo.
O quarto capítulo é o percurso imaginado. O caminhar, o fazer, o realizar – e aqui chamado de percurso para que fique clara a ideia de continuidade, constante aperfeiçoamento e devir, e não algo acabado, fixo. Será o local para se apresentar em detalhes como se pensou e se arquitetou o direito de escuta das partes, com enfoque na importância da escuta e no modo como a mesma deve acontecer, isso tanto do ponto de vista da escuta em si, como do ponto de vista processual.
E então é chegada a hora de desembarcar. Para onde, acredita-se, a escuta das partes pode levar um processo? Há mais de um portão nessa estação de desembarque. O desembarque, pela lógica de uma viagem, vem depois de feito o percurso, mas optei por inverter as ordens e só falar do percurso depois de ter já exposto sobre o desembarque, pois, como a maioria esmagadora dos percursos, esse daqui só existe com o fim específico de conduzir aonde se quer chegar. Então, me pareceu mais apropriado, antes de abordar o percurso, abordar o que o justifica. Por isso então, aqui no nosso trajeto, vamos espiar o desembarque antes mesmo de iniciar o percurso. O terceiro capítulo vai falar do que pode decorrer a partir do reconhecimento e da prática do direito de escuta das partes em termos de justiça, democracia e humanismo, correlacionando a implementação daquele com incrementos substanciais desses.
Propõe-se aqui, portanto, uma pesquisa de abordagem qualitativa que use como método a revisão bibliográfica, a qual terá por objeto revisões teóricas. No bojo dessas revisões, o que se tentará é a articulação de campos e saberes, alguns de ligações óbvias, como o Acesso à Justiça e o Direitos Humanos, outros menos óbvias, mas nem por isso menos afins, como a escuta e o exercício da magistratura, passando por lugares como O Direito Achado na Rua, as pesquisas de satisfação da população com o sistema de justiça, o direito processual, as teorias da justiça, a democratização da Justiça e o humanismo, para citar os principais.
Instiga-me, não poderia ser diferente, a leitura que a Autora faz, no capítulo segundo, a sua base teórica estruturante, notadamente, a que busca os pressupostos político-epistemológicos de O Direito Achado na Rua, deles extraindo, sem derrapar em tipos ideias (como notou na arguição o professor Escrivão), num intuito de esquematização e de categorização que não fosse tão arbitrária e conjectural para lembrar Jorge Luís Borges, no seu O Idioma Analítico de John Wilkins, já que propriamente nenhuma classificação no universo pode deixar de sê-lo, apenas para fazer caber no esquema os seus achados de pesquisa.
A Dissertação, não só nesse âmbito, é um diálogo altivo com todos os autores e autoras escolhidos para interlocução, a partir dos campos de motivação da Autora, desde o seu interesse psicoanalítico ao filosófico. Fico enormemente satisfeito em encontrar em boa articulação os autores e autoras que formam a fortuna crítica de O Direito Achado na Rua. Notável recensão, felizmente, carregada de lealdade aos enunciados e de livre identificação. Remeto às pp. 88-89:
A judicialização de direitos não é, pois, ponto forte dos esforços do DAR que, se não a descarta, enxerga-a como um caminho a mais, e a depender. A razão de vida e trabalho do DAR é, na verdade, o reconhecimento e a legitimação de direitos que se observam e se extraem de práticas sociais, performadas por sujeitos coletivos, em espaços que se caracterizam pela presença de projetos políticos de transformação social. Nas palavras de seu principal expoente hoje vivo, professor José Geraldo de Sousa Júnior:
Naquela apresentação de 1993, a montante de um percurso ainda apenas projetado, destaquei que a concepção de O Direito Achado na Rua era fruto da reflexão e da prática de um grupo de intelectuais reunido num movimento denominado Nova Escola Jurídica Brasileira, cujo principal exponente era o professor Roberto Lyra Filho que lhe indicou o nome e traçou os contornos de seus fundamentos. Então, tomei como elementos norteadores para a localização paradigmática desses fundamentos e o significado de sua contribuição, alguns textos de referência, naquela altura com razoável circulação, para concluir, propondo, pela primeira vez, para que objetivo se voltava o projeto: orientar o trabalho político e teórico de O Direito Achado na Rua, que consiste em compreender e refletir sobre a atuação jurídica dos novos movimentos sociais e, com base na análise das experiências populares de criação do direito: 1. Determinar o espaço político no qual se desenvolvem as práticas sociais que enunciam direitos, a partir mesmo de sua constituição extralegal, como por exemplo, os direitos humanos; 2. Definir a natureza jurídica do sujeito coletivo de direito; 3. Enquadrar os dados derivados destas práticas sociais criadoras de direitos e estabelecer novas categorias jurídicas para estruturar as relações solidárias de uma sociedade alternativa em que sejam superadas as condições de espoliação e de opressão entre as pessoas e na qual o direito possa realizar-se como um projeto de legítima organização social da liberdade. (SOUSA JÚNIOR [Org.], 2015, pp. 2-3, grifo meu).
Se esse reconhecimento e essa legitimação de direitos se dá no campo político, e aí permanecem firme, ou se vêm a trilhar um caminho judicial, anterior, concomitante ou posterior ao reconhecimento político, é questão que, se não passa despercebida pelo DAR, lhe interessa lateralmente. Até mesmo a positivação desses direitos pelos quais o DAR acompanha a luta ou luta junto – isto é, o tornarem-se leis produzidas pelo Estado – não é o ponto de chegada do DAR e muito menos o de partida. O interesse maior do Direito Achado na Rua é com o surgimento e impregnação de novos direitos em dado contexto histórico-social; com a preocupação de que sejam afirmados e reconhecidos no campo social e político como fenômeno jurídico legítimo, independentemente do reconhecimento que possa também advir, em reforço, da esfera estatal legislativa e/ou judiciária. O DAR corre por fora desses campos ou, melhor, plaina por cima, com aterrisagens possíveis, mas não imprescindíveis. A fonte do direito formal estatal (Poder Legislativo) e sua interpretação a ser conferida (Poder Judiciário) podem fazer as vezes de players estratégicos no endossamento dos direitos pluralísticos, seus sujeitos e espaços políticos, mas todo o núcleo ontológico do Direito Achado na Rua tem por espírito, na verdade, declarar-se independente dessas instâncias.
Contudo, ao entender o direito como irredutível expressão histórica do justo (SOUSA JÚNIOR, 2015, p. 25), O Direito Achado na Rua, imbuído do seu insuprível “compromisso de superação das injustiças” (Idem, p. 94), vai se voltar inevitavelmente a caçar a justiça, inclusive, na Justiça, ou seja, escrutinar o sistema de justiça para o questioná-lo sobre qual tipo e qualidade de justiça que tem distribuído. E isso vai se traduzir necessariamente na observação do que acontece nas judicializações de direitos. Por isso, não obstante não seja o seu foco principal, em relação aos processos judiciais do sistema de justiça, é possível dizer que o DAR se debruça para perguntar sobre justiça: a que justiça se quer ter acesso?
A Autora ensaia um manual de uso atenta a não permanecer no plano abstrato do desejo, mas a formular desenhos operativos que institucionalizem a escuta. Ela projeta procedimentos e diretrizes de formação. Tem educação esmerada para conhecer os entraves funcionais, burocráticos, regulamentares e até subjetivos. Leu Anatole France, leu Tolstoi, lei Proust, leu Balzac. Transcreveu páginas dramáticas dos três primeiros. Pensa como Balzac:
“Quando um homem cai nas mãos da Justiça, deixa de ser um ser moral, mas apenas uma questão de direito ou de fato, como aos olhos dos estatísticos se transforma um número” (BALZAC, Honoré de. O Coronel Chabert, Otto Pierre, Anatole France, pensou no juiz. Poderia também fazê-lo quando o grande escritor olha com os olhos do jurisdicionado (Da Submissão de Crainquebille às Leis da República. Crainquebille in FRANCE, Anatole. A Justiça dos Homens, Rio de Janeiro: Editora Civilização brasileira, 1978): “Crainquebille sentou-se na sua banqueta acorrentada, cheio de espanto e admiração. Ele mesmo não estava bem certo de que os juízes se houvessem enganado. O tribunal escondera-lhe as suas íntimas fraquezas sob a majestade das formas. Ele não podia acreditar que pudesse ter razão contra magistrados cujas razões não compreendera: era-lhe impossível conceber que alguma coisa claudicasse numa tão bela cerimônia”.
Tudo para vencer o obstáculo de um sistema e de um agente (o juiz), inaptos para o escutar: “provas de fatos, seguidas da subsunção silogística fato-norma-jurisprudência, são, pois, o centro insistente das práticas de trabalho da magistratura – e não deixa de ser curioso como, assim, vão se derretendo os sentidos originários da audiência e da sentença, etimologicamente, “atenção dada a quem fala” e “ato de sentir”, respectivamente. O juiz e a juíza brasileiros/as do século XXI, realizam centenas de audiências e exaram milhares de sentenças ao ano, mas, na maioria das vezes, fazem audiências sem ouvir e, por isso, acabam emitindo sentenças sem sentir” (p. 178).
Assim, freireanamente, abre a perspectiva do esperançar (p. 181-183), para ativar no sistema e despertar no agente, novidades que os mobilizem:
Esperançando aqui, se existir um novo juiz/uma nova juíza a nascer, de quem uma igualmente nova Justiça estivesse grávida, como seriam eles/elas? Dessa vez, calo-me para dar voz apenas a alguns dos/as autores/as citados/as no decorrer desta dissertação as inspirações, sem nenhuma pretensão de ser a relação completa, mas apenas para pincelar algumas das principais ideias que surgiram da bibliografia consultada. Podemos dizer que o/a novo/a juiz/íza da nova Justiça é:
participativo/a:
O novo juiz é partícipe da relação processual, ocupando posição central de órgão público interessado a fornecer justiça de modo melhor e mais rápido. (GOUVEA, 2009, p. 38)
tem por pauta a juridicidade e não a legalidade:
Não se pode mais sustentar que o juiz, diante do direito material e do direito processual, encontrasse atado a uma pauta de legalidade. A pauta do direito contemporâneo é a juridicidade, que aponta automaticamente à ideia de justiça, a qual forma o substrato material ao lado da constitucionalidade e dos direitos fundamentais do Estado constitucional. (MITIDIERO, 2019, p. 39)
é informal:
Taylor relata que na Austrália geralmente as partes e o magistrado sentam-se em torno de uma mesa de café e, muitas vezes, o próprio juiz telefona a alguém que possa confirmar a versão de uma das partes. O juiz ativo e menos formal tornou-se uma característica básica dos tribunais de pequenas causas. (CAPPELLETTI, 1988, p. 103)
4) é dialogador/a:
Superando mitos e barreiras fundadas em tradições corporativas e normatividades anacrônicas, é possível, talvez necessário, que se explore o potencial de novas fórmulas institucionais de justiça, menos técnicas e mais afeitas ao diálogo social e institucional, o que deve ser disputado e conquistado, certamente, na medida da práxis da sociedade civil organizada em torno de uma concepção que Boaventura de Sousa Santos chamou de acesso que vise à transformação da justiça acessada. (SOUSA JÚNIOR; ESCRIVÃO FILHO, 2016, p. 186)
Constata-se que a abertura institucional do poder judiciário para o diálogo deliberativo com os atores sociais envolvidos e instituições públicas implicadas apresenta-se como a essência de um procedimento apto a produzir soluções adequadas, alternativas e pacíficas par ao conflito (SOUSA JÚNIOR; ESCRIVÃO FILHO, 2016, p. 185)
Isso significa que é preciso, em primeiro lugar, abrir espaço na formação dos profissionais para aprenderem o respeito pelo outro como algo inafastável das profissões jurídicas. Um respeito que vai além dos discursos de dignidade e igualdade da Constituição e que se incorpora nas práticas cotidianas do profissional. Respeitar o outro é ouvi-lo, é colocar-se em seu lugar, é abrir-se para um real diálogo, para a relação de troca. Infelizmente, muitos profissionais recebem em sua formação a falsa noção de que o direito é um remédio para todos os males, de que o direito é a voz. E, com isso, assumem postura de antidiálogo, pois acreditam firmemente que só o direito tem a solução. Ao ‘ouvir’ o outro, tratam de imediatamente ir reduzindo sua fala ao que pode ser enquadrado, tipificado, normatizado. No fim do ‘diálogo’, o que fica é unicamente a voz do direito conforme as convicções profissionais. O outro importa apenas para trazer a causa, que passa a ser propriedade do profissional. (MARILLAC, 2009, p. 89)
é democrático/a:
De fato, uma concepção e abertura participativa da justiça também pode encontrar mecanismos e perspectivas orientadas para um aprofundamento democrático da via jurisdicional, sobretudo em casos envolvendo sujeitos coletivos de direitos implicados na luta pela defesa ou acesso a direitos humanos econômicos, sociais e culturais – sejam eles já traduzidos em direitos fundamentais, ou não. (SOUSA JÚNIOR; ESCRIVÃO FILHO, 2016, p. 182)
é envolvido/a:
Assim é que se requer do juiz, hoje, envolvimento, atuação e escolha. Decisão, portanto, proferida num procedimento em contraditório, respeitada a igualdade substancial e com total observância do devido processo legal na sua vertente processual e material. (CEREZZO, 2006, pp. 14-15)
é comunicativo/a:
Era comum, há algumas décadas, afirmar que o juiz só fala nos autos. Mas o mundo hoje é outro. O STF assimilou uma prática recorrente nos demais poderes, ao menos a partir da Constituição Cidadã de 1988. São as audiências públicas. Em hard cases, com implicações ideológicas, morais, éticas e religiosas, a estratégia mostra funcionar a contento. Em 2007, quando do processo a envolver pesquisa com células-tronco, o Ministro Ayres Britto ouviu 17 médicos, biólogos, pesquisadores, religiosos e representantes da sociedade civil. Em 2008, duas novas audiências públicas: a discussão a respeito de importação de pneus usados e a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos. Em 2009, a Corte convocou 50 especialistas para debater as liminares concedidas pelas instâncias inferiores da magistratura e que obrigam o Poder Público a fornecer gratuitamente tratamentos, próteses e remédios não garantidos pelo SUS. Em março de 2011, em audiência pública se debateu a política de cotas sociais e raciais para ingresso nas universidades. Essa prática sinaliza a todo o Judiciário o advento de novos tempos: ele não pode se manter alheio, mas tem de ouvir a comunidade a que serve. (NALINI, 2011, p. 82)
7) é inovador/a:
O Judiciário tem urgência de adotar novos paradigmas. E paradigma naquela visão de Thomas Kuhn, de um design novo, adequado a novas exigências, impostas pelo natural progresso da humanidade. (…) Por que não procurar fazer as coisas de um modo novo? Por que não incorporar novidades que tendam a aperfeiçoar uma prestação que se desenvolve da mesma forma há séculos? (NALINI, 2011, p. 22)
Um caminho sinuoso, tortuoso, acidentado. Pesquisa que coordenei respondendo a edital do Ministério da Justiça sobre modos de observar a Justiça e o Judiciário (Observatório do Judiciário, Série Pensando o Direito, UnB/UFRJ, PNUD/Secretaria de Assuntos Legislativos/Ministério da Justiça, Brasília, nº 15/2009. Coordenação Acadêmica: José Geraldo de Sousa Junior, Fábio de Sá e Silva, Cristiano Paixão e Adriana Andrade Miranda (http://pensando.mj.gov.br/wpcontent/uploads/2015/07/15Pensando_Direito3.pdf)), foi possível estabelecer junto a assessorias jurídicas de movimentos sociais e extrair de suas observações, a visão negativa dos modelos adjudicatórios do sistema legal e judiciário, presos às normas constituídas como unidade de análise das relações de conflito e incapazes de realizar até mesmo as promessas constitucionais de realização da Justiça, entre outros fatores, pela “resistência a trabalhar com o direito da rua”, pela “baixa sensibilidade para as demandas da comunidade”, pelos “limites culturais para a percepção de sujeitos e demandas inscritas nos conflitos sociais”, pela manutenção de “corpo com formação técnica desvinculada das experiências do mundo da vida”, pela “postura institucional burocrática” e pela “pouca permeabilidade ao controle social”.
A Autora encerra a sua Dissertação à moda utópica, quase como o Barão aventureiro do livro de Rudolf Erich Raspe, puxando-se pelos cabelos
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
Tribunal Popular. A Luta por Direitos Humanos no Jardim Ângela
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Tribunal Popular. A Luta por Direitos Humanos no Jardim Ângela. Wellington Pantaleão. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2021, 216 p.
Começam a ser fortes e são muito bem-vindas as mobilizações que hoje colocam a justiça brasileira em xeque, e a demonstrar desconforto e desconfiança sobre se mostrar apta a cumprir seu fundamento numa sociedade democrática e republicana.
A participação institucional de amplos setores do sistema judicial e do ministério público nos acontecimentos que produziram o afastamento de uma presidência legitimamente eleita e impediram suspeitamente uma candidatura a mesma presidência, mais aprofundaram esse mal-estar.
Entre essas mobilizações, vejo e participo com empenho da convocação que está sendo feita nesse momento para instalar, no Brasil, um Fórum Social Mundial Temático Justiça e Democracia. A partir de uma convocação de entidades, organizações e movimentos que convidam, apoiam e se coordenam para o realizar, entre elas o Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, os termos dessa convocação, numa apresentação ampla no dia 22/11, por meio do Programa de Gustavo Conde -https://www.youtube.com/watch?v=8lDcpkwl-v8 – e de todas as organizações que se associam nessa rede de comunicação e que se designam a partir do seguinte ponto de partida: JUSTIÇA E DEMOCRACIA, necessidade de somar esforços para criarem iniciativas conjuntas de resistência, frente a esse desassossego.
Motivados pelos processos dos fóruns sociais, estas organizações buscam ampliar contatos e agregar novos movimentos e organizações para, num primeiro momento, promover um espaço de encontros e de compartilhamentos de percepções e informações e, num segundo momento, buscar construir condições para ações concretas e coletivas frente a desafiadora conjuntura atual.
Para a centena de entidades convocadoras, tal como expressa a carta convocatória, os motivos e a urgência são conhecidos. A chamada sociedade moderna se acomodou ante as milhares de situações de violações de direitos humanos, com destaque especial ao escancarado racismo estrutural que nos assola e à manipulação da democracia através de técnicas cada vez mais sofisticadas de disseminação de notícias falsas. Toda a estrutura econômica e social se alimenta e está alicerçada nas desigualdades inerentes ao sistema capitalista, que leva ao extremo a exploração do trabalho humano, e mantém-se centrada não só no racismo, como na violência contra as mulheres e a comunidade LGBTQIA+, na segregação dos desiguais, na violação dos direitos dos povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos, entre outras.
Conforme a Carta de Convocação, é preciso desnudar quem são os autores dessas violações, com especial atenção para a responsabilidade das instituições estatais, sem perder de vista as violações perpetradas também por pessoas, grupos, organizações e setores econômicos. É preciso denunciar todas as violações, criar um potente movimento de solidariedade nacional e internacional, somar esforços e buscar construir saídas. É preciso pensar alternativas, caminhos. E todos eles passam pela defesa intransigente da democracia e da justiça.
Toda essa disposição tem muita aderência aos enunciados propostos por Boaventura de Sousa Santos e em suas reflexões orientadas para uma revolução democrática da justiça, título de um livro de referência (Para uma Revolução Democrática da Justiça. São Paulo: Cortez Editora, 3ª edição, 2011). Aliás, esses enunciados, aplicados à pesquisa que conduzi no interesse de edital do Ministério da Justiça, mereceram da equipe do notável professor uma aquiescência, em termos, expressa no parecer pedido pelo MJ para avaliar o trabalho feito, valendo destacar do parecer – http://pensando.mj.gov.br/wp-content/uploads/2015/07/15Pensando_Direito3.pdf – a consideração em todo caso, embora abonadora mas que aponta para questões que se armam problematicamente para o futuro que se seguiu àquela conjuntura, sob muitos aspectos, desastrosa para o País e não só para o Sistema de Justiça: “A justiça brasileira está neste momento colocada perante o desafio da sua democratização. Trata-se de um desafio exigente sobretudo quando se têm em conta que o sistema judicial é um campo de conflito em que interesses económicos e corporativos têm forte incidência e tendem a prevalecer. A proposta analisada está consciente do grau de exigência desse desafio e procura enfrentá-lo com êxito ao tentar incorporar em um único modelo de agenda política: reflexão académica, pesquisa empírica, participação social e concertação política. Nesse sentido, deve ser saudada. Enquanto modelo de agenda política destinado a uma Secretaria de Estado, a proposta deve ser ressaltada pelo seu carácter inovador na medida em que busca aproximar poder político e justiça tendo em vista a transformação democrática de um e de outra”.
Agora, a Lumen Juris lança Tribunal Popular. A Luta por Direitos Humanos no Jardim Ângela de Wellington Pantaleão. Conforme a descrição da página da Editora, a obra é resultado da pesquisa realizada sobre as repercussões do Tribunal Popular do Jardim Ângela, realizado em 2002, quando a região administrativa da zona sul de São Paulo ainda figurava, segundo dados da época, com índices altos de homicídios. O autor apresenta outras experiências populares de tribunais, demonstrando com base na teoria, que essa prática se constitui em modelo legítimo e plural do direito, construído a partir das realidades locais de cada comunidade, por meio de processos emancipatórios enquanto sujeitos de direitos.
Penso que o livro de Wellington Pantaleão da Silva, eu o disse em prefácio, deve ser saudado por se concertar a essas mobilizações. Ao estudar o Tribunal Popular do Jardim Ângela, realizado no ano de 2002, compreendeu que ele se consistiu numa estratégia do Fórum em Defesa da Vida, movimento social articulado nos oitenta bairros que compõem o Jardim Ângela, para exigir a construção de um hospital e o reforço do policiamento. Em que pese o Poder Judiciário ter sido uma alternativa real para a demanda do Fórum, a incerteza sobre os resultados possíveis e a letargia que tomaria conta do processo fizeram com que houvesse a percepção de que a interação social junto aos poderes públicos poderia ser mais efetiva.
Seu estudo, trazido para o livro, constata que “violações de direitos são passíveis de serem mitigadas, por meio da emergência de novos sujeitos coletivos que consensuam pelas suas identificações com o problema, a fim de construir uma perspectiva plural do direito positivado pelo Estado burguês, ao realizar processos de poder dual, ainda que em contexto não revolucionário”.
Com base em autores que estudaram a estratégia popular de julgamento moral ou político de temas que mobilizam o social e requerem protagonismo comunitário, o livro põe em relevo uma iniciativa popular que tem sido objeto de muita atenção dos estudiosos. Eu próprio tratei do tema sob a mesma perspectiva que o Autor, articulando teoricamente as implicações de dois conceitos que são pressupostos ao fenômeno estudado: o de dualidade de poderes e o de pluralismo jurídico.
Com efeito, meu texto – Para uma Crítica da Eficácia do Direito (Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1984), emprestou ao Autor, quando orientei trabalho acadêmico na Universidade de Brasília, essas categorias e lhe ofereceu as indicações bibliográficas que fundamentaram a sua análise da realidade vivenciada no Jardim Ângela. Assim é que estão presentes no seu livro as leituras de Michel Foucault (Sobre a justiça popular, in Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979); de Boaventura de Sousa Santos (Justicia Popular, Dualidad de Poderes y Estrategia Socialista. Papers: Revista de Sociologia 13, 1980; A participação popular na administração da justiça nos países capitalistas democráticos. Sindicato dos Magistrados do Ministério Público. A Participação Popular na Administração da Justiça. Lisboa: Livros Horizonte Lda, 1982; Law and Revolution in Portugal: The Experiences of Popular Justice After the 25th of April 1974. The Politics of Informal Justive, vol. 2. Academic Press, inc, 1982). Também diretamente ligado a uma experiência de tribunal popular, a sentença proferida por José Paulo Bisol Habeas da SQN 110. Tribunal Popular in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de (org). O Direito Achado na Rua. Brasília: Editora UnB/Curso de Extensão Universitária à Distância/Núcleo de Estudos para a Paz e Direitos Humanos/Universidade de Brasília, 1987).
Para além do estudo de caso específico, com a caracterização da realidade do Jardim Ângela que proporcionou a experiência de um tribunal popular, o livro traz um registro valioso na forma de considerações sobre a composição dos Tribunais Populares, identificando experiências de Tribunais Populares no Brasil de modo a demonstrar que não apenas no Jardim Ângela, naturalmente, mas em outras localidades do Brasil, as comunidades se reúnem para levar pelo caminho do pluralismo jurídico, a releitura do direito.
No livro, os registros são atualizados para situar em 2008, a instalação de um Tribunal Popular no salão nobre da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, com a finalidade de processar e julgar o Estado por seus crimes praticados, em sua maioria, contra a população jovem e negra das periferias, além de outras violações.
Nesse Tribunal, anota o Autor, foram realizadas quatro sessões temáticas, sendo que a quinta e última sessão foram realizadas para julgar o Estado brasileiro. A primeira sessão foi destinada às ações de violência policial verificadas no Complexo do Alemão, na cidade do Rio de Janeiro; a segunda sessão teve como foco a violência estatal no sistema prisional e as execuções sumárias ocorridas na Bahia contra a juventude negra; a terceira sessão esteve voltada para os crimes de maio de 2006 ocorridos em São Paulo e as práticas sistemáticas de execuções sumárias; a quarta sessão voltou-se especificamente para a violência estatal contra os movimentos sociais e a criminalização das lutas sindicais por terra e meio ambiente.
Para o Autor foi importante trazer ao trabalho um trecho da sentença proferida pela Juíza Kenarik Boujikian (da Associação Juízes para a Democracia) convidada pelo Tribunal Popular, que reafirma a urgência da construção do direito por meio do pluralismo jurídico e de suas formas populares de se dar e se exercer.
A obra destaca também, o Tribunal Internacional pela Democracia no Brasil, também conhecido pelo “Tribunal do Golpe”, que teve seus trabalhos conduzidos pelo Professor Doutor Juarez Tavares, professor titular da UERJ e Professor Visitante da Universidade de Frankfurt.
Segundo o Autor: “o referido Tribunal se destaca em sua condução, quando comparado aos demais Tribunais Populares, por ter sido levado adiante por um jurista, professor e advogado, que, creio, tinha um perfil bastante adequado ao tipo de matéria a ser apreciada e à linguagem do público presente. Nesse caso, não existia um representante do Estado para julgar as causas ali apresentadas, o que, a meu ver, restou claro nos demais Tribunais. Ainda que populares, referidos Tribunais contaram com personalidades ligadas à estrutura estatal para dizer o direito e por essa razão, torna-se difícil desassociar a pessoa à instituição”.
No seguimento dessas iniciativas, estabelecidas depois que já concluída a pesquisa que dá conteúdo ao livro, e por instigação das questões candentes que expõem o esgarçamento dos sistemas de justiça, ganha adesão e relevância a instalação em curso de um Tribunal Popular Internacional sobre Sistema de Justiça.
Entre as entidades e movimentos sociais que participam da construção do tribunal, estão: Articulação Justiça e Direitos Humanos – JusDh, Plataforma dos movimentos sociais pela Reforma do Sistema Político, Terra de Direitos, INESC – Instituto de Estudos Socioeconômicos, Cáritas Brasileira, Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares – Renap/DF, Associação de Juízes para Democracia – AJD, Intervozes, Levante Popular da Juventude, Artigo 19, MAM – Movimento Pela Soberania Popular na Mineração, Instituto Pro Bono, UnB – Grupo O Direito Achado na Rua, AATR – Associação dos Advogados de Trabalhadores Rurais, Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social – Cendhec, Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, MNDH – Movimento Nacional de Direitos Humanos, Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB, Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas – CONAQ, ACT Promoção da Saúde, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, Central de Movimentos Populares – CMP.
O Tribunal Popular Internacional sobre Sistema de Justiça é uma iniciativa desenvolvida desde 2019 por diferentes movimentos sociais, sociedade civil organizada, entidades e organizações, com o objetivo de popularizar o debate público sobre a complexa relação estabelecida entre o sistema de justiça brasileiro e a sistemática violação aos direitos humanos. Na Universidade de Brasília, assim como em outras universidades públicas, ele assume o desenho de projeto de extensão, engajando estudantes de diferentes cursos de graduação e pós-graduação com a metodologia dos tribunais populares, que historicamente tem sido aplicada por movimentos sociais para denunciar graves violações aos direitos humanos. São objetivos específicos do projeto: i. Denunciar violações de direitos humanos cometidas pelo Sistema de Justiça brasileiro; ii. Construir parâmetros sobre o Sistema de Justiça que queremos; iii. Fomentar a utilização local da metodologia dos tribunais populares; iv. formar e informar a sociedade sobre o funcionamento do sistema de justiça e o seu impacto nos Direitos Humanos e na democracia.
Na obra o Autor alinhava enunciados conclusivos destacados do arranjo analítico dos aspectos teórico e empírico relativos à pesquisa que deu origem ao livro. Cada um desses enunciados serve de descritor explicativo para o aspecto destacado para análise. Quero me ater à conclusão geral que o estudo de caso proporciona, para pensar a realidade brasileira na conjuntura. Diz o Autor: “onde as eleições não são respeitadas e se apeia presidente eleito do cargo por meio de golpe parlamentar, poderá reforçar as forças populares e democráticas deste país, que diante dos retrocessos verificados em algumas pautas, como a PEC dos gastos públicos e as reformas da previdência e trabalhista, buscarão, se não no âmbito nacional, mas no âmbito local, pautar suas demandas com peso de representação política”.
É aí que a “temática me provoca a pensar sobre passos futuros a serem dados, devido ao grande interesse pelo tema” quando mais “se espraia nos dias de hoje” a necessidade de mobilizar “as forças populares e democráticas”. A estratégia do tribunal popular se mostra valiosa para pautar no simbólico da ação política, um protagonismo potente porque carregado de eticidade e com clara perspectiva de alargamento do acesso democrático à justiça e que se tem mostrado extremamente apto para a abertura de espaços para a ampliação das condições democráticas de realização da justiça em nosso país.
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Julio José Araujo Junior. Ministério Público e Movimentos Sociais. Encontros e Desencontros. Rio de Janeiro: Editora Processo, 2021, 363 p.
O livro de Júlio Araujo chegou-me às mãos em feitio quase de oblação. Eu visitava o meu ex-aluno e amigo, também Procurador da República, Jorge Luiz Ribeiro de Medeiros, colega de Julio, e mal sabíamos, a poucos dias de sua páscoa, e então Adriana, esposa de Jorge, minha colega professora da UFG e ex-orientanda, me entregou o exemplar devidamente autografado que Julio, também visitando Jorge um dia antes – 12/08/21 – me oferecera e que ficara aos cuidados de Adriana.
O livro passou a ser também um in memoriam, não só porque as circunstâncias o imantavam espiritualmente, mas porque essa dimensão se fazia presente na obra, cuja Parte IV reúne ensaios que Julio elaborou em co-autoria, três deles: O Ministério Público Monocular; O Ministério Público dos Humanos Direitos; Ministério Público, Espírito de Corpo e Democracia; escritos com Jorge Luiz Ribeiro de Medeiros.
Antecipo, assim, que o livro contêm outras três Partes, organizadas conforme o carisma de seu subtítulo, por um compromisso com as lutas sociais e a democracia. Isso se denota logo pela designação dessas partes: Parte I: Ministério Público e Movimentos Sociais: Encontros e Desencontros; Parte II: Direitos Territoriais Indígenas: Uma Interpretação Intercultural (um resumo); Parte III: contendo uma antologia de textos, alguns com co-autores, certamente interlocutores do autor nos diálogos assinalados exatamente por esses compromissos com as lutas sociais e a democracia, algo que assombra e tem sido divisor de águas na afirmação institucional do órgão (MPF), nos dias correntes.
Procurei por a descoberto essa fratura que parece afligir a Instituição nessa quadra quando o sombrio da conjuntura obscurece também a percepção interna e externa sobre a função constitucional que lhe designou o constituinte de 1988 abrindo tensões acentuadas por posições constitucionais (uso o termo no sentido que lhe atribui Canotilho, cf. Pela Necessidade de o Sujeito de Direito se Aproximar dos ‘Sujeitos Densos’ da Vida Real. Entrevista in C & D, Observatório da Constituição e da Democracia. Brasília: Faculdade de Direito da UnB/Sindjus, nº 24, junho 2008), no caso, entre a corporação e a função democrática do órgão.
Com efeito, o Ministério Público Federal mandara instaurar procedimento correcional contra dois de seus membros, autores de Ação Civil Pública, objetivando a reparação aos danos morais coletivos causados aos cidadãos brasileiros pela Força Tarefa da Lava Jato em Curitiba e, especialmente, pelo então Juiz Federal Sérgio Fernando Moro em face da ofensa reiterada e sistemática por eles praticados contra o regime democrático (art. 1º, caput, da Constituição e art. 23, 1, “b” da Convenção Interamericana de Direitos Humanos) ao atuar em ofensa do devido processo legal e de modo inquisitivo no âmbito da denominada Operação Lava Jato, além de recomendar um conjunto de procedimentos para superar a realidade atual de uma intervenção de natureza ativista no plano judicial e do próprio MPF.
Inusitada situação. Para quem como eu, que tão ativamente participou dos debates constituintes, no espaço da Assembleia em depoimento sobre cidadania e direitos na Sub-Comissão que discutiu o tema, então representando a Comissão Brasileira de Justiça e Paz da CNBB é frustrante assistir hoje, esse enviesamento de uma Instituição que foi projetada na Constituição para ser garante da cidadania e dos direitos.
Assim, com certeza, orientava o constituinte Plinio de Arruda Sampaio, que foi o relator do capítulo na Constituição, ele antigo Promotor de Justiça, forjado na construção de uma institucionalidade atenta à dimensão ética do Ministério Público, deslocado da sua origem como procurador da Coroa para Procurador do Povo, conforme designou tão bem um de seus antigos membros quando em 1987, publicamos o primeiro volume de O Direito Achado na Rua (VASCONCELOS, Carlos Eduardo. Ministério Público: De Procurador da Coroa a Procurador do Povo ou a História de um Feitiço que às Vezes de Vira contra o Feiticeiro. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. O Direito Achado na Rua. Brasília CEAD/Editora da UnB, 1987).
Com Plínio, aliás, nunca se perdeu esse sentido de reposicionamento fundamental para republicanizar as institituições judiciais e o ministério público. No Seminário que organizamos por inciativa da CNBB em 1996, Ética, Justiça e Direito, depois convertido em livro (PINHEIRO, Pe José Ernanne, SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; DINIS, Melillo, SAMPAIO, Plínio de Arruda. Ética, Justiça e Direito. Reflexões sobre a Reforma do Judiciário. Petrópolis: CNBB/Editora Vozes, 1ª edição 1996), procuramos estabelecer o roteiro para a conquista civilizatória longa e difícil do estabelecimento e vigência do Estado Democrático de Direito. Nesse passo, buscando-se não só construir formas democráticas de acesso à Justiça mas refletir sobre a própria justiça a que se quer acesso, antecipando-se como valor, o que a correição agora quer atribuir como ilícito, entre outros fundamentos, apropriadamente lançados na Ação Cível pelos dignos procuradores, no uso de sua independência funcional, o que colocamos em nossas conclusões: necessidade de reestruturar completamente o ensino jurídico, a fim de que os futuros operadores do direito adquiram uma mentalidade mais aberta e sintonizada com os problemas e as necessidades do povo e ao mesmo tempo, democratizar o processo de seleção de juízes e promotores, reexaminando-se a fundo o conceito de carreira funcional da magistratura e do ministério público (op. cit. P. 15).
Exatamente o que recomendam os procuradores junto à cabível demanda de reparação de danos, hoje sobejamente designados pelo Supremo Tribunal Federal e por outras altas instâncias judiciais, declarando a suspeição do juízo e a irregularidade viciosa das promoções da chamada força tarefa (um termo típico da linguagem do lawfare).
A medida é uma objeção correcional originada de dois pesos e de duas medidas, se se anota o incômodo silêncio sobre outras atuações do próprio Ministério Público por vários de seus agentes quando praticam ou isentam de indiciamento, em alguns casos chegando a constranger o facebook que suspendeu perfis, assumidamente milícia das mídias sociais a serviço de uma causa político-ideológica; enquanto no ofício, argumente em outros casos para justificar arquivamento (Autos n.º: 08191.090277/2020-80 e 08191.098560/2020-50), com base em falta de justa causa porque a conduta “por mais combativa, divergente e controversa que seja, revela sua opinião pessoal sobre o tema do aborto, conforme apontado pelos diversos documentos juntados aos autos, estando, assim, tal manifestação abarcada pelo direito constitucional da liberdade de expressão, previsto no art. 5º, IX, da CF”.
Aqui, a liberdade de expressão abona a conduta, interpretada pelo membro do Ministério Público; lá, criminaliza-se a interpretação porque “o pedido inicial vem repleto de subjetivismos, imputações genéricas, elucubrações e argumentos de cunho político, afastando-se da objetividade necessária à prestação jurisdicional”.
Qual peso e qual medida toma Julio Araujo na sua atuação, não há dúvida. Especialmente na questão indígena, tão urgente e desafiadora. Entre outros textos, chamo a atenção para o que ele escreve com Marivelton Baré – Os Povos Indígenas e a Sua Luta em Tempos de Pandemia, revelando o quanto a sua passagem funcional pela Amazônia marcou a sua visão de mundo e de sociedade.
Não se trata apenas de associar-se em entendimento com um interprete autêntico do tema posto no texto co-autoral, sendo Marivelton dirigente de entidade que congrega povos do Rio Negro na região de São Gabriel da Cachoeira. Compartilho também essa interpretação, tanto que, com meus colegas Talita Tatiana Dias Rampin e Alberto Carvalho Amaral, também convidamos esse representante do Povo Baré a escrever para o livro que estamos organizando (Direitos Humanos & Covid-19: Respostas Sociais à Pandemia. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2021), tendo ele contribuído em texto em co-autoria com Renata Carolina Corrêa Vieira: O Protagonismo Indígena na Defesa da Vida: a Pandemia da Civid-19 em São Gabriel da Cachoeira.
Penso na histórica afirmação indígena por se constituir como titularidade subjetiva de sujeito coletivo de direito numa presença política no social que se distingue hoje no país, como afirmação de direitos e defesa da democracia.
Não testemunhamos todos, no 7 de setembro, com que força política, educando partidos, corporações, grupos de interesse, a esquerda, os indígenas de braços dados com os povos, as mulheres, a Igreja dos pobres e dos excluídos, o mais simbólico arco de alianças, a grande frente para um projeto de sociedade e de país. Todas as bandeiras reunidas, as feministas, as antirracistas, as identitárias, do campo e das cidades, por reconhecimento e participação, por teto, terra e trabalho, libertarem a praça (a Esplanada) do sequestro do fascismo, que pedia intervenção militar e a dissolução do Congresso e do Supremo Tribunal Federal?
E no tribunal, que não precisou ser protegido por tanques fumacentos, aparatos dissuasórios, cavalaria, as vozes indígenas, qualificadas pela inclusão universitária, sustentando da tribuna, verdadeiros amici curiae, o mais avançado direito: Cristiane Baré, Ivo Macuxi, Eloy Terena e vestida de encantamento, Samara Pataxó.
Talvez tenham acendido na memória progressista do Ministro Fachin, o sentido do verdadeiro direito achado nas aldeias, pré-estatal, pré-cabralino, para fixar que não existe isso de marco temporal, mas um direito cogente que não pode ser reduzido pelo estatal legal que o devem constitucionalmente proteger, que não o criam, apenas o declaram (cf. o meu Brasil, Terra Indígena in https://www.brasilpopular.com/brasil-terra-indigena/).
O livro de Julio, se representa o registro de vivências funcionais que o seu ofício proporcionou, fortalecendo a sua percepção de como o exercer seguindo os balizamentos da Constituição, acaba revelando a substância que anima o ethos da Instituição em face dos dilemas que hoje lhe são postos.
Tanto mais que esse ethos, correspondendo ao que no livro ele designa como comprometimento com as lutas sociais e a democracia, não deixa de expor disputas de posicionamento no interior da Instituição, projetando-se para a face política dessa institucionalidade.
Basta ver que atualmente Julio Araujo integra a direção da Entidade Associativa dos Procuradores da república, a ANPR e que essas questões não estão ausentes da agenda de grandes debates que a entidade promove.
Assim é que acaba de realizar-se o 37º Encontro da ANPR, com uma rica pauta de discussão, a que não faltou uma mesa, aliás, coordenada por Julio, para debater tema em defesa da democracia, incluindo uma mesa O MPF e o Diálogo com a Sociedade.
Estive presente nessa mesa, dividindo o debate com representante do MST (Alexandre da Conceição), Lúcia Xavier (Coordenadora da Organização Criola) e Marcio Santilli (Instituto Socioambiental), todos guardando lealdade ao Ministério Público prometido pela Constituição mas mantendo críticas às atuais hesitações e até certa demissão de sua hierarquia e de alguns de seus membros diante de exigências de atuação do Órgão (anote-se a série de incriminações contidas no Relatório da CPI da Covid que Comissão do Senado acaba de publicar). O que foi esse debate e o que se alinhar entre essas duas disposições, pode ser conferido no link (Canal YouTube de O Direito Achado na Rua): https://www.youtube.com/watch?v=WT00MRiRknI.
Na moderação do encontro Julio Araujo, dirigente da ANPR guardou coerência com o Procurador Julio Araujo, autor do livro ora Lido para Você. Imagino que essa coerência tenha contribuído para a aprovação de princípios de defesa da Constituição, da Democracia e de Defesa dos Direitos Fundamentais, traduzidos nos pontos que configuram a Carta aprovada ao final do Encontro – https://www.anpr.org.br/imprensa/noticias/25896-confira-a-carta-final-do-37-enpr-em-defesa-da-democracia2 – um alento para que identifique no órgão a condição de um Ministério Público da Cidadania, apesar de encontros e desencontros.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
DICIONÁRIO DOS ANTIS: a cultura brasileira em negativo
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
DICIONÁRIO DOS ANTIS: a cultura brasileira em negativo. Direção: Luiz Eduardo Oliveira / José Eduardo Franco (Orgs.). Campinas: Pontes Editores, 2021, 842 p.
Foto Adilson Andrade
Gosto de viajar entre verbetes de dicionários e desvendar a lógica organizativa de seus enunciados. Em entrevista para Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke (As Muitas Faces da História. Nove Entrevistas. São Paulo: Editora UNESP, 2000), Robert Darnton que escreveu uma história do livro do século XVIII, considera para a sua escrita que a Enciclopédia de Diderot e D’Alembert “é o livro mais importante do século XVIII, e que para ele, escrever sobre o processo de sua elaboração, representou poder trabalhar não a “biografia de uma pessoa”, mas, na verdade “a biografia de um livro”.
Dicionários guardo-os em minha biblioteca de todos os gêneros. Temáticos: sobre marxismo, Gramsci, Educação do Campo, Sociologia, Política, Filosofia. Entre os últimos, o do Bobbio (aliás, também de Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino), na bela edição da Editora da UnB, um sucesso editorial; o Lalande, preciosa indicação de Roberto Lyra Filho, meu orientador no mestrado, para iniciação de seus alunos de pós-graduação (Vocabulaire Techinique et Critique de la Philosophie, de André Lalande), inafastável em nossas pesquisas. Claro, também os jurídicos, dentre eles o sempre reeditável desde 1955, Dicionário das Decisões Trabalhistas, de Benedito Calheiros Bomfim (por suas mãos me tornei membro do Instituto dos Advogados Brasileiros e agora, por indicação da presidenta Rita de Cássia Sant’Anna Cortez, membro honorário, formando com Bernardo Cabral os dois únicos membros honorários vivos da Casa de Montezuma);e o insuperável Dicionário Enciclopédico de Teoria e de Sociologia do Direito, dirigido pelo querido André-Jean Arnaud (sobre Arnaud basta o que me respondeu Michel Miaille quando certa vez lhe perguntei sobre ele: “Arnaud est une institution!”). Uma pena e um alerta: mesmo considerando a edição brasileira, da Renovar, de 1999, com tradução e direção de Vicente Barreto, o único latino-americano com verbete no dicionário é Luis Alberto Warat (meu dileto amigo e orientador do doutorado).
Quanto tem me valido, nos momentos ternos ou evocativos, o meu sempre consultado Dicionário de Rimas; e nas ocasiões em que uma referência se faz necessária, o utilíssimo Dicionário de Citações (Paulo Rónai).
Não falo aqui dos dicionários de línguas, tão necessários para não perder o latim (para lembrar de novo Paulo Rónai), nem os vernaculares, lexicais, semânticos. Sempre é necessário uma visita ao Houaiss, e até ao Novo Dicionário Aurélio, já erigido a metonímia de dicionário: o Aurélio. Claro, sempre com a cautela recomendada por Barthes sobre o fascismo da língua (Aula. São Paulo: Cultrix, s/d; o original francês da Seuil é de 1978), não porque estrutura de poder imponha censura, mas porque obriga a dizer o que permite dizer). Considere-se que no Aurélio, honestidade atributo do masculino, é probidade; da mulher virtude; homem público é político, mulher pública é prostituta.
Mas faço questão de anotar o Dicionário Analógico da Língua Portuguesa. Ideias Afins/Thesaurus, do Professor Francisco Ferreira dos Santos Azevedo (2ª ed. atualizada e revista. Rio de Janeiro: Lexikon, 2010). Cito essa edição porque nela há um prólogo escrito por Francisco Buarque de Holanda, o Chico Buarque: Os Dicionários de Meu Pai. Claro que ele se refere a Sérgio Buarque de Holanda, o autor de Raízes do Brasil. Diz Chico, no prólogo:
“Pouco antes de morrer, meu pai me chamou ao escritório e me entregou um livro de capa preta que eu nunca havia visto. Era o dicionário analógico de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo. Ficava quase escondido, perto dos cinco grandesvolumes do dicionário Caldas Aulete, entre outros livros de consulta que papai mantinha ao alcance da mão numa estante giratória. Isso pode te servir, foi mais ou menos o que ele então me disse, no seu falar meio grunhido. Era como se ele, cansado, me passasse um bastão que de alguma forma eu deveria levar adiante. E por um bom tempo aquele livro me ajudou no acabamento de romances e letras de canções, sem falar nas horas que eu o folheava à toa […]”.
Guardo também com igual desvelo a minha edição, que recebi com uma dedicatória sensível de minha querida amiga Terezinha Ferreira Fonsêca, me oferecendo para auxiliar meus estudos “o dicionário de meu saudoso pai…”. Terezinha me contou um fato curioso. O professor Francisco Ferreira levara os originais datilografados para a primeira edição, ainda antes de sua morte. O material, embrulhado num pacote, por alguma distração, foi esquecido num banco de jardim e perdeu-se. O professor não tinha cópia, teve que reescrever todo o texto e é essa dedicação que nos lega essa obra única.
Obrigado Terezinha. Mas não me contenho em recuperar uma estória deliciosa, protagonizada por Terezinha. Querida amiga, esposa de um companheiro de minha Turma do Futebol, João Roller (não uma simples Turma, mas uma irmandade com quase quarenta anos de fundação, uma verdadeira legenda contada em verso e prosa, entre outros registros conferir o livro Uma Senhora Pelada – http://estadodedireito.com.br/meninos-do-rio-vermelho/). Aluna do curso de Direito numa universidade em Brasília, Terezinha reagiu numa classe de Sociologia Jurídica ao entusiasmo da professora que se estendia na exposição de um tópico dedicado a minha contribuição ao campo. Disse Terezinha: Ah, mas a Senhora está falando do Zé Geraldo! Como!? Reagiu a professora: você conhece o professor José Geraldo de Sousa Junior, um dos mais importantes juristas brasileiros, criador de O Direito Achado na Rua???. Claro, redarguiu Terezinha, é o Zé do Frango, goleiro da Turma de Futebol, meu marido João cansa de fazer gol nele! Ora pois, Zé do Frango… tenho em casa um troféu que me foi conferido pelo Master do Flamengo, em torneio do qual nossos times participaram, o Flamengo com Adílio, Rondinelli, Júlio Cesar, Nunes, Carlinhos. Meu time perdeu por 5 a 1, mas eu defendi um pênalti, para delírio da torcida, cobrado por Carlinhos o artilheiro do máster. Recebi um troféu pela façanha. O nosso gol foi obra mágica de nosso centro-avante Luizinho (que disputava a artilharia do time com João Roller) jornalista nacionalmente conhecido por sua inesquecível locução na antiga Voz do Brasil: Luiz Augusto Mendonça.
Noutro registro. Como negligenciar o achado do escritor argentino Jorge Luis Borges, que no conto O idioma analítico de John Wilkins, faz a advertência que cuido de transmitir aos meus alunos de Pesquisa Jurídica, segunda a qual, “sabidamente não há classificação do universo que não seja arbitrária e conjectural”. No exemplo dado pelo autor, narra ele “essas ambiguidades, redundâncias e deficiências recordam as que o doutor Franz Kuhn atribui a certa enciclopédia chinesa intitulada ‘Empório celestial de conhecimentos benévolos’. Em suas remotas páginas está escrito que os animais se dividem em 14 categorias:
(a) pertencentes ao Imperador; (b) embalsamados; (c) amestrados; (d) leitões; (e) sereias; (f) fabulosos; (g) cães vira-latas; (h) os que estão incluídos nesta classificação; (i) os que se agitam feito loucos; (j) inumeráveis; (k) desenhados com um pincel finíssimo de pêlo de camelo; (l) et coetera; (m) os que acabaram de quebrar o vaso; (n) os que de longe parecem moscas”.
Acabo de receber, por postagem de um de seus autores, o Dicionário Crítico-Hermenêutico Zygmunt Bauman (E-Book). Autor(es): Claudionei Vicente Cassol , João Nicodemos Martins Manfio , Sidinei Pithan da Silva. IJUÍ: Editora INIJUI, 2021, 268 p.: “Depois de alguns meses organizando, lendo, discutindo e escrevendo alguns verbetes… compartilho com vcs a nossa versão final. Primeira versão do Dicionário de Zygmunt Bauman. A capa foi presente que ganhei da filha do Bauman, Lydia Bauman, que é artista plástica e mora em Londres”.
Segundo a Editora, que oferece a obra no formato e-book, acesso gratuito, “o Dicionário crítico-hermenêutico de Bauman apresenta-se para nós como 1) um debate em torno do pensamento de Zygmunt Bauman, na tentativa de assegurar algumas gêneses teóricas da Sociologia e da Filosofia, identificadoras de seu constructo teórico; 2) possibilidade de elevar o conhecimento acerca do complexo, amplo e original pensamento de Bauman, professor das incertezas, das contingências, das ambivalências que povoam a vida, a existência, os discursos e os imaginários; 3) possibilidade de estabelecer, ainda que na transitoriedade/relatividade do pensamento, situado na pós-modernidade ou, para ser fiel a Bauman, na modernidade líquida, alguns elementos teóricos da identidade de Bauman sobre as quais podem ser construídos e desconstruídos aprendizados na perspectiva da condição humana; 4) um movimento de demarcação de um novo paradigma, uma nova forma de pensar, compreender e agir na influência, na crítica e na interpretação do pensamento de Zygmunt Bauman”.
Uma oportunidade para um mergulho orientado no reservatório líquido de conceitos que nos ajudam a dissolver o que parecia sólido com a modernidade, lembrando com Marshal Berman (Tudo que é Sólido Desmacha no Ar), que a expressão metafórica que Marx lançou com a crítica do Manifesto de 1848, ele certamente a capturou no Shakespeare, da Tempestade, como está no discurso de Próspero: “eram todos espíritos e dissolveram-se no ar, em pleno ar, e, tal qual a construção infundada dessa visão, as torres, cujos topos deixam-se cobrir pelas nuvens, e os palácios, maravilhosos, e os templos, solenes, e o próprio Globo, grandioso, e também todos os que nele aqui estão e todos os que o receberem por herança se esvanecerão, nada deixará para trás um sinal, um vestígio”, cf. em Lido para Você http://estadodedireito.com.br/a-cruel-pedagogia-do-virus/.
Recebi a recém-lançada obra Dicionário dos Antis. A Cultura Brasileira em Negativo, com dedicatória, de Carmela Grüne, a sempre mobilizada e comprometida com a Justiça editora do Jornal Estado de Direito, que abriga a Coluna Lido para Você.
Carmela é uma das Coordenadoras da modelagem brasileira do Dicionário dos Antis. Na descrição da edição, está dito que
“o leitor tem nas mãos uma obra inesperada. É uma história ao contrário, ou melhor, feita pelo prisma dos contrários. Resulta da observação crítica dos discursos de oposição, de conspiração, de negação, de combate ao Outro que pensa, age, crê e vive diferente de Nós que tem alimentado o campo da cultura em negativo. Estabelecer conhecimento crítico, de modo sistemático, sobre o universo fantástico dos estereótipos, dos mitos, das visões enviesadas que a dimensão do negativo produziu ao longo dos séculos permite-nos revisitar a cultura brasileira à luz de uma chave hermenêutica nova, na linha do que se está a fazer a nível internacional neste domínio, e compreender a complexidade das derivas da nossa história até aos dias de hoje. Um pequeno exército de pesquisadores, especialistas de vários campos do saber (História, Direito, Literatura, Educação, Antropologia, Sociologia, Teologia, Filosofia, Ciências Médicas, Estudos Culturais …), aceitou o desafio de escrever em conjunto esta obra que, além de um thesaurus de conhecimento único, nos pode ajudar a desconstrutir os mecanismos discursivos que geram a intolerância e impedem a construção de sociedades democraticamente maduras e a formação para uma cidadania inclusiva”.
Ele informa na resenha que o livro reúne artigos de 131 pesquisadores em 133 verbetes que descrevem o processo de demonização das diferenças, a obra é uma história da cultura brasileira em negativo. Produto da parceria de caráter internacional entre o Núcleo de Estudos de Cultura da Universidade Federal de Sergipe e o Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias (CLEPUL) da Universidade de Lisboa, com o apoio de mais 13 instituições nacionais e internacionais, a obra dirigida pelos pesquisadores Luiz Eduardo Oliveira e José Eduardo Franco tem a versão brasileira organizada por Carmela Grüne, Cristiane Nunes, Jean Chauvin, José dos Santos e Sandro Marengo, reunindo famosos pesquisadores brasileiros, como Luis Mott, Maria Luiza Tucci Carneiro e Valdete Souto Severo”, ele próprio um dos autores, com o verbete Antibolsonarismo, importante para compreender aspectos da conjuntura obscurantista que atravessamos.
Próxima de meu tema de mais detida atenção, a estimada Carmela Grüne, além de coordenadora, é autora do verbete Anti-Direitos Humanos (p. 190-196). Bem documentado – fico feliz de encontrar entre suas referências O Direito Achado na Rua, e a ocasião de ter podido conceitualmente contribuir para uma abordagem crítica, dada a característica da edição, mas que não se conforma na denúncia e carrega impulso convocatório para disputar possibilidades éticas e emancipatórias. Ao estilo de Frei Betto que sugere deixar o pessimismo para tempos melhores. Nesse sentido é que a autora faz um chamamento inscrito na dimensão política da vontade de agir: “Precisamos oportunizar vivências positivas ao maior número de pessoas, para que essas possam por uma experiência marcante, que modifique ou aprofunde a maneira de viver, reativando registros, conectando alternativas e fontes de conhecimentos para encontrar novas respostas e caminhos para a valorização da experiência humana por práticas de afetos com alteridade e solidariedade”.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Cartilha Esperança Garcia e Luís Gama. Cartilha antirracista para as carreiras jurídicas. GT LBS Antirracismo. Organização Sarah Cecília Raulino Coly. Brasília: LBS Advogados, 2021, 18 p.
Em Coluna anterior – http://estadodedireito.com.br/agenda-2021/ – a partir de brinde de final de ano de Cezar Britto Advogados Associados, dirigido, melhor dizer, coordenado pelo querido amigo Cezar Britto, acabei tendo ensejo para trabalhar um conceito que esbocei, de agenda livro e, na Coluna, discorrer sobre o mimo recebido, bem representativo do conceito, por ser a expressão de sociedade e de mundo do atelier (vou chamar assim) do querido amigo.
No curso da leitura, centrada na concepção da Agenda 2021, pude fazer muitas derivações sobre as singularidades de diferentes suportes com essa característica: folhinhas, calendários, almanaques, e entre esses, a minha atenção mobilizada pelo Anuário LBS Advogados & Instituto Lavoro. Então, registrei no Lido para Você referido acima: “É notável encontrar tal auto-reflexividade nessas peças inesperadas, agendas e anuários. Vi isso também, no Anuário LBS ADVOGADOS & INSTITUTO LAVORO, orientado por meu querido companheiro de percurso no jurídico e que agora retorna ao doutoramento em Direitos Humanos e Cidadania, na UnB, José Eymard Loguércio. O Anuário 2020 é um repositório, ao estilo dos repositórios acadêmico-profissionais. Esse o seu conceito. Aponta para o futuro que quer disputar (2021) mas avalia o caminho percorrido, com a lucidez de que aqui e lá são ‘Estranhos Tempos. Tempo único’: ‘Foi um ano em que nos ajudamos, nos solidarizamos, buscamos construir e ter mais conhecimento. Este Anuário 2020 retrata o trabalho de todas e todos da LBS’”.
Eis que agora, precisamente neste 20 de novembro de 2021, recebo, pela minha rede web, a Cartilha Esperança Garcia e Luís Gama. Cartilha antirracista para as carreiras jurídicas. GT LBS Antirracismo. Organização Sarah Cecília Raulino Coly. Sarah, altamente qualificada, profissional e academicamente é sócia da LBS Advogados.
A edição não poderia ser mais oportuna. Não só porque toma o paraninfado de Esperança Garcia e de Luiz Gama. Ambos, nas circunstâncias dramáticas de suas existências, realizaram projetos de vida nos quais a liberdade, a emancipação, a justiça e o direito se fundiram como núcleo do que pode ser considerado uma exemplaridade para um ofício que a LBS realiza sobejamente: a advocacia.
A Cartilha recolhe um trecho de carta de Esperança, escrava embora, foi considerada a primeira advogada brasileira (certificação simbólica conferida pelo Conselho Seccional da Ordem, no Piauí):
Eu sou uma escrava de V.S.a administração de Capitão Antonio Vieira de Couto, casada. Desde que o Capitão lá foi administrar, que me tirou da Fazenda dos Algodões, aonde vivia com meu marido, para ser cozinheira de sua casa, onde nela passo tão mal. A primeira é que há grandes trovoadas de pancadas em um filho nem, sendo uma criança que lhe fez extrair sangue pela boca; em mim não poço explicar que sou um colchão de pancadas, tanto que caí uma vez do sobrado abaixo, peada, por misericórdia de Deus escapei. A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confessar a três anos. E uma criança minha e duas mais por batizar. Pelo que peço a V.S. pelo amor de Deus e do seu valimento, ponha aos olhos em mim, ordenando ao Procurador que mande para a fazenda aonde ele me tirou para eu viver com meu marido e batizar minha filha. De V.Sa. sua escrava, Esperança Garcia.”
Há pouco, os estudantes de direito da UnB, em mobilização altamente convocatória, com a força de uma argumentação de forte sentido histórico-antropológico-sociológico, e também, com uma presença fenotípica impulsionada pelas cotas raciais implantadas na UnB obtiveram, no Conselho da Faculdade, a alteração da renomeação de seu icônico auditório Joaquim Nabuco, para Esperança Garcia.
E note-se que o Auditório detinha uma nomeação digna e honorável, homenagem a um reconhecido abolicionista. Mas os estudantes reivindicavam um pertencimento mais autêntico, com legitimidade mais definida de enunciação, que não fosse delegada a quem, elite, branco, proprietário, governante, se substituísse ao sujeito de sua própria emancipação.
Se orientavam, nesse passo por Lélia Gonzalez (Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira), sobre a intenção do falar. Do subalternizado falar: “Ora, na medida em que nós negros estamos na lata de lixo da sociedade brasileira, pois assim o determina a lógica da dominação, caberia uma indagação via psicanálise. E justamente a partir da alternativa proposta por Miller, ou seja: por que o negro é isso que a lógica da dominação tenta (e consegue muitas vezes, nós o sabemos) domesticar? E o risco que assumimos aqui é o do ato de falar com todas as implicações. Exatamente porque temos sido falados, infantilizados (infans, é aquele que não tem fala própria, é a criança que se fala na terceira pessoa, porque falada pelos adultos), que neste trabalho assumimos nossa própria fala. Ou seja, o lixo vai falar, e numa boa”.
Também Luiz Gama entra na Cartilha e não apenas como ilustração. Mas como formulador. Há referência preciosa ao seu ditado, agora que seu pensamento coligido começa a circular como fonte valiosa. Neste final de ano, a ADUnB, sindicato que organiza os professores da UnB fez brinde aos associados de uma edição da Expressão Popular (Luiz Gama – Antologia. São Paulo, 2021). Recolho de sua Carta ao Mui Ilustre e Honrado Sr Comendador José Vergueiro – p. 29-35, um trecho que ilumina o seu pensamento político: “A democracia é o misterioso verbo da encarnação social, é a alma coletiva da humanidade; fora temerária insânia o pretender comprimi-la nas páginas humildes de uma Constituição”.
Eis o que venho insistindo em dizer, em muitos textos, e mais recentemente, por ter maior circulação, em entrevista que concedi para o site do Instituto Humanitas da Universidade de Vale do Rio Sinos: “a constituição é a expressão de um processo contínuo em construção de direitos. Se a gente assistir ao apelo do Artigo 5º da Constituição, vai ver que ali tem um elenco grande de direitos, mas a chave de encerramento do artigo é de que nem isso esgota outros direitos que decorram da natureza do regime ou dos princípios que a Constituição adota. Se a natureza do regime é a democracia, então, como lembra Marilena [Chauí], a democracia é o regime que permite a criação permanente de direitos” (http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/526174-a-constituicao-e-a-construcao-de-direitos-entrevista-especial-com-jose-geraldo-de-sousa-junior).
O índice da obra dá bem a medida de seu conteúdo e alcance:
Introdução
Ingresso nas Carreiras Jurídicas
Políticas Afirmativas
Dados do Poder Judiciário
Na Prática, como Agir Diante de Situações de Racismo ou Injúria Racial?
Sou advogado e vou atuar em um processo de racismo ou injúria
E nos casos de violência policial
Racismo e saúde mental.
Nela, o que transparece é a motivação inscrita numa criação corporativa de ofício, na qual transparece aquele sentido que Padura havia surpreendido, com a licença da ficção, pensando o atelier de um mestre de seu ofício, quando cada nova geração tem obrigação de estudá-lo – claro Padura estava pensando na Lei – para ser capaz de ultrapassar o limite da linha. “Estudar – ele diz sugerindo novas aberturas – e só aprender, como disse, pelo gosto de fazê-lo?”. Em Hereges (Boitempo), Leonardo Padura, apresenta Elias Ambrosius Montalbo de Ávila, um adolescente fascinado por Rembrandt, que começa a trabalhar em seu atelier e acaba cometendo a heresia de aprender para ultrapassar limites.
Talvez por isso digam os Organizadores: “somos disruptivos”. O Escritório é mais que um lugar de operadores de uma profissão, o Direito. É uma Corporação, no sentido da medieval corporação de ofício. Assim na forma como a partir do século XII, na Europa, os artífices de diversas atividades começaram a se reunir em organizações que tratavam do conhecimento de determinadas atividades, voltadas para o aprendizado e o compartilhamento do conhecimento dos respectivos trabalhos.
As Corporações de Ofício eram sim ambientes de aprendizado do ofício e de estabelecimento de uma hierarquia do trabalho. A própria organização interna das Corporações de Ofício era baseada em uma rígida hierarquia, composta por Mestres, Oficiais e Aprendizes. Um modelo que que se ampliou e que alcançou todas as formas de atividades artesanais e intelectuais.
De fato, como método de dividir as atividades em tarefas, até as universidades (Século XIII) foram organizadas do mesmo modo que as demais atividades artesanais, ou seja, a corporação de ofício. Conforme Jacques Le Goff, “as escolas são oficinas de onde se exportam as ideias, como se fossem mercadorias” (Os Intelectuais na Idade Média. Lisboa: Gradiva, 1984).
Na Cartilha, o Escritório converte-se em oficina: “Nós, integrantes do GT Antirracismo da LBS Advogados, passamos a nos aquilombar em encontros e reuniões, propondo discussões, reflexões e diálogos sobre pretos e pretas, para todos e todas que se dispusessem a participar. E que grata surpresa olhar para o lado e ver que somos tantos e tantas cores nessa caminhada”.
A Cartilha não é infantilização discursiva enquanto suporte. É um recurso pedagógico. No meu próprio ofício docente, já experimentei combinar o suporte cartilha com a técnica dos quadrinhos. Ali pelos meados do 1980, em projeto de extensão universitária – Projeto Comunitário pela Cidadania – coordenei alunos e alunas da disciplina Direitos Humanos e Cidadania procurando combinar o discurso acadêmico e do senso comum para atuar com trabalhadores em seu empenho político de “conscientização para a consecução da cidadania ativa”. Uma Cartilha Necessária, no formato de histórias em quadrinhos (tudo produzido pelos alunos, foi um esforço de oficina nessa direção).
Não era uma novidade. Já antes, um dos mais importantes filósofos do Direito, aliás, meu orientador no Doutorado, Luís Alberto Warat, tratou de simplificar para melhor entendimento, o difícil processo de compreender a denominada teoria pura do direito, desde a complexa formulação lógico-positiva de seu criador Hans Kelsen, patrono de todo o positivismo jurídico que é um dos pilares do direito moderno científico-burocrático-legal.
Os Quadrinhos Puros do Direito, com texto de Warat, em que não faltou a transliteração da norma fundamental kelseneana na carnavalizada (Mikhail Bakhtin), mulata fundamental waratiana, foi útil não apenas para estudantes, mas para muitos docentes que os liam disfarçadamente, para enfim, entenderem (talvez) Kelsen. Os Quadrinhos, com desenhos de Gustavo Feroz Cabtiada, podem ser encontrados na internet, ou na bem cuidada edição das obras completas do autor de A Senhora Dogmática e seus Dois Maridos, editada pela Fundação Boiteux. Para o caso, o volume I – Territórios Desconhecidos: a Procura Surrealista pelos Lugares do Abandono do Sentido e da Reconstrução da Subjetividade (Florianópolis, 2004). O texto original foi editado em Buenos Aires.
Não poderia haver modo mais eloquente de marcar o 20 de novembro, por um coletivo jurídico que se engaja na luta emancipatória por direitos, que esse elaborado pela LBS e seu GT Antirracismo. Conforme afirmei em outro lugar (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Cidadania e Cultura Afro-Brasileira. In Sociedade e Estado. Revista Semestral do Departamento de Sociologias da UnB, vol. 1, nº 1, jun/86), “Num campo peculiar de expressão cultural afro-brasileira, a formação da consciência negra, a reivindicação de ‘direitos humanos dos negros’, o ‘quilombismo’, a existência de movimentos militantes negros definem o ‘lugar’ que esses grupos ocupam na sociedade e demarca a situação especial a partir da qual a questão negra se articula com as lutas gerais da própria emancipação social e humana”.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55
Semeando Resistência: I Encontro Nacional de Mulheres do MST
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Raíssa Vaz Mendes. Semeando Resistência: I Encontro Nacional de Mulheres do MST. Dissertação de mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinar da Universidade de Brasília como parte dos requisitos necessários para a obtenção do grau de mestra em Direitos Humanos e Cidadania. Brasília, 2021, 122 f.
Perante a banca examinadora formada pelos professores Talita Tatiana Dias Rampin, da Faculdade de Direito da UnB e Antonio Sérgio Escrivão Filho, membro externo (IESB), Raíssa Vaz Mendes apresentou, defendeu e teve seu trabalho aprovado, qualificando-se como mestre na área de direitos humanos e cidadania. Para mim um motivo de satisfação por ter orientado o trabalho.
A dissertação, expõe o seu resumo, resulta de trabalho que “foi realizado através de pesquisa etnográfica, durante o I Encontro Nacional de Mulheres do MST, ocorrido em março de 2020. Visa contribuir para o entendimento do encontro realizado e estabelecer uma ligação entre as teorias dos direitos humanos contrahegemônicos, o sujeito Sem Terra e os sujeitos coletivos, na demanda de direitos sociais e coletivos na construção de iniciativas como a do encontro realizado. Procura também articular o feminismo camponês popular, vertente formulada pelas mulheres do campo, a um panorama histórico do movimento feminista brasileiro, a criação do setor de gênero do MST, sua apresentação de demandas e a construção do I Encontro de Mulheres do MST. Por fim, se propõe a iniciar uma discussão acerca da presença de negros e negras no campo e das mulheres negras dentro do MST”.
A pesquisa realizada, com forte aproximação etnográfica, abordagem bem operacionalizada pela Autora que é tem formação em ciências políticas, guarda a vivacidade desse mergulho em campo, materializando, tal como a pesquisadora indica, “a escolha de um objeto de pesquisa, o MST e da opção em fazer uma etnografia comecei minhas idas a campo, após a minha qualificação. Inicialmente tinha como tema falar sobre MST e o papel do movimento na luta contra a fome e contra a pobreza e como campo de pesquisa o assentamento Cunha, localizado em Brazlândia-DF. Visitei o assentamento, conheci os espaços de cultivo, as casas e alguns dos moradores do assentamento. Conversando com os meus interlocutores e interlocutoras do assentamento Cunha me apareceram inquietações e possíveis questões de pesquisa”.
Essa vivacidade que se encarna na atitude e no enfoque epistemológico do trabalho, está registrada nas imagens da sessão de defesa, guardadas no acervo do Canal Youtube do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, oferecido neste Lido para Você em complemento à resenha nele contida: https://www.youtube.com/watch?v=KgK4jDGdcb8.
Mas ela pode ser intuída desde os tópicos enunciados no Sumário do trabalho:
INTRODUÇÃO
1.1 Chegada ao campo
1.2 Metodologia
1.3 Referencial teórico
2 A CONSPIRAÇÃO DAS SEMENTES CRIOULAS – I ENCONTRO NACIONAL DE MULHERES SEM TERRA
2.1 Fundação do MST
2.1 Organização do MST
2.2 As sementes crioulas e a conspiração das sementes
2.3 Cartilha de orientações políticas, orientações práticas e linhas políticas do
Encontro
2.4 As participantes
2.5 A mística e a práxis do MST
2.6 Espaço do encontro
2.6.1 Decoração do encontro
2.6.2 Cartas
2.6.3 Amostra da Reforma Agrária Popular
2.7 Primeiro dia do encontro
2.8 Segundo dia do encontro
2.9 A formação política do MST
2.10 Terceiro dia do encontro
2.10.1 Cochicho
2.10.2 Oficinas de encantarias e Saber Fazer, Trocas de Experiências e Balaio dos
Saberes
2.10.3 Ato político com aliadas e aliados
2.11 Marcha de 08 de março, a conspiração das sementes junta sementes do campo e da cidade
2.12 Último dia de encontro
2.13 Protesto no Ministério da Agricultura
3 O TAMANHO DA NOSSA SOLIDÃO
3.1 Direitos humanos contra-hegemônicos e teorias críticas dos direitos humanos
3.2 O não-ser
3.3 Sujeitos coletivos de direito
3.4 Da ocupação da terra para a defesa dos direitos humanos
3.5 Reforma Agrária
3.5.1 Reforma Agrária Popular – a proposta atual do MST
4 ESTAMOS TODAS DESPERTAS!
4.1 Feminismo no Brasil
4.2 Feminismo Camponês Popular
4.3 Feminismo Camponês Popular no MST
4.4 Setor de gênero do MST
4.5 LGBTs no MST
4.6 O Caderno de Formação – Setor de Gênero: A conspiração dos gêneros: elementos para o trabalho de base
4.6.1 Linha política central do setor de gênero do MST
4.7 Princípios e dimensões do MST e do setor de gênero (Caderno Setor de Gênero, (2017)
4.7.1 Dimensão política organizativa
4.7.2 Dimensão cultural
4.7.3 Dimensão econômica
4.7.4 Dimensão subjetiva
5 ERAM RANCORES ABISSAIS
5.1 A questão da terra no período escravaista
5.2 Brecha camponesa
5.3 Primeira Lei de Terras
5.4 A questão do território
5.5 Campesinato negro
5.6 Mulheres Negras e negritude no MST
6 CONSIDERAÇÕESFINAIS
7 REFERÊNCIAS
O estudo de Raíssa, em apoiar-se teórica e politicamente nos pressupostos de O Direito Achado na Rua, guarda lealdade aos fundamentos de sua base nativa de apoio interpretativo, fundada no humanismo dialético de Roberto Lyra Filho, ensaiando e bem num arranjo de completude os elementos designativos, que bem cairiam no arranjo social e teórico sugerido por O Direito Achado na Rua, a partir das experiências analisadas, para assim: 1) Determinar o espaço político no qual se desenvolvem as práticas sociais que enunciam direitos, a partir mesmo de sua constituição extralegal, na enunciação como direitos humanos; 2) Definir a natureza jurídica do sujeito coletivo capaz de elaborar um projeto político de transformação social e elaborar a sua representação teórica como sujeito coletivo de direito; 3) Enquadrar os dados (achados) derivados destas práticas sociais criadoras de direitos e estabelecer novas categorias jurídicas para estruturar as relações solidárias de uma sociedade alternativa em que sejam superadas as condições de espoliação e de opressão entre as pessoas e na qual o direito possa realizar-se como um projeto de legítima organização social da liberdade (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática, Revista Humanidades, vol. 8, número 4 (30). Brasília: Editora UnB, 1992).
Assim que é destacadamente relevante tomar o MST como tema, não fosse essa articulação social a grande expressão da força dos movimentos sociais, em nosso tempo. Celso Furtado havia designado o MST como o mais importante movimento social do mundo no século XX. E sua importância não se reduziu, tanto que acaba de receber nesse 10/9), na Espanha, um prêmio em reconhecimento pela defesa dos direitos humanos. O prêmio “Acampa – Pola Paz e Dereito a Refuxio”. O MST foi o mais votado na categoria internacional em um júri virtual, com 22,73% das apoios. O prêmio é um reconhecimento de “que o modelo de desenvolvimento adotado pelo sistema capitalista tem colocado o mundo em colapso, mas que o MST se coloca como alternativa e esperança”, sobretudo no contexto de uma pandemia que “aumentou ainda mais a ação do movimento em defesa dos direitos humanos, tanto pela reforma agrária e produção de alimentos saudáveis, mas também porque [o MST] está preocupado com a natureza, com as relações sociais, com a construção da democracia, com a dignidade das pessoas e a solidariedade”, assim se expressaram os seus dirigentes.
Na acepção conceitual de O Direito Achado na Rua, ainda quando o recorte da pesquisa se fixe na ação das mulheres (I Encontro Nacional de Mulheres do MST), o seu escopo é o de “compreender como as teorias emancipatórias dos dos direitos humanos e os conceitos de sujeitos coletivos e sujeito Sem Terra levaram à construção da luta por direitos sociais do movimento” (p. 18).
Nessa perspectiva, o centro da atenção da Autora, na Dissertação, é focalizar o I Encontro Nacional das Mulheres do MST, de modo a acentuar o que nela se representa como “conspiração das sementes, essa conspiração [que] germina sementes de resistência””. Vale dizer:
A semente da resistência é semeada no coletivo, nos encontros, nos grupos de estudo e trocas de ideias, na autoformação das mulheres. A semente da resistência é semeada no momento que elas se percebem como mulheres e trabalhadoras em uma sociedade patriarcal e racista e que juntas elas podem transpor barreiras, reivindicar direitos, agir como sujeitos de uma coletividade. São sementes, que quando sozinhas tem um tamanho pequeno, um volume quase insignificante, mas quando juntas o peso é enorme, ocupam um grande espaço e se encontram prontas para semear e resistir onde estiverem.
O encontro das sementes-alimento e das sementes-mulheres inaugurou o I Encontro de Mulheres do MST. Na chegada das comitivas de todas as regiões do país cada comitiva trazia alimentos plantados em seu território a partir das sementes-alimento: arroz, feijão, couve, abóbora, chuchu, banana, todas as hortaliças, frutas e leguminosas, todas com cultivo orgânico, abasteceram as três cozinhas montadas para o encontro. Como é comum nos encontros e reuniões do MST, parte dos alimentos cultivados foi colocado para enfeitar o palco e parte foi trazido para a venda no espaço da Amostra de produtos da Reforma Agrária.
Em convergência com outras pesquisadoras vinculadas ao Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, a Dissertação põe em relevo essa categoria central de seu fundamento teórico, o sujeito coletivo de direito, conforme item 3,3 (p. 57-59), para designar, em diálogo com os autores do Coletivo, a estratégia de ação (ocupação) como modo de realização de direitos.
Nesse diálogo, a interlocução mais forte são com aqueles autores, antes autoras, que percorreram a mesma senda, também pela afirmação da subjetividade ativa do feminismo, notadamente, do feminismo camponês popular. Assim, para acentuar as referências, o excelente trabalho de Ísis Táboas. De fato, em É LUTA! Feminismo Camponês Popular e Enfrentamento à Violência – mais uma obra de referência da Editora Lumen Juris, já em segunda edição, Ísis retoma o tema do feminismo camponês para, segundo suas próprias palavras, transformar “o relato de experiências concretas de luta das coordenadoras em categorias analíticas sobre o feminismo camponês popular e o enfrentamento à violência doméstica e familiar no campo”. Isso, conforme ela, com vistas a promover “um processo de interlocução entre a academia e o movimento social, buscando colocar as ferramentas acadêmico-científicas a serviço do povo”
Presente no livro, em registro de sua 4a. Capa, a certificação dessa pertinência no comentário de Rosângela Piovisani Cordeiro, membra da Direção Nacional do Movimento de Mulheres Camponesas. De fato ela afirma ter Ísis Menezes Taboas traduzido “com delicadeza, serenidade e fidelidade a vida cotidiana das mulheres camponesas, ao analisar com atenção as elaborações do Feminismo Camponês Popular, trazendo o recorte da luta de classes e a ousadia na construção e organicidade do Movimento das Mulheres Camponesas na luta pelo socialismo como projeto político.” (cf. http://estadodedireito.com.br/e-luta-feminismo-campones-popular-e-enfrentamento-violencia/).
Rosângela é também autora citada no trabalho de Raíssa, agora numa inscrição que a habilita como voz afirmativa do tema no cabedal do próprio O Direito Achado na Rua. Basta conferir, a propósito, em co-autoria com Iridiani Graciele Seibert, Feminismo Camponês Popular: Uma Afirmação Histórica na Luta por Direitos das Mulheres Trabalhadoras do Campo, in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al, org., O Direito Achado na Rua vol. 10: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade. Brasília: Editora UnB/Editora OAB Nacional, 2021.
Toda a boa bibliografia organizada pela Autora lhe dá lastro para articular os achados da pesquisa e sustentar a conclusão que ela apresenta:
Os camponeses latino-americanos que são fruto de junção entre indígenas, negros, negras e europeus, a partir do seu entendimento enquanto sujeitos coletivos passaram a se reunir e compartilhar as identidades camponesa e latino-americana para desencadear processos de luta emancipatória em todo o continente. Diferentes sujeitos coletivos de direito, como o MST, a Via Campesina, o MMA, outras associações de camponeses, sindicatos, quilombos, comunidades tradicionais e grupos de trabalhadores e trabalhadoras de diversos países em toda a América latina têm se organizado a partir da centralidade da luta contra as estruturas coloniais, racistas e patriarcais em uma luta conjunta contra as opressões vivenciadas, contra a austeridade e o neoliberalismo crescentes, contra a perda dos direitos dos trabalhadores e trabalhadoras e em defesa dos direitos sociais e coletivos. Um desses pontos de convergência da luta é o Feminismo camponês popular, articulado pelo MMC, Via campesina e MST (p. 115)
E, na especificidade do feminismo camponês popular, reafirmar algo que, de minha parte já venho constatando há algum tempo. Algo presente nas lutas sociais que distingue a mulher numa constatação a partir da qual, a meu ver, já pode se generalizar o empoderamento que a participação nessas lutas confere ao feminismo (cf. http://estadodedireito.com.br/atlas-sobre-o-direito-de-morar-em-salvador/).
Essa constação se depreende das conclusões de Raíssa Vaz Mendes, sobre o protagonismo feminino camponês, à luz de seu estudo de caso:
O I Encontro de Nacional de Mulheres do MST e o feminismo camponês demonstram que nem a teoria, nem a prática do pensamento ocidental/universal/patriarcal/racista/colonial são suficientes para explicar e para alterar a nossa realidade. É necessário descolonizar nossas epistemológicas, valorizar os saberes populares e pensar a partir do Sul, buscando a interseccionalidade entre classe, raça/etnia e gênero para compreender as nossas clivagens sociais e combater a nossa imensa desigualdade.
A consciência de que existe uma estrutura que nos oprime, a busca por entender e modificar essa estrutura social a partir da luta dos sujeitos coletivos, das mulheres e dos homens trabalhadores, dos negros e negras, dos indígenas, LGBTs e outras minorias são as lições que o MST, os Sem Terra e principalmente as mulheres do MST nos convidam a pensar. Da rua, do campo, da cerca rompida e com os pés no chão o MST conduz a sua marcha para a emancipação e para a mudança da estrutural social patriarcal/colonial/classista a partir de sua práxis militante (p. 118).
Em meu prefácio à obra que acima referida – http://estadodedireito.com.br/atlas-sobre-o-direito-de-morar-em-salvador/ – faço um registro que bem ilustra esse protagonismo, a partir de um depoimento que recolhi: “Mesmo considerando que muitas mulheres entram no Movimento de Luta pela Moradia levadas apenas pela necessidade da casa, na atuação diária, elas fazem política e se percebem como sujeitos políticos”. Essa condição tem sido uma referência corrente diante do protagonismo político da mulher. Em Brasília, a partir de um curso de extensão desenvolvimento pela UnB/Faculdade de Direito para a capacitação de mulheres em gênero e direitos humanos, como “promotoras legais populares” (Introdução Crítica ao Direito das Mulheres, Série O Direito Achado na Rua, vol. 5, CEAD/UnB, Brasília, 2012), percebe-se que tratar dos direitos das mulheres é também tratar dos direitos dos homens, e dos direitos em geral, pois quando as mulheres avançam na sua pauta por libertação por conseqüência a sociedade toda em conjunto avança no horizonte da igualdade e, portanto, da justiça.
Por isso que Raíssa Vaz Mendes pode dizer ao final de seu trabalho: “Como me ensinaram as mulheres do MST, ‘Pisa ligeiro, pisa ligeiro. Quem não pode com a formiga, não assanha o formigueiro’, as mulheres camponesas assim como as formigas estão se unindo e descobrindo a força do seu formigueiro (p. 118).
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
Relatório da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da Universidade de Brasília
A Câmara Legislativa do Distrito Federal aprovou, na semana passada, um projeto que faz justiça histórica: a Ponte Costa e Silva se torna Ponte Honestino Guimarães. Iniciativa dos deputados Ricardo Vale e Leandro Grass, impulsionada por fortes manifestações de segmentos sempre mobilizados da Sociedade Civil, a aprovação da lei representa, nas palavras do Deputado Distrital Fábio Félix, que foi coordenador do Diretório Central de Estudantes Honestino Guimarães da UnB a “vitória da verdade, do direito à memória, da justiça e da luta da família do Honestino e de tantas outras que nunca puderam enterrar seus entes queridos, executados pela Ditadura”.
Lembrei esses princípios em artigo (Revista do Sindjus Agosto/Setembro de 2007 • Nº 42: Memória e Verdade como Direitos Humanos), escrito em seguida a um um seminário nacional “Pela memória e verdade como Direitos Humanos”, realizado em Brasília, na UnB.
Promovido pelo MNDH– Movimento Nacional de Direitos Humanos e pelo NEP – Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos da UnB, neste encontro foram compartilhadas inúmeras experiências, cujo ponto em comum pode ser considerado a recusa ao ocultamento político de fatos históricos. Por isso, foi marcante a participação de personalidades como Lílian Celiberti, uma vítima símbolo da repressão concertada das ditaduras do Cone Sul, nos anos 1970, e também, a apresentação de uma representante da Associação das Avós da Praça de Maio, da Argentina, entre tantos outros expositores portadores de experiências diversas.
Fui expositor na mesa “Direito à Memória e à Verdade” e me mantive fiel ao ponto de vista comum. Lembrei que esta consigna não é uma novidade na luta pela inserção da verdade na política e traduz um consenso axiológico transformado em princípio para orientar a ação dos povos que formam o continente americano.
Com efeito, resultado de debates no âmbito do Mercosul, o tema memória e verdade levou a OEA (Organização dos Estados Americanos) a adotar resolução (2006) que reconhece a importância de respeitar e garantir o direito à verdade para contribuir com o fim da impunidade e proteger os Direitos Humanos. Ela indica que os Estados devem, em “seus sistemas jurídicos internos, preservar os arquivos e outras provas relativas a violações”.
O tema da abertura dos arquivos do período de repressão política na vigência do regime militar de 1964-1985, pontuou todo o seminário. Na minha exposição, aliás, tratei exatamente de caracterizar as três condições que, a meu ver, qualificam a transição desse período para a democracia: a Constituinte, a anistia e o acesso à verdade com a abertura dos arquivos que registram os fatos e que ocultam as ações políticas desse período.
A Constituinte tem um relevo evidente, porque a constituição da transição permitiu um espaço de mediação razoável para liberar as energias democráticas não contidas totalmente pela experiência do terrorismo de Estado.
Como palavra de ordem para abrir a transição, ela permitiu a entrada em cena de novos movimentos sociais, populares e sindicais, cujo projeto de sociedade teve inscrição na Constituição de 1988, para caracterizá-la como expressão de uma cidadania participativa.
A anistia foi, talvez, a primeira bandeira a organizar a resistência democrática. Ainda que só definida em 1979, no final do regime militar, por isso, restrita e abrigando de modo espúrio uma remissão a agentes da repressão e torturadores, ela galvanizou o imaginário democrático e, culturalmente, ganhou o sentimento de oposição ao regime.
Num artigo que escrevi em 1987 (Anistia, o compromisso da liberdade, Revista Humanidades nº 13, Editora da UnB), mostrei como já em 1964, a partir do Ato Institucional nº 1, que abriu o ciclo das cassações de direitos políticos e de demissões sumárias de trabalhadores, várias vozes, muitas de escritores, como Tristão de Athayde e Carlos Heitor Cony, se fizeram ouvir em apelo de “anistia já!”.
No ano de 1964 mesmo, a Editora Civilização Brasileira lançava a sua revista – a Revista da Civilização Brasileira -, marcando com o primeiro número, a convicção de que a saída para a crise que se instalava, tinha que carregar um elemento de superação democrática: “que os cárceres se abram, e os tribunais absolvam, e os lares recebam os que serviam de vítimas”. Neste mesmo número, a revista, que logo seria vítima do ciclo de retrocesso, trazia o belo artigo de Cony – “Anistia”: “É preciso – ele dizia – que a palavra cresça: invada os muros e as consciências”.
Agora, é tempo de reivindicar a verdade e de resgatar a memória, como referências éticas para conter a mentira na política. Em comentário anterior no espaço da Revista do Sindjus (Memória e Verdade: os mortos do Araguaia, Revista do Sindjus, agosto de 2003), referi-me à grande pensadora Hanna Arendt, para reter a sua advertência de que “uma das lições que podem ser apreendidas das experiências totalitárias é a assustadora confiança de seus dirigentes no poder da mentira e na capacidade de reescreverem a história para adaptá-la a uma linha política”.
Por isto é tão urgente abrir os arquivos dessa conjuntura histórica. Não se trata apenas de resgatar a memória e a verdade, mas de completar a transição e abrir-se à experiência plena da democracia, da justiça e da paz. Se essa tarefa já se fazia urgente como continuidade de um processo de redemocratização, ele é ainda mais necessário quando há uma reagrupação de forças obscurantistas, já instaladas em golpe de força, na institucionalidade, para ameaçar essa institucionalidade e repristinar o autoritarismo ditatorial.
Por coincidência, nesta semana (29/10), em aula magna do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, da UnB, o professor Paulo Sergio Pinheiro, que coordenou a Comissão de Memória e Verdade do Brasil (A Comissão Nacional da Verdade (CNV), órgão temporário criado pela Lei 12.528, de 18 de novembro de 2011, encerrou suas atividades em 10 de dezembro de 2014 (conheça o seu Relatório: http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/index.php/outros-destaques/574-conheca-e-acesse-o-relatorio-final-da-cnv), nos lembrou a todos e todas que a “vigência de um regime tendencialmente democratizante não é condição automática para o alastramento e consolidação de direitos” (veja a sua bela exposição em: https://www.youtube.com/watch?v=qon6RVukYjo). E confira a fidelidade ao que já dizia em 1987 (Dialética dos Direitos Humanos. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de – org, O Direito Achado na Rua. Curso de Extensão à Distância, Série O Direito Achado na Rua. Brasília: Editora UnB, 1987), salientando que “os direitos individuais somente podem prevalecer na medida direta em que foram reconhecidos como direitos sociais para todos os grupos marginalizados, mortificados e anulados na sociedade brasileira”.
O simbólico da lei que acaba de ser aprovada em Brasília para renomear uma ponte, está conforme a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, diligente em salvaguardar a reparação da dignidade ofendida, do projeto de vida frustrado, com essa pedagogia que acentua marcas de memória.
Na linha desse entendimento, professei no exercício do meu reitorado na UnB, esses fundamentos. Se o nosso hospital universitário, que ao ser incorporado a UnB, se denominava Emílio Médici, o nome do chefe militar instalado na presidência da república na quadra mais cruenta da ditadura civil-militar, passou a se denominar HUB simplesmente; se o campus da Asa Norte da universidade foi denominado Darcy Ribeiro em homenagem ao fundador cassado e exilado (neste mês de outubro, dia 26, se vivo, faria 90 anos), cuidei de nomear espaços universitários em resgate da memória de vítimas da exceção. Assim foi com os centros de vivência inaugurados nesse tempo que se denominaram Ieda Santos Delgado, Paulo de Tarso Celestino e Honestino Guimarães, estudantes da UnB, militantes políticos, inscritos nos registros oficiais de mortos ou desaparecidos (cf. relatórios da Comissão de Mortos e Desaparecidos).
De volta ao chão de minha docência na Faculdade de Direito, pude fazer o memorial propositivo para nomear o prédio no qual se instala a Faculdade, como o nome de seu primeiro diretor Victor Nunes Leal: “Jurista, professor e escritor, o autor de Coronelismo, Enxada e Voto pertence àquela estirpe que sabe exercitar a compreensão plena do ato de interpretar a realidade e proferir juízos acerca de nosso agir no mundo, rejeitando a falsa oposição entre o político e o jurídico, ao entendimento de que, para se realizar, “a Justiça não deve encontrar o empecilho da lei”. Victor Nunes Leal, com efeito na UnB e no Supremo, levou, em significativa antecipação, o direito a andar pelas ruas porque, “quando anda pelas ruas, colhe melhor a vida nos seus contrastes e se prolonga pela clarividência da observação reduzida a aresto”. Quando se registra 50 anos do golpe que vitimou também Victor Nunes, o simbolismo do ato aprovado pela Faculdade de Direito da UnB é marca de memória. Presta-se a ressignificar o legado de tão formidável contribuição à história da UnB, de sua Faculdade de Direito, da cidade que as acolhe e da democracia brasileira”, cf. a propósito, me artigo UnB homenageia Victor Nunes Leal no seu centenário, publicado em 17/11/2014 no jornal CORREIO BRAZILIENSE,17/11/14, Seção Opinião, pág. 11.
Também nesse modo de professar pedagogicamente os valores de memória, verdade e justiça é que, ao final de meu reitorado, ao ensejo dos eventos do jubileu da UnB e sob motivação da própria Comissão Nacional da Verdade, institui e instalei a Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da Universidade de Brasília, “para apresentar à comunidade acadêmica e à sociedade a análise circunstanciada sobre as violações de direitos humanos e liberdades individuais na Universidade de Brasília durante o período de 1º de abril de 1964 a 5 de outubro de 1988”. Entre meu ato constitutivo e a apresentação final do Relatório em setembro de 2015, tenho que fazer o registro de alta qualidade do trabalho realizado e do Relatório apresentado, a peça que é objeto deste Lido para Você, e do protagonismo acadêmico e autoral daqueles que integraram a CATMVUnB: Roberto Armando Ramos de Aguiar (Presidente), ex-Reitor da UnB, in memoriam, Cristiano Otávio Paixão Araújo Pinto (Coord. Relações Institucionais), José Otávio Nogueira Guimarães (Coord. Pesquisa), Daniel Barbosa Andrade de Faria (Coord. Redação e Sistematização do Relatório), Beatriz Vargas Ramos Gonçalves de Rezende, Claudia Paiva Carvalho, Cláudio Antônio de Almeida Eneá de Stutz e Almeida, Fernando Oliveira Paulino, Ivonette Santiago Almeida, Luiz Humberto Miranda Martins Pereira, professor um dos fundadores da UnB, in memoriam, Nielsen de Paula Pires, Paulo Eduardo Castello Parucker e Simone Rodrigues Pinto.
As circunstâncias da conjuntura avalizam a importância desse mergulho no Relatório publicado na página da UnB e também em formato e-book, pela Editora FAC-Livros, da Faculdade de Comunicação da UnB. A peça é um primor editorial. Espero que a Comissão de Alto Nível que coordena as celebrações em 2022 dos 60 anos da Universidade de Brasília possa preparar uma edição especial a cargo da Editora da UnB, como fiz em 2012, com uma segunda edição comemorativa do livro de Roberto Salmeron, A Universidade Interrompida. Brasília 1964-1965 (http://estadodedireito.com.br/a-universidade-interrompida-brasilia-1964-1965/).
Apesar da remissão weberiana, relatórios há que se descolam de seu suporte burocrático para alcançar alturas de peças de referência e até nas belas letras. Assim, o relatório de contas do pequeno município de Palmeira dos Índios, em Alagoas, que despertou no conselheiro do TCU e acadêmico (ABL) Abgar Renault a intuição de que o redator do relatório escondia a força do escritor. O prefeito era Graciliano Ramos que logo depois publicaria Caetés.
Assim também a escrita de Anton Tchékhov, o grande autor russo, que sem meias palavras descreve aquilo que vê, sente e pensa sem um pingo de censura, totalmente honesto, “um verdadeiro relatório de campo, um diário”, sobre sua viagem a Sacalina uma das maiores ilhas do mundo, que servia de prisão na Rússia antes da URSS, de condenados deportados a trabalhos forçados, isso no final dos anos de 1800. Há um livro compilado com o Relatório do autor de A Gaivota, para servir de orientação a jornalistas, publicado pela Martins Fontes: Um Bom Par de Sapatos e um Caderno de Anotações.Como fazer uma reportagem.
Atrás citei Hannah Arendt, a partir de seu A Mentira na Política, para dar lastro a meu argumento sobre memória e verdade. O ensaio da grande pensadora se baseia nos Pentagon Papers, Os Documentos do Pentágono como é o nome popular do relatório ultra-secreto de 14 mil páginas do governo dos Estados Unidos sobre a história do planejamento interno e da política nacional norte-americana sobre a Guerra do Vietnã. O nome foi dado pelo jornal The New York Times, a quem parte deste documento foi entregue em 1971, após ser retirado clandestinamente dos arquivos do governo norte-americano por um funcionário do Pentágono, Daniel Ellsberg.
Relatório sempre sob grande expectativa, a última versão sairá nesta semana, é O Relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil – já com dados de 2020. Publicado anualmente pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), apresenta o retrato de um ano trágico para os povos originários no país. A grave crise sanitária provocada pela pandemia do coronavírus, ao contrário do que se poderia esperar, não impediu que grileiros, garimpeiros, madeireiros e outros invasores intensificassem ainda mais suas investidas sobre as terras indígenas (https://cimi.org.br/2021/10/relatorioviolencia2020/).
Relatório necessário, desde que em 1967, foi divulgado Relatório Figueiredo. Com mais de 7000 páginas. Esse Relatório foi elaborado pelo procurador Jader de Figueiredo Correia a pedido do ministro do interior brasileiro Afonso Augusto de Albuquerque Lima. Nele são descritas violências praticadas por latifundiários brasileiros e funcionários do Serviço de Proteção ao Índio contra índios brasileiros ao longo das décadas de 1940, 1950 e 1960:
No final dos anos 1950 até 1968, o Estado brasileiro submeteu seus povos indígenas às tentativas violentas para integrar, pacificar e aculturar suas comunidades. Em 1967, o promotor público Jader de Figueiredo Correia, apresentou o Relatório Figueiredo à ditadura que então governava o país, o relatório de sete mil páginas não seria liberado até 2013. O relatório documenta crimes de genocídio contra os povos indígenas do Brasil, incluindo assassinatos em massa, tortura e guerra bacteriológica e química, relatava escravidão e abuso sexual. Os documentos redescobertos estão a ser analisados pela Comissão Nacional da Verdade, que tem sido encarregada das investigações de violações de direitos humanos que ocorreram nos períodos de 1947 a 1988. O relatório revela que o Serviço de Proteção ao Índio havia escravizado povos indígenas, torturado crianças e roubado terras. A Comissão da Verdade é da opinião de que tribos inteiras no Maranhão foram completamente erradicadas e em Mato Grosso, um ataque a trinta cintas-largas deixou apenas dois sobreviventes. O relatório também afirma que latifundiários e membros do SPI teriam entrado em aldeias isoladas e deliberadamente introduzido varíola. Das cento e trinta e quatro pessoas acusadas no relatório do Estado até agora não julgaram nenhuma, uma vez que a Lei da Anistia aprovada no fim da ditadura não permite julgamentos para os abusos que aconteceram nesse período. O relatório também detalha casos de assassinatos em massa, estupros e tortura, Figueiredo afirma que as ações do SPI teriam deixado os povos indígenas próximos da extinção. O Estado aboliu o SPI após o lançamento do relatório. A Cruz Vermelha lançou uma investigação após novas alegações de limpeza étnica serem feitas após o SPI ter sido substituído (https://pt.wikipedia.org/wiki/Relat%C3%B3rio_Figueiredo).
Não chega a ser um Relatório, mas tem esse estilo a obra Holocausto Brasileiro lançada em 2013 pela jornalista Daniela Arbex que retrata os maus-tratos da história do Hospital Colônia de Barbacena administrado pela FHEMIG através do depoimento de ex-funcionários e pessoas ligadas diretamente ao dia-a-dia do funcionamento do local. Em matéria de El País, o drama nos avassala:
“Hoje estive em um campo de concentração nazista. Em nenhum lugar vi algo assim”, declarou depois de visitar o Colônia em 1979 o psiquiatra Franco Basaglia, promotor da reforma dos manicômios na Itália. Jornalistas locais fizeram as primeiras denúncias públicas nas décadas de sessenta e setenta. Suas fotos e relatos causaram espanto, mas logo caíram no esquecimento. A jornalista Daniela Arbex era adulta quando ouviu falar pela primeira vez do atroz episódio da história local. “Fui procurar os sobreviventes. E graças a eles consegui resgatar o que acontecia atrás das paredes”, explica por telefone a autora do livro Holocausto Brasileiro, publicado em 2019. Um best-seller que contribuiu para divulgar um horror de que muitos brasileiros nunca ouviram falar. Ela insiste que todos foram cúmplices: os médicos, as famílias, os moradores, a sociedade em geral…
Siqueira conta na cidade onde passa o confinamento com a família que sua mãe, dona Geralda, ainda mora em Barbacena. Eles se viam todo mês até que o coronavírus perturbou tudo. O bombeiro se irrita com o fato de que alguns moradores acreditem que divulgar as atrocidades prejudica a reputação local. Para ele é o melhor antídoto para evitar que ninguém mais seja tratado de maneira tão desumana. “Apesar de ter nascido na barbárie, sou fruto de uma rede de solidariedade”, insiste, referindo-se às freiras e outros adultos dos orfanatos, que o guiaram quando era adolescente e invejava aqueles que recebiam alguma visita.
O trágico transparece no relatório da Oxfam de 2021 O vírus da desigualdade. Sob a incidência da pandemia a organização fala de um mundo unido pelo dilacerado decorrente do coronavírus por meio de uma economia justa, igualitária e sustentável. Ela documenta e descreve as estimativas realizadas internamente para o relatório nas seguintes áreas: Tendências para a riqueza e pobreza extremas; Opiniões de economistas sobre o impacto da pandemia da COVID-19 sobre a desigualdade; A situação de mulheres, negros e negras, afrodescendentes e grupos latinos durante a pandemia; Transferência tributária das empresas para as famílias.
É que também é descrito no Relatório da CPI da Covid, publicado e aprovado na Comissão do Senado em 26/10. Entretanto, é indizível o horror que transparece de sua escrita, e das indagações dirigidas às consciências críticas conforme meu artigo no Jornal Brasil Popular (https://www.brasilpopular.com/falta-alguem-na-cpi/). Digo eu:
“Sob tais diferentes indagações, em face pandemia da COVID-19 e sua desastrosa e conforme o Relatório criminosa gestão no Brasil, não cabe ativar uma consciência infeliz a partir do social e da exigência de responsabilidade que a todos convoca, sob pena de não podermos nos dizer inocentes diante das interpelações agudas que nos faz Darcy Ribeiro, ou em termos conforme venho remarcando – http://estadodedireito.com.br/direitos-humanos-e-covid-19/? Nessa emergência composta de impulsos de exceção, é somente o Jurídico, no Legislativo e nos Sistema de Justiça, os chamados a se constituir como arena de resistência ao processo de desdemocratização e de desconstitucionalização em curso no País e à banalização da vida pela ação de governança absolutamente incompetente para agir no enfrentamento à pandemia? Ou será que falta alguém na CPI além daqueles que ela recomenda indiciar?”.
Vou ao Relatório objeto deste Lido para Você. O Sumário em si é uma expressão do conjunto simultaneamente descritivo e analítico acerca da realidade relatada: começa com a cortesia de um resumo na forma de um Sumário Executivo e prossegue com as enunciações que levam, a meu ver, à principal conclusão. Houve sim violações cruciantes alcançando a integridade e o projeto de vidas das muitas individualidades identificadas no trabalho da Comissão, mas o que penso melhor o caracteriza é ter constatado ter a violência feito da UnB [um] Projeto Inicial Interrompido.
Observe-se o Sumário, em continuidade:
Apresentação
Atividades da Comissão Anísio Teixeira da Memória e da Verdade da UnB
A Justiça de Transição e as comissões da verdade
Repressão e resistência na Universidade: a luta das gerações
Nota metodológica
Relação de Depoimentos colhidos pela CATMV-UnB
UnB: projeto inicial interrompido
Centro Integrado de Ensino Médio (CIEM): um momento da educação em Brasília
PARTE I: Organização cronológica UnB, Ditadura, Resistência: periodização e cronologia das graves violações de direitos humanos na ditadura e do processo de luta contra o regime
Periodização e cronologia da ditadura e da resistência na UnB 1962-1965: da materialização do projeto de universidade criativa e voltada aos problemas do país à sua brusca interrupção
1962: nasce uma nova universidade 1964-1965:
o golpe em abril; a primeira invasão policial-militar da UnB; prisão de professores e estudantes; demissão do reitor Anísio Teixeira; crise do pedido de demissão coletiva de professores
1964
Crise de 1965: O cerco se fecha sobre a universidade
Prisões arbitrárias
Demissões por motivo político
1968-1974:
repressão exacerbada a todo foco de oposição: expulsões, prisões, torturas, desaparecimentos
1968
Um prelúdio: a visita do embaixador John Tuthill
De março a abril de 1968
Maio a Agosto de 1968
29 de agosto de 1968
A expulsão de Honestino Guimarães, 26 de setembro de 1968
Agosto: Ação Terrorista de Estado
O perfil do Reitor e a nomeação de José Carlos de Almeida Azevedo para o cargo de Vice-Reitor
Torturas
1969: o ano da clandestinidade e do 477
O Decreto-Lei n° 477, de 26 de fevereiro de 1969
Clandestinidade e resistência
1970-1971 A universidade sufocada
1971: Onda repressiva sobre a APML
Mais algumas palavras sobre as torturas
1973-1974: “Where have all the flowers gone?” Uma onda repressiva em torno de repúblicas e seus moradores
A fabricação do inimigo
1974: Mais um caso intrigante
1974-1979: Na corda bamba, sem rede embaixo: entre o terrorismo de Estado e o retorno à democracia limitada
1974 (Improvável) rearticulação estudantil
1975 movimento estudantil e repressão
1976 Ensaio Geral de repressão e resistência
1977 Greve histórica e mais invasões policiais-militares
1978 UnBgate, ADUnB, DCE Livre
1979-1988: Em clima de abertura (pontuada por atentados de extrema-direita), avança a luta democrática; integrando-se aos movimentos sociais e populares, estudantes e professores se juntam na luta pela derrocada da ditadura
1979 O ano da UNE e da Anistia
1980-1984, 1985-1988: do outono da ditadura a um rascunho de democracia
1980 Docentes e discentes movem-se juntos
1981 Kissinger de camburão
1982-1983 A força dos estudantes e professores
1984 Diretas Já, Reitoria ocupada, fim da ditadura
1985-1988 Nova República, eleição direta na UnB, etc.
PARTE II: eixos temáticos
II.1 – Estrutura da rede repressiva interna e externa
II.2 – Cartografia da ditadura e da resistência na UnB
II.3 – Tortura no DF
Parte II.3: VIDAS
Desaparecidos políticos da Universidade de Brasília (UnB)
Paulo de Tarso Celestino da Silva (1944-1971)
Honestino Monteiro Guimarães (1947-1973)
Ieda Santos Delgado (1945-1974)
Considerações sobre o caso Anísio Teixeira
PARTE IV: CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES
Recomendações
ANEXO – O olhar de fotógrafos profissionais sobre o período e sobre as fotografias produzidas pela ditadura existentes nos arquivos da ASI/UnB
1) MARCOS SANTILLI
2) ADONAI ROCHA
Referências Bibliográficas
O Relatório, desde que produzido por acadêmicos com adensada maestria no manejo teórico e metodológico, acaba acrescentando ao seu arranjo um suporte epistemológico que não deixa os fatos flutuarem ao impulso da relevância dos elementos empíricos que os caracterizam, nem deixar os achados dissiparem-se em idealizações nefelibatas. Esse suporte é sempre muito conceitual, no manejo de categorias de inteligibilidade e nas validações nutridas por referências precisas.
Deixo ao leitor ou ao pesquisador interessados o desfrute de um mergulho de conhecimento das formas históricas em que os acontecimentos se desenrolam e das possíveis generalizações sociológicas que eles suscitam, especialmente para as articulações político-jurídicas que reclamam.
Aqui, para efeito demonstração e dada a convocação de conjuntura, no atual, o que nele se refere, em parte, à situação de Honestino Guimarães:
Ainda segundo Victoria Langland, o comitê pró-UNE desencadeia, durante os esforços para reconstrução da entidade, o movimento “Onde está Honestino” e organiza visitas aos ministros da Justiça e da Educação para que fossem fornecidas informações sobre o paradeiro daquele que tinha sido o último presidente da UNE. Como se sabe, pouco ou nada foi descoberto sobre o paradeiro de Honestino, mas essas iniciativas foram cruciais na definição da exemplaridade de sua trajetória e no simbolismo da sua luta.
Na manifestação de 1978, prossegue Langland, surgiram as primeiras referências memorialísticas relacionadas a Honestino. Naquela oportunidade, foi lido um documento escrito por Honestino (o mandado de segurança popular, referido no presente Relatório, na parte alusiva à trajetória dos desaparecidos) pouco antes de sua captura pelas forças da repressão (LANGLAND, 2013, p. 232-233).
Nesta parte da fundamentação, merece ser recuperado outro documento que traduz algo da luta de Honestino. Trata-se de um ensaio histórico produzido por Daniel Faria, Professor do Departamento de História e integrante da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB.
No texto, o Prof. Daniel propõe uma “anamorfose de um dia”, o dia em que Honestino escreveu uma carta destinada a sua família. Reproduziremos aqui alguns excertos do ensaio, também com a finalidade de recuperar a escrita de Honestino. Na primeira parte da citação, está o texto de Daniel Faria. Com os depoimentos e informações disponíveis, podemos imaginar como poderia ser um dia na vida de Honestino em dezembro de 1972. Em primeiro lugar, ele morava num apartamento com outros militantes da Ação Popular, no Rio de Janeiro. Em segundo, os moradores do apartamento estavam preocupados com a aproximação violenta da repressão, visto que planejavam se mudar dali antes do final do ano. A repressão já se abatia sobre a AP, com raptos e assassinatos. Portanto, havia um clima de tensão no ar – para além da tensão “normal” da vida em clandestinidade.
Honestino costumava dormir pouco, por volta de 4 horas por noite. Praticava yôga, para se preparar para resistir à tortura. E vinha se dedicando a uma elaborada auto- -análise – não apenas política, mas emocional, subjetiva. Deste último aspecto sabemos pelo teor da carta, em que Honestino assume a voz de irmão mais velho e se dirige aos seus dois irmãos, dando-lhes conselhos sobre a vida, indicando leituras etc. A carta de 11/12/1972 pulsa solidão, saudade da família, mas, ao mesmo tempo, é uma afirmação ética da vida que ele escolheu para si.
Na segunda parte, um trecho da carta enviada por Honestino, tal como transcrita no livro escrito por sua mãe, Maria Rosa Leite Monteiro: (…) (Maria Rosa Leite Monteiro. Honestino. O bom da amizade é a não cobrança. Brasília: Da Anta Casa Editora, 1998. Trecho da carta de 11/12/1972: p. 161-162): “Tenho pensado bastante em vocês todos. E sinto que gosto muito da família que tenho. Nestas horas me dói profundamente não estar com vocês. Sei que seria muito bom a gente conviver um pouco. Quando há amor e uma vontade de transformação em nós e nas pessoas próximas e se leva isso na prática, não há nada melhor. Quando estive com os manos este ano senti que cada vez tenho maior amizade, carinho, ligação com eles. Me sinto amigo pacas destes dois. E quanto não pagaria para convivermos juntos e interagirmos uns sobre os outros! Vi que os dois estão muito inquietos, não estão acomodados dentro de si. E isso é muito bom. Lembra-me o Torquato Neto (não sei se vocês conhecem): ‘Não era um anjo barroco/ era um anjo muito louco/ com asas de avião/ que disse: Vai bicho/ desafinar o coro dos contentes’. É isso aí. Enquanto não estivermos fazendo coro com os contentes, enquanto sentirmos a cuca quente e o sangue correndo, tá tudo azul. Não seremos mortos vivos dos tipos que o Henfil fala: não seremos os mesquinhos da vida. E vejam, meus caros, que a acomodação que eu tô combatendo é uma bem geral, e não apenas acomodação política. O negócio é cada um descobrir a própria medida dos seus passos. Ninguém tem o direito de se amesquinhar, de virar morto-vivo. Ou ainda, ninguém se transforma em morto-vivo sem deixar de ser vivo, de ser gente, e tudo o mais. Aí virado morto-vivo: contente beato, bobo alegre; aplaudidor dos poderosos, das leis morais que estão aí impostas e impositivas; aí, bem aí. Não sei se vocês estão com consciência disso. E isso é nada mais do que filosofia, rumo, perspectiva de vida. Éverdade e verdade é coisa inquieta que mexe com a gente.” (FARIA, Daniel. Anamorfose de um dia: 11/12/1972. Manuscrito inédito. Brasília, 2013).
O caso de Honestino Guimarães é bastante representativo da repressão que se abateu sobre a Universidade de Brasília. Uma das dimensões que merece ser destacada é o impacto da sua luta, da sua trajetória, no futuro da UnB.
O Diretório Central dos Estudantes da UnB possui, desde 1997, o nome de Honestino Guimarães. E um dos três espaços inaugurados em maio de 2012 destinados à convivência dos integrantes da comunidade acadêmica da UnB – os chamados MASCS, ou Módulos de Apoio e Serviços Comunitários – se intitula “Honestino Guimarães” (os outros dois são denominados “Ieda dos Santos Delgado” e “Paulo de Tarso Celestino”, homenageando os outros dois estudantes desaparecidos).
Há que ser registrada também a firme atuação dos familiares na luta por verdade, memória e justiça, especialmente o seu sobrinho Mateus Guimarães, integrante do Comitê Memória, Verdade e Justiça no Distrito Federal e presença forte e inserida na luta por uma educação pública e de qualidade.
A nota refere-se ao fato da realização pelo Ministério da Justiça da 73ª edição da Caravana da Anistia, na Universidade de Brasília (UnB). O destaque desta edição do evento, que percorre o Brasil reconhecendo casos de perseguição durante a ditadura militar, será a análise do processo de anistia do estudante Honestino Monteiro Guimarães.
Para o então Presidente da Comissão de Anistia Paulo Abrão, “nas sessões, são feitos pedidos públicos de desculpas aos brasileiros pela responsabilidade do Estado nos casos de violações de direitos humanos ocorridas durante o período. O requerimento de anistia política post mortem foi solicitado pela família de Honestino e tramitou na Comissão de Anistia, que realizou uma busca de documentos em arquivos públicos para corroborar com os fatos em torno das perseguições sofridas. Nesta sexta-feira, um conselheiro da comissão apresentará um relatório conclusivo sobre o caso”. Segundo o presidente da Comissão a reparação a Honestino Guimarães tem um caráter simbólico, já que a família dele não solicitou qualquer valor de indenização. “É o Estado pedindo desculpas aos familiares, e com isso reconhecendo que foi ele quem deu causa aos sofrimentos que o Honestino e seus familiares tiveram ao longo do tempo”. (veja os meus grifos em negrito).
Ao simbólico de toda a cerimônia, revestida de muita emoção, pode-se acrescentar a circunstância de que o Conselheiro-Relator da Comissão, cujo voto foi acolhido por unanimidade, foi o professor Cristiano Paixão, membro da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB, em cujo voto se percebe a plena utilização de elementos materiais do que se incluiu posteriormente no Relatório da Comissão. Já a ementa da decisão permite vislumbrar essas referências:
MOVIMENTO ESTUDANTIL: REPRESSÃO PELO PODER JUDICIÁRIO. UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA COMO LOCAL DE RESISTÊNCIA. JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO EM PERSPECTIVA INTERGERACIONAL.
Desaparecimento forçado de Honestino Monteiro Guimarães. Violação ao jus cogens do direito internacional dos direitos humanos. Crime permanente. Validade da persecução penal no presente. Ausência de impedimento legal para instauração de procedimento investigatório: não recepção, pela Constituição da República de 1988, da Lei nº 6.683/79. Jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Atuação do Supremo Tribunal Federal no caso Honestino Guimarães. Ausência de problematização sobre as circunstâncias fáticas e jurídicas do processo perante a Justiça Militar. Emprego irrefletido de normas de exceção em detrimento do direito constitucional então vigente. Fragilidade na fundamentação do acórdão.
Resistência da comunidade acadêmica da Universidade de Brasília. Centralidade do projeto da UnB no contexto de modernização urbana e institucional do Brasil do início da década de 1960. Trajetória de Honestino Guimarães na universidade. A experiência da repressão. A diáspora. As tentativas de reconstrução.
Diálogo intergeracional. Justiça de Transição que deve ser compreendida em perspectiva expandida. Definição do marco temporal da reparação na forma do art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição da República de 1988. Movimento estudantil na resistência à ditadura. Protagonismo de Honestino Guimarães. Produção de memória acerca da luta por liberdade e inclusão. Significado para o futuro.
Pedido procedente. Declaração de Honestino Monteiro Guimarães como anistiado político post mortem. Pedido de desculpas apresentado pelo Estado brasileiro. Retificação do atestado de óbito.
Remessa de ofício ao Ministério Público Federal.
No momento de encaminhar esta Coluna para publicação, o Governador do Distrito Federal ainda não havia sancionado a lei. A demora parece revelar que está recebendo pressões eloquentes para o veto. Sabe-se que a disputa pelo nome da ponte e sua renomeação conforme os fundamentos da Justiça de Transição, foi bastante tensa, com a ampliação, na conjuntura, do protagonismo fascista (uso o termo no sentido expandido que sugere Umberto Eco, conforme o seu O Fascismo Eterno). Espera-se que o governador, nem tanto por suas convicções, mas ao menos por sua fidelidade, ex-Presidente da OAB, aos princípios educadores da justiça de transição para o nunca mais.
Sei que a Reitora da UnB, professora Márcia Abrahão, ela própria ex-aluna da universidade, egressa do mesmo curso de Honestino – Geologia, oficiaria ao Governador convocando-o a sancionar a lei. É o que cabe a UnB na sua tradição de promoção e defesa dos direitos humanos (Estatuto, art. 4º, XII). A UnB que em 1986 criou o Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos, na estrutura multidisciplinar do CEAM – (Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares) e que desde então oferece em todos os semestres a disciplina Direitos Humanos e Cidadania para alunos de graduação de todos os cursos; ali no CEAM onde se instalou o Programa de Pós-Graduação (mestrado e doutorado) em Direitos Humanos e Cidadania. Um acumulado que propiciou à Reitora Márcia elevar os direitos humanos a uma política institucional, criando um Conselho de Direitos Humanos na universidade e agora, pouco antes da lei ser aprovada na CLDF, fazer integrar estatutariamente ao Conselho Universitário, órgão máximo deliberativo, uma Câmara de Direitos Humanos para formular e implementar a política de direitos humanos da universidade, finalidade que se inscreve em seu projeto original de se configurar como uma universidade necessária, como a projetava Darcy Ribeiro, enquanto se realize como uma universidade emancipatória (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de, (Organizador). Da Universidade Necessária à Universidade Emancipatória. Brasília: Editora da UnB, 2012).
Espera-se que a hesitação do Governador não contribua para o silenciamento, diz Boaventura de Sousa Santos, em debate “Direitos Humanos, Justiça, Lutas e Memórias“, promovido pelo Conselho Latinoamericano de Ciências Sociais (Clacso), em Porto Alegre (https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Direitos-Humanos/A-memoria-como-direito-e-tarefa-civilizatoria/5/18693), que sacrifica o direito à memória, isto é, “o direito a vivências e experiências pessoais que constituíram a subjetividade [de indivíduos], e que eles têm que lembrar e serem respeitados por isso“, tanto mais, quanto como é o caso de Honestino Guimarães, “a verdade para eles está inscrita nos seus corpos, no seu sofrimento. Essa memória é intransmissiva porque as dimensões do sofrimento nunca se pode transmitir, mas pode ser reconhecida.” Para não permitir que o silenciamento, neste caso, também “torne impronunciável a revolta“, e postergue o nunca mais com a frustração ou dano a projetos de vida (caso Loayza Tamayo Vs. Perú. Corte IDH, 1998, Serie C No. 42).
Esses princípios têm sido serenamente aplicados pela Sub-Comissão de Memória e Verdade, da Comissão de Direitos Humanos da OAB, por sua vez mobilizada em apoio a renomeação da ponte conforme a deliberação da CLDF. Assim que, havendo veto, é certo que a agenda é a de continuidade da mobilização para que seja derrubado.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
Formas Transvestigêneres da Escrita da Lei. Erica Malunguinho e a Mandata Quilombo na Ocupação da Política e na Transformação do Direito.
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Fredson Oliveira Carneiro. Formas Transvestigêneres da Escrita da Lei. Erica Malunguinho e a Mandata Quilombo na Ocupação da Política e na Transformação do Direito. Tese (Doutorado em Direito). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas, Rio de Janeiro, 2021, 584 f.
Com enorme satisfação participei da Banca Examinadora da Tese objeto deste Lido para Você, compartilhando o seu exame com os membros: Professora Juliana Neuenschwander Magalhães (Orientadora), Professor Manuel Eugénio Gándara Carballido (Coorientador), meu colega de universidade Professor Alexandre Bernardino Costa, também antiga colega na UnB Professora Jaqueline Gomes de Jesus, Professora Juliana Gonzaga Jayme e, na suplência a querida amiga e colega Professora Margarida Maria Camargo.
A defesa foi uma ocasião eloquente para reencontrar Fredson Carneiro, depois de seus estudos no mestrado, quando o orientei, numa dissertação fortemente qualificada logo transformada em livro que passou a se constituir uma referência no campo de interesse continuado do Autor: A Lucidez e o Absurdo. Conflitos entre o poder Teológico-Político e os Direitos Humanos LGBT na Câmara dos Deputados (Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2016).
Esse belo texto, desenvolvido como resultado de seus estudos para o Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania (NEP/CEAM), na Universidade de Brasília, conforme tive a oportunidade de escrever, quando publicado, capta a tensão, tanto política quanto ideológica e, em última análise, epistemológica, para afirmar as condições de reconhecimento e de legitimação de direitos de minorias sexuais (lutas por direitos humanos e dignidade dos movimentos LGBTs no Brasil), em face dos conservadorismos moralistas, inscrito nas mobilizações de segmentos religiosos, sobretudo no espaço institucional legislativo.
Trata-se de resgatar, no Brasil como em outros países, a mediação progressista que busca instituir um espaço de afeto, algo que em Itália, por exemplo, traduz a mensagem das chamadas “famiglie arcobaleno” (‘famílias arco-íris’), que colocam em causa, mostra Patrícia Vilanova Becker, a crítica à família enquanto instituição patriarcal destinada à transmissão de propriedade e à preservação das classes sociais perde sua radicalidade (“Famiglia è dove c’è amore”, Cartas de Bolonha, http://odireitoachadonarua.blogspot.com.br/search?updated-max=2016-04-16T10:42:00-07:00&max-results=15, acesso em 10.10.2021).
Fredson confronta, assim, os mitos que conformam os padrões, notadamente morais, referidos a uma moralidade marcantemente religiosa e, em arranque filosófico, num dialogo riquíssimo que reúne Kierkegaard, Espinosa, Marilena Chauí e, para enquadramento dialético-jurídico, Roberto Lyra Filho (o Direito como enunciação dos princípios de legítima organização social da liberdade), convoca ao “esclarecimento” sobre as “trevas contemporâneas” para que as “novas gerações” tenham “braços esperançosos, vontades e lutas” capazes de conduzir a “um mundo sem medos, socialmente mais justo e livre de opressões” (A Lucidez e o Absurdo, 4ª Capa).
Já nos agradecimentos o Autor mapeia os diferentes sendas pelas quais conduziu seu percurso teórico-político até confluir na Tese cujo núcleo se contêm no resumo que a apresenta. Incluo como percurso também assinalado nesse mapa cognitivo, a playlist que o Autor, preparou sobre a tese, a exemplo do que já fizera por ocasião do Mestrado quando preparou um CD com músicas que diziam respeito àquele processo. No link a seguir, uma forma de comunicação com os mais sensíveis, o Autor segue com a música e as artes na produção das suas pesquisas. Um mimo para os leitores da Coluna Lido para Você:https://open.spotify.com/playlist/110xQSDHId4nrA28vwi5Ob?si=d6d94df4900e486d
Volto ao resumo:
“A histórica luta do movimento negro e do movimento LGBTI+ conquistou significativos avanços e inseriu o debate sobre violências estruturais no âmbito jurídico-político contemporâneo. Não obstante, permanecem altos os índices de violência transfóbica, figurando o Brasil em primeiro lugar entre os países que mais matam pessoas trans no mundo, ao passo que se mantém rígidas as estruturas do racismo no país. Este cenário constitui-se a partir de uma relação ambivalente entre as populações precarizadas e o Estado. Por um lado, é operacionalizado um projeto transnecropolítico e de extermínio da população negra; por outro, os grupos-alvo dessas violências articulam estratégias de resistência que envolvem a própria institucionalidade estatal. É no quadro destas estratégias que Erica Malunguinho protagoniza a histórica vitória no pleito eleitoral para a Assembleia Legislativa do estado de São Paulo em 2018, tornando-se a primeira deputada trans e negra do Brasil. Em face desse episódio e de seus desdobramentos, proponho, enquanto objeto desta pesquisa, a análise da atuação da deputada Erica Malunguinho na institucionalidade legislativa, exercida por meio de sua Mandata Quilombo. Ao considerar esta atuação institucional, tanto pelo que denuncia quanto pelo que propõe, objetivo interpelar o campo jurídico-político a partir do debate promovido pela deputada Erica Malunguinho em torno dos conceitos, das inovações e das pautas atinentes às populações subalternizadas e historicamente silenciadas, que ela representa. Para atingir esse escopo, oriento-me pelas funções da teoria crítica que, segundo Herrera Flores (2009), consistem em visibilizar, desestabilizar e transformar, e apresento a seguinte situação-problema: o que muda com a eleição e com a atuação parlamentar da deputada Erica Malunguinho, em seu processo de ocupação da política institucional e de luta por direitos?”
A leitura da tese é de tirar o folego. Pela densidade da elaboração e pela elegância da escrita. Em seu estilo Fredson segue a disposição de Ortega y Gasset sobre o afazer intelectual, segundo ele obediente a duas exigências: “o sistema, que é a ética do pensador; a clareza, a sua cortesia. São mais de 500 páginas sem nenhum desperdício. Tudo conceitualmente designado. Exemplo, a distinção, com Herrera Flores, entre patriarcado e patriarcalismo, que não encontra em Segato, sem redução de alcance epistemológico-político (p. 114). Algo que encontramos em Roberto Lyra Filho e em ninguém mais, entre sociologia do direito e sociologia jurídica (O Que é Direito), em benefício do arranjo teórico-explicativo. As notas são, sob esse aspecto, preciosas, também pela sutileza histórica, entrevista nas nuances da metodologia da pesquisa, que quase se poderia dizer, sem nenhuma redução heurística, força a intimidade, fazendo as fontes revelarem o que não falariam por si mesmas ou exibiriam em seus escritos (PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. As Muitas Faces da História. Nove Entrevistas. São Paulo: Editora Unesp, 2000).
Trago aqui o Sumário da Tese, para oferecer ao leitor uma mostra do conteúdo proposto a sua leitura; também para aferir o cuidado sistêmico do trabalho a perceber na organização das matérias, o zelo metodológico para classificar os conteúdos. Se Jorge Luis Borges, em O Idioma Analítico de John Wilkins, é agudamente convincente ao afirmar que “sabidamente não há classificação do universo que não seja arbitrária e conjectural”.
Em Fredson, que escreve em primeira pessoa, com sua corporalidade constituída nas características em que se reconhece (p. 23), seguindo o que orienta Lélia González, por convicção e dever ético (p. 23), até para, como diz Lélia (aliás em debate no qual estivemos juntos e que ela veio a validar uma colocação minha sobre cidadania plena e a legitimidade do discurso que desafia o que está posto (cf. A Cidadania e a Questão Étnica, in TEIXEIRA, João Gabriel Lima Cruz, ed. A Construção da Cidadania. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1986, p. 175-176), há um honesto compartilhamento acerca de seu ponto de partida assim como o de chegada para construir o sumário, cuja leitura permite apreender que já aí o conjectural não é aleatório, mas segue um plano teórico-metodológico deliberado.
Conforme ele indica, na estrutura do próprio sumário, extrai-se o roteiro necessário:
“Para que seja possível compreender os sentidos concretos dessa questão e tatear as respostas que serão desenvolvidas ao longo da tese proponho uma sistematização teórica da síntese das lutas que Malunguinho sistematiza institucionalmente com a Mandata Quilombo. Como caminhos possíveis para desenvolver essa sistematização, organizo este trabalho em três partes, atinentes às funções da teoria crítica dos direitos humanos proposta por Herrera Flores (2009). Para Herrera Flores haveria uma função epistêmica que indica a tarefa de visibilizar relações sociais existentes apontando o que nelas expressa desigualdades, violências e precarizações; uma função ética, que deveria dar relevo às contradições existentes no mundo social, com vistas a desestabilizar a ordem injusta das coisas; e uma função política, que, ao cabo, objetiva transformar a realidade social analisada com as contribuições da teoria” (p. 36).
Prólogo – Diante da dor dos outros: uma nota sobre o meu lugar de fala
Introdução – Um coração pesa 300 gramas
PARTE I -VISIBILIZAR
Capítulo 1 – Pesquisa em que Direito? Sobre os caminhos metodológicos na pesquisa empírica criticamente racializada e generificada
1.1 Pesquisa em que Direito? Procedimentos teóricos para uma fundamentação
ontológica
1.2 Na encruzilhada do método: sobre as rotas do arranjo metodológico
1.3 Pesquisa empírica e fontes de pesquisa em Direito
1.4 O diamante ético e as categorias centrais da metodologia relacional dos direitos humanos
1.5 Escrevivências e oralituras: aproximações afrocentradas com as narrações de Erica Malunguinho
Capítulo 2 – O país dos índios, construído por negros em benefício dos brancos:
desigualdades estruturais e a construção das hierarquias e posições sociais no
Brasil2.1 Quando ser negro era portar um defeito de cor: escravidão e organização social do Brasil entre os séculos XVI e XIX
2.1.1 Entre normas, números e corpos
2.1.2 Escravocrata e patriarcal: sexualidade e gênero no Brasil moderno-colonial
2.1.3 Sobre transições conservadoras e a gênese do autoritarismo na sociedade
brasileira
2.2 O autoritarismo social e manutenção das hierarquias raciais e
patriarcais
2.2.1 A ascensão do racismo científico e da patologização das sexualidades não
normativas
2.3 “Onde predomina o sangue tropical”: contornos do mito da democracia racial e sua função conservadora
2.3.1 A Casa Grande e o Parlamento: permanências da democracia racial no funcionamento das instituições sociais
PARTE II – DESESTABILIZAR
Capítulo 3 – Negar vértices de assujeitamento, a despeito de toda opressão: o que acontece quando uma mulher trans, negra e nordestina ingressa na institucionalidade?
3.1 Que democracia? Comentários sobre o berço esplêndido da política institucional brasileira
3.2 “Que lugar é esse que vocês nos querem colocar?” A posição das mulheres trans negras entre as opressões de gênero, raça e classe
3.3 “O que se pratica aqui é necropolítica”: a prostituição como destino trans e outras políticas de morte
3.3.1 A política do fazer morrer, deixar viver: o estado como máquina da morte
3.3.2 A transnecropolítica e as existências inconstitucionais do Brasil
3.4 A prostituição como trincheira trans: transformando o lugar da exclusão em plataforma política
3.5 A violência política de gênero e a transfobia como um vício branco
3.6 A institucionalidade enquanto uma alegoria furtiva: posicionando a Alesp diante do neoliberalismo e da necropolítica
Capítulo 4 – Amefricana em Diáspora: a disposição militante e os caminhos atlânticos de Erica Malunguinho na política institucional
l4.1 “É democrático, mas não tanto”: o corpo-território da deputada Erica Malunguinho e a ausência de representatividade na institucionalidade brasileira
4.2 “‘Gritaram-me negra, pois negra soy’. Mulher e trans”: a escrita em primeira pessoa de Erica Malunguinho
4.2.1 Uma relação com o Mulherismo Africana e as possibilidades de existências plurais
4.3 “Uma escola de formação política”: a Mandata Quilombo como substrato de um Tempo
4.3.1 Enegrecendo e esquerdizando a esquerda
4.3.2 Pluralizando a política e articulando a relação entre o ativismo LGBTI+ e os Partidos
4.4 “A gente existe…pensando o amanhã, apontando vanguarda, apontando futuro”: invenções democráticas e inovações institucionais
4.4.1 As Juntas e a Mandata Ativista: primeiras intersecções de raça, gênero e sexualidade em mandatos coletivos no legislativo brasileiro o contragolpe
PARTE III – TRANSFORMAR
Capítulo 5 – Ocupar a Política, transformar o Direito: as práticas sociais de Erica Malunguinho nas guerras de narrativas e nas disputas de normativas Contemporâneas
5.1 “Bem-vindes todes ao Contragolpe Black-Trans-Paranauê!”: demarcando posição nas disputas de narrativas contemporâneas
5.1.1 A reintegração de posse
5.1.2 A alternância de poder
5.1.3 Novas ferramentas participativas e espaços de atuação institucional
5.2 A disputa de normativas na atuação parlamentar quilombista de Erica Malunguinho
5.2.1 Ações táticas
5.2.2 Ações programáticas
5.2.2.1 Gênero e Sexualidade
5.2.2.2 Questões raciais
5.2.2.3 População em Situação de Rua
5.3 O campo jurídico-político como lugar de reelaboração das construções sociais, da projeção de humanidades e de novos pactos civilizatórios
Conclusão – Em cada coração de negro, há um quilombo pulsando
Referências bibliográficas
Anexo I – Lista de deputados/as da 19ª legislatura da AlespAnexo II – Lista dos partidos políticos registrados no TSE
Anexo III – Lista de mandatas e mandatos coletivos eleitos
Anexo IV – Lista de integrantes do gabinete da deputada Erica Malunguinho
Anexo V – Projetos de lei de autoria da deputada Erica Malunguinho
Anexo VI – Frentes parlamentares integradas pela deputada Erica Malunguinho
Anexo VII – Playlist “Formas transvestigêneres da escrita da lei
O mapa cognitivo de Fredson é acessível à integração de múltiplas racionalidades que dialogam. Combina os arranjos epistemológico-metodológicos compatíveis. Se bem parta da modelagaem do diamante ético de Herrera Flores para pensar os processos de reconhecimento da dignidade material da existência, na intersecção entre a linha horizontal da materialidade e das disposições de desenvolvimento das forças produtivas na historicidade das relações de produção e a linha vertical dos espaços de posicionamento da afirmação dos valores em narrativas institucionalizados no carrefour da dignidade do humano; não ignora a ecologia dos saberes, na modelagem proposta pelo professor Boaventura de Sousa Santos, o que facilmente se percebe nas cartografias desenhadas para acentuar as notações da pesquisa. Mas guarda lealdade aos fundamentos de sua base nativa de apoio interpretativo, fundada no humanismo dialético de Roberto Lyra Filho, ensaiando e bem num arranjo de completude os elementos designativos, que bem cairiam no arranjo social e teórico sugerido por O Direito Achado na Rua, a partir das experiências analisadas, para assim: 1) Determinar o espaço político no qual se desenvolvem as práticas sociais que enunciam direitos, a partir mesmo de sua constituição extralegal, na enunciação como direitos humanos; 2) Definir a natureza jurídica do sujeito coletivo capaz de elaborar um projeto político de transformação social e elaborar a sua representação teórica como sujeito coletivo de direito; 3) Enquadrar os dados (achados) derivados destas práticas sociais criadoras de direitos e estabelecer novas categorias jurídicas para estruturar as relações solidárias de uma sociedade alternativa em que sejam superadas as condições de espoliação e de opressão entre as pessoas e na qual o direito possa realizar-se como um projeto de legítima organização social da liberdade (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática, Revista Humanidades, vol. 8, número 4 (30). Brasília: Editora UnB, 1992).
Sustento essa constatação na medida em que percebo o objeto circunscrito da pesquisa afinal levada à Tese (p. 35-36):
Nestes termos, demarquei a análise da atuação da deputada Erica Malunguinho na institucionalidade legislativa, exercida por meio de sua Mandata Quilombo, como objeto de pesquisa desta tese. Compreendido enquanto um problema social, o objeto de pesquisa consiste, assim, na análise “do processo pelo qual se constrói e institucionaliza o que, em determinado momento do tempo é constituído como tal” (LENOIR in CHAMPAGNE, 1998, p. 73)
………………………………………………………………………………………………………………
Delimitado o objeto da pesquisa, meus esforços investigativos se direcionaram para compreender essa trajetória, que tem rompido com as probabilidades postas para as vidas trans, ao propor a ocupação de espaços inéditos na Política e apresentar horizontes renovados para o Direito. Como objetivo, busco interpelar o campo jurídico-político a partir do debate promovido pela deputada Erica Malunguinho em torno dos conceitos, das inovações e das pautas atinentes às populações subalternizadas e historicamente silenciadas, que ela representa. Lançando mão de técnicas de pesquisa de caráter qualitativo, sistematizo, nesta tese, as propostas da primeira deputada trans negra do Brasil, cuja ação política tece escritas da lei próprias da formação de um sujeito coletivo de direito, a partir da seguinte situação-problema: o que muda com a eleição e com a atuação parlamentar da deputada Erica Malunguinho, em seu processo de ocupação da política institucional e de luta por direitos?
Os grifos são meus, e eles retomam, na tese sob exame, o que há poucos dias, em debate com examinadores, especialmente Henyo Barreto e Boaventura de Sousa Santos (Renata Carolina Corrêa Vieira. Povos Indígenas, Povos e Comunidades Tradicionais e Agricultores e Familiares: A Disputa pelo Direito no Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN). Brasília: CEAM-PPGDH (Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania), 2021), pude extrair dessa ordem de consideração.
Anotei a propósito:
O trabalho – refiro-me à Dissertação de Renata Vieira, mas penso o mesmo no que essa questão emerge da tese de Fredson – tem a peculiaridade de um mergulho radical nos pressupostos em que se sustenta, ao imantar a pesquisa do compromisso ético-político de captar o sentido de alteridade que os sujeitos inscritos nas representações dos povos e comunidades originários e tradicionais, inscrevem em seu protagonismo no processo. Isso é o que transparece das considerações finais.
Sobre isso, o professor Henyo chega a dizer, na arguição, que a Autora testemunhou a indigenização de um protagonismo que representa como que uma descolonização das instituições e dos espaços estatais, por uma forma de ocupação desses espaços orientada pelo imaginário cosmológico com que representam a existência, a natureza e a humanidade. A Autora expressa essa compreensão, ao formulá-la, tal como o fizera no debate durante a defesa, no modo como ela própria o disse acima: “me propus a fazer uma análise de como se dá a luta por direitos quando os movimentos sociais alcançam a institucionalidade, especialmente a disputa pelos direitos relacionados a seus conhecimentos tradicionais, dentro de um espaço hegemonizado pelo capital e onde a correlação de forças é extremamente desigual”.
É certo que o fio condutor dessa constatação é desenrolado pela narrativa/oralitura (posto que que retirada dos depoimentos colhidos pela Autora), enfibrado de disposição contra-hegemônica de construção de um direito autêntico, cogente, contraposto ao direito oficial, formal, organizado sobre expressão regulamentar, direito achado na aldeias, nos territórios, nos usos tradicionais, na rua, direito emancipatório em suma.
Aqui terá sido útil, desde uma perspectiva metodológica, mas também epistemológica, valer-se das mediações cognitivo-tradutoras, não só de uma antropologia social que desvende uma outra sociabilidade, mas de uma sociologia de ausências e de emergências que possa ir ao profundo da linha abissal para regressar pela mediação da hipótese do pluralismo jurídico, com a projeção de uma outra juridicidade que não seja o sinal trocado de um monismo positivo legal travestido de um monismo alternativo. O Direito Achado na Rua não é um direito alternativo, mas a expansão desde as entranhas do social, lá onde a existência emancipada, comunitária, compartilha os bens da vida produzidos em comum e de forma comum e igualitária sejam compartilhados segundo padrões de uma organicidade legítima.
Com efeito, também a tese de Fredson, embora operando com a matriz herrereana, com a qual quer articular respostas para a questão dos mecanismos historicamente utilizados para a construção das hierarquias e posições sociais no Brasil (p 96), está assentanda em um pensamento decolonial que põe em causa as inter-relações segregadoras que obstruem o reconhecimento titulável de subjetividades emancipadas, e as possiblidades da atuação política de sujeitos históricos (p. 97), na linha desses estudos que designam o modo sentipensante (Falls Borda, Paulo Freire) de libertação, no diálogo com os autores e autoras desse campo, a partir mesmo do colóquio entretido com seu co-orientador Manuel Gándara
Abre-se, portanto, naquilo que me incumbe dialogar com o Autor, a partir de sua tese, espaço para um Direito formado pelos sujeitos coletivos em meio às lutas sociais (HERKENHOFF, 1996). Quando esses novos sujeitos entraram em cena, tornou-se imperativo “investigar a dimensão instituinte dos espaços sociais instaurados por esses movimentos e aquilatar a capacidade constitutiva de direitos decorrentes dos processos sociais novos que eles desenvolvem” (SOUSA JUNIOR, 2002, p. 55). Nesse sentido, o desenvolvimento de estudos críticos sobre o Direito no Brasil decorre, em certa medida, da emergência desses sujeitos coletivos que se organizam enquanto sujeitos da própria história, munidos de habilidades de auto-organização e autodeterminação, transformando-se naquilo num sujeito coletivo de direitos (SOUSA JUNIOR, 2002).
Por meio dessa categoria, que rompe a barreira individualista do direito formal, as práticas coletivas dos novos sujeitos sociais tornam-se objeto da maior relevância para a pesquisa jurídica. Para Sousa Junior (2002) essas experiências sociais autorizam parametrizar, juridicamente, estas novas configurações, “tais como a determinação de espaços sociais a partir dos quais se enunciam direitos novos, a constituição de novos processos sociais e de novos direitos e a afirmação teórica do sujeito coletivo de direito” referência à obra “Quando novos personagens entraram em cena”, de Eder Sader, que aborda o ressurgimento de movimentos operários e populares no final da Ditadura Militar brasileira (SOUSA JUNIOR, 2002, p. 63). Essa categoria é de fundamental importância para pensar a superação do pensamento tradicional no campo jurídico, uma vez que através dela, é possível descrevermos enquanto sujeitos da ação jurídico-política diversos grupos, movimentos, entidades sociais e populares, marcadas por critérios como raça, gênero, classe e sexualidade.
Nesses termos, após negar o conceito hegemônico de Direito enquanto norma, de desconsiderar a classificação da norma pela sanção que ela veicula e de negar ao Estado o poder de ser o único ente a dizer o que é o direito, Lyra Filho nos indica os dois últimos procedimentos como ações positivas diante do que já se sabe não ser o Direito em sua totalidade. O quarto procedimento propõe aos juristas uma atitude de não se curvar ante o fetichismo do direito positivo, que se desdobra no quinto procedimento, de não fazer do Direito um elenco de restrições à liberdade. De acordo com Lyra Filho o fetichismo do direito positivo promove a maior das inversões sobre o Direito, haja vista que, ao “canonizar” as normas e costumes dos grupos e classes dominantes na sociedade, o positivismo jurídico, em vez de conceituar o Direito através da liberdade, o concebe como a sua pura e simples restrição.
Nesse sentido, numa sociedade estruturalmente hierarquizada em raça e classes sociais, essa redução do Direito à restrição da liberdade só ocorre contra a liberdade de grupos específicos, isto é, daqueles que não fazem parte dos círculos sociais das elites econômicas. Portanto, o Direito como elenco de restrições à liberdade, fetichizado pelo positivismo jurídico aparece apenas como forma de controle social, vinculado à “organização do poder classístico, que tanto pode exprimir-se através das leis, como desprezá-las, rasgar constituições, derrubar titulares e órgãos do Estado legal, tomando diretamente as rédeas do poder” (LYRA FILHO, 2006, p. 32). Este, um quadro comum da história política do Brasil.
A profusão desses efeitos desestabilizadores só é possível porque a deputada Erica Malunguinho, para além de sua representação descritiva, desempenha uma representação substantiva nos seguintes termos: formação de alianças dentro e fora da Alesp; atuação vigilante e cidadã na fiscalização efetiva do cumprimento dos deveres do poder público; centralização inegociável de gênero e raça como fundamentos da sua ação política e de suas práticas sociais; e, ainda, atuação tática e programática de proposição normativa. Estes efeitos e práticas desencadeados pela representação descritiva e substantiva de Malunguinho, conforme compreendo, são formas transvestigêneres da escrita da lei.
Enquanto tal, as formas transvestigêneres da escrita da lei são processos de subjetivação política organizados a partir de reivindicações específicas, mas não reduzindo-se substancialmente a elas. Na análise destas formas, ressalto que estas não podem ser compreendidas de modo essencialista, em torno de conceitos abstratos e restritivos, como ocorreu com o chamado identitarismo multiculturalista e sua formulação reificada do conceito de identidade. Em torno desse debate, se produziu uma extensa atividade teórica, desde os fins do século XX, a partir da qual compreendemos que as identidades, assim como a própria cultura não são repositórios de modelos fixos e imutáveis de padrões de comportamento. De outro modo, visualizamos a partir desses debates que as identidades são múltiplas e abertas a constantes transformações de sentido ocorridas em processos de reconstrução e reinvenção de si que se dão ao longo da história.
Além disso, em vista de seu caráter processual, as identidades, em termos concretos, constroem-se não só a partir da diferença (JAYME, 2001), como vimos no capítulo 4, mas também através da hierarquia das diferenças, como abordei no capítulo 2.
Isso porque no processo de subjetivação social de raça e gênero, a própria identidade está condicionada à experiência política do sujeito, de modo que a vivência de injustiças de ordem cultural e socioeconômica informa não só a constituição dessa identidade, mas também o processo de seu empoderamento e de sua ação política (ASSY, 2016). Assim sendo, caracterizo a atuação política de Erica Malunguinho enquanto uma forma transvestigênere da escrita da lei porque a sua subjetivação e ação política operam simultaneamente tanto na constituição de sua subjetividade quanto em sua participação na comunidade política.
Sendo assim, essas formas se constituem enquanto um fenômeno político e historicamente referenciado em nossa realidade e, por isso, possui expressiva singularidade concreta, uma vez que se trata de uma nova experiência política que se estabelece na paisagem de nossa cultura democrática. A novidade desta experiência, como vimos, consubstancia-se numa prática quilombista e, portanto, necessariamente coletiva, na qual o caráter estrutural das questões raciais e de gênero do país repercutem como fundamentos orientadores das lutas por direitos. Tais fundamentos, quando integrados à subjetivação política dos sujeitos precarizados, desdobram-se muito além das tentativas de sua captura neoliberal e necropolítica (p. 510-511).
Finalizando, conforme p. 515-516, diz o Autor: “O desafio último a que faço referência consiste, assim, no ensinamento prático de Malunguinho sobre a importância de nos afirmarmos num lugar que nega uma negritude e uma identidade de gênero redutoras da nossa humanidade, sem, contudo, cair nas armadilhas da universalidade ocidental, que ao longo dos séculos reduziu a diversidade a pó. Sem nos deixar intimidar por este desafio, devemos sempre nos levantar para carregar o sonho e a esperança de nos tornarmos humanos plenos de possibilidades e oportunidades, para além da condição de raça, gênero, classe social ou orientação sexual”.
Penso que a Tese está à altura desse desafio. Chamei a atenção, no âmbito jurídico, para essa percepção, lembrando (Movimentos Sociais – A Emergência de Novos Sujeitos: o Sujeito Coletivo de Direitos. Belo Horizonte: XIII Conferência Nacional da OAB. Anais, 1990) que a questão que se coloca, a partir da experiência da ação coletiva dos novos sujeitos sociais, é a da designação jurídica destas práticas sociais e dos direitos novos que elas enunciam. Cuida-se de valorizar, adequadamente, as formas de sociabilidade constituídas nas relações de reciprocidade num cotidiano que adestra a convivência e legitima padrões sociais livremente aceitos.
Na mesma XIII Conferência da OAB, Marilena Chauí referiu-se a esta realidade para pensar a cidadania como possibilidade de operar o salto dos interesses aos direitos. Em suas palavras (XIII Conferência Nacional da OAB, 1990, Anais), ela afirma: cidadania ativa é a que é capaz de fazer o salto do interesse ao direito, que é capaz portanto de colocar no social a existência de um sujeito novo, de um sujeito que se caracteriza pela sua auto-posição como sujeito de direitos, que cria esses direitos e no movimento da criação desses direitos exige que eles sejam declarados, cuja declaração abra o reconhecimento recíproco. O espaço da cidadania ativa portanto, é o da criação dos direitos, da garantia desses direitos e da intervenção, da participação direta no espaço da decisão política.
Trata-se. Evidentemente, de uma experiência emancipatória. Lyra Filho a havia compreendido neste sentido e, por esta razão, para ele, o direito não pode ser compreendido como mera restrição, senão, tal como ele o entendia, enquanto enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade.
E o que será, pois, neste processo, entender o Direito como modelo de legítima organização social da liberdade? É perceber, conforme indica Roberto Lyra Filho, que o Direito se faz no processo histórico de libertação enquanto desvenda precisamente os impedimentos da liberdade não-lesiva aos demais. Nasce na rua, no clamor dos espoliados e oprimidos e sua filtragem nas normas costumeiras e legais tanto pode gerar produtos autênticos (isto é, atendendo ao ponto atual mais avançado de conscientização dos melhores padrões de liberdade em convivência) quanto produtos falsificados (isto é, a negação do Direito do próprio veículo de sua efetivação, que assim se torna um organismo canceroso, como as leis que ainda por aí representam a chancela da iniquidade, a pretexto de consagração do Direito) [ARAUJO, Doreodó (Org). Desordem e Processo – Estudos Jurídicos em Homenagem a Roberto Lyra Filho. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1986].
Tenho insistido tal como conclui o Autor da Tese que o humano não é uma derivação causal de um incidente biológico mas, com Hegel, uma experiência na história. Não nascemos humanos, nos tornamos humanos, assim também dito hegelianamente por Simone de Beauvoir, segundo a qual não se nasce mulher, torna-se mulher. Os direitos humanos, assim, se erigem como um programa que dá conteúdo ao protagonismo de subjetividades que agem para humanizar-se, conquanto orienta projetos de vida e percursos emancipatórios que levam à formulação de projetos de sociedade, para instaurar espaços recriados pelas lutas sociais por dignidade (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. O Direito Achado na Rua: Questões de Teoria e Práxis. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de, org. O Direito Achado na Rua vol. 10: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade. Brasília: Editora da Universidade de Brasília/Editora OAB Nacional, 2021).
Retomo aqui um tema que desenvolvi com Antonio Escrivão Filho (em Para um Debate Conceitual-Teórico e Político sobre os Direitos Humanos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2014), aludindo a um programa de representação do jurídico que bem se presta a inserir a temática sofisticada dos direitos humanos como projeto de sociedade.
Isso para acentuar que se trata de um programa com o qual se forja o humanismo de “O Direito Achado na Rua”, conforme salienta Roberto Lyra Filho, formulador de seus princípios, o mais importante dos quais é conceber o Direito como a “enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade”, designado, conforme já acentuamos antes, a partir de uma teoria geral dos direitos humanos emancipatórios.
Tem-se aí algo que procura restituir a confiança no poder de quebrar as algemas que aprisionam os sujeitos sociais em meio às opressões e espoliações que o alienam na História, e os impedem de exercitar a capacidade de transformar seus destinos e de conduzir a sua própria experiência na direção de novos espaços de liberdade.
Mas a liberdade, ele acrescenta, repito aqui o que já anotei antes “não é dom; é tarefa, que se realiza na História, porque não nos libertamos isoladamente, mas em conjunto”. E se ela não existe em si, o Direito é comumente a sua expressão, porque ele é a sua afirmação histórico-social “que acompanha a conscientização de liberdades antes não pensadas (como em nosso tempo, a das mulheres e das minorias eróticas) e de contradições entre as liberdades estabelecidas (como a liberdade contratual, que as desigualdades sociais tornam ilusória e que, para buscar o caminho de sua realização, tem de estabelecer a desigualdade, com vista a nivelar os socialmente desfavorecidos, enquanto ainda existam”.
Tenho insistido tal como conclui o Autor da Tese que o humano não é uma derivação causal de um incidente biológico mas, com Hegel, uma experiência na história. Não nascemos humanos, nos tornamos humanos, assim também dito hegelianamente por Simone de Beauvoir, segundo a qual não se nasce mulher, torna-se mulher. Os direitos humanos, assim, se erigem como um programa que dá conteúdo ao protagonismo de subjetividades que agem para humanizar-se, conquanto orienta projetos de vida e percursos emancipatórios que levam à formulação de projetos de sociedade, para instaurar espaços recriados pelas lutas sociais por dignidade.
Retomo aqui um tema que desenvolvi com Antonio Escrivão Filho (em Para um Debate Conceitual-Teórico e Político sobre os Direitos Humanos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2014), aludindo a um programa de representação do jurídico que bem se presta a inserir a temática sofisticada dos direitos humanos como projeto de sociedade.
Isso para acentuar que se trata de um programa com o qual se forja o humanismo de “O Direito Achado na Rua”, conforme salienta Roberto Lyra Filho, formulador de seus princípios, o mais importante dos quais é conceber o Direito como a “enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade”, designado, conforme já acentuamos antes, a partir de uma teoria geral dos direitos humanos emancipatórios.
Tem-se aí algo que procura restituir a confiança no poder de quebrar as algemas que aprisionam os sujeitos sociais em meio às opressões e espoliações que o alienam na História, e os impedem de exercitar a capacidade de transformar seus destinos e de conduzir a sua própria experiência na direção de novos espaços de liberdade.
Mas a liberdade, ele acrescenta, repito aqui o que já anotei antes “não é dom; é tarefa, que se realiza na História, porque não nos libertamos isoladamente, mas em conjunto”. E se ela não existe em si, o Direito é comumente a sua expressão, porque ele é a sua afirmação histórico-social “que acompanha a conscientização de liberdades antes não pensadas (como em nosso tempo, a das mulheres e das minorias eróticas) e de contradições entre as liberdades estabelecidas (como a liberdade contratual, que as desigualdades sociais tornam ilusória e que, para buscar o caminho de sua realização, tem de estabelecer a desigualdade, com vista a nivelar os socialmente desfavorecidos, enquanto ainda existam”.
Por esta razão, voltando a Roberto Lyra Filho, é de lembrar que “o Direito não é; ele se faz, nesse processo histórico de libertação – enquanto desvenda progressivamente os impedimentos da liberdade não lesiva aos demais. Nasce na rua, no clamor dos espoliados e oprimidos”, até se consumar, vale repetir, pela mediação dos direitos humanos, na “enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade”.
Em sua ação política, descolonizando as instituições, a Mandata Quilombo e Erica Malunguinho tecem escritas da lei próprias da formação de um sujeito coletivo de direito,numa escalada em humanidade (MBEMBE, 2014) que é, ao final, o sentido de todas as lutas aqui referenciadas. Por isso finaliza o Autor, neste longo trajeto, enquanto desse sentido nos aproximamos, seguimos Malunguinho, com punhos cerrados para o alto!
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
Povos Indígenas, Povos e Comunidades Tradicionais e Agricultores e Familiares: A Disputa pelo Direito no Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN)
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Renata Carolina Corrêa Vieira. Povos Indígenas, Povos e Comunidades Tradicionais e Agricultores e Familiares: A Disputa pelo Direito no Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN). Brasília: CEAM-PPGDH (Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania), 2021, 169 f.
Perante uma banca examinadora proeminente e rara – Raquel Yrigoyen Fajardo, do Instituto Internacional Derecho y Sociedad, de Lima; Boaventura de Sousa Santos, diretor emérito do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra; e Henyo Barreto, do Instituto de Ciências Sociais (Antropologia) da Universidade de Brasília, a dissertação, uma das mais instigantes dentre a centena de trabalhos que orientei, foi defendida e aprovada.
Conforme assinalou o professor Boaventura na ocasião, diz bem de uma tese, a altitude e, simultaneamente, a profundidade da arguição que ela provoca, algo que se fez eloquente na sabatina proposta pelos examinadores à candidata. E a conformação da banca não foi injunção pra emoldurar o trabalhos; todos os seus membros tiveram, de algum modo uma proximidade construtiva na consumação do arranjo de pesquisa da Autora, em classe de aula (Henyo, para conformar a aproximação antropológica); na discussão sobre protocolos de pesquisa no campo epistemológico-metodológico (Boaventura, para quem Renata preparou relatórios de campo em temas correlatos a seu estudo); Raquel Yrigoyen que recebeu Renata no IIDS, num estágio de investigação, no Peru, a partir de acordo de cooperação e de intercâmbio celebrado com a UnB-PPGDH, programa que abriga a dissertação submetida à banca.
Tudo isso pode ser aferido, acompanhando a própria defesa, os debates e a decisão final, conforme a sessão transmitida para a audiência dos pesquisadores interessados, notadamente aqueles vinculados à linha de pesquisa que sustenta a proposta O Direito Achado na Rua: https://www.youtube.com/watch?v=fh2l89R2CAE.
Não é trivial ouvir o professor Boaventura de Sousa Santos, um dos mais notáveis intelectuais de nosso tempo, dizer sobre o trabalho que ele “o fez pensar”.
Mais que um elogio, a consideração feita pelo professor Boaventura – aliás eu fiz atenção a isso logo que ele enunciou essa atitude – está no que se designa como uma disposição ética de todo pensador, que é reconhecer a proximidade solidária para articular auto-reflexividade e alternativas para a realidade interpelante. Por isso lembrei uma chamada já antiga do professor ao repto da necessidade de pensar, aludindo a evento no qual teve participação e que se organizou, exatamente, por esse apelo: Por que pensar? (Lua Nova (54) 2001).
No texto, tal como apresentado no Seminário que lhe deu origem, o professor alinha Seis Razões para Pensar, partindo da necessidade de estruturar pensamentos alternativos ao racional imediato porque, primeira razão, “porque estamos numa fase de transição paradigmática, numa fase em que nós temos que pensar, realmente, qual é o tipo de conhecimento que nos pode levar a atravessar da melhor maneira esse processo de transição, porque as transições são processos em que há descontinuidades, há turbulências de escalas, há agitação, explosão mesmo de escalas, como eu costumo dizer, e o pensamento estabilizado em outras eras, em outros períodos, tem dificuldade em se adaptar a essa turbulência”.
Menos que uma adesão nos termos, estou certo que o professor encontrou no trabalho de Renata essa disposição, na designação dos temas e na atitude auto-reflexiva, proporcionada pelo encontro entre as condições sociais interpelantes a partir dos sujeitos da pesquisa e as possibilidades teóricas para orientar a ação no contexto turbulento de transição epistemológica e política que atravessamos.
Algo que se divisa na segunda resposta à pergunta por que pensar? Diz ele: “porque a ação e a mobilização não dispensam a lucidez da ação e da mobilização. A ponta de verdade que a ideia da auto-reflexividade tem hoje não é detectável ao nível da auto-reflexidade individual, mas antes ao nível da auto-reflexividade coletiva, dos movimentos sociais, das organizações não-governamentais, onde, ao contrário de outros tempos em que mobilização, nomeadamente aquela que caracterizou o movimento operário, tomou a certa altura uma precedência total sobre a lucidez, como se a mobilização tivesse razões que a razão teria mesmo que desconhecer a reflexão sobre as razões da mobilização faz parte integrante da própria mobilização. Estamos numa fase nova, onde a mobilização não dispensa a lucidez e onde, realmente, para as pessoas se mobilizarem para as lutas sociais têm que ter razões próprias. Portanto, eu penso que neste momento é fundamental que se tome nota de que neste período nós precisamos de um pensamento que permita essa mesma lucidez para ação e mobilização. E aqui, nesta resposta, a elaboração que vos faço e vos proponho é a seguinte: é que para isso ser feito é preciso que se criem constelações de sentido onde as tarefas intelectuais, as tarefas políticas e as tarefas morais de alguma maneira convirjam. E isto é, naturalmente, uma ruptura com o pensamento da modernidade”.
Sob essa perspectiva, com razão, o trabalho de Renata Vieira, faz pensar. De fato, uma vez que aqui abri enlace para seguir a defesa pelo YouTube, trago para efeito dessa confirmação, nesta resenha, o resumo que abre a dissertação:
Os povos indígenas, povos e comunidades tradicionais e os agricultores familiares (PICTAFs) desenvolveram modos de vida particulares, traduzidos em práticas e experiências com a natureza e o meio ambiente que os cerca, nomeados pela ciência moderna de conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade. Estes saberes passaram a ser alvo de interesse da indústria, em especialmente, do ramo da biotecnologia. Dentro deste contexto, tratados internacionais e leis internas passam a regular o acesso à biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais. O direito oficial moderno objetivou regular a apropriação da vida e da natureza, no ambiente internacional e nacional, como exemplos por meio da Convenção da Biodiversidade, do Acordo TRIPIS e da Lei nº 13.123/2015, respectivamente. A lei, todavia, trouxe a previsão de assento com direito a voz e voto dos representantes dos detentores de conhecimentos tradicionais dentro do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético, abrindo este espaço institucional para a luta e resistência. A pesquisa buscou responder à pergunta: como os detentores dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade protegem e efetivam seus direitos dentro do CGEN? Buscou, ainda, identificar as disputas/tensões em torno do conceito de conhecimentos tradicionais, bem como analisar como o direito pode atuar na proteção dos conhecimentos tradicionais. A investigação da atuação dos PICTAFs para a defesa e efetivação de seus direitos dentro do CGEN se deu por meio de observação participante das reuniões no ano de 2018 e 2019, bem como das atas de reuniões do período de 2016 a 2020, além de entrevistas dos conselheiros. Como resultados da pesquisa, identificou-se que muito embora o espaço institucional seja hegemonizado pelo capital, os representantes dos PICTAFs se valem deste espaço por meio de práticas geradoras de direitos, como o direito à cosmovisão sobre o conhecimento tradicional, o direito à existência, o direito à voz e à representatividade.
Para a Autora, em suas palavras subsequentes à defesa, já refeita das emoções legítimas que o processo de elaboração acumula, ela como que fechou:
“um ciclo de um período muito importante e especial pra mim. Defendi minha dissertação de mestrado em Direitos Humanos (UnB), sob a orientação do nosso mestre @josegeraldosousajr , com uma banca extremamente qualificada: nada mais nada menos que @raquel_yrigoyen_fajardo , @henyo.barretto e Boaventura de Sousa Santos! Me sinto plenamente honrada e agradecida por este momento único em minha vida. E agradeço imensamente todas e todos que fizeram parte desta longa caminhada. Em “Povos indígenas, povos e comunidades tradicionais, agricultores familiares: a disputa pelo direito no Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN)”, me propus a fazer uma análise de como se dá a luta por direitos quando os movimentos sociais alcançam a institucionalidade, especialmente a disputa pelos direitos relacionados a seus conhecimentos tradicionais, dentro de um espaço hegemonizado pelo capital e onde a correlação de forças é extremamente desigual. Em que pese o direito oficial moderno ser um instrumento para reproduzir a opressão, estes sujeitos coletivo de direitos, por meio de suas práticas, conseguem disputar esse direito e ressemantizá-lo para, juntos, enunciar novos direitos e os princípios de uma legítima organização social da liberdade (e da biodiversidade!)”.
Com igual intenção, reproduzo o Sumário do texto, de modo a transmitir o conjunto dissertativo proposto pela Autora:
INTRODUÇÃO
Prólogo: reflexões sobre fazer pesquisa, pandemia, salvar vidas e saberes tradicionais.
A pesquisa
Percurso metodológico
Apresentação
CAPÍTULO 1. DAS DIVERSAS COLONIALIDADES E DA PRODUÇÃO DE DES-
CONHECIMENTOS
1.1. A biocolonialidade de poder e a invenção da biodiversidade
1.2. Biodiversidade e movimentos sociais na América Latina
1.3 Conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade: em busca de um conceito
CAPÍTULO 2. A REGULAÇÃO DO CONHECIMENTO TRADICIONAL E DA
BIODIVERSIDADE: A POLITIZAÇÃO DO DEBATE EM TORNO DO DIREITO E DOS SUJEITOS
2.1 A politização dos conhecimentos tradicionais
2.2. Detentores dos conhecimentos tradicionais: povos indígenas, povos e comunidades
tradicionais e agricultores familiares
2.2.1. Povos Indígenas
2.2.2. Povos e comunidades tradicionais
2.2.3. Agricultores familiares
2.3. Conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade: entre leis e direitos
2.3.1. O ―direito‖ internacional e os direitos relacionados aos conhecimentos tradicionais
2.3.2 A ―conturbada‖ implementação da Convenção da Diversidade Biológica no Brasil: a Medida Provisória 2.186, de 2001, e a Lei n. 13.123, de 2015
CAPÍTULO 3. OS DETENTORES DE CONHECIMENTOS TRADICIONAIS NO
CONSELHO DE GESTÃO DO PATRIMÔNIO GENÉTICO: A DISPUTA POR DIREITOS
3.1. Qual direito?
3.2. A cartografia do CGEN sob as lentes de O Direito Achado na Rua: os sujeitos, o
espaço, as práticas e os direitos
3.2.1. Os sujeitos
3.2.2. O espaço político
3.2.3. As práticas e os direitos
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Seguem as Referências Bibliográficas e os Anexos
O trabalho tem a peculiaridade de um mergulho radical nos pressupostos em que se sustenta, ao imantar a pesquisa do compromisso ético-político de captar o sentido de alteridade que os sujeitos inscritos nas representações dos povos e comunidades originários e tradicionais, inscrevem em seu protagonismo no processo. Isso é o que transparece das considerações finais.
Sobre isso, o professor Henyo chega a dizer, na arguição, que a Autora testemunhou a indigenização de um protagonismo que representa como que uma descolonização das instituições e dos espaços estatais, por uma forma de ocupação desses espaços orientada pelo imaginário cosmológico com que representam a existência, a natureza e a humanidade. A Autora expressa essa compreensão, ao formulá-la, tal como o fizera no debate durante a defesa, no modo como ela própria o disse acima: “me propus a fazer uma análise de como se dá a luta por direitos quando os movimentos sociais alcançam a institucionalidade, especialmente a disputa pelos direitos relacionados a seus conhecimentos tradicionais, dentro de um espaço hegemonizado pelo capital e onde a correlação de forças é extremamente desigual”.
É certo que o fio condutor dessa constatação é desenrolado pela narrativa/oralitura (posto que que retirada dos depoimentos colhidos pela Autora), enfibrado de disposição contra-hegemônica de construção de um direito autêntico, cogente, contraposto ao direito oficial, formal, organizado sobre expressão regulamentar, direito achado na aldeias, nos territórios, nos usos tradicionais, na rua, direito emancipatório em suma.
Aqui terá sido útil, desde uma perspectiva metodológica, mas também epistemológica, valer-se das mediações cognitivo-tradutoras, não só de uma antropologia social que desvende uma outra sociabilidade, mas de uma sociologia de ausências e de emergências que possa ir ao profundo da linha abissal para regressar pela mediação da hipótese do pluralismo jurídico, com a projeção de uma outra juridicidade que não seja o sinal trocado de um monismo positivo legal travestido de um monismo alternativo. O Direito Achado na Rua não é um direito alternativo, mas a expansão desde as entranhas do social, lá onde a existência emancipada, comunitária, compartilha os bens da vida produzidos em comum e de forma comum e igualitária sejam compartilhados segundo padrões de uma organicidade legítima.
O mapa cognitivo da Autora é acolhedor. Combina os arranjos epistemológico-metodológicos compatíveis. Poderia sim, trabalhar com muitos entre nós o fazem com o diamante ético de Herrera Flores para pensar os direitos humanos como processos de reconhecimento da dignidade material da existência, na intersecção entre a linha horizontal da materialidade e das disposições de desenvolvimento das forças produtivas na historicidade das relações de produção e a linha vertical dos espaços de posicionamento da afirmação dos valores em narrativas institucionalizados no Carrefour da dignidade do humano; ou da ecologia dos saberes, na modelagem proposta pelo professor Boaventura de Sousa Santos, o que facilmente se percebe nas cartografias desenhadas para acentuar as notações da pesquisa. E todavia, tudo isso é feito, mas na lealdade aos fundamentos de sua base nativa de apoio interpretativo, ensaiando e bem num arranjo de completude os elementos designativos do arranjo social e teórico sugerido por O Direito Achado na Rua, a partir das experiências analisadas, para assim: 1) Determinar o espaço político no qual se desenvolvem as práticas sociais que enunciam direitos, a partir mesmo de sua constituição extralegal, na enunciação como direitos humanos; 2) Definir a natureza jurídica do sujeito coletivo capaz de elaborar um projeto político de transformação social e elaborar a sua representação teórica como sujeito coletivo de direito; 3) Enquadrar os dados (achados) derivados destas práticas sociais criadoras de direitos e estabelecer novas categorias jurídicas para estruturar as relações solidárias de uma sociedade alternativa em que sejam superadas as condições de espoliação e de opressão entre as pessoas e na qual o direito possa realizar-se como um projeto de legítima organização social da liberdade (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática, Revista Humanidades, vol. 8, número 4 (30). Brasília: Editora UnB, 1992).
Coerente com os enunciados constantes dos objetivos do trabalho, a Dissertação articula as questões indicadas nesse Sumário, para assentar o que a Autora indica em suas conclusões. “De um modo geral diz ela – o presente trabalho serviu à compreensão e explicitação dos diferentes processos históricos e epistêmicos através dos quais se constitui o direito estatal, e em suas contradições se expressa a lei e o direito: (i) da trágica reconfiguração do choque colonial epistêmico sobre as diferentes formas de viver e interagir com a natureza e a sociedade, suscitando de um lado interesses de apropriação privada e exploração econômica da biodiversidade, e de outro o despertar e a mobilização social em torno da resistência, reconhecimento e proteção aos diferentes modos de vida e dignidade associados à natureza local; (ii) até a regulação jurídico-normativa da questão, conduzida em perspectiva abissal pela apropriação científica e exploração econômica dos conhecimentos tradicionais, que no entanto, possui clivagens, porosidades onde se inscrevem os verdadeiros direitos dos povos, como por exemplo, o direito à consulta livre, prévia e informada e à repartição de benefícios, (iii) bem como da sua dimensão institucionalmente contra-hegemonizada pela participação de representantes dos detentores de conhecimentos tradicionais no órgão de deliberação sobre a regulamentação legal, a solução de conflitos e a projeção de políticas públicas associadas ao acesso e livre uso da biodiversidade. Verificou-se, portanto, no microespaço do CGEN, que o direito não está pronto e acabado, ele não é estanque, ele ―é, sendo‖, na expressão de Lyra Filho, ele se atualiza semanticamente a partir das práticas dos sujeitos coletivo de direito. Na medida em se apresentam dentro deste espaço hegemônico revelam novas experiências, novos espaços e tempos, e assim novos direitos que emergem das lutas de resistência que configuram e se orientam por modos de vida e dignidade”.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
A Vulnerabilidade Comunicativa em Audiências nas Varas de Relações de Consumo
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Tadeu Luciano Siqueira Andrade. A Vulnerabilidade Comunicativa em Audiências nas Varas de Relações de Consumo: uma Análise à Luz da Ecolinguística. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade de Brasília – UnB. Brasília, 2021, 181 p.
Perante a Banca Examinadora formada Professor Hildo Honório do Couto Orientador – UnB/PPGL, Professor Gilberto Paulino de Araújo, Examinador Externo à Instituição – UFT/Arraias, Professora Rosineide Magalhães de Souza, Examinadora interna – UnB/PPGL, Professor Kleber Aparecido da Silva, Suplente – UnB/PPGL e pom mim, examinador externo ao Programa, a tese tema deste Lido para Você foi defendida e aprovada.
Na banca, para min, uma oportunidade dupla, reencontrar Tadeu Luciano Siqueira Andrade depois que ele seguiu meu curso O Direito Achado na Rua, na pós-graduação em Direito aqui na UnB, com um interesse que se reflete na inclusão de fundamentos dessa concepção crítica sobre o jurídico, agora aplicados ao seu próprio campo ecolinguístico na tese; e retomar a convivência com seu orientador, meu colega de universidade, com a memória de encontros embora fugazes na convivência universitária, instigantes, inteligentes.
De Hildo um registro que confirma o acerto de Tadeu nos agradecimentos, sobre “sua ética e compromisso”, neste caso, com muita pertinência ao objeto da tese. Hildo manteve vivo intercâmbio com Roberto Lyra Filho, até que este deixasse a UnB, com a aposentadoria e logo falecesse. Atualmente, nós os amigos e colaboradores ainda estamos no esforço de recolher muitos dos inéditos desse grande pensador, em originais garimpados, em cartas. Na minha última Coluna Lido para Você, publicada a propósito de uma plaquete de Edson Nery da Fonseca – http://estadodedireito.com.br/minhas-memorias-da-unb-edson-nery-da-fonseca/ – noticio a descoberta recente em um sebo de discos em Recife, de uma carta de Roberto Lyra Filhopara Edson (Edson Nery da Fonseca), de 1978, comentando suas disposições para as suas exéquias e as peças de Bach que gostaria fossem tocadas.
Em minha coluna, recupero o episódio para programar com amigos o restauro de seu túmulo no cemitério paroquial de Santa Cândida em Curitiba e anoto, a propósito de outras recuperações, um episódio não registrado entre Roberto Lyra Filho e Eudoro de Sousa, que foi colega de Hildo no Instituto de Letras da UnB, um de seus fundadores.
Transcrevo minha descrição do episódio: “Ouvi de Roberto Lyra Filho a recordação de um Eudoro de Sousa, apoplético em sua revolta contra um certo canalha que o desgostara e que ele, sem que ninguém conseguisse acalmar ou demover, queria encher a cara de balas; somente serenado, em risos, quando o próprio Roberto, com séria admoestação, o direciona: “Como, Eudoro, você, um helenista, quer encher de balas esse desafeto! Transfixe-o com uma lança!”.
Por que faço isso? Porque exatamente em circunstâncias próximas, um achado de Roberto Lyra Filho, dito em conversa, com Hildo, entretanto muito elegante e estiloso na sua força expletiva e que poderia ter sido apropriado pelo interlocutor, mas que ao contrário, “por sua ética e compromisso” foi por ele preservado trazendo-o como epígrafe de O Que É Portugês Brasileiro (COUTO, Hildo H. Coleção Primeiros Passos nº 164. São Paulo: Editora Brasiliense, 2ª edição, 1986: “Num sistema injusto, se quisermos ser sérios temos que ser marginais, Roberto Lyra Filho”.
Do que consiste a Tese diz o seu resumo:
Com os avanços dos estudos acerca das interações comunicativas, surgiu a ecolinguística, que analisa a língua inserida em três meios ambientes: o natural, o mental e o social, considerando as inter-relações entre Povo, Língua e Território. A ecolinguística preocupa-se, sobretudo com as interações que se dão no ecossistema linguístico, seja entre os sujeitos ou entre esses sujeitos e o ambiente em que se encontram. Sabemos que as interações são diversas e ocorrem em contextos institucionais ou não institucionais. Esta pesquisa tem como objetivo geral analisar, à luz da linguística ecossistêmica, as interações nas audiências de relações de consumo no Juizado Especial Cível, situado no Fórum Regional do Imbuí – Salvador – BA, interrelacionando o direito e a linguagem com vistas à construção teórica de uma ecolinguística jurídica. Para compreender a ecologia das interações comunicativas nas audiências, adotamos os pressupostos teórico-metodológicos da etnografia correlacionados com a visão ecometodológica da ecolinguística. A pesquisa é de cunho qualitativo e adota as técnicas e métodos da análise de conteúdo. (BARDIN, 2002). A audiência é um evento sociojurídico e linguístico, envolve pessoas, papéis sociais distintos e contextos diferentes, onde se entrecruzam aspectos de natureza jurislinguística. Daí a construção de um diálogo teórico entre a ecolinguística e o direito, uma vez que a audiência apresenta regras tanto de natureza jurídica quanto interacional e sistemática. Na base teórica da ecolinguística, fundamentamo-nos em Capra (2020); Capra e Mattei (2018), Couto (2007; 2009; 2014; 2016), Araújo (2014; 2016), Bang & Døør (2016), Fill (2016) e outros. Na base jurídica, embasamo-nos em Cappelletti e Garth (1988), Lyra Filho (1995); Sousa Junior (2008, 2009, 2016); Sousa Santos (1994; (2009) Drew e Heritage (1992), Goffman (2010; 2011; 2013) e outros. A pesquisa nos possibilitou compreender uma visão macro da vulnerabilidade comunicativa do consumidor nas audiências, pois as interações nos contextos forenses são mais amplas do que as definidas pelo direito estatal. Evidenciamos ainda que obstáculos de natureza linguística, social, cultural, política, econômica agravam a vulnerabilidade comunicativa do cidadão leigo, tornam o ambiente forense distante da realidade do jurisdicionado; propiciam relações assimétricas e violam direitos linguísticos”.
O tema traz grande novidade e assegura o ineditismo da tese desenvolver a abordagem comunicacional sob a perspectiva ecolinguísta. Eu próprio já havia participado de análise de trabalhos com o mesmo alcance empírico, porém, sob o impulso de teorias da comunicação. Assim, por exemplo, NEGRINI, Vanessa. Comunicação pública e efetividade da Justiça: uma análise dos processos comunicacionais nos Juizados Especiais Cíveis do Distrito Federal. 2017. 211 f., il. Dissertação (Mestrado em Comunicação)—Universidade de Brasília, Brasília, 2017.
A dissertação de Negrini, noto que Tadeu a levou em consideração, incluindo-a em sua bibliografia, é o que está no Repositório, “aborda comunicação pública e efetividade da justiça a partir da análise dos processos comunicacionais no âmbito dos Juizados Especiais Cíveis do Distrito Federal, à luz das teorias da comunicação pública, do direito humano à informação e sob a perspectiva do O Direito Achado na Rua. O objetivo geral é avaliar se as políticas públicas de comunicação e os processos comunicativos organizacionais, em vigor no âmbito dos Juizados Especiais Cíveis, contribuem para a efetividade indiscriminada, independentemente de fatores sociais como renda e escolaridade.”.
Mais próxima da perspectiva de Tadeu, em seu estudo sobre variações estilísticas em discursos do meio acadêmico (lembro da Autora acompanhando reuniões do Conselho da Faculdade de Direito da UnB) é a dissertação da atualmente professora do próprio Instituto de Letras da UnB Cibele Brandão, “Do discurso formal para o informal: um estudo de variação estilística no meio acadêmico”.
Seu estudo consiste, ela própria resume, na “descrição, por meio de microanálises interacionais, do comportamento de membros da comunidade acadêmica ao fazerem a troca do estilo formal pelo informal em situações de fala formais típicas do contexto institucional a que eles pertencem: reuniões de conselhos acadêmicos. A pesquisa se situa no campo da Sociolinguística Interacional e incorpora, para fins de análise, contribuições da metodologia etnográfica, da Pragmática e da Análise da Conversação aplicada a contextos institucionais. A variação estilística é analisada no meio acadêmico como estratégia discursiva de que o falante se serve para obter mais eficiência na comunicação. Demonstra-se, neste trabalho, que a caracterização de estilos na fala não pode ser feita mediante parâmetro único. Ela atende a uma combinação de fatores linguísticos e contextuais interrelacionados, em razão do caráter complexo e multifacetado que o discurso formal e o informal encerram. Esta pesquisa pode contribuir para os estudos de variação estilística na interação face a face, haja vista o papel que essa estratégia desempenha na competência comunicativa dos falantes”.
O trabalho de Tadeu Andrade é originalíssimo a partir do arranque epistemológico e a sofisticada armação narrativa que tece e organiza, com estilo e elegância, os achados de seu estudo de caso. O Sumário é uma vitrine dessa libação intelectual que Barthes bem enquadraria como “um pouco de saber, um pouco de sabedoria, e o máximo de sabor possível (Aula, p. 47), abrindo mão de um pouco de todo poder (desde a sua consideração, em sede de semiologia literária, sobre o fascismo da língua – Aula, p. 14):
1 INTRODUÇÃO
1.1 Nada acontece por acaso: o porquê da pesquisa
1.1.1 Quando a esmola é muita, o santo desconfia: entendendo o caso
1.2 Relevância da pesquisa para as comunidades acadêmica e jurídica
1.3 Problema da pesquisa
1.4 Objetivos da pesquisa
1.5 Estrutura da tese
2 ASPECTOS METODOLÓGICOS DA PESQUISA
2.1 A metodologia na ecolinguística: desfazendo os equívocos
2.1.1 A proposta metodológica de Garner: desfazendo as metáforas
2.1.2 Bang e Døør: a perspectiva dialógica
2.1.3 Nash: o trabalho de campo ecolinguístico e o minimalismo empírico
2.2 A pesquisa em direito: dialogando com outras teorias
2.3 A pesquisa etnográfica e suas contribuições para a ecolinguística
2.3.1 Características da pesquisa etnográfica
2.3.2 Couto: a ecometodologia
2.3.3 Contexto da Pesquisa
2.3.3.1 Contexto espácio-temporal
2.3.3.2 O Fórum Regional do Imbuí: aspectos históricos
2.3.3.3 Colaboradores (as) da pesquisa
2.3.3.4 Critérios para a escolha dos colaboradores (as) da pesquisa
2.3.3.5 Ciclo da Pesquisa
3 ECOLINGUÍSTICA: UMA VISÃO PANORÂMICA
3.1 Conceito Preliminar
3.2 Breve Histórico
3.3 Haugen: da expressão ecologia da linguagem ao termo ecolinguística
3.4 Década de 90: ecolinguística como disciplina acadêmica
3.5 A ecolinguística na atualidade: o que se tem feito?
3.6 A ecolinguística: “revisitando” conceitos
3.7 A visão ecológica da língua: rompendo paradigmas
3.8 Princípios da ecologia aplicados à ecolinguística
3.8.1 Princípio do holismo
3.8.2 Princípio da interação
3.8.3 Princípio da adaptação
3.8.4 Princípio da evolução ou sucessão ecológica
3.8.5 Princípio da diversidade
3.8.6 Princípio da porosidade
3.8.7 Princípio de visão a longo prazo
4 ECOLINGUÍSTICA OU LINGUÍSTICA ECOSSISTÊMICA?
4.1 Ecossistema ecológico e ecossistema linguístico
4.1.1 Povo
4.1.2 Território
4.1.3 Língua
4.2 Os ecossistemas linguísticos
4.2.1 Ecossistema natural da língua
4.2.2 Ecossistema mental da língua
4.2.3 Ecossistema social da língua
4.2.4 Ecossistema integral da língua
5 A ECOLOGIA DAS INTERAÇÕES COMUNICATIVAS
5.1 Elementos da Ecologia das Interações Comunicativas
5.1.1 Cenário
5.1.2 Interlocutores
5.1.3 Fluxo interlocucional
5.1.4 Circunstantes
5.1.5 Componentes linguísticos
5.1.6 Componentes paralinguísticos
5.1.7 Elementos extralinguísticos
5.1.8 Regras interacionais
5.2 Tipos de interações
5.3 Características das interações institucionais
5.4 As dimensões relevantes na interação
6 JUIZADO ESPECIAL COMO ACESSO À JUSTIÇA: REALIDADE OU
UTOPIA?
6.1 Procedimento no JEC
6.2 Causas julgadas pelo JEC
6.3 Princípios norteadores do JEC
6.3.1 Princípio da oralidade
6.3.2 Princípio da simplicidade
6.3.3 Princípio da informalidade
6.3.4 Princípio da economia processual
6.3.5 Princípio da celeridade processual
6.4 Obstáculos do acesso à Justiça
7 O DIREITO ACHADO NA RUA: ASPECTOS HISTÓRICOS E
EPISTEMOLÓGICOS
7.1 Onde, quando e por que surgiu?
7.2 Por que O Direito Achado na Rua?
7.3 Aspectos epistemológicos de O DAR
7.4 Bases teóricas de O DAR
7.5 O direito está nos códigos ou na rua?
7.6 O DAR no contexto acadêmico atual: Ensino, Pesquisa e Extensão
7.7 O DAR e a ecolinguística: diálogos possíveis
7.8 O tripé de O DAR e a correlação com a ecolinguística
7.9 A Ecologia jurídica
8 A AUDIÊNCIA: UM ESTUDO À LUZ DA ECOLOGIA DA INTERAÇÃO
COMUNICATIVA
8.1 As Audiências no JEC
8.1.1 “Mais vale um mau acordo que uma boa briga”: a proposta de acordo nas audiências
8.2 Sujeitos da audiência
8.3 “Cada homem no seu lugar”: Onde se sentar?
8.4 “Quem cala consente”? A semântica do silêncio nas relações jurídicas processuais
8.5 “A careta fica na cara de quem faz”: Os gestos e os movimentos corporais durante a audiência
8.6 “Chegou a hora de a onça beber água”: quem e quando fala?
8.7 “O hábito faz o monge”: Com que roupa compareço à audiência?
8.8 “Antes escorregar com o pé do que com a língua”: aspectos linguísticos da audiência
8.9 “Manda quem pode; obedece quem tem juízo”: as regras das audiências
8.9.1 Regras prévias
8.9.2 Regras interacionais
9 APLICANDO A TEORIA DA ECOLOGIA DA INTERAÇÃO COMUNICATIVA ÀS AUDIÊNCIAS: ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DOS DADOS
9.1 Descrição do contexto da audiência: da portaria à sala de audiência
9.1.1 Sala de espera
9.1.2 Pregão
9.1.3 Enquadre legal das audiências analisadas
9.1.4 Sujeitos da audiência
9.1.5 Espaço temporal da audiência
9.1.6 Disposição das partes integrantes da audiência: organização proxêmica
9.1.7 Vestimentas
9.2 A Ecologia da Interação Comunicativa da Audiência
9.3 Análise dos atos interacionais das audiências
9.3.1 Composição da mesa de audiência
9.3.2 Atos interacionais das audiências
9.3.3 Tomada de turnos: desenvolvimento do fluxo interacional
9.3.4 Retomada de turnos
9.3.5 Encerramento do fluxo interlocucional
9.3.6 Regras
9.3.6.1 Regras prévias de interação
9.3.6.1.1 Regras regimentais
9.3.6.1.2 Regras de ordem jurídico-processual
9.3.6.1.3 Regras de sequência dos atos processuais
9.3.6.1.4 Regras de uso de vestimentas
9.3.6.1.5 Regras de ordem linguístico-discursiva
9.3.6.2 Regras interacionais
9.4 Movimentos e gestos observados
9.5 Aspectos linguístico-discursivos
10 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
ANEXO A – TERMO DE AUDIÊNCIA DE CONCILIAÇÃO
ANEXO B – TERMO DE AUDIÊNCIA DE CONCILIAÇÃO
APÊNDICE A – CORRELAÇÃO DOS SIGNIFICADOS DOS TERMOS TÉCNICOS NA LINGUAGEM JURÍDICA E NA COMUM
APÊNDICE B – RELATÓRIO DAS VISITAS AO FÓRUM REGIONAL DO IMBUÍ
APÊNDICE C – GLOSSÁRIO DE ALGUNS TERMOS JURÍDICOS CITADOS
APÊNDICE D – REGRAS INTERACIONAIS
A perspectiva ecológica, que o Autor traz para a Tese, como “um novo paradigma nos estudos acerca da linguagem”, aponta para uma “abordagem holística que se concentra nas interações e nas inter-relações entre o objeto que está sendo estudado e seu contexto. Não podemos analisar qualquer objeto sem nos ater às suas relações, seja com os outros objetos, seja com o ambiente em que se encontra”. Não se trata da inserção no âmbito epistemológico, da aproximação nesse campo proposta originalmente por Jan Christian Smut (Holism and Evolution), desde o século XIX, mas o modo teórico-metodológico inscrito num “pensamento ecológico da linguagem, como o estudo das interações entre uma língua e seu meio ambiente”. Vale dizer, “o estudo das interações verbais que se dão nos ecossistemas linguísticos”.
Aqui, penso, embora não diretamente referido, ao que vêm propondo como uma nova epistemologia de emancipação, decolonial, desde o Sul, tal como indica Boaventura de Sousa Santos, dispondo sobre “Ecologia dos Saberes”, conceito que nesse Autor conceito corresponde à busca de diálogo entre vários saberes que podem ser considerados úteis para o avanço das lutas sociais pelos que nelas intervêm”. É nesse sentido que se incorpora em O Direito Achado na Rua o conceito, desde A Crítica da Razão Indolente. Contra o Desperdício da Experiência (Editora Cortez), até o mais recente (2019), O fim do império cognitivo. A afirmação das epistemologias do Sul (Editora Autêntica).
Passo ao largo nesse tema, alinhado com a escolha teórica do Autor, deixando aos meus colegas de banca, todos do campo, a esgrima desse tablado, entre eles o seu Orientador Hildo Honório do Couto, como expressão síntese.
Assim é que atendo-me às minhas tamancas vou direto ao ponto enunciado desde o item 2.2 A pesquisa em direito: dialogando com outras teorias. Certo que o Autor justifica que a a “pesquisa não trata especificamente de uma temática jurídica, mas, como fora desenvolvida em um ambiente forense, consideramos procedente fazer algumas incursões acerca da pesquisa em direito, uma vez que geralmente, os estudos nessa área se dão com a análise do direito positivo e dogmático, vendo o fenômeno jurídico distinto e independente dos fatos políticos, econômicos e sociohistóricos, limitando-se ao estudo da teoria da norma, da argumentação e outros aspectos dogmáticos”. Segundo ele, coerentemente, “os juristas, talvez influenciados pela sua formação acadêmica, ignoram as questões sócio-políticas, fixam-se no interior das instituições com um enfoque técnico que não leva em conta o aspecto global do sistema”.
Poucos juristas se dão conta dessa redução, engolfados num senso comum ainda que teórico, como dizia Luis Alberto Warat (aliás, meu Orientador no Doutorado) sem a força epistemológica para exercitar o desentranhamento de seus discursos teóricos e técnicos, o que neles, consciente ou inconscientemente, se insinua na forma de pré-compreensões, de crenças, de ideologias jurídicas.
Essa a nota distintiva de O Direito Achado na Rua, enquanto campo de conhecimento e movimento com protagonismo na práxis jurídica. Mesmo aqui, combinando a inter ou hiper-discursividade na ecologia dos saberes, e com muito sabor a partir da literatura, em debate sobre tese de doutorado, aqui no IL (Justiça Indeferida: a Degeneração Política no Romance A Rainha dos Cárceres da Grécia, de Osman Lins. Cacilda Bonfim. Tese de Doutorado. Brasília: UnB/Instituto de Letras – Programa de Pós-Graduação em Literatura, 2021, 288 p.), – http://estadodedireito.com.br/justica-indeferida/.
Para diálogo com o trabalho de Tadeu Andrade, me socorra Balzac: “Quando um homem cai nas mãos da Justiça, deixa de ser um ser moral, mas apenas uma questão de direito ou de fato, como aos olhos dos estatísticos se transforma um número” (BALZAC, Honoré de. O Coronel Chabert, Otto Pierre, Editores, Ltda, São Paulo, Coleção Os Grandes Romances Históricos 2, sd).
Estou de acordo com o Autor quando diz:
“Vivemos hoje em um mundo globalmente interligado no qual os fenômenos biológicos, psicológicos, sociais e ambientais são todos interdependentes. Para descrever esse mundo apropriadamente necessitamos de uma perspectiva ecológica que a visão de mundo cartesiana não nos oferece. (CAPRA, 1992, p. 14). Analisar um fenômeno que envolve aspectos interligados, por exemplo, o direito e a linguagem implica considerar uma rede de relações e não o indivíduo em si mesmo porque todos os elementos constitutivos da ecologia do direito, denominado por Capra e Mattei (2018) de ordenamento ecojurídico, estão interligados, e as transgressões são oriundas de visões que se contrapõem na sociedade. Por isso, recorremos a alguns aspectos de O DAR para analisar as interações na audiência como um evento jurídico que envolve sujeitos de direitos, aspectos jurídicos, linguísticos e papeis sociais distintos” (p. 26).
E, com ele, mantenho o acordo, na parte inclusive em que me traz para abonar a sua plataforma de investigação (p. 26-27):
“Uma pesquisa fundamentada em uma perspectiva inter e multidisciplinar possibilitará uma visão crítico-reflexiva da crise do direito e formará um novo profissional apto a superar a distância entre o conhecimento do direito e sua realidade social, política e moral. Assim, edificar-se-ão pontes sobre o futuro, por intermédio delas transitarão os elementos de uma nova visão do direito e de um novo modelo de ensino jurídico, defende Sousa Junior (1996). Observando as relações intersubjetivas e os aspectos jurislinguísticos, evidenciamos que os profissionais do direito divinizam o positivismo jurídico, ficam submetidos à lei e colocam as normas estatais acima de tudo. Para eles, o direito é a lei, dizia Lyra Filho (1995). Nas audiências, a forma se sobrepõe ao conteúdo, e a preocupação do jurista é seguir um rito geral para uma situação específica. Para compreender a audiência como uma interação em que há sempre um sujeito vulnerável, espoliado, seja devido à condição socioeconômica, cultural ou linguística, usamos como aporte teórico-metodológico O DAR, haja vista essa linha de pesquisa buscar “superar a crise do direito entendido como a distância que tem separado o direito positivo da realidade dos fatos”. (SOUSA JUNIOR, 2016, p. 14). Esse distanciamento mostra a necessidade de o direito ser analisado na visão ecossistêmica em que tudo está conectado e interdependente, e o fenômeno jurídico vincular-se a questões de ordens diversas”.
Não diria melhor Anatole France (Da Submissão de Crainquebille às Leis da República. Crainquebille in FRANCE, Anatole. A Justiça dos Homens, Rio de Janeiro: Editora Civilização brasileira, 1978):
“Crainquebille sentou-se na sua banqueta acorrentada, cheio de espanto e admiração. Ele mesmo não estava bem certo de que os juízes se houvessem enganado. O tribunal escondera-lhe as suas íntimas fraquezas sob a majestade das formas. Ele não podia acreditar que pudesse ter razão contra magistrados cujas razões não compreendera: era-lhe impossível conceber que alguma coisa claudicasse numa tão bela cerimônia”.
Na abertura das considerações finais o Autor busca, numa epígrafe extraída de Boaventura de Sousa Santos, retirada de seu Para uma Revolução Democrática da Justiça São Paulo: Cortez, 2007), propugnar que o Direito seja politicamente apropriado pela cidadania:
“É preciso que os cidadãos se capacitem juridicamente, porque o direito, apesar de ser um bem que está na sabedoria do povo, é manejado e apresentado pelas profissões jurídicas através do controle de uma linguagem técnica ininteligível para o cidadão comum. Com a capacitação jurídica, o direito converte-se de um instrumento hegemônico de alienação das partes e despolitização dos conflitos a uma ferramenta contra-hegemônica apropriada de baixo para cima com estratégia de luta”. (SOUSA SANTOS, 2007, p. 69).
Sob a influência da leitura dessa obra, e a partir dos enunciados de O Direito Achado na Rua, tratei de distinguir sob essa perspectiva, dois níveis que pudessem articular essa possibilidade: O nível restrito do acesso à justiça, que se reafirma no sistema judicial. E o nível mais amplo do mesmo conceito se fortalece em espaços de sociabilidade que se localizam fora ou na fronteira do sistema de justiça. Contudo, ambos os níveis se referem a uma mesma sociedade, na qual se pretende o exercício constante da democracia.
Claro que, numa perspectiva de alargamento do acesso democrático à justiça, não basta institucionalizar os instrumentos decorrentes desse princípio, é preciso também reorientá-los para estratégias de superação desses mesmos pressupostos. Principalmente pelo Poder Judiciário que se tem mostrado extremamente recalcitrante à abertura de espaços para a ampliação das condições democráticas de realização da justiça.
Nesse sentido, algumas contradições precisam ser resolvidas, conforme sugere Boaventura de Sousa Santos. Primeiro, criar condições para inserir no modelo existente de administração da justiça, a ideia de participação popular que não está inscrita em sua estrutura; segundo, superar o obstáculo de uma demanda de participação popular não estatizada e policêntrica, num sistema de justiça que pressupõe uma administração unificada e centralizada; terceiro, fazer operar um protagonismo não subordinado institucional e profissionalmente, num sistema de justiça que atua com a predominância de escalões hierárquicos profissionais; quarto, aproximar a participação popular do cerne mesmo da salvaguarda institucional e profissional do sistema que é a determinação da pena e o exercício da coerção; quinto, considerar a participação popular como um exercício de cidadania, para além do âmbito liberal individualizado, para alcançar formas de participação coletiva assentes na comunidade real de interesses determinados segundo critérios intra e trans-subjetivos (cf. http://estadodedireito.com.br/para-uma-revolucao-democratica-da-justica/).
Em pesquisa respondendo a edital do Ministério da Justiça sobre modos de observar a Justiça e o Judiciário (Observatório do Judiciário, Série Pensando o Direito, UnB/UFRJ, PNUD/Secretaria de Assuntos Legislativos/Ministério da Justiça, Brasília, nº 15/2009. Coordenação Acadêmica José Geraldo de Sousa Junior, Fábio de Sá e Silva, Cristiano Paixão e Adriana Andrade Miranda (http://pensando.mj.gov.br/wpcontent/uploads/2015/07/15Pensando_Direito3.pdf)), foi possível estabelecer junto a assessorias jurídicas de movimentos sociais e extrair de suas observações, a visão negativa dos modelos adjudicatórios do sistema legal e judiciário, presos às normas constituídas como unidade de análise das relações de conflito e incapazes de realizar até mesmo as promessas constitucionais de realização da Justiça, entre outros fatores, pela “resistência a trabalhar com o direito da rua”, pela “baixa sensibilidade para as demandas da comunidade”, pelos “limites culturais para a percepção de sujeitos e demandas inscritas nos conflitos sociais”, pela manutenção de “corpo com formação técnica desvinculada das experiências do mundo da vida”, pela “postura institucional burocrática” e pela “pouca permeabilidade ao controle social”.
Nem precisaríamos de pesquisa para estabelecer essa ordem de considerações, se estivéssemos atentos aos conselhos de Dom Quixote a Sancho Pança sobre governança e administração da Justiça (Capítulos XLII e XLIII), o simplório, que “apesar de tonto”, tinha a “boa índole” para a “ciência que valha” e para o “firme propósito de acertar em todos os negócios” de governar e de distribuir justiça (ver, a propósito, em Jornal Estado de Direito, minha Coluna Lido para Você: http://estadodedireito.com.br/conselho-aos-governantes/): “inda que alguns não entendam estes termos, pouco importa, que o uso os irá introduzindo com o tempo, de forma que facilmente se compreendam; e isto é enriquecer a língua, sobre a qual têm poder o vulgo e o uso”.
Assim é que, em contrapartida, conforme afinal constatamos na pesquisa, o que exatamente pediam aqueles prestamistas de uma Justiça atualizada e modernizada para além do simplesmente funcional-burocrático-legal era: “respeito às temporalidades democráticas”, “fortalecimento comunitário”, “educação em Direitos Humanos”, “uso dos meios de comunicação”, “conscientização e sensibilização” e, em síntese, “reconhecimento e acreditamento do protagonismo das experiências de mediação social realizadas fora das instâncias estatais”.
Sob essa mesma perspectiva é que o Autor pode encaminhar as conclusões da Tese acentuando proposições que confortam, sob a perspectiva do Direito e do Direito Achado na Rua, um programa que arme o jurisdicionado para capacitar-se com sua própria linguagem, para a titularidade dos Direitos: “i) pensarmos um novo estudo acerca das interações no contexto forense, sobretudo no Juizado Especial Cível; ii) refletirmos o ensino jurídico no Brasil, onde o futuro profissional do direito é preparado para estudar doutrinas como se o direito estivesse restrito aos tribunais e cristalizados nos códigos; iii) inserirmos, nos cursos jurídicos, os fundamentos da ecolinguística e de O DAR, visando à criação de uma ecolinguística jurídica; iv) desmitificarmos a audiência como um espaço restrito ao direito positivado, mas considerá-la com um ambiente fundamentado nas regras de interação de onde nasce o direito, devendo existir o verdadeiro diálogo e o respeito mútuo; v) adotarmos pressupostos da linguística ecossistêmica à audiência, uma vez que esse evento é uma interação muito mais ampla que a definida pelo direito estatal”.
De resto, na ilha de Baratária, melhor que qualquer licenciado ou bacharel, ainda que “mesclando as suas palavras e as suas ações com acertos e tolices”, pôde o simplório escudeiro exercitar a governança e distribuir Justiça, e ordenar “coisas tão boas, que ainda hoje se guardam naquele lugar e se chamam ‘As contribuições do grande Governador Sancho Pança” (Capítulo LI).
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
EDUCAÇÃO JURÍDICA BRASILEIRA: entre as Diretrizes Curriculares Nacionais e o Exame de Ordem.
| Redação Jornal Estado de Direito
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Thiago Fernando Cardoso Nalesso. EDUCAÇÃO JURÍDICA BRASILEIRA: entre as Diretrizes Curriculares Nacionais e o Exame de Ordem. Doutorado em Direito. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2021, 305 p
A obra aqui lida é a Tese de Doutorado, defendida perante a Banca Examinadora formada pelos professores e professoras Dr. Márcio Pugliesi (Orientador) – PUC-SP, Dr. Álvaro Luiz Travassos de Azevedo Gonzaga – PUC-SP, Dra. Maria Vital da Rocha – UFC, Dra. Regina Vera Villas Bôas – PUC-SP, Dr. Caio Gracco Pinheiro Dias (Suplente) – FDRB-USP, Dr. Willis Santiago Guerra Filho (Suplente) – PUC-SP.
Tive a honra de integrar a Banca Examinadora, vivenciando o impacto de dupla sensibilização, de um lado como que ser transportado para um tempo de viva interpelação provocada pelo maior movimento de crítica ao jurídico no campo do conhecimento e do ensino do Direito; de outro, na condição de examinador, me surpreender na condição, de certo modo, de integrar o objeto de estudo, já que, em seu âmbito, direta ou indiretamente participei como protagonista de todos os processos, articulações e eventos ativados nessa conjuntura, no MEC (Comissão de Especialistas de Direito, Exame Nacional de Cursos, ENADE, Secretaria de Educação Superior/Diretoria de Educação do Ensino Superior, SINAES), no Conselho Federal da Ordem dos Advogados (Comissão de Ciência e Ensino do Direito, depois Comissão de Ensino Jurídico, logo Comissão de Educação Jurídica, Conferências Nacionais da OAB), no Conselho Nacional de Educação (Sistema de Avaliação de Cursos) e na Universidade, professor, Diretor da Faculdade de Direito, Reitor, da Universidade de Brasília.
O escopo do trabalho pode ser apreendido do bom resumo preparado pelo Autor:
“Neste trabalho avaliam-se os efeitos das Diretrizes Curriculares Nacionais do MEC e da atuação da OAB, por meio da Comissão Nacional de Educação Jurídica e do Exame de Ordem, em relação à qualidade da educação jurídica brasileira, com ênfase na questão curricular. Além disso, analisam-se o desenvolvimento histórico e a fundamentação político-ideológica e epistemológica dos cursos de Direito no Brasil, seguidos pela descrição e interpretação do direito regulatório educacional e o surgimento e desenvolvimento das Diretrizes Curriculares Nacionais. Verificou-se que o Exame de Ordem, criado para atestar a capacidade mínima para o exercício da advocacia, se converteu em instrumento de aferição de qualidade da educação jurídica ofertada por instituições de ensino superior no Brasil, além de ser utilizado como insumo principal para a concessão do “selo de qualidade OAB Recomenda”. A utilização do Exame de Ordem como parâmetro de qualidade de serviços educacionais, sem a devida adequação metodológica, influencia um processo de padronização curricular com resultados negativos na inovação, especialização, regionalização e flexibilização dos currículos jurídicos, e, em certa medida, contradiz esforços realizados pela Comissão Nacional de Educação Jurídica da OAB. Por outro lado, no processo de análise e avaliação, ficou evidenciada a importância e a necessidade social do exame, que cumpre função de proteger os direitos e liberdades dos cidadãos, o que levou à conclusão sobre a necessidade de ajustes na metodologia da avaliação do Exame de Ordem e do selo de qualidade da OAB para que se tenha maior eficácia na consecução de suas finalidades”.
E no Sumário que segue ao resumo:
Introdução
1 – Desenvolvimento histórico e fundamentação político-ideológica e epistemológica dos cursos de Direito no Brasil
1.1 – A criação e o desenvolvimento dos cursos jurídicos no Brasil: do Império à Primeira República
1.2 – Fundamentação político-ideológica na criação e consolidação dos cursos de Direito no Brasil: bacharelismo e liberalismo-individualista
1.3 – A Reforma Francisco Campos
1.4 – O período da Constituição democrática de 1946 e a criação do currículo mínimo
2 – Direito Educacional e currículo dos cursos de Direito
2.1 – Direito Educacional brasileiro: princípios e estruturas fundamentais
2.2 – Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior e Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes
2.3 – Direito Educacional e Conselhos Profissionais
2.4 – Diretrizes Curriculares Nacionais – DCN
2.5 – Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de Direito
3 – A Ordem dos Advogados do Brasil e a educação jurídica
3.1 – A Comissão Nacional de Educação Jurídica – CNEJ
3.2 – Selo de Qualidade “OAB Recomenda”
3.3 – Criação do Exame de Ordem
3.4 – Exame de Ordem: características, críticas e constitucionalidade
3.5 – Exame de Ordem em Números
Conclusão
Referências
Anexos
Com o apoio de boa bibliografia o Autor repõe o percurso histórico-político e epistemológico que demarca a constituição do campo, retardatário na institucionalização que teve na América instituições inclusive universitárias desde o século XVI e aqui somente no século XX, com a anterioridade dos cursos jurídicos criados em 1827 e propõe um modo de seguir as etapas de desenvolvimento histórico e fundamentação político-ideológica e epistemológica dos cursos de Direito no Brasil, com a criação e o desenvolvimento dos cursos jurídicos no Brasil: do Império à Primeira República e a fundamentação político-ideológica na criação e consolidação dos cursos de Direito no Brasil: bacharelismo e liberalismo-individualista, até chegar às reformas empreendidas nesse período.
A leitura não sofre a redução esquematizante dos esforços classificatórios, atenta a advertência de Jorge Luis Borges, para quem toda classificação carrega algo de arbitrário e de conjectural (no conto O Idioma Analítico de John Wilkins). Não por caso, o Autor abre a sua tese com uma epígrafe de Roberto Lyra Filho (em Por que estudar Direito hoje?), que não admite epistemologicamente render-se às pré-compreensões que se insinuam nos discursos teóricos e técnicos, de boa ou de má-fé, consciente ou inconscientemente. Tivesse avançado mais em Roberto Lyra Filho, sobretudo em O Direito que se Ensina Errado, e mais seguro ainda estaria sobre as questões de conhecimento e as questões pedagógicas que atormentam e desorientam os pesquisadores nesse tema. Com efeito, para Roberto Lyra Filho o ensino errado do Direito, resistente a todo esforço de reforma, deriva de duplo equívoco: a inadequada apreensão do objeto de conhecimento (crítica ao positivismo e ao jusnaturalismo) que vai determinar os defeitos da pedagogia; “não ensina bem o Direito quem o apreende mal”.
De certo modo, essa é a mesma advertência feita por Joaquim Falcão, Sérgio Ferraz e José Lamartine Correa em seu relatório sobre a crise do ensino jurídico no Brasil, apresentado à reunião de 1990 do Colégio de Presidentes da OAB, e que motivou a criação da Comissão de Ciência e Ensino Jurídico pela OAB (ato de Marcello Lavénère Machado) e que tive a honra de integrar como membro. Conforme transcrito no primeiro volume da Série Ensino Jurídico OAB: Diagnóstico, Perspectivas e Propostas, a crise do ensino de Direito devia-se “à praga do positivismo que assola o ensino jurídico”.
Uma leitura de Barthes (BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Editora Cultrix, sd, o original francês Leçon foi publicado em 1978), orienta o percurso da formação. Há um tempo para ensinar-se o que se sabe; vem em seguida outro tempo, para ensinar o que não se sabe, o que se chama pesquisar; mas há ainda um outro tempo, o do desaprender, “de deixar trabalhar o remanejamento imprevisível que o esquecimento impõe à sedimentação dos saberes, das culturas, das crenças que atravessamos”. Manoel de Barros deveria ser uma leitura necessária na bibliografia dos cursos jurídicos, pelo menos O Livro das Ignorãças, aonde está Uma Didática das Invenções: “desaprender 8 horas por dia ensina os princípios”.
Trata-se de uma preocupação relevante nesse campo. Basta ver que apenas no âmbito da OAB, à luz de suas Conferências Nacionais, a primeira realizada em 1958, a XXIV convocada para 2021 mas adiada por causa da pandemia, o tema do ensino jurídico, juntamente com o do acesso à justiça, são os dois recorrentes, em todas as Conferências. Em 1958, com Ruy de Azevedo Sodré, ao lado da preocupação com a “proliferação” dos cursos de direito (não deviam ser mais que 20 em comparação aos mais de 1700 atuais), o zelo para que a advocacia não fosse considerada apenas uma profissão, mas uma função social, um múnus público, de fato constitucionalmente reconhecida como atividade essencial à administração da justiça.
Penso que reside nessa preocupação o cuidado com que o Autor assenta já na página 11, o exame das questões que traz para seu estudo: “Dessa maneira a pesquisa realizada passou pelo campo: a) do Direito Educacional, no que se refere ao conjunto normativo que orienta o processo de autorização, funcionamento e definição curricular e metodológica dos cursos de Direito, b) pela sociologia jurídica, ao buscar compreender o papel exercido pela entidade corporativa mais representativa das profissões jurídicas no Brasil, a OAB, na educação jurídica brasileira e, c) da Filosofia do Direito, na medida em que toda definição curricular elege um recorte e uma perspectiva vinculados a uma certa forma de concepção do fenômeno jurídico, mesmo que se busque ocultar tal escolha, que, para ser descortinada, depende de um processo analítico de base filosófica. De outro, a análise crítica do ensino jurídico e de suas crises, em grande parte, é realizada por meio de estudos no campo da epistemologia, ou metodologia jurídica, o que reforça a perspectiva de análise filosófica”.
Tal qual o Autor, mesmo depois de ter contribuído efetivamente para a construção dos fundamentos que balizaram todo o processo de reorientação da educação jurídica brasileira, sobretudo a partir de 1990, com a OAB, nas minhas leituras posteriores, já desligado da institucionalidade operante no implemento das diretrizes e dos parâmetros do ensino do Direito, sempre que tratei do tema ensino jurídico o fiz com cuidado semelhante. Assim meu prefácio no livro ENSINO JURÍDICO. A Descoberta de Novos Saberes para a Democratização do Direito e da Sociedade, de Fábio Costa Morais de Sá e Silva (Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2007, 288 p.), resultado de dissertação que orientei – http://estadodedireito.com.br/a-descoberta-de-novos-saberes-para-a-democratizacao-do-direito-e-da-sociedade/ – tendo mencionado que, se então o Autor, anotava a exigência do que denomina um balanço empírico mais sólido acerca da implementação das Novas Diretrizes Curriculares e do efetivo aproveitamento de inovações como Núcleos de Prática Jurídica, Atividades Complementares, etc., para a organização de projetos pedagógicos fundados nos ou orientados aos direitos humanos, tal atitude ganha ainda mais urgência quanto o Conselho Nacional de Educação vem de expedir uma Revisão das Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Direito (Parecer CNE/CES n. 635/2018, aprovado em 04/10/2018), embora a sua homologação coincida com uma conjuntura, politicamente tensa, como radical mudança no modelo político de governança.
Nessa ordem de consideração acrescentei que, conquanto os sinais já lançados exibam tremendos retrocessos epistemológicos, pedagógicos e políticos, com movimentos de clara intervenção (até aqui contido, com as salvaguardas constitucionais, pelo Supremo Tribunal Federal, em face a ataques à autonomia das universidades e à liberdade de ensinar), e também em operações hostis à vocação crítica e livre da educação em geral (leis de mordaças, escola sem partido), que já feriram gravemente a própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), no tocante a fundamentos como flexibilidade curricular, interdisciplinaridade e redução dos elementos reflexivos do manejo pedagógico, é certo que na Revisão (Parecer n. 635/2018), apreende-se um vínculo não rompido como o movimento crítico e plural instaurado em 1994, com a Portaria n. 1886, conferido em 2004, com a Resolução n.9, guardando fidelidade a esses elementos estruturantes de uma orientação curricular, ainda que acessíveis a indicações de mais detida qualificação (conferir, nessa direção, o artigo de Horácio Wanderlei Rodrigues, ainda inédito no momento de redação deste comentário, mas já circulando restritamente, em seu esboço inicial – para depois se integrar ao volume 8 da Coleção Caminhos Metodológicos do Direito, coordenada pelos Professores Fabrício Veiga Costa, Ivan Dias da Motta e Sérgio Henriques Zandona Freitas -, Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de Direito: Análise do Parecer CNE/ N. 635/2018.
Fiz essas observações para anotar, entre as indicações derivadas de balanços empíricos para o aprofundamento das promessas ainda não realizadas das diretrizes curriculares inauguradas com a Portaria 1186/94, a instigante pesquisa conduzida por Luciana Lombas Belmonte Amaral e que resultou em sua dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Mestrado em Direitos Humanos da UnB (CEAM – Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares), com a orientação da Professora Nair Heloisa Bicalho de Sousa (Desafios à Educação em Direitos Humanos no Ensino Jurídico: um estudo a partir das representações sociais do estudante de direito. Brasília, UnB/PPGDH, 2017), dando conta de um percurso formativo no qual se deve semear reflexões críticas dos estudantes de direito para que possam identificar, nas naturalizações que se imbricam aos discursos do ‘mundo do direito’, o abismo que nos separam de nossas missões como cidadãos e profissionais das carreiras jurídicas para a transformação social (pp. 307-308, da Dissertação). Com muita satisfação constatei que Luciana transformou sua Dissertação em livro, recebendo a atenção editorial do estimado Plácido Arraes, que é também um dos meus editores http://estadodedireito.com.br/ensino-juridico-e-educacao-em-direitos-humanos-entre-hierarquias-sociais-e-redes-de-poder-do-mundo-do-direito/).
Menciono esses dois textos porque eles escapam da abordagem funcional, tão a gosto dos consumidores de projetos que servem a formatar o afluente mercado de ensino jurídico, para a alegria e o amealhamento de consultores, coaches, motivadores; e para a tranquilidade negocial de gestores e mantenedores do sistema de ensino superior.
Na contracorrente do stand up corporativo (comediantes de empresas), permanece o campo reflexivo dos formuladores autoreflexivos que balizaram os esforços de qualificação e de adensamento da educação jurídica cujo trabalho deu lastro ao conjunto de diretrizes que marcam as últimas três décadas no campo, contadas desde a instalação da Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da OAB (conferir a farta bibliografia por ela produzida sob a retranca da Coleção Ensino Jurídico), caracterizando verdadeiramente uma reinvenção do ensino jurídico.
Incluo nesse acervo o volume substancioso OAB Recomenda: um Retrato dos Cursos Jurídicos. Brasília, DF: OAB, Conselho Federal, 2001, 164p.), quando do lançamento do selo de qualidade que a Entidade confere para indicar os cursos que alcançam os patamares de qualidade conforme os indicadores das Comissões de Ensino Jurídico e de Exame de Ordem. Trabalho, aliás, bastante referido pelo Autor da Tese.
Entre os trabalhos que emolduram o rol de cursos certificados na primeira edição do Selo OAB Recomenda, chamo a atenção para a exemplaridade ainda insuperável que proporciona, o texto da Professora Loussia P. Musse Felix – Da Reinvenção do Ensino Jurídico: Considerações sobre a Primeira Década. Texto seminal, orienta para o conhecimento e a hermenêutica de uma virada político-teórica-funcional, designada como “ponto de não-retorno” que designa esse formidável movimento de reinvenção do ensino jurídico.
Com alcance equivalente, entretanto, com foco na construção do projeto didático, é o trabalho de Inês Pôrto, que o tempo ainda não superou, até porque as promessas e desafios desse movimento de reinvenção, em seu núcleo mais estritamente pedagógico-curricular, mal foram divisadas, predominando uma superficialidade implementadora de projetos que apenas arranham a exterioridade nominal dos enunciados formais das diretrizes.
Por isso a importância de retomar o trabalho de Inês Pôrto e o faço a partir do prefácio que preparei para o livro, depois também de ter orientado a dissertação que lhe deu origem.
Nele constato, em diálogo com a proposta da obra, que a publicação no começo dos anos sessenta do livro de Wright Mills“A Imaginação Sociológica”, trouxera para as ciências sociais a novidade heurística de uma capacidade, em si mesma qualidade do espírito, mas não apenas habilidade da razão.
O ineditismo do trabalho de Mills veio marcado, antes de tudo, por configurar a imaginação sociológica enquanto capacidade de passagem entre perspectivas – da política para a psicologia e desta para a sociologia, transitando “das mais impessoais e remotas transformações para as características mais íntimas do ser humano”, sensível às relações entre ambas.
A imaginação, numa época de imprecisões, de indefinições, de subentendidos, de incertezas e de inquietações em face de problemas sequer formulados, notadamente no campo das ciências sociais, se punha como reusa à indiferença ou à impotência perplexa, exercitando “razão e sensibilidade”, forma frutífera, diz Mills, de uma “consciência transformadora da história”.
O texto de Mills deu à imaginação um sentido metodológico claro, bem distinto do tratamento filosófico do tema, a partir de sua raiz psicologista, como aparece, por exemplo, nos “Ensaios”, de Montaigne, sensível à impossibilidade de livrar-se de seu domínio: “uma imaginação fortemente preocupada com um acontecimento pode provocá-lo (fortis imaginatio generat casum), dizem os eruditos”.
É este sentido que aparece nos trabalhos do grupo “Socialisme ou Barbarie”, para formular a compreensão do processo social-histórico, isto é, da tensão entre sociedade instituinte e sociedade instituída, da história feita e da história se fazendo, como invenção e como criação, por impulso de um imaginário radical que o funda. Na “Invenção Democrática” Claude Lefort trabalha o processo de reinstituição contínua do social e da democracia pelo imaginário dos direitos humanos. Cornelius Castoriadis em seu texto “A Instituição Imaginária da Sociedade”, revela a emergência histórica do novo, em decorrência do trabalho do imaginário.
Para Mirtes Mirian Amorim (Labirintos da Autonomia. A Utopia Socialista e o Imaginário em Castoriadis) em sua tese de doutorado, essa é a contribuição mais significativa de Castoriadis para o estudo da sociedade e da história: “a história não mais pode ser pensada numa visão tradicional, que quer tudo explicar através da Razão, baseada numa ontologia de determinidade; a história pensada como criação e a sociedade como a tensão entre o instituinte e o instituído somente possível numa visão que restituísse ao imaginário radical o seu papel de fundação do social-histórico”.
Surpreende-se, nesse processo, uma inflexão entre o que se pode chamar de imaginário referido às estruturas que determinam e categorizam o simbólico de uma realidade ou de uma época e a elas atribuem sentido e a própria imaginação como atividade, para configurar, tal como o faz Claude-Gilbert Dubois (O Imaginário na Renascença), uma distinção necessária. A distinção entre o “imaginário ‘especular’do latim speculum, espelho – essa busca que postula uma relação narcisística de isomorfia com relação ao objeto, em virtude da origem da ilusão mimética que repousa sobre efeitos prolongados do ‘estado de espelho’ e da identificação” e o imaginário “simbólico”, enquanto “modo de significação constituído em linguagem não a partir de signos linguísticos, mas sim de imagens significantes”, por impulso de uma imaginação já não especular mas especulativa, “a qual consiste em transformar em redes de sentido o que só exprimia um campo de forças”.
O livro de Inês da Fonseca Pôrto – Ensino Jurídico, Diálogos com a Imaginação – é um achado do selo editorial Sergio Antonio Fabris. Ele se coloca também como “tarefa e promessa” (Mills) de “espionamento do real pela imaginação”, capturando ângulos em que ele não se percebe observado e, desde a perspectiva de testemunho (“testemunho da construção do projeto didático-pedagógico na reforma do ensino jurídico”), avalia “o modelo central do ensino jurídico” e indica, na medida em que “a imaginação dê forma à vontade de transformação”, as possibilidades que ele comporta de abrir-se “a novas experiências – não vividas, mas possíveis”, como projeto de futuro.
Configurado a partir dos seus elementos característicos – a descontextualização (negação do pluralismo jurídico), o dogmatismo (exclusão das contradições e preservação dos processos unívocos de seu pensamento constitutivo) e a unidisciplinaridade (exclusividade de um modo de conhecer) – a Autora demonstra o impasse crítico a que chegou o modelo central de ensino jurídico e o esgotamento paradigmático de sua matriz positivista e formalista.
A abordagem de Inês Pôrto, fruto de seu protagonismo no processo, apreende nitidamente o foco de intervenção dos sujeitos nele engajados, principalmente o da Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e interpreta, fielmente, a visão de crise do Direito que iluminou as reflexões sobre suas determinações e os elementos nucleares que ela articulou. Esses elementos, a meu ver (Anais da XVI Conferência Nacional da OAB) são, em sua dimensão epistemológica: 1) de representação social relativa aos problemas identificados; 2) de conhecimento do Direito e suas formas sociais de produção; 3) de cartografia de experiências exemplares sobre a autopercepção e imaginário dos juristas e de suas práticas sociais e profissionais. É por meio deles que se dá o balizamento para a superação da distância que separa o conhecimento do Direito de sua realidade social, política e moral, possibilitando a edificação de pontes sobre o futuro, através das quais possam transitar os elementos novos de apreensão e compreensão do Direito e de um novo modelo de ensino jurídico.
Daí o apelo à imaginação como método de interpelação do novo. Luiz Alberto Warat, o primeiro a propor uma didática do imaginário para o ensino jurídico (Manifesto do Surrealismo Jurídico), vale-se de Bachelard para indicar a imaginação como uma forma de interpelação, na medida em que nos propõe que “a possibilidade de pensar e sentir sem censuras, nos revela os segredos da singularidade, o ponto neurológico da diferença: o homem novo, aquele que não tem seus sonhos, seu imaginário censurado pela instituição e que organiza seus afetos sem desejos alugados”.
O trabalho de Inês Pôrto localiza na cartografia dos problemas definidos pela Comisão da OAB, conforme a coletânea de textos por ela coordenados (OAB Ensino Jurídico), a construção de “figuras de futuro” aptas a traduzir as perspectivas paradigmáticas para a edificação desse futuro, o qual não pode configurar-se, eu já o disse, senão sobre a consciência da responsabilidade que tem o ensino jurídico para a constituição das categorias novas apreendidas na leitura atenta da realidade social. Percebidas como demandas ao ensino jurídico, essas categorias constituem um novo imaginário que se nutre, diz Roberto Aguiar (O Imaginário dos Juristas), do diferente, do ousado e da recusa: 1) demandas sociais; 2) demandas de novos sujeitos; 3) demandas tecnológicas; 4) demandas éticas; 5) demandas técnicas; 6) demandas de especialização; 7) demandas de novas formas organizativas do exercício profissional; 8) demandas de efetivação do acesso à justiça; 9) demandas de refundamentação científica e de atualização dos paradigmas.
O livro de Inês da Fonseca Pôrto é a mais criativa leitura até agora sobre os caminhos e instrumentos que estruturam a reforma do ensino jurídico sintetizada nas diretrizes curriculares inauguradas na Portaria n. 1886\94, do MEC.
O eixo de sua leitura é a noção de exemplaridade enquanto, diz ela, “instrumento que criou condições para que cada curso jurídico refletisse sobre sua função social (diálogo com a realidade contextual em que se inseria), sobre suas experiências, através de outros cursos (o diálogo pela diferença, através dos referenciais comuns) e sobre as relações que definem o processo de ensino\aprendizagem (diálogo consigo mesmo)”.
Por exemplaridade entenda-se o singular. Contrariamente a uma renitente vocação funcionalista agarrada ao conforto de requisitos de objetividade, o trabalho de Inês sugere o risco do diálogo, o ouvir antes de predicar, a aposta qualitativa na promessa, sem condições a priori, a partir do projeto didático-pedagógico.
Em trabalho convicto e correto nos seus pressupostos (Faculdades de Direito ou Fábricas de Ilusões?) Eliane Botelho Junqueira analisa o modelo de ensino jurídico dos anos 1990 e questiona o seu modo de elaboração e o sentido de sua concepção, pondo-o sob suspeição pelo viés que “traduz-se em uma valorização da visão humanista” e “a direção dessas mudanças”, disfuncionais relativamente às demandas do mercado simbólico de ensino jurídico.
Inês não se deixa atemorizar em face de riscos e da subjetividade que eles introduzem no espírito da reforma. Ao contrário, ela sugere a pertinência da subjetividade, indicando que o significativo no modelo é que “a incompletude é a face da reforma que a transmuta num projeto de realização quotidiana e sem fim”, centrada no aprendizado do diálogo ou, conforme a sua formulação elegante, no aprendizado do aprendizado – “a construção da identidade de um perfil profissional, contextualmente engajado, deve criar condições para que os alunos aprendam a aprender”.
Esta, aliás, é aposição sugerida por Juan Ramón Capella (El Aprendizaje del Aprendizaje), que contrapõe a aprendizagem de simples manutenção pela aprendizagem renovadora, algo que se constitua mais que mera atualização, antes, um modo de aprender a aprender. Trata-se de um processo atento do observar-se no processo de aprender, examinando cuidadosamente as habilidades e interesses que se adquirem paulatinamente, e do despertar da própria sensibilidade intelectual e moral.
Uma condição, em suma, que pressupõe vencer o medo de aprender, de superar o temor, diz Capella, de não ser capaz de fazê-lo e que paralisa o esforço necessário, criativo, de enfrentar questões não resolvidas, abrindo-se à imaginação e não à memória, porque aprender não é recordar, mas saber integrar a aprendizagem de hoje, no conjunto de capacidades sempre disponíveis que se adquirem continuamente, no adestramento profissional e ao longo da vida.
Com efeito, a definição do perfil profissional na construção do projeto pedagógico é ponto estratégico na abordagem de Inês Pôrto. Ela se pergunta, com razão, como construir esse perfil e sua identidade, “sem que sejam enfrentadas questões inerentes ao processo formativo, como a diferença de visões de mundo e a criatividade?”.
Não se trata aqui de simplesmente aludir aos imperativos já definidos por Kant, como imperativos de habilidade ou de destreza, como o que se tem de fazer para alcançar uma finalidade razoável e boa (Fundamentação da Metafísica dos Costumes).
Em Kant, tal como Michel Villey já observara (Leçons D’Histoire de la Philosophie du Droit), de nada valem tais imperativos, ainda que se leve em conta que “todas as ciências têm uma parte prática, que se compõe de problema que estabelecem que uma determinada finalidade é possível”, se na clivagem por ele estabelecida (Le Conflit des Facultés), o ensino jurídico exclui do jurista a discussão de fundo acerca do justo (quid sit ius), objeto de análise do filósofo (na Faculdade de Filosofia), restando-lhe apenas (na Faculdade de Direito), estabelecer se um determinado fato ou ato seja lícito ou ilícito sob o ponto de vista jurídico (quid sit iuris).
No espírito da reforma, a determinação do perfil profissional remete ainda à imaginação como “interpelação criativa” e síntese de suas habilidades. A imaginação, diz Martha Nussbaun (Justicia Poética), é o “ingrediente indispensável ao pensamento público, com condições de criar hábitos mentais que contribuam para a efetivação da igualdade social”.
Inês atribui ao diálogo com o diferente a condição para o aprendizado do social. Esta condição, lembra Bistra Stefanova Apostolova (Perfil e Habilidades do Jurista: Razão e Sensibilidade), leva a considerar “a habilidade de ver o outro como diferente e saber colocar-se no lugar dele, e desse modo o desenvolvimento da capacidade de imaginar e compreender, essencial na formação do bacharel”.
Inês Pôrto oferece um pertinente e instigante esquema de compreensão para quem pretenda elaborar projetos didático-pedagógicos de criação e de reorientação de cursos jurídicos em nosso País. Mas a Autora sugere como roteiro para empreender essa tarefa que “antes de falar sobre a sociedade, o ensino jurídico deve aprender a ouvi-la”. Seu trabalho aponta, assim, para uma constatação já enunciada por Boaventura de Sousa Santos (Pela Mão de Alice. O Social e o Político na Pós-Modernidade) e que é decorrente dessa máxima: “A abertura das escolas à sociedade (ou à comunidade que as circunda) não significa a prestação técnica de serviços a grupos locais, pelos quais a sociedade vai à escola em busca de ajuda. A nova abertura devesignificar um movimentocontrário, em que a escola vai até a sociedade para transformar-se, para beber da fonte de outros saberes sociais, prestando serviços a si mesma”.
O livro de Inês da Fonseca Pôrto é fundamental para o entendimento das mudanças que ocorrem no ensino do Direito no Brasil e é um roteiro precioso para apoiar as leituras mais avançadas nas disputas de projetos-pontes para o trânsito em direção ao futuro da educação jurídica.
As diretrizes curriculares atualmente em vigor são decorrentes desse movimento formidável de crítica teórica e política que trouxe à realidade pedagógica um desenho criativo para aquelas “figuras de futuro” mencionadas no início deste trabalho.
Elas dialogam com esforços para estabelecer referenciais paradigmáticos para as práticas de operadores jurídicos, que procuram reconfigurar alternativas para o seu protagonismo teórico e político. Trata-se de um desafio urgente e atual que se põe à reflexão e aos esforços de modernização do sistemas de mediação, em sentido amplo, para tornar possível o mais alargado e democrático acesso à Justiça.
A reforma ainda é um projeto em debate, porém, como procede de fortes consensos já pactuados no plano político, estes valores emancipatórios orientam as atividades da educação superior e, em boa medida, já se fazem exigíveis por disposições que presidem o processo de credenciamento das instituições e de autorização, reconhecimento e avaliação dos cursos superiores. Basta observar, no tocante à avaliação (Lei nº 10.861/04 – Institui o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior – SINAES), a condicionante responsabilidade social (art. 3º, III), “considerada especialmente no que se refere à sua contribuição em relação à inclusão social, ao desenvolvimento econômico e social, à defesa do meio ambiente, da memória cultural, da produção artística e do patrimônio cultural”.
No componente específico de aferição de desempenho dos cursos, o Exame Nacional de Desempenho Docente – ENADE, resgatando o que já se fazia no antigo Exame Nacional de Cursos (“Provão”), aprofunda a verificação do desenvolvimento das competências e habilidades que os alunos devem adquirir a partir dos eixos de formação fundamental, profissional e prática, por meio de uma prova (Portaria INEP nº 125/06, área de Direito) que tomará como referência um perfil de graduando com “sólida formação geral, humanística e axiológica, capacidade de análise, domínio de conceitos e da terminologia jurídica, adequada argumentação, interpretação e valorização dos fenômenos jurídicos e sociais, aliada a uma postura reflexiva e de visão crítica que fomente a capacidade e a aptidão para a aprendizagem autônoma e dinâmica, indispensável ao exercício da Ciência do Direito, da prestação da Justiça e do desenvolvimento da cidadania”(art. 5º).
São condições que armam o estudante para desenvolver competências e habilidades, não somente cognitivas, mas igualmente, atitudinais e afetivas, sem o que não poderá ele dar-se conta das alterações paradigmáticas que movem continuamente o seu horizonte de referências sociais e epistemológicas.
A partir da análise da última hipótese levantada na tese, que supõe serem os efeitos do Exame de Ordem contrários ao que a OAB defende por meio da Comissão Nacional de Educação Jurídica como elementos de qualidade em um curso de Direito, o Autor conclui que esses efeitos são os decorrentes da definição de conteúdos para a prova, principalmente da primeira fase, e das características da formulação das questões. Como demonstrado no corpo do trabalho, as questões da primeira fase exigem, majoritariamente, a memorização de normas legais, o que incentiva os cursos preocupados com seus resultados no ranking de aprovações do Exame de Ordem, e, consequentemente, com a possibilidade de conseguirem o selo “OAB Recomenda” (Já que o Exame de Ordem é, praticamente, o indicador único do selo), a privilegiarem uma formação que privilegie a memorização e o estudo da normatividade vigente, ou ainda, o “treinamento” dos estudantes na realização de provas objetivas, de maneira análoga aos cursinhos preparatórios.
Esse descolamento entre as proposições da CNEJ, desde sua criação, e o tipo de prova utilizada na primeira fase foi reconhecida (e citada no texto), inclusive por membros das próprias comissões do CFOAB, o que reforça a viabilidade da hipótese e permite que se reforce a importância de ajustes na elaboração de uma matriz de referência das provas do Exame de Ordem que privilegie competências e habilidades cognitivas em sintonia com o que se espera da formação jurídica para o tempo presente.
A CNEJ, durante as décadas que desenvolveu reflexões e proposições sobre os rumos da educação jurídica, já apresentou, de modo claro, o perfil de formação que entende compatível as necessidades da sociedade brasileira e de um mundo em transformação. As atuais DCN apresentam características que se conectam ao exposto, e a OAB tem sido a entidade que mais se esforça na defesa da elevação do padrão de qualidade dos cursos de Direito no Brasil.
O Exame de Ordem e o selo de qualidade possuem um elevado grau de influência nas definições de políticas curriculares e metodológicas das Faculdades de Direito, o que resta portanto, é a utilização estratégica desses instrumentos para efetivamente agirem como indutores de qualidade, em conformidade com o que defende a própria Ordem dos Advogados do Brasil e a Comissão Nacional de Educação Jurídica, em sintonia com a missão constitucional atribuída à Advocacia Brasileira, e como defendeu o ex-Presidente do Conselho Federal Rubens Approbato Machado, no VII Seminário de Ensino Jurídico da OAB, o ensino jurídico não pode ser, apenas, um mecanismo de reprodução, é preciso que as novas gerações de juristas sejam capazes de construir o Direito que permita a efetivação dos valores fundamentais da Constituição brasileira.
Mergulhar no exame das conclusões propostas na Tese, não é somente categorizar os enunciados que nas diretrizes de educação jurídica, para aferir a função, as competências e as habilidades do bacharel (parâmetros) e as condições de habilitação para o exercício profissional (exame de ordem); é também compreender o pano de fundo paradigmático e a armação das grandes questões que impactam o destino e o futuro de uma concepção de mundo e modos de existir e reexistir socialmente, é abrir as fibras de nossa própria consciência, política e teórica, para desvelar a matéria de que somos feitos, no encontro entre a nossa subjetividade existencial e nosso lugar intersubjetivo no mundo, animais políticos que somos e interpretes de nossas práticas inclusive intelectuais. Lembrando Paulo Freire,
“é fundamental diminuir a distância entre o que se diz e o que se faz, de tal maneira que num dado momento a tua fala seja a tua prática”.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
Testamento da presença de Paulo Freire, o educador do Brasil. Depoimentos e testemunhos.
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Testamento da presença de Paulo Freire, o educador do Brasil. Depoimentos e testemunhos. Ana Maria Araújo Freire (org). Vários Autores. São Paulo: 1ª Ed. Editora Paz & Terra, 2021, 464 p.
O centenário de Paulo Freire foi celebrado no mundo neste 19 de setembro, até pelo Google em ícone globalmente difundido, com a desonrosa exceção do calendário oficial do governo brasileiro que insiste e se revela em sua hostilidade ao maior educador contemporâneo, ainda assim patrono da educação do Brasil.
No que me toca diretamente, me sinto presente e leal ao destacado brasileiro. A convite de sua viúva e colaboradora Ana Maria Araújo Freire participei da obra comemorativa que organizou, junto com um seleto grupo de autores e autoras de depoimentos, reunidos neste livro ora Lido para Você.
A obra reúne, repito, o depoimento de intelectuais e personalidades cientificas, Conforme informa a Editora ela representa um “testamento da presença de Paulo Freire e mostra como o Patrono da Educação foi e ainda é fundamental para a educação, a pedagogia e principalmente para a democracia brasileira. A festa de aniversário de 100 anos não estaria completa sem este Testamento da presença de Paulo Freire, o educador do Brasil. Aqui, a organizadora, a educadora Ana Maria Araújo Freire, reúne personalidades que nos ajudam a reconstituir o convívio com o grande professor. Intelectuais renomados como Noam Chomsky ajudam a dimensionar a obra freireana e sua influência planetária. Políticos influentes como o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mostram como o pensamento de Paulo Freire é fundamental para a construção de nossa democracia. E educadores como Luiza Erundina recuperam as lições que receberam dos profissionais que se dedicaram (e se dedicam) à educação pública com amor e luta.As mil e uma atividades de Paulo Freire tornaram-no uma lenda ainda em vida. Ele foi um teórico rigoroso que ousou criar e implementar um programa de alfabetização de adultos em 40 dias. Foi um professor de ensino básico que se exilou no Chile para não ser encontrado pelos gorilas da ditadura militar. Foi um acadêmico, professor da PUC-SP, que trabalhou na reconstrução da Guiné-Bissau recém-independente. Foi um gestor, secretário de Educação da cidade de São Paulo, que palestrou incontáveis vezes nos Estados Unidos. Sua trajetória é rica em histórias e ensinamentos. E seu legado não pode ser totalmente compreendido sem que também sejam ouvidas as pessoas que viveram junto com ele. Por isso Testamento da presença de Paulo Freire, o educador do Brasil é tão importante”.
Nela contribuem Aloizio Mercadante, Ana Mae Barbosa, Antonia Darder, Balduino Antonio Andreola, Cardeal Michael Czerny S.J., Celso Amorim, Claudius Ceccon, Donaldo Macedo, Eduardo Matarazzo Suplicy, Emir Sader, Fátima Bezerra, Federico Mayor Zaragoza, Felipe Camarão, Flávio Dino, Frei Betto, Henry Giroux, Isabela Camini, João Pedro Stédile, José Eduardo Cardozo, Leonardo Boff, Luiz Inácio Lula da Silva, Luiza Erundina, Marcelo Barros, Marcos Guerra, Mario Sergio Cortella, Mayra Cardozo, Noam Chomsky, Peter McLaren, Renato Janine Ribeiro, Silke Weber, Tarso Genro, Venício Lima, a própria Ana Maria (Nita Freire), assim como eu.
Meu depoimento no livro traz como título “Direitos Humanos e Educação Libertadora em Paulo Freire”. De propósito evoquei matéria de outra coluna minha nesse Lido para Você, sobre livro organizado também por Ana Maria e Erasto Fortes (Direitos Humanos e Educação Libertadora. Gestão Democrática da Educação Pública na Cidade de São Paulo. Paulo Freire Patrono da Educação Brasileira. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2019) – http://estadodedireito.com.br/direitos-humanos-e-educacao-libertadora/. Então, aludi a outro texto constante do livro “Educação, diversidade, direitos humanos e cidadania. Escritos e compromissos”. Organizadores: Lúcia Helena Cavasin Zabotto Pulino e Clerismar Aparecido Longo. São Paulo: Editora Letra e Voz, 2020, 214 p. (https://estadodedireito.com.br/educacao-diversidade-direitos-humanos-e-cidadania/), oportunidade em que conclui o meu escrito com uma nota evocativa: “Trata-se, diz freireanamente a Professora Pulino, no Prefácio, de forjar ‘a escrita e a leitura como direito e dever de mudar o mundo’, o que significa compreender, ainda com Paulo Freire, (Direitos Humanos e Educação Libertadora. Gestão Democrática da Educação Pública na Cidade de São Paulo. Paulo Freire Patrono da Educação Brasileira. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2019), livro ao qual em breve, pretendo fazer um mergulho evocativo que resgate a saga de Paulo Freire sob a perspectiva da interrelação entre Direitos Humanos e Educação Libertadora. Trata-se, em suma, conforme diz Erasto, na dedicatória manuscrita de seu livro com Nita Freire, certamente na expectativa de que eu o resenhe, de ‘compreender a educação como prática social humanizadora’, e com Paulo Freire, ‘assumir nossa causa comum, a dos Direitos Humanos’”.
Eis que, para cumprir minha promessa, e a convite da própria Nita Freire, que se propôs assumir a tarefa entre a sua alta responsabilidade política e sua amorosa lealdade, com a preparação da obra “100 anos do nascimento do educador pernambucano PAULO FREIRE: Práxis, Memórias e Testemunhos”, em edição histórica acolhida pela Editora Paz e Terra, concluí a leitura da obra e a trago como pano de fundo de minha contribuição.
Mas o fiz com uma nota prévia, recuperada de um momento de forte emoção para mim, então Reitor da UnB, quando pude marcar os eventos do jubileu da universidade (2012), com um conjunto de eventos marcados por muito simbolismo, entre os quais a outorga do título de Doutor Honoris Causa, post-mortem, a Paulo Freire.
Na Universidade de Brasília, a homenagem a Paulo Freire, que foi membro de seu Conselho Diretor (1985) coincidiu com a realização da Semana Universitária, evento em que a universidade se abria para o público externo, com mais de 500 atividades distribuídas nos quatro campi. O objetivo foi deslocar os papéis de aluno e professor para descobrir, como já Paulo Freire nos apontou, que a educação somente se faz no contato com o ser concreto, inserido em sua realidade histórica. Com a outorga do honoris causa a Paulo Freire, foi também uma oportunidade para fazer o encontro entre dois gigantes que permaneceram encarnados nas ações de educandos e educadores também quando experimentaram a “gestão democrática da educação pública”, conforme tão bem documentada na organização do livro Direitos Humanos e Educação Libertadora.
O livro, uma atualização bem organizada de um experimento que não pode ser considerado datado e que se faz necessário sobretudo na conjuntura de deliberado esvaziamento da função emancipatória da educação pública é, dizem os seus organizadores, “uma reunião de escritos e falas de Paulo Freire. Apresenta, sob um ponto de vista inédito, a experiência do educador como secretário de Educação da cidade de São Paulo, entre 1989 e 1991. A esses textos, acrescentaram-se outros, escritos por alguns daqueles que compartilharam com Freire o sonho de reinventar a escola da Rede Municipal paulistana e democratizar a educação pública de qualidade”.
A chave de leitura que Paulo Freire indica para extrair significado da obra está, em texto que ele justifica o seu título: “Direitos Humanos e Educação Libertadora”, na extensão de uma concepção muitas vezes lançada em seus trabalhos, segundo a qual a educação não transforma o mundo, transforma as pessoas que transformam o mundo. Por isso, em sua justificativa, ele recupera essa chave: “A educação não é a chave, a alavanca, o instrumento para a transformação social. Ela não o é, precisamente porque poderia ser”. Explicitando: “É exatamente porque a educação se submete a limites que ela é eficaz…Se a educação pudesse tudo, não haveria por que falar nos limites dela. Mas constata-se, historicamente, que a educação não pode tudo. E é exatamente não podendo tudo que pode algumas coisa, e nesse poder alguma coisa se encontra a eficácia da educação. A questão que se coloca ao educador é saber qual é esse poder ser da educação, que é histórico, social e político”.
Por isso que na Apresentação, Ana Maria Araújo Freire (Nita Freire) situa a proposta filosófica de Paulo Freire na sua perspectiva de autonomia no sentido utópico de “um inédito viável de humanização”, que pôde ser orientado por uma gestão apta a traduzir a compreensão “ético-político-antropológica de uma epistemologia crítico-educativo-conscientizadora, que, em última instância, tem como ponto central a humanização de todos e todas”, portanto, um programa para “dignificar as gentes, as pessoas”, sendo assim, substantivamente, uma política de educação em e para os direitos humanos.
Isso o confirma Paulo Freire. A Educação em Direitos Humanos pressupõe “compreensão política, ideológica do professor” para se constituir em “educação para os direitos humanos, na perspectiva da justiça, (que) é exatamente aquela educação que desperta os dominados para a necessidade da briga, da organização, da mobilização crítica, justa, democrática, séria, rigorosa, disciplinada, sem manipulações, com vistas à reinvenção do mundo, à reinvenção do poder”. Em suma, “Essa educação para a liberdade, essa educação ligada aos direitos humanos nesta perspectiva, (que) tem que ser abrangentes, totalizante, (que) tem a ver com o conhecimento crítico do real e com a alegria de viver”.
Reside nesse passo, a segunda motivação que me compromete com a obra e que dá sentido ao meu depoimento. Ou seja, essa apreensão que pode se encontrar entre Paulo Freire, de uma ligação entre educação, justiça, direito e direitos humanos, que não seja apenas uma evocação de sua originária formação em Direito, depois de um rápido ensaio inicial na advocacia.
Anoto que essa ligação foi desde logo estabelecida por Nita Freire. É dela a leitura que desvela uma “pedagogia dos direitos humanos” como proposta freireana de “inserção crítica dos homens e das mulheres nas suas sociedades ao possibilitar-lhes terem voz, dizerem a sua palavra, biografarem-se” (FREIRE, Ana Maria Araújo (Nita Freire). Acesso à Justiça e a Pedagogia dos Vulneráveis. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al. Organizador. Introdução Crítica ao Direito à Comunicação e à Informação. Série O Direito Achado na Rua, vol. 8. Brasília: FAC/UnB Livros, 2017).
A meu ver, a notável apreensão dessa imbricação emancipatória se apresentou de forma inesperada quando recebi um pedido de Nita Freire que me solicitava referências jurídicas de uma possível relação que se pudesse estabelecer entre o pensamento do educador brasileiro, forte numa pedagogia de autonomia, e o direito. É que ela havia sido convidada a proferir uma conferência na Escuela del Servicio de Justicia, a Escola de Magistratura argentina, e gostaria de focalizar a sua apresentação pondo em relevo essa relação.
Diante do pedido de Nita, enviei-lhe duas dissertações de mestrado, ao final, fortemente citadas em sua conferência – “Acesso à Justiça e a pedagogia dos vulneráveis”; ou “O pensamento de Paulo Freire e sua relação com o Direito como prática para a libertação” – em base as quais desenvolveu os seus argumentos afirmativos da relação procurada (FREIRE, 2014): FEITOZA, Pedro Rezende Santos. O direito como modelo avançado de legítima organização social da liberdade: a teoria dialética de Roberto Lyra Filho. Dissertação apresentada em 2014, na UnB; GÓES JUNIOR, José Humberto de. Da Pedagogia do Oprimido ao Direito do Oprimido: Uma Noção de Direitos Humanos na Obra de Paulo Freire. Dissertação de Mestrado, Mestrado em Ciências Jurídicas, UFPB, João Pessoa, 2008.
Tal como exponho em outro escrito meu (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. O Direito Achado na Rua: Condições Sociais e Fundamentos Teóricos. Revista Direito e Praxis, Rio de Janeiro, vol. 10, n º 4, 2019, p. 2776-2817).
Não deixou, entretanto, de ser uma surpresa, rica e inesperada, acompanhar o modo como a conferencista estabelece a relação e sabe se valer das contribuições que lhe foram oferecidas, tanto mais valiosas quanto elaboradas por dois bem investidos do conhecimento e da prática que balizam O Direito Achado na Rua, para operar com as categorias formuladas por Roberto Lyra Filho e designar, na interconexão que logra estabelecer, entre Roberto Lyra Filho e Paulo Freire, entre o Direito e a Pedagogia da Autonomia, na sua leitura, tornada possível pela mediação de O Direito Achado na Rua. Percebe-se isso na conclusão que propõe (FREIRE, Ana Maria Araújo Freire (nita freire). Conferência proferida em Buenos Aires, em 25 de setembro de 2014, na Escola de Serviço de Justiça, em programa de especialização em Magistratura. www.odireitoachadonarua.blogspot.com, acesso em 03.02.2015):
“Por tudo que foi exposto torna-se possível asseverar, que, a relação de Paulo Freire com o Direito nega veemente a concepção tradicional do direito da Modernidade e se alia ___ talvez fosse mais correto dizer que ele, ao lado de outros intelectuais que enriqueceram o pensamento da esquerda mundial criaram um nova leitura do mundo, humanista e transformadora, dentro da qual meu marido concebeu uma teoria epistemológico-ético-político-antropológico-critica de educação, que está alinhada com a concepção do Direito Achado na Rua, a Teoria Dialética Social do Direito. Entretanto, cabe aqui uma ressalva: o jurista Roberto Lyra Filho, que embasa Feitoza e Góes, como também este meu trabalho, não cita Paulo Freire em nenhum dos seus mais de 40 livros. Porém, fica evidente, com uma simples leitura dos trabalhos deles, que Lyra sorveu princípios e utilizou algumas categorias fundamentais da teoria do educador brasileiro, seu conterrâneo”.
E agora, exatamente no embalo das mobilizações do centenário de Paulo Freire, um outro achado precioso vem corroborar essa ligação, repito, no grande brasileiro, entre educação, justiça, direito e direitos humanos. Trata-se de uma quase arqueologia. Com sabor de mística. O meu dileto colega José Eymard Loguércio|, que já havia com seu grupo de companheiros do Grupo Direito e Avesso (denominação do Boletim fundado em 1982 por Roberto Lyra Filho para organizar os resultados dos estudos da por ele denominada NAIR – Nova Escola Jurídica Brasileira, que levou à criação Brasil afora de inúmeros coletivos antidogmáticos de professores e estudantes de direito insatisfeitos com a ideologização do campo pelo paradigma do positivismo jurídico), preservando em fita VHS a última conferência de Roberto Lyra Filho, às vésperas de sua morte em 1986, preserva também, em notas datilografadas, a roda de conversa mantida pelo grupo com Paulo Freire, sobre conhecimento e ensino do Direito.
Diz Eymard, em nota emocionada:
“Compartilho com vocês, nestes 100 anos de Paulo Freire, a transcrição de um encontro em 25/05/1987 com Paulo Freire sobre ensino jurídico. Eu, à época, estudante na Puccamp, coordenava um grupo Direito e Avesso e fizemos uma roda informal com Paulo Freire sobre Ensino Juridico”
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Recorto do fac-simile da página 7, da transcrição, essa passagem singular:
“Vocês dizem que há uma certa dissociação entre o ensino do Direito e a realidade social. Para mim, ao contrário, há uma associação enorme entre Direito e a realidade, mas a realidade da classe dominante, a minha dissociação é entre Direito e a realidade social popular. Nesse sentido é que o positivismo deve, a meu ver, ser encarado, não como um método de ensino, mas como a positividade do direito atual em favor das classes dominantes. Vocês têm que levar em conta que tudo está tão bem feito e organizado, que inclusive o arcabouço do Estado está positivisticamente estruturado, e é por isso que existe uma perversidade nas estruturas”.
Ana Maria certamente desconhecia essa passagem de seu marido e co-autor com ela em muitos escritos. Mas acertou em cheio ao asseverar que a relação de Paulo Freire com o Direito nega veemente a concepção tradicional do direito da Modernidade no que ele concebeu como uma teoria epistemológico-ético-político-antropológico-critica de educação, que está alinhada com a concepção do Direito Achado na Rua, a Teoria Dialética Social do Direito.
Observe-se que o próprio Paulo Freire, no fragmento recolhido por José Eymard Loguércio e colegas, o confirma indicando um programa de direitos humanos para uma educação libertadora, na medida em que mudando as pessoas essas possam mudar a sociedade:
“Portanto, um sonho de universidade passa necessariamente pelo sonho de sociedade – e o sonho da universidade só se plenifica quando a sociedade radicalmente se transforma. Isso não significa que a gente tenha que esperar a mudança da sociedade para começar a ensaiar mudanças… Se a gente cair na estória de que só é possível modificar essa estrutura jurídica solidamente positivista – tanto sua compreensão como sua prática – depois que a sociedade capitalista mudar…”
Apesar do estranhamento de Paulo Freire com a prática da advocacia, curiosamente conforme dizem Ricardo Prestes Pazello e Tchenna Fernandes Maso (O Legado de Paulo Freire para a Assessoria Jurídica Popular. Revista Estudos do Sul Global nº 2), são exatamente os:
“juristas populares [que] vão buscar inspiração em seu legado para construir uma nova prática de militância no direito [nas] Assessorias Jurídicas Populares (AJP)”. De fato, dizem esses autores, o “pensamento de Freire é central para construir a ponte entre o trabalho dos juristas populares com os movimentos sociais [num] sentido ampliado de educação como prática da liberdade [para construir] um uso dialógico e crítico do direito, inserido em um horizonte de transformação social”.
Para esses autores, enquanto relaciona práticas do campo do direito que se colocam em apoio aos sujeitos oprimidos, a pedagogia da autonomia de Freire e seu método de conscientização, como que se inscrevem em fundamento do afazer da assessoria jurídica popular. Com efeito, eles dizem:
“Como eixos políticos, a AJP atua: em uma perspectiva crítica do direito que pode ser traduzida, no geral, como um uso tático do direito, podendo se exemplificar na litigância que se vale da normativa progressista, sobretudo após a Constituição de 1988 ou no uso relido do direito, principalmente por magistrados, promotores, defensores compro em todas as suas dimensões e potencialidades; b) na educação popular, por meio da práxis jurídica insurgente como contribuição para o processo de organização das massas, a partir da luta por condições fundamentais à vida do povo; e na formação política necessária para uma ação que promova transformações estruturais na sociedade”.
E eles continuam:
“A Pedagogia do oprimido, é, portanto, o livro de cabeceira dos sujeitos da AJP, é nele que esses atores encontram formas de enfrentar as contradições do capital nos territórios que atuam conseguindo estabelecer com as comunidades as relações de seus conflitos com a totalidade e a superação da alienação que afeta a ambos. A noção de dignidade humana, a ação como prática da libertação, o educar como ato de amor são o método para que esses sujeitos rompam com as categorias abstratas do direito em sua ação concreta, tornando a educação popular o carro-chefe da transformação em que os direitos humanos serão ressignificados”.
Ainda sobre essa influência e o método, esses Autores pontuam:
“Quando esses sujeitos da AJP vão ao territórios, ajudam a decodificar a realidade e estabelecer a comunicação, construindo os caminhos para a educação política em sua prática. Esse trabalho é feito por meio da construção de temas geradores que representam as totalidades a serem problematizadas. Dessa forma o método da AJP, inspirado em Freire, permite construir uma ação com intencionalidade, calcando a conquista do direito em caminho maior, porque estratégico, o de um projeto político de superação”.
Retomo Nita Freire quando ela estabelece a incindível ligação entre a “teoria epistemológico-ético-político-antropológico-critica de educação, que está alinhada com a concepção do Direito Achado na Rua, a Teoria Dialética Social do Direito”. É exatamente essa ligação, explícita, que fundamenta, na Faculdade de Direito, a institucionalização da Assessoria Jurídica Popular Roberto Lyra Filho. Colocando na mesma mesa dialógica Freire e Lyra Filho, os proponentes do projeto o inserem na modelagem segundo a qual “a Assessoria Jurídica Universitária Popular, por ser um projeto de extensão, tem, em sua essência, o condão de ser um braço da educação popular dentro da universidade, tornando-se um ‘instrumento indispensável à produção de um saber emancipatório e contextualizado com o seu tempo e espaço’ (SOUSA; COSTA; FONSECA; BICALHO: 2010). De forma concreta e objetiva, a AJUP, como uma assessoria, faz parte de todo o processo de tomada de consciência e de reação de sujeitos frente a conflitos fomentados pela própria relação injusta na sociedade. O acompanhamento da questão problema, desde a relação dos sujeitos envolvidos às resoluções encontradas, é de suma importância técnica, no que se refere à educação popular, mas também, política e metodologicamente, para quem está compreendendo e mudando a relação dos próprios conflitos” (SOUSA, Adda Luisa de Melo; MACÊDO, Gabriel Remus; CARILHO, Jana Louise Pereira; SILVA, Kelle Cristina Pereira da; PRÓBIO, Marcos Vítor Evangelista; BERALDO, Maria Antônia Melo; RODRIGUES, Moema Oliveira. Educação Popular e Práxis Extensionista Transformadora: a ação da Assessoria Universitária Popular e O Direito Achado na Rua. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al (orgs) O Direito Achado na Rua vol. 10: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade. Brasília: Editora UnB/Editora da OAB Nacional, 2021, p. 611-622).
Resgato a conclusão de um engajamento que se fortaleceu desse enlace (cf. PINHEIRO, Carolina de Martins; PASSOS, Luisa de Marillac Xavier dos; BENÍCIO, Miliane Nogueira Magalhães; BICALHO, Mariana de. “Eu, Sujeito de Direitos? Me Conta Essa História”. O Caso da Comunidade Tororó, do Direito à Educação e a Educação do Direito: uma reflexão sobre Educação, Direito e cidadania. In COSTA, Alexandre Bernardino (Organizador). A Experiência da Extensão Universitária na Faculdade de Direito da UnB. Vol. 3, Coleção “O Que se Pensa na Colina”. Brasília: Faculdade de Direito da UnB, 2007, p. 123-169):
“Aprendemos que quererproduzir conhecimento de forma horizontal significa saber e poder dialogar. Chamamos a responsabilidade para nós ao aceitarmos trabalhar de forma inovadora a demanda da comunidade do Tororó e levamos a sério a citação de Paulo Freire que abre esse desabafo em forma de conclusão. Contudo, fomos severos na nossa interpretação e tememos, em alguns momentos, afirmar nossa história perante os tororenses. Queriamos ser um deles e não éramos. Não queríamos estabelecer relações verticais, mas nos percebíamos como referência atroz. Quisemos ser humildes, sob o risco de não estarmos abertos para a troca de experiências, e por vezes nos negamos enquanto estudantes universitários ou profissionais formados.
O projeto Tororó nos ensinou que o processo pedagógico não anula o papel jurídico em um processo emancipatório de construção de cidadania. A percepção da necessidade de afirmação das nossas subjetividades não se desvencilha da noção moderna de identidade, de reconhecimento do papel social que cada profissão exerce. Trata-se de uma dimensão a mais e não uma substituição.
Por isso, possível hoje conceber a dimensão pedagógica do direito achado na rua. No caso do Tororó, descobrimos a importância de trabalhar nas bases do direito achado na rua com grupos ainda não conscientes de sua condição coletiva de direitos não exclui a possibilidade de trabalhar problemas comunitários, mesmo que estes ainda não possam ser demandados com a força de um movimento social formado. Em outros casos, de assessoria jurídica popular a movimentos sociais consolidados, fica a reflexão sobre a importância de trabalhar a dimensão pedagógica do direito achado na rua para que a emancipação social seja articulada entre a identidade de grupo e a subjetividade de cada pessoa que dele faça parte ou com ele interaja.
A história não termina aqui. O que aprendemos continuamos a desenvolver em espaços e tempos ainda pouco delineados. Mas fica a certeza de que a experiência do Tororó nos servirá de fonte e estímulo para atuarmos no campo da assessoria jurídica popular. Ao trabalhar o direito pelo ângulo da rua e da pedagogia percebemos o processo de afirmação de nossa identidade e de nossas subjetividades, dois níveis de ação e reflexão imprescindíveis para fortalecer um grupo e seus integrantes; fundamentais para a abertura franca ao diálogo freireano e à assessoria jurídica popular realmente emancipatória”.
Com certeza, a história nem começa, nem termina aqui. Ela se orienta por um exigente aprendizado, feito de evidentes ganhos intersubjetivos, na UnB, proporcionados por essa incindível ligação entre O Direito Achado na Rua (Roberto Lyra Filho) e a Pedagogia da Autonomia (Paulo Freire). Mas cada vez mais entre o direito como emancipação e o pensamento interpelante de Paulo Freire.
Mais fortemente quando o apelo ao Direito parte dos Movimentos Sociais, atentos às exigências de processos formativos para adensar os protagonismos dos sujeitos que neles se inscrevem. Nesse passo, ou porque diretamente suscitando as dimensões metodológicas que trazem o jurídico e o seu ensino para o chão da realidade que desafia os saberes, conforme constato nas frequentes jornadas universitárias em defesa da reforma agrária – Jura, no caminho que a extensão abre para o diálogo acadêmico com entidades desse campo – MST, Via Campesina – criando espaços de reflexão sobre a epistemologia e a metodologia freireanas apropriadas aos processos dialógicos e afetivos que o direito proporciona à emancipação, a exemplo da roda de conversa instalada no ambiente da Universidade Federal de Rondonia, sobre o tema “O Direito Achado na Rua e o Método Paulo Freire no Ensino do Direito” – https://www.youtube.com/watch?v=wL8vpwLyOq4. Seja quando abre pautas acadêmicas para a reflexão avançada em pós-graduação, nesse contexto específico da relação entre formação em direito e em direitos humanos tendo como horizonte epistemológico-político questões suscitadas por movimentos sociais.
Neste último caso, anoto a dissertação de mestrado defendida por Euzamara de Carvalho (Via Campesina, Comissão Pastoral da Terra) – “Educação em Direitos Humanos para o Enfrentamento da Criminalização dos Movimentos Sociais do Campo” – até para pôr em relevo, diz ela “o ‘humanismo’, evocado por Paulo Freire como sendo necessário à efetividade das práticas educativas” (conferir minha Coluna Lido para Você http://estadodedireito.com.br/educacao-em-direitos-humanos-para-o-enfrentamento-da-criminalizacao-dos-movimentos-sociais-do-campo/).
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
Boaventura de Sousa Santos. Coleção Sociologia Crítica do Direito.
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Boaventura de Sousa Santos. Coleção Sociologia Crítica do Direito. Volume 1. O Direito dos Oprimidos. Volume 2. A Justiça Popular em Cabo Verde. Volume 3. As Bifurcações da Ordem Jurídica. Revolução, Cidade, Campo e Indignação. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2ª edição, 2021.
Com esses três títulos, em segunda edição no Brasil (haviam sido editados antes pela Cortez Editora), a Editora Lumen Juris, inaugura uma nova Coleção Sociologia Crítica do Direito, para publicar no Brasil, obras jurídicas de Boaventura de Sousa Santos. As obras de caráter epistemológico e as do campo político, lembrando as três vertentes tradicionais do autor, tal como ele as enunciou em A Crítica da Razão Indolente – ciência, política e direito – continuarão no catálogo de outras editoras (Boitempo, Autêntica).
Uma série de lançamentos estão sendo organizados para apresentar a Coleção. Agora no dia 24, no Canal do Conde, com parcerias, o próprio Boaventura para falar sobre o projeto e o que ele representa para a reflexão sociológico-crítica em relação ao conhecimento, a política e o direito.
Estarei com Alessandra Queiroga (Transforma MF e Forum Social Mundial Temático Justiça e Democracia; Vercilene Francisco Dias (CONAQ – Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos, advogada do povo Kalunga, doutoranda em direito na UnB e Carol Proner, professora da UFRJ e do Grupo Prerrogativas; programa dirigido e moderado pelo escritor e jornalista Gustavo Conde).
Para esse lançamento a Lumen Juris abriu uma promoção especial oferecendo um desconto de 60% na aquisição das obras, com a aplicação na compra do código BOAVENTURA_60, válido entre os dias 23 e 27 de setembro.
Volto às obras que estão sendo lançadas. Em novembro, dia 30, haverá um segundo lançamento no projeto Saindo do Prelo, do Instituto dos Advogados Brasileiros, a tradicional Casa de Montezuma fundado em 1843 (Sobre o IAB confira a tese de doutorado de Eneá de Stutz e Almeida, consoror e ex-Secretária Executiva, também minha colega na UnB: “Ecos da Casa de Montezuma: o Instituto dos Advogados Brasileiros e o Pensamento Jurídico Nacional”, Florianópolis, Conceito Editorial, 2007). Às vésperas do evento voltarei ao tema para indicar as sua configuração e participantes.
Aqui, para os objetivos dessa Coluna Lido para Você, me aproprio das palavras do Autor para sintetizar cada um dos livros.
Sobre O Direito dos Oprimidos, nada menos que a paradigmática tese Law Against Law. The Law of the Oppressed, cuja publicação ainda na forma de um ensaio síntese, com título aqui traduzido A lei do oprimido: a construção e a reprodução da legalidade em Pasárgada, publicada na Revista Law and Society, Vol. 12, No. 1 (outono, 1977), pp. 5-126 (122 páginas), causou uma revolução nos estudos sociológico-jurídicos, podendo-se dizer ter refundado a Sociologia Jurídica, especialmente no Brasil.
Lembro vivamente, em sala de aula em 1978, Roberto Lyra Filho trazendo para conhecimento de seus alunos no mestrado em direito da UnB o exemplar que lhe havia sido enviado por Joaquim Falcão, com essa consideração de que o texto, sobretudo no que concerne à atualização expandida do conceito de pluralismo jurídico, depois por ele inscrito com o fundamento teórico para calçar a base sociológica do projeto que já acalentava de O Direito Achado na Rua, que ele pressentia conter esse potencial epistemológico fundacional.
Na Coleção, em relação ao livro, diz Boaventura: “Este é o primeiro volume da coleção Sociologia Crítica do Direito. Trata-se de um conjunto de livros em que publicarei os estudos que realizei nas últimas quatro décadas sobre temas de sociologia do direito. Neste livro publico o meu primeiro estudo, realizado no início da década de 1970, a minha dissertação de doutoramento, defendida em 1973 na Universidade de Yale (EUA). Consistiu numa análise sociológica do direito informal e da resolução de litígios na favela do Jacarezinho no Rio de Janeiro. Em tempos de ditadura militar, dei-lhe o nome fictício de Pasárgada, retirado de um poema de Manuel Bandeira, para não identificar a comunidade que generosamente me tinha acolhido. O objetivo de proteger o anonimato dos meus interlocutores, muitos deles, mais do que interlocutores, amigos privou-me também de ‘devolver’ o meu estudo à favela como era regra da sociologia radical dos anos de 1970. Faz parte deste estudo uma longa conversa que tive com um dos mais próximos, o Irineu Guimarães, um grande ativista comunitário e comunista convicto. Esta conversa teve lugar em 2012, 42 anos depois do trabalho de campo. Irineu tinha então 82 anos e morreria poucos meses depois sem podermos realizar o nosso novo projeto, uma apresentação pública em que seria homenageado. Também por isso, esse livro é-lhe dedicado”.
O segundo livro da Coleção trata da Justiça Popular em Cabo Verde. Motivado pela leitura do livro Por uma Revolução Democrática da Justiça de Boaventura de Sousa Santos, eu havia publicado em coluna que mantive na antiga Revista do SindjusDF – Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário e do Ministério Público da União no DF (Revista do Sindjus-DF, Dezembro de 2007 • nº 45), um texto de resenha dessa obra com o título Uma Concepção Alargada de Acesso à Justiça (p. 4).
Nesse texto, busquei recuperar o tema do acesso à justiça como um fenômeno muito mais complexo do que à primeira vista pode parecer, já antecipando ali essa necessidade de alargamento que depois eu procuraria trabalhar em outras situações. Se, ao limite, pudermos alargar esse conceito, o plano mais amplo que poderíamos lograr concebê-lo, seria, talvez, pensá-lo, seguindo Boaventura de Sousa Santos, como um procedimento de tradução, ou seja, como uma estratégia de mediação capaz de criar uma inteligibilidade mútua entre experiências possíveis e disponíveis para o reconhecimento de saberes, de culturas e de práticas sociais que formam as identidades dos sujeitos que buscam superar os seus conflitos, o que faz do acesso à justiça algo mais abrangente que acesso ao judiciário.
Esta mediação leva, conforme sugere Boaventura de Sousa Santos, a criar condições para emancipações sociais concretas de grupos sociais concretos num presente cuja injustiça é legitimada com base num maciço desperdício de experiência, mas que buscam criar sentidos e direções para práticas de transformação social e de realização de justiça, mediadas por um direito que se pode dizer achado na rua.
Fora desse contexto emancipatório o que resta é a configuração do acesso à justiça como objeto delimitado, mesmo considerados os dois níveis de acesso: igualdade constitucional de acesso representado ao sistema judicial para resolver conflitos e garantia e efetividade dos direitos no plano amplo de todo o sistema jurídico. Não por outra razão, Boaventura de Sousa Santos sugere que a estratégia mais promissora de reforma da justiça está na procura dos cidadãos que têm consciência de seus direitos, mas que se sentem impotentes para os reivindicar quando violados.
Intimidam-se ante as autoridades judiciais que os esmagam com a linguagem esotérica, o racismo e o sexismo mais ou menos explícitos, a presença arrogante, os edifícios esmagadores, as labirínticas secretarias.
Considerado o nível mais restrito, o sistema judicial se consolida justamente em seu fechamento democrático, na medida em que o seu conceito de acesso mina possibilidades de participação popular na interpretação de direitos; esgota a porosidade entre ordenamentos jurídicos hegemônicos e contra-hegemônicos; constituídos e instituídos pela prática dos movimentos sociais. Exemplo disso têm sido os obstáculos procedimentais que o litígio decorrente das demandas de reparação após os danos causados pela Empresa Vale em Brumadinho (rio Paraopeba) revelando a exclusão dos atingidos em seu protagonismo enquanto o Judiciário permanece acessível aos interesses empresariais e governamentais. Por isso o engajamento irredutível da assessoria técnica dos movimentos dos atingidos para fazer valer o princípio de que não há justiça sem participação social, conforme bem demonstra a elaboração da Matriz de Medidas Reparatórias Emergenciais elaborada pela Aedas (Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social) com os movimentos e coletivos dos atingidos pelo desastre de Brumadinho (https://youtu.be/Az83whQyKVs).
O nível restrito do acesso à justiça, portanto, se reafirma no sistema judicial. O nível mais amplo do mesmo conceito se fortalece em espaços de sociabilidade que se localizam fora ou na fronteira do sistema de justiça. Contudo, ambos os níveis se referem a uma mesma sociedade, na qual se pretende o exercício constante da democracia.
Claro que, numa perspectiva de alargamento do acesso democrático à justiça, não basta institucionalizar os instrumentos decorrentes desse princípio, é preciso também reorientá-los para estratégias de superação desses mesmos pressupostos. Principalmente pelo Poder Judiciário que se tem mostrado extremamente recalcitrante à abertura de espaços para a ampliação das condições democráticas de realização da justiça.
Nesse sentido, algumas contradições precisam ser resolvidas, conforme sugere Boaventura de Sousa Santos. Primeiro, criar condições para inserir no modelo existente de administração da justiça, a ideia de participação popular que não está inscrita em sua estrutura; segundo, superar o obstáculo de uma demanda de participação popular não estatizada e policêntrica, num sistema de justiça que pressupõe uma administração unificada e centralizada; terceiro, fazer operar um protagonismo não subordinado institucional e profissionalmente, num sistema de justiça que atua com a predominância de escalões hierárquicos profissionais; quarto, aproximar a participação popular do cerne mesmo da salvaguarda institucional e profissional do sistema que é a determinação da pena e o exercício da coerção; quinto, considerar a participação popular como um exercício de cidadania, para além do âmbito liberal individualizado, para alcançar formas de participação coletiva assentes na comunidade real de interesses determinados segundo critérios intra e trans-subjetivos (conferir a esse respeito e também sobre o livro Para uma Revolução Democrática da Justiça, a minha Coluna Lido para Você publicada no Jornal Estado de Direito: http://estadodedireito.com.br/para-uma-revolucao-democratica-da-justica/).
No volume 2 da Coleção Sociologia Crítica do Direito, como parte do acervo formado no Centro de Estudos Sociais de Coimbra, que cataloga experimentos populares de administração da justiça, no sentido em que atuam “como escola política, cultural e social do povo” (vol. 2, p. 5), realizando aquelas condições indicadas acima sobre participação popular. Neste segundo volume, diz Boaventura:
“publico a pesquisa sociológica que realizei em 1983-84 sobre os tribunais de zona ou tribunais populares de Cabo Verde, por solicitação do governo do jovem país independente presidido pelo Comandante Pedro Pires. A solicitação foi especificamente feita pelo Ministro da Justiça de então, Dr. David Hopffer de Almada. No contexto pós-independência, a implantação de tribunais populares ou de zona em Cabo Verde surgiu como prioritária. As conotações negativas por vezes atribuídas ao termo justiça popular levaram a que se preferisse um nome mais neutro, tribunais de zona. A sua rápida extensão deveu-se, não só à facilidade na sua implementação, uma vez que dispensava as necessidades técnicas materiais e humanas da justiça formal, mas também a uma aposta forte no potencial desses órgãos para promover a pacificação social e atuar como escola política, cultural e social do povo”.
Não é ocasional constatar a incidência desses estudos e os pressupostos que eles organizam quando se assiste contemporaneamente, nas mobilizações que discutem os sistema de justiça e de democracia, tal qual se faz agora no Brasil, para situações que atribuem relevo a mobilizações populares para reivindicar estratégias sociais de realização de justiça. Conclui orientação a uma dissertação de mestrado, em vias de ser publicada (também pela Lumen), para a qual, a pedido do Autor, redigi o Prefácio: “Dualidade de Poder: O Tribunal Popular e a Luta por Direitos Humanos no Jardim Ângela”, de Wellington Pantaleão da Silva.
Penso que o livro de Wellington Pantaleão da Silva, deve ser saudado por se concertar a essas mobilizações. Ao estudar o Tribunal Popular do Jardim Ângela, realizado no ano de 2002, compreendeu que ele se consistiu numa estratégia do Fórum em Defesa da Vida, movimento social articulado nos oitenta bairros que compõem o Jardim Ângela, para exigir a construção de um hospital e o reforço do policiamento. Em que pese o Poder Judiciário ter sido uma alternativa real para a demanda do Fórum, a incerteza sobre os resultados possíveis e a letargia que tomaria conta do processo fizeram com que houvesse a percepção de que a interação social junto aos poderes públicos poderia ser mais efetiva.
Seu estudo, trazido para o livro, constata que “violações de direitos são passíveis de serem mitigadas, por meio da emergência de novos sujeitos coletivos que consensuam pelas suas identificações com o problema, a fim de construir uma perspectiva plural do direito positivado pelo Estado burguês, ao realizar processos de poder dual, ainda que em contexto não revolucionário”.
Com base em autores que estudaram a estratégia popular de julgamento moral ou político de temas que mobilizam o social e requerem protagonismo comunitário, o livro põe em relevo uma iniciativa popular que tem sido objeto de muita atenção dos estudiosos. Eu próprio tratei do tema sob a mesma perspectiva que o Autor, articulando teoricamente as implicações de dois conceitos que são pressupostos ao fenômeno estudado: o de dualidade de poderes e o de pluralismo jurídico.
No Prefácio, eu aludo a seguimento de iniciativas, muitas incentivadas pela organização e instalação, em curso, de um Forum Social Mundial Temático Justiça e Democracia, instigado pela urgência e a motivação diz a sua Carta de Convocação, das limitações do Sistema em face do escancarado racismo estrutural que nos assola e à manipulação da democracia através de técnicas cada vez mais sofisticadas de disseminação de notícias falsas. Toda a estrutura econômica e social se alimenta e está alicerçada nas desigualdades inerentes ao sistema capitalista, que leva ao extremo a exploração do trabalho humano, e mantém-se centrada não só no racismo, como na violência contra as mulheres e a comunidade LGBTQI+, na segregação dos desiguais, na violação dos direitos dos povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos, entre outras.
No seguimento dessas iniciativas, realizou-se há 4 dias, e por instigação das questões candentes que expõem o esgarçamento dos sistemas de justiça, ganha adesão e relevância a instalação de um Tribunal Popular Internacional sobre Sistema de Justiça.
Entre as entidades e movimentos sociais que participam da construção do tribunal, estão: Articulação Justiça e Direitos Humanos – JusDh, Plataforma dos movimentos sociais pela Reforma do Sistema Político, Terra de Direitos, INESC – Instituto de Estudos Socioeconômicos, Cáritas Brasileira, Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares – Renap/DF, Associação de Juízes para Democracia – AJD, Intervozes, Levante Popular da Juventude, Artigo 19, MAM – Movimento Pela Soberania Popular na Mineração, Instituto Pro Bono, UnB – Grupo O Direito Achado na Rua, AATR – Associação dos Advogados de Trabalhadores Rurais, Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social – Cendhec, Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, MNDH – Movimento Nacional de Direitos Humanos, Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB, Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas – CONAQ, ACT Promoção da Saúde, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, Central de Movimentos Populares – CMP.
O Tribunal Popular Internacional sobre Sistema de Justiça é uma iniciativa desenvolvida desde 2019 por diferentes movimentos sociais, sociedade civil organizada, entidades e organizações, com o objetivo de popularizar o debate público sobre a complexa relação estabelecida entre o sistema de justiça brasileiro e a sistemática violação aos direitos humanos. Na Universidade de Brasília, assim como em outras universidades públicas, ele assume o desenho de projeto de extensão, engajando estudantes de diferentes cursos de graduação e pós-graduação com a metodologia dos tribunais populares, que historicamente tem sido aplicada por movimentos sociais para denunciar graves violações aos direitos humanos. São objetivos específicos do projeto: i. Denunciar violações de direitos humanos cometidas pelo Sistema de Justiça brasileiro; ii. Construir parâmetros sobre o Sistema de Justiça que queremos; iii. Fomentar a utilização local da metodologia dos tribunais populares; iv. formar e informar a sociedade sobre o funcionamento do sistema de justiça e o seu impacto nos Direitos Humanos e na democracia.
Observe-se o anúncio de sua realização:
*Tribunal Popular discute o violações de direitos cometidas pelo Sistema de Justiça*
_Para abrir as audiências populares do Tribunal Popular Internacional sobre Sistema de Justiça, o *ato realiza na próxima segunda-feira 20 de setembro o Lançamento da denúncia que reúne diversas violações de direitos cometidas pelo Sistema de Justiça*._
A denúncia preliminar reúne *duas séries de acusação*:
– Racismo e Desigualdades de Gênero e Classe no Sistema de Justiça;
– Influências Indevidas no Sistema de Justiça;
O debate contará com a participação de representante da CONAQ *Givânia Silva*; o professor de direito *Antonio Escrivão Filho*; a representante da Coalizão Negra por Direitos *Sheila de Carvalho*; o advogado popular *Benedito Barbosa*; a pesquisadora *Inara Firmino*; a advogada popular integrante do Tribunal *Érika Lula* e o advogado indigena *Ivo Macuxi*;
Ao fim, o volume 3, da Coleção Sociologia Crítica do Direito:
“As Bifurcações da Ordem Jurídica. Revolução, Cidade, Campo e Indignação”. Diz o Autor: “Neste livro analiso, em contextos temporais e espaciais muito distintos, os complexos modos como a ordem jurídica, o direito e os tribunais refletem os processos de transformação social e simultaneamente os influenciam. A análise teórica é ilustrada empiricamente com alguns estudos de caso que mostram os dilemas e as tensões que se instalam no campo jurídico e no campo do ativismo político sempre que o direito é mobilizado por forças sociais com interesses opostos e até contraditórios”.
Como quer que seja, a abertura editorial para essa Coleção Sociologia Crítica do Direito, atribuída pela Lumen Juris autoralmente a Boaventura de Sousa Santos, rende ensejo para o fortalecimento desse campo de investigação sem o qual os estudos jurídicos ou se perdem no nefelibatismo de abstrações delirantes ou se enredam numa facticidade que não permite divisar horizontes para uma direção de movimentos e de protagonismos que realizam história.
Em co-autoria com Bistra Stefanova Apostolova, escrevi há alguns anos uma resenha de um texto de Eliane Junqueira – A sociologia do direito no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1993, para o Suplemento Direito & Justiça, do jornal Correio Braziliense (1995: 2), apropriando depois os eus elementos para o meu “Sociologia Jurídica: Condições Sociais e Possibilidades Teóricas” (Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002) salientando que o ponto de partida do trabalho de Eliane Junqueira é epistemológico – “o começo de uma sociologia da sociologia do direito brasileiro” – enquanto preocupação com uma sociologia do conhecimento, no que se designa a “compreensão do lugar social e teórico ocupado pela Sociologia do Direito no Brasil”. Mas há também balanço crítico, enquanto organiza o repertório de tendências da ciência moderna e seus reflexos nas teorias jurídicas e nas experiências de institucionalização que balizam o agir dos operadores nos planos da investigação e da práxis social.
Na cartografia dos temas, a análise da formação, no viés do ensino jurídico, e a análise operativa, no viés do acesso à justiça, oferecem material suficiente para a compreensão do processo de “reelaboração teórica dos conceitos de juridicidade e de direito”. Essa cartografia, ao designar linhas de atuação, de pesquisa e de ensino e suas específicas matrizes teóricas, notadamente na formulação crítica, é extremamente valiosa. Em certa medida, ela contribui para a percepção, tal como faz Boaventura de Sousa Santos, de como se produziram condições teóricas e condições sociais para uma transição da visão normativista, substantivista do direito, com unidade de análise centrada na norma, para uma concepção processual, institucional e organizacional, com unidade de análise centrada no conflito.
Em uma perspectiva de transição paradigmática, a abordagem de Eliane Junqueira assumia características inéditas em seu peculiar modo de conhecer a realidade sociológica: sinceridade, amor pela disciplina, mas, ao mesmo tempo, grau máximo de objetividade. A permanência de um utopismo engajado, tendente a configurar o protagonismo dos professores de Sociologia Jurídica, abre à disciplina um lado político para fomentar a desconstituição de imagens incompletas e até falsas do fenômeno jurídico e derivadas do dogmatismo de paradigmas tradicionais; mas, simultaneamente, reivindica o desenvolver-se, livremente, como ciência social, apta a elaborar categorias plausíveis do que pode ser considerado jurídico.
Por esta razão, é possível perceber neste trabalho de Eliane Junqueira, a projeção atualizada de categorias e conceitos firmes para identificar, nas condições sociais de análise, o estudo dos novos movimentos sociais, dos novos conflitos e dos novos sujeitos de direito e, nas condições teóricas de análise, os temas da reorientação do ensino jurídico e do pluralismo jurídico.
Compreende-se, assim, porque Roberto Lyra Filho passa a entender o direito como modelo de legítima organização social da liberdade. Mas o que significa isso? Conforme indica Lyra Filho, “o direito se faz no processo histórico de libertação enquanto desvenda precisamente os impedimentos da liberdade não-lesiva aos demais. Nasce na rua, no clamor dos espoliados e oprimidos e sua filtragem nas normas costumeiras e legais tanto pode gerar produtos autênticos (isto é, atendendo ao ponto atual mais avançado de conscientização dos melhores padrões de liberdade em convivência), quanto produtos falsificados (isto é, a negação do direito no próprio veículo de sua efetivação, que assim se torna um organismo canceroso, como as leis que ainda por aí representam a chancela da iniquidade, a pretexto da consagração do direito)” (1985).
A rua, evidentemente, é o espaço público, o lugar do acontecimento, do protesto, da formação de novas sociabilidades e do estabelecimento de reconhecimentos recíprocos na ação autônoma da cidadania (autônomos: que se dão a si mesmos o direito). Por isto mesmo, Marshall Berman fala da rua como espaço de vivência que, ao ser reivindicado para a vida humana, “transforma a multidão de solitários urbanos em povo” (1987).
Mas a rua é, concomitantemente, lugar simbólico a impregnar o imaginário da antropologia e da literatura, em arranjos sutis de natureza explicativa dos acontecimentos. Roberto Da Matta faz a articulação dialética entre a “casa” e a “rua” (1985) para esclarecer comportamentos culturais. Também na poesia, sempre em antecipação intuitiva de seu significado para a ação da cidadania e da realização dos direitos, aparece o tema da cidadania (veja-se Castro Alves (“O Povo ao Poder”) e Cassiano Ricardo (“Sala de Espera”). Do primeiro, são conhecidos os versos: “A praça! A praça é do povo/ Como o céu do condor/ É o antro onde a liberdade/ Cria águias em seu calor./ Senhor!… pois quereis a praça?/ Desgraçada a populaça/ Só tem a rua de seu … /”. Do segundo, não são menos expressivos estes versos: “Mas eu prefiro é a rua./ A rua em seu sentido usual de ‘lá fora’./ Em seu oceano que é ter bocas e pés para exigir e para caminhar/ A rua onde todos se reúnem num só ninguém coletivo./ Rua do homem como deve ser/ transeunte, republicano, universal./ onde cada um de nós é um pouco mais dos outros/ do que de si mesmo./ Rua da reivindicação social, onde mora/ o Acontecimento…).
O Direito Achado na Rua – expressão criada por Roberto Lyra Filho e título que designa, atualmente, uma linha de pesquisa e um curso organizado na Universidade de Brasília inscritos na configuração de um programa de Sociologia Jurídica – quer, exatamente, ser expressão deste propósito de compreensão do processo aqui descrito, enquanto reflexão sobre a atuação jurídica dos novos sujeitos coletivos e das experiências por eles desenvolvidas de criação de direito e, assim, como modelo atualizado de investigação: 1) determinar o espaço político no qual se desenvolvem as práticas sociais que enunciam direitos ainda que contra legem; 2) definir a natureza jurídica do sujeito coletivo capaz de elaborar um projeto político de transformação social e elaborar a sua representação teórica como sujeito coletivo de direito; 3) enquadrar os dados derivados destas práticas sociais criadoras de direitos e estabelecer novas categorias jurídicas (Sobre O Direito Achado na Rua, confira-se a edição agora em 2021 do 10º volume da Série: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade. Brasília: Editora da UnB/Editora da OAB Nacional, atualizando a fortuna crítica de 30 anos do projeto: https://livros.unb.br/index.php/portal/catalog/book/116).
Conquanto carregados de uma crítica altiva a certos impulsos alternativistas, os estudos sociológicos quais os aqui designados permanecem otimistas, ao menos como o “optimismo trágico” definido por Boaventura de Sousa Santos, enquanto “alternativa realista ao pessimismo” para caracterizar a “subjetividade do cientista”, na busca da “criação de canais próprios de interlocução e de instâncias de produção de conhecimento e de legitimação, de consolidação e consagração do direito”.
Por isso que, nas palavras do Autor, lançadas no Prefácio Geral da Coleção:
“o conjunto mostrará como o meu trabalho foi evoluindo em resultado das opções teóricas que fui tomando em resposta às lutas e às causas sociais em que me fui envolvendo e em diálogo com tantos conhecimentos nascidos na luta com que fui sendo confrontado, fossem eles os conhecimentos de homens e mulheres moradores de favelas e bairros informais em luta pelo direito popular à cidade, camponeses sem terra ou com terra em vias de lhes ser confiscada, povos inteiros a emergir do jugo do colonialismo e em busca de uma independência genuína, povos indígenas em luta pelos seus territórios ancestrais, base da sua dignidade, sindicalistas, ativistas dos direitos humanos, da democracia participativa, da economia solidária, da ecologia etc. Se lêssemos esta coleção de trás para diante, seria talvez possível identificar, no meu percurso de trabalho científico, a sociologia das ausências e das emergências que venho vindo a defender como procedimentos centrais das epistemologias do Sul”.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
Educação em Direitos Humanos para o enfrentamento da criminalização dos Movimentos Sociais do Campo
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Euzamara de Carvalho. Educação em Direitos Humanos para o enfrentamento da criminalização dos Movimentos Sociais do Campo. Dissertação apresentada à Universidade Federal de Goiás, como parte das exigências do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos – PPGIDH, para obtenção de título de Mestra em Direitos Humanos. Goiânia, 2021, 141 p.
Há muitos anos venho acompanhando o percurso político e acadêmico de Euzamara de Carvalho, forte numa epistemologia crítica necessária à práxis (“Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo”), assim formulado por Marx em sua leitura crítica ao idealismo (Teses contra Feuerbach, 11ª tese).
Assim é que recentemente, pautei um programa de TV difundido como série pelo Blog Expresso61 (TV61), O Direito Achado na Rua, evidentemente uma projeção da linha de pesquisa e do projeto político-epistemológico que coordeno há 30 anos, com uma entrevista de Euzamara: https://www.youtube.com/watch?v=9bVNxq25Qos. Note-se que o programa foi publicado com o título “Direitos Humanos e a Luta pela Terra. Entrevista com Mara Carvalho”. Não foi ocasional. Já tinha iniciado a leitura de sua Dissertação e considerei pertinente articular o seu trabalho político junto aos movimentos sociais do campo, enquanto um processo que politiza o seu protagonismo, na reivindicação do cumprimento constitucional da promessa da reforma agrária e da função social da propriedade e rejeita a postura das oligarquias colonizadoras, agora em modelagem neoliberal, que querem preservar sua apropriação privada, criminalizando o protesto e a reivindicação de direitos.
Claro que esse percurso não se arreda do posicionamento de apoio político e jurídico para qualificar as posições interpretativas da Constituição e dos direitos, num engajamento orgânico de assessoramento técnico aos sujeitos coletivos inscritos nos movimentos. Euzamara define com precisão seu papel intelectual, tal como o explica em “A Assessoria Jurídica Popular e O Direito Achado na Rua e na Prática do MST”, importante contribuição que ofereceu ao Seminário Internacional 30 Anos do Projeto O Direito Achado na Rua: O Direito como Liberdade (2019), e ao volume que dele resultou, editado agora em 2021, com os selos das Editoras da UnB e da OAB Nacional, em edições impressa e digital (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al (orgs). O Direito achado na rua: Introdução crítica ao Direito como liberdade (https://livros.unb.br/index.php/portal/catalog/book/116).
Esse impulso teórico-político se exalta quando ela o empresta no desiderato da necessária capacitação e formação, em direito e em direitos humanos, contribuindo para abrir na agenda programática das entidades e organizações, a política de educação do campo, que ganhou densidade no Programa Nacional de Educação do Campo (PRONERA), com esse objetivo sobretudo no incentivo às licenciatura de educação do campo e a instalação em universidades públicas de turmas especiais de direito.
Sobre as turmas especiais ver também no Canal YouTube de O Direito Achado na Rua, “a roda de conversa” que ela coordenou com representações de nove turmas concluídas ou ainda em conclusão: https://www.youtube.com/watch?v=S_b-M7gcEM0. (TV61 – O Direito Achado na Rua: Ocupando o Latifúndio do Saber Jurídico. Turmas Especiais de Direito).
É um alento constatar a força utópica de uma mobilização que mentem programas sociais devolvendo à sociedade civil sua capacidade instituinte a ponto de investir no sistema universitário público a consciência que Darcy Ribeiro designava para a caracterizar, como Universidade Necessária que combina a lealdade com o saber civilizatoriamente acumulado e a lealdade com o povo em compromisso de busca de soluções para seus problemas (Univesidade Para Quê?. Brasília: Editora UnB, 1986).
Nesse processo Euzamara se mostrou simultaneamente protagonista e intérprete. Fez o percurso como aluna da graduação à pós-graduação, profissionalizando-se e qualificando-se para a sua autoreflexividade ativa, como o demonstra esta Dissertação.
Nela, vislumbra-se o projeta pensado e realizado. Com efeito, Contra os cursos já então em andamento no campus de Goiás Velho e que contava com o apoio do MEC atuando com fundamento no caráter de discriminação positiva da medida, o Ministério Público havia oposto uma leitura guetificadora (alguém até já usou o neologismo guantanamização, referindo-se ao isolamento afinal rejeitado pela Suprema Corte americana relativamente aos prisioneiros americanos do pós 11 de setembro) e absolutamente redutora do sentido transformador da educação. Nos termos insólitos da argumentação do MP: “Sabido é que o habitat do profissional do Direito, em qualquer de suas vertentes, é o meio urbano, pois é nesta localidade em que se encontram os demais operadores da ciência jurídica. Ainda que venha ele a patrocinar pretensão titularizada por cidadão que habite a mais distante área rural, endereçará a sua demanda a órgão do Poder Judiciário, não encontradiço em paragens rurícolas”.
Euzamara marchou em linha oposta. Trouxe pela mediação do processo democrático, a moldura dos direitos humanos, para defender, conforme ela registrou, A Luta pela Terra, Água, Florestas e o Direito. Esse é o título de obra em que é co-organizadora e co-autora. Traz em sua argumentação, o adensamento do projeto de educação do campo, pelo método de institucionalização das turmas especiais, mostrando o quanto se vai ganhando, no campo da educação para os direitos e os direitos humanos, uma densidade que se enriquece com contribuições marcantes que são um dos resultados imediatos dessa importante política. Uma parte desses resultados já está documentada e forma um repositório muito qualificado, pelas monografias e artigos dos estudantes participantes, bastando lembrar, para esse registro, o livro A Luta pela Terra, Água, Florestas e o Direito, organizado pelos professores e professoras Euzamara de Carvalho, Luiz Otávio Ribas e Carla Benitez. Goiânia: Kelps, 2017, 220 p. A obra integra o Programa de Formação Permanente do IPDMS (Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais), articulação fundada em 2012 pela Turma de Direito Evandro Lins e Silva, da UFG (Programa Pronera) e nessa edição reúne a participação de quatorze estudantes de diferentes procedências que prepararam trabalhos para o I Encontro das Turmas da Via Campesina e Movimento Sindical, marcando 10 anos da experiência das turmas especiais. Os textos do livro de distribuem nos seguintes temas: educação jurídica, questão agrária, povos e comunidades tradicionais, conflitos socioambientais, teorias críticas, criminologia crítica e sistema de justiça.
A propósito, em Salvador, em 2017, no Seminário de conclusão do Curso da Turma Elizabeth Teixeira, assisti e comentei o painel apresentado por Edlange de Jesus Andrade a partir de seu artigo publicado no livro, pp. 51-82 (retirado de sua monografia): Direito Achado na Rua e Educação do Campo – as Escolas Famílias Agrícolas.
O fato é que, embora, sob consideração teórica, se reconheça como legítimas as formas de ação coletiva de natureza contestadora, solidária e propositiva dos movimentos sociais, a dialeticidade de suas múltiplas práticas sociais, não necessariamente é vista, no plano da política, como compromisso com a coletividade para a construção de esfera pública democrática em cujo âmbito se definem projetos emancipatórios, sensíveis à diversidade cultural e à justiça social. Ao contrário, a expressão conflitiva dessa dialeticidade tem levado, muito em geral, a uma reação despolitizada, da qual não são imunes o Ministério Público e o Judiciário, abrindo-se à tentação de responder de forma pouco solidária e até criminalizadora a essas práticas.
E, enquanto se funcionaliza uma ação, com algum grau de concertação na linha de respostas criminalizadoras, o mesmo não se vê quando se trata de verificar a legalidade e a constitucionalidade dos pleitos possessórios que requeiram a concessão de medidas protetivas em imóveis que descumprem a função social, ou ainda, quando se trata de assistir despejos de famílias sem-terra, para fiscalizar a ação policial, prevenir abusos, fazer cumprir a legislação de proteção a crianças, adolescentes e idosos ou, finalmente, para impedir que qualquer desocupação seja realizada sem a designação de lugar adequado para a remoção dos atingidos.
Trata-se, conforme já sustentei – http://estadodedireito.com.br/o-direito-e-a-educacao-do-campo/ – ao fim e ao cabo, para além das tensões aqui designadas, de constatar a existência persistente ainda em nosso Pais de uma disputa que envolve, de um lado, a secular manutenção da concentração da terra frente à necessária democratização do acesso à essa terra e ao território; e de outro, a formulação de projetos políticos antagônicos para o campo brasileiro, desafiando a elaboração de agendas para a adoção de estratégias econômicas, sociais, políticas e jurídicas que conforma esse tema.
Tal é o alcance desta dissertação, tão bem orientada pela Professora Algelita Pereira de Lima. Tomo, o seu resumo: “O tema desenvolvido nesta pesquisa é a educação em Direitos Humanos sob a perspectiva dos cursos de formação dos movimentos de luta pela terra. Um dos pressupostos que deram origem a esta dissertação é o de que as práticas de educação não-formal, desenvolvidas pelos coletivos de direitos humanos da Via Campesina Brasil, são práticas de Educação em Direitos Humanos. Ao explorá-las, a partir da análise de um curso especificamente, pode-se afirmar que as respectivas práticas dialogam com os eixos 3 e 4 do PNEDH: Educação Não-formal e Educação dos Profissionais dos Sistemas de Justiça. No percurso da pesquisa foram analisadas as práticas metodológicas e teóricas de Educação para os Direitos Humanos presentes na experiência do Curso de Teoria e Prática no Processo Penal, realizado na Escola Nacional Florestan Fernandes – ENFF, no período de 17 a 21 de outubro de 2016. O trabalho se situa no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos (PPGIDH), vinculado ao Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Direitos Humanos (NDH) da Universidade Federal de Goiás (UFG), abarcado na Linha de Pesquisa 3 – Alteridade, Estigma e Educação em Direitos Humanos. O eixo central da análise está voltado à educação não-formal promovida por movimentos sociais do campo. Leva-se em consideração a dialética entre a denúncia dessas violações e a demanda por acesso ao saber jurídico, com o intuito de fomentar ações de enfrentamento à criminalização dos movimentos sociais do campo. A conclusão é de que a educação para os direitos humanos no âmbito dos movimentos da Via Campesina Brasil possibilita o fortalecimento da resistência das populações da terra e do território diante de uma conjuntura perpassada por diversas formas de violência. Sendo assim, os movimentos sociais do campo reivindicam e constituem novas formulações sobre os direitos humanos, englobando processos de educação em direitos humanos”.
O trabalho segue um sumário analítico bem compreensivo:
“1 INTRODUÇÃO
2 DIREITOS HUMANOS E OS MOVIMENTOS SOCIAIS DE LUTA PELA TERRA NO BRASIL
2.1 PRÁXIS E DIREITOS HUMANOS
2.2 COLETIVOS DE DIREITOS HUMANOS E ASSESSORIA JURÍDICA
2.3 EXPERIÊNCIAS DE FORMAÇÃO PARA OS DIREITOS HUMANOS NOS MOVIMENTOS SOCIAIS
3 O CURSO “TEORIA E PRÁTICA NO PROCESSO PENAL”
3.1 DESENHO E FORMATO DO CURSO – OLHAR DA AÇÃO
3.2 DINÂMICA E MATERIALIZAÇÃO DO CURSO
3.3 ENFF: ESPAÇO QUE DIALETIZA A AÇÃO DE FORMAÇÃO
4 ORGANIZAÇÕES DA SOCIEDADE CIVIL: PONTOS CONVERGENTES PARA EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS
4.1 ORGANIZAÇÕES DA SOCIEDADE CIVIL PARCEIRAS NA PROPOSTA FORMATIVA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS
4.1.1 Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM)
4.1.2 Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (RENAP)
4.1.3 Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS)
4.1.4 Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD)
4.2 EXPERIÊNCIAS DE LUTA E DE FORMAÇÃO NA PERSPECTIVA DOS DIREITOS HUMANOS
4.3 PRINCÍPIOS DA EDUCAÇÃO NÃO FORMAL E SUA MATERIALIDADE
5 CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS”.
Para efeito desta Coluna Lido para Você, valho-me dos próprios enunciados da Autora para expor o conteúdo da Dissertação. Diz ela: “No primeiro capítulo, apresento o tema dos direitos humanos a partir de uma perspectiva crítica, que busca situar o lugar dos direitos humanos relacionado à luta concreta dos povos de luta pela terra. Também procuro demonstrar como essas ações têm potencial para contribuir aos projetos formativos de educação em direitos humanos, por meio da atuação dos coletivos de direitos humanos no trabalho de assessoria jurídica a respeito de conflitos e iniciativas de formação (Coletivo de Direitos Humanos do MST e Encontro dos advogados da Via Campesina ). Por fim, apresento algumas perspectivas de educação em direitos humanos formuladas por movimentos sociais do campo, como ações que integram um projeto mais amplo de formação contra-hegemônica que contribui para a luta dos movimentos organizados.
No segundo capítulo, discorro sobre o caminho trilhado para a formulação do curso em análise e a conformação de parcerias para viabilizar sua realização. Também abordo o contexto de violações de direitos humanos agravadas pelo poder judiciário nos conflitos no campo, que provocam assassinatos, ameaças e criminalização de militantes e dos movimentos sociais do campo. Como afirma Ruiz (2012, p. 75) – Autor que adota para fundamentar seu ponto de vista:
‘Os regimes autoritários investiram em narrativas legitimadoras do estado de exceção e da violência cometida. Essas narrativas estão respaldadas por suas respectivas políticas de verdade. Nelas, as vítimas da violência são objetivadas como terroristas, subversivos, criminosos, bandidos, indivíduos perigosos que ameaçavam a sociedade e cuja eliminação se tornou um bem público. Elas são um perigo para a sociedade, e sua perseguição é uma forma de garantir a defesa da sociedade. Suas vidas perigosas ameaçam as vidas das pessoas normais, dos cidadãos de bem. Isso legitima sua morte, desaparecimento e tortura no marco da estratégia biopolítica que controla e aniquila as vidas perigosas para preservar a ordem’.
Em diálogo com o autor, cabe pontuar o exemplo de atos institucionais do Sistema de Justiça que contribuem ao aumento de conflitos e assassinatos no campo, por motivo de despejos forçados de ocupações de terras improdutivas e/ou de luta pela permanência histórica em determinados territórios.
Além disso, problematizo as formas de construção e de ação de formação em direitos humanos. Elas perpassam a realidade concreta dos sujeitos do campo no enfrentamento aos instrumentos jurídicos do sistema criminal brasileiro, que historicamente atua contra os processos organizativos legítimos de luta das populações do campo. A definição operacional que apresento no trabalho acerca do conceito de “conflito” está em acordo com o relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT):
‘Conflitos são as ações de resistência e enfrentamento que acontecem em diferentes contextos sociais no âmbito rural, envolvendo a luta pela terra, água, direitos e pelos meios de trabalho ou produção. Estes conflitos acontecem entre classes sociais, entre os trabalhadores ou por causa da ausência ou má gestão de políticas públicas. (CANUTO et al., 2015, p. 13)’.
Essa delimitação do conceito é importante para a compreensão dos contextos nos quais os atos de violência contra militantes e movimentos populares de luta por reforma agrária ocorrem, bem como para verificar sua relação com o sistema de justiça criminal. Nesse sentido, levo em conta as dinâmicas e a participação do Poder Judiciário, por meio do processo penal, para criminalização dos movimentos sociais, e o consequente o aumento da violência no campo (onde ainda costuma prevalecer um ocultamento dos assassinatos cometidos contra sujeitos que lutam pela reforma agrária).
Na sequência, trato dos esforços conjuntos e a construção de parcerias que deram forma à proposta do curso, bem como do perfil dos participantes, do perfil dos professores/as, das condições materiais para participação do público e dos processos organizativos para o seu desenvolvimento. Também apresento a ação pedagógica do curso, que está alinhada à metodologia da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), que, pela primeira vez recebe este tipo de curso. É válido destacar que os dados revelam uma ausência de elementos importantes na organização do curso, como a garantia de equidade de gênero, a questão racial e as desigualdades regionais.
No terceiro capítulo, discorro sobre a atuação de algumas organizações da sociedade civil que atuam em prol do acesso à justiça e dos direitos humanos. Como veremos, essa atuação se relaciona com o curso analisado e com o conjunto da proposta formativa continuada, realizada em parceria com o coletivo de direitos humanos da Via Campesina Brasil. Nesse sentido, destacam-se o IBCCRIM (parceiro central para realização do Curso “Teoria e Prática no Processo Penal”), a Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (RENAP), o Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS) e a Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Estas organizações desempenham um papel elementar à proposta de educação em direitos humanos realizada pelos movimentos sociais.
Também apresento algumas experiências e ações de formação que se realizam no campo dos direitos humanos, a partir da atuação da sociedade civil popular organizada. Discuto como essas experiências com foco na formação se relacionam com a perspectiva de enfrentamento à criminalização dos movimentos sociais e com o combate às violações dos direitos humanos, a partir da instauração de novas práticas metodológicas de formação e de ações de proteção direta de militantes ameaçados.
Realizo, ainda, uma aproximação entre o curso em análise e os princípios orientadores da educação não formal em direitos humanos previstos no PNEDH. Destaco seu potencial para ser explorado pelos movimentos sociais do campo, para a proposição de processos formativos. Nesse sentido, destaca-se o chamado “humanismo”, evocado por Paulo Freire (2005) como sendo necessário à efetividade das práticas educativas. Por fim, elenco algumas sínteses provenientes do próprio desenvolvimento e aprimoramento do trabalho”.
O arranjo analítico desenvolvido pela Autora, conforta os termos de suas conclusões.
Considera a Autora que o projeto de resistência e de luta pelo território construído cotidianamente pelos movimentos sociais do campo tem como marco importante de suas trajetórias priorizar a questão da formação-educação para contribuir com a elevação do nível de consciência crítica dos sujeitos coletivos que integram os movimentos sociais.
Analisar as dinâmicas de formação para os direitos humanos com a participação dos respectivos sujeitos coletivos possibilita relacionar a ação da luta organizada pelos movimentos que integram a Via Campesina Brasil e as resistências, por meio do acesso ao conhecimento político-jurídico. Isso evidencia a dialética presente na ação de formação. Logo, o direito que é negado no cotidiano é reinventado na práxis da ação-educação, voltada a uma cultura dos direitos humanos.
A análise de Curso Teoria e Prática no Processo Penal permite qualificá-lo como uma ação não formal de educação em direitos humanos. Retomo aqui a perspectiva teórica de Freire (2005) articulada ao longo do estudo para situar a educação como um caminho para prática da liberdade. Logo, os movimentos sociais do campo (organizados pela Via Campesina Brasil) reivindicam e constituem novos direitos humanos, tendo em vista situações de conflito, violência e criminalização. Essa reivindicação ocorre através de ações de educação em direitos humanos.
Em um esforço relacional com o recorte teórico que sustenta a análise e o percurso empírico de atuação junto aos movimentos protagonistas da ação, a conclusão central do trabalho é que os movimentos sociais do campo realizam ações de educação não formal em direitos humanos – embasadas em documentos institucionais (nacionais e internacionais) de direitos humanos, com destaque para o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH).
Nesse sentido, também posso afirmar que a implementação do PNEDH é um processo contínuo, que precisa ser ampliado para que haja um aprimoramento junto aos movimentos sociais. Isso permitiria materializar ações de educação em direitos humanos, a partir de uma perspectiva engajada com as necessidades e as lutas dos movimentos sociais – sendo estes também realizadores de educação em direitos humanos. Por isso, o sentido de ressignificá-los neste trabalho, no esforço de demonstrar as ações realizadas pelos movimentos sociais do campo e situar Curso Teoria e Prática no Processo Penal como ação não formal que se insere em um projeto (nacional e internacional) de educação para os direitos humanos.
O esforço de sistematização da experiência de educação em direitos humanos elaborada e realizada pelos movimentos sociais possibilitou, ainda, a reflexão sobre o acesso à justiça (exemplificado com base nas lutas contra a criminalização e a violência no campo). Como vimos, isso é fundamental para o enfrentamento à impunidade e à dificuldade de acesso à justiça pelas populações que sofrem diversas violações no cotidiano.
O conjunto de reinvenção de práticas existentes nestas experiências possibilita instaurar um marco da educação em direitos humanos e, consequentemente, da formação para defensoras/as de direitos – militantes e advogadas/os populares alinhados às concepções de direitos humanos integrados às suas lutas sociais. Isso implica maior atenção da legitimação das lutas travadas pelos movimentos sociais na formulação e conquista de novos direitos, contribuindo com os princípios democráticos que orientam o Estado Democrático de Direito. Colocando o “Direito, não como ordem estagnada, mas positivação, em luta, dos princípios libertadores, na totalidade social em movimento, onde o Direito, reino da libertação, tenha como limites, apenas a própria liberdade” (SOUSA, 2015, p. 30).
Claro que essas conclusões, bastante eloquentes se mostram aptas a orientar a continuidade de programas de formação e de capacitação. Penso que elas estão bem apoiadas no excelente repertório teórico e político acumulado e exercitado pela Autora. A boa documentação se faz útil para novas aplicações em programas acadêmicos e profissionalizantes.
Entretanto, considero, não obstante, que a Autora poderia galgar novos patamares se articulasse seu esforço analítico-interpretativo-programático, quanto mais aproxime seu estudo do formidável empreendimento corrente, no âmbito universitário – conforme ela própria designa anotando que a sua pesquisa responde aos indicadores epistemológicos da Linha de Pesquisa de sua universidade: “Alteridade, Estigma e Educação em Direitos Humanos”.
É desse empreendimento que deriva, mais que de Planos e Programas de Direitos Humanos e de Educação em e para os Direitos Humanos, ou das institucionalidades intercorrentes tais que o Ministério dos Direitos Humanos ou o Comitê Nacional de Educação para os Direitos Humanos, e as conjunturas mais ou menos favoráveis a seus pressupostos principiológicos e éticos (nesse momento sob forte hostilidade que os esvazia e destitui) de onde ela extrai seus referencias de validação analítica.
Insere-se nesse formidável empreendimento, a nova mobilização derivada da sociedade de civil para preservar o acumulado inclusive teórico desse campo, que já legou a forte onda anterior a 2016, de criação de programas interdisciplinares de direitos humanos nas universidades, a aprovação no Conselho Nacional de Educação, de Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos (Resolução nº 1, de 30 de maio de 2012), que não se realizem apenas enquanto modelagem curricular, mas que, tal como estabelece o seu artigo segundo, compreenda a Educação em Direitos Humanos, como “um dos eixos fundamentais do direito à educação, [que] refere-se ao uso de concepções e práticas educativas fundadas nos Direitos Humanos e em seus processos de promoção, proteção, defesa e aplicação na vida cotidiana e cidadã de sujeitos de direitos e de responsabilidades individuais e coletivas”.
Insere-se também nesse esforço, a mobilização para inscrever a dialogicidade da educação em direitos humanos nas redes de cidadania que precedem e sucedem episódios de governo, assim, atualmente, a mobilização para ativar a Rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos, como articulação de sociedade civil, rede de redes. Veja-se aqui nesse espaço da TV Expresso 61, o Programa da Rede de Educação em Direitos Humanos, como instrumento dessa dialogicidade, constituindo já uma robusta playlist de entrevistas para configurar a história, os protagonismos, as concepções, os achados formando um forte repositório (https://www.youtube.com/watch?v=zcrN-8gG4uw&list=PLuEz7Ct3A0Uivm8GK61hNjgyync9j71xV, entrevistas conduzidas pela Professora Nair Heloisa Bicalho de Sousa: TV61. Rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos. Ver playlist completa).
Visitando esse acervo, é possível constatar, o que pode ser útil à continuidade dos estudos da Autora da Dissertação, o quanto a área se adensou enquanto campo de conhecimento. Em Contribuições da Teoria Crítica dos Direitos Humanos para a Educação em Direitos Humanos, de Nair Heloisa Bicalho de Sousa, Sinara Pollom Zardo, em SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al (orgs). O Direito Achado na Rua: Inrodução Crítica ao Direito como Liberdade. Vol. 10. Brasília: Editora da UnB/Editora da OAB Nacional, 2021); e, especialmente em SOUSA, Nair Heloisa Bicalho. Retrospectiva Histórica e Concepções da Educação em e para os Direitos Humanos. In PULINO, Lúcia Helena Cavasin Zabotto et al (orgs). Educação em e para os Direitos Humanos. Biblioteca Educação, Diversidade Cultural e Direitos Humanos, volume II. Brasília: Paralelo 15, 2016, um balanço crítico do campo epistemológico pode ser consultado com proveito e aplicado com pertinência, seja sob a perspectiva histórica propriamente dita; seja para melhor apreender a construção de saberes, práticas pedagógicas e metodologias participativas de educação em direitos humanos, enquanto modo de conhecer a realidade: “o conhecimento enquanto construção de saberes adota uma diversidade e pluralidade capazes de dar voz aos excluídos e oprimidos, assim como permite a configuração de estratégias de ensino-aprendizagem, que se traduzem em pedagogias críticas e emancipadoras por meio de metodologias ativas e participativas” p. 73-124.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Minhas Memórias da UnB. Edson Nery da Fonseca. Série Informação e Memória. Uma Trajetória de 45 Anos da Ciência da Informação na Universidade de Brasília 1965-2010. Edição Comemorativa da Posse do Primeiro Conselho da Faculdade de Ciência da Informação. Cerimônia de Outorga do Título de Professor Emérito a Edson Nery da Fonseca. Brasília: Faculdade de Ciência da Informação, 22/11/2010.
Uma nota de relevo de meu reitorado, em cujo interregno se deram dois jubileus – o cinquentenário de Brasília, 2010 e o cinquentenário da UnB, 2012 – terá sido, certamente, associar marcas da memória institucional, notadamente pela distinção dos protagonismos que marcaram a subjetividade acadêmica pelo reconhecimento da Comunidade às suas biografias com os títulos honoríficos outorgados pelo Conselho Universitário: doutorados honoris causa, notórios saberes, mérito universitário, professores eméritos.
Entre 2008 e 2012, tempo do mandato, pude conferir o doutorado honoris causa, o último deles a Boaventura de Sousa Santos (Sociólogo), antes dele a Aryon Dall’Igna Rodrigues (Linguista), Giovanni Casertano (Filosófo), Paulo Freire, post-mortem (Educador), Nilza Eigenheer Bertoni (Matemática); o primeiro Immanuel Wallerstein (Sociólogo).
Com o título de Professor Honoris Causa, o Educador Rumen Borislavov Soyanov.
Com o título de Mérito Universitário, os servidores Teodoro Freire (Post Mortem), o Seo Teodoro do Bumba Meu Boi do Teodoro, Élson Rodrigues de Souza,Abadia Rosa de Fátima Correa Pereira e Maria Regina Miranda Pinelli.
Chamo especial atenção para as outorgas do título de professor emérito porque traduzem a notável contribuição daqueles docentes à universidade e ao seu campo de atuação departamental, atribuído aqueles aposentados que se distinguem por esses atributos. Estimulei as unidades a marcar o jubileu da UnB fazendo a seleção de seus mais destacados congregados, até para tê-los como expressão do ethos acadêmico da Congregação departamental.
Nesse período, pude presidir e fazer a entrega em cerimônias emblemáticas de títulos de professor emérito a Lenora Gandolfi (Faculdade de Medicina), Isaac Roitman (Instituto de Ciências Biológicas), Joanílio Rodolpho Teixeira (Faculdade de Economia), José Carmine Dianese (Faculdade de Agronomia e Medicina Veterinária), Dioclécio Campos Júnior (Professor da Faculdade de Medicina), César Augusto Cuba Cuba (Faculdade de Medicina), Maurício Gomes Pereira (Faculdade de Medicina), Milton Martins Ribeiro (Instituto de Artes), Flávio Rabelo Versiani (Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade), Cristóvam Ricardo Cavalcanti Buarque (Centro de Desenvolvimento Sustentável), Potyara Amazoneida Pereira Pereira (Instituto de Ciências Sociais), Carlos Eduardo Tosta (Faculdade de Medicina), Antônio Raimundo Lima Cruz Teixeira (Faculdade de Medicina), Roberto Armando Ramos de Aguiar (Faculdade de Direito), José Carlos Córdova Coutinho (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo), Carlos Roberto Félix (Instituto de Ciências Biológicas), Albino Verçosa de Magalhães (Faculdade de Medicina), Vladimir Carvalho (Faculdade de Comunicação), Luís Humberto Miranda Martins Pereira (Faculdade de Comunicação), Carlos Chagas (Faculdade de Comunicação), Antônio Augusto Cançado Trindade (Instituto de Relações Internacionais), Hellio Barbosa Ferreira (Faculdade de Medicina), Reinhardt Adolfo Fuck (Instituto de Geologia), Nagib Mohammed Abdalla Nassar (Instituto de Biologia), Pedro Demo (Instituto de Ciências Sociais), Vicente de Paula Faleiros (Departamento de Serviço Social), José Carlos Brandi Aleixo (Instituto de Relações Sociais), Jacques Rocha Velloso (Faculdade de Educação), Ilma Passos Alencastro Veiga (Faculdade de Educação), Alcida Rita Ramos (Instituto de Ciências Sociais). Incluo Eva Waisros Pereira (Faculdade de Educação). Já não era o reitor no momento da outorga, mas a convite da homenageada fui o orador na sessão solene em que recebeu o título (SOUSA JUNIOR, J. G.. Eva Waisros Pereira ou a escola como ‘lugar de memória’. LINHAS CRÍTICAS (ONLINE), v. 21, p. 531-537, 2015).
Além dos eventos acadêmicos e de suas respectivas atas, muitas dessas sessões tiveram a sua memória ou registro editorial em obras editadas com alcance para além do celebratório (cf. Solenidade de Outorga do Título de Professor Emérito da Universidade de Brasília ao Cientista Político José Carlos Brandi Aleixo / Universidade de Brasília; José Carlos Brandi Aleixo – Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2012). Nessa edição o meu pronunciamento de saudação na condição de Reitor e Presidente do Conselho Universitário, p. 61-68.
Com alcance conceitual, o discurso do homenageado (Boaventura de Sousa Santos) e o discurso de elogio (Marilena Chauí), lidos na cerimônia e depois publicados, em edição com meu prefácio (SANTOS, Boaventura de; CHAUÍ, Marilena. Direitos Humanos, Democracia e Desenvolvimento. São Paulo: Cortez Editora, 2013). Em sua passagem na UnB para a entrega do título Boaventura concluiu o ciclo de aulas da inquietação, ponto alto dos eventos de acolhimento a cada semestre durante meu mandato. No simbólico teatro de arena, a céu aberto, um convidado ou uma convidada instigavam o imaginário do auditório, em média 4 mil pessoas, para se lançarem, desde a universidade, no mundo.Com Boaventura a inquietação chamou para a rebeldia competente (https://www.youtube.com/watch?v=7qbetHrL2JI).
Refiro-me também, aludindo à consigna de igual simbologia, a outorga de título de notório saber, uma prerrogativa universitária para acreditar percursos de alta indagação na seara do conhecimento ainda que não o conhecimento sistematizado, que a universidade homologa, a livro que reúne os memoriais, pareceres e discursos que precedem e se materializam na cerimônia de concessão do título de Notório Saber em jornalismo a Luiz Cláudio Cunha, pela Universidade de Brasília, em sessão solene do seu Conselho Universitário, no dia 9 de maio de 2011. O livro foi organizado pela esposa do agraciado, a também professora Maria Jandyra C. Cunha, que agregou à obra, além do material já mencionado, a saudação do Professor Luiz Gonzaga Motta, a minha manifestação na qualidade de Reitor e de Presidente do Conselho, acrescentando um prefácio a cargo do Jornalista Flávio Tavares, ex-professor da UnB e um posfácio do senador e ex-Reitor da UnB, Cristovam Buarque. E, naturalmente, o discurso do homenageado, jornalista Luiz Cláudio Cunha, um dos mais conhecidos e reconhecidos profissionais do jornalismo do Brasil (http://estadodedireito.com.br/todos-temos-que-lembrar-a-licao-e-a-missao-do-jornalista/).
Entre essas, as que combinam as duas dimensões, servir à memória de trajetórias e as vivências subjetivas com elas entrelaçadas, como neste Minhas Memórias da UnB, de Edson Nery da Fonseca.
Na celebração da posse de seu primeiro Conselho, a Faculdade de Ciência da Informação, resgata a trajetória de 45 anos da Ciência da Informação na Universidade de Brasília 1965-2010, enquanto homenageia em sessão solene do Conselho Universitário, que tive a honra de presidir, o seu reconhecimento ao papel fundador de um de seus próceres: Edson Nery da Fonseca, Biblioteconomista, fundador da Biblioteca Central da UnB e professor da UnB, ex-Diretor da antiga Faculdade de Estudos Sociais Aplicados, também Professor Emérito, conforme Resolução do Consuni 015/95.
A plaquete dá conta da angústia original: “Confesso que ao mudar-me em 1960 do Rio de Janeiro para Brasília eu me senti o mais infeliz dos homens”. Para logo reaprumar-se: “Em seus primeiros anos a hoje cinquentenária Brasília se resumia em poeira e solidão. Por que, então, vivi em Brasília durante trinta e um anos? Por causa da UnB”.
Assim, podendo readquirir o sentido de felicidade porque: “quando tomei conhecimento do Plano Orientador da UnB fiquei deslumbrado. E um dos dias mais felizes de minha vida foi aquele em que Darcy Ribeiro me convidou para ensinar na recém inaugurada universidade”, o que lhe permitiu propor, em 1965, “a criação de uma Faculdade de Biblioteconomia e Informação Científica”, na ocasião, inscrita num projeto inicial de instalar um curso de Biblioteconomia que se integrou como Departamento na então Faculdade de Estudos Sociais Aplicados.
Nesse passo, ele anota, com “o advento da automação e da interdisciplinaridade (categoria que ele cultivou com seu mestre e amigo Gilberto Freyre, nos seminários de Tropicologia em Apipucos) fez com que as bibliotecas atraíssem analistas de sistemas que podem atuar com proficiência nos processos técnicos, ficando os bibliotecários com as funções muito mais importantes de seleção e orientação de usuários. Era isso o que pensava o sábio Ortega y Gasset ao imaginar o futuro bibliotecário ‘como um filtro que se interpõe entre a torrente de livros e o homem’”.
A partir dessa fonte expandida em torrentes que sob a forma de livros jorra na inteligência humana, o Autor a Universidade de Brasília que lhe proporcionou “o convívio com educadores do alto nível de Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro, juristas como Vítor Nunes Leal e Roberto Lyra Filho, escritores como Agostinho da Silva e Cassiano Nunes, linguistas como Antônio Salles Filho e Ulf Baranov, helenistas como Eudoro de Sousa, teólogos como o domicano Mateus Rocha (que chegou a ser Reitor), o salesiano Astério Campos e o jesuíta José Carlos Brando Aleixo… Por tudo o que acabo de recordar é que me orgulho de ter sido professor da UnB e considero os vinte e nove anos aqui passados como os mais felizes da minha vida”.
O resgate dessas memórias, compõe o contexto histórico da institucionalidade em suas linhas mestras de desenvolvimento; mas a crônica do interpessoal, aqui e ali recupera o incidental do biográfico que possa ser eventualmente recolhido pelas crônicas do período. Ouvi de Roberto Lyra Filho a recordação de um Eudoro de Sousa, apoplético em sua revolta contra um certo canalha que o desgostara e que ele, sem que ninguém conseguisse acalmar ou demover, queria encher a cara de balas; somente serenado, em risos, quando o próprio Roberto, com séria admoestação, o direciona: “Como, Eudoro, você, um helenista, quer encher de balas esse desafeto! Transfixe-o com uma lança!”.
Lembrei de Roberto Lyra Filho, meu mestre (Orientador) e precursor na criação do projeto O Direito Achado na Rua, ele e Edson Nery, grandes amigos. Um registro de hoje, simultaneamente crônica e descoberta.
Há poucos dias recebi uma mensagem do querido colega e amigo, professor da Universidade Federal do Paraná, Ricardo Prestes Pazello: “Estimadíssimo Zé, olha essa preciosidade emocionante que recebi! Não poderia deixar de compartilhar contigo. Por algum motivo, o bibliófilo pernambucano me procurou e enviou este achado!”.
E em seguida me copiou uma mensagem que acabara de receber. Nestes termos:
“Caro senhor Ricardo Prestes, sou um bibliófilo amador, e há pouco mais de uma década comprei num sebo de Recife uma caixa de discos de vinil de Bach, e para minha surpresa, tinha uma cartinha, que li, todavia esqueci. Ano passado voltei a ler e achei uma preciosidade, tratava-se de uma missiva do professor Roberto Lyra Filho destinada a um certo recifense, nela tinha o desejo do epitáfio e das peças de Bach que deveriam ser tocadas na sua futura missa de sétimo dia, já que a carta datava de 1978, desta forma fiquei curioso e fiz uns links na web e cheguei em 2011, numa visita feita no túmulo do professor por um grupo de pessoas, e no texto do Blogspot tinha um epitáfio que, segundo todavia tenho um enorme desejo no desfecho festa história. Nunca conheci o professor Roberto Lyra Filho, nem nenhum dos relacionados na cartinha, o meu interesse é absolutamente voltado a história. Boa noite!”.
Junto cópia da carta, com a letra inconfundível do Professor Roberto Lyra Filho, elegante e numa caligrafia bem educada, igual a todo o conjunto de cartas – um estilo cultivado por ele, num tempo em que não havia nem computador nem internet – e ele detestava datilografar.
Eu próprio, seu orientando, datilografei muito dos seu originais, como O Que É Direito, cuja cópia xerográfica guardo encadernada e autografada por ele. Também datilografei a sua célebre Carta Aberta a um Jovem Criminólogo, marco epistemológico da virada as Criminologia da Reação Social para a Criminologia Crítica, em cujo âmbito ele inscreveu, a exatos cinquenta anos, a sua Criminologia Dialética, publicada pela Editora Borsoi. A Carta Aberta foi publicada por Heleno Fragoso, em 1971, na Revista de Direito Penal, órgão Oficial do Instituto de Ciências Penais do Rio de Janeiro, que ele fundou e dirigia (LYRA FILHO, Roberto. Carta Aberta a um Jovem Criminólogo: Teoria, Práxis e Táticas Atuais. Rio de Janeiro: Forense/Instituto de Ciências Penais do Rio de Janeiro, vol. 1, nº 28, p. 5-25).
Logo respondo ao Pazello, comentando o achado precioso, esclarecendo que o recifense mencionado “é o Edson Nery da Fonseca. Um dos fundadores da UnB. Criou a Biblioteca da UnB e foi Diretor da Faculdade de Estudos Sociais Aplicados, à qual, na época, se vinculava o então Departamento de Direito. Grande amigo do professor Roberto Lyra Filho. Não sei o que os discos foram fazer em Recife. A carta é a letra do Lyra, linda caligrafia, grande epistológrafo. O Flávio era um advogado de Brasília e andou um tempo pela UnB. Fui o testamenteiro de Roberto Lyra Filho e seu último testamento não mencionava o epitáfio, mas legava a sua magnífica discoteca composta só de clássicos, a Ana Arruda filha de compadres seus – Ivani Neiva e Jarbas Marques. Quando Aninha alcançou a maioridade doou a discoteca a Escola de Música de Brasília. Assim como meu filho Daniel, que no mesmo testamento recebeu o legado de sua biblioteca, na maioridade transformou o comodato em doação a UnB”.
Meu diálogo com o Pazello ainda continuou: “puxa, Zé! Que história sensacional! Depois de ter recebido a carta de Lyra Filho já estou me organizando para retomar a questão do jazigo. Logo em breve farei novo contato contigo. Um forte abraço”.
O professor Pazello ainda entreteve diálogo com o bibliógrafo pernambucano (Alexandre Fernandes) agradecendo o achado, ao que esse se rejubilou pela contribuição inesperada: “Que maravilha, Ricardo, obrigado, para o fechamento da linda história, precisamos saber se na missa de sétimo dia, caso tenha ocorrido, foram executadas as peças pedidas pelo professor Roberto Lyra Filho. Tenho a impressão que não”. Assim que pude esclarecer que nas exéquias, em Brasília, essa aspiração nos era desconhecida. Em sua despedida de Brasília, numa conferência que representou sua última manifestação antes de rumar para São Paulo (LYRA FILHO, Roberto. A Constituinte e a Reforma Universitária. Conferência lida a 8.5.85, na Semana Jurídica, organizada pelo Diretório Acadêmico da Faculdade de Direito do CEUB (Centro de Ensino Universitário de Brasília. Brasília: Edições Nair, 1985), ele se restringiu a designar seu destino próximo (p. 23): “Aposento-me e sigo para São Paulo; mas a aposentadoria não é o ócio, nem a abdicação. Lutarei pelos nossos ideais, com o sjovens companheiros paulistas e até que chegue o momento final, de fechar os olhos e ser enterrado sob os pinheiros do meu adotivo Paraná”.
Por isso esclareci a Pazello que aqui ignorávamos essas disposições: em Brasília “a missa foi celebrada no auditório da Faculdade de Direito, na UnB. O celebrante foi o professor do Depatamento de Relações Internacionais (hoje Instituto de Relações Internacionais) padre José Carlos Brandi Aleixo (filho de Pedro Aleixo). Houve outra missa, mais pública na Igreja Santuário de Nossa Senhora de Fátima em Brasília. Muitas manifestações, sobretudo de estudantes. O estudante, hoje bem sucedido advogado Melillo Dinis leu as estrofes do poema de Noel Delamare – Envio (Da Cama ao Comício): ‘Não me lamento, porque canto,/ Faço do canto manifesto./ Sequei as águas do meu pranto/ Nos bronzes fortes do protesto./ Acuso a puta sociedade,/ Com seus patrões, seus preconceitos./ O teto, o pão, a liberdade/ Não são favores, são direitos’”.
Pazello, há muito vem tentando, resgatar o túmulo, envolto nesse mistério de inacessibilidade. Nessa troca de comunicados, ele me envia um relato do professor Jacinto Nelson de Miranda a seu colega Márcio Berclaz:
“Que legal, Marcio. Estou dentro de qq iniciativa que se tiver para fazer o que o Zé e o Pazello sugeriram e sugerirem. Qq coisa me avise. Vc sabe como foi aquele dia do enterro? Parece hoje. Quem poderia ter interesse de colaborar com uma iniciativa restauradora é o Fruet. Ele e o irmão, Claudio, que se encarregaram (mais o pai deles, se não engano) com o enterro. Eles eram (sobretudo o pai que era pessoa finissima) uns sacanas; e adoravam pregar peças nos outros. Naquele dia recebi uma ligação de alguém avisando que eles estavam partixioqndo aos amigos LFo não só a morte dele, mas que enterro seria na cemitério da Santa Candida, de tarde, não lembro a hora. Mas justo na hora de um do jogo do Brasil na copa do mundo. Com a fama de sacanas, todo mundo ficou ressabiado. Eu mesmo tentei falar com eles e não consegui; e ninguém sabia nada, para todos que liguei. Nem a empregada sabia alguma coisa. Com isso, não fui, achando que era sacanagem. Mas não era. E ele foi enterrado assim, com quase ninguém: e sem os amigos e conhecidos que, como eu, não sabiam o porquê e não acreditaram no convite dos Fruet. Quem sabe agora eu possa me redimir. Por favor, deixe-me a par, ok? Abraços”
Eu próprio, com Jarbas Marques embarcamos de Brasília, mas entre atrasos de aeroportos e descoberta do cemitério, quando chegamos ao sepulcrário, já fechado, a custo nos deixando o zelador entrar para prestar nossas homenagens, ainda encontramos as oferendas sobre a lápide, destacando-se rosas vermelhas que ainda exalavam na penumbra da noite já entrada.
Depois eu descobriria o significado dessas rosas, no momento do sepultamento e em outras visitas, conforme o texto do professor Humberto Góes (http://assessoriajuridicapopular.blogspot.com/2011/07/rosas-vermelhas-intensidade-de-lyra.html):
“Passava das duas da tarde de uma terça-feira, dia 12 de julho de 2011, quando encontramos a professora Eloette no centro de uma Curitiba quente para este período. Segundo a informação transmitida por Diego Diehl complementada por Luiz Otávio, era ela uma das três pessoas que, sob a sombra de um pinheiro do Paraná, fizeram repousar, há 25 anos, o mentor de tantos sonhos transformadores, e era também ela que nos levaria a seis jovens pesquisadores e pesquisadoras em Direito (Ricardo Pazello, Luiz Otávio Ribas, Diana Melo, Carolina Vestena, Tchena Mazo e eu) a realizar um reencontro com uma memória, com uma obra, cujo sentido dava àquele instante a conotação de tarefa revolucionária. Digo revolucionária por sua capacidade de renovar a esperança, de alimentar o desejo de ver, na Filosofia do Direito, com reflexos no fazer jurídico hegemônico, ressurgirem, como irmãs siamesas, justiça social e prática jurídica cotidiana, institucionalizada ou não institucionalizada. Mas, como toda autêntica obra dessa natureza, era, ademais de um dever, uma prazerosa e sonhada atividade; era um fazer carregado de emoção e sensibilidade, através de que podíamos reafirmar o nosso compromisso com o mundo, com as transformações necessárias à dignidade e à justiça dos povos oprimidos.Nossa missão era encontrar com Roberto Lyra Filho no lugar em que fora semeado o seu corpo para alimentar o desejo de, seguir fazendo florescer suas ideias”.
Pazello, envolvido com o projeto de restaurar o túmulo, agora, com a descoberta da carta de Roberto Lyra Filho a seu amigo Edson Nery da Fonseca, sugere que possamos “tentar celebrar uma missa com essas peças de Bach na paróquia da Santa Cândida”. Temos pouco tempo, mas Roberto Lyra Filho que nasceu em 13 de outubro de 1926, faria, se vivo, 95 anos. Uma boa data para celebrar e continuar fazendo florescer as ideias que semeou.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
As Teses Jurídicas em disputa no STF sobre Terras Indígenas
| Redação Jornal Estado de Direito
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
AS TESES JURÍDICAS EM DISPUTA NO STF SOBRE TERRAS INDÍGENAS. Conselho Indígena Tapajós Arapiuns – CITA e Terra de Direitos. Apoio: Misereor. Autores: Auricelia dos Anjos, Elida Lauris, Pedro Sérgio Vieira Martins e Raimundo Abimael dos Santos. Contribuição: Franciele Petry Schramm, José Lucas Odeveza e Lizely Borges Foto da capa: Gabriele Siqueira. Diagramação: Sintática Comunicação. Agosto de 2021 (https://terradedireitos.org.br/uploads/arquivos/Justica-e-o-marco-Temporal-de-1988-(final).pdf); https://bit.ly/tesesmarcotemporal.
Em um momento crucial para a sobrevivência e para o reconhecimento dos direitos dos povos originários, a organização Terra de Direitos e entidades indígenas, publicam esse conjunto de teses jurídicas e as críticas ao seus pressupostos.
Digo momento crucial porque está em curso no Supremo Tribunal Federal, o julgamento sobre a chamada tese do “marco temporal”, uma formulação adrede construída pelo avanço da pretensão neoliberal de apropriar-se dos territórios indígenas mantidos fora da voracidade do mercado; e que vincula o direito à terra aos indígenas que estavam – ou reivindicavam – a terra no dia de 5 de outubro de 1988, data em que foi promulgada a Constituição Federal brasileira. Quando publicada esta Coluna é possível que o STF já tenha se definido, considerando o voto inicial favorável ao direito originário indígena e tenha projetado seu papel: porteiro ou guardião da Constituição? (http://estadodedireito.com.br/porteiro-ou-guardiao-o-supremo-tribunal-federal-em-face-aos-direitos-humanos/).
Uma tese jurídica, mostram os autores conforme este Lido para Você, defendida pelos ruralistas, que pode mudar o futuro das terras indígenas no país ao restringir a demarcação apenas a terras que estão ocupadas ou que são reivindicadas pelos indígenas desde outubro de 1988. Mais do que disputar a forma como esses territórios serão demarcados, os ruralistas disputam através da tese do Marco Temporal o entendimento da Constituição Federal e de tratados internacionais, em face da tensão dramática entre duas concepções de sociedade e de disputa civilizatória.
Para os organizadores da obra, “os interesses envolvendo o marco temporal são grandes: mais de 130 entidades ruralistas ingressaram com pedido de participação na condição de amicus curiae na ação que está em julgamento pelo Supremo Tribunal Federal cuja repercussão consolidará o entendimento do judiciário nos processos de demarcação”.
A publicação produzida pela Terra de Direitos e pelo Conselho Indígena Tapajós Arapiuns (CITA) reúne os 10 principais argumentos jurídicos defendidos pelos ruralistas no âmbito do marco temporal, apresentados pelas entidades nos pedidos de amicus. Esse material mostra de que forma que os pontos defendidos pelo agronegócio violam uma série de direitos originários dos povos indígenas e contrariam o que estabelece a Constituição Federal, Tratados Internacionais de Direitos Humanos e mesmo decisões anteriores do Supremo Tribunal Federal.
Mergulhar no exame dos enunciados propostos pela publicação, não é somente compreender o pano de fundo paradigmático e a armação das grandes questões que impactam o destino e o futuro de uma concepção de mundo e modos de existir e reexistir socialmente, é abrir as fibras de nossa própria consciência, política e teórica, para desvelar a matéria de que somos feitos, no encontro entre a nossa subjetividade existencial e nosso lugar intersubjetivo no mundo, animais políticos que somos e interpretes de nossas práticas inclusive intelectuais. Lembrando Paulo Freire, “é fundamental diminuir a distância entre o que se diz e o que se faz, de tal maneira que num dado momento a tua fala seja a tua prática”.
Certo que isso representa uma peculiar concepção de papel intelectual, aqui, com Freire, na esteira do que se denomina filosofia da práxis (“Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo”, Marx), conduz à representação que Boaventura de Sousa Santos faz do intelectual de retaguarda: “a teoria é sempre uma condensação da própria prática e não pode ser outra coisa. É a prática a refletir sobre si própria, a teoria não pode ser outra coisa. Por isso, não há lugar a teorias de vanguarda porque ninguém vai na frente e ninguém vai atrás, vamos todos juntos. E como é que vamos juntos? Vamos juntos em diferentes posições, obviamente, mas partilhando um destino. Não podemos aceitar que a hora da verdade se mantenha com a teoria e a hora da mentira com a prática, não nos podemos separar dessa forma, eu penso que é muito desonesto”(https://journals.openedition.org/rccs/7647).
Legenda: “Os 3 primeiros lobos são os mais velhos ou os doentes e marcam o ritmo do grupo. Se fosse ao contrário, seriam deixados para trás e perderiam o contacto com a alcateia. Em caso de emboscada serão sacrificados. Seguem-se os 5 mais fortes. No centro seguem os restantes membros da alcateia e no final do grupo seguem os outros 5 mais fortes. Em último, sozinho, segue o lobo Alpha”.
No limite, para não exacerbar posicionamentos sobre a exigência de tomada de posição política, o que não se pode deixar de inferir é aquele mínimo de coerência que orienta o agir profissional (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. A Função Social do Advogado, in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de (org) Série O Direito Achado na Rua vol. 1: Introdução Crítica ao Direito. Brasília: Editora da UnB, 4ª edição, 1987), ou a advertência de Ortega y Gasset: “a clareza é a cortesia do pensador; o sistema, a sua ética”.
Nesse tema, exalto a fidedignidade de Boaventura de Sousa Santos, conforme a eticidade indicada por Ortega. Intelectual de retaguarda, avesso a qualquer vanguardismo, em sua lealdade epistemológica, anticapitalista, solidária com as lutas decoloniais, atento a um direito do oprimido e do espoliado, que emancipe; sua disposição hermenêutica, na ação e no pensamento (para lembrar a resposta de Fénix a Aquiles) é comprometida com a libertação.
Na questão indígena Boaventura de Sousa Santos não tergiversa. Por ocasião do julgamento no STF da demarcação do território indígena Raposa Serra do Sol, imediatamente sufragou o enquadramento teórico-jurídico do tema, ao sustentar que “a Constituição de 1988 reafirmou o direito originário das terras indígenas, cabendo à União a demarcação dos territórios, num processo que não cria nada, antes reconhece e protege, formalmente, a situação de ocupação tradicional do território”. E logo, passando da reflexão à ação, liderou a elaboração de petição ao Tribunal (petition on line), que me coube a seu pedido iniciar as subscrições de assinaturas, na qual reafirma seu entendimento: “O longo processo de demarcação das terras indígenas no Brasil (a Constituição fixara cinco anos para a sua finalização) é emblemático dos desafios postos pela Constituição de 1988: a afirmação dos indígenas como sujeitos de direitos, não mais passíveis de tutela pelo Estado e de políticas de assimilação, devendo ser respeitadas suas culturas e tradições; o reconhecimento da diversidade étnico-racial cultural como valor fundante do ‘processo civilizatório’ e da própria unidade do país e a função socioambiental da propriedade, com distintas formas de manejo sustentável dos territórios pelas variadas comunidades culturais existentes no Brasil” (Observatório da Constituição e da Democracia nº 24. Faculdade de Direito da UnB, julho de 2008, p. 24).
Compreende-se, pois, que a partir de uma outra maneira de pensar a função intelectual e do profissional, especialmente a do advogado e jurista, se assista ao espanto frustrante de um comprometimento vicário, em sentido antagônico a sua discursividade abstrata.
Assim, por exemplo em Frei Sérgio Antônio Görgen (O Marco Temporal e a decepção Streck (http://desacato.info/o-marco-temporal-e-a-decepcao-streck/), no desalento de constatar que “quem sai no temporal, pode enfrentar ventania”, para revelar estranhamento “a flexibilidade epistêmica” na abordagem de circunstância (manifestação técnica), tema, no geral “tão combatido pelo mesmo em tantos outros (de seus) textos: a mim causou grande decepção e tristeza. Não creio ter sido o único”.
Certamente, por considerar aqueles que em estudos de fundo sobre temas de alta indagação sobre direitos fundamentais, tenham se valido de leituras hermenêuticas inscritas em autodesignada “Nova Crítica do Direito”, aplicável ao Direito Constitucional que se exercitavam em não permitir hermeneuticamente que pré-compreensões, pré-juízos, legassem ao campo dos direitos fundamentais, “modos de fazer direito” que se materializassem em “práticas de baixa constitucionalidade”.
Penso na bem fundamentada dissertação de Paulo Henrique de Oliveira (Direito Indígena à Saúde: Proteção Constitucional e Internacional. São Paulo: PUC, 2009: http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp085633.pdf), arrimada na leitura avançada de uma hermenêutica, inscrita em senda teórica, segundo a qual, ele cita fortalecido, “olhamos o novo com os olhos do velho, com a agravante de que o novo (ainda) não foi tornado visível. Mais do que isso, a própria crise não foi tornada visível ‘como crise’; o velho não foi compreendido ‘como’ (als) velho. A tradição inautêntica cega, obnubilando as possibilidades da manifestação do novo ‘como’ (als) novo […] Por isso, cabe-nos a tarefa de dês-cobrir/suspender os pré-juízos que cegam, abrindo uma clareira no território da tradição”. Aqui as referências animadas a STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: uma nova crítica do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 197-198. Em Paulo Henrique de Oliveira, em Frei Sérgio Antônio Görgen, e não os únicos, a mesma frustração do Quixote, abraçando Maritornes sonhando com Dulcinéia, (Capítulo XVI).
Aplicada nos processos de demarcação de terras indígenas, a tese do marco temporal impedirá o reconhecimento de territorialidades indígenas de povos que resistiram ao extermínio e ao genocídio que os atinge até hoje. Ainda, pode inviabilizar a demarcação de terras indígenas que até o momento tem por previsão a declaração de nulidade dos documentos fundiários referentes a área a ser demarcada: sem a declaração de nulidade, em caso de aplicação do marco temporal, o Estado vai ter que indenizar os proprietários, o que dependeria de significativa destinação orçamentária. Para além disso, a aceitação do marco temporal corrompe o caráter originário de direitos indígenas – um caráter reconhecido pela Constituição –, pois limita e condiciona o gozo dos direitos a critérios que desconsideram o genocídio indígena.
Na publicação são apresentadas 10 principais teses dos ruralistas aduzindo os autores e autoras a demonstração de como elas são contrárias a própria Constituição Federal, aos Tratados Internacionais de Direitos Humanos e as decisões anteriores do Supremo Tribunal Federal. Os temas se distribuem no Sumário da publicação:
Introdução
AS 10 TESES DEFENDIDAS PELOS RURALISTAS: POR QUE ELAS NÃO SE SUSTENTAM?
Marco temporal como regulamentação do art. 231 da CF
Marco temporal de ocupação seria o principal elemento de pacificação das
relações fundiárias brasileiras
Marco temporal representa a consolidação das decisões do STF sobre Terras
Indígenas
A Demarcação de Terras Indígenas deve ser limitada pelo Desenvolvimento
econômico do país
O direito de propriedade é um direito humano e deve igualmente ser
protegido como o art. 231 da CF
Pela aplicação do Parecer nº 001/2017/AGU
Convenção 169 da OIT reforçaria o marco temporal
Marco temporal é a melhor interpretação sobre o significado do verbo
“ocupar” no art. 231 da CF
Marco Temporal representa segurança jurídica
Marco temporal é a garantia da ordem pública
OS IMPACTOS DO MARCO TEMPORAL SOBRE OS POVOS INDÍGENAS NO BAIXO TAPAJÓS
DIREITO A AUTOIDENTIFICAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS
Conquanto se nos reconectemos, conforme diz o professor Gomes Canotilho, “à multiplicidade de sujeitos que se movem no debate constitucional contemporâneo [para] abrir expectativas de diálogo político estruturado na linguagem do Direito [e] suas posições interpretativas da Constituição”, sem desconsiderar “do outro lado da rua, o ‘direito achado na rua’ e, perante o sangue vivo que brota dos vasos normativos da realidade e a sedução de um direito outro, alternativo ao direito formal das constituições, códigos e leis, compreende-se que o discurso hermenêutico dos juristas mais não seja que um manto ocultador do insustentável peso do poder” (CANOTILHO, J. J. Gomes. Estudos sobre Direitos Fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora; São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 119; Pela Necessidade de o Sujeito de Direito se Aproximar dos ‘Sujeitos Densos’ da Vida Real. Entrevista. Observatório da Constituição e da Democracia. Brasília: Faculdade de Direito da UnB, nº 24, julho de 2008, p. 12-13).
Para O Direito Achado na Rua, não é possível pensar a dimensão constitucional dos direitos indígenas, sem que a Constituição não seja compreendida em sua abrangência plurinacional, conforme o marco cogente do direito internacional e convencional (Convenção 169). Nela ganha relevo o alcance sistêmico do jurídico plural, associado à hermenêutica do pluralismo jurídico. “Cada povo e/ou comunidade indígena detém o seu regime jurídico interno próprio, baseado na cultura, na sua cosmovisão e nas tradições milenares. São instituições e saberes locais passados de geração para geração que foram se aperfeiçoando ao longo do tempo, mas que subsistem paralelamente ao sistema estatal”.
Essa consideração, formulada por Luiz Henrique Eloy Amado (advogado indígena Terena, doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional, UFRJ; pós-doutorando na École des Hautes Études em Sciences Sociales, EHESS, Paris; assessor jurídico da APIB-Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), leva-o a aduzir que este “É o direito que nasce da aldeia, ali das reuniões tribais, da dialética dos caciques e lideranças, das decisões soberanas do Conselho Tribal […]: Tal direito, que se irradia do chão da aldeia, de igual modo não é estanque, pelo contrário, ele é dinâmico e atento as fricções políticas e sociais das comunidades indígenas, mas seus objetivos são sempre direcionados a manter o sentimento de pertencimento, a solidariedade territorial, o bem viver dos povos indígenas e a garantia da participação social de seus sujeitos em qualquer instância de discussão que lhes diga respeito, entro ou fora da aldeia…” (O Direito que Nasce da Aldeia. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al (orgs). O Direito Achado na Rua vol. 10. Introdução Crítica ao Direito como Liberdade. Brasília: Editora UnB/Editora OAB Nacional, 2021, p. 503-509).
O debate sobre o marco temporal abre perspectivas, com O Direito Achado na Rua e nele, a abertura para as vozes e práticas de desencantamento de possibilidades epistemológicas, “desenvolvidas junto às comunidades que resistem reiventando permanentemente suas práticas de luta e de encantamento da vida como forma de vencer a morte”, nas disputas cognitivas sobre os fundamentos do Direito e do constitucionalismo, firmamento de justiça cognitiva e, portanto, de justiça social, oportunidade de tensionar os limites lineares dos discursos colonizados levando-os a repensar e reconstruir seus paradigmas”(BRASIL, Andréa, BERNARDES, Céloa, TAVARES, Jonas. Povos Indígenas, Quilombolas e Demais Povos e Comunidades Tradicionais. Direitos dos Povos Indígenas, Educação Judicial e ODANR, in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al (orgs) O Direito Achado na Rua. Questões Emergentes, Revisitações e Travessias. Coleção Direito Vivo, volume 5. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2021).
Fico feliz de integrar coletivos de juristas que não se desorientam em sua tomada de posição diante das exigências do justo, conforme o Coletivo Prerrogativas, um dos bastiões da atitude a perseverar contra “a contraposta e equivocada tese do “marco temporal” [que] simplesmente ignora os povos que foram destituídos de suas terras, por meio de violência ou em decorrência da expansão rural e urbana. Seriam esses povos carentes de direitos, exatamente no contexto de uma Constituição que enfrenta o seu passado colonial e se propõe a superá-lo? Numa Constituição que reconhece a igual dignidade de pessoas e dos diversos grupos formadores da sociedade nacional? O fato insuperável é que os espaços de terra que na atualidade são alvo de litígios judiciais foram incorporados através de procedimentos de colonialismo interno. A disciplina legal agrária e civil foi organizada sobre representações distintas a respeito de lugares e de suas concepções, que voltam agora a ser fundamentais, uma vez que a Constituição determina que as terras tradicionalmente ocupadas por indígenas sejam analisadas à vista de seus “usos, costumes e tradições” (art. 231, § 1º)”. Em seguida, numa convergência altamente qualificada pelos seus fundamentos éticos e teóricos, a afirmação contundente do reconhecimento do Brasil, Terra Indígena (https://www.youtube.com/watch?v=NeQ4UdyCBGo).
Num mundo desencantado, coisificado, servido à voracidade canibalizadora da acumulação capitalista, defender o modo de ser indígena, é realmar a existência. Lembra Maíra Pankararu (PANKARARU, Joanderson Gomes de Almeida; PANKARARU, Maíra de Oliveira Carneiro; KARAJÁ, Mairu Hakuwi Kuady; DIAS, Vercilene Francisco, Prefácio in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al (orgs) O Direito Achado na Rua. Questões Emergentes, Revisitações e Travessias. Coleção Direito Vivo, volume 5. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2021) recuperando a tradição Prayá (ou Praiá) de seu povo: “Uma vez com as vestes feitas de fibra do caroá (ou croá), ali está a Força Encantada, a expressão máxima da religiosidade do nosso povo. A foto (aludindo a foto que ilustra a capa da obra) representa um símbolo muito forte dos Pankararu, pois mesmo depois de anos de tentativas de aculturação, assédio, violência, preservamos com afinco aquilo que acreditamos. É o ícone de nossa resistência. Nós Pankararu nascemos da terra, somos filhos da terra. Sã Sé nos enterrou no chão e brotamos como árvores. Também somos guardadores de sementes, onde chegamos preparamos o chão e deixamos um pouco do que é nosso germinar e tomar seu ciclo de vida. Foi assim com O Direito Achado na Rua”.
No julgamento no STF, morte e vida disputam a Constituição.
Derecho a la Agroecología. Uma Concepción Transformadora Para América Latina
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
Derecho a la Agroecología. Uma Concepción Transformadora Para América Latina. Gladstone Leonel Júnior. Rio de Janeiro: Editora Processo, 2019, 148 p.
Com a clara intenção de continentalizar o problema e de alimentar a rede de intercomunicação que o Autor já logrou constituir em seus estudos sobre o constitucionalismo latino-americano, foi preparada essa edição em espanhol de uma obra lançada em 2016, numa primeira edição, pela Editora Prismas, de Curitiba, com 148 páginas.
Estive no lançamento, em Brasília, da obra, celebrando com Gladstone, a partir da obra publicada, esse seu duplo engajamento, que opera, como poucos, a ligação entre a questão política mais universal inscrita na abordagem do constitucionalismo e o tema concreto inscrito no comunitário, que problematiza o que comemos enquanto dimensão realizadora dos direitos humanos.
No tema constitucional remeto ao que já resenhei quando da publicação da segunda edição de Novo Constitucionalismo Latino-Americano: um estudo sobre a Bolívia (2a. Edição. SILVA JUNIOR, Gladstone Leonel. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2018, 248p), conforme, nesse espaço a minha coluna http://estadodedireito.com.br/novo-constitucionalismo-latino-americano-um-estudo-sobre-bolivia/.
Então, procurei salientar, referindo-me a nossa cooperação interpretativa, a novidade apresentada por Gladstone, exposta no livro, mas já em sua primeira edição, agora com mais refinamento, que é a aproximação que já havia ensaiado, em co-autoria comigo, nesse sentido, conforme os ensaios La Lucha por La constituyente y reforma Del sistema político en Brasil: caminos hacia un ‘constitucionalismo desde La calle’ La Migraña, n. 17/2016 e a publicação na Revista Direito e Práxis, vol. 8, n. 2 (2017): “A luta pela constituinte e a reforma política no Brasil: caminhos para um ‘constitucionalismo achado na rua’.”
Com efeito, após a primeira edição trazer a apresentação de Rubén Martínez Dalmau e o prefácio de Oscar Vega Camacho, quem contribui no prefácio dessa segunda edição é o Professor Fernando Dantas. Conforme o mesmo salienta, o trajeto do que está sendo chamado Constitucionalismo Achado na Rua, refere-se também ao constitucionalismo achado na Aldeia, nas Comunidades Campesinas ou Sindicatos, nos Rios, na Natureza, nos Laboratórios de alta precisão tecnológica e até na Academia jurídica, tamanha a amplitude do catálogo de direitos e dos processos constituintes democráticos do denominado Novo Constitucionalismo Latino-Americano.
Trata-se, lembrei, de uma grande viagem pela Pátria Grande, um percurso que Gladstone vem trilhando com a pertinência que só um diário logra captar (ver aqui: http://bit.ly/2In7RCJ), mas que a seu jeito, é uma tradução da novidade que a emoção surpreende, porque: No percurso teórico-conceitual e político desse debate poder avançar a proposta de um Constitucionalismo Achado na Rua, enquanto prática de construção de direitos que expresse essa decolonialidade do direito para compreender por poder constituinte a emergência histórica de sujeitos coletivos dotados de legitimidade política e capacidade social suficientes para irromper violações sistemáticas e instituir novas condições concretas de garantia e exercício de direitos e novos projetos de sociedade.
Ainda mais atualizada e com a vivacidade da fala espontânea, trago em hipernarrativa, a entrevista recente de Gladstone para o Blog de notícias Expresso61 (TV61), na série O Direito Achado na Rua, com acesso aqui pelo Canal Youtube de O Direito Achado na Rua: https://www.youtube.com/watch?v=0w2ApWr2giM.
A edição em espanhol de Derecho a la Agroecología portanto, prorroga o debate da primeira edição (2016) e fortalece o lançamento de uma segunda edição em português, com o selo da Editora Lumen Juris (2020), reconfigurando o tema conforme o seu novo subtítulo: “A Viabilidade e os Entraves de uma Prática Agrícola Sustentável”.
Na nova edição, com ênfase, permanecem as questões geradoras interpelando respostas políticas, postas em relevo pelo Autor, assim compiladas por Darci Frigo, Coordenador da Organização de Direitos Humanos Terra de Direitos: “Você sabe o que está comendo? De onde vem? Quem produz? Como produz? E o que isso tem a ver com o direito e o direito humano à alimentação saudável? Você está diante de um livro que trata de Direito à Agroecología, mesclado com o debate histórico e atual sobre agriculturas, reforma agrária, meio ambiente, direitos humanos e direitos da natureza. Para muitos se trata de tema novo, novíssimo. Não para agricultores/as, agroecologistas, indígenas e outros povos tradicionais. Um tema invisível – e invisibilizado – pela lógica da agricultura industrial capitalista e sua narrativa dominada pela ideologia do pensamento único do cientificismo. O autor demonstra que existem dois paradigmas conflitantes da biodiversidade. O primeiro é mantido pelas comunidades locais, cuja sobrevivência e sustentabilidade estão ligadas ao uso e conservação da biodiversidade. O segundo é mantido pelos grandes interesses comerciais. Diante disso, quais os reflexos do debate agroecológico no campo do direito e dos direitos humanos? Como a construção do direito é produto das lutas culturais, sociais, econômicas e políticas, o livro vai explorar esse debate, sendo a agroecologia potencial promotora de direitos humanos. O processo de construção da agroecologia se insere no “grande movimento de lutas dos povos contra a mercantilização da vida, comprometendo-se a construir uma nova sociedade sustentável capaz de satisfazer suas necessidades fundamentais e garantir os direitos das gerações futuras”.
Na edição em espanhol, essas questões se projetam para o contexto continental ampliado, para acentuar, conforme indica Miryam Gorban, Coordenadora Geral da Cátedra Livre de Soberania Alimentar na Universidade de Buenos Aires, autora do Prefácio, no sentido de denunciar, com os aportes da obra, e seus conceitos, a denúncia dos avassalamentos e vulneralizações que o agronegócio provoca, pois, “Em contraposição, alimentação adequada e saudável, acesso à terra, direito dos camponeses e camponesas, preço justo, relação direta de consumidores e consumidoras com produtores e produtoras de alimentos, são bandeiras de nossa luta contra o modelo agroindustrial que nos arrebata esses direitos e que muito bem detalha Gladstone neste livro carregado de esperanças. Esperançoso porque vejo nele que as sementes das lutas camponesas no Brasil surgem como referências constantes, como exemplos de conquistas de uma realidade social que se repete em cada território de nossa América Latina, que nos motivam a prosseguir no caminho por uma soberania alimentar sustentada pelo grito de resistência e de ação dos camponeses e camponesas, agricultores e agricultoras familiares, pescadores artesanais e povos originários, com um objetivo claro: o de recuperar plenamente uma agricultura baseada nos princípios da agroecologia” (tradução livre).
Basta ver o arranjo analítico da obra, desde o seu sumário, para inferir o traçado crítico e contra-hegemônico, singular, proposto por Gladstone: Los fundamentos histórico-teóricos del campesinato y los elementos para el desarrollo de la agroecologia (Capítulo 1); La difícil coyuntura para ele debate agroecológico: los entraves y los desafios a uma sostenibilidad concreta (Capítilo 2); Transición de perspectivas: el emergir agroecológico (Capítulo 3); La agroecologia bajo el enfoque constitucional: la promotora de la eficácia em derechos humanos (Capítulo 4); La ponderación de la agroecologia bajo la luz de la utilización contra-hegemónica del derecho (Capítulo 5).
A reflexão trazida por Gladstone Leonel Júnior, nas obras aqui referenciadas, permanecem sob o acicate de sua atenção atualizadora e enunciativa, conforme se pode conferir em (O Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas: enunciados jurídicos. Organizadoras e organizadores Valéria Torres Amaral Burity, Antonio Escrivão Filho, Roberta Amanajás Monteiro, José Geraldo de Sousa Junior (Organizadores). Brasília: FIAN Brasil e O Direito Achado na Rua, 2021, 195 p.), http://estadodedireito.com.br/28954-2/.
No projeto publicado dizem os organizadores e organizadoras: “Embora se vivencie, desde as eleições de 2018, um ambiente de rápido e intenso retrocesso no que tange ao reconhecimento e ao respeito aos direitos humanos em suas múltiplas dimensões, é possível observar e afirmar que no Brasil desenvolvem-se também, desde o advento da Constituição de 1988, agudas tendências de expansão e interferência judicial nas temáticas do Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas (DHANA), hoje talvez associadas ao ascenso do conservadorismo e ao retorno do neoliberalismo, entendido em perspectiva política e econômica.
Diante disso, a FIAN Brasil – Organização pelo Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas e O Direito Achado na Rua reuniram esforços para fomentar uma agenda de discussão sobre os impactos do sistema de justiça na garantia, proteção, efetivação ou violação do DHANA no Brasil e na América Latina, a partir das experiências e concepções de movimentos sociais, entidades de direitos humanos e advocacia popular, juristas e intelectuais, com vistas a produzir uma obra coletiva que debata, com base nessas experiências e concepções, enunciados jurídicos orientados conduzir a uma interpretação e aplicação do direito que sirva à proteção e à efetivação do Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas. Tais enunciados expressam, portanto, o olhar de advogados/as populares, movimentos sociais e pesquisadores/as sobre o tema, que buscam dizer como esse direito pode e deve ser garantido e, com isso, criar novos entendimentos que permitam sua realização”.
Ainda na perspectiva dessa construção, em metodologia ativa e participativa, os organizadores e animadores das oficinas e das reuniões virtuais que se seguiram para finalizar o conjunto autoral, cuidaram de “fomentar uma agenda de debates acerca do Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas em suas múltiplas e diferentes dimensões, sob o ponto de vista das suas experiências de (des)encontros com a via judicial e o sistema de justiça. Os enunciados e os textos que os explicam tratam dos limites e possibilidades de (i) proteção, garantia e reparação a direitos violados ou ameaçados; (ii) efetivação de direitos sonegados; (iii) implementação de políticas públicas e (iv) reconhecimento jurídico e institucional de modos de ser e viver relacionados ao Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas, com especial atenção para o modo como esses direitos – em suas dimensões de posse, territorialidades e agroecologia, considerando o protagonismo das mulheres, as perspectivas étnicas e raciais, além a incidência de tratados internacionais e o impacto da atuação de empresas – são efetivados ou negados, quando se deparam com a via judicial e as diferentes instituições do sistema de justiça”.
No link para o texto completo da obra: https://fianbrasil.org.br/wp-content/uploads/2021/04/Enunciados_Eletronico_.pdf, pode-se identificar duas contribuições de Gladstone, a primeira em co-autoria com Valéria Burity, da FIAN, uma das organizadoras do livro, reafirmando conceitos caros ao Autor, no que corcene à “Agroecologia como meio para a promoção efetiva do Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas”; o segundo, com Victória Gonçalves, sua colega na Universidade Federal Fluminense, quanto à “Prioridade da preservação dos costumes e conhecimentos tradicionais em face das regras de vigilância sanitária”.
Do primeiro texto resulta o enunciado preciso, desde que a obra cuida de construir enunciados: “As práticas agroecológicas são as mais compatíveis com os elementos do Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas (DHANA). Portanto, às políticas de promoção da agroecologia deve ser aplicado o mesmo regime (princípios e obrigações) que marca esse direito fundamental. Em contexto de agravamento do aquecimento global, aumento da fome e do excesso de peso, o apoio à agroecologia não é uma escolha, mas sim uma obrigação que recai sobre o Estado brasileiro”.
Em Gladstone, assim como nos engajamentos promovidos pela FIAN e pelo Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, reafirma-se a disposição para não ceder à sanha canibalizadora do agronegócio neoliberal. Ponho em relevo essa disposição em artigo para minha coluna mensal digital no Jornal Brasil Popular – https://www.brasilpopular.com/ – denunciando a agonia trazida pelo retorno do País ao quadro de fome (“Ossos de boi, arroz e feijão quebrados e pé de galinha: Fome no Brasil”):
Procuramos deixar essa realidade, agudizada pelo ascenso do conservadorismo e do neoliberalismo no País, bem documentada em estudo que a FIAN BRASIL – Organização pelo Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas (DHANA) e o Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, com o objetivo de fomentar uma agenda de discussão sobre os impactos que os sistemas de governo e de justiça provocam sobre a garantia ou violação desses direitos, indispensáveis à dignidade e à própria vida.
Orienta as experiências e concepções de movimentos sociais, entidades de direitos humanos e advocacia popular, juristas e intelectuais, a salvaguarda de diretrizes do sistema internacional de direitos humanos, dispondo que o DHANA é exercido quando uma pessoa, isolada ou em comunidade, tem acesso físico e econômico, em todos os momentos, a uma alimentação suficiente, adequada e culturalmente aceitável, que se produz e que se consome de forma sustentável, mantendo-se o acesso à alimentação para as gerações futuras”.
Que reflexões assim as de Gladstone Leonel Júnior, ou as que organizam a FIAN, contribuam para redefinir o cenário da dignidade e dos direitos humanos no Brasil. Ou então, que a marreta do padre Lancellotti esmague as serpentes e os sistemas antipovo enquanto alimenta pobres e abriga em sua igreja povo de rua, como está no fecho de meu artigo em Brasil Popular.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Ouvidoria Brasileira: cenários e desafios. Organização: Maria Ivoneide de Lima Brito, Ana Claudia de Almeida Pfaffenseller, Luciana Bertachini. Brasília: Editora UnB/FNOUH/Portal de Livros Digitais da UnB, 2021 (https://livros.unb.br/index.php/portal/catalog/book/105).
Com este título a Editora da UnB publica uma obra importante, digna de seu selo editorial e do catálogo exemplar de trabalhos que registram e valorizam o que fazer institucional a partir de práticas e inovações da gestão universitária. Ela será lançada em agosto, no dia 27, quando está prevista a realização do XXI Encontro do Fórum Nacional de Ouvidores Universitários e de Hospitais de Ensino FNOUH, em formato remoto, organizado pelo FNOUH e a Ouvidoria da Universidade de Brasília, UnB, em comemoração aos 10 anos de criação da Ouvidoria nesta Instituição. Não há notícia ainda sobre edição impressa.
De acordo com a sinopse preparada pela editora, Sinopse a “obra dedica-se a apresentar a Ouvidoria Brasileira: seus cenários e desafios, a partir da compreensão de que o respectivo espaço se define como locus de defesa dos cidadãos e seus direitos – efetivo canal de diálogo, mecanismo de participação e controle social e, ainda, instrumento de conciliação, mediação e resolução de conflitos. Nessa direção, são destacadas experiências no âmbito das Ouvidorias Universitárias e de Hospitais de Ensino do Brasil, com vistas a compreender o papel da gestão integrada, da ética e das boas práticas administrativas, e os sistemas que integram e corroboram para a recepção e o encaminhamento das manifestações, com transparência, publicidade e alteridade, além de explicitar a questão da autoavaliação e algumas reflexões, com olhar sociológico, sobre o tema em voga e os principais tópicos que abarcam o atendimento diário, com uma visão democrática e humana”.
Em prefácio que fiz para uma obra com essa característica, também editada pela Editora UnB (Gestão Universitária – Estudos sobre a UnB, volume 1, organizado por César Augusto Tibúrcio Silva e Nair Aguiar-Miranda, Brasília: Editora UnB, 2011, 515 p; volume 2, 483 p.), lembrei a esse respeito três dimensões analíticas presentes em publicações com tais características. A primeira delas é a que diz respeito à participação de cada pessoa, na condição de aprendiz e produtor de saber, agregando e gerando conhecimento acerca de seu próprio meio. É o exercício de uma das faces daquilo que Boaventura de Sousa Santos chama “ecologia dos saberes”, para designar a produção de conhecimentos contextualizados, situados e úteis e que só podem florescer em ambientes tão próximos quanto possível das práticas de que se originam e “de um modo tal que os protagonistas da ação social sejam reconhecidos como protagonistas da criação de saber”. Trata-se de um passo importante para a refundação democrática da Administração Pública, e a condição para pensar o próprio Estado democrático.
A segunda dimensão é a que considera os servidores na condição de uma categoria destacada, levando a estratégias de aprimoramento de sua qualificação, de seu poder de ação ampliado para que assuma representatividade corresponsável pela gestão da instituição a que servem.
A terceira, por fim, de conteúdo político, é, entre as dimensões, aquela a partir da qual os sujeitos atuam como representantes ou membros da instituição. Os servidores são agentes públicos, têm papel fundamental na administração e atuam, junto a toda a comunidade, como multiplicadores, difundindo os saberes e as práticas que adquirem.
No caso de Instituições que estão funcionalmente posicionadas para serviço da sociedade, é eticamente essencial desenvolver ações que se voltem para qualificar e dignificar seu corpo de servidores e criar espaços administrativos para fazer fluir os enunciados constitucionais referidos à Administração Pública, quais sejam: a legalidade, a impessoalidade, a moralidade, a publicidade e a eficiência. O princípio da eficiência sintetiza bem esse conjunto de atribuições. De fato, ele possui uma condição especial, não por ter sido acrescido aos anteriores posteriormente, mas sim por representar uma reforma da percepção legal acerca da Administração. É este, entre os demais, aquele que trata de maneira mais direta da realidade, que envolve ações práticas para além do universo jurídico, alcançando o campo ético e o núcleo democrático que a constitui.
Trata-se de operar na direção do aprimoramento da carreira dos servidores e de todos os instrumentos que potencializam tanto o estímulo à cidadania quanto o atendimento das necessidades da instituição, da administração em geral e da sociedade. Trazendo mais uma vez as palavras de Boaventura de Sousa Santos, “numa sociedade democrática, o critério fundamental para avaliar a eficiência e a racionalidade da reforma da Administração Pública e do Estado é o seu impacto na cidadania e, especialmente, nos direitos sociais dos cidadãos”.
O livro ora editado, para o qual redigi o Prefácio de onde retiro os termos deste Lido para Você, mergulha na constitutividade de um desses instrumentos-ponte que ligam a Administração Pública, a cidadania e a sociedade: a Ouvidoria. Resultado de um qualificado debate, instalado no Fórum Nacional de Ouvidores Universitários e de Hospitais de Ensino (FNOUH), organizadores e organizadoras, autores e autoras, a partir de uma rica programação, desenharam cenários e levantaram os desafios que conferem ao tema a condição de uma categoria interpelante em seu sentido funcional, burocrático-racional e político.
Com efeito, organizadores e organizadoras que exerceram a direção formuladora do programa e o consequente sumário de temas que compõem o conteúdo do presente livro são, todos e todas, experientes agentes públicos experimentados no mister de institucionalizar, implantar e consolidar Ouvidorias Públicas no sistema universitário e em hospitais de ensino. Vê-se por seu percurso: Maria Ivoneide de Lima Brito, Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências e Tecnologias em Saúde da Faculdade de Ceilândia (UnB/FCE). Mestra em Educação pela Universidade de Brasília (2013). Especialista em Gestão Universitária pela UnB (2011) e em Linguística e Língua Portuguesa pela Faculdade da Terra de Brasília (2006). Graduada em Pedagogia, com ênfase em Orientação Educacional (2008), e em Letras pela Faculdade da Terra de Brasília (2003). Ouvidora da Universidade de Brasília. Professora voluntária no Curso de Terapia Ocupacional (FCE), bem como no Programa de Extensão Universidade do Envelhecer (UniSer) – (FCE). Ana Cláudia de Almeida Pfaffenseller , Ouvidora da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC). Possui mestrado em Letras (UNISC), pós-graduação em Gestão Universitária (UNISC) e graduação em Comunicação Social – Jornalismo (UNISC). Luciana Bertachini, Fonoaudióloga. Doutora em Bioética e Ouvidoria pela CUSC/SP. Mestre e Especialista em Distúrbios da Comunicação Humana pela Universidade Federal de São Paulo – Escola Paulista de Medicina – Inifesp – EPM, e pelo Conselho Federal de Fonoaudiologia CFFa. Ouvidora/Ombusdman, Docente e Diretora de Pesquisa e Publicações da Associação Brasileira de Ouvidores/Ombusdmam – ABO Nacional. Paulo Rodrigo Ribeiro Guimarães, Ouvidor do Hospital Universitário da Universidade de Brasília. Graduado em Jornalismo pela Faculdade de Ciências Sociais e Tecnológicas de Taguatinga. Especialista em Bioética pela Universidade de Brasília. Presidente do Fórum Nacional de Ouvidores Universitários e de Hospitais de Ensino.
Em diálogo técnico-científico, se incumbiram da tarefa instigante de selecionar e de submeter ao escrutínio editorial os autores e as autoras e os temas que formam um atualizado e qualificado conjunto de artigos, mister dos quais cenários e desafios puderam sumariar, questões emergentes, exigências de atualização e narrativas interpretativas que pedem atenção preferencial em um contexto ainda de experimentação funcional.
Sigo a ordem alfabética do elenco autoral e seus temas:
Alan Santos de Oliveira, “Ouvidorias Universitárias e Sistema de Gestão Integrada: estudo de caso no Centro Universitário de Patos de Minas – UNIPAM”; Alex da Silva Xavier e Nilo Lima de Azevedo, “Ouvidoria e o Poder Simbólico, reflexões segundo o conceito de Pierre Bourdieu“; Alice Abi-Eçab, “Ética e boas práticas na gestão pública: conquistas e desafios da Ouvidoria da FMUSP”; Ana Cláudia de Almeida Pfaffenseller, Caroline dos Santos e Arnaldo Podestá Júnior, “Utilização de sistemas informatizados em ouvidoria: práticas em instituições de ensino superior da Região Sul do Brasil”; Ana Karla de Sousa Severo, “Ouvidoria pública como espaço de participação social: um recorte sobre a pesquisa de satisfação em ambiente hospitalar”; Biolange Oliveira Piegas, “Uma abordagem sobre o papel estratégico das ouvidorias públicas”; Carlos Menta Giasson, Everton Ismael Bourscheid e Juliete Petter, “Perfil e Estrutura da Ouvidoria Universitária do Brasil: Um estudo entre os membros do FNOUH”; Leila Leal Leite, “As Ouvidorias dos Hospitais Universitários Federais: processos de trabalho e suas inter-relações”; Liane Biagini e Denilson Bezerra Marques, “A Racionalidade e a Ética na Ação Administrativa: um olhar para as ouvidorias da Universidade Federal de Pernambuco”; Luis Victor Leal Leite da Silva e Sérgio Braz da Silva, “Controle Social na Administração Pública: instrumento de exercício da cidadania”; Magna Stela Cargnelutti Dalla Rosa e Laura Scheren Dalpiaz, “Algumas reflexões sobre a Autoavalição e a função da Ouvidoria de uma Universidade Comunitária Gaúcha”; Maria Ivoneide de Lima Brito e Larissa dos Santos Aguiar, “Estado, Políticas de Controle e seus Efeitos na Saúde do Trabalhador da UnB: o olhar da Ouvidoria”; Paulo Fernando de Melo Martins, Enedina Betânia L. de L. P. Nunes e Jacqueline Araújo Rodrigues, “A Ouvidoria Universitária como instrumento de concretização do direito à educação por meio da melhoria na prestação dos serviços públicos”; Paulo Rodrigo Ribeiro Guimarães e Elizabeth Queiroz, “A Ouvidoria enquanto copartícipe da gestão da qualidade dos serviços prestados aos usuários do Hospital Universitário de Brasília”; Rosa Ângela de Brito Falcão e Edilene Maria Vasconcelos Ribeiro, “A Ouvidoria como espaço de mediação de conflitos na Administração Pública no Brasil”.
A Ouvidoria pública e a Ouvidoria universitária, mostram os textos, são uma expressão forte da tradução de princípios democráticos como condição de boa gestão administrativa. Registro o comentário, em sede de balanço de experiências, a respeito exatamente da avaliação das ouvidorias públicas na democracia, tal como aparece em Estado, instituições e democracia, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Brasília: Ipea, 2010. Especialmente Livro 9, volume 2, Ouvidorias Públicas e Democracia, p. 216: “As ouvidorias públicas vêm se transformando em instrumento inovador de gestão e, principalmente, em uma ferramenta de controle social e de atendimento aos usuários dos serviços públicos. Gradativamente, os ouvidores têm visto acrescentar à sua função inicial de ombudsman o papel de mediador entre a organização e a sociedade”.
Não é ocasional que o bem documentado trabalho elaborado pela Secretaria-Geral da Presidência da República, em 2014 – Participação Social no Brasil. Entre conquistas e desafios, logo após os acontecimentos de 2013 e da tentativa de setores do legislativo de bloquear o modelo participativo da administração federal, tenha procurado conferir o que chama de metodologia de gestão, com esteio no modelo constitucional participativo e que tenha conferido a esse processo de gestão o conceito de diálogos entre governo e sociedade civil. De registrar (p. 127) o destaque atribuído à Ouvidoria pública federal, entre as instâncias e os mecanismos de participação social, ali definida como “instância de controle e participação social responsável pelo tratamento das reclamações, solicitações, denúncias, sugestões e elogios relativos às políticas e aos serviços públicos, prestados sob qualquer forma ou regime, com vistas ao aprimoramento da gestão pública”.
Atento ao que considero uma pedagogia da cidadania, estou de acordo com muitos enunciados dos textos que formam esta Coletânea. De fato, eles confortam a iniciativa programática que imprimi ao meu mandato reitoral na UnB, enfeixando no plano da administração, o conceito de gestão compartilhada, evidente modo e método de radicalizar os instrumentos de participação e de controle social, interno e externo, da gerência universitária.
Documentei os princípios e os resultados desse programa, efetivado durante o mandato (2008-2012), em livro que organizei para a memória desse processo: SOUSA JUNIOR, José Geraldo de (org). Da Universidade Necessária à Universidade Emancipatória. Brasília: Editora UnB, 2012. Em minha narrativa, na obra, ao abordar o tema Gestão Compartilhada como Princípio de Participação Democrática, anoto sobre a Ouvidoria que criei, a importância que lhe atribuí para a prestação de auxílio ao cidadão e à cidadã “em suas relações com a Universidade, funcionando como uma crítica interna da administração pública, sob a ótica do cidadão” (p. 46).
Quando digo criei, não quero omitir iniciativas anteriores, pontuais (instalação de uma ouvidoria vinculada à Reitoria que funcionou por pouco tempo) ou mais permanentes embora setoriais (ouvidoria do Hospital Universitário). Refiro-me à criação como órgão permanente, estatutário, com ouvidor indicado e nomeado pelo Reitor, com aprovação do Conselho Universitário, detentor de mandato (dois anos renovável por igual período), com acesso livre a qualquer espaço, órgão, conselho, com direito à voz, com competência para requisitar papéis e audiência de pessoas e de elaborar relatório semestral com prerrogativa de pauta para apresentação perante o Conselho Universitário. É assim que ela está no Estatuto, no Regimento-Geral e nos Atos de Funcionamento e Atribuições, tendo potencializado as atribuições funcionais de sua origem e as de sua vocação democrática no máximo alcance de seus pressupostos democráticos e de afirmação dos direitos humanos.
Por isso que seus relatórios passaram a se constituir peças de crítica para a boa gestão, e a Ouvidoria se tornou, em pouco tempo, um espaço educador no âmbito da Instituição, fomentando processos racionais para gestão, parâmetros para o trabalho decente, limites para as práticas de redução de dignidade e repositório conceitual para o compartilhamento de experiências e de modos avançados de gerir os bens públicos, sociais, voltados para a saúde e para a educação, no melhor sentido do que dizia atrás Boaventura de Sousa Santos, aqui repetido para realce: “numa sociedade democrática, o critério fundamental para avaliar a eficiência e a racionalidade da reforma da Administração Pública e do Estado é o seu impacto na cidadania e, especialmente, nos direitos sociais dos cidadãos”.
Não posso deixar de anotar nessas considerações prefaciais um registro de especial relevo, para amplificar o alcance e a importância da obra. Vale dizer, a constatação, à luz dos textos aqui publicados, de continuidade da disposição assinalada no tenso processo de reconstrução democrática em nosso País, de manter-se essa disposição na cultura política que dá identidade à Administração Pública, ao menos vigente a Constituição de 1988, denominada “cidadã”, valorizando o seu conteúdo participativo, forte no controle social das políticas públicas.
Algo que, a propósito da Ouvidoria da UnB Larissa Aguiar procurou documentar primeiro em dissertação acadêmica (cf. meu Lido para Vocêhttp://estadodedireito.com.br/a-quem-posso-contar/), agora em edição impressa pela Editora Diáletica. Membro da banca examinadora terminei pro oferecer o prefácio à obra, a convite da autora.
Segundo texto da editora, o livro chama atenção para a sutil diferença entre a arte de escutar e o ato de ouvir, com objetivo de avaliar as políticas públicas educacionais no que se refere à prevenção e promoção de saúde mental no âmbito da comunidade interna da UnB, a partir das narrativas recepcionadas pela ouvidoria no período de 2011 a 2018.
Considerando o ambiente de ouvidoria um espaço democrático que recepciona narrativas baseadas na subjetividade dos sujeitos, Larissa Aguiar opta por conciliar o processo dialógico entre os atores da instituição, sendo discutidas, de forma histórica e política, as ações do Estado no processo educacional do ensino superior no Brasil, a fim de contextualizar o papel do ser humano dentro desse cenário para compreender fatores que possam ocasionar sofrimento psíquico na comunidade universitária.
“A autora analisa criticamente o cenário político e econômico da educação superior brasileira, conferindo à UnB o papel vanguardista e inovador em todos os campos do saber científico, tecnológico e cultural”. (Maria Inês Gandolfo Conceição, Professora e Diretora do Instituto de Psicologia da UnB).
E, do meu prefácio, um extrato também destacado pela Editora: “Esse é um texto que documenta bem uma experiência, em muitos aspectos singular, de institucionalização de uma ouvidoria universitária, com designações políticas e conceituais que a distingue e que tem sido tema de outros estudos.” (José Geraldo de Sousa Junior, Professor da Faculdade de Direito, ex-Reitor da UnB e Fundador da Ouvidoria da Universidade).
São contribuições pertinentes na conjuntura. Em que pesem acumular-se no horizonte político sombras de recesso democrático e de registros de assaltos autoritários ao modelo de participação da cidadania na gestão pública, a institucionalidade ainda preserva, com o apoio de movimentos de rua, espaços de defesa desse sistema, devendo lembrar-se o conflito a intervenção recente do Supremo Tribunal Federal, preservando nichos de atuação participativa social na modelagem dos Conselhos e outros sistemas de participação atacados por ações de governo no início de 2019.
É bom lembrar que o espaço universitário se constitui na mais importante trincheira para a preservação desses fundamentos, uma vez que o princípio constitucional da autonomia, permite que aí se forme uma cidadela para conferir valor a processos e mecanismo que representam a concretização e permanência desses instrumentos. Por tudo isso Ouvidoria Brasileira: cenários e desafios se reveste, por isso, do caráter de obra de referência, imprescindível para o discernimento dos sinais que demarcam cenários e desafios que se armam na conjuntura.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
Farol, Ancoradouro, Oásis e Sal. Vozes Femininas na Literatura
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Farol, Ancoradouro, Oásis e Sal. Vozes Femininas na Literatura. Organização Bel Parolim. Bauru-SP: Editora Mireveja, 2021, 144 p.
Fazia Calor e Usávamos Máscaras. Volume II. Lara Ovídio (Organização), Marília Panitz (Prefácio). Bragança Paulista: Hecatombe, 2021, 124 p.
Rabeca Conquista a Orquestra. Luciana Lorens Braga. São Paulo: Biruta, 2009
Vozes femininas sim, caracterizam as três obras tema deste Lido para Você, algumas com algum acréscimo de afirmação, como Farol, mulheres de Leme, no Estado de São Paulo ou de algum modo ligadas a Leme. Todas, porém, o que me chamou a atenção, mulheres com forte engajamento intelectual, político ou profissional, incontidas em seus campos de atuação nativos e por isso, em algum momento, extravasaram sua imensa sensibilidade e amor ao mundo, como expressão literária.
Não propriamente no livro, mas na dedicatória, manuscrita no volume de Fazia Calor que me presenteou, Érika Lula de Medeiros, que foi minha orientanda no Mestrado (Direito) e é atual orientanda no Doutorado (Direitos Humanos e Cidadania), na Universidade de Brasília, diz: “Aos queridos professores José Geraldo e Nair, um agradecimento pelo compromisso e dedicação com a construção de outro mundo mais igual e que acolha as diversidades. O Professor José Geraldo uma vez me sugeriu publicar um livro de crônicas e versos: quem sabe seja um começo?”.
Conforme eu já disse em outro lugar “Sei que vou gostar de um livro assim que leio suas primeiras palavras. Seu primeiro parágrafo. Pressentir, mais que analisar, se as palavras, tal como diz John Steinbeck sobre o seu ofício, se deixam escorrer e se arrastar para o texto, como que movidas por sua própria vontade. Para ele (A Rua das Ilusões Perdidas, Rio de Janeiro: BestBolso, 2019), talvez essa seja a maneira de escrever certos livros, abrir a página e deixar que as palavras fluam, livres, espontaneamente, transferindo-as para o texto, no arranjo da própria narrativa” (http://estadodedireito.com.br/candangos-tracos-de-brasilia/).
Em seu primeiro parágrafo de 25 de junho de 2020, dia 101 de quarentena (p. 107), Érika me atingiu em cheio: “Hoje nos desfizemos de uma cama. Ia ser só isso mesmo. Mas quando vi o colchão do lado de fora do apartamento, fiquei nostálgica. Podia ser só mais um objeto descartado…Mas a gente vai encharcando as coisas de sentido a partir das relações, né?”. Steinbeck puro.
Assim como Érika, as mulheres autoras de Fazia Calor… (um achado o título) – Lara Ovídio, Maria Vitória Canesin Lovato, Mariana do Vale, Mariana Tokarnia, Mariam Daychoum, Mykaela Plotkin, Sofia Bauchwitz, Vanessa Ximenes, Enero y Abril, Ludmilla Alves, Andrea Pech, Edzita Sigoviva, Elisa Elsie, Maíra Valério, Liliana Oliveira, Priscila Maia e Mariana Tesch, trazem para o livro, assim diz Marília Panitz no Prefácio: “muitas vozes, formatos diversificados, mas que vão se enredando e formando um só tecido (uma teia?) de texto e imagens. Nas manifestações subjetivas, o trivial, rotineiro, o invisível da vida cotidiana vai subversivamente se travestindo em relato exemplar…”. Leio Elisa Elsie: “26.06.2020. 100 dias de isolamento de Miguel: ele almoçou com uma cueca na cabeça. Fotografei”.
A organizadora esclarece: “Fazia Calor e Usávamos Máscarasreúne dezoito mulheres, do Brasil e do México, que decidiram tornar públicos seus escritos pessoais. A casa ganhou um enorme protagonismo durante a pandemia da Covid-19. Partindo desse mote, o grupo tenta compreender as mudanças que a quarentena imprimiu aos dias, à vida e ao cotidiano. Com estilos diversos e perfis variados, as escritoras compartilham delírios, perdas e incertezas em seus textos”.
Em Farol, ancoradouro, oásis e sal, conforme a sua organizadora “um exemplo da literatura que não tem fronteiras, da escrita que rompe barreiras, da arte que universaliza, agrega. Segundo volume da coleção Vozes Femininas na Literatura, reúne dezessete autoras ligadas por uma condição geográfica – todas elas vivem ou viveram na cidade de Leme, no interior de São Paulo”.
O projeto editorial, não se confina à aldeia. “Pode-se até pensar, num primeiro momento – esclarece a organizadora – que o fato de todas as autoras estarem ligadas a uma mesma cidade, e de ser essa uma cidade pequena, seja uma limitação. Muito pelo contrário. Temos aqui um livro diverso, multifacetado, que rompe as barreiras entre o universal e o particular, que parte do micro para nos levar ao macro, e vice-versa. São mulheres distintas na idade, na trajetória, na relação com a escrita, na forma de ver o feminino e o mundo. Com a força de seus textos e a amplitude de suas vozes, elas rompem os limites impostos por um ambiente predominantemente masculino, o da literatura, síntese e espelho do machismo de toda a sociedade”.
Organizado pela produtora cultural e escritora Bel Parolim, Farol, ancoradouro, oásis e sal inclui textos de autoras experientes e premiadas e de jovens que estreiam em livro físico, abrindo seu espaço no mercado editorial com a chancela de uma editora, movimentando-o. São elas: Aline Archangelo, Berenice de Fátima Taufic Luiz, Evelisie Barbi Mouro, Gisele Santos Fernandes,Jéssica Anitelli, Joyce Finato Pires, Julia Cavichioli Gonçalves, Kuca Magalhães, Márcia Rosana Pedro Parolim, Maria Augusta Silva Antônio, Marilia Marchi, Meire Contieri, Natasha Romanzoti, Talita Horniche, Thaís Alves.
Também contribui para a edição Ísis Menezes Táboas, que insere no livro uma Carta do Céu para Minha Conterrânea.Ísis foi minha orientanda em seu mestrado em Direitos Humanos e Cidadania, no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania (interdisciplinar), no CEAM-UnB. Sua dissertação selecionada como a melhor da área por um júri universitário, foi publicada e já está em segunda edição, pela Editora Lumen Juris. Fiz o prefácio da obra e publiquei uma resenha do livro aqui neste espaço da Coluna Lido para Você (http://estadodedireito.com.br/e-luta-feminismo-campones-popular-e-enfrentamento-violencia/). Também foi minha orientanda no doutorado na Faculdade de Direito da UnB com a tese “Mulheres, Movimentos Sociais e Direito: feminismo popular e O Direito Achado na Luta Camponesa” (https://repositorio.unb.br/handle/10482/39912). Ísis é uma pesquisadora de ponta, vanguarda acadêmica e política. Lealdade temática no compromisso com os estudos feministas e engajamento orgânico na luta pelo socialismo. Com Ísis e companheiros do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua organizamos o Volume 10, da Série O Direito Achado na Rua. Introdução Crítica ao Direito como Liberdade (conferir aqui http://estadodedireito.com.br/o-direito-achado-na-rua-volume-10-introducao-critica-ao-direito-como-liberdade/).
Já adiantei, inclusive aqui neste espaço da Coluna Lido para Você, ter presente que no plano epistemológico, a propósito, tem sido estimulante a vertente que trabalha a interlocução interdisciplinar e complexa para acentuar o diálogo entre saberes, demonstrando que o conhecimento não se realiza por uma única racionalidade, mas, ao contrário, pela integração entre diferentes modos de conhecer que nos habilitem a discernir o sentido e significado da existência e a elaborar sínteses interpretativas que além de nos permitir compreender o mundo, contribuam para transformá-lo, conforme, entre todos, sustenta Boaventura de Sousa Santos (também grande poeta e rapper). Trata-se, como acentua Roberto Lyra Filho (A Concepção do Mundo na Obra de Castro Alves, Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1972; Filosofia Geral e Filosofia Jurídica, em Perspectiva Dialética, in Palácio, Carlos, S.J., coord. Cristianismo e História, São Paulo: Edições Loyola, 1982), de operar padrões de esclarecimento, recusando o monólogo da razão causal explicativa, para abrir-se a outras possibilidades de conhecimento: o fazer, da atitude técnica; o explicar e compreender, da atitude científica; o fundamentar, da atitude filosófica; o intuir e mostrar, da atitude artística; o divertir-se, da atitude lúdica; o revelar, da atitude mística. Não fosse Roberto Lyra Filho, ele próprio, um grande poeta com o pseudônimo Noel Delamare (O Cancioneiro dos Sete Mares).
Tem razão Eduardo Lourenço, não só em sustentar a unidade da poesia fernandiana (Fernando Pessoa), mas em suscitar a totalidade que abarca os seus aparentes fragmentos heterônimos, para indicar que nesse processo o problema central continua a ser o do conhecimento. Para Lourenço (Tempo e Melancolia em Fernando Pessoa, publicado na edição brasileira do livro O Mito da Saudade, Editora Companhia das Letras), os avatares de Pessoa “representam uma tentativa desesperada de se instalar na realidade” (para mais ver http://estadodedireito.com.br/coluna-lido-para-voce-direito-no-cinema-brasileiro/).
Situo nessa perspectiva de interpelar, o filosófico e o jurídico pela arte, o cinema ou a literatura, os trabalhos notáveis de Luis Alberto Warat (sobre isso, conferir em Lido para Você o que coloquei em causa: http://estadodedireito.com.br/criminologia-e-cinema-semanticas-castigo2/). Mas, sobretudo, acentuando que o próprio Warat quando esteve nos anos 1980 na UnB para um estágio pós-doutoral sobre direitos humanos, se bem tenha deixado vários ensaios que foram publicados na Revista Humanidades (Editora da UnB) sobre o tema, concluiu seu relatório final encaminhado a CAPES, na forma de um romance (O Amor Tomado pelo Amor. São Paulo: Editora Acadêmica, 1990). Quando em cautela organizei um seminário acadêmico com o mesmo título – O Amor Tomado pelo Amor – calou-me o receio alinhando em sua exposição, sete razões para falar do amor na academia, começando pela razão filosófica, não fosse a filosofia amor à sabedoria, culminando com a razão literária, a poesia e o romance.
Tal qual Warat sua orientanda na UnB Luisa de Marillac, fora da academia Promotora de Justiça, defendeu dissertação de mestrado nele fundamentada – O Direito entre Togas, Capas e Anéis -, logo publicada com o mesmo título (Porto Alegre: Núria Fabris Editora, 2009), na qual, eu escrevo na orelha do livro, “propõe, assim, de forma metafórica, e com rara abertura epistemológica para articular formas de conhecimento (ciência, filosofia, literatura, música) uma trajetória – viagem – dialógica, para repensar o Direito tendo como horizonte de destino a sua representação como prática emancipatória, isto é, o Direito como liberdade”. Na dissertação e no livro, Luisa inclui um conto, inteiramente integrado ao contexto epistemológico da obra: “O Amor no Banco dos Réus”, marcando tributo a um pensador que reivindicou a imaginação com abertura para o conhecimento e para o conhecimento do Direito, tão bem desenvolvido por outra discípula do grande mestre, cuja orientação de doutorado finalizei após a morte do brilhante professor: Marta Gama (Entrelugares de Direito e Arte. Experiência artística e criação na formação do jurista. Fortaleza: EdUECE, 2019). Sobre esse trabalho conferir o meu Lido para Você (http://estadodedireito.com.br/entrelugares-de-direito-e-arte-experiencia-artistica-e-criacao-na-formacao-do-jurista/).
Mais recentemente me deparei com o instigante Retratofalado. Ensaios em Estado de Imagem (http://estadodedireito.com.br/retratofalado/). Na minha leitura da apresentação do projeto editorial, noto que ele foi concebido como uma proposta visual-literária que pretende reunir o que, então, na realidade, produz-se em par: ver e narrar, narrar ver num amálgama a partir das imagens da fotógrafa Wanessa Montoril, pré-condição para as autoras Danielle Martins, Gabriela Jardon e Mariana Carvalho, se lançarem em histórias que, rompendo com a simples descrição das fotografias, deem corpo ao olhar lírico e à voz poética muito pessoal de cada uma.
No livro, diz o cronista Daniel Cariello que o prefacia, “não sabemos se os escritos preenchem os espaços em branco sugeridos pelas fotografias ou se são as imagens que ilustram os textos”. E eu até diria mais, retomando minha reminiscência original em Blow-Up, fazer esvanecer toda a certeza sobre acontecimentos que se transformam em real, quando o real talvez se manifeste como imaginário. Assim enfabula um narrador-personagem no texto Buenos Aires, assinado por GJ: “(Ou pensei que entendi. Ou fingi que entendi. Ou queria tanto que tivesse entendido que de fato entendi.)”.
Retomo a participação de Ísis com Carta do Céu para Minha Conterrânea. Tenho a convicção de que o espaço aberto no Blog dos Diálogos Lyrianos (www.odireitoachadonarua.blogspot.com) na sua seção Cartas, na qual os pesquisadores em viagens compartilham seus achados, suas angústias, suas impressões, tem servido de exercício de estilo e sensibilidade dos pesquisadores reunidos no Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, no qual Ísis tem notável protagonismo.
Nesse espaço, certamente Gladstone Leonel Junior, antecipou algumas das cartas que depois reuniu em livro. Nelas, já o percurso teórico-conceitual e político do debate que ele fez avançar acerca de um Constitucionalismo Achado na Rua, foi adensando o que ele designa enquanto prática de construção de direitos que expresse essa decolonialidade do direito, para compreender por poder constituinte a emergência histórica de sujeitos coletivos dotados de legitimidade política e capacidade social suficientes para irromper violações sistemáticas e instituir novas condições concretas de garantia e exercício de direitos e novos projetos de sociedade. Um Constitucionalismo Achado na Rua que venha aliar-se à Teoria Constitucional que percorre o caminho do retorno à sua função social. Uma espécie de devolução conceitual para a sociedade, da função constitucional de atribuir o sentido político do Direito, através do reconhecimento teórico-conceitual da luta social como expressão cotidiana da soberania popular.
Se é verdade o que diz Benedetti na epígrafe escolhida por Gladstone de “que el mundo es incontable”, nas Cartas que publica, o que importa é o que nos oferece o autor, não tanto pelo que conta, mas tal como orienta García Márquez (Viver para Contar), pelo que “recorda, e como recorda para contar” Cartas de Viagem: Histórias de Caminhos não Contados. Belo Horizonte: Editora Crivo, 2018 (para aquisição: http://pag.ae/bkvtVBt). Sobre essa publicação conferir em Lido para Você http://estadodedireito.com.br/cartas-de-viagem-historias-de-caminhos-nao-contados/.
Registro nessa mesma seção – Cartas – o embrião do texto que Ísis traz para Farol, Ancoradouro, Oásis e Sal. Vozes Femininas na Literatura: “Carta do céu. Querido Professor José Geraldo, enfim, te envio minha carta, mas não é uma carta da China, da Rússia, do Egito, da Romênia, da Itália, da Grécia, da Espanha, ou mesmo da Holanda. É uma carta do caminho, é uma carta do céu – de algum lugar do céu entre China e Holanda; e eu tenho dois motivos para escrevê-la…” (http://odireitoachadonarua.blogspot.com/p/cartas.html).
“Agora, você … C R E S C E U. Coragem Sonhos Inteligência Sabedoria. Está pronto por dentro e por fora. Uma pessoa inteira. Humanidade Solidariedade Entusiasmo Amor. Assim Carolina Nogueira conta e também ilustra a história de você. Certamente ela está falando de seu filho, entre o Antes e o Para Sempre. Também ela vai falar e ilustrar A Rua de Todo Mundo, “livro que nasceu da generosa colaboração dos meus amigos do mundo todo”, numa história “da maior rua do mundo, a mais legal de todas. A rua de todo mundo”. Uma rua na qual “os vizinhos são ao mesmo tempo diferentes e bem parecidos”. Eu cheguei a esses livros “infantis” de Carolina Nogueira, da forma como em geral se chega a essas histórias escritas para crianças, mas que nos alcançam de modo inesperado (http://estadodedireito.com.br/a-rua-de-todo-mundo/).
Assim também nesse Rabeca Conquista a Orquestra, Luciana Lorens Braga, contando com belas ilustrações de Cássia Rangel, embala em estórias para crianças formas imaginativas para atravessar no real o sombrio de tempos tanáticos, ensandecidos. Com “sons e sonhos” diz seu prefaciador Léo Dantas que, tal qual a autora, “gosta de brincar com as palavras”.
Com seu personagem Luciana mostra que “a música é sempre feita de um encontro” mesmo para que se imagina bastante sozinho, porque mesmo sozinho “mesmo assim é possível haver um encontro – aliás tantos encontros! O encontro entre sua voz e suas lembranças, entre o som da natureza e os ruídos do seu corpo, entre o som e o silêncio”, movendo sentimentos capazes até de transformar “um pedaço de madeira” fazendo nascer uma personalidade (a Rabeca da narrativa) capaz de “encantar, fazer muitos amigos, viajar pelo mundo”.
Luciana Lorens Braga, assim como as autoras trazidas aqui neste Lido para Você, todas plurais e multidimensionais, é psiquiatra e psicanalista, doutora (Unifesp) nesse campo, mas “aposta nas próprias loucuras como forma de ser feliz e escrever é uma delas”. E desse modo, poder brincar com as palavras, “como faz com seus contos, poemas e histórias para crianças”.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Direitos Humanos: Diversos Olhares. Vanessa Maria de Castro, Cléria Botêlho da Costa, Nair Heloisa Bicalho de Sousa, Alexandre Bernardino Costa (Organizadores). Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2021,214 p.
Já circula, em primorosa edição, essa bela obra gerada no ambiente fecundo de estudos e pesquisas proporcionado pelo Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, da Universidade de Brasília.
Chamo a atenção para o Sumário do livro:
Apresentação ,Vanessa Maria de Castro
Discretas esperanças: memória e direitos humanos , Viviane Fecher e Cléria Botêlho da Costa
A justiça, a verdade e a memória na perspectiva das vítimas, José Geraldo de Sousa Junior e Sueli Aparecida Bellato
A OAB e o Direito no país das maravilhas: entre o autoritarismo e a democratização social do Brasil contemporâneo, Fredson Oliveira Carneiro
O direito de contar: memória, história, literatura , Lúcia Helena Cavasin Zabotto Pulino
Tráfico de pessoas: entre a governança pelo crime ou pelos direitos , Ela Wiecko Volkmer de Castilho
Formação de cuidadores de pessoas com deficiência em/para direitos humanos, Júlia Salvagni e Regina Lucia Sucupira Pedroza
Saberes descolonizados e interdisciplinaridades rumo à efetivação de direitos humanos, Andréa Freire de Lucena e Luciana de Oliveira Dias
O Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos: trajetória e percepções, Danúbia Régia da Costa e Nair Heloísa Bicalho de Sousa
O cotidiano da sala de aula: uma busca por direitos humanos ao diálogo, Bárbara Silva Diniz e Vanessa Maria de Castro
Reporto-me à Apresentação da obra, redigida pela Professora Vanessa Maria de Castro: “é uma produção acadêmica de docentes e discentes do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania da Universidade de Brasília (PPGDH/UnB) e convidados. O livro espelha o esforço que pensadores e pensadoras dos direitos humanos estão tendo para construir um diálogo permanente entre teoria e práxis com uma visão interdisciplinar no fazimento dos direitos humanos na academia”.
Tal como se depreende do Sumário e está na Apresentação, o livro tem nove artigos que versam sobre memória, história, políticas públicas, educação e movimentos sociais em que os direitos humanos estão em permanente debate.
É importante ressaltar que este livro começou a ser construído no ano de 2015, mas sua publicação somente foi possível em 2018. Muitas das reflexões que constam neste livro são fruto de um cenário brasileiro no qual havia estabilidade política institucional. O cenário político brasileiro mudou consideravelmente nestes dois últimos anos após o impeachment da presidenta Dilma Rousseff.
Ainda na Apresentação, um esclarecimento: este livro chama-se Direitos Humanos: Diversos Olhares. As lentes que os/as autores/as usaram expressam seu lugar de fala, e essas falas foram construindo um mosaico de enredos que permeiam o fazimento dos direitos humanos em diferentes áreas do conhecimento. O livro é uma linda coletânea de experiências, vivências e fazimentos dos direitos humanos na vida das autoras e dos autores.
Para os Organizadores, os temas abordados permeiam os direitos humanos em diversas perspectivas, assim destacadas nos enunciados dos artigos que o compõem é importante mencionar – dizem – que a Universidade de Brasília, a partir de 2012, criou o Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania (mestrado e doutorado), vinculado ao CEAM – Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares, com uma proposta estruturante interdisciplinar para pensar os direitos humanos em sua complexidade.
A obra, pois, “é fruto deste encontro fabuloso entre docentes da UnB e universidades convidadas com as primeiras e os primeiros mestres em Direitos Humanos e Cidadania…Trata-se de uma contribuição acadêmica e afetiva valiosa que nos ajuda a refletir sobre os dilemas que a nossa sociedade vislumbra cotidianamente em função das múltiplas violações dos direitos humanos”.
Pedro Demo, professor emérito da UnB e integrante do PPGDH (Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania), dá relevo à edição lembrando que “os direitos humanos representam um dos saltos civilizatórios mais incisivos da sociedade humana, uma conquista ímpar de muita gente que considera a dignidade humana referência fundante da vida”. Para esse grande mestre, toda sociedade tem problemas: “precisamos saber justificar suas razões: até que ponto aceitamos tolerar ou não tolerar, como podemos conviver em ambientes recíprocos, que tipo de país queremos construir para a nossa e as futuras gerações, como podemos nos livrar de fantasmas do passado para termos um futuro que a todos dignifique, como nos inserimos que pretende “tecer esta história juntos, trecho por trecho, esperando que nosso trabalho conjunto acrescente horizontes condizentes, sendo protagonistas marcantes desta sociedade, de modo que ela nos honre de que nós também a honremos”.
Contribui para a obra, em texto assinado com Sueli Aparecida Bellato, no capítulo “A justiça, a verdade e a memória na perspectiva das vítimas”. No resumo se diz que o texto – inscrito nos parâmetros da Justiça de Transição – suscita algumas indagações, aliás, postas nesses termos na dissertação de Sueli sobre o tema, defendida no PPGDH sob minha orientação: qual é a pertinência e a compatibilidade do perdão na Justiça de Transição e se ela poderá colaborar com a categoria da memória em relação aos fatos ocorridos no período da ditadura civil-militar imposta no Brasil entre 1964 e 1985? Qual é o papel da Comissão de Anistia e se foi feita justiça às vítimas com base na perspectiva dos trabalhos dessa Comissão? Por que o tema da anistia gera tanta indagação no Brasil?
No debate, a partir dessas questões, avançamos respostas teóricas que se projetam em estudos já adensados com as perspectivas e a interlocução que são propiciadas pelas linhas de pesquisa do Grupo O Direito Achado na Rua. Para a referência de ancoragem a esses estudos, a referência é o volume 7, da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica à Justiça de Transição na América Latina (Brasília: Universidade de Brasília/CEAD/Ministério da Justiça/Comissão de Anistia, 2015).
Mas o mais importante é fortalecer a disposição para o nunca mais, principalmente nessa conjuntura obscurantista que, à falta de responsabilização dos perpetradores de violações aos direitos na experiência autoritária recente vivenciada no país, abre ensejo para que as vocações autoritárias voltem a se assanhar para novos assaltos à democracia e aos direitos humanos.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
O Direito Achado na Rua – volume 10. Introdução Crítica ao Direito como Liberdade.
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
O Direito Achado na Rua – volume 10. Introdução Crítica ao Direito como Liberdade. Organizadores: José Geraldo de Sousa Junior, Alexandre Bernardino Costa, Nair Heloisa Bicalho de Sousa, Antonio Sergio Escrivão Filho, Adriana Andrade Miranda, Adriana Nogueira Vieira Lima, Clarissa Machado de Azevedo Vaz, Eduardo Xavier Lemos, Ísis Dantas Menezes Zornoff Táboas, Renata Carolina Corrêa Vieira, Vanessa Negrini. Brasília: Editora UnB/Editora OAB Nacional, 2021, 728 p. Link para Acesso Livre na Plataforma de Livros Digitais da Editora da UnB: https://livros.unb.br/index.php/portal/catalog/view/116/106/467-1.
LANÇAMENTO: Já está disponível para baixar gratuitamente na página da Editora UnB o volume X da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade.
LANÇAMENTO: Já está disponível para baixar gratuitamente na página da Editora UnB o volume X da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade.
“Nesta edição comemorativa, que marca os 30 anos de O Direito Achado na Rua, pudemos repensar nossa experiência histórica e avaliar suas possibilidades ainda expansíveis e interpelantes”. José Geraldo de Sousa Júnior
O direito como ‘expressão de uma legítima organização social da liberdade’ constitui o marco conceitual original do projeto denominado O Direito Achado na Rua. Nascido há 30 anos em meio à resistente beleza do Cerrado, O Direito Achado na Rua floresce no ambiente histórico dos trabalhos da Assembleia Constituinte, para constituir-se em um projeto de formulação de uma nova concepção de direito, em uma nova sociedade que se anunciava mais livre, justa e solidária, e que por seu turno apresenta hoje dilemas e desafios que nos convocam à reflexão-ação.
Na Apresentação da obra, dizemos nós as suas organizadoras e os seus organizadores que, assim, ao impulso desse percurso, foi que construímos o Seminário “30 Anos de O Direito Achado na Rua: O Direito como Liberdade”, que se constituiu como um espaço de encontro e diálogo científico, institucional, social e cultural, proporcionando a troca de experiências acadêmicas e de assessorias jurídicas universitárias, a povos indígenas e comunidades tradicionais e advocacia popular em diversos campos temáticos e institucionais. O evento consagrou-se como um espaço para debater temas como o combate ao racismo, à violência contra a mulher e à população LGBT e projeção de conceitos e práticas aptas ao reconhecimento das diversidades raciais, econômicas, sociais, étnicas, culturais, de gênero e sexualidades, em suas diferentes formulações semânticas sobre o direito em face dos espaços sociais, autoridades estatais e instituições judiciais.
É nesse contexto que surge a presente obra, com sentido plural, ora de revisitar os conceitos teóricos e epistemológicos de O Direito Achado na Rua, desde a sua concepção até os momentos atuais, a partir de suas linhas de pesquisa, ora para se projetar em novas formulações teóricas e práticas, a partir de uma atualização de temas que hoje, há exatos 30 anos da sua concepção, se reconhece a urgência e necessidade de sua abordagem, sem os quais não se é possível a formulação de um projeto de sociedade livre, justo e solidário, como os são a pauta antirracista e antipatriarcal.
Este volume se apresenta também como uma compilação de autoria do coletivo de pesquisadoras e pesquisadores de O Direito Achado na Rua, bem como intelectuais e representantes de movimentos sociais que ao longo desses 30 anos compõem a fortuna crítica do Direito, e que historicamente estiveram sempre em diálogo com O Direito Achado na Rua, além de anunciar novas e atuais parcerias para a construção de agendas em comum na dimensão teórica e prática.
Neste contexto, a presente obra se constitui como um espaço com disposição e potencial para colecionar elementos temáticos e estéticos, modos de interpretar, de narrar e de instituir redes e plataformas para a conformação teórico-prática dos protocolos de pesquisa e extensão que se projetaram e se projetarão no tempo, refletindo sobre o atual momento de crise paradigmática do direito e da sociedade brasileira.
Nesta edição, que forma o Volume X da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade, com os selos da Editora UnB e da OAB Editora, na intrincada narrativa e consistente tessitura analítica do conjunto de leituras de um formidável elenco de expositores – formado por uma centena de autores e autoras provenientes dos espaços acadêmicos e políticos alcançados pela projeção de O Direito Achado na Rua nos Estados Unidos, México, Peru, Chile, Argentina, Espanha, Portugal e de todas as regiões do Brasil – pudemos repensar nossa experiência histórica e avaliar suas possibilidades ainda expansíveis e interpelantes.
De certo modo, esse acervo responde a uma questão de saída: neste ano, que se comemora os 30 anos do Direito Achado na Rua, o que se pode dizer sobre o surgimento desta proposta e que contribuições ela trouxe para o campo jurídico brasileiro ao longo das três últimas décadas?
Anais Eletrônicos do Seminário Internacional O Direito como Liberdade: 30 anos de O Direito Achado na Rua (ISBN nº 978-65-00-07309-6). Organizadores e Organizadoras: José Geraldo de Sousa Junior, Alexandre Bernardino Costa, Nair Heloisa Bicalho de Sousa, Antonio Sergio Escrivão Filho, Adriana Andrade Miranda, Adriana Nogueira Vieira Lima, Clarissa Machado, Eduardo Xavier Lemos, Renata Carolina Corrêa Vieira, Vanessa Negrini. https://direitoachadonarua.wordpress.com/ – https://youtu.be/WrG94OwxYYo.
Aqui neste espaço da Coluna Lido para Você, ofereci uma resenha desse material – http://estadodedireito.com.br/anais-eletronicos-do-seminario-internacional-o-direito-como-liberdade-30-anos-de-o-direito-achado-na-rua/ – indicando o modo de conferir os artigos completos apresentados nos Grupos de Trabalho, os relatórios das Oficinas, a produção artística, as fotos e as filmagens das exposições em todas as Mesas-Redondas, depoimentos, do grande evento, representado pelo Seminário Internacional O Direito como Liberdade: 30 Anos de O Direito Achado na Rua, instalado em associação com o III Congresso Internacional de Direitos Humanos e Cidadania, evento coordenado pelo Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania (PPGDH/CEAM), considerado por tudo isso, pelo Professor Antonio Carlos Wolkmer um dos convidados, “o maior acontecimento jurídico do ano de 2019”.
E foi mesmo, sem modéstia, e não só porque sua agenda impressiona, mais de 600 inscritos como participantes efetivos e 480 trabalhos pré-aprovados para os Grupos de Trabalho, Oficinas e Sessões de Pôsteres. Mas também porque teve espírito, alma, sensibilidade, afeto, da abertura ao encerramento, comprovando, como pensava Rousseau (Um Discurso sobre as Ciências e as Artes, 1750), que o conhecimento só tem valor se contribuir para a felicidade humana.
INTRODUÇÃO: O Direito Achado na Rua 30 Anos
AS UNIVERSIDADES E SEU PAPEL PARA A PROMOÇÃO DA CIDADANIA E A DEFESA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Márcia Abrahão Moura, Mônica Nogueira
ABERTURA: saudação do Diretor da Faculdade de Direito
Mamede Said Maia Filho
ENTREVISTA COM ROBERTO LYRA FILHO SOBRE A CRIAÇÃO DA NOVA ESCOLA JURÍDICA BRASILEIRA (NAIR), SEGUIDA DO PROGRAMA POR ELE ORGANIZADO PARA O CENTRO DE ESTUDOS DIALÉTICOS: O Direito Achado na Rua. Rascunhos inéditos
Roberto Lyra Filho
DO QUE FALAMOS QUANDO FALAMOS SOBRE DIREITO
Richard L. Abel
DA EXPANSÃO JUDICIAL À DECADÊNCIA DE UM MODELO DE JUSTIÇA Boaventura de Sousa Santos
Seção I – 30 anos de O Direito Achado na Rua: desafios da Teoria Crítica do Direito no Brasil e na América Latina
O DIREITO ACHADO NA RUA: questões de teoria e práxis
José Geraldo de Sousa Junior
DESAFIOS DE LA TEORÍA CRÍTICA DEL DERECHO EN BRASIL Y EN LATINOAMERICA: democracia y Estado de Derecho a debate
María José Fariñas Dulce
O DIREITO ACHADO NA RUA ENQUANTO INSTRUMENTO DE CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS IGUALITÁRIAS E SUPERAÇÃO DE VALORES ANTIDEMOCRÁTICOS
Bistra Stefanova Apostolova
O DIREITO ACHADO NA RUA GARANTIDO PELA SUA EFICÁCIA MÍSTICA Jacques Távora Alfonsín
Seção II – Teorias críticas dos Direitos Humanos
O DIREITO ACHADO NA RUA E O NEOLIBERALISMO DE AUSTERIDADE Alexandre Bernardino Costa
DESIGUALDADES, “EFEITO MATEUS” E EXCEÇÃO SÓCIO-JURÍDICA
António Casimiro Ferreira
DIREITO ACHADO NA RUA, ENTRE LO CONSTITUYENTE, LO INSTITUYENTE Y LAS PRAXIS DE LIBERACIÓN
David Sanchez Rubio
PELA DESCOLONIZAÇÃO DO PODER NO SISTEMA DE JUSTIÇA: o caso da ocupação da Usina Hidrelétrica de Tucuruí pelo Movimento de Atingidos por Barragens (MAB)
Ela Wiecko de Castilho
NOVOS PARADIGMAS PARA A TEORIA DO DIREITO
Antônio Alberto Machado
A TRAJETÓRIA TEÓRICA E PRÁTICA DE O DIREITO ACHADO NA RUA NO CAMPO DOS DIREITOS HUMANOS: humanismo dialético e crítica à descartabilidade do ser humano
Alexandre Bernardino Costa, Diego Augusto Diehl, Eduardo Xavier Lemos, Mariana Rodrigues Veras
Seção III – Pluralismo jurídico e constitucionalismo achado na rua
PLURALISMO JURÍDICO COMUNITÁRIO-PARTICIPATIVO: processos de descolonização desde o Sul
Antonio Carlos Wolkmer
A CONTRIBUIÇÃO DO DIREITO ACHADO NA RUA PARA UM CONSTITUCIONALISMO DEMOCRÁTICO
Menelick de Carvalho Netto
CONSTITUCIONALISMO ACHADO NA RUA EN MÉXICO: de los acuerdos de San Andrés al concejo indígena de gobierno
Jesús Antonio de la Torre Rangel
O DIREITO À ALIMENTAÇÃO COMO UM DIREITO HUMANO COLETIVO DOS POVOS INDÍGENAS
Raquel Z. Yrigoyen-Fajardo
CONSTITUCIONALISMO ACHADO NA RUA: reflexões necessárias
Gladstone Leonel Júnior, Pedro Brandão, Magnus Henry da Silva Marques
Seção IV – O combate ao racismo e ao patriarcado: a epistemologia jurídica afro-diaspórica e feminista
O DIREITO ACHADO NA ENCRUZA: territórios de luta, (re) construção da justiça e reconhecimento de uma epistemologia jurídica afro-diaspórica
Luciana de Souza Ramos
ENEGRECENDO A TEORIA CRÍTICA DO DIREITO: Epistemicídio e as novas epistemologias jurídicas na diáspora
Maurício Azevedo de Araújo
AQUILOMBAR É PRECISO NO ENFRENTAMENTO AO RACISMO
Selma dos Santos Dealdina
DIREITO, RELAÇÕES RACIAIS, TERRITÓRIOS NEGROS E EPISTEMOLOGIAS AFRODIASPÓRICAS
Luciana de Souza Ramos, Emília Joana Viana de Oliveira
FEMINISMO CAMPONÊS POPULAR: uma afirmação histórica na luta por direitos das mulheres trabalhadoras do campo
GÊNERO, SEXUALIDADE E O DIREITO ACHADO NA RUA: da concepção à prática Lívia Gimenes Dias da Fonseca, Ísis Menezes Táboas, Fredson Oliveira Carneiro
Seção V – Educação para os direitos humanos e práticas emancipatórias de mediação: 10 anos do Núcleo de Estudos para a Paz e Direitos Humanos (NEP)
NÚCLEO DE ESTUDOS PARA A PAZ E DIREITOS HUMANOS (NEP): 30 anos
Nair Heloisa Bicalho de Sousa, Flávia Tavares Beleza
CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA CRÍTICA DOS DIREITOS HUMANOS PARA A EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS
Nair Heloisa Bicalho de Sousa, Sinara Pollom Zardo
A MEDIAÇÃO ENTRE O DIREITO ACHADO NA RUA E O PÓLOS DE CIDADANIA
José Eduardo “de Sousa” Romão
JUSTIÇA COMUNITÁRIA. JUSTIÇA E DEMOCRACIA MUITO ALÉM DOS TRIBUNAIS
Gláucia Foley
EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS ACHADA NA RUA: construção histórica e desafios atuais da EDH
Adriana Andrade Miranda, José Humberto de Góes Junior, Lilia S. Rodrigues da Costa Vieira, Nair Heloisa Bicalho de Sousa
Seção VI – Expansão judicial, direitos humanos e acesso à justiça no Brasil
EXPANSÃO JUDICIAL, DIREITOS HUMANOS E ACESSO À JUSTIÇA NO BRASIL: reflexões em meio aos 30 Anos de O Direito Achado na Rua
Fabio de Sá e Silva
ACESSO À JUSTIÇA E NEOLIBERALISMO: o direito a se achar na rua
Gabriela Maia Rebouças
CONSTRUÇÕES POLÍTICO-JURÍDICAS A PARTIR DA SOCIEDADE CIVIL: do Direito Achado na Rua aos Direitos Humanos como projeto de sociedade
João Batista Moreira Pinto
O ACESSO ‑ JUSTI.A NO BRASIL, A EXPANSÃO JUDICIAL E AS GARANTIAS FUNDAMENTAIS
Daniela Marques de Moraes
ACESSO À JUSTIÇA, TRADIÇÃO AUTORITÁRIA, REFORMAS E EXPANSÃO JUDICIAL SOB O OLHAR DE O DIREITO ACHADO NA RUA
Alberto Carvalho Amaral, Antonio Escrivão Filho, José Carlos Moreira Silva Filho, Talita Rampin
Seção VII – O direito achado nos rios e florestas: conflitos socioambientais, direitos indígenas e de povos e comunidades tradicionais
O DIREITO IMPURO: achado na floresta, na terra e no mar
Carlos Marés
DISPUTAS POR TERRA E DIREITOS NO CAMPO
Sérgio Sauer, Acácio Zuniga Leite, Luís Felipe Perdigão de Castro
O DIREITO QUE NASCE DA ALDEIA
Luiz Henrique Eloy Amado
TERRA TRADICIONALMENTE OCUPADA, DIREITO ORIGINÁRIO E A INCONSTITUCIONALIDADE DO MARCO TEMPORAL ANTE A PROEMINÊNCIA DO ART. 231 E 232 DA CONSTITUIÇÃO DE 1988
Adelar Cupsinski, Alessandra Farias Pereira, Cleber Cesar Buzatto, Íris Pereira Guedes, Rafael Modesto dos Santos, Roberto Antônio Liebgott
SUJEITO COLETIVO DE DIREITO E OS NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS: a luta por direitos de acesso à terra e território
Clarissa Machado de Azevedo Vaz, Renata Carolina Corrêa Vieira
Seção VIII – Movimentos sociais e os desafios da assessoria jurídica e advocacia popular
DIREITO E MOVIMENTOS SOCIAIS EM TEMPOS ILIBERAIS
Scott L. Cummings
DIREITO ACHADO NA RUA: por que (ainda) é tão difícil construir uma teoria crítica do Direito no Brasil?
Sara da Nova Quadros Côrtes
CONSTRUINDO A ASSESSORIA JURÍDICA POPULAR: teoria e prática na atuação da Terra de Direitos
Camila Cecilina Martins, Camila Gomes de Lima, Daisy Ribeiro, Élida Lauris, Jaqueline Pereira de Andrade, Luciana Cristina Furquim Pivato, Maira Souza Moreira, Naiara Andreoli Bittencourt, Pedro Sérgio Vieira Martins, Vercilene Francisco Dias
A ASSESSORIA JURÍDICA POPULAR E O DIREITO ACHADO NA RUA E NA PRÁTICA DO MST
ASSESSORIA JURÍDICA POPULAR EM TEMPOS DE BÁRBARIE: resistência, luta e memória histórica
Cloves dos Santos Araújo, Érika Lula de Medeiros, Helga Martins de Paula, Ludmila Cerqueira Correia, Pedro Teixeira Diamantino
EDUCAÇÃO POPULAR E PRÁXIS EXTENSIONISTA TRANSFORMADORA: a ação da Assessoria Universitária Popular e O Direito Achado na Rua
Adda Luisa de Melo Sousa, Gabriel Remus Macêdo, Jana Louise Pereira Carilho, Kelle Cristina Pereira da Silva, Marcos Vítor Evangelista Próbio, Maria Antônia Melo Beraldo, Moema Oliveira Rodrigues
Seção IX – Direito como liberdade: perspectivas para um novo projeto de sociedade
LA REFORMA INTELECTUAL Y MORAL DE BRASIL: derechos y hegemonía política
Alberto Filippi
DIREITO COMO LIBERDADE: perspectivas para um novo projeto de sociedade
Beatriz Vargas Ramos
OS MUNDOS DO TRABALHO NO BRASIL: desconstrução e resistência
Cristiano Paixão, Eneida Vinhaes Bello Dultra, José Eymard Loguercio
O DIREITO ANIMAL ACHADO NA RUA
Vanessa Negrini, Gabriela Jardon
DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS AO DIREITO À INFORMAÇÃO E À COMUNICAÇÃO
Elen Cristina Geraldes, Gisele Pimenta de Oliveira
O PAPEL DA OAB EM DEFESA DA DEMOCRACIA E DOS DIREITOS HUMANOS
Felipe Santa Cruz, Lorena Lima Moura Varão, Lourival Ferreira de Carvalho Neto
SOBRE OS ORGANIZADORES E ORGANIZADORAS
ARTE ACHADA NA RUA
Texto curatorial ± Por uma composição estética crítica
ARTISTAS
ANEXO A PROGRAMAÇÃO
O importante a considerar nessa abordagem, dizemos na apresentação desse volume 10, é que O Direito Achado na Rua se refere à atitude de reconhecimento que valoriza o protagonismo instituinte da cidadania ativa e dos movimentos sociais no processo legítimo de criação autônoma de direitos, num contínuo processo que agora, a partir do “Seminário Internacional O Direito como Liberdade 30 Anos de O Direito Achado na Rua”, este 10º volume da Série registra e põe em circulação para prosseguir o debate teórico e político que forma esta Introdução Crítica ao Direito como Liberdade.
Que a leitura desta obra recheada de experiências coletivas, utopias e paixões partilhadas possa impulsionar a tessitura de novos repertórios que se apresentem como lastro legitimador para a constituição ininterrupta de direitos que ainda estão por ser inventados, através da contínua subversão protagonizada pelos sujeitos coletivos de direitos que emergem das ruas, dos becos, das florestas, dos quilombos, das favelas, das encruzas, dos hospícios, das aldeias, dos cárceres, das águas dos rios e mares…
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
Este livro, dizem os Organizadores, foi escrito no ano de 2020, durante a pandemia da COVID-19, que atingiu o Brasil e o mundo. Embora seja arriscado fazer uma análise crítica da realidade enquanto estamos vivendo um momento histórico de crise mundial, ao mesmo tempo essa se torna ainda mais urgente. Tal como explicam:
A elaboração coletiva do livro deve-se à necessidade de buscar vários pontos de vista e diversas abordagens sobre os fenômenos que estão ocorrendo. Assim, foi possível termos uma perspectiva abrangente, mas também profunda, sobre a história da epidemia e suas consequências.
A singularidade brasileira justifica análises específicas por várias razões. O Brasil se tornou um dos principais centros de proliferação da pandemia no mundo, e consequentemente foco de atenção de todos os países e da Organização Mundial da Saúde – OMS. Temos um presidente da República que está a favor do vírus, e não contra a pandemia, conforme pesquisa realizada pelo CEPEDISA – Centro de Pesquisas em Direito Sanitário, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo – USP. Somado a isso, temos a ausência de coordenação por parte do Ministério da Saúde no enfrentamento à pandemia, o que ficou a cargo dos governadores e prefeitos.
Ademais, o presidente da República protagonizou uma disputa política com governadores, em especial com o governador de São Paulo, pela vacina, e, posteriormente, pela vacinação. Ele gerou descrédito na ciência e nas medidas eficazes de controle à pandemia.
Não houve campanha publicitária para informar a população sobre a progressão da pandemia e tampouco sobre as medidas para seu enfrentamento. Disseminou-se uma série de notícias falsas sobre um pretenso tratamento precoce a ser ministrado com hidroxicloroquina, ivermectina e azitromicina.
Também foram divulgadas notícias falsas a respeito da vacina, da própria doença e das medidas adotadas para a sua contenção. Toda essa situação descrita se assemelha aos episódios que ocorreram há mais de cem anos, durante a pandemia de gripe espanhola no Brasil.
O uso de máscaras representa um capítulo à parte, pois, o presidente e seus seguidores divulgaram que estas não eram necessárias e ainda geravam efeitos negativos para a saúde de quem as usasse. O presidente da República foi às ruas por várias vezes sem máscara, causando aglomerações e tocando nas pessoas, o que constitui uma forte propaganda contra a saúde e, por conseguinte, a favor do vírus.
O conjunto de fatos ocorridos – em um país de desigualdades abissais como o Brasil – resulta em índices de contaminação e mortes alarmantes. É necessário que sejam feitas análises acerca dos efeitos da pandemia e do desgoverno sobre a população e, consequentemente, sobre o sistema de direitos.
Também, como informam os Organizadores, as análises realizadas pelas autoras e autores, reunidos no coletivo de pesquisa liderado pelo professor Alexandre Bernardino Costa, se distribuem em três partes e respectivos capítulos que formam o Sumário do livro.
Os Organizadores oferecem na Apresentação o roteiro para a leitura:
A primeira parte traz estudos relacionados à conjuntura econômica e social do país e aos caminhos que aprofundam as desigualdades. A análise da lógica neoliberal, como a nova razão do mundo, está presente em diversos artigos como um fator que agrava as consequências e os desdobramentos da pandemia da COVID-19.
Neste sentido, Alexandre Bernardino Costa busca estabelecer a relação entre a desigualdade existente no Brasil, a política econômica neoliberal e sua conexão com a crise sanitária decorrente da pandemia da COVID-19. Em um texto estruturado em cinco partes, o autor analisa o contexto de desenvolvimento do neoliberalismo no Brasil, seus pressupostos epistemológicos, bem como a correlação entre democracia, autoritarismo e neoliberalismo. Busca demonstrar como o desenvolvimento do discurso neofascista está associado ao discurso neoliberal e apontar a relação entre neoliberalismo e saúde – como uma economia desumana – a qual foi agravada por uma pandemia e por uma sociedade profundamente desigual.
Em seguida, Claudiane Carvalho e Priscila Kavamura se propõem a analisar os reflexos das crises provocadas pela razão neoliberal e pela pandemia da COVID-19 no Brasil, concluindo que os cortes ocasionados pela Emenda do Teto de Gastos Públicos deixaram o Brasil mais vulnerável para o enfrentamento da crise sanitária provocada pelo coronavírus, pois áreas essenciais foram duramente afetadas pela referida Emenda Constitucional. Assim, a atual crise sanitária irá contribuir para o aprofundamento das desigualdades, haja vista a convergência de crises já existentes e também ao fato de a austeridade fiscal, fruto da razão neoliberal, ter sido uma das principais aliadas da COVID-19 no país.
Manuel Gándara analisa os direitos humanos e sua relação com o capitalismo a partir de uma perspectiva da economia política. O autor ressalta que os direitos humanos são vistos somente com aspectos estritamente jurídicos, ao invés de serem abordados com uma perspectiva social, política e econômica. Analisar as políticas de direitos humanos a partir das relações de poder configura uma abordagem possível e necessária para enfrentar os desafios contemporâneos.
José do Carmo Alves Siqueira e Carlos Eduardo Lemos Chaves apresentam o histórico das terras comuns e das comunidades dos fundos e fecho de pasto. Apresentam o processo de grilagem de terras públicas, ou seja, a transformação em terras privadas daquelas que eram de uso comum. Analisam também os processos mais recentes que estabeleceram marcos temporais para o reconhecimento das terras públicas, tudo isso associado à crise sanitária da atualidade.
Gladstone Leonel Júnior expõe a crise paradigmática do estado liberal frente à crítica latino-americana em tempos de crise sanitária. A pandemia trouxe à tona o esgotamento do paradigma liberal, sobretudo se pensado diante da realidade latino-americana – que passa por uma crise de proporções nunca antes vivenciadas e que afeta a economia e a organização da sociedade. Somente uma abordagem teórica a partir da América Latina possibilitará a compreensão de tamanha complexidade.
Diego Mendonça nos propõe uma discussão sobre a racionalidade neoliberal em tempos de pandemia. O artigo perpassa a formação histórica nacional com suas desigualdades e a naturalização da violência, o pós-2016 e a intensificação de práticas desconstituintes, a hegemonia de uma racionalidade neoliberal e a emergência de um vírus mortal que potencializa as ações de um governo adepto da necropolítica. Afirma o autor que a naturalização das desigualdades tem um efeito ainda maior durante a crise sanitária. A saída seria a busca do comum e o resgate da Constituição de 1988.
Pedro Pompeo Pistelli Ferreira e Gabriel Pompeo Pistelli Ferreira realizam uma pesquisa sobre a pauta e as reivindicações das elites brasileiras no momento de crise econômica, política e sanitária decorrente da pandemia da COVID-19. Ao analisarem os Diálogos pelo Brasil, gerado pela FIESP e o presidente do Supremo Tribunal Federal à época, Dias Toffoli, esclarecem os postulados neoliberais subjacentes às reivindicações dos participantes.
Por fim, Sérgio Sauer, Patrícia da Silva, Guadalupe Souza Sátiro e Cléa Anice da Mota Porto provocam uma leitura atenta e uma reflexão sobre ações, omissões, desfeitos, ilegalidades e violências do atual governo nas áreas ambiental e sociais no campo brasileiro em tempos de COVID-19. Expõem o desmantelamento das políticas sociais voltadas às populações vulnerabilizadas e o emprego da necropolítica, principalmente, na área ambiental. Revelam que a crise sanitária tem origem estrutural e alertam para o risco de serem irreversíveis os retrocessos ocorridos em diversas áreas na gestão 2019-2022.
A segunda parte do livro tem como foco a crise sanitária e o coronavírus, trazendo artigos com análises específicas dos impactos da pandemia, principalmente no solo brasileiro.
Inicialmente, Magnus Henry da Silva Marques analisa a relação entre os entes federativos do Brasil no enfrentamento da pandemia de COVID-19 e afirma que o processo desconstituinte, iniciado mais fortemente em 2016, foi ampliado por ocasião da crise sanitária. O autor destaca que a resistência e a criação de obstáculos pelo governo federal na implementação de medidas de saúde pelos estados e municípios, constituem um federalismo conflitivo ao invés de um federalismo cooperativo, conforme disposto na Constituição Federal.
Valdirene Daufemback e João Victor Rodrigues Loureiro estabelecem uma reflexão sobre o avanço da pandemia no sistema prisional brasileiro. Segundo os autores, as prisões brasileiras não se constituem como bolhas de isolamento – como foi afirmado no início da pandemia – ao contrário, a prisão é um sistema de exclusão e estigmatização. As condições precárias e a carência do serviço de saúde no sistema penitenciário revelam acentuada desigualdade e as dificuldades para a implementação de uma política de saúde para a sociedade brasileira como um todo.
Cristina Zackseski e Julio Torrazza abordam a desigualdade no que tange à privação de liberdade – tanto para aqueles que estão no cárcere quanto para os que estão fora dele – no contexto da pandemia do COVID-19. Nossos autores desenvolvem comparações entre as pessoas privadas de liberdade por encarceramento no Brasil e na Espanha, ressaltam o confinamento que a população em geral teve que se submeter, bem como as diferenças entre as classes sociais neste confinamento. Os riscos decorrentes são o reforço da desigualdade e a naturalização do fechamento e a privação de liberdade.
Fernanda Amim Sampaio Machado aborda a relação que existe entre o direito à cidade e a crise sanitária. A pandemia revelou desigualdades estruturais nos centros urbanos brasileiros, em especial no Rio de Janeiro. Como em outros aspectos abordados pela autora, as políticas públicas implementadas por ação e omissão dos poderes públicos resultam em garantia de direitos ou em processos de exclusão nesta cidade.
Amanda de Machado Liz expõe a experiência cubana de combate à COVID-19. Nossa autora desenvolve a história do sistema de saúde pública de Cuba. O êxito no combate à pandemia decorre do alcance dos profissionais de saúde a toda a população, testagem em massa, isolamento dos infectados e permanente checagem dos sintomas. Com larga tradição em saúde pública, Cuba enfrenta a pandemia com bastante eficácia, inclusive com o desenvolvimento de pesquisas para a produção de vacinas.
Eduardo Gonçalves Rocha, Márcia Cristina Puydinger de Fazio, Amanda Inara de Brito Santana e Rozemberg Batista Dias, abordam a agricultura familiar para a garantia do direito humano a alimentação adequada em um contexto de crise sanitária. Ressaltam que o programa de aquisição de alimentos poderia ser utilizado como mecanismo de enfrentamento à crise sanitária, tanto pela questão alimentar, quanto pelo fortalecimento da agricultura familiar.
Luísa de Pinho Valle escreve com Maria André Alice dos Santos sobre a experiência agrícola lógica e o cuidado pela vida no assentamento quilombola Dandara dos Palmares, em Camamu-BA. O cenário de crise sanitária decorrente da pandemia ressaltou ainda mais a importância das práticas transformadoras realizadas pelas mulheres na comunidade. A partir de uma leitura pluriepistêmica que privilegia os ecofeminismos, a ecologia política, o pós colonialismo e a decolonialidade, apontam caminhos possíveis a serem seguidos em uma sociedade mais integrada.
Joelma Melo de Sousa e Maria Cristina P. Serafim apresentam o Ayurveda como prática integrativa, que possibilita o cuidado de si, do outro e do mundo, para que possam ser adotados cuidados básicos de saúde que tratem do corpo, das estruturas sociais, das formas de ser e existir, das comunidades e da própria terra.
A terceira e última parte aborda os direitos sob ameaça em tempos de crise sanitária, com disputas, cenários agravados pelo coronavírus e a possibilidade de responsabilização dos responsáveis pela má gestão da pandemia.
No primeiro texto dessa parte, Lauro Gurgel de Brito, oriundo de Mossoró-RN, expõe a disputa por saneamento básico em meio a pandemia e a crise sanitária. Centraliza análise na região Nordeste do país, afirmando o direito ao abastecimento de água potável e ao esgotamento sanitário. Utiliza-se de dados do Instituto Brasileiro de Geografia Estatística – IBGE, para afirmar que o agravamento da crise sanitária na região, bem como os problemas sociais dela decorrentes tem como causa a privatização e mercantilização da água e do saneamento.
Diogo Bacha e Silva e José Ribas Vieira fazem uma reflexão e análise jurídico-crítica sobre a crise sanitária a partir dos argumentos da filosofia da libertação latino-americana, com aportes teóricos da modernidade/colonialidade. Ao analisarem a atuação do Supremo Tribunal Federal na pandemia, os autores revelam os bloqueios institucionais que resultam em um totalitarismo no tecido social.
Bruno Fischgold e Larissa Benevides desenvolvem uma pesquisa acurada sobre a responsabilidade civil pelos danos causados à população brasileira pela gestão inadequada da política de saúde pública no combate a pandemia de COVID-19. A conclusão do trabalho é que, uma vez comprovado o nexo causal entre o contágio e a conduta do Governo, com os danos decorrentes, o Estado responderá pelos prejuízos causados aos cidadãos e seus familiares.
Diego Augusto Diehl, Aridiane Alves Ribeiro e Helga Maria Martins de Paula desenvolvem seu texto abordando a crise sanitária, com enfoque nos dados referentes à contaminação e morte de mulheres gestantes e puérperas. Afirmam os autores que existe, por parte do governo federal, uma necropolítica em relação a populações vulnerabilizadas e buscam identificar quais seriam as populações consideradas “descartáveis”. Identificam ainda os critérios definidos tanto pela economia política quanto por aspectos raciais que se manifestam nos índices de mortalidade de pessoas negras, incluindo o caso das gestantes.
Por fim, o trabalho de Christian Caubet e Maria Lúcia Brezinski desenvolve uma análise sobre o papel do desenvolvimento econômico na sociedade contemporânea, seus efeitos nas comunidades e na natureza, tendo como exemplo os desastres na exploração mineral da Vale do Rio Doce e os impactos dessa mentalidade na destruição do planeta terra. Os enfoques teóricos são retirados da teoria sociológica de Pierre Bourdieu.
A convite dos Organizadores, eu e minha colega Talita Tatiana Dias Rampin fizemos o Prefácio do livro, numa abordagem atenta Á orientação crítica presente na obra, que foi por nós inscrita na consigna: “Somos todos culpados”.
Inspirou-nos, não fosse essa uma produção cultivada no solo acadêmico da UnB, às vésperas do centenário de seu Darcy Ribeiro, cujas reflexões sobre os desafios que precisamos enfrentar, tendo “O Brasil como um problema”, ainda persistem.
Assim é que dissemos no Prefácio, que quando Darcy Ribeiro, na década de 1990, escreveu o texto intitulado “Somos todos culpados”, que inclusive foi reeditado em 2010, pela Fundação Darcy Ribeiro e pela Editora Universidade de Brasília, ele utilizou a primeira pessoa do plural (somos) para tratar da “nossa elite”, ou seja, da elite brasileira, e denunciar o papel por ela desempenhado na manutenção das desigualdades. Segundo ele, “A característica mais nítida da sociedade brasileira é a desigualdade social que se expressa no altíssimo grau de irresponsabilidade social das elites e na distância que separa os ricos dos pobres, com imensa barreira de indiferença dos poderosos e de pavor dos oprimidos”.
De desigualdade trata o livro e, com Darcy, pensando em uma desigualdade que tem direta relação com a ordem econômica vigente e que, segundo ele, “nada mais tem a dar ao Brasil, senão miséria e mais miséria”.
Uma desigualdade que pode – e deve – ser enfrentada e superada, mas que, por escolha política, segue moldando a sociedade e servindo ao neoliberalismo.
A atualidade dessas reflexões expressa a visualização de questões estruturais que atravessam a realidade brasileira e que, no contexto da pandemia da COVID-19, ganharam uma nova tônica, dado as dimensões que a crise sanitária adquiriu em nosso contexto. “A situação do Brasil é tão grave que só se pode caracterizar a política econômica vigente como genocida”, afirmou o autor, na década de 1990. Retirado de seu contexto original, é plenamente aplicável aos dias de hoje.
Nesta obra, “Desigualdade, crise sanitária e direitos”, os Organizadores, as autoras e os autores, em seu conjunto, promovem uma análise bastante precisa sobre os caminhos que foram sendo percorridos, no Brasil, para alcançar uma compreensão integral das crises que estamos vivenciando. No percurso, partem de uma análise da conjuntura econômica e social, para, na sequência, denunciar os diferentes aspectos das crises relacionadas à saúde e aos direitos.
A pandemia intensificou amplos processos de violações e violências que historicamente vimos serem praticados, ao ser contexto e pretexto para a implementação de políticas que não dedicaram esforços a salvar vidas ou prevenir o contágio. Em nosso país, infelizmente, ela encontrou um cenário político e econômico perfeito para viabilizar a demonstração de toda a sua força devastadora, com a intensificação do desempregado, da fome e da morte. Encontrou, retomando a expressão adotada pelas autoras Claudiane Silva Carvalho, que também organiza a obra, e Priscila Moura, a “tempestade perfeita”, “haja vista as inúmeras crises que se sucedem e se entrelaçam, causando uma situação de caos sem precedentes.” Inclusive, enquanto escrevemos este texto, quase meio milhão de brasileiras e brasileiros morreram em virtude da COVID-19.
“A crise sanitária tem origem estrutural”, alertam a organizadora e o organizador da obra. Consonante a isso, dissemos em obra que organizamos juntamente com o colega Alberto Amaral, “que em uma realidade marcada por profundas desigualdades na distribuição de renda e elitização, que permite que uma minoria detentora de capital tenha a possibilidade de se afastar de espaços de aglomeração, ainda que temporariamente – já que muitos simplesmente assim não o fizeram, seja porque possuem recursos e privilégios suficientes para acessarem meios de manterem o negacionismo científico e a desconsideração humana, que é diariamente reafirmado por discursos exaltados, infantis, pueris e tresloucados de determinados representantes estatais, que lograram êxito a partir do nada, do absurdo, do irracional -, outra integrada por grupos sociais excluídos, marginalizados, constituído pela classe trabalhadora, segue em relações profundamente marcadas pela precarização e negação da vida, subordinados que estão à obrigação de se exporem e transitarem em períodos pandêmicos para assegurar renda mínima pessoal e para sua família. Isso sem mencionar a seletividade no recorte do acesso aos novos espaços de convivência social, que ainda se apresentam distantes para as populações mais pobres, tecnológica e economicamente (cf. nosso Direitos Humanos & Covid19. Grupos Sociais Marginalizados e o Contexto da Pandemia. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2021, p. 23-24).
Esse quadro se agudiza, mostram os estudos reunidos nesta obra, num quadro de austeridade econômica que, mais que uma elegância semântica para amansar a voracidade do sistema de acumulação, alimenta “o engenho de moer gentes”, voltando a Darcy Ribeiro, que coisifica o humano e mercadoriza a vida.
Nesse contexto, até a governamentalidade que parece um placebo eficiente para ocultar a voracidade do capital no fundo, representa uma complexa combinação entre o arcaico e o moderno, tomadas essas expressões em sentido sociológico. Algo que foi bem representado por Thiago Arruda Queiroz Lima em tese defendida no programa interinstitucional de doutorado UnB/UFERSA, aliás, sob a orientação do professor Alexandre Bernardino Costa (a tese transformada em livro, intitulado “Neoliberalização da Justiça no Brasil: Modo Governamental de Subjetivação, Dispositivo Jurisdicional de Exceção e a Constituição como Custo”, publicado pela Editora Lumen Juris, em 2020).
Para o autor, “contida nas reflexões sobre penalidade e governo e sobre a relação entre as tecnologias de poder trazidas ao longo da tese, é importante e mesmo indispensável, para que não se tome a razão neoliberal como uma marcha iluminista ao progresso ou como uma produção indefinida de liberdade e liberalização. É sob uma espiral de modernização do arcaico e de arcaização do moderno que a governamentalidade se reproduz através da neoliberalização da justiça. Em outras palavras, é também multiplicando a penalidade, a exceção soberana e o autoritarismo judicial que a racionalidade neoliberal realiza seus pretensamente modernizadores cálculos de eficiência”.
No livro, na reflexão do próprio professor Alexandre Bernardino Costa, autor e co-organizador da obra, busca-se “estabelecer a relação entre a desigualdade existente no Brasil, a política econômica neoliberal e sua conexão com a crise sanitária decorrente da pandemia da COVID-19”. Ele analisa o contexto de desenvolvimento do neoliberalismo no Brasil, seus pressupostos epistemológicos, bem como a correlação entre democracia, autoritarismo e neoliberalismo, de modo a demonstrar como o desenvolvimento do discurso neofascista está associado ao discurso neoliberal e apontar a relação entre neoliberalismo e saúde – como uma economia desumana – a qual foi agravada por uma pandemia e por uma sociedade profundamente desigual.
Isso isenta a rendição conformista a esse estado de coisas?
Cremos que não, afirmamos Talita Rampin e eu no Prefácio. Identificar ou reconhecer as causas não se confunde em render-se a elas ou seus efeitos. Com as autoras e autores da obra, devemos ousar refletir sobre os problemas que assolam a população, construir alternativas políticas e econômicas para a superação do cenário atual, e questionar, ecoando Darcy Ribeiro, “que culpa temos, enquanto classe dominante, no sacrifício e no sofrimento do povo brasileiro. Somos inocentes? Quem, letrado, não tem culpa neste País dos analfabetos? Quem, rico, está isento de responsabilidades neste País da miséria? Quem, saciado e farto, é inocente neste País da fome?”.
Sob diferentes abordagens, a presente obra coletiva trata a pandemia da COVID-19 e sua desastrosa gestão no Brasil, trazendo um histórico do que está ocorrendo no país, dá subsídios para estudos futuros, haja vista que, infelizmente, o fim dessa enorme crise sanitária não parece estar próximo. Mas, sobretudo ativa uma consciência infeliz a partir do social e da exigência de responsabilidade que a todos convoca, sob pena de não podermos nos dizer inocentes no atual, diante das interpelações agudas que nos faz Darcy Ribeiro.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
O Direito entre a Ética e a Política: Uma Crítica com Lévinas e Marx
| Redação Jornal Estado de Direito
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
JOSÉ RICARDO CUNHA. O Direito entre a Ética e a Política: Uma Crítica com Lévinas e Marx. Tese submetida à Banca Examinadora como requisito parcial para promoção funcional à Categoria de Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UERJ, 2021, 283 p.
Compareci, com satisfação e enorme aproveitamento, ao processo público, constituído por defesa de Memorial e de Tese, requisito para a progressão funcional ao mais elevado posto acadêmico, a categoria de Professor Titular, do Professor José Ricardo Cunha.
Assim, tive a honra de integrar na qualidade de membro externo avaliador, a Banca formada pelos insignes membros: Professor Dr. Nilo Batista – UERJ – Presidente;Professora Dra. Maria Celina Bodin de Moraes – UERJ;Professor Dr. Antonio Carlos Wolkmer – UNILASALLE, aposentado na UFSC; Professora Dra. Ana Lucia Sabadell – UFRJ.
Para quem preferir acompanhar a arguição, nas esplêndidas arguições dos membros da banca, anoto aqui o endereço do Canal Youtube de O Direito Achado na Rua: https://www.youtube.com/watch?v=QtJS7lYaD_8 .
Forte no oferecimento de uma densa tese, o memorial se configura em si, uma peça valiosa, na sua forma de animar um percurso vitae que não se secundarize entre os requisitos da avaliação.
Tal como eu próprio em meu tempo, e tenho lembrado em participações em bancas, aprecio sobremaneira a habilitação à titulação por meio de memoriais. O modelo favorece realizar em primeira pessoa a evocação do percurso acadêmico e carregá-lo de subjetividade, realmando o itinerário, no que Boaventura de Sousa Santos, que abona esse método, denomina de entidade mista, combinando ensaio autobiográfico sobre a história científica pessoal e a análise epistemológica das questões abordadas numa articulação entre memória (reconstrução subjetiva dos elementos que a constituem, memória da memória, diz Santo Agostinho, em Confissões) e a invenção, dimensão explicativa do texto (SANTOS, Boaventura de. Sociologia na Primeira Pessoa: Fazendo Pesquisa nas Favelas do Rio de Janeiro. OAB Revista da Ordem dos Advogados do Brasil. São Paulo: Editora Brasiliense. Nº 49, p. 39-79, Primavera/1988).
A opção está perfeitamente legitimada, afinada com uma opção metodológica que tem as melhores recomendações. Na sua intenção, com perfeito assento epistemológico, o Memorial é simultaneamente, seguindo Boaventura de Sousa Santos, autobiografia (aquilo que fiz) e auto-retrato (aquilo que sou e como penso), algo que reflete, em preocupação comum, a justificativa oferecida por Descartes, em sua obra mais célebre: “o meu desígnio não é ensinar aqui o método que cada qual deve seguir para bem conduzir sua razão, mas apenas mostrar de que maneira me esforcei por conduzir a minha”.
No Memorial do candidato é muito forte, no que faz e no que pensa, a veemência de sua atuação, no ensino, na extensão, na pesquisa e na gestão universitárias e e na criação e na manutenção de espaços para a organização e a difusão de conhecimento crítico no campo de direito, relevo para a fundação e a edição da Revista Direito e Práxis, experiência que o próprio candidato distingue, com razão, muito “trabalhosa e, ao mesmo tempo, gratificante”, que alcançou no período de pouco mais de uma década o reconhecimento como “uma das mais importantes revistas da área e uma referência no mundo editorial, tornando-se desde 2020 o periódico da área do direito no topo do ranking H5 (índice bibliométrico disponibilizado pelo Google Scholar) do Brasil”, ao mesmo indexada na classificação A1, a mais elevada no sistema Qualis Capes. Muitos de nós temos valorizado nossos currículos na Plataforma Lattes, ao publicar nesse prestigiado periódico.
Uma Nota do Memorial me é evocativa. Trata-se de seu protagonismo na implantação do curso jurídico da FGV no Rio de Janeiro. É que, vice-presidente por dezoito anos da Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da OAB, avaliei, na substantiva apresentação do estimado Joaquim Falcão, a inovadora proposta desse projeto pedagógico. E, para mim, é digno de atenção identificar em sua implementação, a contribuição do professor José Ricardo Cunha, experiência muito bem sucedida que agora vem enriquecer o seu currículo.
Não consta do Memorial, salvo por nota de referência, remetendo a publicação do candidato – CUNHA, José Ricardo (Org.). Direitos humanos, poder judiciário e sociedade. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2011. A nota singela, não dá a medida do impacto do conteúdo do trabalho realizado pelo Autor e seus associados no empreendimento de educação. É preciso acompanhar os avanços da pesquisa nesse campo para encontrar, por exemplo, em Mapa Territorial, Temático e Instrumental da Assessoria Jurídica e Advocacia Popular no Brasil / José Antônio P. Gediel, Leandro Gorsdorf, Antonio Escrivão Filho, Hugo Belarmino, Marcos J. F. Oliveira Lima, Eduardo F. de Araújo, Yuri Campagnaro, Andréa Guimarães, João T. N. de Medeiros Filho, Tchenna Maso, Kamila B. A. Pessoa, Igor Benício, Virnélia Lopes, André Barreto – Curitiba/PR – Brasília/DF – João Pessoa/PB, a importância dos achados do pesquisador citado dando lastro a obra de relevante circulação:
“Vale ressaltar, neste ponto, no que tange à incorporação dos tratados internacionais de direitos humanos à cultura jurisdicional da magistratura enquanto elemento de análise sobre o estágio de consolidação da justiciabilidde dos direitos humanos no Brasil, que em oposição ao índice de utilização dos tratados e vias internacionais revelados na prática da advocacia popular, pesquisa recente realizada na comarca da cidade do Rio de Janeiro, sob a coordenação do professor José Ricardo Cunha (FGV-Direito), demonstrou que “40% dos juízes [entrevistados pela pesquisa] nunca estudaram direitos humanos, e apenas 16% sabem como funcionam os sistemas de proteção internacional dos direitos humanos da ONU e OEA […]” (CUNHA (org.), 2011, p. 48)”.
De onde, aliás, Boaventura de Sousa Santos vai retirar a referência com a qual sustenta afirmação contundente feita em conferência na Universidade de Brasília (proferida no âmbito das comemorações dos 30 anos de O Direito Achado na Rua, no dia 26 de outubro de 2019), e agora publicada no mais recente volume da Série O Direito Achado na Rua (SANTOS, Boaventura de Sousa. Da Expansão Judicial à Decadência de um Modelo de Justiça, in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de at al (orgs).O Direito Achado na Rua vol. 10: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade|. Brasília: Editora da OAB/Editora UnB, 2021): “a Dignitatis mostra que quarenta por cento dos juízes nunca foram exposta ao ensino dos direitos humanos” (Mapa Territorial…).
Chamo a atenção sobretudo para a data da conferência e para trecho trazido à publicação agora em 2021:
“O Brasil tem, neste momento, o caso mais famoso do mundo, o caso do preso político mais famoso do mundo. Nós sabemos muito bem que foram cometidas uma série de irregularidades. Violou-se o princípio da parcimónia, nas conduções coercitivas, que não era necessário, fizeram-se escutas ilegais, ignorou-se prova favorável aos réus, houve contactos informais com autoridades estrangeiras. Estas ilegalidades configuram a necessidade de uma disciplina, de uma punição disciplinar, e, eventualmente, até criminal. Portanto, eu penso que a credibilidade do Sistema Judiciário não se recupera enquanto o Sérgio Moro e Deltan Dallagnol não forem punidos exemplarmente”.
Notem, que a afirmação duríssima foi feita em outubro de 2019 quando o juiz a força tarefa de Curitiba estavam no auge da idolatria ufana da usurpação da legítima governança que vigia no Brasil, e a voz profética de Boaventura soava junto às poucas advertências que a boa crítica proferia, solenemente ocultada ou desconsiderada no país. Somente muito recentemente a consciência política e o discernimento jurídico começou a se dar conta daquele engodo malicioso e venal, finalmente enquadrado pelo Supremo Tribunal Federal ao sumular a descarada suspeição que se prestou adrede para a consumação de um verdadeiro golpe contra a democracia, a constituição, os trabalhadores e soberania popular e aos interesses do país e da sociedade.
Tudo isso se projeta para a tese proposta pelo candidato, ao figurar o direito entre a ética e a política.
Para o Autor da tese, em resumo, o direito moderno expressa as conquistas e contradições da modernidade. De um ponto de vista histórico, se afirma como direito liberal-burguês que consagra os direitos individuais como seu principal fundamento. Não obstante, isso não impede que o direito positivo de diferentes países absorva certas conquistas específicas que revelam a resistência de grupos explorados e oprimidos. De um ponto de vista epistemológico, o direito moderno postula independência científica e neutralidade em relação às disputas morais existentes na sociedade. A presente tese faz uma crítica ao direito moderno em algumas de suas pretensões mais profundas, especialmente a de pretender caminhar alheio aos processos de exploração, opressão e exclusão do sujeito da injustiça social.
Com argumentos extraídos de duas tradições: da ética de Emmanuel Lévinas e da crítica da economia política de Karl Marx, sustenta que é preciso romper com o individualismo e egocentrismo típicos da modernidade, o que pode ser feito por meio de uma ética da alteridade. Por outro lado, preconiza que a radical consideração pelo outro, em especial pelo sujeito da injustiça social, conduz aos ideais de libertação e autoemancipação da tradição marxista. Com isso, pretende uma crítica ao direito em nome da justiça, sem que isso implique renunciar a certas conquistas modernas, como o estado de direito.
A tese recupera o cuidadoso percurso que a pesquisa do Autor vem realizando, em esforço para designar a relação entre Direito e Ética da Alteridade e a questão do sujeito da injustiça social.
Para incentivar a leitura desse rico tema ou para iniciar novos leitores, transcrevo o sumário da tese:
Introdução.
Capítulo 1) Ética da Alteridade, Crítica do Direito e o Sistema da Injustiça Social.
1.1. A Ética Levinasiana e a Crítica Radical Da Ontologia
1.2. Limites e Possibilidades Para se Pensar o Direito Outramentre
1.3. Ética da Alteridade e o Sujeito da Injustiça Social
Capítulo 2) Modernidade, Pós-Modernidade e Emancipação em Diálogo com a Ética da Alteridade.
2.1. O Discurso Forte Da Modernidade
2.2. Crítica e Crise da Modernidade
2.3. Pós-Modernidade
2.4. Pós-Modernidade, Comunidade e Ética
2.5. Ética da Alteridade e o Desafio da Emancipação
Capítulo 3) Ética da Alteridade como Fundamento Extramoral para a Política em Tempos de Ódio
3.1. Do Fortalecimento do Eu ao Repúdio do Outro
3.2. Do Egocentrismo no Debate Democrático à Consideração do Outro Como Adversário e Não Inimigo
3.3. Da Ética da Alteridade Como um Fundamento para a Ação Política
Capítulo 4) Interlúdio – de Lévinas a Marx: Ética e Política entre Transcendência e Revolução
4.1. Crítica do Idealismo
4.2. Insubmissão Diante da Totalidade
4.3. Sociedade, Justiça E Profecia
4.4. Transcendência e Revolução
Capítulo 5) A Crítica do Direito no Pensamento Marxiano: É Possível uma Emancipação pelo Direito?
5.1. Acumulação Capitalista, Trabalho Estranhado e Sua Relação com o Direito.
5.2. Crítica ao Direito Burguês, Luta por Direitos e Acumulação Primitiva
5.3. O Plano Econômico, o Plano Político e as Lutas por Emancipação
Capítulo 6) Revolução e Forma Jurídica: Estado de Direito em Contextos Pós-Revolucionários e Desafios ao Processo Revolucionário
6.1. O Estado de Direito e Seus Limites
6.2. A Revolução e Seus Limites
6.3. Devir Revolucionário e Estado de Direito
Considerações Finais
Referências Bibliográficas.
Tal como descreve o Candidato em seu portfólio de pesquisa:
“a literatura mais usual da teoria do direito, de influência positivista, costuma situar o direito como sendo heterônomo e a moral como autônoma, o direito como sendo objetivo e a moral subjetiva. Isso produz conclusões relativamente superficiais que colocam a experiência jurídica e o sentimento moral em campos opostos. Entretanto, essa forma de classificação sobre direito e moral foi substancialmente renovado em função do debate oriundo da filosofia política e da filosofia moral sobre a teoria da justiça. Para uma abordagem mais empírica ou fenomenológica do sujeito é preciso compreendê-lo em sua experiência vivencial real. Mas quando se pensa uma teoria da justiça, não basta que se tenha em mente cidadãos livres e iguais, como ponto de partida da teoria. É necessário que se considere o sujeito real da injustiça. Contudo, a experiência da injustiça pode ser um tanto individual e, por isso, relativa. Cada pessoa pode reagir de uma forma diante de algo que lhe cause sofrimento pessoal e a isso atribua uma qualificação de injustiça sofrida. Porém, por outro lado, há na sociedade uma espécie de injustiça objetiva, reconhecida e, até, quantificada por estatísticas, estudos e pesquisas. Trata-se da injustiça social que pode ser resultado da opressão decorrente das privações impostas pelo empobrecimento resultante do sistema econômico vigente, ou, então, da opressão decorrente de preconceitos e discriminações que resulta em desigualdades injustas e imerecidas. Quem vive uma das duas situações ou ambas, é o sujeito da injustiça social.
Enquanto na gramática da filosofia moral e política há algum esforço em produzir conhecimento acerca do sujeito da injustiça e de sua relação tanto com os sistemas morais quanto com as instituições morais políticas, o campo da filosofia do direito ainda não alcançou um acúmulo considerável sobre o problema deste sujeito da injustiça. São poucas as iniciativas voltadas para este estudo. Porém, mais escassos são os trabalhos sobre o problema do sujeito da injustiça no campo da teoria do direito. A presente pesquisa pretende fortalecer uma área pouco trabalhada, embora recorrente nas práticas concretas do sistema de justiça”.
Com alguma proximidade, embora com distinções próprias, compartilho as mesmas preocupações apresentadas pelo Autor. Em texto que ofereci à recente edição crítica ao livro de Roberto Armando Ramos de Aguiar originalmente publicado em 1987 (AGUIAR, Roberto A. R. de Aguiar. O Que É Justiça. Uma Abordagem Dialética. Brasília: Senado Federal/ Edições do Senado Federal 279, 2020), logro compreender que Aguiar, se apresenta como um construtor da Justiça em relação à alteridade. Essa é a questão – eu digo lá – que Roberto Aguiar propõe em uma de suas últimas leituras de atualização temas centrais de sua reflexão. Trazendo a questão da alteridade para poder compreender o direito, Aguiar reivindica extrair das interações das subjetividades o modo de sua designação, porque para ele as relações jurídicas são sempre móveis, constituindo-se em processos permanentes de variações e transformações, sem determinações rígidas e com direcionamento variável, onde nada é linear, nem expresso por consequências necessárias de causas anteriores. Daí que, sob a perspectiva de uma juridicidade que se mova por uma normatividade emanada do nós, ele se disponha, com Lévinas, trabalhar questões candentes, teóricas e políticas que repercutam no acervo das conceituações nos campos filosófico e jurídico: quem é o outro? Como construir relações com os diferentes, os distintos? Quais as simetrias e assimetrias entre um e outro? Como a história do direito entendeu o outro? E, recuperando o fio condutor desde suas reflexões constantes de seus primeiros trabalhos: como pensar a justiça em relação à alteridade?
É, diz Roberto A. R. de Aguiar, “nessa procura incerta e dura, é nesse vislumbrar tateante que procuraremos alcançar a libertação do homem de sua situação infra-humana e participar dessa caminhada conflitiva rumo à plenitude humana”. Para Aguiar, dá-se o mesmo que em Castoriadis, para quem “Uma sociedade justa não é uma sociedade que adotou, de uma vez para sempre, as leis justas. Uma sociedade justa é uma sociedade onde a questão da Justiça permanece constantemente aberta”.
Na conjuntura conturbada que atravessamos, entre angústias e esperanças, a Justiça, lembra Aguiar em sua bela metáfora, tomada como epígrafe do livro (p. 11) é “essa bailarina que emerge (e)que não será de todos e de ninguém, não se porá acima dos circundantes, mas entrará na dança de mãos dadas com os que não podem dançar e, amante da maioria, tomará o baile na luta e na invasão, pois essa justiça é irmã e filha da contestação”(AGUIAR, O que é Justiça, 1987, p. 13-14; nesta edição, p. 216).
E para tomá-la nos braços e com ela evoluir no baile, há que arrostar o risco mencionado por Roberto Lyra Filho, em enunciado preservado graças ao zelo leal de Hildo Honório do Couto (O que é português brasileiro. São Paulo: Editora Brasiliense, Coleção Primeiros Passos, nº 164, 1ª edição, 1986), que guarda a autoria, Lyra morto (1986) e sem registro da afirmação, o que poderia ensejar sua indébita apropriação: “Num sistema injusto, se quisermos ser sérios temos que ser marginais”.
Tal como afirmo em meu texto, por instigação ainda mais interpelante, no atual, da leitura de O que é Justiça. Uma abordagem dialética, é a urgência de convocar a Justiça para o centro de preocupações tanto teóricas quanto políticas, é a necessidade de abertura desse objeto para interpelações que já não se enquadram nas formas típicas de uma cultura jurídico-filosófica que funcionaliza o institucional e tecniciza as aproximações analíticas, é o permitir impunimente que ela seja instrumentalizada em razão e em benefício dos autoritarismos de todos os matizes.
Essa é a questão que Roberto Aguiar propõe em uma de suas últimas leituras de atualização dos temas centrais de sua reflexão[27]. Trazendo a questão da alteridade para poder compreender o direito, Aguiar reivindica extrair das interações das subjetividades o modo de sua designação, porque para ele as relações jurídicas são sempre móveis, constituindo-se em processos permanentes de variações e transformações, sem determinações rígidas e com direcionamento variável, onde nada é linear, nem expresso por consequências necessárias de causas anteriores. É o reino da probabilidade e da bifurcação (AGUIAR, 2017: 8). Daí que, sob a perspectiva de uma juridicidade que se mova por uma normatividade emanada do nós, ele se disponha, com Lévinas, trabalhar questões candentes, teóricas e políticas que repercutam no acervo das conceituações nos campos filosófico e jurídico: quem é o outro? Como construir relações com os diferentes, os distintos? Quais as simetrias e assimetrias entre um e outro? Como a história do direito entendeu o outro? E, recuperando o fio condutor desde suas reflexões constantes de seus primeiros trabalhos: como pensar a justiça em relação à alteridade? (AGUIAR, 2017: 8).
Nesse texto, ainda com Lévinas, Roberto Aguiar (2017: 11) convicto da impossibilidade do eu se constituir eticamente sem o outro, pensa nas disposições intersubjetivas que se organizam em redes complexas de relacionamentos emancipatórios que são a potencialização da alteridade, a aceitação do outro, a admissão de que o outro está dentro do mesmo e que ele é prévio para nossa construção atitudinal e ética, o que implica a transformação dos modelos explicativos do sistema jurídico e mostra a possibilidade de construção normativa que privilegie o outro como origem e destino do direito, no interior de uma democracia cosmopolita em constante construção, mutação e reavaliação reticular (AGUIAR, 2017: 43).
É um processo que se realiza no movimento da História. Tal como em relação aos direitos humanos, que para Roberto Aguiar (2006: 12-14) têm que ser vivenciados, se fazerem fundamentais porque conquistas históricas[28], olhar a Justiça é surpreender esse movimento dialético, uma imagem de bailado cambiante que, todavia, segue uma nítida coreografia.
Em sua tese de doutorado defendida na Faculdade de Direito da UnB, Talita Rampin parte de um mapa conceitual no qual, de modo completo, cabal, enquadra o acervo teórico e de ideias da Justiça, localiza como uma de suas fontes de leitura a concepção dialética de Roberto Aguiar, inscrita em seu livro de 1984[29].
No capítulo Olhares sobre as Justiças: teorias e ideias sobre justiça, Rampin recupera a metáfora da bailarina exibida por Roberto Aguiar (1982: 13)[30], para interpretar que na reflexão filosófica por ele proposta, o baile social é a realidade vivida no sistema capitalista. Ao personificar a ideia de justiça na figura da bailarina Aguiar remete à imagem de alguém que assume a dança como ofício e que se move conforme a música (RAMPIN, 2018: 64).
Para Rampin,
Enquanto fenômeno social, algo que se experimenta no mundo dos fatos, na realidade social, a justiça é multifacetada, plurívoca. Enquanto ideia, a justiça pode expressar valores ou interesses derivados da correlação de forças de poder existentes em uma determinada sociedade. Enquanto teoria explicativa, a justiça pode auxiliar para a compreensão das relações de poder em um determinado contexto. Trata-se, portanto, de uma chave de análise que comporta uma variedade de significados. E é aí que Aguiar enxerga que junto ao tema (justiça) se apresenta um problema: ‘A justiça é o dever-ser da ordem para os dirigentes, o dever-ser da esperança para os oprimidos. Podendo também ser o dever-ser da forma para o conhecimento oficial, enquanto é o dever-ser da contestação para o saber crítico’(AGUIAR, 1984, p. 15).
Atenta ao enfoque proposto por Roberto Aguiar, Rampin identifica em sua enunciação do que é justiça, a sua implicação com as práticas sociais, pois, registra Rampin, ele considera que não é possível desenvolvermos uma concepção dialética da história, do conhecimento e do homem e continuarmos a encarar a justiça como um princípio ou conjunto de princípios que pairam no absoluto de topos uranon, destacando, ainda de Aguiar, a alternativa que apresenta, vale dizer, tal como ela destaca no seu mapa das teorias (RAMPIN, 2018: 54), a da dialética social da justiça, Citando Roberto Aguiar (1984: XII), a dialética social da justiça significa tomar partido ao lado dos dominados, dos oprimidos, dos reprimidos e das minorias ou seja, passar pela mudança social, pela derrubada de poderes discricionários e pela transformação da economia em favor dos dominados.
De Roberto Aguiar, portanto, Rampin extrai o entendimento, sobre configurar a dialética social da justiça, que ela expressa nesses termos (2018: 65):
Se as justiças – e aqui flexiono o termo no plural para tornar mais evidente a pluralidade de denotações que comporta – estão em disputa, a saída dialética social é uma alternativa para desvelar a sua práxis. De fato, do campo das ciências sociais extraio mais de significado de justiça, o que dá indícios de que as teorias, os conceitos, as interpretações e os olhares sobre a justiça têm sido diversificados. Há, no mínimo, uma abertura conceitual sobre o que é justiça, fissura esta através da qual infiltram ideologias, valores interesses e usos. Oscilando entre discursos e ideias de bem estar, igualdade, propriedade, virtude, liberdade, participação e emancipação, como exemplos, o significado da justiça varia enquanto é mantido o interesse em colocá-la no horizonte interpretativo dos diversos campos das ciências e práticas sociais.
Com Aguiar, a autora participa do entendimento de que não há consenso sobre o que é justiça, sendo, contemporaneamente, um tema que desafia conhecimento e posicionamento, política e epistemologicamente, vale dizer, as atenções correntes:
A justiça está em disputa: interessa ao mercado, que a incorpora como fator incidente sobre a segurança jurídica dos contratos e a livre circulação de mercadorias; interessa ao Estado de direito, que a incorpora como vetor de orientação política, materializada em garantias para a realização da cidadania, e como instrumento de resolução de conflitos e reconhecimento de direitos e interesses, tais como o acesso aos bens jurídicos considerados essenciais para a manutenção da vida; e interessa, entre outros, às ciências, que a incorporam como objeto de investigação e buscam explicar o fenômeno desde diferentes perspectivas, metodologias e áreas de conhecimento (RAMPIN, 2018: 65).
Assim como Talita Rampin, na sequência da dialeticidade a que remonta Roberto Aguiar, participo do entendimento de que a justiça representa a síntese de múltiplas polarizações. Com AntônioEscrivão Filho salientei que essa é uma síntese histórica entre as estratégias de luta social e a opacidade da institucionalidade de justiça, sobretudo em relação às violações e à agenda política de direitos carregada e instituída na práxis dos movimentos sociais populares (ESCRIVÃO FILHO; SOUSA JUNIOR, 2016: 151-175) Por via de consequência, é pela aspiração a uma dimensão de justiça e pela pela instituição de procedimentos de reconhecimento e acesso à essa justiça a que se busca acesso, que direitos que ainda não tiveram força, política e social para emergir ante um sistema de opressão em determinada sociedade, e dessa forma ainda estejam situados do lado de fora de determinada ordem legal, passam a ser também acessíveis às demandas de novos sujeitos sociais. Em outras palavras, afirmamos eu próprio, Ludmila Cerqueira Correia e AntônioEscrivão Filho, trata-se de realizar as condições teóricas e políticas sobre o acesso à justiça, não a partir do que dizem as instituições e os profissionais da justiça usualmente eleitos como referencia de análise, mas a partir do que diz a rua em sua dimensão de criação e de realização política do direito e da Justiça, inspirada no programa teórico e prático de O Direito Achado na Rua (2016: 89-90).
Ao limite, a partir de Boaventura de Sousa Santos, e com ele, cuida-se de ampliar o conceito de acesso ã justiça, considerando-a o plano mais amplo que se poderia conceber, e pensando um procedimento de tradução, ou seja, como uma estratégia de mediação capaz de criar uma inteligibilidade mútua entre experiências possíveis e disponíveis para o reconhecimento de saberes, de culturas e de práticas sociais que formam as identidades dos sujeitos que buscam superar os seus conflitos e realizar direitos, criando condições para emancipações sociais concretas de grupos sociais concretos num presente cuja injustiça é legitimada com base num maciço desperdício de experiência (SANTOS, 2004: 813-814; SANTOS, 2011, passim; SOUSA JUNIOR, 2017: 23-24)[32].
Aguiar desvela esse processo, não só no global teórico e politico quando estuda o jurídico em suas dimensões lógicas, sintáticas e semióticas e o associa ao fenômeno da ideologia, mas igualmente no local quando, por exemplo, estudando os problemas das incapacidades e seus fundamentos no campo do direito positivo, constata que a chave da incapacitação (e aí ele alude a todos os que são atingidos por referência a essa categoria , as pessoas físicas, crianças, idosos, mulheres, índios e loucos; como as pessoas jurídicas e, ao fim e ao cabo, trabalhadores civis e minorias) é ela não ser de tal forma estigmatizadora que retire qualquer ilusão de participação, qualquer sensação de esperança do incapacitado (AGUIAR, 1988: 6 e 110)[33]
Se Boaventura de Sousa Santos, insere essas condições numa direção que de minha parte chamo de ampliação, de alargamento e ele, de revolucionária, é nessa última acepção que Luis Alberto Warat assimila o sentido desse processo para atender as necessidades de práticas educadoras populares y callejeras, porque buscam organizar desde abajo mejores formas de convivencia que van transformando (revolucionando) todo[34]. Em projeto que preparou para assessorar a Mesa Nacional Contra o Crime e a Violência, um organismo da Sub-Comissão de Administração da Justiça (Assembléia Nacional da República Bolivariana da Venezuela), oferecendo uma proposta que denominou abreviadamente Justicia Barrio Adentro, Warat fala de uma multi-necessidadde de revolucionar, conjuntamente la educación, la política, el Derecho y los saberes institucionalmente controladores de las subjetidades, para generar otro lugar desde donde abordar la necesidad de promover políticas creadoras que potencien las energías populares y callejeras hacia nuevos horizontes de emancipación.
O que se verifica em face dessas formas instigantes de convocar a Justiça para o centro de preocupações tanto teóricas quanto políticas, é a necessidade de abertura desse objeto para interpelações que já não se enquadram nas formas típicas de uma cultura jurídico-filosófica que funcionaliza o institucional e tecniciza as aproximações analíticas. E, diz Roberto A. R. de Aguiar, nessa procura incerta e dura, mesmo assim, vislumbrar tateante procurar alcançar a libertação humana (como tarefa, porque não nascemos humanos, nos constituímos na experiência, na história, conforme Hegel) de sua situação infra-humana e participar dessa caminhada conflitiva rumo à plenitude humana.
O Autor diz na Introdução da sua tese, não pretender apontar uma solução para que o direito deixe de ser instrumento das classes dominantes, mas sim realizar um esforço para retirar o pensamento jurídico da esfera do conformismo.
Todavia, a crítica ao direito, quando feita de forma profunda, não se limita ao próprio direito. Ela extrapola o objeto para levar em conta problemas que estão conectados de forma sistêmica. Daí a ideia de totalidade que é tão cara para Lévinas e Marx. Nesse sentido parece adequado dizer que a mudança da mentalidade jurídica ocorre junto com uma mudança mais ampla de formas de viver e formas de pensar. Por isso mesmo, as referências teóricas adotadas para a crítica aqui apresentada foram aquelas que decorrem da ética levinasiana e da crítica marxista, ambas para além do direito.
O ponto de partida para a crítica foi o lugar daquelas pessoas reais que sofrem diferentes formas de privações, degradações e desigualdades imerecidas em função do lugar social que a elas foi destinado. São os sujeitos da injustiça social, que sofrem injustiças objetivas, para além do sentimento que cada um deles possa ter a esse respeito. Estas injustiças são consistentes com situações de exploração, opressão e exclusão que são estruturalmente definidas. Importante notar que não obstante constituam um setor da população mundial e nacional que seja maioria numérica, o sujeito da injustiça social é sistematicamente ocultado no âmbito da totalidade ou, então, é responsabilizado pela própria injustiça que sofre. De uma forma ou outra, esse sujeito é o fora do padrão, a diferença negada e aviltada pela ontologia alérgica à alteridade.
Diante disso, ele diz, o que se pretendeu ao logo do trabalho foi mobilizar aquelas categorias da ética e da política que são importantes para denunciar como as formas de pensar e as formas de viver que são egocêntricas e opressivas se manifestam de forma estrutural nas instituições jurídicas e políticas. Isso não significa renunciar ao direito, mas sim tomá-lo criticamente, por uma dupla razão: i) para que se possa denunciar aquilo que reproduz a totalidade no âmbito das relações jurídicas; e ii) para promover aquilo eventualmente ocorre no âmbito das relações jurídicas e que pode, ainda que pontualmente, contribuir com formas de autoemancipação do sujeito da injustiça social.
Com efeito, no debate com Roberto Lyra Filho, já referido, enquanto esse autor procurava imprimir à sua reflexão uma perspectiva dialética que permitisse romper a aporia antinômica dos pares ideológicos – jusnaturalismo e juspositivismo; e idealismo e materialismo, numa releitura do próprio Marx (LYRA FILHO, Roberto. Karl, Meu Amigo. Dialogo com Marx sobre o Direito. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 1983) –, foi Marilena Chauí, certamente, a referência filosófica para a superação do obstáculo epistemológico:
Penso que o livro de Roberto Lyra Filho trabalha no sentido de superar uma antinomia paralisante: a oposição abstrata entre o positivismo jurídico e o idealismo jusnaturalista”, afirmando que: “Se o Direito diz respeito à liberdade garantida e confirmada pela lei justa, não há como esquivar-se às questões sociais e políticas onde, entre lutas e concórdias, os homens formulam concretamente as condições nas quais o Direito, como expressão histórica do justo, pode ou não realizar-se (CHAUÍ, Marilena, Roberto Lyra Filho ou da Dignidade Política do Direito”. Revista Direito e Avesso, nº 2, Brasília, 1982. Também publicado em Desordem e Processo – Estudos Jurídicos em Homenagem a Roberto Lyra Filho, Sérgio Antônio Fabris Editor, Porto Alegre, 1986)”.
Neste aspecto, aliás, os trabalhos de Marilena Chauí estabeleceram um norte seguro para a interpretação dessa ação transformadora, conduzida pela mediação do Direito, enquanto processo dentro do processo histórico.
Com efeito, é a partir da constatação derivada dos estudos acerca dos chamados novos movimentos sociais, desenvolveu-se a percepção, primeiramente elaborada pela literatura sociológica, de que o conjunto das formas de mobilização e organização das classes populares e das configurações de classes constituídas nesses movimentos, instauravam, efetivamente, práticas políticas novas, em condições de abrir espaços sociais inéditos e de revelar novos atores na cena política capazes de criar direitos (conforme SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Marilena Chauí: Amor à Sabedoria e Solidariedade com a Vida in PAOLI, Maria Célia (Organizadora). Diálogos com Marilena Chauí. São Paulo: Editora Barcarolla, 2011, p. 15-28).
Nessa perspectiva, assumo com o Autor da tese, que a justiça se realiza na experiência de humanização como emancipação do humano o que nos leva à necessidade de rever nossa concepção do ser humano, reavaliar seu papel, desvelar o universo de sua interioridade e recuperar a sua dignidade, uma vez que, cito Aguiar (SOUSA JUNIOR, 2011: 27), a liberdade é uma construção, uma possibilidade de ser.
De certo modo, isso traduz aquela diretriz encontrada em Amós 5, 24: “Quero ver o direito brotar como água e correr a justiça qual riacho que não seca”. Por isso que ao proferir a exortação de abertura de Seminário sobre Ética, Justiça e Direito, organizado pela CNBB (Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros), em 1996, o padre Henrique Cláudio de Lima Vaz recuperou política e filosoficamente o tempo-eixo civilizatório do agir humano, acentuando as implicações que o movimento da consciência desse agir percorre, seja do ponto de vista da consciência moral subjetiva ou individual, seja do ponto de vista da consciência moral intersubjetiva ou comunitária, e que leva a estruturar o universo ético e político-jurídico[24].
De fato, eu diria com o Autor da tese ora examinada, que tal como constata o Pe. Vaz também, é real a percepção da incompletude histórica do humano e da condição ética do agir com Justiça para emancipar-se e se realizar como projeto de si e social, projeto que não é linear e tem sobressaltos, avanços e regressos, que não é dom, é tarefa. Para o padre Vaz:
“O mundo ético não é uma dádiva da natureza. É uma dura conquista da civilização. Como também tem sido uma conquista longa e difícil o estabelecimento e a vigência do Estado Democrático de Direito. Trata-se de conquistas permanentes, sempre recomeçadas e sempre ameaçadas pela queda no amoralismo, no despotismo e na anomia. E é, sem dúvida, no campo da educação que se travam, a cada geração, as batalhas decisivas dessa luta. É aí, afinal, que as sociedades são chamadas a optar em face da alternativa onde se joga o seu destino: … a de serem sociedades da liberdade que floresce em paz ao sol do Bem e da Justiça (VAZ, 1996: 40)”.
Então, enquanto tarefa, enquanto conquista longa e difícil, aqui e agora entre nós, nesse mergulho profundo a que nos obriga o obscurantismo e o esvaziamento autoritário do espaço da política, à luz das suas categorias, qual é o horizonte de Construção da Democracia e da Justiça em Relação a Alteridade (estamos com um Fórum Social Mundial Justiça e Democracia em processo), como diriam, Lyra Filho, Aguiar, Lévinas, qual a possibilidade de emergência desse “sujeito da injustiça social ainda mais sistematicamente ocultado no âmbito da totalidade, vulnerabilizado, responsabilizado pela própria injustiça que sofre, fora do padrão” de que trata o Candidato, ou, como diz Marilena Chauí movido para apreender o direito no campo das relações sociais e políticas entre classes, grupos e Estados diferentes e para melhor perceber as contradições entre as leis e a justiça e abrir a consciência tanto quanto a prática para a superação dessas contradições. O que nessas condições significa abrir o Direito para a História e, nessa ação, para a política transformadora? Penso que a tese de José Ricardo Cunha oferece um bom repertório de enunciados para respostas a essas questões.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
Conflitos Fundiários e as Repercussões na Saúde das Lideranças Quilombolas.
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Ana Paula dos Santos Siqueira. Conflitos Fundiários e as Repercussões na Saúde das Lideranças Quilombolas. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas em Saúde da Escola de Governo Fiocruz Brasília. Brasília, 2021, 172 p.
Embora já tenha acompanhado inúmeros trabalhos acadêmicos sobre o tema Quilombola, alguns na condição de Orientador, foi para mim uma novidade participar dessa dessa sessão de defesa no programa acadêmico da Fiocruz, compartilhando com a Banca Examinadora constituída pelas professoras Tatiana Oliveira Novais – Fiocruz Brasília Orientadora; Mônica Celeida Rabelo Nogueira e Fernanda Maria Duarte Severo, a oportunidade de avaliar questões com as quais já estava familiarizado no meu campo jurídico, agora articuladas aos temas correntes dos conflitos fundiários e de reivindicação de direitos, envolvendo terra e territórios, entretanto, com foco, conforme acentua o título da dissertação, em repercussões na saúde de lideranças quilombolas.
Anoto entre trabalhos que examinei Emmanoel Antas Filho, Movimento Social Quilombola e o Direito Achado na Rua: uma Análise da Organização e Lutas do Quilombo Aroeira em Pedro Avelino-RN. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, como requisito parcial para a obtenção do título de mestre em Serviço Social e Direitos Sociais. Orientadora: Profa. Dra. Maria Ivonete Soares Coelho; Co-orientador: Prof. Dr. Lauro Gurgel de Brito, Mossoró, 2020, 142 p. (http://estadodedireito.com.br/movimento-social-quilombola-e-o-direito-achado-na-rua/).
Ponho em relevo entre esses estudos, sugerindo posterior incorporação ao seu próprio texto, a excelente Dissertação defendida na UnB, em 2019, no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, “Entre a Ocupação, a Certificação e a Titularidade da Terra: a Luta pelo Direito à Terra da Comunidade Quilombola de Macambira – RN” de autoria de Áurea Bezerra de Medeiros.
Nesse trabalho, sobre o qual também escrevi uma Coluna Lido para Você (https://estadodedireito.com.br/entre-a-ocupacao-a-certificacao-e-a-titularidade-da-terra-a-luta-pelo-direito-a-terra-da-comunidade-quilombola-de-macambira-rn/) Áurea oferece um sumário descritivo do campo que pretende abranger, abrindo com uma introdução histórica, na qual recupera o percurso que vai da escravidão à formação dos quilombos, para abrigar o sentido de reconhecimento dos remanescentes dessas comunidades, a partir de julgamento do Supremo Tribunal Federal, no marco da Constituição de 1988 e, tal como está no artigo 68 da Disposições Transitórias, a designação de direitos das comunidades quilombolas. Sob esse ângulo, ela analisa a decisão do STF sobre a constitucionalidade do Artigo 68 da ADCT e do Decreto 4.887, tal como se deu no julgamento da Adin 3239.
Em seguida a autora traça “a Longa e Tortuosa Trajetória Sofrida Pela Comunidade Quilombola de Macambira – Detalhamento da Tensão entre a Justiça Estadual, a Federal e o processo Administrativo no INCRA”. Assim ela descreve, com detalhes o Processo na Justiça Estadual, a luta pela terra iniciada em 1997; a Apelação TJRN e Ação de Execução Provisória na Justiça Estadual do RN; o enquadramento da questão na Justiça Federal – Processo nº 0800076-72.2013.4.05.8402; o modo de designação da Comunidade Quilombola Macambira no Processo Administrativo no INCRA; finalizando com uma análise documental crítica desses processos judiciais e administrativo.
No que é uma singularidade do trabalho, a Autora, indica já no sumário, a sua importante contribuição, para o conhecimento dessa realidade, pois penso que é o único estudo que a focaliza e oferece um retrato da Comunidade Quilombola de Macambira e sua História: o seu reconhecimento como comunidade quilombola; esse reconhecimento pela Justiça Federal, no tocante ao seu direito as terras; e, outra singularidade do estudo, a demonstração do conflito presente nesse enquadramento no que designa como “A Comunidade Quilombola de Macambira, as torres de energia eólica um acordo extrajudicial lesivo”.
Meu mais vigoroso envolvimento concentrou-se na orientação da dissertação de Mestrado (Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da UnB) de Emília Joana Viana de Oliveira: Mulheres quilombolas na luta pelo direito à água: uma reflexão a partir do conflito do Quilombo Rio dos Macacos – BA. No centro de sua pesquisa se vai constatar a água como elemento central para a produção e reprodução da vida humana, e, também para a manutenção do modo de vida da Comunidade Quilombola de Rio dos Macacos-BA, pela identidade quilombola pesqueira e agricultora no espaço rural. A dissertação apresenta a água como um componente central na disputa pelo território no conflito com a Marinha do Brasil, que executa uma gestão territorial de controle, proibição, violências e restrição do acesso à água, com diversas violações de Direitos Humanos desde a chegada da instituição no território onde já vivia a comunidade e se iniciaram as atividades que envolvem o complexo da Base Naval de Aratu-BA na década de 50.
A partir do conflito, vê-se a práxis de mulheres quilombolas para a manutenção do modo de vida quilombola, que é atravessada pelo racismo e ao sexismo, tem o papel anunciar que o território também é água, na medida em que lutam para que o processo de regularização fundiária quilombola no contexto de conflito com o Estado, por meio de uma instituição militar, garanta também o acesso aos rios, fontes sagradas e a possibilidade de uso da água de todas as formas necessárias para a garantia do modo de vida quilombola.
A disputa pela compreensão da água como parte do território e como um Direito Fundamental, surge da percepção de mulheres negras nesse conflito e visa a efetivação deste diante do Estado e se aplica a esse, mas também a tantos outros conflitos fundiários no Brasil, marcados pelo racismo desde a colonização, de modo que o olhar para a experiência quilombola, no passado e no presente, evidencia um dos modos de disputa pelo acesso à terra da população negra brasileira, como continuidade da Diáspora Africana. Ao mesmo tempo, amplia a percepção do acesso a água como dinâmica essencial para a manutenção dos modos de vida de acordo com as identidades e as territorialidades.
Do que trata o trabalho de Ana Paula dos Santos Siqueira, em seu enfoque recortado pela questão da saúde, informa o resumo: “As Comunidade Quilombolas carregam um legado, uma herança cultural e material que lhes confere uma referência e um pertencimento histórico e ancestral e como a maioria das Comunidades tradicionais, dependem da terra para sua reprodução física, social, econômica e cultural. É importante apontarmos para o percurso da racialização das terras e do mundo, ou da hierarquia da cor da pele como aconteceu no Brasil, na América Latina e Caribe, para compreendermos os conflitos que acometem a vida da população negra. Trazendo para a realidade Quilombola é justamente por causa da posse de terras, negada pelo racismo, que justificou sempre a dominação e negação de direitos inclusive direito à terra que historicamente essas Comunidades vêm sofrendo com o processo de invisibilidade e afronta aos seus direitos mais básicos e fundamentais. Assim, este estudo foi estruturado por base em uma investigação qualitativa acerca dos processos que afetam a saúde da população Quilombola, com vistas à identificação dos fatores em torno dos conflitos fundiários que podem influenciar significativamente a saúde dessa população. Para tanto, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com quatro Lideranças Quilombolas das Comunidades Marobá dos Teixeiras, no Município de Almenara – MG, Santa Tereza do Matupiri, no Município de Barreirinha – AM e Quilombo Carrasco, no Município de Arapiraca – AL. O estudo propiciou entendimento acerca da relevância de se considerar os impactos e consequências dos conflitos fundiários, em territórios Quilombolas, na saúde desta população, principalmente na saúde das Lideranças, as quais encontram-se na linha de frente pela defesa da vida e do direito de existir”.
Ponho desde logo em relevo, lembrando a propósito Boaventura de Sousa Santos sobre sua célebre tese desenvolvida no empírico de sua vivência nos anos 1970 na Comunidade do Jacarezinho, o impulso para sociologizar em primeira pessoa, designando a opção de assentar as bases de seu estudo, num lugar que não abstrai sua própria subjetividade. Assim também Ana Paula, abrindo o seu trabalho e de saída demarcando seu lugar de fala: “A motivação deste estudo surgiu bem antes da concretização de estar em um Mestrado, sendo eu, filha de um processo genocida de branqueamento racial, também conhecido como miscigenação, vivi por quase toda minha vida sem ter uma identidade, de um lado pertencente a uma família entendida como branca, embora fosse também miscigenada, e de outro tendo, apenas, como referência um pai negro”. Razão pela qual, sem afastar-se do rigor necessário ao correto modo acadêmico de analisar com objetividade, se obriga a um compromisso subjetivo: denunciar o racismo – esse “monstro devorador de vidas e memórias” e recuperar sua própria história – “me reconhecendo nos meus, e tantas descobertas que foi preciso olhos para me ajudar a enxergar”.
O ponto de partida da Dissertação é a afirmação de que “as Comunidades Quilombolas representam a maior frente de luta e resistência negra no Brasil, todavia nesses processos de resistência, os conflitos têm como elemento central os territórios, os quais são objetos de disputas e interesses ilegítimos e inconstitucionais de terceiros que, na disputa pela propriedade da terra, têm marcado os últimos anos com massacres e assassinatos cometidos com crueldade”.
Com dados da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) e a Terra por Direitos (2), no ano de 2017 houve um aumento de 350% de Quilombolas assassinados, se comparado ao ano de 2016. E ainda, segundo o Relatório “Defender la Tierra – Asesinados globales de defensores/as de latierra y el medio ambiente en 2016” (3), produzido pela Global Witness, no ano de 2016, 60% das mortes no campo aconteceram na América Latina, sendo o Brasil o líder em assassinatos.
Por isso que para a Autora, “é importante mencionar que a luta histórica das Comunidades Quilombolas pela propriedade – acesso à terra – desde a colonização aos dias atuais, passa a ser um direito fundamental ao território, inscrito no texto constitucional de 1988, no art. 68 do ADCT” , constituindo-se a “atualidade das tensões sobre as disputas pelo território Quilombola o cerne deste estudo para se compreender as consequências da violência na saúde das lideranças”.
Para a Autora, nesse contexto, em “que a violência física atrelada ao racismo, causa não apenas problemas físicos, mas também afeta a saúde em diferentes aspectos, a motivação deste estudo reside no interesse de compreender se, e como, a violência, afeta a saúde das Lideranças Quilombolas e os demais membros das Comunidades”, a proposta de seu trabalho “é trazer para o campo da política pública em saúde questões importantes a serem refletidas para uma política de saúde da população negra que perceba as singularidades dessa população em sua diversidade. Não se trata de pensar a questão da saúde Quilombola como recorte da saúde da população negra, mas sim pensar a saúde na sua integralidade”.
Segundo seu posicionamento, “corpos humanos não são os mesmos em todos os lugares, são variantes de inúmeras dinâmicas históricas, sociais, ambientais e políticas que precisam ser consideradas em todas as tomadas de decisões que envolvem as políticas públicas de saúde”. Assim, conquanto “o acesso de populações às ações de saúde, principalmente a população negra que vive em um processo histórico de desigualdades sociais e exclusões, põem em discussão alguns consensos fundados em pressuposto generalista e universalista de contextos, territórios e pessoas”, proposição e até o “compromisso assumido no trabalho está em levantar o questionamento desses pressupostos – da universalidade dos corpos, do entendimento único sobre estes, independentemente de onde estejam e de como vivem”.
O trabalho está dividido em dois momentos: um sobre a compreensão histórica dos Quilombos nos documentos e registros oficiais, a realidade e atualidade das questões fundiárias, intitulada de Parte I – QUILOMBO: a subversão à necropolítica, disposição que ela reforçou na sustentação oral no momento da defesa, composto por três textos, para o que, com base em autores que sustentam esse posicionamento, ela considera que “o termo Quilombo é uma categoria em disputa que não se dá apenas em razão da multiplicidade de sentidos que carrega ou das induções realizadas no tempo e no espaço, mas em torno de planos políticos e normativos, nos dois primeiros textos procuro tecer uma linha que percorre a definição acadêmica, normativa e política para que possamos entender os desafios postos para o reconhecimento desses grupos historicamente marginalizados: pensando esses grupos como sujeitos de direitos”.
Numa segunda Parte, “sem ter a audácia de achar que o assunto se esgote no trabalho” mas que reconheça que “a pauta da saúde da população negra é ampla e complexa, abordo, o tema da saúde em dimensão existencial (daí que tendo como suporte as entrevistas que realizou com lideranças quilombolas, numa opção metodológica que quer preservar “resgates de fios da memória que podem remeter a momentos marcantes de dor e fragilidade”, numa tradução autoconsciente, de que se trata sempre de uma luta “nós por nós”.
Sem que o tenha citado, porque afinal o livro foi publicado no momento mesmo em que a Autora completava a redação de sua dissertação, esse seu posicionamento, no que tange ao resgate do aquilombamento como um percurso dramático na trama histórica de nossa formação econômico-social, o que requer, diz ela “descolonizar nossas mentes”, o seu modo de articular suas categorias de interpretação, por exemplo, a recusas a admitir o termo remanescentes de comunidades de quilombos ou de considerar as lutas por emancipação como experiências políticas de humanização, fazer sujeito e sujeito de direitos, coincide com as teses sustentadas pelos autores e autoras quilombolas ou assessores de movimentos quilombolas que convidei para integrarem obra que co-organizei (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; RAMPIN, Talita Tatiana Dias; AMARAL, Alberto Carvalho (orgs). Direitos Humanos & Covid19. Grupos Sociais Vulnerabilizados e o Contexto da Pandemia. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2021). Refiro-me a Eduardo Fernandes de Araújo, Fernando Gallardo Vieira Prioste, Givânia Maria Silva e Vercilene Franscisco Dias, e ao texto que ofereceram para a obra Quilombos e Quilombismo: uma luta permanente, p. 387-418.
Extraio do artigo a consideração, tal como o faz a Autora da Dissertação, segundo a qual (p. 391), “Os racismos contra as comunidades quilombolas, além de perpetuar a invisibilidade das suas formas de vida perante o conjunto da sociedade brasileira, também colocam obstáculos que inviabilizam o Estado de implementar políticas públicas com assento constitucional que deveriam ser cotidianas, independentemente de quem ocupa o Governo Federal”.
É exatamente isso o que dizem os entrevistados pela Autora, numa riqueza etnográfica que valoriza o estudo, reunindo a íntegra das entrevistas nos anexos da dissertação como oferta para outra leituras possíveis.
Voltando ao texto que menciono e que consta da obra que co-organizei, destaco do item que trata do tema Quilombos e as Violações de Direitos Humanos na Pandemia Coronavírus/Covid-19, suas autoras e autores vão afirmar na mesma linha de constatação da Dissertação, a realidade da promessa da Constituição, que se mostra uma promessa vazia, a falta de programas e de políticas e mesmo de ações concretas:
Infelizmente a falta de ação de Estado para com as comunidades quilombolas tem muitas faces, sendo a mais recente delas a iniciada com a eleição da presidência da república em 2018. Além de manter na Fundação Cultural Palmares um presidente que rejeita a existência do racismo, o Presidente da República, cujo nome não se pronuncia, se recusa a promover ações de combate ao Coronavírus/Covid-19 nas comunidades quilombolas.
Diante da mais absoluta falta de ação de Estado, que sequer lançou mão de ações simples como a distribuição de cestas básicas para garantir isolamento social a muitos quilombolas, as comunidades, em conjunto com os povos indígenas e outros povos e comunidades tradicionais, propuseram e aprovaram, em tempo recorde, a Lei 14.024/2020 (Dispõe sobre medidas de proteção social para prevenção do contágio e da disseminação da Covid-19 nos territórios indígenas; cria o Plano Emergencial para Enfrentamento à Covid-19 nos territórios indígenas; estipula medidas de apoio às comunidades quilombolas, aos pescadores artesanais e aos demais povos e comunidades tradicionais para o enfrentamento à Covid-19).
O projeto aprovado, dada a situação de emergência sanitária, não previu medidas estruturais, como a efetivação do acesso à terra, mas contemplou medidas básicas e efetivas para a prevenção e o combate aos efeitos da pandemia…Contudo, o Presidente da República vetou a possibilidade de distribuição de alimentos, sementes, ferramentas agrícolas, água potável, materiais informativos, leitos hospitalares, Unidade de Terapia Intensiva, materiais de higiene e de limpeza. Vetou também a possibilidade de elaboração de um plano de combate ao coronavíruis nos quilombos, ou seja, um veto à necessidade do Estado planejar ações. O absurdo virou rotina, mas há quem faça diferente” (p.404-405).
Adiante o texto coleciona protagonismos e iniciativas de autopreservação das comunidades, em sua agência, comprovando a tese do nós por nós.
Considero que a Dissertação cumpriu seu objetivos. Poucas objeções. Algo que fica no âmbito pontual. Acostumado à modelagem da ABNT muito presente nos trabalhos da área de direito, confesso que estranhei o estilo Vancouver que a Autora utiliza para citações e referências bibliográficas, mas verifiquei que é uma notação técnica comum em trabalhos da área de saúde.
Assim também, p. 13-14, a abrupta redução a propósito de “apontar que dos estudos que propõem um movimento da teoria constitucional, é marcante a temática sobre os silenciamentos produzidos pelas narrativas hegemônicas sobre memória, história e identidade nacional, e que contribuem para inviabilizar os conflitos fundiários, assim como a luta tensa e complexa por igualdade, liberdade e propriedade que as Comunidades Quilombolas travam”. Nenhuma referência, nenhuma nota de roda-pé. Até acho que é procedente a afirmação. Mas ela não pode ser tão olímpica. De resto, se for o caso de designar suporte epistêmico a essa consideração, até concedo que ela poderá ser confirmada em obras que co-organizei: Série O Direito Achado na Rua vol. 3: Introdução Crítica ao Direito Agrário. Brasília/São Paulo: Editora UnB/Editora da Imprensa Oficial de São Paulo, 2002; O Direito Achado na Rua: Questões Emergentes, Revisitações e Travessias. Coleção Direito Vivo, volume 5. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2021.
No mérito do trabalho, uma questão ressalta da boa leitura oferecida pela Autora da Dissertação, sobretudo, a partir de suas conclusões. Se, conforme ela afirma, com Medeiros, uma de suas referências, o território é, “de início, um espaço cultural de identificação ou de pertencimento e a sua apropriação só acontece em um segundo momento”, e se “o racismo, os conflitos fundiários, a luta por direito ao território, o direito de existir e o pertencimento” repercutem sobre a saúde dos quilombolas, o que significa isso que chama “de apropriação em um segundo momento” do território, com toda a configuração do “mosaico de situações, agenciamentos, histórias e lutas das Comunidades Quilombolas”? E ainda, que perigo o território pode representar, ao trazer, como diz, “empoderamento e afirmação identitária”?
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
O Direito Achado na Rua: Questões Emergentes, Revisitações e Travessias
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
O Direito Achado na Rua: Questões Emergentes, Revisitações e Travessias: Coleção Direito Vivo, volume 5. José Geraldo de Sousa Junior et al (org). Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2021, 304 p.
Acaba de ser publicada e na próxima semana iniciamos um programa de lançamentos em eventos a distância, por meio de plataformas remotas (Canal Youtube de O Direito Achado na Rua), em rodas de conversas com autoras, autores, convidadas e convidados, a obra tema deste Lido para Você. Retiro do meu texto de introdução a esse quinto volume da Coleção Direito Vivo, O Direito Achado na Rua: Questões Emergentes, Revisitações e Travessias, texto aliás redigido em co-autoria com meu colega Eduardo Xavier Lemos, os excertos principais para esta apresentação. O primeiro, a própria Editora Lumen Juris que abriga a Coleção Direito Vivo, selecionou com síntese para descrever a obra:
Neste quinto volume, a reflexão coletiva parte do evento internacional realizado entre 11 e 13 de dezembro de 2019 na Universidade de Brasília, denominado o Direito como Liberdade: 30 Anos de O Direito Achado na Rua, organizado e coordenado pelo Coletivo O Direito Achado na Rua, que comemorou os 30 anos de O Direito Achado na Rua tendo como tema O Direito como Liberdade , esse direito entendido como expressão de uma legítima organização social da liberdade , tal como formulado por Roberto Lyra Filho, constitui o marco conceitual original do projeto denominado O Direito Achado na Rua.
O processo de construção do quinto volume dessa série, não obstante seu impulso conceitual e político anteriormente expostos, deu-se por uma metodologia similar a construção do segundo volume da Coleção, isto é, também teve origem em um programa de docência, dessa vez como desenho curricular de duas disciplinas Democracia e Violência (Mestrado e Doutorado da Faculdade de Direito) e O Direito Achado na Rua (Mestrado e Doutorado em Direitos Humanos e Cidadania), desenvolvidas em conjunto no 1º Semestre de 2020, tendo como eixo revisitar temas anteriormente trabalhados pela fortuna crítica do Coletivo O Direito Achado na Rua, aqui entendendo os IX Volumes da Série O Direito Achado na Rua.
E assim, foi montado um curso com estudantes conectados pelas mais diversas localidades do país, de ponta a ponta do espaço geográfico brasileiro, o que, somado as peculiaridades do momento pandêmico, gerou textos complexos, aprofundados, permeados pelas angústias de um tempo único, onde as introspecções das autorias, e as reflexões geradas pelos textos da disciplina (foram refletidos textos chave de O Direito Achado na Rua e de Roberto Lyra Filho), embalaram as revisitações emergentes e as trajetórias possíveis, a partir das inquietudes e urgências de um futuro incerto, impulsionados pelo retorno das utopias.
O segundo, mais analítico, mergulha nesse processo de construção do quinto volume da série, de modo a acentuar que não obstante seu impulso conceitual e político anteriormente expostos na apresentação da própria Coleção,, deu-se por uma metodologia similar a construção do segundo volume que a integra – O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática. Isto é, também teve origem em um programa de docência, dessa vez como desenho curricular de duas disciplinas Democracia e Violência (Mestrado e Doutorado da Faculdade de Direito) e O Direito Achado na Rua (Mestrado e Doutorado em Direitos Humanos e Cidadania), desenvolvidas em conjunto no 1º Semestre de 2020, tendo como eixo revisitar temas anteriormente trabalhados pela fortuna crítica do Coletivo O Direito Achado na Rua, aqui entendendo os IX Volumes da Série O Direito Achado na Rua, mas também a publicações anteriores da Coleção Direito Vivo, artigos científicos publicados por integrantes do coletivo, livros, dissertações, teses, tendo por provocação e desafio projetar as travessias possíveis a partir dos temas que são emergentes na sociedade atual.
No entanto, o momento de construção da obra foi peculiar, a população terrestre restringida em sua sanidade e liberdade a partir de uma pandemia causada por um vírus, o COVID-19, ou Coronavírus, que espalhou-se pelo continente aproximadamente 62,3 milhões de pessoas no mundo e deixando um número de aproximados 1,5 milhão de mortos no planeta. No Brasil, segundo o Ministério da Saúde, o número de casos seria equivalente a aproximados 6,3 milhões de pessoas com um total de aproximadamente 173 mil mortos, agora já ultrapassando a cifra estarrecedora de mais de 470 mil mortos.
A partir de tal fato, a metodologia de ensino de todo o país, e naturalmente da Universidade de Brasília, foi forçosamente adaptada, no início do semestre com poucos dias de aulas, as atividades, que seriam presenciais, foram suspensas por decisão do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (CEPE), de fato, até então entendia-se que a doença impactaria a rotina do continente latino-americano, da mesma forma que na Ásia e Europa. No entanto, em poucas semanas o vírus propagou-se com agressividade no continente, especialmente nas capitais, não sendo diferente o caso de Brasília, resultando em Lockdown, e assim, paralisação dos serviços no Brasil. As aulas só foram retomadas em Agosto de 2020 com atividades virtuais.
De fato, cumpre ressaltar alguns aspectos, se fez necessária a rápida adaptação da comunidade universitária aos meios tecnológicos, adotando plataformas para aulas ao vivo, permitindo postagens, interatividade entre professores, alunos e servidores, por meio da comunicação virtual. Foi necessária a formação de um coletivo de gestão da disciplina, composto por alunos voluntários, com a finalidade de organizar a plataforma de ensino, mas principalmente para possibilitar um mutirão de acolhida e agrupamento de estudantes da disciplina, em suas diferentes localidades, a partir do novo contexto de ensino, virtual e em tempos de pandemia, assim, em conjunto com servidores da Universidade de Brasília, procurou-se proporcionar por meio de todos os esforços possíveis a integração de todas e todos estudantes que estivessem interessados em cursar a disciplina. Esse mesmo coletivo de gestão foi responsável pela condução do editorial desse volume, estabelecendo o contato com a editora, traçando metas, prazos, definindo critérios em conjunto com as demais autoras e os demais autores.
Outro ponto relevante foi o resgate do modelo à distância de O Direito Achado na Rua, que, como expressou-se, surgiu a partir de sua primeira série em um curso à distância promovido pelo Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares, naquele tempo realizado por meio da comunicação dos correios, e agora, por meio virtual. O processo tecnológico, mesmo que forçadamente, de certa forma recupera as esperanças de Darcy Ribeiro em sua “Universidade Necessária”, ao expressar a importância do processo tecnológico para o ensino que estava a se projetar. É válido ressaltar, que a experiência do V.7 da Série O Direito Achado na Rua, Introdução Crítica à Justiça de Transição na América Latina, que em conjunto com a obra foi realizado um curso virtual, em parceria com o Ministério da Justiça serviu de legado.
E assim, foi montado um curso com estudantes conectados pelas mais diversas localidades do país, de ponta a ponta do espaço geográfico brasileiro, o que, somado as peculiaridades do momento pandêmico, gerou textos complexos, aprofundados, permeados pelas angústias de um tempo único, onde as introspecções das autorias, e as reflexões geradas pelos textos da disciplina (foram refletidos textos chave de O Direito Achado na Rua e de Roberto Lyra Filho), embalaram as revisitações emergentes e as trajetórias possíveis, a partir das inquietudes e urgências de um futuro incerto, impulsionados pelo retorno das utopias.
Para definir os eixos temáticos de escrita, o coletivo abriu uma plataforma interativa onde os alunos representaram suas inquietações a partir da problematização que dá título ao volume, “Questões Emergentes, Revisitações e Travessias Possíveis”, e posteriormente distribuíram-se a partir de suas afinidades temáticas, por meio do critério autoria coletiva.
Como mencionado, ao longo do programa de curso a primeira tarefa foi pensar temas ascendentes e emergentes tendo uma mirada dos trabalhos já realizados pelo coletivo como balizador, e de fato os desafios futuros como horizonte. E assim, o coletivo dividiu-se em oito eixos temáticos, com subeixos desenvolvidos a partir dos grandes eixos: 1) Povos Indígenas, Quilombolas e demais Povos e Comunidades Tradicionais; 2) Direitos Humanos e a Afirmação Histórica da Universidade Emancipatória; 3) Constitucionalismo Achado na Rua; 4) Emergências e Perspectivas LGBTQIA+; 5) Direito e Arte; 6) Direito à Cidade; 7) Acesso à Justiça na América Latina; 8) Revisitações Emergentes e Travessias Possíveis;
O livro caracteriza-se pelas experiências do coletivo que o redigiu, assessores jurídicos populares, lideranças indígenas e quilombolas, jornalistas, lideranças políticas, serventuários da justiça, artistas, poetas, ativistas, pesquisadoras e pesquisadores comprometidos com a democracia e um direito emancipatório. De especial relevo para a configuração dos eixos temáticos e de uma escrita renovadora e extremamente sensível é a presença de autores indígenas e quilombolas, dos povos Karajá, Pankararu e Kalunga que acrescentaram conhecimento e experiência transformadores ao curso e à obra.
Como não poderia ser diferente, o livro retrata os fundamentos de O Coletivo O Direito Achado na Rua, e assim, é inaugurado com uma reivindicação coletiva, as autoras Larissa Carvalho Furtado, Luana Bispo de Assis, Maíra de Oliveira Carneiro Pankararu, Natália Albuquerque Dino, Solange Ferreira Alves integrantes do primeiro eixo de autoria, elaboraram o “Manifesto por um Direito Achado nas Aldeias” onde problematizaram sobre a “necessidade de privilegiar a autonomia dos povos originários, de suas lutas, linguagens, práticas e produções, também no campo da construção do que se entende por “conhecimento”, “ciência” e “Direito” no pensamento jurídico brasileiro” (FURTADO, Larissa; ASSIS, Luana; PANKARARU, Maíra; DINO, Natália; ALVES, Sol) e assim apresentam uma convocação à um modelo epistemológico do Direito Achado na Aldeia inserido como um conjunto de instrumento teórico capaz de romper as práticas coloniais ainda hoje vigentes no ensino e na prática jurídica tradicional. (FURTADO, Larissa; ASSIS, Luana; PANKARARU, Maíra; DINO, Natália; ALVES, Sol)
Ainda referente ao primeiro eixo de redação, o capítulo “Direitos dos povos indígenas, educação judicial e ODANR”, redigido por Andrea Brasil, Célia Bernardes e Jonas Tavares, por sua vez propõe uma reflexão nucleada na noção de “autonomia dos saberes” dos povos indígenas onde procura-se a educação judicial como um instrumento emancipatório que contribui para a efetivação do direito à “autonomia dos saberes” dos povos indígenas a partir da fala dos indígenas Ademilson Kikito Concianza e Gilmar Kiripuku Galache . A experiência de educação judicial da Escola de Magistratura Federal da Primeira Região – ESMAF, e da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM), em sua imersão e intercâmbio intercultura com as comunidades indígenas foi tomada como base para a proposição científica. Ainda, entendem que o encantamento, a partir de um Direito Achado na Encruzilhada, há de expandir novos e frutíferos horizontes nos paradigmas da justiça social brasileira. Afirmam que na encruzilhada reafirma “as relações baseadas na diversidade, na interculturalidade e na multidisciplinaridade, sendo em si uma dinâmica que atenta contra as construções lineares e exclusivas de justiça. A Encruzilhada, portanto, é o local de encontro de epistemologias, metodologias, práticas, símbolos, conhecimentos e modelos analíticos, a partir de onde se desdobram infinitas possibilidades de debate e de intervenção para os problemas das comunidades violentadas pelo carrego colonial”. (BRASIL, Andréia. BERNADES, Célia, TAVARES, Jonas.)
O 1º eixo ainda teve uma terceira proposta autoral intitulada “O território achado na aldeia e no quilombo: a antítese da mercantilização neoliberal” de autoria de Carlos Henrique Naegeli Gondim, Joanderson Pankararu, Luís de Camões Lima Boaventura e Vercilene Francisco Dias, onde procuram abordar a complexidade de significados que o território tem na cultura indígena e quilombola, assumindo uma feição de condensador de direitos, “os territórios extrapolam a esfera meramente patrimonial, sendo indispensáveis à subsistência e reprodução das culturas e identidades coletivas desses grupos” (GONDIN, Carlos Henrique; PANKARARU, Joanderson; BOAVENTURA, Luis de Camões; DIAS, Vercilene Franscisco) e porque, diversos outros direitos humanos e fundamentais desses grupos étnicos guardam relação direta como território, tais como educação, saúde, liberdade de culto, e a própria identidade. (GONDIN, Carlos Henrique; PANKARARU, Joanderson; BOAVENTURA, Luis de Camões; DIAS, Vercilene Franscisco)
Por sua vez, a redação do capítulo “Direitos Humanos e o Papel Histórico da Universidade Emancipatória”, referente ao Eixo 2, ficou à cargo de André Luiz Lacerda Medeiros, José de Ribamar de Araújo e Silva, Mamadu Seidi e Maria Inês A. Ulhôa e tratou da relevância social das universidades públicas, para a construção de espaços emancipatórios, explicam que para tanto “é fundamental a adoção do modelo de universidade autônoma e necessária, preconizado por Darcy Ribeiro, superando o papel de meras detentoras do saber. Institucionalmente, a gestão universitária deve estar alinhada aos anseios da comunidade que a compõe, garantido o livre pensar e atenta a qualquer violação de direitos nas práticas universitárias.” (MEDEIROS, André Luiz Lacerda; SEIDI, Mamadu; ULHÔA, Inês A.). Destacam ainda em seu texto o papel dos canais de comunicação, avaliação e controle, exemplo das ouvidorias e dos espaços de tomada de decisão colegiada.
O 3º eixo redigiu o capítulo intitulado “O Constitucionalismo Achado na Rua, os Sujeitos Coletivos Instituintes de Direito e o Caso da APIB na ADPF nº 709”, texto redigido por Priscila Kavamura Guimarães de Moura, Mauro Almeida Noleto, Marconi Moura de Lima Burum e Renan Sales de Meira, propondo uma revisitação da temática do Constitucionalismo Achado na Rua, a partir da leitura dos sujeitos de direitos fundamentais por meio da análise da Medida Cautelar na ADPF nº 709 que determinou a legitimidade ativa da Articulação dos Povos Indígenas Brasileiros (APIB) para postulação em controle de constitucionalidade, resgatando a importância dos sujeitos coletivos de direito (instituintes) participarem da disputa hermenêutica do debate constitucional na Suprema Corte do Brasil (instituído) (MOURA, Priscila; NOLETO, Mauro; BURUM, Marconi; MEIRA, Renan;) .
Ainda referente ao mesmo eixo, a redação do capítulo “A Democracia Constitucional e a Proposta para um Constitucionalismo Inclusivo no Brasil”, foi realizada por Bárbara R. R. C. de Oliveira, Jean Patrício da Silva, João Paulo Santos Araujo e Samuel Barbosa dos Santos, o tema propôs interpretar o momento constitucional brasileiro tomando O Direito Achado na Rua como ferramenta para sugerir um constitucionalismo inclusivo e emancipatório que resista à escalada autoritária contemporânea. (OLIVEIRA; SILVA; ARAUJO; SANTOS). Para isso, foi realizada uma análise histórica do processo constituinte 1987-88, com base nos movimentos sociais e no conceito de crise constitucional para tratar da construção institucional do Estado brasileiro visando identificar a crise de representação democrática do país. Ainda, o artigo “destinou espaço para versar sobre a premissa de que somente um constitucionalismo efetivamente inclusivo – que prima pelo fortalecimento das instituições democráticas e pela real inclusão dos grupos sociais vulneráveis – é meio adequado para se instaurar uma concreta resistência à precarização de direitos e silenciamento de vozes em uma democracia cada vez mais frágil.’ (OLIVEIRA, Bárbara; SILVA, Jean; ARAUJO, João Paulo; SANTOS, Samuel)
O livro avança com o capítulo “Emergencias LGBTQIA+ para um 2030 possível !(?)”, que toca o quarto eixo de divisão de autorias, foi redigido por Caroline Vargas e Tiago Benício Trentini e refletiu sobre os 17 grandes Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), que propôs um desenvolvimento sustentável através das perspectivas sociais, econômicas e ambientais, analisando sob a perspectiva do Direito Achado na Rua se a população LGBTQIA+ pode ser inserida nestas propostas e em que medida (e se) a população LGBTQIA+ têm suas vivências contempladas nessa agenda, e portanto, sua emancipação é respeitada e contemplada. (VARGAS, Caroline; TRENTINI, Tiago;)
O quinto eixo de autorias, composto por Anelisa Lacerda de Medeiros, Carla Ramos, Edson Junio Dias de Sousa, Mara Lina Silva do Carmo, Paulo Alves Santos e Willy da Cruz Moura formou o capítulo “O Direito Achado na Rua e Arte: ensino jurídico e questões emergentes no contexto de pandemia “ , que refletindo sobre o papel do Direito e da Arte, suas interações e contribuições, revisitando Roberto Lyra Filho, Luís Alberto Warat, Roberto Aguiar, a partir de suas sensibilidades artísticas e de como as mesmas influenciaram como um todo a concepção e o processo de O Direito Achado na Rua, da literatura de Lyra, à musicalidade de Aguiar, à carnavalização de Warat, os autores ainda se propõe a uma reflexão de como a arte e o direito, podem contribuir para projetos utópicos nos tempos de pandemia.
A redação do capítulo “Mulheres Negras nas Entrelinhas dos Centros Urbanos Brasileiros: Direito À Cidade Achado na Rua”, à cargo do sexto eixo de autorias, foi escrito por Amanda Machado de Liz, Andrielly Larissa Pereira Silva, Ilka Teodoro, Letícia Miguel Teixeira, Natália Soares Batista, Sabrina Durigon Marques e Vinícius de Souza Assumpção, e em síntese propôs a discussão do direito à cidade, tendo por fundamento o Direito Achado na Rua, a partir do histórico de subalternidade vivido coletivamente por mulheres negras nos espaços urbanos públicos e privados, construindo sujeitas coletivas em permanente luta pela realização de direitos fundamentais enquanto garantem subsistência, levando em conta que a mulher, e especialmente a mulher negra, que sempre teve protagonismo na ocupação do espaço público da cidade brasileira, e por desempenhar as principais atividades que nesses espaços dão vida à cidade. (LIZ, Amanda; SILVA, Andrielly; TEODORO, Ilka; TEIXEIRA, Letícia; BATISTA, Natália; MARQUES, Sabrina; ASSUMPÇÃO, Vinícius;)
Por sua vez, o sétimo eixo de redação foi composto por Anne Carolline Rodrigues da Silva Brito, Gustavo de Assis Souza, João Paulo Hakuwi Kuady Karaja, Manuela de Santana Passos, Marcelo Pires Torreão, Mariane Carolina Gomes da Silva Rocha e Pedro Henrique Fernandes das Chagas, elaboraram o capítulo “Movimentos Sociais, Acesso À Justiça e Emergência do Autoritarismo na América Latina” que se dispôs a refletir sobre como o autoritarismo neoliberal em países latino-americanos se concretizou à base da redução de direitos e garantias, do enfraquecimento de movimentos sociais, dificultando e restringindo o alcance da população aos sistemas judiciais e extrajudiciais. Explicitam que “o declínio de direitos fundamentais mitiga o acesso à justiça e demanda a adoção de medidas de combate ao autoritarismo, seja através dos mecanismos institucionais legítimos, seja através da educação em direitos e movimentos revolucionários”. (BRITO, Anne; SOUZA, Gustavo; KARAJA, João Paulo; PASSOS, Manuela; TORREÃO, Marcelo; ROCHA, Mariane; CHAGAS, Pedro;)
O derradeiro capítulo, de incumbência do oitavo eixo, de tema “Revisitações Emergentes e Travessias Possíveis: Olha o Breque! O Direito Achado na Rede e a Greve dos Entregadores de Aplicativos.”, redação de Antonio Carlos de Mello Rosa, Eduardo Xavier Lemos, Rose Dayanne Santana Nogueira e Thaisa Xavier Chaves, que revisitaram o 1º Volume da Série O Direito Achado na Rua, Introdução Crítica ao Estudo do Direito, o 2º. Volume- Introdução Crítica ao Direito do Trabalho, e o Volume 8º – Introdução Crítica ao Direito à Comunicação e à Informação, para falar dos sujeitos coletivos que emergem num contexto contemporâneo, infocomunicacional, numa sociedade conectada, mas que refletem as desigualdades sociais anteriores, como uma espécie de atualização do capitalismo, especialmente o caso dos entregadores de aplicativo, (ROSA, Antonio; XAVIER LEMOS, Eduardo; NOGUEIRA, Rose; CHAVES, Thaisa;) que no contexto da pandemia passaram a realizar os “breaks”, tornando necessária a reflexão sobre a potencialidade organizacional e emancipatória do incipiente movimento desses trabalhadores.
O termo que embalou as reuniões de introspecção e aflição em tempos de pandemia foi “potente”, a potência de Roberto Lyra Filho, e do Coletivo O Direito Achado na Rua conduziu um semestre de forte imersão em um futuro possível, em disputa e no rompante à legítima organização social da liberdade.
As imagens da capa, essa também concebida pelo coletivo de autores e apenas otimizada na elaboração do design gráfico pela equipe técnica da Editora, são de Joanderson Gomes de Almeida (Pankararu), João Paulo Hakuwi Kuady Karajá e Vercilene Franscisco Dias (Quilombola), todos autores; assim como os poemas e as epígrafes que entremeam as unidades também foram elaborações de autoras e autores do livro.
A participação de acadêmicas e acadêmicos autoras e autores com identidades inscritas em povos originários (indígenas) e tradicionais (quilombolas), ganhou relevo no processo de produção e edição do livro, nesse aspecto de forte imaginário e também na orientação epistemológica da obra. Basta ver que esses intelectuais em sentido o mais expandido possível que se possa atribuir ao termo, acabaram conquistando não apenas o seu lugar narrativo no livro, a partir de seus textos distribuídos em diferentes eixos, como arrebataram o prefácio da obra para a partir dele inscrever no contexto da edição um quase manifesto.
Retiro do prefácio, nesse sentido, um trecho que integrado ao arranjo coletivo de sua elaboração, recolheu uma enunciação trazida em intervenção nos debates preparatórios – os seminários de redação – por Maíra Carneiro, do Povo Pankararu, de rara beleza e simbolismo:
“Sobre os Pankararu, apresentamos o Flechamento do Imbu , a Corrida do Imbu, o Menino do Rancho , dentre outras tradições, mas o que chamou a atenção da turma foi o Prayá . O Prayá (ou Praiá) não é um homem, um indígena, um Pankararu. Uma vez com as vestes feitas da fibra do caroá (ou croá), ali está a Força Encantada, a expressão máxima da religiosidade do nosso povo. A foto representa um símbolo muito forte dos Pankararu, pois mesmo depois de anos de tentativas de aculturação, assédio, violência, preservamos com afinco aquilo que acreditamos. É o ícone de nossa resistência. Nós Pankararu nascemos da terra, somos filhos da terra. Sã Sé nos enterrou no chão e brotamos como árvores. Também somos guardadores de sementes, onde chegamos preparamos o chão e deixamos um pouco do que é nosso germinar e tomar seu ciclo de vida. Foi assim com o Direito Achado na Rua”.
Com igual potência afetivo-cognitiva, chamo a atenção para o posfácio – Das palavras, das perguntas e das vozes: uma questão de método sensibilizador – escrito por Tiago Benício Trentini e por mim. Ele diz muito do que representou, nas circunstâncias, construir o percurso da edição dessa obra:
“O pensar, o sentir e o agir foram os verbos que nos trouxeram até aqui e que certamente nos levarão adiante. Não poderíamos renunciar à oportunidade da reunião de tantas pessoas tão completas em suas diversidades quanto potentes em suas perspectivas. Os aproveitamentos deste espaço e deste tempo para articular pensamentos canoas que nos fizessem navegar águas turbulentas em travessias na direção de uma sociedade diferente, mais diversa, plural, justa, humana e emancipada – deram a tônica”.
Em sua típica organicidade, importante pressuposto do projeto de O Direito Achado na Rua, a dimensão reflexiva e compreensiva emergente da atuação jurídica dos novos movimentos sociais e das experiências populares de criação do direito, o coletivo não somente cumpriu com os objetivos de “determinar estes espaços políticos no qual se enunciam direitos”, de compreender e “definir a natureza jurídica do sujeito coletivo capaz de elaborar um projeto político de transformação social” e de “enquadrar os dados derivados destas práticas sociais criadoras de direitos e estabelecer novas categorias jurídicas para estruturar as relações solidárias de uma sociedade alternativa” (SOUSA JUNIOR, 1982, p.10 ) como concretizou e deu corpo – diverso, colorido e fluido – à resposta do O que é o Direito? “O Direito não é; ele se faz, nesse processo histórico de libertação – enquanto desvenda progressivamente os impedimentos da liberdade não lesiva aos demais. Nasce na rua, no clamor dos espoliados e oprimidos” (LYRA FILHO, 1982, passim).
Entre sorrisos alegres pelos encontros nas aulas online e alargamentos de perspectivas, emoções e choros de descobertas e empoderamentos, aprendizados e sensibilidades (re)adquiridas, nasceu esta obra: nossa poesia militante.
É preciso estar (sempre) atento e forte para sentimento motriz para de toda a travessia: a utopia. O Direito Achado na Rua é projeto das utopias, dos pés no chão de terra batida, de serragens e de asfalto.
Volto ao texto para dele recuperar, já que mencionei a dimensão poética de autorias exercitadas na elaboração do livro, no caso, um poema de Natália Dino:
Lições de um Direito Achado na Rua
(Natália Dino)
Aprendi que o coletivo de passarinho é revoada
E de caminho é caminhada
De gente viva intransigente indignada
Que pisa o chão da terra
Sente a terra
Dança a terra
Indigenada
Refaz trajetos traça projetos
De cidade felicidade
Compartilhada
Que tem história
Que tem futuro
Que tem memória
– que toda agrura é transitória –
Se vê a rua
Se vai à rua
Se ocupa a rua
Colore a rua
Compõe a rua
A grande rua
Emancipatória
Com efeito, eis algo, que o poema revela, e que o livro faz questão de escandir: O Direito Achado na Rua é projeto das utopias, dos sonhos realizáveis e das projeções de Roberto Lyra Filho e seus companheiros e companheiras da Nova Escola Jurídica Brasileira desde os primeiros passos de reflexão há pouco mais de três décadas.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
Assessoria Jurídica Popular no Marco do Pensamento Decolonial. Direitos e Saberes Construídos nas Resistências Populares
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
Título original: A Assessoria Jurídica Popular no Marco do Pensamento Decolonial. Direitos e Saberes Construídos nas Resistências Populares. Maria do Rosário de Oliveira Carneiro. Belo Horizonte: Editora Dialética, 2020, 292 p.
Eu já havia antecipado uma notícia sobre o livro ora Lido para Você, incluindo um comentário até expandido, claro que oralmente, por ocasião de mesa virtual promovida pelo Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, nos eventos de mobilização em abril do Fórum Social Mundial Temático Justiça e Democracia: A Construção do Justo e a Assessoria Jurídica Universitária Popular (https://www.youtube.com/watch?v=PjX55rLsWbM) .
Nesse comentário, além de indicar a novidade do livro, eu pretendi contextualizar a publicação, um trabalho acadêmico que se projeta de uma prática pedagógica para um âmbito de protagonismo político que se inscreve na atuação das assessorias jurídicas populares em apoio as lutas sociais por reconhecimento, instituição de direitos e emancipação contra todas as formas de opressão e de espoliação.
De comum, o tentar configurar esse processo em seu sentido mais transformador, inserindo-o no que Boaventura de Sousa Santos tem chamado de revolução democrática da justiça. Confira-se, a propósito meu Lido para Você sobre o inspirado livro de Boaventura: http://estadodedireito.com.br/para-uma-revolucao-democratica-da-justica/.
Vem dessa leitura o impulso para pensar em sentido alargado o acesso à justiça e mais ainda a própria justiça a que se quer acesso, numa mobilização que pôde ser conduzida em resposta a demandas de formulação de política públicas, a partir de convocações do poder público ao pautar esse tema. Retiro desse texto alguns indicadores que vale repor aqui no curso de meus comentários sobre a obra objeto deste Lido para Você.
Assim é que, respondendo a edital do Ministério da Justiça, sobre elaborar uma concepção de observação do sistema de justiça e judiciário, que chegamos a uma formulação que levasse em conta essa concepção alargada. A propósito, in https://revistajuridica.presidencia.gov.br/index.php/saj/article/view/223, vol. 10, n. 90, 2008, o meu texto Por uma concepção alargada de Acesso à Justiça, representando todo o Coletivo que elaborou a proposta, cujo resumo pode ser assim lido: “Este trabalho tem o intuito de mapear a atual situação dos meios de acesso à justiça no Brasil, abordando o modo como as relações Estado-sociedade se fazem presente nas esferas públicas de construção do direito e até que ponto os movimentos sociais são reconhecidos como fonte criadora de direitos. Para tanto, propõe-se uma discussão acerca de temas levantados pela sociologia da pós-modernidade, discussão esta decorrente da ação dos movimentos sociais na dinâmica própria do direito plural por eles fundado. Ao fim, propõem-se mudanças na postura das estruturas jurídicas de ensino, pesquisa e aplicação para que haja um reconhecimento da construção social do direito”.
Em seguida, também no espaço desse Lido para Você, a leitura sobre os resultados alcançados com a pesquisa – https://estadodedireito.com.br/observatorio-do-judiciario/ – mostrando o quanto foi possível estabelecer diálogo com assessorias jurídicas de movimentos sociais e extrair de suas observações, a visão negativa dos modelos adjudicatórios do sistema legal e judiciário, presos às normas constituídas como unidade de análise das relações de conflito e incapazes de realizar até mesmo as promessas constitucionais de realização da Justiça, entre outros fatores, pela “resistência a trabalhar com o direito da rua”, pela “baixa sensibilidade para as demandas da comunidade”, pelos “limites culturais para a percepção de sujeitos e demandas inscritas nos conflitos sociais”, pela manutenção de “corpo com formação técnica desvinculada das experiências do mundo da vida”, pela “postura institucional burocrática” e pela “pouca permeabilidade ao controle social”.
Mostrando também, o quanto em contrapartida, pediam esses prestamistas de uma Justiça atualizada e modernizada para além do simplesmente funcional-burocrático-legal: “respeito às temporalidades democráticas”, “fortalecimento comunitário”, “educação em Direitos Humanos”, “uso dos meios de comunicação”, “conscientização e sensibilização” e, em síntese, “reconhecimento e acreditamento do protagonismo das experiências de mediação social realizadas fora das instâncias estatais”.
Voltei a empregar essa expressão ao produzir o prefácio “Uma concepção alargada de acesso e democratização da justiça”, para o livro editado pela Terra de Direitos e pela Articulação Justiça e Direitos Humanos, com a organização de Antônio Escrivão Filho, Darci Frigo. Érica de Lula Medeiros, Fernando Gallardo Vieira Prioste, Luciana Furquim Pivato, “Justiça e Direitos Humanos: Perspectivas para a Democratização da Justiça, vol. 2, Curitiba: Terra de Direitos, 2015, procurando corresponder às expectativas postas na publicação sobre “o aumento do interesse das organizações do campo popular pelo papel social do Poder Judiciário (que) aponta para necessidade de construir ações coletivas e estruturantes, que estejam além da litigância reativa e incidam sobre a agenda política de justiça, com uma perspectiva estratégica que vá muito além da busca de soluções para situações concretas e pontuais”.
A nota de identidade que se estabelece para aferir a coerência e o potencial utópico desse material, está na sua virtualidade, inclusive semântica (CORREIA, Ludmila Cerqueira, ESCRIVÃO FILHO, Antonio; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Exigências Críticas para a Assessoria Jurídica Popular: Contribuições de O Direito Achado na Rua. Coimbra: CesContexto, Debates n. 19, outubro de 2017), de se instalar como plataforma para um direito emancipatório (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Concepção e Prática do O Direito Achado na Rua: Plataforma para um Direito Emancipatório. Brasília: Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário, 6(1), abril/junho, 2017), para o exercício protagonista, crítico e criativo, operando novos e combinados mecanismos políticos e técnicas jurídicas, para o alargamento democrático do sistema de justiça.
Por isso que sempre estou retornando a esse tema e muito frequentemente nesse espaço Lido para Você, no qual – https://estadodedireito.com.br/experiencias-compartilhadas-de-acesso-a-justica-reflexoes-teoricas-e-praticas/, sempre que posso volto a ele, conforme minha leitura de REBOUÇAS, Gabriela Maia; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; CARVALHO NETO, Ernani Rodrigues de (Organizadores). Experiências Compartilhadas de Acesso à Justiça: Reflexões teóricas e práticas. Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo, 2016, 281 p. Texto Eletrônico. Modelo de Acesso World Wide Web (gratuito). www.esserenelmondo.com.br, no qual, na dupla perspectiva proposta no conjunto da obra ressalto o que em meu texto no segundo trabalho destacado denominei Por uma Concepção Alargada de Acesso à Justiça. Que Judiciário na Democracia?
Foto: Arquivo/Agência Brasil
Sustentei que realizar a promessa democrática da Constituição era e é ainda o desafio que se põe para o Judiciário e para responder a esse desafio precisa ele mesmo recriar-se na forma e no agir democrático. Mas o desafio maior que se põe para concretizar a promessa do acesso democrático à justiça e da efetivação de direitos é pensar as estratégias de alargamento das vias para esse acesso e isso implica encontrar no direito a mediação realizadora das experiências de ampliação da juridicidade. Com Boaventura de Sousa Santos podemos dizer que isso implica dispor de instrumentos de interpretação dos modos expansivos de iniciativas, de movimentos, de organizações que, resistentes aos processos de exclusão social, lhes contrapõem alternativas emancipatórias.
Por isso que, um procedimento de pesquisa que intente operar a partir dessa visão de alargamento, pensando o tema do acesso democrático à justiça, não pode descuidar-se da designação cartográfica das experiências que se fazem emergentes. Sob tal perspectiva, diz Boaventura de Sousa Santos, as características das lutas são ampliadas e desenvolvidas de maneira a tornar visível e credível o potencial implícito ou escondido por detrás das acções contra-hegemônicas concretas. Isso corresponde, completa Sousa Santos, a atuar “ao mesmo tempo sobre as possibilidades e sobre as capacidades; a identificar sinais, pistas, ou rastos de possibilidades futuras naquilo que existe” (SANTOS, Boaventura de Sousa, Poderá o direito ser emancipatório?, Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 65, CES, Coimbra, maio de 2003. p. 35).
Folgo ter seguido com muita aderência aos enunciados propostos por Boaventura de Sousa Santos, em “Para uma Revolução Democrática da Justiça”. Aliás, esses enunciados, aplicados àquela pesquisa no interesse do Ministério da Justiça, mereceram da equipe do notável professor uma aquiescência, em termos, expressa no parecer pedido pelo MJ para avaliar o trabalho feito, valendo destacar do parecer – http://pensando.mj.gov.br/wp-content/uploads/2015/07/15Pensando_Direito3.pdf – a consideração em todo caso, embora abonadora mas que aponta para questões que se armam problematicamente para o futuro que se seguiu àquela conjuntura, sob muitos aspectos, desastrosa para o País e não só para o Sistema de Justiça: “A justiça brasileira está neste momento colocada perante o desafio da sua democratização. Trata-se de um desafio exigente sobretudo quando se têm em conta que o sistema judicial é um campo de conflito em que interesses económicos e corporativos têm forte incidência e tendem a prevalecer. A proposta analisada está consciente do grau de exigência desse desafio e procura enfrentá-lo com êxito ao tentar incorporar em um único modelo de agenda política: reflexão académica, pesquisa empírica, participação social e concertação política. Nesse sentido, deve ser saudada. Enquanto modelo de agenda política destinado a uma Secretaria de Estado, a proposta deve ser ressaltada pelo seu carácter inovador na medida em que busca aproximar poder político e justiça tendo em vista a transformação democrática de um e de outra”.
Com esses pressupostos volto ao livro tema desta Coluna. Ele resulta de trabalho, tal como apresenta a bem cuidada edição da Editora Dialética (que publica na modalidade impressão sob demanda, sem estoques), apoiada por respeitável conselho editorial, que “versa sobre a Assessoria Jurídica Popular (AJP), direitos e saberes construídos nas resistências populares. O objetivo central da pesquisa foi identificar se a AJP pode ser considerada um modo decolonial de pensar e de construir o Direito. Parte-se da hipótese de que a AJP se constrói como um instrumento contra-hegemônico que afirma o Pluralismo Jurídico e um contraponto ao Direito e a advocacia convencionais, propondo-se a construção de novos direitos e novos conhecimentos jurídicos e a dar visibilidade as pessoas inviabilizadas, apoiando, assessorando e fortalecendo as lutas por direitos dos movimentos e organizações populares. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica, mas que também utilizou-se de recursos como estudos de documentos, notas, publicações populares e alternativas, sítios, blogs, etc., instrumentos utilizados por movimentos sociais e pela AJP para dar visibilidade as suas teses, denúncias e reivindicações. Apresenta-se a abordagem metodológica utilizada no trabalho e a relação da pesquisadora com o tema da pesquisa, passando pelas trilhas do ser nordestina na Região do Sisal no sertão da Bahia. Trabalha-se o estado da arte da assessoria jurídica popular e o marco teórico do ‘Pensamento Decolonial’. Apresenta-se uma experiência concreta de trabalho da AJP a partir da atuação na Ocupação urbana de luta por moradia, Comunidade Dandara, em Belo Horizonte, Minas Gerais e conclui que a AJP é um modo decolonial de pensar e de construir o Direito”.
Pesquisa desenvolvida para programa de pós-graduação na Universidade Federal de Ouro Preto, o estudo tem a instigação própria do percurso militante da autora, mas a subjetividade sensível de que ela se constitui, bastando ver, para além da elegância da narrativa, com a opção de escrita no feminino e a mostra poética como lê o mundo, pela mediação dos mesmos temas (Justiça,/tira a venda dos teus olhos/veste o traje do povo,/empoeira os teus pés com a terra/que aspira liberdade./Posiciona-se ao lado de quem/sente na pele a dor das injustiças./Toma partido!?/…
Disso dão conta as apresentações da orientadora professora Tatiana Ribeiro de Souza, cuidadosa em rastrear a produção do jurídico atenta às injunções da colonialidade, porque “A colonialidade do poder, do ser e do saber não se prolongaria no tempo sem as instituições modernas que a reproduzem, incluindo as faculdades de direito e as instituições estatais de justiça. Isso porque, no campo jurídico, a modernidade se caracteriza pelo reconhecimento de uma única fonte de produção do direito, que é o Estado tornando todos os outros regimes jurídicos, dos povos originários e das comunidades tradicionais, subordinados ao seu poder uniformizador por meio do direito estatal. Nesse sentido o estado, tal como conhecemos hoje, regula a sociedade para assegurar a hegemonia do sistema mundo produzido pela modernidade europeia, acentuando o distanciamento entre os interesses defendidos pelo estado e os interesses populares”.
Assim também o co-orientador, o querido amigo José Luiz Quadros de Magalhães, que remete ao quadro teórico do trabalho, para assinalar que “para realizar o seu objetivo, o livro percorre o conceito de povo e de popular, buscando para o diálogo os referenciais teóricos críticos presentes nas construções argumentativas nas ações das assessorias jurídicas populares. Duas referências críticas fundamentais são abordadas neste momento: o ‘direito achado na rua’ e a ‘pedagogia do oprimido’, que entre outros movimentos do pensamento, contribuíram na produção de conhecimentos pelas assessorias jurídicas populares”.
Essa constatação não é uma novidade, já Nita Freite (viúva e colaboradora de Paulo Freire), a havia estabelecido, antecipando a articulação que Maria do Rosário traz em seu livro: “Por tudo que foi exposto torna-se passível asseverar, que, a relação de Paulo Freire com o Direito nega veemente a concepção tradicional do direito da Modernidade e se alia ___ talvez fosse mais correto dizer que ele, ao lado de outros intelectuais que enriqueceram o pensamento da esquerda mundial criaram um nova leitura do mundo, humanista e transformadora, dentro da qual meu marido concebeu uma teoria epistemológico-ético-político-antropológico-critica de educação, que está alinhada com a concepção do Direito Achado na Rua, a Teoria Dialética Social do Direito”. (Acesso à Justiça e a pedagogia dos vulneráveis; ou O pensamento de Paulo Freire e sua relação com o Direito como prática para a libertação. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de, et al (orgs). Série O Direito Achado na Rua. Introdução Crítica ao Direito à Comunicação e à Informação. Brasília: FAC Livros/UnB, 2017 – https://faclivros.wordpress.com/2017/03/29/o-direito-achado-na-rua-v-8-introducao-critica-ao-direito-a-comunicacao-e-a-informacao/) .
No livro, o percurso teórico-político da autora transparece no sumário da obra, uma fonte de instigação para a expandida rede de assessorias jurídicas populares (incluindo as universitárias). Com uma Introdução que se desdobra em objetivo, problema e organização do trabalho, a linguagem no percurso metodológico e o percurso metodológico, propriamente dito, a Autora traz um capítulo tratado da Relação da Pesquisadora com o Tema: pelas Trilhas do Ser Nordestina, no qual situa As Resistências do Popular e a Colonização na Região do Sisal no Sertão da Bahia; as Resistências e Saberes Populares Construídos na Região do Sisal e O Encontro com a Teologia da Libertação e a Consciência das Injustiças. Lodo o capítulo terceiro, forte em configurar O Estado da Arte da Assessoria Jurídica Popular e a Arte de Advogar na Contramão do Sistema. Aqui o pulsar da obra: Assessoria Jurídica Popular: De Qual Povo se Está Falando?, Antecedente Histórico da AJP no Brasil: a Atuação de Advogadas/os na Defesa das Pessoas Escravizadas e das Vítimas da Ditadura Militar-Civil-Empresarial de 1964; Referências Teóricas da Assessoria Jurídica Popular; O Direito Achado na Rua; A Pedagogia do Oprimido; Conhecimentos Produzidos acerca da Assessoria Jurídica Popular; Formas de Organização da AJP no Brasil; Associação de Advogados e Advogadas dos Trabalhadores Rurais da Bahia (AATR); Rede Nacional de Advogadas/os Populares (RENAP). Depois vem o capítulo teórico-epistemológico paradigmaticamente designado: Pensamento Decolonial: Insurgência Contra as Opressões das Colonialidades Atuais, compreendendo Pensamento Decolonial e Colonialidade; Conceito de Colonialidade e o Processo de Construção do Pensamento Decolonial; Dimensões do Pensamento Decolonial; Dimensão do Bem Viver; Dimensão do Novo Constitucionalismo Latino-Americano; Dimensão do Pluralismo Jurídico; Dimensão da Visibilidade das Mulheres; Dimensão dos Novos Direitos e Novos Sujeitos; A Colonialidade Presente no Sistema de Justiça e a Luta por um Sistema de Justiça Decolonial. A obra se completa com o capítulo de apropriação no empírico dos fundamentos teóricos, ensejando a circuição teórico-prática que dialetiza o processo: Assessoria Jurídica Popular e Ocupações Urbanas: Modos Decoloniais de Pensar e de Construir o Direito. É então quando o chão que se pisa interpela a cabeça para fazê-la pensar: Por Que as Pessoas Ocupam?; Ocupação-Comunidade Dandara: Narrativas de uma Luta Onde o Povo ‘Construiu a sua Própria Sentença’; Dois Processos Judiciais no Chão da Secretaria da Vara da Fazenda Pública e a ‘Sentença’ Construída na Luta; A Premiação pelo Descumprimento da Função Social da Propriedade e a Ação de Desapropriação dos Terrenos; Sobre a Função Social da Propriedade e Ilícito Funcional; Ocupações Urbanas: Por um Modo Decolonial de Acesso ao Direito à Terra e à Moradia. Depois, as Considerações Finais e as Referências.
A Autora não reduz o seu estudo a uma antologia de práticas que possam representar o sentido e o alcance ativo de assessoramento jurídico popular. Ela tem o cuidado de escorar a sua análise desse processo em referências teórico-críticas que ao jurídico aportaram o marxismo, a filosofia da libertação a pedagogia da autonomia, as hipóteses sociológicas do pluralismo jurídico e a “teoria do Direito Achado na Rua”.
Constato a boa recensão que elabora neste campo, no qual pontuo, conforme ele própria confere, e noto que ela extrai da fortuna crítica de sua construção político-epistemológica, valendo-se de referências muito qualificadas para apoiar sua abordagem, os melhores achados.
Conquanto essa fortuna ainda se constate estar em processo, valendo constar que depois da conclusão do trabalho novas aquisições se agregaram e a essa fortuna, atualizando-a – anoto apenas para colaborar as edições agora em 2021 do vol. 5 da Coleção Direito Vivo (Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris) de O Direito Achado na Rua. Questões emergentes, revisitações e travessias; e o vol. 10, da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade (Brasília: Editoras UnB e OAB), ambos sob a minha co-organização – os aportes trazidos pela Autora se fazem de modo muito pertinente:
“Verifica-se que o processo de semeadura e de germinação do Direito Achado na Rua se deu em terra fértil da academia conjugada com as lutas sociais que buscam a reconstrução da educação, sobretudo da educação jurídica, comprometida com a formação de juristas assessoras/es das lutas populares, de professoras/es e estudantes, com o objetivo de fortalecer a concepção crítica do Direito, colocando-o como instrumento de transformação, mas também de ruptura com o direito hegemônico colocado a serviço dos interesses das classes opressoras.
O aspecto educativo do Direito Achado na Rua sempre esteve presente nas experiências dos coletivos de AJP que adotam também uma pedagogia com princípios freirianos, precisamente centrada na Pedagogia do Oprimido. Nesse sentido, os atos de assessorar, advogar, aprender e ensinar, são perpassados por uma pedagogia que visa, ao mesmo tempo, aprender e ensinar, para libertar-se e libertar as vítimas das opressões e injustiças impostas pelos poderes opressores” (p. 103).
As observações da Autora não discrepam de constatações que pude aquilatar, a partir de pesquisa realizada em atendimento a edital promovido pela antiga Secretaria de Reforma do Judiciário, do Ministério da Justiça (Governo Democrático-Popular), com objetivo de institucionalizar um Observatório da Justiça. Remeto ao documento síntese publicado e divulgado, acessível, ainda hoje nos repositórios do Ministério (O texto completo do documento – a pesquisa é muito mais ampla – pode ser consultado aqui: http://pensando.mj.gov.br/wp-content/uploads/2015/07/15Pensando_Direito3.pdf).
Das entrevistas, concedidas por representantes de assessorias jurídicas populares de movimentos sociais, pode-se alinhar algumas observações que aparecem no livro ora Lido para Você:
Respeito às temporalidades democráticas. Parcela significativa dos entrevistados ressaltou a dissonância entre o tempo de que os grupos sociais necessitam para avaliar com profundidade suas demandas e tomar decisões e a temporalidade típica dos processos judiciais ou administrativos, que não levam em consideração os processos sociais, mas apenas resultados. Os entrevistados mencionaram frequentemente que sem respeito ao protagonismo dos grupos e das comunidades com quem trabalham, aos seus ritos e ao tempo necessário para a produção do convencimento, sua atuação carece de legitimidade e não produz bons resultados.
Fortalecimento Comunitário. Os entrevistados chamam atenção para que as demandas dos grupos sociais sejam identificadas como demandas coletivas, e não como problemas individuais. Algumas demandas revelam problemas estruturais da sociedade, que a configuração liberal do sistema de Justiça não permite captar com toda a complexidade. O fortalecimento das instâncias comunitárias e o reconhecimento de “sujeitos coletivos de direitos” é de grande importância para a garantia plural do acesso à Justiça.
Educação em Direitos Humanos. Na experiência dos entrevistados, a educação e a informação em Direitos Humanos para os grupos sociais em situação de vulnerabilidade se mostram estratégicas para amplificar suas vozes e reivindicações. Mas educar em Direitos Humanos não se resume à transmissão dos conteúdos dos tratados internacionais e das normas brasileiras. Para além disso, é necessário informar sobre direitos com metodologias livres de discriminação e que não reproduzam velhos estigmas.
Uso dos Meios de Comunicação. Os entrevistados afirmaram usar os meios de comunicação para dar visibilidade a situações críticas de violação de direitos, como também para amplificar experiências bem sucedidas ou boas práticas. Embora a imprensa seja muito citada como responsável por violar direitos, a utilização cidadã dos meios de comunicação é descrita como uma boa estratégia para alcançar a justiça.
Conscientização e Sensibilização. A educação não formal também é usada como meio de evidenciar para situações não percebidas de violações de direitos, contribuindo para processos mais justos de gestão de conflitos. Essa estratégia tem sido utilizada pelos entrevistados tanto para sensibilizar operadores do direito, quanto para tratar de questões ainda emergentes com os grupos.
Reconhecimento e acreditamento do protagonismo das experiências de mediação social realizadas fora das instâncias estatais. O que chama atenção nessa categoria é a demanda por reconhecimento das iniciativas de mediação comunitária por justiça e por acesso à justiça e a recusa de sua cooptação ou absorção de seus modelos e práticas pelo Estado. A forte base comunitária das experiências relatadas é um diferencial a ser preservado.
E, também constatar, que embora as entrevistas com movimentos sociais, organizações e redes descritas no relatório não tivessem como objetivo específico avaliar a percepção desses atores acerca das instituições formais que operam a Justiça, foi possível identificar algumas leituras nesse sentido, pois muitas vezes elas foram descritas como obstáculo. No olhar dos entrevistados, essa característica decorre de:
Resistência a trabalhar com o direito da rua. As entrevistas revelam uma recusa de compreender outras formas de regulação social que não a do direito positivo. Há uma demanda por reconhecimento de mecanismos jurídicos não positivados, mas de ampla aceitação por grupos sociais. A recusa do pluralismo faz com que práticas sociais que garantem justiça sejam mantidas invisíveis.
Baixa sensibilidade para as demandas da comunidade. Os entrevistados reconhecem nos operadores do sistema judicial pouca disponibilidade para travar relações horizontais, reconhecendo e respeitando as demandas da comunidade e suas decisões. Há forte crítica ao desrespeito do protagonismo dos interessados na composição de soluções para suas demandas.
Limites culturais para a percepção de sujeitos e demandas inscritas nos conflitos sociais. Algumas entrevistas identificaram limites culturais dos membros do sistema de Justiça que não são capazes de reconhecer algumas situações de conflitos sociais como demandas por justiça ou acesso à justiça, quer pelo seu conteúdo ainda não reconhecido como direito, quer pela sua configuração coletiva.
Corpo com formação técnica desvinculada das experiências do mundo da vida. As entrevistas mencionam as limitações da formação técnica oferecida ao profissional do direito, excessivamente livresca, que não o preparam para lidar com as complexidades do mudo da vida em permanente mutação. São freqüentemente oferecidas velhas soluções para novos problemas.
Postura institucional burocrática. As instituições do sistema de Justiça são percebidas como excessivamente burocráticas e apegadas aos seus procedimentos. Há dificuldade de se entender o emaranhado de regras processuais e o linguajar excessivamente técnico usado pelos profissionais do direito, o que acaba por limitar e desencorajar grupos a exercer sua cidadania.
Essas são pistas que denotam aquela necessidade designada por J.J. Gomes Canotilho, em sede de direito constitucional, insistindo na necessidade de que nesse campo de conhecimento jurídico se recupere, diz ele, “o impulso dialógico e crítico que hoje é fornecido pelas teorias críticas da sociedade”, sob pena de restar “definitivamente prisioneiro de sua aridez formal e do seu conformismo político”.
Por isso que, num apelo à ampliação das possibilidades de compreensão e de explicação dos problemas fundamentais do direito constitucional, propõe o publicista português “o olhar vigilante das exigências do direito justo e amparadas num sistema de domínio político-democrático materialmente legitimado”. Trata-se, segundo ele, de “incluir-se no direito constitucional outros modos de compreender as regras jurídicas”, valendo por em relevo, a este respeito, referência sua que me é altamente lisonjeira: “Estamos a referir sobretudo as propostas de entendimento do direito como prática social e os compromissos com formas alternativas do direito oficial como a do chamado direito achado na rua”, compreendendo nesta última expressão, acrescenta, um “importante movimento teórico-prático centrado no Brasil” (Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Editora Almedina, 1998). E de modo mais geral, pensando o direito tout court: “Do outro lado da rua, o ‘direito achado na rua’ e, perante o sangue vivo que brota dos vasos normativos da realidade e a sedução de um direito outro, alternativo ao direito formal das constituições, códigos e leis, compreende-se que o discurso hermenêutico dos juristas mais não seja que um manto ocultador do insustentável peso do poder” (Estudos sobre Direitos Fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora; São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008).
Penso que essa chamada, que Canotilho encontra seu eco na disponibilidade teórico-política de O Direito Achado na Rua, também tem uma resposta avançada nessa obra de Maria do Rosário de Oliveira Carneiro, na medida em que ela se coloca como um modo de descolonizar o processo de pensar, construir e realizar o Direito.
Com efeito, é essa a disposição que se extrai do fecho da obra, quando a Autora afirma categoricamente:
“Por fim, entende-se que para a AJP continuar sendo um modo decolonial de pensar e de construir o Direito precisa manter-se coerente com suas origens, comprometida com o povo que se encontra ‘do outro lado da linha do pensamento abissal’, com suas distintas lutas, no campo e na cidade, com os movimentos e organizações populares de defesa de direitos, posicionando-se contra as injustiças de que esses povos são vítimas; e, com o povo, manter-se comprometida na construção da justiça, o que passa também pela construção de uma sociedade justa e pela reafirmação cotidiana do compromisso com os saberes e direitos construídos nas resistências populares. A AJP é decolonial porque é um dos instrumentos contra-hegemônicos de defesa dos direitos e saberes construídos nas resistências populares. Falar de AJP é falar de lutas populares por direitos e de resistência popular contra as injustiças sociais” (p. 271-272).
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Candangos, traços de Brasília, de Cezar Britto. Aracaju: RTM, 2021, 196 p.
Sei que vou gostar de um livro assim que leio suas primeiras palavras. Seu primeiro parágrafo. Pressentir, mais que analisar, se as palavras, tal como diz JohnSteinbeck sobre o seu ofício, se deixam escorrer e se arrastar para o texto, como que movidas por sua própria vontade. Para ele (A Rua das Ilusões Perdidas, Rio de Janeiro: BestBolso, 2019), talvez essa seja a maneira de escrever certos livros, abrir a página e deixar que as palavras fluam, livres, espontaneamente, transferindo-as para o texto, no arranjo da própria narrativa.
Assim mergulhei na leitura deste Candangos, traços de Brasília, de Cezar Britto, logo que ele me convidou para fazer o prefácio do seu livro, agora transformado neste Lido para Você. Tocaram-me as primeiras palavras já no agradecimento: “A narrativa aqui posta em livro é dedicada às pessoas que fazem das cidades espaços públicos destinados aos aconchegos dos sonhos, ao acolhimento universal das vidas circulantes e à moradia permanente da inclusão social. É dedicada, assim, à velha e imortal utopia de se construir uma cidade que centralize os plurais caminhos brasileiros e que seja – em traço vanguardista – capital de um país modernista e preocupado com a felicidade de sua gente. É, portanto, um gesto de agradecimento às pessoas que ousaram sonhar, esperançar, migrar, projetar, construir, trabalhar e morar em Brasília”.
Em seu livro As Cidades Invisíveis (São Paulo: Companhia das Letras, 2000) Ítalo Calvino diz que a construção das cidades segue um plano no qual o fio condutor de seu discurso é, muitas vezes secreto, as suas regras absurdas, as suas perspectivas enganosas, e que todas as coisas escondem uma outra coisa. Recorto do livro de Calvino, trecho de um diálogo entre Kublai Khan e Marco Pólo, personagensdo enredo: “Kublai: Não sei quando você encontrou tempo de visitar todos os países que me descreve. A minha impressão é que você nunca saiu deste jardim. Pólo: Todas as coisas que vejo e faço ganham sentido num espaço da mente em que reina a mesma calma que existe aqui, a mesma penumbra, o mesmo silêncio percorrido pelo farfalhar das folhas.”
Acho que essa impressão me arrebata na abertura de texto de Cezar Britto, já nosAgradecimentos: “Devo agradecer à ousada equipe idealizadora de Brasília, especialmente aquela que a projetou como modelo de liberdade e referência universal da humanidade, não enxergando a nova capital como uma espécie exótica de conglomerado de propriedades privadas e prédios habitados por seres isolados em cômodos patrocinados pelos órgãos estatais. Agradeço, também, aos seres humanos candangos, historiadores, arquitetos, engenheiros, jornalistas, escritores, músicos, servidores públicos, classe trabalhadora e personagens – citados ou não – que me serviram de inspiração e exemplos na montagem das palavras postas na prancheta da narrativa aqui apresentada”.
Tal qual o Marco Pólo de Calvino, me dou conta de que Cezar dá sentido por meio de impressões inspiradas por Brasília, o acolhimento que seu projeto e realização de seu Plano Diretor ganharam no “espaço da mente” no qual tece “a mesma penumbra, o mesmo silêncio percorrido”, com a sua inteligência e com a sua sensibilidade narrativa.
Percebo que a narrativa de Cezar guarda a mesma “calma que existe” em Saramago (Viagem a Portugal) que me guiou em minha primeira viagem àquela “jangada de pedra”, desvelando os sítios emotivos trançados pela “história de um viajante no interior da viagem que fez, história de uma viagem que em si transportou um viajante, história de viagem e viajante reunidos em uma procurada fusão daquele que vê e daquilo que é visto”. Como em Saramago, a narrativa de Cezar acaba sendo o “encontro nem sempre pacífico de subjetividades e objetividades”, inevitavelmente, “choque e adequação, reconhecimento e descoberta, confirmação e surpresa”, e a confirmação, afirma o escritor português, de que “nenhuma viagem é definitiva”.
A meu ver, esta é uma chave de leitura que experimentei antes sobre o impressionante registro feito por Luiz Humberto de Faria Del’Isola e Noêmia Barbosa Boyanovsky, no livro A Bailarina Empoeirada. História do Povo de Brasília (Brasília: Annabel Lee, 2013, 2 volumes).
O fio discursivo é tortuoso, labiríntico, caleidoscópico, em que as próprias situações da narrativa se parecem com bailarinas a dançar em turbilhões de poeira provocados pela construção da cidade. Mas, ele se reorienta, fortemente carregado da capacidade de colocar o leitor, para lembrar Antonio Cândido (O Discurso e a Cidade. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1993), em contato com realidades vitais, de estar aprendendo, participando, aceitando ou negando, como se estivesse envolvido nos problemas que o texto suscita. Ao fim e ao cabo, um texto, de novo lembrando Calvino, que sem se confundir com a cidade que descreve, guarda uma relação incindível com ela.
E de que fala esse texto? Fala da transformação dacivitas e da urbs cerebralmente projetadas para a beleza e para a funcionalidade, em ágora da cidadania, lugar para o protagonismo dos sujeitos e para a realização dos direitos. É esta experiência, explica Marshall Berman (Tudo que é sólido se desmancha no ar. A aventura da modernidade São Paulo: Companhia das Letras, 1987), que leva a multidão transeunte a se transformar em povo.
Trata-se de uma coreografia intensa e participativa num cotidiano que se faz História. Como a daqueles operários pioneiros que ainda hoje, conquistado o direito de morar, mantem, à entrada da Vila Telebrasília (na elegante Avenida das Nações), o mural simbólico: “Aqui tem história”. História, sim, assumida pelos seus próprios sujeitos e inscrita no projeto de Brasília, ao lado do bucólico, do monumental e do arquitetônico, definitivamente, como representação conquistada da escala social que somente o povo organizado pode concretizar.
Às portas do centenário da Semana de Arte Moderna, o texto de Cezar, ele o diz na Sinopse que o apresenta, é um enredo “sobre o Brasil antes do nascimento de Brasília e a esperança de se construir uma cidade no Planalto Central. Contaremos os acontecimentos históricos que influenciaram na criação do projeto, a escolha do lugar, a arquitetura modernista e os personagens, anônimos ou não, que marcaram a História de Brasília. A narrativa é contada através do olhar dual que tem persistido no Brasil, alterando-se, em cada época específica, os fatos que interferiram na formação da nova Capital, inclusive na rejeição carioca à perda de importância cultural e política na vida da República”.
Coincido em boa parte com a percepção de Cezar (Brasília, Capital da Cidadania, Brasília. Revista Humanidades: BrasíliaCidadePensamento. nº 56. Brasília: Editora UnB, dezembro de 2009). Brasília pensada como o pano de fundo desse projeto é vista como a “meta síntese” do programa de governo Kubitschek, assumindo em plano simbólico, a realização da proposta desenvolvimentista de “crescimento e integração nacional”. A construção da nova Capital respondia, na explicitação política juscelinista, à necessidade de interiorização do processo de desenvolvimento, cumprindo a cidade papel de integração entre regiões e de abertura de novas frentes de expansão econômica.
A “marcha para o oeste” da análise de Cassiano Ricardo e do ensaio do programa getulista assumiu dimensão real com o plano de metas. Nas palavras de Kubistchek, a “fundação de Brasília é um ato político cujo alcance não pode ser ignorado por ninguém. É a marcha para o interior em sua plenitude. É a completa consumação da posse da terra. Vamos erguer no coração do país um poderoso centro de irradiação de vida e de progresso”. Assim a sua defesa à necessidade do projeto: “Não é possível deter a marcha de Brasília sem prejudicar todo um conjunto de providências tendentes a mudar a fisionomia do país; sem adiar uma transformação nacional que se impõe seja feita com urgência”.
O projeto da cidade(SOUSA, Nair Heloisa Bicalho de.Relatório do Sub-Projeto ‘Memória da organização e mobilização dos trabalhadores no Distrito Federal’, integrante do projeto ‘Memória social e participação’. CNPq, Cadastro 406250/85 CS. Brasília, 1987, mimeo; Construtores de Brasília. Estudo de operários e sua participação política. Petrópolis: Vozes, 1983), segue um plano ideológico que se expressa como apelo mitológico eficaz para organizar os vínculos de solidariedade à proposta de construção. Porém, o sistema urbano que pretende instalar realiza, objetivamente, a centralização de poder, na cidade que emerge, como a capital do modelo de Estado garante do processo capitalista de acumulação na concepção desenvolvimentista.
A percepção da cidade como pano de fundo de uma realidade reelaborada pela História pressupõe desvendar a ambiguidade que a encerra nesta dupla perspectiva. A associação que aparece entre heroísmo e “bandeirantismo” algumas vezes como elemento central deste plano ideológico, e que vai servir de parâmetro para as categorias “pioneiros” e “candangos” criadas durante o processo de construção da capital, permeia o discurso de Kubistchek como afirmação analógica do caráter épico do empreendimento nacional: “o que agora estamos fazendo é fundar a nação que os bandeirantes conquistaram. O esforço que Brasília representa é exatamente o de integrar na comunhão brasileira, brasileiros e territórios que nada hoje influem no progresso e na riqueza deste país (…) E o que lhes quero dizer é que a mentalidade que eles (os bandeirantes) deixaram, felizmente, não pereceu no Brasil, e aqueles que quiserem percorrer milhares de quilômetros para conhecer o que o governo está realizando no coração do Brasil, irão encontrar o mesmo espírito e a mesma decisão daqueles que há mais de três séculos começaram a desafiar o mistério insondável deste imenso continente”.
O imaginário idealizador da cidade na configuração de uma alternativa de vida urbana democrática e participativa encontra seu limite nas condições da sociedade capitalista, injusta e desigual. O próprio sucesso de desenvolvimento urbano da cidade gradativamente desarticulou a lógica da utopia original e operou a segregação das camadas populares reorientando o espaço urbano com a estratificação das classes sociais na península e nas cidades satélites.
A instalação do complexo aparelho burocrático na capital, definindo nitidamente a sua vocação administrativa, serviu ao projeto populista de mediação alienante das relações sociais pelo Estado. De acordo com Chico de Oliveira (Brasília ou a utopia intramuros. Cadernos de Debates 3, O Banquete e o sonho. Ensaios sobre economia brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1986): “a harmonia das esferas que parece reinar na cidade contrasta violentamente com os diversos grupos sociais que a habitam, ou mais especificamente com o grupo social do funcionalismo público. Concebida dentro da mais rigorosa urbanística que procurava apagar as diferenças entre cidade e campo, entre trabalho e lazer, entre divisão social do trabalho e alienação, mas habitada por grupos sociais cuja especificidade repousa em que o seu trabalho é pago pelo não-lazer das classes trabalhadoras, em que seu trabalho é uma monótona divisão apenas técnica dentro do aparelho do Estado – o coração da alienação –, incapazes de recuperar dialeticamente a unidade natureza-homem, a cidade transformou-se numa espécie de desterro para aqueles que são obrigados a viver lá, algo assim como o tempo indefinível e não-mensurável mas que se sabe finito do Purgatório. Depois, a aposentadoria, a volta ao Rio, a volta à vida”. Ele continua: “O relógio da cidade conta as horas de um tempo politicamente mágico. Parece não haver mediação para o habitante típico da cidade entre ele e o poder: há apenas distância. Na cidade, tudo se faz por obra e graça do Estado: um toque e aparece o ginásio esportivo; outro toque e surge mais uma superquadra; outro toque e termina-se o Teatro Nacional. Ninguém é capaz de reconhecer o outro, as classes sociais, os grupos sociais produtivos, que no fundo são os que sustentam Brasília. Uma inversão de imagem, própria de certos espelhos, faz o habitante de Brasília ver os demais apenas como os intrusos candangos que sujam a limpeza urbana, ou como os remotos infelizes que habitam outras cidades e campos congestionados e poluídos do Brasil. Todo o conjunto conduz a uma alienação política sem paralelo: não é assim de estranhar que instituições como o Parlamento não signifiquem nada para o habitante médio de Brasília. Uma combinação sui generis de grupos sociais e contexto político produziu em Brasília uma despolitização cuja raiz é o caráter parasitário da cidade”.
Em meio a essas concepções que disputam o discurso interpretativo sobre o projeto, Cézar Britto introduz uma dualidade marcante para explicar a cidade: “Uma dessas dualidades marcantes tem relação com a disputa entre o conservadorismo que resistia à ideia de um Brasil modernista, desde a dicotomia do apego à cultura europeia, passando pela proposta de uma cultura que valorizasse a brasilidade e as coisas nacionais. Neste sentido, aponta-se a Semana de Arte Moderna de 1922, a Escola Nacional de Belas Artes, o projeto de Pampulha, a ideologia socialista, o pioneirismo de JK e a ousadia de uma época como alicerces da cidade que nasceu no Planalto Central. E, por fim, os dilemas e paradoxos que se projetam na Brasília atual, ainda confusa entre a modernidade inclusiva e o patrimonialismo brasileiro”.
Fascinante o livro concebido pela imaginação criadora de um autor, em geral indexado pela narrativa robusta do jurista que é, e que assim se revela em escritos de reconhecido alcance político-jurídico, entre eles, também pela RTM, Não é Tempo para Silêncios (Belo Horizonte, 2019).Mas que em Candangos, traços de Brasília avança em vertente já iniciada em romances (Almas livres, corpos libertos e Um lugar longe do mundo), crônicas (Nos alpendres da vida e Caminhadas), poemas em prosa (140 curtidas) e teatro (Mulheres que ousam escolher e Luzes, Luízes e Luízas no Brasil escravista).
E o faz com a disposição holística, para a qual venho chamando a atenção, (Cinema e Direitos Humanos in PULINO, Lúcia Helena CarvasinZabotto; LONGO, Clerismar Aparecido (Orgs). Educação, diversidade, direitos humanos e cidadania. Escritos e compromissos. São Paulo: Editora Letra e Voz, 2020), segundo a qual, seguindo a consideração de Roberto Lyra Filho, no plano filosófico-jurídico, opera-se múltiplas atitudes e não unilaterais atitudes de conhecimento – a explicação científica, a fundamentação filosófica, a intuição artística e até a revelação pela experiência mística – conforme entre outros Filosofia, teologia e experiência mística(in Anais do VIII Congresso Interamericano de Filosofia. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia, vol. II, p. 145-150, 1974; Filosofia geral e filosofia jurídica em perspectiva dialética, in PALÁCIO, C., org. Cristianismo e história. São Paulo: Edições Loyola, p. 147-169, 1982; A concepção do mundo na obra de Castro Alves. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1972. Do mesmo modo emEduardo Lourenço, no plano literário, com ele, lendo em Fernando Pessoa que seus heterônimos, são a “tentativa desesperada de se instalar na realidade”, tanto que a literatura não é um delírio mas, simplesmente, “a apropriação da realidade por meio de outra linguagem”, como encontro em Mitologia da Saudade. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
O texto de Cezar Britto assim, porque seu tema não cabe num único discurso que possa em si captar a intensidade de sentidos que fluem como histórias que aspiram ser contadas, se instala no teatro-ópera. Ele se enreda nas performances-tentativas que Nicolas Behrensaiou com a poesia (BrasíliA-Z Cidade-Palavra. Brasília: Edição do Autor, Caixa Postal 8666/CEP 70312-970, 10ª edição, s/d); na prosa genial de João Almino (Cidade Livre. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record, 2010); no cinema, com Vladimir Carvalho, emConterrâneos Velhos de Guerra (A Resistência em Brasília – um breve testemunho, in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al., org. O Direito Achado na Rua, vol. 7: Introdução Crítica à Justiça de Transição na América Latina. Brasília: Editora UnB, 2015); na música, com o maestro Jorge Antunes (Sinfonia das Diretas. Sinfonia das Buzinas. Brasília: Comício das Diretas Já, 1984). Também em Nair Heloisa Bicalho de Sousa, em sua peça de teatro épico (A Marcha dos Sem-Terra: O Brasil em Movimento por Reforma Agrária, Emprego e Justiça, in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et. al. (org). O Direito Achado na Rua, vol. 3: Introdução Crítica ao Direito Agrário. Brasília/São Paulo: Editora UnB/Editora Imprensa Oficial de São Paulo, 2002).
A narração, diz Cezar Britto, “tem como ponto central a visão dos responsáveis pelo projeto original (Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Burle Marx, Cândido Portinari, Bruno Giorgi e outros apontados como Idealistas) e dos que passariam a ser chamados de Candangos (Raimundo Nonato, Digenal do Mocambo, Luiz Carlos, Maria José e Iracema Tapuya). Juscelino Kubitscheck é outro personagem fundamental na trama”.
A trama gira ele prossegue, “em torno de dois personagens (chamados de Homem e Mulher), que são apresentados, em cada época distinta, como sendo a face conservadora do Brasil e adversários dos Idealistas e de Juscelino Kubitscheck. Eles sempre liderarão movimentos opostos aos dos demais personagens e não terão nomes. Os dois grupos também participarão de forma coletiva, cada um representando o pensamento fracionado. O grupo conservador é apontado como Tradicionalistas, enquanto a sua antítese será exercida pelos Modernistas”.
Completa a obra, que acaba de ser publicada e que merece um lançamento criativo nesse tempo de distanciamento pandêmico, a sua edição muito imaginativa que soube captar em desenhos e colagens as dualidades e as tensões entre tradicionalistas e modernistas vivos e ativos no enredo e no argumento desenvolvidos pelo Autor. Bela edição gráfica de Germana Araújo e ilustrações de Flávio Kustela.
Dualidades e tensões recorrentes, confrontadas (DRUMMOND DE ANDRADE, C. Confronto in Corpo, 4ª edição. São Paulo: Record, 1984): “A suntuosa Brasília, a esquálida Ceilândia/Contemplam-se…/E pensam-se, remiram-se em silêncio/As gêmeas criações do gênio brasileiro/”.
Ao fim, demos a Cezar o que é de Cezar. Essa tensão não tem fim. Dialeticamente, ele mostra, os confrontos continuam a empurrar a disputa na ação e no discurso pela apropriação da cidade e da utopia: “Qual Brasília você é?”.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55
Participação social e parlamentar na Comissão de Legislação Pariticipativa (CLP)
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Aldo Matos Moreno. PARTICIPAÇÃO SOCIAL E PARLAMENTAR NA COMISSÃO DE LEGISLAÇÃOPARTICIPATIVA (CLP): Uma análise da efetividade das audiências públicas e reuniões deliberativas. Dissertação apresentada como pré-requisito para obtenção do título de Mestre no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu – Mestrado Profissional em Direitos Sociais e Processos Reivindicatórios, área de concentração Direitos Sociais e Processos Reivindicatórios, pelo Centro Universitário IESB. Brasília/DF, 2021, 387 p.
Trata-se de um trabalho valioso por duplo enquadramento. Primeiro, um estudo descritivo-analítico, por dentro do sistema parlamentar e de seu processo legislativo, pondo em relevo um instrumento de diálogo entre a sociedade e o Parlamento, por meio da elaboração legislativa participativa. Depois, como pré-requisito para a obtenção de título num mestrado profissional, ressalta-se um estudo que traz dados detalhados de manifestações de deputados, da sociedade e de outros atores durante as reuniões e audiências públicas da Comissão de Legislação Participativa.
Para o Autor da Dissertação, “a despeito de ser de extrema relevância para a sociedade brasileira, ainda é merecedora de atenção e de maior valorização para alcançar os propósitos plenos de sua criação. Embora mecanismos de transparência e participação estejam sendo utilizados pela Câmara dos Deputados, inclusive por meio das novas tecnologias, o que demonstra que existe um esforço para atender aos conceitos de ‘Parlamento Aberto’, a contribuição social no processo legiferante parece ainda incipiente, necessitando ser mais efetiva”.
Nos Anexos há um bem elaborado e completo catálogo desses elementos, útil em sua sistematização facilitadora, para consultas de pesquisadores e de interesse mais pragmático. Assim como “uma carta-proposta, com sugestões de melhorias nas rotinas procedimentais e outras ações, a ser apresentada à CLP, cuja expressão democrática sobressai na voz da sociedade, quando das discussões de questões referentes à construção legislativa que afeta diretamente o povo, haja vista a participação social traduzir dignidade, devendo ser encarada como direito fundamental de proteção do cidadão”.
Participei da etapa de qualificação da dissertação e, com os ilustres integrantes da Comissão Julgadora, pude fazer observações que com as dos demais colegas, encontrei coligidas no trabalho afinal apresentado em versão definitiva, à Banca, constituída pela Professora Dra. Any Ávila Assunção – Orientadora, do Programa de Mestrado Profissional em Direitos Sociais do IESB; pela Professora Dra Neide Malard – Membro Interno, do mesmo Programa; por mim, membro externo; e pelo Professor Ulisses Borges de Resende – Membro Interno Suplente, também Professor Titular do Programa Programa de Mestrado Profissional em Direitos Sociais do IESB.
A Dissertação, guardando fidelidade aos seus pressupostos e objetivos tem o intuito de analisar a efetividade dos trabalhos realizados pela CLP, dando enfoque especial ao papel desenvolvido pelos atores nas reuniões realizadas pela Comissão, a pesquisa buscou propiciar uma visão endógena do órgão, garantindo melhor compreensão dos aspectos procedimentais e do contexto fático dos debates e das deliberações. Quis o Autor verificar “a necessidade de entender como os deputados membros da CLP, além de outros parlamentares daquela Casa de Leis, respondem às sugestões e às demais demandas apresentadas pela sociedade civil, o que também se mostra essencial para a conclusão do estudo”, com o propósito ele diz “de desvelar como se dá o diálogo entre sociedade e Parlamento, tendo como cenário principal as reuniões deliberativas e as audiências públicas da CLP no período de 2015 a 2018. Assim, em pesquisa descritiva e exploratória que adotou métodos quantitativos e qualitativos e que buscou fundamento em extenso levantamento bibliográfico e documental, foram observadas as atas das reuniões, o regulamento, os relatórios, os discursos parlamentares e da sociedade, outros dados constantes da página do colegiado na internet, além das impressões dos servidores coletadas por meio de aplicação de questionário semiestruturado”.
Foto: Pixabay
A estrutura do trabalho se revela no Sumário, que abre com uma Introdução e a demarcação empírica do estudo, indicando os procedimentos metodológicos. Segue-se o arranjo teórico do estudo amparado no estudo da “evolução da democracia como corolário da participação social”, sua “importância e a regra da maioria” e uma exposição sobre “modelos de democracia e tipologias de regimes”. Depois destaca a “importância dos movimentos sociais como precursores do resgate democrático”, para logo fixar “o direito fundamental à participação e a legitimidade das decisões em face do conceito de cidadania”, Então, forte no pressuposto da “participação da sociedade nas decisões políticas como direito fundamental”, orienta a atenção analítica no sentido de extrair da “sociedade nos cenários decisórios como fator essencial para a valorização do cidadão e consequente fortalecimento da representatividade”, pretende operar com o “conceito de terceiro setor e de organização social” com a pretensão de “requalificação do Parlamento em convergência com o debate público” e o “debate democrático”. Distingue aí o núcleo procedimental da análise focalizada nas “reuniões de audiência pública e das políticas públicas”, da “Open Governament Partnership (OGP) e a responsabilidade parlamentar” e das “novas tecnologias de comunicação e informação como instrumentos de otimização da democracia participativa”.
No item 6 do Sumário – PODER LEGISLATIVO BRASILEIRO – O PROCESSO LEGISLATIVO E A COMISSÃO DE LEGISLAÇÃO PARTICIPATIVA – ENTENDENDO O PROCESSO, o seu desenho esquematizado circunscreve o cerne da pesquisa desenvolvida na Dissertação:
6.1 – O Processo Legiferante do Legislativo Federal;
6.2 – Conhecendo as Competências das Comissões Parlamentares;
6.3 – Conhecendo a Comissão de Legislação Participativa (CLP). Competências, Realizações e Atores;
7 – A Participação da Sociedade Civil na Comissão de Legislação Participativa: Uma Análise dos Trabalhos da CLP;
7.1 – Breve Explanação do que se Pretende Analisar nas Reuniões de Audiência Pública Realizadas pela CLP;
7.2 – Breves Explicações sobre as Reuniões Deliberativas da CLP e do que se Pretende Analisar nesses Eventos;
7.3 – Dos Trabalhos da CLP em 2015;
7.3.1 – Da análise dos debates nas Audiências Públicas da CLP em 2015;
7.3.2 – Da análise das Reuniões Deliberativas da CLP em 2015;
7.4 – Dos Trabalhos da CLP em 2016;
7.4.1 – Da análise dos debates nas Audiências Públicas da CLP em 2016;
7.4.2 – Da análise das Reuniões Deliberativas da CLP em 2016;
7.5 – Dos Trabalhos da CLP em 2017;
7.5.1 – Da análise dos debates nas Audiências Públicas da CLP em 2017;
7.5.2 – Da análise das reuniões deliberativas da CLP em 2017;
7.6 – Dos Trabalhos da CLP em 2018;
7.6.1 – Da análise dos debates nas audiências públicas da CLP em 2018;
7.6.2 – Da análise das reuniões deliberativas da CLP em 2018;
7.7 – Síntese das Análises Realizadas nos Documentos Relativos às Reuniões da CLP na 55ª Legislatura (Audiências Públicas e Reuniões Deliberativas.
Seguem-se, no Sumário, devidamente indicados as Conclusões, os Anexos e as Referências.
O Autor introduz o tema a partir do que considera crise de representatividade do Parlamento e uma crescente expectativa de participação da Sociedade no processo legislativo. O faz, entretanto, tomando como ponto de inflexão, a abertura no espaço do Legislativo de instrumentos para fazer incidir essa participação:
“Nesse sentido, merece cuidadosa atenção, pela relevância do assunto, o espaço deliberativo que a sociedade obteve há poucos anos no Poder Legislativo, uma grande e valiosa conquista no quesito participação, com a criação, em 2001, na Câmara dos Deputados, da Comissão de Legislação Participativa (CLP), hoje uma das vinte e cinco comissões permanentes da Câmara, mas que possui uma prerrogativa muito especial e singular que a difere dos demais colegiados, pois é a única comissão da Câmara em que a sociedade civil organizada pode apresentar sugestões de proposições legislativas, de audiências públicas, de seminários entre outras, cujas matérias são invariavelmente relacionadas a questões sociais” (p. 16).
Não obstante conduzir o escopo de sua pesquisa para a dimensão endógena do processo e do instrumental que remete a uma certa funcionalidade programática da gestão do que designa como “Open Governament Partnership (OGP) e a responsabilidade parlamentar” e das “novas tecnologias de comunicação e informação como instrumentos de otimização da democracia participativa”, há no trabalho uma atenção à formidável clivagem teórico-política inscrita na transição do regime autoritário para o de enunciado democrático, mediado pela Constituinte de 1988 e a disputa que nela se travou entre projetos de sociedade e de democracia.
Tratei desse processo em várias oportunidades, a partir mesmo de depoimento que ofereci no próprio espaço da Constituinte, em audiência pública, representando a Comissão Brasileira de Justiça e Paz (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. A Nova Constituição e os Direitos do Cidadão. Petrópolis: Editora Vozes. Revista de Cultura Vozes, ano 82, volume LXXXII, julho/dezembro 1988, nº 2; Ser Constituinte. Brasília: Editora UnB. Revista Humanidades nº 11, novembro/janeiro 1986/1987, ano III; Obstáculos à Efetivação da Democracia no Brasil. CNBB Seminário “Exigências Éticas da Ordem Democrática”. São Paulo: Edições Loyola, 1989;com ESCRIVÃO FILHO, Antonio. Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019; e mais recentemente, Uma Promessa Vazia?. Dossiê Constituição Federal 1988: 30 Anos Depois, o que Restou?. Brasília: Editora UnB.Revista Humanidades, nº 62, dezembro 2018).
Em todos esses trabalhos e, antes, no próprio testemunho, a confirmação de um protagonismo social coletivo e organizado, de movimentos sociais, nos quais se inscrevem sujeitos coletivos de direitos, que lograram configurar e disputar na Constituinte, enquanto projeto, a constitucionalização de uma democracia participativa, com instrumentos que aprofundam o caráter representativo do exercício do poder político, mas que instaura a novidade constitucional, em todos os âmbitos, do poder exercido diretamente pelo Povo.
Conforme anoto, o Autor, em que pese esse exame funcional, não perde de vista o alcance político-teórico da transição democrática. Basta ver as suas referências. “O marco teórico utilizado nesta dissertação – diz ele – perpassa pelo trabalho de autores que contribuíram com análises referentes à democracia, à representatividade, aos movimentos sociais e à participação social nos espaços decisórios, aos debates públicos, a direitos fundamentais, ao Poder Legislativo, ao Parlamento brasileiro, à Câmara dos Deputados, ao processo legislativo, à Comissão de Legislação Participativa, à legitimidade das decisões públicas, às políticas públicas, às novas Tecnologias de Informação e Comunicação”. “Assim – ele elenca -, foram empregados, entre outros, como escólio teórico: Habermas (1993,2002); Bonavides (2003 e 2016); Bobbio (2015); Gohn (2015); Barroso (2018); Jucá (2007); Lenza (2019); Faria (2015); Coutinho (2002); Marques (2008); Macedo (2018); Pinochet (2014); Pitkin (1976); Silva (2016); Vieira (2019); Dezen Junior (2017); Góes (2013); Cyrino (2016); Burgos (2007); Dallari (2013); Carneiro, Santos e Nóbrega Netto (2016); Sousa Santos (2019); Sousa Santos e Mendes (2018)”. Autores que dão suporte ao pressuposto participativo e ao protagonismo dos sujeitos coletivos (inscritos nos movimentos sociais), para afirmar a sua titularidade instituinte nesse processo. Ainda que figure nesse elenco, de modo insidioso, felizmente não transportado para as referências, o nome Pinochet que remete ao que há de mais antidemocrático na história política.
De todo a sorte, tomo do autor uma de suas principais referências, até para registro de homenagem, considerando a páscoa recente, do constitucionalista Paulo Bonavides. Retiro, a propósito, sobre o tema da Dissertação, excerto de entrevista que me concedeu, para o Observatório da Constituição e da Democracia (nº 22, maio de 2008), publicação que mantivemos por três anos na Faculdade de Direito da UnB e que estamos reeditando em base digital, por sua atualidade (https://odireitoachadonarua.blogspot.com/search/label/Constitui%C3%A7%C3%A3o%20%26%20Democracia):
“O Senhor é, dentre os constitucionalistas mais destacados, quem trouxe para o Direito Constitucional a perspectiva da democracia participativa, constituindo-se no principal intérprete e defensor da democracia direta inscrita na Constituição de 1988. 20 anos depois de sua promulgação como o avalia a “Constituição Cidadã”?
É uma grande Constituição. É a mais formosa. Todos os reacionários deste país a combatem. Combatem-na porque ela tem as chaves de solução para problemas que eles não querem que sejam resolvidos. Pior para eles. Como ela própria prevê, é o povo que os vai resolver. A Constituição de 1988 é a primeira Constituição principiológica de toda a nossa história Constitucional. Mas, princípios com normatividade, com juridicidade, que podem ser, portanto, concretizados. Cabe ao povo, tomá-la para si e lhe imprimir avanços, galgando degraus no patamar da democracia e do constitucionalismo.
Ela ainda conserva o potencial democrático da participação popular ou esta é uma condição da política que esgotou-se no momento constituinte e nos limites das mobilizações daquela conjuntura?
Ao contrário, a Constituição, tal qual ela se realiza hoje, oferece o caminho para a formação da consciência da democracia participativa, da soberania da cidadania. E isso permite aprofundar a condição dessa soberania que é soberania popular, aperfeiçoando, nos termos da própria Constituição, a iniciativa popular, na autenticidade da sua fonte, portanto, a fonte de último grau de democracia.
O povo tem na formação das leis, segundo a Constituição de 1988, a iniciativa de legislador ordinário, mas não tem a de legislador constituinte. Essa derradeira iniciativa é a mais importante, a mais fundamental, a mais sólida, por garantir o exercício de sua capacidade legitimadora da ordem normativa, debaixo da qual se organizam e repousam as instituições do ordenamento jurídico nacional.
Mas, para isso, é necessário superar um grande obstáculo à participação democrática mais vertical, mais rigorosa, mais extensiva. É que a Constituição estabeleceu a participação popular, primeiro por uma via, a mais árida possível, que tem o grau supremo de legitimidade, que é o parágrafo único de seu artigo primeiro. A soberania nacional se exerce por representantes ou pelo próprio povo. Mas, como o constituinte de 1988 estabeleceu esses termos? Primeiro, no artigo 14, com a previsão de mecanismos plebiscitários e de iniciativa popular legislativa, porém subordinados à competência autorizativa exclusiva do Congresso Nacional, o que acabou limitando o alcance da participação.
Por isso tenho me empenhado fortemente, com o apoio do Conselho Federal da OAB, numa campanha ou movimento, no sentido de atualizar a Constituição para incluir nela a possibilidade de emenda constitucional por iniciativa popular, com o intuito de dar protagonismo à participação popular como exercício efetivo do poder constituinte de segundo grau. A campanha tem recebido também o apoio de distintas assembléias estaduais, onde o poder constituinte das unidades autônomas da Federação já escreveu em suas respectivas Cartas o dispositivo instituidor da iniciativa popular em matéria constitucional.
Qual o significado da iniciativa popular constituinte para a Democracia?
Só assim a democracia do porvir, emancipadora dos povos periféricos, e concretizada como direito fundamental do homem, há de ser na escala de valores mais nação que Estado, mais consciência nacional do povo solidário que razão de Estado dos governos autocráticos.
Estado social e nação pressupõem também, ao lado da democracia, em seu teor contemporâneo de legitimidade, o primado da justiça, porque sem justiça a autoridade não se legitima, é dissimulação; a liberdade constitui privilégio; a igualdade, retórica; a segurança, argumento da opressão; a lei, mais regra de força que norma de direito; e o Estado, mais absolutismo que harmonia e separação de poderes.
Sem justiça, a governabilidade é o dogma da tirania, é a nova razão de Estado das ditaduras constitucionais, a dimensão injusta e soez das invasões executivas nas órbitas de competências do legislador e do juiz.
Sem justiça, o governo é ingovernabilidade. É a Constituição desamparada, malferida, humilhada, devastada, conculcada. E por que não dizer? Anexada ao arbítrio, à barbaridade e à onipotência de um Executivo supressor da livre fruição dos direitos fundamentais e das liberdades públicas. Executivo que, se lhe não puserem amarras, aniquilará a essência da cidadania.
Sem justiça, a nação fica a um passo do abismo onde a democracia já não pode respirar e os laços morais e políticos da união republicana se dissolvem.
O Estado social deixa então de ser Estado de direito por se converter tão-somente em Estado social de um sistema totalitário, em que o Legislativo, numa flagrante cumplicidade de submissão, se fez também fantasma do sistema representativo e da Constituição que abjurou e quebrantou. Fazendo mão comum com o Executivo, ambos podem implantar uma ditadura funesta ao futuro da nacionalidade, em razão de dissolver os vínculos democráticos e os valores que os atavam à Constituição.
O triângulo da liberdade na periferia é justiça, nação e Estado social. Fora daí, as tribunas vazias, a sombra do absolutismo, o silêncio das ditaduras”.
Bonavides se foi mas a sua mensagem permanece: “a Constituição, tal qual ela se realiza hoje, oferece o caminho para a formação da consciência da democracia participativa, da soberania da cidadania”. É preciso realizá-la. E se “os reacionários a combatem, pior para eles”.
Mas é preciso realiza-la e a máxima dessa realização é o povo investir-se da formulação das leis. Daí a importância dessa Dissertação. Que quer aferir a virtude democrática no processo legislativo participativo.
Minha questão para o Autor é dimensionar, a partir de seu texto, o lugar de relevo que atribui à “estratégia que está sendo utilizada internacionalmente trata da Parceria para Governo Aberto (Open Governament Partnership – OGP), que visa propiciar, entre outras coisas, maior transparência dos governos, acesso à informação e à participação social. Esse modelo de governo vem sendo desenvolvido e tem conseguido rápida importância no cenário nacional, merecendo uma abordagem mais detalhada neste estudo”.
Não será uma contradição, destacar, como está nas suas Conclusões, que a “urgência de a sociedade participar de decisões políticas de maneira mais efetiva” deva-se mais “ao fato de existir uma crise de representação, que há algum tempo afeta a credibilidade de instituições, a exemplo do que ocorre atualmente no Congresso Nacional, refletindo na desconfiança da sociedade para com os parlamentares, o que pode enfraquecer o Parlamento e a própria democracia”?
Não parece redutor, em face de suas convicções teóricas, apesar dos limites que a sua experiência constata, e a partir dessa constatação, “com intuito de aproximar a sociedade dos espaços decisórios, principalmente em relação à construção legislativa, a Constituição Federal de 1988, que contou com a contribuição de vários segmentos sociais para a sua confecção, disciplinou, por exemplo, a possibilidade de o cidadão poder apresentar o chamado “projeto de iniciativa popular de leis”, conformar-se em que “esse instituto não logrou o sucesso esperado”?.
Afinal, tal como propõe, em seu exercício de projeto de intervenção, o que deve mobilizar é, sim, atribuir (letra e) “prioridade na realização de audiências públicas provenientes de sugestões das entidades da sociedade civil organizada em relação àquelas oriundas somente de requerimento parlamentar (embora legítima a possibilidade de realização de audiências públicas requeridas por parlamentares, a CLP é a única Comissão da Câmara que possibilita audiências sugeridas pelas entidades da sociedade civil organizada)”; e também (letra f), “conclusividade dos projetos de lei de autoria da Comissão de Legislação Participativa, retirando a obrigatoriedade regimental de essas proposições serem submetidas ao Plenário da Câmara dos Deputados”.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
SORIANO DÍAZ, Ramón; ALARCÓN CABRERA, Carlos; MORA MOLINA, Juan (Directores). Diccionario Crítico de los Derechos Humanos. Huelva (España): Universidad Internacional de Andalucia, Sede Iberoamericana, 2000, 315 p.
A disposição para o exame desse belo projeto, a edição de um dicionário crítico de direitos humanos, não advém apenas da concordância com a razões da iniciativa. De fato estou de acordo com os diretores e coordenadores da edição, quanto aos motivos e à oportunidade da publicação da obra: “o interesse social que suscita esta classe de direitos pela relevância dos bens jurídicos protegidos, o extraordinário desenvolvimento normativo e institucional, ao nível interno-estatal e internacional, na defesa e promoção dos direitos humanos, e as constantes controvérsias entre os estudiosos e na opinião pública sobre seu significado e alcance, que são a causa do caráter antagônico de seu exercício, de sua ineficácia na prática social e da fácil instrumentalização de que são objeto pelas esferas de poder”.
A disposição vem, principalmente, da mobilização comum em torno de um projeto que leva em conta razões teóricas que sustentem aqueles motivos, enquanto programa continuado de uma instituição, a Universidade Internacional da Andalucia, em sua Sede Iberoamericana de La Rábida, programaticamente vocacionada para o diálogo aberto com a sociedade e para a produção de análises esclarecedoras acerca de ideias controvertidas.
Em torno do mosteiro medieval, ao abrigo do qual Colombo encontrou as condições que lhe permitiram organizar a expedição de 1492, lançando-se ao mar, ao largo de Palos de la Frontera, o belo campus internacional de La Rábida, recebe estudantes de toda a América para estudos pós-graduados.
Em 1999, a convite do Programa de Mestrado em Pluralismo Jurídico e Direitos Humanos, dirigido àquela altura por Joaquin Herrera Flores e David Sanchez Rubio, ambos da Universidade de Sevilha, desenvolvi um dos módulos do curso, como professor visitante, recolhendo dessa atmosfera acadêmica a solidariedade intelectual compartilhada de preocupações com os direitos humanos.
Na antiga biblioteca, ambiente profícuo para a reflexão, monografias especializadas, manuais e obras gerais sobre o tema, dão a medida dos assuntos que circulam por impulso das interpelações dos alunos a seus professores. E agora, a esses textos, vem agregar-se esta nova publicação, “sintética e acessível, na qual possamos encontrar, cômoda e rapidamente, noções gerais sobre um tema concreto dentro da ampla matériados direitos humanos”. Essa, efetivamente, a intenção dos organizadores deste Diccionário Crítico dos Direitos Humanos”. “Dicionário – eles dizem – porque contém o conceito e a problemática geral de uma série de vozes relevantes da matéria. Crítico, porque a exposição não consiste numa mera descrição, mas numa ordenação comum de orientações teóricas controvertidas sobre a vozes selecionadas, desenvolvida com espírito crítico”.
O arranjo, com efeito, tal como procurei chamar a atenção para isso em outro texto mais resumido, em formato específico de resenha (in Ser Social 8, Revista do Programa de Pós-Graduação em Política Social, do Departamento de Serviço Social, da Universidade de Brasília, janeiro a junho de 2001) menos que adensar tematicamente o conteúdo da obra, opta por acentuar a pluralidade de participações, com um elenco altamente representativo de autores, cuja expressão científica, é reconhecidamente apta a traduzir o amplo debate contemporâneo que se desenvolve doutrinariamente, em torno ao tema dos direitos humanos, com aportes interdisciplinares próprios a essa matéria – história, fundamentos, positivação, teoria geral. Assim, a edição se desdobra em quatro partes por meio das quais procura apreender a complexidade temática dos direitos humanos: introdução, valores jurídicos, teoria geral e tipologia de direitos.
Na primeira parte, desenvolvendo noções introdutórias, estão presentes com seus respectivos temas, Norberto Bobbio, El fundamento de los derechos humanos; Franscico J. Laporta, El concepto de los derechos humanos; Antonio E. Pérez Luño, La universalidade de los derechos humanos; Gregório Peces-Barba, Multiculturalismo y derechos humanos; Francisco J. Ansuátegui Roig, La historia de los derechos humanos; Vittorio Frosini, Los derechos humanos em la era tecnológica.
É conhecida a exortação de Bobbio dirigida ao fato de que a questão atual relativa aos direitos humanos já não é a de fundamentá-los, mas de garanti-los. Ou seja, o problema deixa de ser filosófico para ser político e, em última análise, jurídico. Vê-se que a preocupação com os fundamentos ainda é relevante e a ela se dedica o melhor pensamento hispânico contemporâneo, sem dúvida instigado pelos debates que se seguiram à promulgação de sua Constituição inspirada nos protocolos de Moncloa, roteiro para uma Espanha que se redemocratizava.
Na segunda parte, tendo como roteiro o tema dos valores jurídicos, comparecem Eusébio Fernández, Dignidad y derechos humanos; Alfonso Ruiz Miguel, Libertad y derechos humanos; Ernesto Vidal Gil, Solidaridad y derechos humanos; Juan A. García Amado, Legitimidad y derechos humanos.
A aproximação ao debate nesse contexto, ou seja, numa conjuntura de redemocratização, se bem insira os valores, como os próprios temas o indicam, numa experiência europeia ocidental, o faz como estratégia de reconstrução emancipatória que inscreve os direitos humanos, conforme salienta Boaventura de Sousa Santos, como elementaridade da linguagem da política progressista.
Na terceira parte ordenam-se os temas relativos à teoria geral dos direitos humanos: Derechos humanos y estado de derecho, de Elias Díaz; Derechos humanos y democracia, de Pablo A. Bulcourf; Derechos humanos y derechos subjetivos, de Juan R. de Páramo Argüelles; Los limites de los derechos humanos, de Rafael de Asís Roig; La protección estatal de los derechos humanos, de Ana Salado Osuna; Garantismo y derechos humanos, de Marina Gascón; e Seguridad pública y derechos humanos, de Marcelo Sain.
O eixo temático, orientado pelo garantismo, remete à exigência de conversão da linguagem dos direitos em políticas públicas para a sua realização, o que consiste em transformar conceitos em práticas efetivas.
A partir da consideração do pluralismo jurídico, e de um modelo de interlegalidades que nele se fundamenta, Boaventura de Sousa Santos aponta para o que designa porosidades de diferentes ordens jurídicas que obrigam a constantes transições e transgressões. É nesse contexto que o sociólogo português repõe o tema dos direitos humanos referidos às práticas sociais emancipatórias, nas quais transgressões concretas são sempre, diz ele, produto de uma negociação e de um juízo político.
Para Boaventura, a reciprocidade é o critério geral de uma política democrática emancipatória, enquanto a forma e os meios de negociação deverão ser privilegiadamente os direitos humanos como expressão avançada de lutas pela reciprocidade.
A articulação dos elementos conceituais que aqui foram apresentados abre uma perspectiva orientada para que as categorias mobilizáveis desse tema possam contribuir para um programa de “reinvenção dos direitos humanos”. Recolhemos essa possibilidade a partir da leitura criativa que a esse respeito é localizada em considerações indicadas por Joaquín Herrera Flores, aliás, um dos mais destacados formuladores do programa de La Rábida.
Esse notável professor, tão precocemente falecido, havia lançado essa ideia a partir da “Cátedra de Direitos Humanos José Carlos Mariátegui” e do “Programa Oficial de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Desenvolvimento”, instalados na Universidade Pablo de Olavide, em Sevilha, onde desenvolveu seus trabalhos finais.
Chama a atenção, nas propostas de sua docência e de seus últimos escritos, essa clara atitude de reinvenção dos direitos humanos enquanto premissa teórica apta a sustentar “a abertura de processos de luta pela dignidade humana” e premissa política apta a orientar projetos de sociedade originados de “práticas sociais que aspirem a se realizar social e institucionalmente”.
Em entrevista por ele concedida, quando de sua última visita a Brasília, o significado dessa reinvenção foi formulado, com o intuito de aferir o seu alcance criativo para ser base de projetos de construção de sociedades (retiro essas referências de texto que publiquei aqui na Coluna Lido para Você: http://estadodedireito.com.br/os-direitos-humanos-como-um-projeto-de-sociedade/.
Com efeito, ao lhe ser colocada a questão sobre as novas perspectivas e como, a partir delas, o direito se relaciona com processos institucionais e sociais que levem à abertura e consolidação de espaços de luta pela dignidade humana, a sua resposta se orienta para esboçar, com base em direitos humanos, projetos possíveis no nível institucional e de sociedade. Diz Herrera Flores:
Creio que, ao falar em direitos humanos, devemos ser conscientes de uma série de fatos históricos e sociais. Celebramos, em 2008, os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), mas, também os 42 anos de sua ruptura em dois pactos internacionais (1966): o de direitos civis e políticos e o de direitos sociais, econômicos e culturais. Se a estrutura da declaração era unitária, que razões fundamentaram e, o que é mais importante, que razões seguem fundamentando a visão dualista dos direitos? Se lermos com atenção os Informes de Desenvolvimento Humano que anualmente são publicados pelas Nações Unidas, observamos que, a cada ano que passa, aumenta o abismo entre ricos e pobres, e que não há modo de conter a pobreza e a mortalidade por fome nos países empobrecidos pelas políticas coloniais globais do modo de produção capitalista. E, por fim, se acessamos o último informe da Anistia Internacional [veremos que], de um modo direto, são questionados os avanços em direitos civis e políticos no mundo depois de seis décadas da assinatura da Declaração. Se fazemos estas leituras, creio que todos e todas perceberemos a necessidade de “reinventar os direitos humanos” desde uma perspectiva mais atenta ao que está ocorrendo ao nosso redor. Creio, sinceramente, que chegou o momento de redefinir uma categoria tão importante para compreender os desafios com os quais se depara a humanidade em início do século XXI. Neste sentido, nós definimos os direitos humanos como “processos de luta pela dignidade”, ou seja, o conjunto de práticas sociais, institucionais, econômicas, políticas e culturais levadas a cabo pelos movimentos e grupos sociais em sua luta por um acesso igualitário e não hierarquizado a priori aos bens que fazem digna a vida que vivemos (Flores, 2008-b: 12-13).
A nota distintiva, sob o aspecto da fundamentação de projetos de sociedade em direitos humanos, reside, certamente, na noção de “dignidade material da cidadania”, que se vislumbra no pensamento instigante desse autor. Rebelde a qualquer forma de colonialismo e imperialismo ocidental que privilegie unicamente o que se faz desde os países centrais, desprezando tudo o que provém de países “periferizados” pela ordem hegemônica global, pensar em projetos de sociedade – para ele – é estar acessível a experiências de gestão democrático-participativa da cidade e das comunidades, como condição para concretizar, à luz de direitos humanos reinventados, a dupla condição, em articulação simultânea, dos princípios de “igualdade de poder político” (próprio das democracias representativas) com o de “distribuição de poder político” (próprio das democracias participativas), que se apresentam atualmente como “desafio para nossos sistemas políticos tendencialmente fechados às novas formas de gestão do público”.
Logo, seguindo a linha argumentativa do autor, tem-se que os direitos humanos não podem existir num mundo ideal, naturalizado, mas devem ser postos em prática por meio de uma ação social voltada para um projeto de construção da realidade, vale dizer, ter como referência que os direitos humanos não podem ser entendidos separadamente do político.
Por isso se diz que a história dos direitos humanos não é a história das declarações que os enunciam, não é a história das instituições, nem sequer a história das ideias filosóficas e dos valores (LESBAUPIN, Ivo. As Classes Populares e os Direitos Humanos. Petrópolis: Editora Vozes, 1984). É sim, a história dessas lutas sociais, enquanto ensaio de positivação da liberdade conscientizada e conquistada no processo de criação dos direitos que realizam as aspirações à reciprocidade, tal como podemos encontrar em Roberto Lyra Filho, ao fundamentar seu conceito de direito (O que é Direito, São Paulo: Brasiliense, 1ª edição, 1982).
No quarto e último bloco, abre-se espaço a um catálogo de direitos humanos controvertidos. Desse elenco figuram Juan J. Mora Molina, El derecho a la vida; Luis García-San Miguel, El derecho a la intimidad; Modesto Saavedra López, El derecho a la libertad de expresión; Benito de Castro Cid, Los derechos sociales; Fernando León Jiménez, Los derechos ecológicos; José I. Lacasta Zabalza, El derecho de autodeterminación; e Ramón L. Soriano Díaz, Los derechos de las minorias.
Os temas, na sua atualidade crítica, abrem ensejo a pelo menos duas ordens de considerações. De um lado, uma designação de protagonismos, gerando concepções e uma pluralidade de discursos que reclamam diálogo intercultural compreendendo diferentes particularismos. São os movimentos sociais, as ONGs, são atores sociais constituídos em grupos de interesses elaborando agendas não diretamente referidas aos padrões hegemonistas da tradição institucional ocidental. De outro, a constatação de que esse processo, aludindo a práticas plurais emancipatórias, aponta para uma realidade, segundo a qual, na sua aplicação, os direitos humanos não são sociologicamente, como é assente na cultura ocidental, ao menos filosoficamente, universais, indivisíveis, interdependentes.
No seu conjunto, os textos do Diccionario não dão respostas conclusivas para essas questões, mas abrem, sem dúvida, perspectivas para que elas sejam enfrentadas. São temas que, por sua qualificação, transcendem as culturas e interpelam o que nelas há de comum, enquanto expressão de humanidade, algo mais pertinente que a ilusão corrente de universalismo metafísico.
Essa mesma disposição está presente no projeto de edição da Enciclopédia Latino-Americana dos Direitos Humanos, que foi objeto de minha atenção nesta Coluna Lido para Você (http://estadodedireito.com.br/enciclopedia-latino-americana-dos-direitos-humanos/). Na Apresentação da obra (pp. 7-9), o filósofo salvadorenho, Héctor Samour, da Universidade Centro-Americana José Simeón Cañas (ex-Vice Ministro da Educação de El Salvador) esclarece que a proposta visa a apreender, na abordagem dos direitos humanos, os acontecimentos históricos e as possibilidades atuais, com as quais contam a região para pensar e iluminar sua libertação; e, assim, colaborar para a construção histórica de instituições que assegurem a satisfação das necessidades básicas e a vigência efetiva daqueles direitos, sem os quais não se poderia cogitar uma vida humana digna para todos.
Com a preocupação decolonial e de emancipar-se do enquadramento eurocêntrico que preside a constituição dos paradigmas e dos enfoques de um modo de produção que lhe é determinante, sobretudo ideologicamente, recortando categorias fundamentais para o tema, como liberdade e democracia, a Enciclopédia pretende historicizar a teoria e a prática dos direitos humanos com o fim de contribuir para a desideologização desses direitos e evitar, desta maneira, que sejam utilizados para justificar e legitimar as situações de injustiça predominantes na região latino-americana e no resto dos países pobres do mundo.
Trata-se, como dissemos eu e Antonio Escrivão Filho, em nosso Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos (Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016), de pensar os Direitos Humanos enquanto projeto de sociedade. Ou seja, rastrear a sua emergência, na consideração de que não se realizam enquanto expectativas de indivíduos, senão em perspectiva de coletividade, como tarefa cuja concretização se dá em ação de conjunto.
Assim sendo, partimos do debate conceitual dos direitos humanos, para esboçar o panorama do cenário internacional e de sua emergência histórica, no mundo e no Brasil, para, desse modo, articular o seu percurso no contexto da conquista da democracia, assim designada enquanto protagonismo de movimentos sociais, ao mesmo tempo sujeitos de afirmação e de aquisição dos direitos humanos. Em relevo, pois, a historicidade latino-americana para acentuar a singularidade da questão pós-colonial forte na caracterização de um modo de desenvolvimento que abra ensejo para um constitucionalismo “Achado na Rua”.
Ali como aqui, problematiza-se, em consequência, os modos de conhecer e de realizar os direitos humanos, em razão das lutas para o seu reconhecimento, a partir das quais se constituem como núcleo da expansão política da justiça e condição de legitimação das formas de articulação do poder e de distribuição equitativa dos bens e valores socialmente produzidos.
Em suma, compreender os direitos humanos dentro de “um programa que dá conteúdo ao protagonismo humanista, conquanto orienta projetos de vida e percursos emancipatórios que levam à formulação de projetos de sociedade para instaurar espaços recriados pelas lutas sociais pela dignidade”, numa dinâmica, diz David Sánchez Rubio, também muito orgânico política e teoricamente no programa da Universidade Internacional da Andalucia, orientada para uma recuperação da democracia como poder popular e dos direitos humanos a partir de suas lutas instituintes (cf. SÁNCHEZ RUBIO, David. Derechos Humanos Instituyentes, Pensamento Crítico y Praxis de Liberación. Ciudad de México: Edicionesakal, 2018; e também na intensa interlocução que esse professor mantem com o programa de pós-graduação em direitos humanos da Universidade de Brasília).
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Justiça Indeferida: a Degeneração Política no Romance A Rainha dos Cárceres da Grécia, de Osman Lins. Cacilda Bonfim. Tese de Doutorado. Brasília: UnB/Instituto de Letras – Programa de Pós-Graduação em Literatura, 2021, 288 p.
Sob orientação da Prof.ª Dr.ª Elizabeth de Andrade Lima Hazin e perante a Banca Examinadora constituída pelo Prof. Dr. Pedro Henrique Couto Torres (Letras – IFB), Prof. Dr. João Vianney Cavalcanti Nuto (PósLit – UnB), com a suplência da Prof.ª Dr.ª Adriana de Fátima Barbosa Araújo (PósLit – UnB), Cacilda Bonfim defendeu a tese objeto deste Lido para Você.
Integrei a Banca, embora estranho ao ambiente de elaboração e de debate da obra, tendo em vista os grupos de pesquisa e de estudos envolvidos com a estrutura narrativa osmaniana, e certamente, em face de minha formação jurídica, que a juízo da orientadora e da candidata, terá justificado a interlocução centrada na filosofia política e na teoria da justiça, sem dúvida o centro de referência do argumento da obra estudada na tese.
Confirma isso o Resumo da tese ao dar conta de pesquisa sobre os aspectos de degeneração política presentes na obra A Rainha dos Cárceres da Grécia, de Osman Lins (1924-1978). A hipótese é a de que o romance de Osman Lins, cujo título é homônimo ao de sua personagem, apresenta desde a sua estruturação a compreensão de um mundo onde a injustiça impera como sintoma de uma política degenerada. Não se trata de concordar ou não com a difundida ideia de que toda produção literária possui em si uma dimensão política, mas de conjecturar, levando em conta a singularidade do romance, o modo específico como a política se entrelaça na obra, permeando toda a sua estrutura estética. A expressão “degeneração política” equivale ao obscurecimento da atividade política, desde a Grécia, local de seu nascedouro, até a contemporaneidade, conforme indicou Hannah Arendt no conjunto de sua obra, pensadora que fundamenta o aporte político-filosófico desta tese.
O estudo, é ainda o Resumo, se constituiu como uma pesquisa de caráter eminentemente teórico-conceitual, de natureza bibliográfica. O procedimento teórico-metodológico adotado foi a análise hermenêutica de obras literárias e filosóficas, priorizando as narrativas do autor (ficcionais ou não), a sua fortuna crítica e formulações sobre literatura e filosofia política, elaborando-se uma espécie de diálogo, mediado por minha interpretação do universo de Lins, entre o romance e diversos pensadores, tais como Hannah Arendt, Wolfgang Iser, Mikhail Bakhtin, Jacques Rancière, Michael Foucault, Giorgio Agamben, Friedrich Nietzsche, Walter Benjamin, Terry Eagleton, Antonio Candido, Massaud Moisés.
A Tese está organizada numa Introdução, dois capítulos (Por Entre as Frestas do Texto e Significações e Enigmas) e em Considerações Finais, seguida das Referências. Tomo aqui, na formulação da própria Autora, a configuração que ela desenvolve para designar os dois capítulos da Tese, a rigor o seu núcleo analítico, o seu mergulho teórico-literário em seu objeto de estudo, o romance de Osman Lins. Ao fim e ao cabo, uma interlocução com sua comunidade de sentido.
Conforme Cacilda, “no capítulo I, intitulado Por entre as frestas do texto, abordo o tema da loucura, o objetivo é evidenciar que a insanidade não se mostra apenas como estratégia narrativa que permite à autora-personagem Julia Enone um tratamento inusitado aos elementos de sua prosa, como espaço, tempo e linguagem, mas que a própria loucura põe a descoberto o descaso do Estado em relação à determinada parcela da população: os despossuídos, os quais, penalizados por uma existência meramente biológica, irrelevante à ordem político-jurídica-administrativa-social, tornam-se seres descartáveis.
A representação do hospício evoca também o cárcere familiar exposto por Osman Lins, por meio de Julia Enone, registro da arbitrariedade com que as mulheres eram tratadas, até meados dos anos 70, por pais e maridos que atestavam, ou não, as suas sanidades. O estabelecimento de padrões entre um comportamento baseado na razão ou desrazão configura-se, portanto, como uma instância de dominação tanto da família quanto do Estado.
Também começa a ser delineada nessa seção a luta de Maria de França contra a burocracia, a fim de obter o benefício previdenciário que almeja. O capítulo traz também uma caracterização geral dos personagens protagonistas: o Professor, Julia Enone e Maria de França, a fim de demarcar as suas participações no romance a partir de situações de suas vidas diegéticas, fundamentais para a compreensão dos aspectos que desejo demonstrar sobre a loucura. Esse mapeamento do mundo de cada um dos três personagens serve também como fonte de esclarecimento para a análise que se desenvolverá no capítulo seguinte.
No capítulo II, intitulado Significação e Enigmas, traz como tema central a elaboração escritural da obra e a sua relação com a degeneração política. A saga de Maria de França pelo sistema previdenciário é retomada, incluindo-se agora, na análise, os aspectos jurídicos e médicos que embaraçam a personagem. Evidencia-se que Osman Lins estabelece uma espécie de simetria entre a loucura, como caracterização de uma condição mental, e o sistema burocrático, sintoma da loucura institucional do Estado.
A análise se debruça na forma como o discurso vai se construindo no romance com ênfase na categoria narrativa e na espaço-temporal. Aborda-se a questão da ironia, sátira e paródia, procurando-se distinguir a poética enoniana da prosa de Osman Lins ao mesmo tempo que se buscam confluências entre elas.
As notícias jornalísticas constantes no diário-ensaio também são tratadas em uma perspectiva de crítica à ideologia oficial que leva à abordagem de alguns aspectos da carnavalização bakhtiniana. Discorre-se também acerca da transmutação do Professor em Espantalho com vistas a relacionar a sua metamorfose com o percurso da escritura osmaniana e o modo do autor se inserir no mundo. Tudo isso relacionado com a forma como a degeneração política é apreendida no romance.
Este estudo constitui-se como uma pesquisa de caráter eminentemente teórico-conceitual, de natureza bibliográfica cujo procedimento teórico-metodológico se limita à análise hermenêutica de obras literárias e filosóficas, obedecendo a três planos: 1) Obras de Osman Lins (ficção ou não) que versam sobre temas vários que possam subsidiar a pesquisa, em especial o romance A Rainha dos Cárceres da Grécia e a fortuna crítica que o tenha como tópico; 2) Obras de teóricos da Literatura em sua dimensão de criação, dialogismo e relevância social; 3) Obras de filósofos que escreveram sobre Filosofia Política, tomando-se como base a conceituação de política e a sua degeneração, elaboradas por Hannah Arendt.
A análise aqui proposta promove, portanto, um diálogo mediado por minha compreensão analítica entre Osman Lins, Hannah Arendt, Wolfgang Iser, Mikhail Bakhtin, Jacques Rancière, Michael Foucault, Giorgio Agamben, Friedrich Nietzsche, Walter Benjamin, Terry Eagleton, Antonio Candido, Massaud Moises, entre outros que, transpassando a lógica espaço-temporal da realidade empírica, cruzam o meu caminho e se tornam, despretensiosamente, grandes amigos com os quais tenho o privilégio de compartilhar o mundo”.
Deixo a discussão do núcleo temático para os meus colegas, familiarizados e qualificados para a hermenêutica do campo. Enquanto que de minha parte, permaneço na Introdução, na qual encontro a ancoragem que me habilita a entreter diálogo com a Autora da tese.
E já entro no tema, a partir das epígrafe adotada pela Autora, extraída de Jacques Derrida, ao afirmar que “no conteúdo dos textos literários, há sempre teses filosóficas”. A Autora, aliás, em face desse enunciado, remete ao Aristóteles do tratado Ética a Nicômaco (livros VIII e IX) para assentar um ponto de partida, qual seja, que “ao contemplar tanto a dimensão existencial quanto o âmbito político – tema chave de seu estudo –, engendra-se uma relação autêntica entre os seres humanos, configurando-se como alicerce de suas vidas em comunidades”.
Diz a Autora, “assim, agraciada por tal estímulo, adentrei o mundo da escritura osmaniana. Sinto-me privilegiada, pois tenho consciência de que, quando as páginas de uma obra literária se abrem, um novo mundo se inicia. Isso significa dizer que a possibilidade de repensar conceitos e valores estabelecidos destranca-se tal qual uma porta, até então desconhecida, no saguão da existência humana. O desafio de transpor, ou não, o seu limiar é lançado ao leitor”. “Aceitei – ela continua – fazer a travessia e elegi como objeto de estudo o último romance de Osman Lins publicado em vida: A Rainha dos Cárceres da Grécia (1976), obra de arte cujo fruir veio acompanhado igualmente de maravilhamento e perplexidade. Agora, penso estar apta a lançar o convite para o acompanhamento da demonstração da minha hipótese, a saber, a matéria política é um componente interno da narrativa, exercendo papel ativo na constituição de sua estrutura, ecoando por todo o romance. Não se trata de concordar ou não com a difundida ideia de que toda obra literária possui em si uma dimensão política. Por certo, “num primeiro sentido, a vida humana é política de ponta a ponta”.
De toda sorte, é para mim sempre uma aventura procurar desvendar nesse entranhamento entre vida humana e vida política, entre discursividade explicativa própria do enfoque epistemológico e enredo declamatório, próprio do discurso literário, aquele campo de confluência entre o real e o imaginado ou, como diz a Autora em seu âmbito teórico, diegético, o que pode se situar nas entrelinhas. Mas, com ela, de algum modo considerando , que “o pressuposto básico adotado nesta tese é o de que a ficção é uma realidade, ainda que disponha de suas próprias peculiaridades e não seja identificada como idêntica à realidade social”.
É sim nas entrelinhas, nas metáforas, no imaginário literário que são capturados os discursos que disfarçam os desejos de reforma social, política e religiosa e, que nem assim salvam os cérebros quando rolam as cabeças ao gume do carrasco, contra a Utopia, de Thomas More; a crítica ao governo e às leis, na fabulação de Jonathan Swift, em As Viagens de Gulliver, não fosse Lilipute uma paródia da Inglaterra, e não se visse a contingência de guerra por não ter bastado inscrever no artigo primeiro da Constituição “que todos quebrarão os ovos pelo lado mais cômodo”; ou a contra-intuitiva desconstrução do real em Lewis Carroll, no maravilhoso país de Alice, até que esta pudesse inspirar uma sociologia das ausências e das emergências, em Boaventura de Sousa Santos (Pelas Mãos de Alice) e prestar-se a reconstituir os estudos sobre ciência, política e direito.
Créditos: PixaBay
É com essa chave de leitura que me debruço sobre a tese de Cacilda, mobilizado a cada linha por essa tessitura discursiva, constitutiva do que João do Rio diria, “tange todas as cordas da vida” numa mistura de sonho, riso, lágrima, que toca o nosso cérebro no que ele pensa e que se manifesta, ainda João do Rio, na forma de “poesia da encantadora alma das ruas! (A alma encantadora das ruas. São Paulo: Companhia das Letras, 2016). Algo que exercitei na leitura da dissertação de Luiza de Andrade Penido (Direitos Humanos nas Entrelinhas das Crônicas de Carlos Drummond de Andrade (Publicadas no Caderno B do Jornal do Brasil, entre 1969-70 e 1983-84), Dissertação de Mestrado. Orientador Menelick de Carvalho Netto. Brasília: Universidade de Brasília/CEAM/PPGDH-Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, 2020). Sobre o tema ver minha coluna Lido para Você: http://estadodedireito.com.br/direitos-humanos-nas-entrelinhas-das-cronicas-de-carlos-drummond-de-andrade/.
Ali parto do pressuposto da Dissertação e, nesse terreno, se me socorro da crítica literária, meu guia de orientação, é sempre Antonio Candido, autor que também serve de referência a Cacilda. Em Retratos (São Paulo: Companhia das Letras, 1993), ele abre o conjunto de ensaios que formam a obra, com Drummond prosador, no qual, tratando de escritos em prosa que o próprio Drummond chamava de crônicas, e que Candido mais categoriza como crônica entre aspas dado o extravasar rígido dos escritos para o alcance de ensaios, para mostrar que neles “os movimentos livres do pensamento e da imaginação vinculam estreitamente à reflexão cheia de consequências” realizando uma “prosa que se apresenta como algo irrelevante” mas que inesperadamente desliza “para reflexões de um alcance e densidade” dos que “ensaiam o pensamento”.
Leal ao seu ofício, o escritor, diz Pedro Tierra em Pesadelo, obra que foi objeto de um Lido para Você (https://estadodedireito.com.br/pesadelo-narrativas-dos-anos-de-chumbo/), e um tanto diversamente do Osman Lins de Cacilda, “faz brotar tal como ele divisa o papel da literatura, uma narrativa para além do simples relato da ação que brota da experiência e das vontades coletivas”. Ele cumpre seu papel de intelectual engajado: “identificado com a necessidade de transformações sociais, será sempre presa dessa angústia de fazer parte de algo que remete a sonhos coletivos, a vontades coletivas. Talvez para compensar a doença profissional da solidão”. .
Penso que posso oferecer uma confirmação que valide essa possibilidade de prospecção nas entrelinhas. Para isso me socorro em Noel Delamare, pseudônimo e alter ego de Roberto Lyra Filho (Cancioneiro dos sete mares. Revista Humanidades nº 11, ano III. Brasília: Editora UnB, novembro/janeiro 1986/1987, p. 43-50), quando caracteriza um poeta maior e acentua as linhas que o definem, a despeito de diversas e eventualmente opostas e apesar das suas eventuais contradições de classe, temperamento e roteiro. Na categorização de Noel Delamare, Drummond repercute todas as linhas, desde “a solidariedade, voltada para as transformações da estrutura… participa da luta, para remodelar, à altura do tempo, o ideal permanente de liberdade; e que, nisto, porém, não abandona a esfera íntima do homem, na procura da felicidade, dentro do vórtice da História, se expressando como ‘aquele sentimento do mundo’; seja quando se apresentam “solistas e coral da humanidade pelas espirais da transcendência”.
Bem que aqui, para minha surpresa, considerando o lugar funcional e teórico de onde a Autora parte, tenha ela, chegado às minhas próprias formulações no tema do direito e dos direitos humanos. No que, Roberto Lyra Filho, seguido por mim, na configuração conceitual e prática do que viemos a denominar O Direito Achado na Rua, a que se refere a Autora, e a partir do que tenhamos indicado como o humanismo que se realiza no processo histórico, pela enunciação de uma legítima organização social da liberdade, processo que a Autora apreendeu, muito apropriadamente.
Conforme põe em relevo: “me move a apontar o projeto O Direito Achado na Rua, coordenado pelo prof. Dr. José Geraldo de Sousa Junior, jurista e ex-reitor da UnB, como uma das fontes de inspiração para esta tese. Nascido da Nova Escola Jurídica Brasileira (NAIR), fundada pelo então prof. Dr. Roberto Lyra Filho, o Direito Achado na Rua, que opera há 30 anos em Brasília (desde os trabalhos da Assembleia Constituinte), pauta-se em uma nova concepção de direito a partir do reconhecimento de que o Brasil é palco de uma decadência da Justiça. O ponto alto do projeto é a noção de direito concebido como liberdade e, portanto, como instância política, a qual abraça e defende as causas das minorias sociais. Isso quer dizer que as “leis” em si não são suficientes como garantia da justiça. Daí o Direito que nasce nas ruas, isto é, aquele que brota do clamor popular, ser contrário ao positivismo e, consequentemente, à imposição de normas e à dominação. Eis que, então, me vejo a celebrar nesta tese mais um encontro de philia, dessa vez com o prof. Dr. José Geraldo (de quem tive o prazer de ser aluna por um semestre na UnB) e com todos os colegas e juristas que compartilham de um direito não enclausurado.
Salvo algumas reconhecidas diferenças conceituais e pontuais, não consigo dissociar esse projeto da visão mais ampla de Hannah Arendt. Buscando sintetizar o exposto sem cair na simplificação, torno a repetir que a concepção de política que orienta esta pesquisa se fundamenta em um pensamento que dispensa a identidade em prol de se pensar a diferença e que, desse modo, põe-se na contramão de qualquer sistema cuja pretensão seja eliminar toda e qualquer alteridade. Não sendo tomada, portanto, em sentido axiológico, ou como um meio para justificar um fim mais elevado (cuja determinação sofre modificações ao longo dos séculos), a política é concebida como ação conjunta a refletir a condição plural dos homens, inscrita através de suas semelhanças e singularidades no convívio com outros”.
Citando Miroslav Milovic, o querido professor da UnB que há pouco perdemos para a Covid e para a criminosa despolitização que intensificou o agir genocida em nosso País, Cacilda, para chegar ao pano de fundo filosófico que é sua chave de leitura de Osman Lins, vai situar “A ação política em Arendt é sempre uma interação. Os outros são pressupostos e não só consequências de uma reflexão solitária”. Consequentemente, a noção de degeneração política remete ao obscurecimento da intersubjetividade política – ou seja, da nossa capacidade de julgar e agir em conjunto -, que passa a ser substituída por apatia e isolamento, enquanto a futilidade transforma todos em meros consumidores. Quando o espaço público é invadido por violência, corrupção e restrição da liberdade, restando apenas a preocupação com o âmbito econômico, atesta-se, assim, um esquecimento do verdadeiro sentido da política. Isso caracteriza a sua degeneração. E tal degradação vai-se intensificando de tal modo que o real sentido da política vai pouco a pouco se perdendo, passando, desse modo, a ser considerada como necessidade e dominação expressões efetivamente antipolíticas e que fazem, na compreensão do senso comum, a política oscilar entre interesses mesquinhos, propagandas mentirosas e violência. Porém, como tentei brevemente demostrar aqui, isso não é política, mas, sim, a sua degeneração e obscurecimento. Temos visto que algumas pessoas utilizam a expressão “tempos sombrios” para se referir ao momento histórico brasileiro iniciado com um golpe à democracia, por meio do processo de impeachment de Dilma Rousseff (2015/2016), desdobrou-se na eleição de Jair Messias Bolsonaro à presidência da República (2018) e, até o momento, não acena previsão de término. Sem dúvida, a definição expressa a percepção de que o nosso país foi assolado por um drama ético-institucional sem precedentes na história nacional: corrupção extrema, polarização e radicalização de ideias, intolerância, ódio, exaltação à violência”
É claro que estou com ela, nesse passo, pois em minha própria leitura de Miroslav Milovic, a partir de seu livro Comunidade da Diferença. 1. ed. Rio de Janeiro, Ijuí: Relume Dumará, UNIJUI, 2004, tenho que em seu pensamento filosófico, muito mais instigado por uma percepção sistêmica, racional ao impulso espiral dos grandes processos, hegelianamente falando, Miro se propunha pensar o Brasil num movimento dialético inscrito na historicidade. Não podia sequer imaginar que se pusesse intencionalmente numa vocação redutora para descer ao nível de rodapé, tangido pelo banal malicioso convertido em ação política. Quem poderia imaginar esse regresso? Esse suicídio histórico? Essa politização despolitizadora do social? Ao ferir a questão da despolitização da modernidade como um sintoma de tipo de fenômeno profundo de nosso tempo, Miro apontava para o que considerava um fenômeno característico de nosso tempo, a despolitização, indicando a exigência de reinvenção da política como perspectiva de articulação das novas subjetividades.
E é sobre essa condição dramática que Miro adverte em aguda entrevista que concedeu ao sítio IHU Unisinos, para a EDIÇÃO 438 | 24 MARÇO 2014, na inteligente instigação de Márcia Junges e Ricardo Machado, afinal resumidas no título que indexa seus comentários: “Contemplar para compreender, entender a si mesmo para fazer o bem”, pois, para Miro, “agirno mundo requer, antes de tudo, saber o que é o mundo, o que é a própria natureza, para nos entendermos”. Por isso ele diz: “Tantos crimes, mas quase sem culpados. O indivíduo que não pensa e se torna cúmplice dos crimes: essa é a banalidade do mal diagnosticada por Hannah Arendt como a consequência dessa tradição filosófica que quase mumificou a estrutura do ser e nos marginalizou” (cf. meu texto em http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/606856-miro-compromisso-com-a-filosofia-politica-e-o-mundo).
Voltando a Cacilda em sua tese, ela vai dizer: “Como bem nos advertiu Arendt, precisamos estar sempre atentos porque: “pode ser que os verdadeiros transes de nosso tempo somente venham a assumir a sua forma autêntica – embora não necessariamente a mais cruel – quando o totalitarismo pertencer ao passado” (ARENDT, 2000, p. 512). Frente à perpetuação dessas práticas tão nocivas à nação percebo o quanto A Rainha dos Cárceres da Grécia, além de extremamente atual, se oferece, enquanto obra de arte, como um portal de atravessamento capaz de nos mostrar o modo como falamos de nós mesmos e construímos, simultaneamente, o nosso imaginário coletivo, na contramão da hegemonia de uma “história” oficializada que se caracteriza pelos signos da mentira e da opressão. Termo tomado não no sentido de aversão a política, mas significando práticas que prejudicam e lesam o espaço público, ou seja, como sinônimo do conceito de degeneração política”.
Aqui não se trata de discutir o engajamento do artista ou do escritor, como a Autora indica, remetendo a Sartre e eu a Pedro Tierra, mas considerar uma outra ordem de função da literatura (e da arte).
Em Cacilda, por referência a Osman Lins, “a questão mais ampla é que recusar o rótulo – engajamento – não significa negar a dimensão política da arte. Consciente do seu ofício de ficcionista e independente de qualquer ideologia, Lins escreve: ‘A literatura não é o nosso recreio, produto secundário e de relativa importância, segregado nos intervalos da verdadeira ação. Quando o escritor atua politicamente, não está passando, como habitualmente se quer ou se propala, da contemplação à ação (…). Com a obra literária, e por nenhum outro meio, é que realmente age o escritor: sua ação é seu livro (LINS, 1974, p. 219)’”.
Localiza-se nesse estudo a nota de singularidade que eu já havia intentado assinalar discorrendo sobre Direito e Cinema, mesmo numa aproximação mais geral, ainda quando inaugure vertentes de interesse para o conhecimento do Direito e suas formas de difusão, incluindo o ensino e a educação jurídicas. As relações entre Direito, Arte, Literatura, Teatro e Cinema formam uma Paidéia em alcance clássico e dispõem de um catálogo expressivo para o confirmar (https://estadodedireito.com.br/coluna-lido-para-voce-direito-no-cinema-brasileiro/).
No plano epistemológico, a propósito, tem sido estimulante a vertente que trabalha a interlocução interdisciplinar e complexa para acentuar o diálogo entre saberes, demonstrando que o conhecimento não se realiza por uma única racionalidade, mas, ao contrário, pela integração entre diferentes modos de conhecer que nos habilitem a discernir o sentido e significado da existência e a elaborar sínteses interpretativas que além de nos permitir compreender o mundo, contribuam para transformá-lo, conforme, entre todos, sustenta Boaventura de Sousa Santos. Trata-se, como acentua Roberto Lyra Filho (A Concepção do Mundo na Obra de Castro Alves, Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1972; Filosofia Geral e Filosofia Jurídica, em Perspectiva Dialética, in Palácio, Carlos, S.J., coord. Cristianismo e História, São Paulo: Edições Loyola, 1982), de operar padrões de esclarecimento, recusando o monólogo da razão causal explicativa, para abrir-se a outras possibilidades de conhecimento: o fazer, da atitude técnica; o explicar e compreender, da atitude científica; o fundamentar, da atitude filosófica; o intuir e mostrar, da atitude artística; o divertir-se, da atitude lúdica; o revelar, da atitude mística.
Tem razão Eduardo Lourenço, não só em sustentar a unidade da poesia fernandiana (Fernando Pessoa), mas em suscitar a totalidade que abarca os seus aparentes fragmentos heterônimos, para indicar que nesse processo o problema central continua a ser o do conhecimento. Para Lourenço (Tempo e Melancolia em Fernando Pessoa, publicado na edição brasileira do livro O Mito da Saudade, Editora Companhia das Letras), os avatares de Pessoa “representam uma tentativa desesperada de se instalar na realidade”.
Ainda que a trama ficcional mova personagens subalternos, surpreendidos no comum e no ordinário que trama suas vidas, pressinto o fio que tece o horizonte de humanidade que se projeta desde a sombra tênue de suas existências. Como em Zola, no Germinal, o personagem Étienne expressa o despertar da consciência social diante da opressão e da situação subordinada do proletariado. Ou em Hugo, em que a coexistência do sublime com o grotesco, entrelaça o incidental inscrito em gestos insignificantes com o desencadear de processos de grande história o que permite refletir sobre a extensão plena da natureza humana. Mas, notavelmente em Dumas cuja narrativa dá importância às personagens secundárias. Mestre em introduzir na ação personagens desconhecidas, cujos atos ordinários, repercutem de forma decisiva nos acontecimentos históricos, atribui a esses seres humanos ressuscitados poeticamente, pelo grande escritor, algum protagonismo, consciente ou inconscientemente, nesses acontecimentos. Sigamos a sua tese no capítulo II de seu magistral Isabel da Baviera: “Não há historiador ou romancista que não tenha feito a sua ampliação metafísica sobre as causas mínimas e os grandes efeitos; é que em verdade é impossível sondar as profundezas da história ou os recônditos do coração sem nos assombrarmos ao ver quão facilmente um incidente frívolo, que começou por passar indiferente e despercebido à nascença, no meio dessa imensidade de infinitamente pequenos acontecimentos que compõem a vida, pode, ao cabo de um certo lapso de tempo, tornar-se catástrofe para uma existência ou para um império…”.
Em Osman Lins, na obra sob análise, algo assim ocorre. “Intentei – diz Cacilda – evidenciar no título da tese que as personagens protagonistas vivem em um contexto de exclusão e isolamento no qual a Justiça (em seu sentido mais amplo e não somente institucional) lhes é sempre negada devido aos meandros de uma política adulterada que está em franca degeneração. Nesse romance de Osman Lins, escrito e publicado em plena ditadura militar, eclodem inúmeras referências a violações dos direitos humanos, em uma narrativa que contempla aspectos de diagnóstico e denúncia de uma estrutura administrativa, jurídica e social puída por práticas governamentais corruptas e autoritárias, que caracterizam a degeneração da política em âmbito nacional e que precisam ser conhecidas, evidenciadas e banidas do Estado brasileiro.
Entre tantos trabalhos de Osman Lins, esta [A rainha] é a obra da qual se podem retirar as ataduras ficcionais para perceber-se suas reflexões como escritor e mesmo as mágoas pessoais diante da realidade de um país sempre em crise. As duas vertentes, a de intelectual pesquisador e analítico e a de homem interessado pelo destino da mais humilde representante das mais modestas classes sociais, as vertentes encontram-se na superfície e em profundidade, nos refolhos bruscos do romance, nas irônicas tiradas e nas cômicas figuras que o povoam, como a combinar o trágico ao humorístico, outra das qualidades da obra (IGEL, 1988, p. 114) [grifo meu]. A Rainha dos Cárceres da Grécia é um romance que exclui da sua temática o triunfo (LINS, 2005, p. 147), não por uma visão puramente pessimista, mas porque escolhe narrar o mundo inóspito em que vivem seus personagens. A imagem do paradoxal cenário social brasileiro desperta a compreensão de que é na dor muda e inarticulada que as vozes desses personagens se misturam, revelam-se e se dissolvem na composição de suas singularidades. Osman Lins narra a história da leitura de um romance. A magnitude da narrativa complexa e densa, que traz um romance dentro de outro e que exige dedicação e cumplicidade do leitor/pesquisador, nos faz ver que é através da leitura que podemos nos libertar de todos os cárceres. Em termos organizacionais, esta tese se divide em dois capítulos, evocando a duplicidade marcadamente presente no romance não somente no modo como o autor constrói um jogo de dissimulações, espécie de salão de espelho onde as personagens se movem, mas também por ser uma ficção na qual o protagonista do romance, o Professor, é composto por uma natureza dual, manifesta por entre contrastes que vão se embaralhando ao longo da narrativa”.
Penso que Cacilda, concede, a mim e a meu colega co-autor Antonio Escrivão (Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2015), a exata apreensão do processo instituinte e no limite, de judicialização positivante dos direitos humanos; e o faz de modo a estabelecer nexo com a sua leitura de Arendt, acerca desse processo. Em Arendt, “a ideia de ‘direito a ter direitos’ nos fala também da luta travada pelas minorias dentro do próprio Estado, evidenciando ainda mais drasticamente aqueles que nem sequer conseguem se organizar e se engajar em uma representatividade, como é o caso de Maria de França. Ora, o que Arendt põe em evidência é que o fundamento da possibilidade de qualquer direito é o direito de pertencer a uma comunidade política, exatamente o que vem sendo historicamente negado às minorias.
A positivação dos Direitos Humanos não é garantia de efetivação. Por isso mesmo, existe a conquista de direitos, fruto da vontade política, que não subordina o particular ao geral, mas, ao contrário, valoriza cada singularidade. Se não nascemos iguais, tornamo-nos iguais pelo reconhecimento político da igualdade: cerne de todas as lutas sociais”.
Volto a Cacilda Bonfim: “Fingir, fazer de conta, imaginar, hipotetizar não são termos/ações considerados aqui como opostos à verdade, isto é, sinônimos de mentira, ilusão, engano, erro ou irrealidade. Assim, exceto quando se efetuou a diferenciação pelo personagem-ensaísta (como forma de evidenciar a imbricação das duas dimensões no romance que analisa), os conceitos real/verdade não foram adotados aqui como contraposição aos termos imaginário/fictício. Logo, quando houve necessidade de evidenciar uma distinção, os vocábulos ‘real’ e ‘verdade’ foram substituídos pelas expressões: experiência empírica, fato e/ou tempo histórico, mundo extratextual, mundo sensível.
A hipótese sustentada nesta tese é a de que o romance de Osman Lins, cujo título é homônimo ao de sua personagem, apresenta, desde a sua estruturação, a compreensão de um mundo onde a injustiça impera como sintoma de uma política degenerada. Não se trata, porém, de concordar ou não com a difundida ideia de que toda obra literária possui em si uma dimensão política, mas de conjecturar, levando-se em conta a singularidade do romance, o modo específico de o romance se entrelaçar com a política, de tal modo que sua estética é permeada pelo fenômeno político, não apenas em termos de conteúdo temático, mas também como parte dos elementos inerentes à composição romanesca – caracterização de personagens, tempo, espaço, atmosfera, foco narrativo”.
Conforme expõe Cacilda, “ouso dizer que A Rainha dos Cárceres da Grécia se trata, do começo ao fim, de um romance filosófico, ainda que esta pudesse não ser a intenção do autor. Filosófico não no sentido de impor fundamentos dogmáticos às demais áreas do conhecimento, prática tão comum na Filosofia e, ao mesmo tempo, igualmente criticada ao longo de sua história, mas como abertura para o mundo, ou seja, como ato que recoloca questões, confronta ideias, valoriza a alteridade, oportuniza caminhos de conhecimento e que, dialogicamente, confronta-se com todo e qualquer discurso autoritário e opressor, que aceita unicamente a validade de seus próprios princípios.
A denúncia social permeia todas as três camadas do romance no qual ética e estética são dimensões indissociáveis. A imbricação entre literatura e política viceja e se entranha na estrutura da história que o livro conta: a leitura de um romance envolto em uma degeneração política que faz a justiça ser sempre indeferida. O que resta? A imaginação.
Eis uma afirmação categórica. Eu estou de acordo com ela, como se percebeu em meus próprios pressupostos. Entretanto, pode acontecer que se considere essa assertividade, uma sorte de ousadia. Afinal, conforme resguarda Simone Vierne (Liaisons orageuses: la Science et la littérature, in l’imaginaire dans les Sciences et les Arts, Cahiers de L’imaginaire. Toulouse: Editions Edouard Privat, 1988, pp. 89-98), “la liason orageuse entre science et littérature est-elle em train de devenir une histoire d’amour…” (a ligação tempestuosa entre ciência e literatura se transformando em uma história de amor…).
Estou seguro que Cacilda sabe mover-se nesse campo analítico, com o trato de quem domina os protocolos diegéticos. Ela mesma previne qualquer fiscalização sobre seu trânsito direcional e previdentemente deposita a sua carta de orientação: “é no limite do jogo da ficção osmaniana, como quem o olha de dentro, que trago à tona elementos de injustiça caracterizados pela degeneração política na obra A Rainha dos Cárceres da Grécia como um todo, ou seja, em suas múltiplas e variadas camadas, trespassando sua profusão de temas. Isso não significa que minha intenção tenha sido a de condicionar o valor estético da obra a fatores exteriores à sua criação, mas demonstrar que: Quando fazemos uma análise deste tipo [literária], podemos dizer que levamos em conta o elemento social, não exteriormente, como referência que permite identificar, na matéria do livro, a expressão de uma certa época ou de uma sociedade determinada; nem como enquadramento, que permite situá-lo historicamente; mas como fator da própria construção artística estudado no nível explicativo e não ilustrativo (CANDIDO, 2000, p. 7) [grifo meu]. Consciente da proposta do romance, o qual é, sobretudo, uma obra metaficcional, me aproximo de A Rainha dos Cárceres da Grécia em busca de perscrutar os aspectos políticos, até porque o estudo da política (e os seus desdobramentos ético-jurídicos) sempre foi o mote da minha formação acadêmica e motivação profissional. Busco, assim, estabelecer um diálogo entre dois tipos de saberes sem que isso avilte o caráter de autonomia da literatura e da obra de arte como um todo”.
Por isso, estou tranquilo, amparado em Simone Vierne, de propor a minha questão para Cacilda Bonfim: “tantôt c’est à partir de la science que se déploie l’imaginaire, la science servant de caution pour briser les censures du rationnel”. Será o caso, digo, a sua Tese, uma daquelas vezes em que é da ciência que a imaginação é implantada, a ciência servindo como garantia para quebrar as censuras do racional? Ou, ao contrário, estarão, Osman Lins e a própria Cacilda, servindo-se da imaginação para ressignificar a ciência, a imaginação servindo como garantia para quebrar as censuras do racional?
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Dossiê Educação do Campo: documentos 1998-2018. Clarice Aparecida dos Santos, Edgar Jorge Kolling, Eliene Novaes Rocha, Mônica Castagna Molina, Roseli Salete Caldart (Organizadores). Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2020, 435 p.
Trata-se, como indica o título, de um dossiê, que reúne as memórias de 20 Anos da Educação do Campo e do PRONERA. São documentos, relatórios, pareceres, manifestos e atos sobre a educação dos povos, trabalhadores, educadoras e educadores do campo e sobre o pensamento pedagógico nesse processo desenvolvido, revelando sujeitos políticos-educadores no contexto da história de um Movimento Social Educador.
Excelente, quanto ao conteúdo, nos níveis documental, informativo, remissivo-memorialista no sentido da registro e do balanço crítico que realiza. O tema tem grande atualidade pois exibe a organização um programa pioneiro, único no seu alcance e com pertinente articulação entre os fundamentos teóricos pressupostos de que se reveste e da exemplaridade da política pública, com origem constitucional (educação para a reforma agrária), que além de tudo, dada a conjuntura, pode se constituir também como arqueologia de experiência histórica exemplar.
E mais do que isso, perpetua – as rei memoriam – registros de uma experiência notável de política pública do campo, exemplar sob todos os aspectos, agora atacada e desconstruída por uma ação de governo hostil à emancipação social de segmentos históricos na luta por terra e território, notadamente os povos originários, quilombolas e camponeses, a ponto de incrementar essa hostilidade, no interesse econômico do latifúndio e da acumulação capitalista neoliberal, forte no agronegócio, com políticas legislativas de criminalização, ultimamente armadas e ativadas pela leniência ao vigilantismo, à pistolagem e ao milicianismo. Em boa hora o STF começa a por limites constitucionais à sanha regulatória governamental armamentista (https://www.brasil247.com/brasil/fachin-vota-pela-inconstitucionalidade-de-decretos-de-bolsonaro-sobre-armas-de-fogo, o julgamento ainda prosseguia no momento da redação desta Coluna Lido para Você).
O livro, com esse relevo memorialista, alcança uma abrangência de 20 anos de uma política e, simultaneamente, registro de um evento constitucional que coincide com a celebração de um registro constitucional com enorme interesse de futuro (1988-2018). Bastante exata e descritiva no sentido metodológico que dá à descrição o alcance de explicação. O arranjo lógico deriva da excelente organização do material cuja leitura é facilitada pelas indicações do prefácio e da apresentação.
Tive a oportunidade de examinar previamente a obra ainda sujeita a parecer de publicação, a pedido da Editora. Se bem me lembro, no parecer que ofereci (não foi o único parecer como é próprio da EDUnB), fui inteiramente favorável. Não me recordo os termos exatos desse parecer, mas agora, com a publicação em mãos, penso que a minha avaliação terá sido sustentada pela mesma opinião que mantenho, em face do livro editado.
Com certeza, agora como ao avaliar a presente obra, revejo muitos pontos que tenho trabalhado em publicações variadas e em diferentes veículos de edição. Em comum, elas constatam a existência persistente ainda em nosso Pais de uma disputa que envolve, de um lado, a secular manutenção da concentração da terra frente à necessária democratização do acesso à essa terra e ao território; e de outro, a formulação de projetos políticos antagônicos para o campo brasileiro, desafiando a elaboração de agendas para a adoção de estratégias econômicas, sociais, políticas e jurídicas que conforma esse tema. Essa tensão agora, na conjuntura que se anuncia, vai ainda mais se agudizar.
FOnte: PixaBay / SarahRichterArt
Compulsando algumas das agendas que se desenham a partir daí, e que conformam o tema geral do direito à terra a à reforma agrária, notadamente na conjuntura que antecede o golpe parlamentar-judicial-midiático que levou ao afastamento da Presidenta Dilma Rousseff e com ela, à derrocada do projeto popular-democrático que abriu ensejo à construção dessas agendas e logo, à instalação de uma governança a serviço do modelo capitalista de concentração da terra e do território, vê-se nitidamente que o tema da educação do campo compõe essa agenda, em concreto no âmbito da formulação de políticas públicas, juntamente com a questão estratégica da preservação da água como um bem social, do direito agrário, do cooperativismo, do fortalecimento da agricultura familiar, e da função social da terra e da propriedade, para valorizar a agroecologia para garantir a soberania alimentar brasileira e a humanização da produção agrícola com a substituição do modelo de produtividade apoiado no sistema de uso intensivo de agrotóxicos, da estrangeirização mercantil da terra, do protagonismo político e da participação deliberativa na governança. Conferir aqui no Jornal Estado de Direito, a minha Coluna Lido para Você:http://estadodedireito.com.br/estrangeirizacao-de-terras/.
Certamente há outros aspectos que se inserem na agenda, de algum modo aceita pela governança para conferir itens de negociação, sobretudo com os movimentos sociais do campo, Basta ver os enunciados dos representantes dos principais movimentos – MST e também Via Campesina – enquanto denunciam a criminalização que sofrem e propõem a valorização da vida no interior, com geração de emprego e oportunidade de formação para jovens com a implantação de milhares de pequenas agroindústrias na forma de cooperativas, capazes de dar emprego e estudo a milhões de assentados e participantes dos programas de reforma agrária e de acesso à terra e a territórios (quilombolas, ribeirinhos, indígenas), em confronto com os modelos promovidos pelo capitalismo financeiro e por suas grandes empresas assentadas na monocultura, onde cada fazenda se especializa em um produto, com uso intensivo de máquinas agrícolas e agrotóxicos.
Os textos que integram a presente obra trazem essa disposição de posicionamento e se inscrevem na plataforma formulada pelo Projeto O Direito Achado na Rua uma das principais referências de minha própria atuação para, com a sua reflexão, contribuir criticamente para a qualificação teórica e política dos movimentos sociais do campo, corroborando o que dizia Plínio de Arruda Sampaio, no vol 3, da Série O Direito Achado na Rua, obra cuja elaboração contou com a força orientadora e organizativa de Mônica Castagna Molina, uma das organizadoras do livro ora Lido para Você (Introdução Crítica ao Direito Agrário”, Brasília/UnB/São Paulo/Imprensa Oficial de São Paulo, 2002, pág. 317: “o desenvolvimento de um pais está travado por uma questão agrária quando a trama das relações econômicas, sociais, culturais e políticas no meio rural produz uma dinâmica perversa que bloqueia tanto o esforço para aumentar a produtividade, como as tentativas de melhorar o nível de vida da população rural e sua participação ativa no processo político democrático” ou sua ação protagonista de sujeitos coletivos de direitos investidos pedagógica, cultural e em suas habilidades profissionais para intervir no mundo. Conferir em minha Coluna Lido para Você: http://estadodedireito.com.br/a-possivel-legitimidade-dos-integrantes-de-movimentos-sociais-em-busca-da-terra/; também, muito especialmente: http://estadodedireito.com.br/o-direito-e-a-educacao-do-campo/.
Conforme recolho em Kátia Augusta Curado Pinheiro Cordeiro da Silva, minha colega na UnB, professora no Departamento de Administração e Planejamento – PAD da Faculdade de Educação e no Programa de Pós-graduação em Educação, e encontro em seus estudos no do grupo de pesquisa GEPFAPe – Grupo de Pesquisa sobre Formação e Atuação de Professores/Pedagogos.Pós-doutorado na Universidade de Campinas/Faculdade de Educação, “O projeto de educação do campo visa desenvolver uma escola que seja em sua completude do campo, uma escola não apenas desenvolvida no campo, mas também que assuma as práticas sociais do campo, dos camponeses e de quem more e tenha seus vínculos e raízes ligadas a um Brasil rural para a realização de atos educativos. O sentido de educação para o campo reflete que a educação destinada para os sujeitos que moram no campo vem sendo uma construção coletiva dos movimento sociais apresentando o que os sujeitos do campo acreditam, ensejam, almejam e queiram no que se refere ao projeto de educação para seus filhos”.
Assim, a obra, Kátia diria, se apresenta numa perspectiva da história, e portanto atual, pois retrata uma construção de vinte (20) anos, propaga a organização coletiva, revela a história de um movimento social educador apresentando um outro paradigma pedagógico que é atual e instigante para pensar a educação e provoca para as novas possibilidades da educação, bem como elementos de pesquisa da temática.
O sumário está organizado com um prefácio, a cargo de Miguel G. Arroyo, doutor em educação pela Stanford University e Professor Titular Emérito da Faculdade de Educação da UFMG. Contêm também uma Apresentação, elaboarada pela Comissão de Organizadores. Segue-se, no Sumário, o conteúdo da obra:
Manifesto das Educadoras e dos Educadores da Reforma Agrária ao Povo Brasileiro. I ENERA. Julho de 1997
Texto Preparatório – Conferência Nacional por uma Educação Básica do Campo. Luziânia, GO, 27 a 31 de julho 1998
Desafios e Propostas de Ação – Conferência Nacional por uma Educação Básica do Campo. Luziânia, GO, 27 a 31 de julho 1998
Compromissos e Desafios – Conferência Nacional por uma Educação Básica do Campo. Luziânia, GO, 27 a 31 de julho 1998
Seminário da Articulação Nacional Por Uma Educação Básica do Campo – documento de sistematização. Cajamar, SP, novembro 1999
Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária – PRONERA – 1º Manual de Operações Brasília, INCRA, 2001
Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo – Resolução CNE/CEB 1, de 3 de Abril de 2002
Políticas Públicas e Identidade Política e Pedagógica das Escolas do Campo. Propostas de ação para o novo governo – Seminário Nacional Por Uma Educação do Campo. Brasília 26 a 29 de novembro 2002
Por Uma Educação do Campo: Declaração 2002 – Seminário Nacional Por Uma Educação do Campo. Brasília 26 a 29 de novembro 2002
Educação do Campo e Educação Indígena: duas lutas irmãs – Documento do Encontro Nacional de Professores Indígenas e Missionários do CIMI – Conselho Indigenista Missionário. Luziânia, GO, 26 a 30 de junho 2002
Por Uma Política Pública de Educação do Campo: Texto-Base – II Conferência Nacional de Educação do Campo. Luziânia, GO, 02 a 06 de agosto 2004
Por Uma Política Pública de Educação do Campo: Declaração Final – II Conferência Nacional de Educação do Campo. Luziânia, GO, 02 a 06 de agosto 2004
Programa Nacional de Educação do Campo: Formação de Estudantes e Qualificação Profissional para a Assistência Técnica (Residência Agrária) – Norma de Execução n. 2 do MDA/INCRA, em 2 de setembro 2004
Encontro Nacional de Pesquisa em Educação do Campo – Síntese da plenária final. Brasília, 19 a 22 de setembro 2005
Licenciatura (Plena) em Educação do Campo – Proposição inicial – elaborada com a CGEC-SECAD-MEC. Brasília, abril de 2006
Pronera: balanço político e linhas de ação – rumo aos 10 anos – III Seminário Nacional do Pronera. Luziânia, GO, 02 a 05 de outubro 2007
Carta Compromisso pela criação do Fórum Nacional de Educação do Campo. Brasília, 18 de agosto 2010
Decreto do governo federal nº 7.352 de 4 de novembro 2010 – sobre a política de Educação do Campo e o Pronera
Nota técnica sobre o programa Escola Ativa. FONEC, abril de 2011
Nota técnica sobre o programa PROJOVEM Campo – Saberes da Terra. FONEC, março de 2012
Notas para análise do momento atual da Educação do Campo. FONEC, Seminário Nacional – Brasília, DF, 15 a 17 de agosto 2012.
Manifesto à Sociedade Brasileira. FONEC, Seminário Nacional – Brasília, 15 a 17 de agosto 2012 [Publicado em 21 de agosto 2012, após ratificação dos participantes do Encontro Unitário]
Declaração do Encontro Nacional Unitário de Trabalhadores e trabalhadoras, povos do campo das águas e das florestas – Brasília, 22 de agosto 2012
Oficina de planejamento 2013-2014 – Relatório-síntese. FONEC, Brasília, junho de 2013
Fechamento de escolas do campo. O crime continua contra a Nação que se quer educadora. Nota da Comissão Pedagógica Nacional do Programa Nacional de Educação em Áreas de Reforma Agrária (PRONERA). Brasília, 15 a 18 de julho 2015
III Seminário Nacional – Documento Final. FONEC, 26 a 28 de agosto 2015
Nota sobre a Medida provisória n. 746/2016 – MP da Reforma do Ensino Médio. FONEC, Outubro de 2016
Manifesto contra a política de titulação do governo Temer – Comissão Pedagógica Nacional do PRONERA, Abril de 2017
Carta-Manifesto 20 anos da Educação do Campo e do PRONERA – FONEC, Encontro Nacional, junho de 2018
Anexo
Marcos legais da Educação do Campo – links de acesso eletrônico
Do Prefácio de Miguel Arroyo, intitulado Memórias de Educação do Campo ponho em relevo a preciosa categorização com a qual organiza para a melhor compreensão hermenêutica, a teleologia da documentação recolhida na obra: Um Movimento Social Educador; Uma História-Memória a não ser esquecida; Memórias do lugar-Não-lugar nas estruturas de poder; Memórias de politização da relação direito à terra, direito à educação; Memórias de destruição de ser decretados Sem-Terra porque decretados Sem-Humanidade?; Memórias das tensões entre desumanização-humanização; Memórias de desconstrução do paradigma político-pedagógico hegemônico; Memórias de construção de outro paradigma político-pedagógico; Memórias da Agricultura Camponesa Matriz Formadora; Memórias que afirmam as Resistências como Matriz formadora; Memórias de Movimentos do Campo por Soberania Popular.
Para Arroyo, “Os 20 Anos de Educação revelam a consciência do direito a mais do que escolarização, o direito a uma educação que vise uma formação humana plena dos povos do campo como direito, visando uma humanidade mais plena e feliz. Revela a consciência de que o direito à humanização exigirá desconstruir os processos de desumanização, as relações sociais de desumanização que continuam roubando dos povos do campo, desde a infância, suas humanidades. Que centralidade dar à produção-reprodução desses processos históricos de desumanização que pesam sobre os povos do campo? A educação do campo só avançará visando uma humanidade mais plena se entender e desconstruir a desumanização ainda tão plena que sofrem, porque expropriados de suas terras, territórios, de suas culturas, valores, identidades. Porque roubados em suas humanidades. Paulo Freire adverte a pedagogia: não será suficiente entender, acompanhar processos de humanização, de desenvolvimento, formação humana quando os educandos são submetidos a brutais processos de desumanização”.
Por tudo, o Dossiê da Educação do Campo é uma obra importante da memória coletiva sobre educar em um paradigma inclusivo, dialógico e dialético que apresenta o recontar a história da Educação do Campo como uma história de lutas e conquistas que possibilita o reconstruir uma Outra história em que sujeitos dos campos se mostram como atores sociais; políticos e de políticas. No fundo, conforme ainda Miguel Arroyo, o Dossiê é um testemunho. Um testemunho de que “Os movimentos sociais do campo deixam seu testemunho, as lutas por educação do campo exigem ser mais radicais: lutas por Soberania Popular”.
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Papa Francisco. Carta Encíclica Fratelli Tutti. Sobre a fraternidade e a amizade social. São Paulo: Edições Paulinas, 2020, 213 p.
Trago neste Lido para Você, a Carta Encíclica Fratelli Tutti, do Papa Francisco. Não porque seja membro da Comissão Justiça e Paz (da Arquidiocese de Brasília) e, como tal, em nossos programas e projetos o magistério de Francisco seja uma diretriz pressuposta. É que esse magistério invariavelmente, em suas exortações, declarações, Cartas Encíclicas, tem feito mais impacto entre homens e mulheres de boa vontade os quais pode dizer-se têm sido o interlocutor de um auditório ampliado, que entre os cristãos ecumenicamente falando e aos católicos em particular que não deveriam se esquivar desses ensinamentos. Entre estes últimos, em tempos controversos, há muito mais objetores a Francisco, que no público ampliado, entre os quais a sua mensagem repercute entre admiração, respeito e acolhimento. Seus críticos, entre os católicos, até mesmo próximos na Cúria Romana, não escondem o mal-estar diante desse Papa que querem ver logo substituído, porque “muito encarnado e da rua”.
Remeto, para uma articulação entre esses documentos, à Conversa de Justiça e Paz, promovida pela Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Brasília (https://www.youtube.com/watch?v=RKUx0nAmqMI), com o tema “8 anos com Francisco: um homem de palavra e de diálogo”, em boa articulação teológica, histórica e filosófica a cargo do historiador e teólogo Sérgio Coutinho.
Como disse, me vejo tocado pelas exortações do Papa Francisco não apenas pela incidência pastoral, mas porque em seus discursos e publicações tenho encontrado fonte consistente para estabelecer fundamentos paras as minhas preocupações mais insistentes com os temas da Democracia, da Cidadania, da Justiça e dos Direitos. Aqui, no espaço da Coluna Lido para Você, têm sido frequentes as citações: http://estadodedireito.com.br/direito-sanitario/ .
O que considero instigante nessa exortação, é o Papa investir na convocação que faz a uma dimensão poética que imante a crosta asséptica da atuação judicante: “O poeta precisa contemplar, pensar, compreender a música da realidade e moldá-la com palavras. Vocês juízes, em cada decisão, em cada sentença, estão diante da feliz oportunidade de fazer poesia: uma poesia que cure as feridas dos pobres, que integre o planeta, que proteja a Mãe Terra e todos os seus descendentes. Uma poesia que repara, redime e nutre. Não renunciem a esta oportunidade. Assumam a graça a que têm direito, com determinação e coragem. Estejam ciente de que tudo o que contribuírem com sua retidão e compromisso é muito importante”.
o Papa, eu disse na Coluna, poesia não é apenas declamar, incluir nas sentenças versos que adornem o discurso, se resumindo a “um punhado de palavras mortas”. Francisco quer encorajar, pois, a atitude sensível na prática e na atitude dos juízes e dos operadores do Direito: “façam de sua poesia uma prática e assim vocês serão melhores poetas e melhores juízes. E jamais esqueçam que uma poesia que não transforma é apenas um punhado de palavras mortas”.
Créditos: PixaBay/reynaldodallin
Em http://estadodedireito.com.br/direitos-humanos-e-covid-19/: “É um alento dar-se conta que por toda parte começa-se a operar um movimento responsável para mudar o estado de coisas que produziu tamanho assombro nos sentidos de nossa existência. Noto com esperança que entre esses movimentos distinguidos ressoa muito convocatoriamente a voz do Papa Francisco, resoluta em vários pronunciamentos, exortações, encíclicas. Agora mesmo, enquanto escrevo, o Vaticano publica a sua Mensagem para o Dia Mundial da Paz 2021 a ser celebrado em1º de janeiro de 2021. O Papa retoma o tema da pandemia para lembrar que “o ano de 2020 ficou marcado pela grande crise sanitária da Covid-19, que se transformou num fenómeno plurissectorial e global, agravando fortemente outras crises inter-relacionadas como a climática, alimentar, económica e migratória, e provocando grandes sofrimentos e incómodos. Penso, em primeiro lugar, naqueles que perderam um familiar ou uma pessoa querida, mas também em quem ficou sem trabalho. Lembro de modo especial os médicos, enfermeiras e enfermeiros, farmacêuticos, investigadores, voluntários, capelães e funcionários dos hospitais e centros de saúde, que se prodigalizaram – e continuam a fazê-lo – com grande fadiga e sacrifício, a ponto de alguns deles morrerem quando procuravam estar perto dos doentes a fim de aliviar os seus sofrimentos ou salvar-lhes a vida. Ao mesmo tempo que presto homenagem a estas pessoas, renovo o apelo aos responsáveis políticos e ao sector privado para que tomem as medidas adequadas a garantir o acesso às vacinas contra a Covid-19 e às tecnologias essenciais necessárias para dar assistência aos doentes e a todos aqueles que são mais pobres e mais frágeis. É doloroso constatar que, ao lado de numerosos testemunhos de caridade e solidariedade, infelizmente ganham novo impulso várias formas de nacionalismo, racismo, xenofobia e também guerras e conflitos que semeiam morte e destruição. Estes e outros acontecimentos, que marcaram o caminho da humanidade no ano de 2020, ensinam-nos a importância de cuidarmos uns dos outros e da criação a fim de se construir uma sociedade alicerçada em relações de fraternidade. Por isso, escolhi como tema desta mensagem «a cultura do cuidado como percurso de paz»; a cultura do cuidado para erradicar a cultura da indiferença, do descarte e do conflito, que hoje muitas vezes parece prevalecer”.
Já em http://estadodedireito.com.br/cidadania-e-contratos-atipicos-de-trabalho/, a remissão é útil para retomar a Rerum Novarum de Leão XIII, que agora em 15 de maio celebrará 130 anos. Assim, vale por em relevo: “Uma resposta já se apresenta de imediato, procedente daquela mesma fonte bi-centenária que expressamente inspirou a constituição do campo dos direitos sociais e do trabalho e a formação da OIT, a Rerum Novarum. Em Carta aos Movimentos Sociais no domingo de Páscoa (12/4) exortou o Papa Francisco: “Talvez seja a hora de pensar em um salário universal que reconheça e dignifique as tarefas nobres e insubstituíveis que vocês realizam; capaz de garantir e tornar realidade esse slogan tão humano e cristão: nenhum trabalhador sem direitos. Também gostaria de convidá-los a pensar no “depois”, porque esta tempestade vai acabar e suas sérias consequências já estão sendo sentidas. Vocês não são uns improvisados, têm a cultura, a metodologia, mas principalmente a sabedoria que é amassada com o fermento de sentir a dor do outro como sua. Quero que pensemos no projeto de desenvolvimento humano integral que ansiamos, focado no protagonismo dos Povos em toda a sua diversidade e no acesso universal aos três T que vocês defendem: terra e comida, teto e trabalho”.
De todo modo, o que pretendo por em causa, sintonizado com os elementos trazidos com a Fratelli Tutti, conforme http://estadodedireito.com.br/trabalhadores-pobres-e-cidadania/ , é que “a questão se coloca quando se trata de saber se os operadores e os agentes políticos estarão à altura das expectativas civilizatórias que os desafiam, no plano constitucional e no plano convencional (para a salvaguarda de direitos)? Nessa quadra dramática de interpelação a um paradigma civilizatório, serão alcançados nos seus misteres para, com a tempestade que desaba sobre o mundo, limpar “a maquilhagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso «eu» sempre preocupado com a própria imagem; (e deixar) a descoberto, uma vez mais, aquela (abençoada) pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos”, como exorta o Papa Francisco em sua Homilia Adoração do Santíssimo e Benção Urbi et Orbi, pronunciada em seu exemplar distanciamento social na grande praça de São Pedro, totalmente vazia, em 27 de março de 2020?.
Daí dever-se indagar: Será o Direito, realmente Direito se, como exortou Francisco, não for “capaz de resgatar, valorizar e mostrar como as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns (habitualmente esquecidas), que não aparecem nas manchetes dos jornais e revistas, nem nas grandes passarelas do último espetáculo, mas que hoje estão, sem dúvida, a escrever os acontecimentos decisivos da nossa história: médicos, enfermeiros e enfermeiras, trabalhadores dos supermercados, pessoal da limpeza, curadores, transportadores, forças policiais, voluntários, sacerdotes, religiosas e muitos – mas muitos – outros que compreenderam que ninguém se salva sozinho”, e operar para realizar e ser instrumento por meio da eficácia horizontal dos direitos humanos nas relações justrabalhistas, para além da pacificação social, (a) concretização dos ideais de igualdade material, de democracia e de justiça social, com a consolidação do valor trabalho (digno) ancorado na centralidade da pessoa humana e sua dignidade?.
Com o pensamento encharcado na leitura da Fratelli Tutti, estabeleci ocasionalmente (não tão ocasionalmente, o professor me esclareceu que havia acompanhado várias manifestações minhas nas redes sociais), com o professor JorgeArlan de Oliveira Pereira, da Universidade Federal do Mato Grosso, campus de Barra do Garça, mas que me procurou enquanto integrante do coletivo Jufras – Juventude Franciscana Sempre.
Me disse o colega que estava para realizar-se o 8º Encontro Virtual da Juventude Franciscana Sempre, e que gostaria que eu falasse para o Grupo, a partir principalmente de meu percurso na pesquisa do jurídico, notadamente em razão do Grupo de Pesquisa que coordeno O Direito Achado na Rua. Depois de nossa conversa de apresentação o professor me enviou a seguinte proposição:
“Em relação à nossa atividade mais próxima, ou seja, a sua participação no 8º Encontro Virtual da Jufras, a ser realizado na próxima quinta-feira, 08 de abril, às 20h, gostaria de lhe fazer observações bem breves, em complemento ao que havíamos conversado.
Lembro, então, que o grupo Juventude Franciscana Sempre (JUFRAS) diz respeito ao histórico dos seus membros de haverem participado do grupo Jufra (Juventude Franciscana), movido pelos ideais de São Francisco de Assis, no final dos anos 1970 até metade dos anos 1980, na cidade de Santa Maria – RS. O grupo foi, de modo geral, marcante para todos nós naquela época.
Com a disseminação das redes sociais na internet, fomos nos localizando. E resolvemos nos reorganizar, formando um grupo no WhatsApp e promovendo encontros virtuais mensais. Estruturamos, inclusive, diretoria, orientada por um regulamento e identificada por uma logomarca.
O grupo passou a se chamar JUFRAS, acrescentando a letra “S” ao final, para significar que nos sentimos jovens franciscanos “sempre”. Mas este sempre, não tem, por enquanto, uma definição clara, uma vez que não sabemos se e como os valores franciscanos participaram na vida de cada um de nos últimos 40 anos.
De qualquer modo a JUFRAS promoveu o reencontro dos antigos membros da JUFRA, após cerca de quatro décadas, animado por três perguntas:
a) Quem fomos?
b) Quem somos?
c) Quem pretendemos ser?
Elas são atravessadas por uma quarta pergunta: “Como os valores franciscanos, razão do grupo de jovens, participou ou não de nossas experiências de vida nessa longa trajetória, no espaço entre os encontros daquela época e os reencontros de agora?”.
Os encontros virtuais que passamos a realizar hoje têm uma programação estabelecida, prevendo sempre, entre os seus segmentos, uma exposição de temas que nos parecem provocadores. São intercalados expositores internos e externos a cada edição do evento. Assim, podemos saber um pouco da história de cada um dos membros nestes 40 anos e também olharmos juntos para a realidade atual,
A sua exposição, portanto, prof. José Geraldo, se insere neste contexto”.
Combinamos, então, o título de minha exposição: O direito achado na rua: rastros de democracia, justiça e espiritualidade.
Muito organizado e metodológico, o professor Jorge em seguida, me encaminhou um rol de pontos que pudessem “contribuir para o meu direcionamento temático”, a rigor, um decálogo:
“1. Os valores franciscanos podem ser considerados opção cristã radical, numa perspectiva emancipadora e libertadora, a requerer atitudes reflexivas, críticas, porém em posição de simplicidade e humildade. Dilema de difíceis resoluções;
2. Como o direito achado na rua poderia se compatibilizar com os meandros deste dilema?
3. As questões do saber, a expressão das diferentes culturas, assim como o acesso à educação formal, aos serviços de saúde e os cuidados com o meio ambiente, se inscrevem de que modo neste contexto de proposições e dilemas?
4. Vale a pena recordar que São Francisco de Assis estabelecia uma relação de respeito e amor à natureza. Costumava se referir à “irmão Sol, irmã Lua, irmão lobo, irmãos pássaros…”.
5. O Papa Francisco nos parece fazer uma reafirmação dos valores franciscanos em uma poca mais complexa.
6. Os dramas individuais e coletivos diante de uma sociedade que dá sinais de incompreensão a respeito do significado do que se denominou chamar “estado democrático de direito”.
7. Pode a dimensão espiritual do ser humano, ao contrário da sua dimensão física, se tornar mais jovem no decorrer do tempo, com sinais de leveza e vigor?
8. Como as fases da vida de uma pessoa poderiam se relacionar na sua idade madura, quando começa a pesar o conceito de “idoso”?
9. Como o direito achado na rua, bebendo na fonte dos direitos humanos universais, participa da dinâmica da reorganização social dos tempos de hoje?
10. Considere-se que os membros da JUFRAS, em processo de reconhecimento após décadas, sinalizam para visões de mundo distintas. Do ponto de vista ideológico, percebe-se posições militantes de esquerda, posições conservadoras e firmes de direita e posições de centro, identificáveis na manifestação religiosa apenas de oração”.
Para estabelecer com esse Coletivo um vínculo entre suas expectativas e os pressupostos de minha abordagem teórico-política do Direito, dei como referência meu texto “O Direito Achado na Rua: condições sociais e fundamentos teóricos / The Law Founded in the Street: social conditions and theoretical foundations”, publicado na Revista Direito e Práxis, vol. 10, nº 4, 2019 (https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/45688), até para por em relevo as três dimensões epistemológicas de sua concepção, que “consiste em compreender e refletir sobre a atuação jurídica dos novos movimentos sociais e, com base na análise das experiências populares de criação do direito:1. Determinar o espaço político no qual se desenvolvem as práticas sociais que enunciam direitos, a partir mesmo de sua constituição extralegal, como por exemplo, os direitos humanos; 2. Definir a natureza jurídica do sujeito coletivo capaz de elaborar um projeto político de transformação social e elaborar a sua representação teórica como sujeito coletivo de direito; 3. Enquadrar os dados derivados destas práticas sociais criadoras de direitos e estabelecer novas categorias jurídicas para estruturar as relações solidárias de uma sociedade alternativa em que sejam superadas as condições de espoliação e de opressão entre as pessoas e na qual o direito possa realizar-se como um projeto de legítima organização social da liberdade”.
Portanto, trata-se do Direito concebido como liberdade, emancipação e não restrição, vivo, instituinte, emergindo do social e aspirando a formas e modos legítimos de institucionalização, para se constituir como normatividade democrática, afluente, ativada por uma cidadania participativa.
Acode-me nesse passo, a correspondência que se pode estabelecer entre tais expectativas sociais interpelantes, para a determinação do jurídico, enquanto direito achado na rua, direito como emancipação, tal como transparece do lema da Campanha da Fraternidade Ecumênica, de 2016, inscrito em Amós (5.24): “Quero ver o direito brotar como fonte e correr a justiça qual riacho que não seca”.
E que guarda pertinência com aquela filosofia do agir humano, de que fala o padre Henrique Claúdio de Lima Vaz, SJ, no texto com que nos brindou, a nós que organizamos na CNBB, o Seminário Ética, Justiça e Direito. Reflexões sobre a Reforma do Judiaciário (cf. VAZ, Pe. Henrique C. de Lima. Ética e Justiça: Filosofia do Agir Humano. In PINHEIRO, Pe. José Ernanne; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; DINIS, Melillo; SAMPAIO, Plínio de Arruda (orgs). Ética, Justiça e Direito. Reflexões sobre a Reforma do Judiciário. Petrópolis: Editora Vozes, 1996). Confira ao final do texto, p. 40: “No momento em que os temas ‘ética e política’ ou o ‘direito de todos e a justiça de todos’ tornam-se temas de sensação nos meios de comunicação de massa, e em que o problema do exercício eficaz da administração da justiça deixa o recinto austero dos tribunais para tornar-se problema social das ruas e dos campos, convém voltar nossa atenção e nossa reflexão para a tarefa primordial da educação ética que é a verdadeira educação para a liberdade. O mundo ético não é uma dádiva da natureza. É uma dura conquista da civilização. Como também tem sido uma conquista longa e difícil o estabelecimento e a vigência do Estado democrático do Direito”.
E, ainda considerando que abrir-se a discussão que parte do social e se projeta para um campo no qual o horizonte subjetivo recebe impulso pneumatológico, em acepção própria teológica, isso não significa subordinar a leitura do jurídico a qualquer enquadramento bíblico (como de resto, maliciosamente, se tem assistido num certo fundamentalismo trazido a questões em curso no Supremo Tribunal Federal), conforme, aliás, me ripostou um dos “jovens” participantes do colóquio a partir de sua formação jurídica assentada em rígido positivismo legalista.
Ao contrário, com Roberto Lyra Filho, meu mestre nesse campo (e em outros mais epistemologicamente complexos), cuida-se de preservar o necessário “diálogo entre o filósofo, o teólogo e o místico, sem prejuízo da especificidade de suas órbitas de atuação, [que] ainda e sempre permanecem unidas e hão de submeter-se, reciprocamente, sob pena de se frustrarem, ao limite radical, a própria busca a que se entregam” (in Filosofia, Teologia e Experiência Mística. Kriteriom: Revista da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, vol. XXII, n. 69, jan/dez – 1976, pp. 136-145). E mais ainda, com Boaventura de Sousa Santos, assimilar “as teologias pluralistas e progressistas [que] podem funcionar como uma fonte de energia radical para as lutas contra-hegemônicas dos direitos humanos” (conforme Se Deus Fosse um Ativista dos Direitos Humanos. São Paulo: Cortez, 2013).
Nesse passo, recuperando o tema proposto para a minha interlocução com o Grupo – O direito achado na rua: rastros de democracia, justiça e espiritualidade, logo me instigou, de um lado, sem dissolver o meu argumento no fundamento teológico, buscar nesses rastros pontos de confluência entre o direito como emancipação e a configuração, segundo os valores franciscanos, de uma religião encarnada, pensando em Francisco e a sua concepção do “mundo como convento” e portanto, de um “carisma missionário” que se expressa como “necessidade de agir”, vale dizer, atuar no mundo para contribuir para fazer “a humanidade mais humana” e o próprio mundo “mais habitável”, que não s mantenha ensombreado “num mundo fechado”, antes abrindo-se aos desafios que se nos apresentam, tal como indica o Papa Francisco no primeiro Capítulo 1, da Fratelli Tutti.
Retiro do Curso Básico sobre o Carisma Missionário Franciscano – Cristianismo, a religião da Encarnação. Redação original em língua alemã Maria Crucis Doka OSF, Patricia Hoffmann, Margarethe Mehren OSF, Andreas Müller OFM, Othmar Noggler OFMCap e Anton Rotzetter OFMCap. Centro Missionário dos Franciscanos (MZF) Tradução para o português Malina Hoepfner RSCJ. Revisão literária Renato Kirchner. Petrópolis: FAMÍLIA FRANCISCANA DO BRASIL. Caixa Postal 90.174 CEP 25621-970, 1994 – a indicação de que segundo esse carisma, a motivação missionária que procede de Francisco (e também de Clara), conduz a exigência de testemunho de um Deus que se intrometa na vida do mundo, na vida da gente. “Um Deus que deseja libertar-nos de todas as formas de servidão e de falta de liberdade”.
Ou seja, impregnando-se de uma espiritualidade profundamente secular, mais ação de leigo que clerical, trata-se de converter-se a um modo de vida que acolha tal como os capuchinhos de Gex acolheram o agnóstico François de Voltaire, menos por sua nenhuma fé mas pela intensa proximidade. Pois, “mesmo sendo verdade que Deus habita a alma humana individual”, é igualmente verdade que Ele “age através da história dos povos”, ao limite do sacrifício, “perante os processos de libertação dos povos e no engajamento em prol de mais justiça e paz”.
Estudando a Fratelli Tutti, mas também em toda linha pastoral de suas manifestações precedentes, não é difícil divisar no Papa Francisco, ainda que se constate que ele é o único Papa depois de São João XXIII que não participou de nenhum modo, presencialmente, do Concílio Vaticano II, nele revelar-se que Francisco de Assis é o tema clandestino das discussões do Concílio, impulsionando a Igreja a evoluir sob seu impulso “evangelizador”(a partir das chaves da opção radical pelos pobres): opção pelos pobres ( e sua libertação integral, que só é possível no tempo presente, através de uma Igreja em saída, que “primereia”, isto é, que toma a iniciativa, conforme o Papa Francisco) , teologia da libertação ou do povo, e uma Igreja em saída.
Frei Betto, em síntese da obra logo que publicada, mostra a Encíclica em seu sentido de “uma aula de espírito crítico, humanismo e esperança” (https://ceseep.org.br/somos-todos-irmaos-e-irmas-frei-betto/). Mas quero registrar uma das leituras mais instigantes da obra, a de Leonardo Boff, na qual estabelece a sua avançada hermenêutica, para concluir que, diz ele: “Estamos inequivocamente diante de um grande sonho, na linha das grandes utopias humanas. Face à gravidade da situação atual, parece, não termos outra alternativa senão consultar o que há de melhor em nossa humanidade e dela extrair um projeto comum que nos poderá salvar. De todos os modos, estamos diante de um homem, o Papa Francisco, que por seu exemplo e palavra se alçou à altura de um dos maiores líderes espirituais e políticos da humanidade, senão o maior de todos. Despojou-se dos títulos inerentes à sua alta função como Papa e fez-se irmão de todos para falar como irmão entre irmãos. A exemplo de seu patrono Francisco de Assis, transformou-se também num homem universal, acolhendo a todos e se identificando com os mais vulneráveis e invisíveis de nosso mundo, cruel e sem piedade. Ele suscita a esperança de que podemos e devemos alimentar o sonho da fraternidade sem fronteiras e do amor universal” (http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/604646-a-fratelli-tutti-um-novo-paradigma-de-sociedade-mundial-de-senhor-dominus-a-irmao-frater-artigo-de-leonardo-boff).
É que diz o Papa Francisco logo na abertura da Fratelli Tutti, abrindo as fímbrias de seu coração, qual o de São Francisco, “sem fronteiras”, de “irmão de todos”, (n. 2): “Esse Santo do amor fraterno, da simplicidade e da alegria, que me inspirou a escrever a Encíclica Laudato Si’ [e que] volta a inspirar-me para dedicar esta nova Encíclica à fraternidade e à amizade social. Com efeito, São Francisco, que se sentia irmão do sol, do mar e do vento, sentia-se ainda mais unido aos que eram de sua própria carne. Semeou paz por toda parte e andou junto dos pobres, abandonados, doentes, descartados, enfim, dos últimos”.
Fraternidade e amizade social A Fratelli Tutti conjuga, ao mesmo tempo, a fraternidade e a amizade social. Esse é o núcleo central do texto e do seu significado. O realismo que atravessa as páginas dilui todo romantismo vazio, sempre à espreita quando se trata de fraternidade. A fraternidade não é apenas uma emoção, ou um sentimento, ou uma ideia – por mais nobre que seja – para Francisco, mas sim um fato que, depois, implica também a saída, a ação (e a liberdade): “De quem eu me faço irmão?”.
A fraternidade assim entendida inverte a lógica do apocalipse hoje predominante; uma lógica que luta contra o mundo porque crê que ele é o oposto de Deus, ou seja, um ídolo, e portanto deve ser destruído o mais rápido possível para acelerar o fim do tempo. Diante do abismo do apocalipse, não há mais irmãos: apenas apóstatas ou “mártires” em uma corrida “contra” o tempo. Não somos militantes ou apóstatas, mas irmãos todos.
A fraternidade não queima o tempo, nem cega os olhos e os ânimos. Em vez disso, ocupa o tempo, requer tempo. O do litígio e o da reconciliação. A fraternidade “perde” tempo. O apocalipse o queima. A fraternidade requer o tempo do tédio. O ódio é pura excitação. A fraternidade é aquilo que permite que os iguais sejam pessoas diferentes. O ódio elimina o diferente. A fraternidade salva o tempo da política, da mediação, do encontro, da construção da sociedade civil, do cuidado. O fundamentalismo o anula em um videogame.
Uma fraternidade sem fronteiras. A Fratelli Tutti se abre com a evocação de uma fraternidade aberta, que permite que cada pessoa seja reconhecida, valorizada e amada para além da proximidade física, para além do lugar do universo onde nasceu ou onde vive. A fidelidade ao Senhor é sempre proporcional ao amor pelos irmãos. E essa proporção é um critério fundamental dessa encíclica: não se pode dizer que se ama a Deus se não se ama o irmão. “De fato, quem não ama o próprio irmão a quem vê, não pode amar a Deus que não vê” (1Jo 4,20) [5].
Desde as primeiras frases, destaca-se como Francisco de Assis estendeu a fraternidade não apenas aos seres humanos – e em particular aos abandonados, aos doentes, aos descartados, aos últimos, indo além das distâncias de origem, nacionalidade, cor ou religião – mas também ao sol, ao mar e ao vento (cf. nn. 1-3). O olhar, portanto, é global, universal. E assim é o fôlego das páginas do Papa Francisco.
Essa encíclica não podia permanecer alheia à pandemia da Covid-19, que eclodiu inesperadamente. Para além das várias respostas dadas pelos diversos países – escreve o papa –, veio à tona a incapacidade de agir em conjunto, embora possamos nos orgulhar de estar hiper conectados. Escreve Francisco: “Oxalá já não existam ‘os outros’, mas apenas um ‘nós’” (n. 35).
O cisma entre indivíduo e comunidade. O primeiro passo que Francisco dá é o de compilar uma fenomenologia das tendências do mundo atual que são desfavoráveis ao desenvolvimento da fraternidade universal. O ponto de partida das análises de Bergoglio é frequentemente – senão sempre – aquele que ele aprendeu com os Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola, que convidava a rezar imaginando como Deus vê o mundo.
O pontífice observa o mundo e tem a impressão geral de que está se desenvolvendo um verdadeiro cisma entre o indivíduo e a comunidade humana (cf. n. 30). Um mundo que não aprendeu nada com as tragédias do século XX, sem senso da história (cf. n. 13). Parece haver um retrocesso: os conflitos, os nacionalismos, o senso social perdido (cfr. n. 11), e o bem comum parece ser o menos comum dos bens.
Nesse mundo globalizado, estamos sozinhos, e prevalece o indivíduo sobre a dimensão comunitária da existência (cf. n. 12). As pessoas desempenham o papel de consumidores ou de espectadores, e os mais fortes são favorecidos.
Um estranho na rua. Apesar das densas sombras descritas nas páginas dessa encíclica, Francisco pretende fazer ecoar muitos percursos de esperança, que nos falam de uma sede de plenitude, de um desejo de tocar aquilo que preenche o coração e eleva o espírito para as grandes coisas (cf. n. 54-55). Na tentativa de buscar uma luz, e antes de indicar algumas linhas de ação, Francisco propõe dedicar um capítulo à parábola do Bom Samaritano. A escuta da Palavra de Deus é uma passagem fundamental para julgar evangelicamente o drama do nosso tempo e encontrar saídas. Assim, o Bom Samaritano se torna um modelo social e civil (cf. n. 66).
A inclusão ou a exclusão dos feridos à beira da estrada define todos os projetos econômicos, políticos, sociais e religiosos. O Santo Padre, de fato, não se detém no nível das escolhas individuais, mas projeta essas duas opções ao nível das políticas dos Estados. No entanto, volta sempre ao nível pessoal por temor de que nos sintamos desresponsabilizados.
Pensar e gerar um mundo hospitaleiro: uma visão inclusiva. O terceiro passo do itinerário que Francisco nos faz dar é aquele que poderíamos definir com o pontífice como o “além”, isto é, a necessidade de ir além de si mesmo. Se o drama descrito no primeiro capítulo era o da solidão do homem consumidor encerrado no seu individualismo e na passividade do espectador, é preciso encontrar uma saída.
E o primeiro fato é que ninguém pode experimentar o valor da vida sem rostos concretos para amar. Aqui está um segredo da autêntica existência humana (cf. n. 86). O amor cria laços e expande a existência. Mas essa “saída” de si não se reduz a uma relação com um pequeno grupo, ou a laços familiares: é impossível entender a si mesmo sem um tecido de relações mais amplo com outros que nos enriquecem (cf. n. 88-91).
Esse amor que é abertura ao “além” e “hospitalidade” é o fundamento da ação que permite estabelecer a amizade social e a fraternidade. Amizade social e fraternidade não excluem, mas incluem. Independem dos traços físicos e morais ou, como escreve o papa, das etnias, das sociedades e das culturas (cf. n. 95). A tensão é para uma “comunhão universal” (n. 95), para “uma comunidade feita de irmãos que se acolhem mutuamente e cuidam uns dos outros” (n. 96). Essa abertura é geográfica, mas mais ainda existencial.
No entanto, o próprio pontífice percebe, nesse ponto, o risco de um mal-entendido, o do falso universalismo de quem não ama o próprio povo. Também é forte o risco de um universalismo autoritário e abstrato, que visa a homogeneizar, uniformizar, dominar. A proteção das diferenças é o critério da verdadeira fraternidade que não homologa, mas acolhe e faz convergir as diversidades, valorizando-as. Somos irmãos porque, ao mesmo tempo, somos iguais e diferentes: “É preciso se libertar da obrigação de ser iguais”.
A importância do multilateralismo. O papa pede uma mudança de perspectiva radical não só em nível interpessoal ou estatal, mas também nas relações internacionais: a da certeza da destinação comum dos bens da terra. Essa perspectiva muda o panorama, e “podemos dizer que cada país é também do estrangeiro, já que os bens de um território não devem ser negados a uma pessoa necessitada que provenha de outro lugar” (n. 124).
Além disso – continua o pontífice –, isso pressupõe outro modo de entender as relações internacionais. É claríssimo, portanto, o apelo à importância do multilateralismo, com uma verdadeira condenação de uma abordagem bilateral em que países poderosos e grandes empresas preferem negociar com outros países menores ou pobres: para obter deles maiores lucros (cf. n. 153). A chave é “nos sabermos responsáveis pela fragilidade dos outros na procura de um destino comum” (n. 115). Cuidar da fragilidade é um ponto-chave dessa encíclica.
Um coração aberto ao mundo inteiro. Francisco também fala dos desafios a serem enfrentados para que a fraternidade não permaneça somente como uma abstração, mas ganhe corpo. O primeiro é o das migrações, a ser desenvolvido em torno de quatro verbos: acolher, proteger, promover e integrar. Com efeito, não se trata de “impor do alto programas assistenciais, mas de percorrer unidos um caminho através destas quatro ações” (n. 129).
Francisco oferece indicações muito precisas (cf. n. 130). Mas, em particular, detém-se sobre o tema da cidadania, assim como havia sido abordado no Documento sobre a Fraternidade Humana para a Paz Mundial e Convivência Comum, assinado em Abu Dhabi. Falar em “cidadania” afasta a ideia de “minoria”, que carrega consigo as sementes do tribalismo e da hostilidade, e que vê no rosto do outro a máscara do inimigo. A abordagem de Francisco é subversiva com respeito às teologias políticas apocalípticas que vão se espalhando.
Por outro lado, o papa evidencia o fato de que a chegada de pessoas que provêm de um contexto vital e cultural diferente se transforma em um dom para quem as acolhe: é um encontro entre pessoas e culturas que constitui uma oportunidade de enriquecimento e de desenvolvimento. E isso pode ocorrer se se permite que o outro seja ele mesmo.
O critério guia do discurso é sempre o mesmo: fazer crescer a consciência de que ou nos salvamos todos, ou ninguém se salva. Toda atitude de “esterilização” e isolacionismo é um obstáculo ao enriquecimento próprio do encontro.
Populismo e liberalismo. Francisco continua o seu discurso com um capítulo dedicado à melhor política, aquela posta a serviço do verdadeiro bem comum (cf. n. 154). E aqui aborda de frente a questão do confronto entre populismo e liberalismo, que podem usar os frágeis, o “povo”, de maneira demagógica. Francisco pretende esclarecer imediatamente um mal-entendido, usando uma ampla citação da entrevista que nos concedeu para a publicação dos seus escritos como arcebispo de Buenos Aires. Nós a relatamos na íntegra, porque é central para o discurso.
“Povo não é uma categoria lógica, nem uma categoria mística, no sentido de que tudo o que faz o povo é bom, ou no sentido de que o povo seja uma entidade angelical. É uma categoria mítica. (…) Quando explicas o que é um povo, recorres a categorias lógicas porque precisas de o descrever: é verdade, elas são necessárias. Mas, deste modo, não consegues explicar o sentido de pertença a um povo; a palavra povo tem algo mais que não se pode explicar logicamente. Pertencer a um povo é fazer parte de uma identidade comum, formada por vínculos sociais e culturais. E isto não é algo de automático; muito pelo contrário: é um processo lento e difícil… rumo a um projeto comum” (n. 158).
Consequentemente, essa categoria mítica pode indicar uma liderança capaz de se sintonizar com o povo, com a sua dinâmica cultural e as grandes tendências de uma sociedade a serviço do bem comum; ou pode indicar uma degeneração quando se muda na habilidade de atrair consensos para o sucesso eleitoral e para instrumentalizar ideologicamente a cultura do povo, a serviço do próprio projeto pessoal (cf. n. 159). Porém, não é preciso sequer enfatizar a categoria mítica de povo como se ela fosse uma expressão romântica e, portanto, como tal, rejeitada em favor de discursos mais concretos, institucionais, ligados à organização social, à ciência e às instituições da sociedade civil.
O que une ambas as dimensões, a mítica e a institucional, é a caridade, que implica um caminho de transformação da história que incorpora tudo: instituições, direito, técnica, experiência, contribuições profissionais, análise científica, procedimentos administrativos. O amor ao próximo, de fato, é realista. Portanto, é necessário fazer crescer tanto a espiritualidade da fraternidade quanto a organização mais eficiente para resolver os problemas: as duas coisas absolutamente não se opõem. E isso sem imaginar que existe uma receita econômica que possa ser aplicada igualmente a todos: até a ciência mais rigorosa pode propor caminhos e soluções diferentes (cf. n. 164-165).
Os movimentos populares e as instituições internacionais. Nesse contexto, Francisco fala tanto dos movimentos populares quanto das instituições internacionais. Parecem dois níveis opostos e divergentes de organização, mas, no fim, são convergentes na sua virtuosidade, pois valorizam o local, os primeiros, e global, os segundos, e sempre sob a insígnia do multilateralismo. Os movimentos populares “reúnem desempregados, trabalhadores precários e informais e tantos outros que não entram facilmente nos canais já estabelecidos” (n. 169). Com esses movimentos, supera-se “a ideia das políticas sociais concebidas como uma política para os pobres, mas nunca com os pobres, nunca dos pobres, e muito menos inserida num projeto que reúna os povos” (ibid).
Depois, Francisco se detém sobre as instituições internacionais, hoje enfraquecidas, sobretudo porque a dimensão econômico-financeira, com características transnacionais, tende a predominar sobre a política. Entre elas, a Organização das Nações Unidas, que deve ser reformada para evitar que seja deslegitimada e para que “seja possível uma real concretização do conceito de família de nações” (n. 173). Ela tem como tarefa a promoção da soberania do direito, porque a justiça é “um requisito indispensável para se realizar o ideal da fraternidade universal” (ibid.).
A melhor política não está submetida à economia. Francisco, então, se detém longamente sobre a política. Várias vezes o pontífice lamentou como ela está submetida à economia, e esta, ao paradigma eficientista da tecnocracia. Pelo contrário, é a política que deve ter uma visão ampla para que a economia seja integrada em um projeto político, social, cultural e popular que tenda ao bem comum (cf. n. 177 e 17).
Fraternidade e amizade social não são utopias abstratas. Exigem decisão e a capacidade de encontrar caminhos que assegurem a sua real possibilidade, envolvendo também as ciências sociais. E esse é um “exercício alto da caridade” (n. 180).
O amor, portanto, se expressa não só em relações face a face, mas também nas relações sociais, econômicas e políticas, buscando construir comunidades nos diversos níveis da vida social. Trata-se daquilo que Francisco chama de amor social (cf. n. 186). Essa caridade política pressupõe o amadurecimento de um senso social em virtude do qual “cada um é plenamente pessoa quando pertence a um povo e, vice-versa, não há um verdadeiro povo sem referência ao rosto de cada pessoa” (n. 182). Em suma: povo e pessoa são termos correlatos.
O amor social e a caridade política expressam-se também na plena abertura ao debate e ao diálogo com todos, até mesmo com os adversários políticos, pelo bem comum, para tornar possível a convergência pelo menos sobre alguns temas. Não é preciso temer o conflito gerado pelas diferenças, até porque “a uniformidade gera asfixia e neutraliza-nos culturalmente” (n. 191).
E é possível viver isso se o político não deixar de se considerar um ser humano, chamado a viver o amor nas suas relações interpessoais cotidianas (cf. n. 193) e se souber viver, sim, a ternura. Esse vínculo entre política e ternura parece inédito, mas é realmente eficaz, porque a ternura é “o amor que se torna próximo e concreto” (n. 194). Em meio à atividade política, os mais frágeis devem provocar ternura e têm o “‘direito’ de arrebatar a nossa alma, o nosso coração” (ibid.).
Diálogo e cultura do encontro. Francisco resume alguns verbos usados nessa encíclica em uma única palavra: diálogo. “Em uma sociedade pluralista”, escreve o pontífice, “o diálogo é o caminho mais adequado para se chegar a reconhecer aquilo que sempre deve ser afirmado e respeitado e que ultrapassa o consenso ocasional” (n. 211).
Mais uma vez, expressa-se uma visão peculiar da amizade social, feita a partir do constante encontro das diferenças. O papa observa que este é o tempo do diálogo. Todos trocam mensagens nas mídias sociais, por exemplo, graças à rede. No entanto, muitas vezes o diálogo se confunde com uma febril troca de opiniões, que, na realidade, é um monólogo no qual predomina a agressividade. Ele também observa com precisão que esse é o estilo que parece prevalecer no contexto político, que, por sua vez, tem um reflexo direto na vida cotidiana das pessoas (cf. 200-202).
Diálogo absolutamente não significa relativismo, que fique claro. Como já havia escrito na encíclica Laudato si’, Francisco afirma que, se o que importa não são as verdades objetivas nem os princípios estabelecidos, mas sim a satisfação das próprias aspirações e das necessidades imediatas, então as leis serão entendidas apenas como imposições arbitrárias e obstáculos a serem evitados. A busca dos valores mais altos sempre se impõe (cf. nn. 206-210). O encontro e o diálogo tornam-se assim uma “cultura do encontro”, que significa a paixão de um povo em querer projetar algo que envolva a todos; e que não é um bem em si, mas é um modo de fazer o bem comum (cf. nn. 216-221).
Percursos de um novo encontro: conflito e reconciliação. Francisco, então, dirige um apelo a lançar sólidas bases para o encontro e para iniciar processos de cura. O encontro não pode se fundamentar em diplomacias vazias, discursos duplos, dissimulações, formalismo… É somente a partir da verdade dos fatos que pode nascer o esforço de se compreender reciprocamente e de encontrar uma síntese para o bem de todos (cf. nn. 225-226).
O papa considera que a verdadeira reconciliação não foge do conflito, mas é obtida no conflito, superando-o através do diálogo e da negociação transparente, sincera e paciente (cf. n. 244). Por outro lado, o perdão não tem nada a ver com renunciar aos próprios direitos diante de um poderoso corrupto, de um criminoso ou de alguém que degrada a nossa dignidade. É preciso defender fortemente os próprios direitos e proteger a própria dignidade (cf. n. 241). Acima de tudo, não se deve perder a memória dos grandes crimes da história: “Hoje é fácil cair na tentação de virar a página, dizendo que já passou muito tempo e é preciso olhar para a frente. Isso não, por amor de Deus! Sem memória, nunca se avança” (n. 249).
Guerra e pena de morte. Nesse quadro, Francisco examina duas situações extremas que podem se apresentar como soluções em circunstâncias dramáticas: a guerra e a pena de morte. O pontífice é claríssimo ao tratar os dois casos. Em relação à guerra, ele afirma que infelizmente não é um fantasma do passado, mas uma ameaça constante. Portanto, deve ficar claro que “a guerra é a negação de todos os direitos e uma agressão dramática ao meio ambiente” (n. 257).
Ele também aborda a posição do Catecismo da Igreja Católica, onde se contempla a possibilidade de uma legítima defesa por meio da força militar, com o pressuposto de demonstrar que existem algumas rigorosas condições de legitimidade moral. No entanto – escreve Francisco – facilmente caímos em uma interpretação ampla demais desse direito.
A respeito da pena de morte, Francisco retoma o pensamento de João Paulo II, que afirmou de maneira clara na encíclica Evangelium Vitae (n. 56) que ela é inadequada no plano moral e não é mais necessária no plano penal. Francisco também se refere a autores como Lactâncio, Papa Nicolau I ou Santo Agostinho, que, desde os primeiros séculos da Igreja, se mostravam contrários a essa pena. E afirma com clareza que “a pena de morte é inadmissível” (n. 263), e que a Igreja se compromete com determinação a propor que ela seja abolida em todo o mundo. E o julgamento também se estende à prisão perpétua, que “é uma pena de morte escondida” (n. 268).
As religiões a serviço da fraternidade no mundo. A última parte dessa encíclica é dedicada às religiões e ao seu papel ao serviço da fraternidade. As religiões acumulam séculos de experiência e de sabedoria, e, portanto, devem participar do debate público, assim como da política ou da ciência (cf. n. 275).
Por isso, a Igreja não relega sua missão à esfera privada. “É verdade”, especifica, “que os ministros da religião não devem fazer política partidária, própria dos leigos, mas mesmo eles não podem renunciar à dimensão política da existência” (n. 276). A Igreja, portanto, tem um papel público que também contribui para a fraternidade universal (cf. ibid.).
A fonte da dignidade humana e da fraternidade para os cristãos, em particular, está no Evangelho de Jesus Cristo, do qual brota, tanto para o pensamento quanto para a ação pastoral, a importância fundamental da relação, do encontro, da comunhão universal com a humanidade inteira (cf. n. 277). A Igreja, “com o poder do Ressuscitado, quer dar à luz um mundo novo, onde todos sejamos irmãos, onde haja lugar para cada descartado das nossas sociedades, onde resplandeçam a justiça e a paz” (n. 278).
Um apelo à paz e à fraternidade. A Fratelli Tutti se conclui com um apelo e duas orações que explicitam o seu sentido e os seus destinatários. Na realidade, o apelo é uma ampla citação do já citado documento assinado pelo papa e pelo Grão-Imã Aḥmad al-Tayyeb em Abu Dhabi, e diz respeito precisamente à convicção de que “as religiões nunca incitam à guerra e não solicitam sentimentos de ódio, hostilidade, extremismo nem convidam à violência ou ao derramamento de sangue. Estas calamidades são fruto de desvio dos ensinamentos religiosos, do uso político das religiões e também das interpretações de grupos de homens de religião” (n. 285).
Entre as outras referências oferecidas no texto, notamos que o papa quis recordar em particular o Bem-aventurado Charles de Foucauld, que “queria ser ‘o irmão universal’. Mas somente identificando-se com os últimos é que chegou a ser irmão de todos” (n. 287). Para Francisco, a fraternidade é o espaço próprio do Reino de Deus, no qual o Espírito Santo pode vir, habitar e agir.
Vejo no texto aqueles elementos críticos, próprios dos espíritos livres, que se encharcam de humanismo e de esperança, e que aparecem com muita força na conversa que entretive com a teóloga Alzirinha Rocha de Souza, leiga, professora (Doutora em Teologia pela Universidade de Louvain), num programa de Justiça e Paz, da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Brasília (https://www.youtube.com/watch?v=imN1sM2p3W4), sobre o tema “Ação, Missão e Liberdade. Aproximações entre Comblin e o Papa Francisco”.
A partir de Comblin, e sua teologia da missão (teologia da enxada ajustada ao contexto brasileiro e latino-americano), Alzirinha surpreende a função comunitária do trabalho do leigo e a importância do desenvolvimento de uma ação missionária em comunidade, impulsionada sim pelo Espírito, mas que traz a liberdade e a renovação da esperança: “o que movimenta a ação humana é a esperança de que essa ação transforme o mundo”. Isso que aparece como compreensão pastoral em Comblin (ação, comunidade, palavra, liberdade e espírito), ajuda a compreender uma ligação entre São Francisco(“evangelizar, se necessário, até com palavras” – não tenho a fonte, há até aquelas que negam tenha Francisco dito isso, mas ouvi a máxima do padre José Ernanne Pinheiro, conselheiro espiritual da CJP Brasília, amigo e estudioso de Comblin) e o Papa Francisco, combinando contemplação sim, como está em suas principais Encíclicas e Exortações, mas contemplação na ação, realizando-as em proposições sobre o que se pode construir a partir do agora, mas em conjunto, em comunidade, como povo de Deus, numa renovada louva-ação do cântico do irmão Sol.
Em estudo de altíssima profundidade – “A Experiência como Chave de Concretização e Continuidade da Igreja de Francisco” (Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 49, n. 2, p. 375-397, Mai/Ago. 2017), diz Alzirinha: “Destaco aqui uma característica do fazer de Francisco, a que julgo mais marcante e me parece essencialmente ligada a Aparecida, da qual, em minha opinião, decorrem todas as outras possíveis, que é a exigência da missionariedade e da proximidade para o anúncio do Evangelho. Ser missionário, como seus gestos demonstram, é estar ao nível do outro, olhar nos olhos, falar em condições de igualdade de uma Boa Nova, que talvez possa ser efetivamente boa para seu ouvinte. Essa é, de fato, a ‘nova evangelização’ esperada, que se representa por uma Igreja em saída que possa realmente ‘primeirear’ (cf. Papa Francisco: “tomar iniciativa”) nas ‘periferias existenciais e sociais’, anunciando esperança, caridade e misericórdia de Deus. Se, na inspiração de João XXIII, o Concílio (Vaticano II) seria um novo pentecostes, como nos lembra Galli, aos olhos daqueles que esperaram 50 anos para uma grande virada na Igreja, ele finalmente acontece neste papado…Os gestos de Francisco advêm de sua experiência e somente é capaz de dar testemunho aquele que faz primeiramente a experiência de Deus. Por isso realiza a forma mais alta da teologia prática ao fazer coincidir sua experiência de Deus, sua experiência pastoral, às exigências de homens e mulheres que demandam e esperam da Igreja uma resposta concreta às suas vidas”.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Os Cartazes desta História. Memória gráfica da resistência à ditadura militar e da redemocratização (1964-1985). Vladimir Sacchetta (organização). José Luiz del Roio; Ricardo Carvalho. São Paulo: Instituto Vladimir Herzog/Escrituras Editora, 2012, 253 p.
Assim como um ninho de serpente, antes de que tenhamos distinguido a natureza dos ovos, e não percebamos que estão sendo chocados; ou como a cadela no cío, da imagem de Brecht, que parece grosseira, mas que se presta a ilustrar a fauce do fascismo, a conjuntura começa a nos permitir divisar a tentação e os ensaios de volta ao autoritarismo, da objeção à democracia, da intensificação dos fundamentalismos, da exteriorização dos negacionismos, da ostensividade xenófoba, racista, misógina, da discursividade intolerante, da destilação de atitudes e práticas de ódio.
Na ininteligibilidade de argumentos que se estranham, divisar os símbolos e a hermenêutica desse tempo, é menos uma disposição da razão explicativa e mais um esforço da razão intuitiva, declamatória, artística. Menos causalidade e mais holismo; menos palavras e mais imagens.
Elemento textual, estético, informativo, apelativo e sempre mobilizador, o cartaz, o affiche, o pôster, cumprem alta função político-educadora. Tangendo pela emoção é simultaneamente arte e manifesto. Na edição do volume 8, da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito à Comunicação e à Informação (https://faclivros.wordpress.com/2017/03/29/o-direito-achado-na-rua-v-8-introducao-critica-ao-direito-a-comunicacao-e-a-informacao/ ), as ilustrações, selecionadas a partir de edital, homenageiam 100 anos da Revolução Russa e da assim conhecida Gráfica Utópica Russa (1904-1942), que nesse período, conduzida por artistas como Lissitzky, Mayakovsky, Rodchemko, promoveu a grande mobilização da sociedade e a difusão dos ideais revolucionários.
A arte da capa do volume é uma montagem inspirada livremente no trabalho de Alexander Rodchenko, artista plástico, escultor, fotógrafo e designer gráfico, que foi um dos fundadores do construtivismo e design moderno russo. Sua fotografia era socialmente engajada e ele advogava pela incorporação da arte na vida diária. A capa do volume, foi elaborada a partir de imagens do fotógrafo, professor de Direito e pesquisador do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, Humberto Góes (p. 451):
Por essa condição de engajamento, os riscos, as ameaças, os atentados aos artistas, ilustradores, chargistas, mas também as campanhas de solidariedade e de salvaguarda social como a do Je suis Charlie, para apoiar e “proteger” os cartunistas do Charlie Hebdo, ou no Brasil, em solidariedade ao cartunista Renato Aroeira que se tornou alvo do ministro bolsonarista da Justiça, que ordenou à Polícia Federal a abertura de uma investigação com base na Lei de Segurança Nacional. Isso porque Aroeira publicou, no portal Brasil 247, uma charge em que transforma a cruz vermelha, símbolo da emergência dos hospitais, em uma suástica – ícone do nazismo, desenhada em analogia à declaração do presidente porque incentivou aliados a invadirem hospitais para comprovar a internação de pacientes com covid-19, tudo num crescendo de repressão que inclui o que já tem sido chamado assédio ao jornalismo e atentado à liberdade de expressão.
Com mais contundência e acuidade o caricatural é o crítico mais contundente porque irreverente, das empáfias e das hipocrisias afetadas das institucionalidades e das hierarquias, que não recebam apenas a dissecação de um Balzac (Um Caso Tenebroso, O Coronel Chabert, senão em toda A Comédia Humana), mas que realizam o desiderato proverbial contido no ridendo castigat mores, a divisa latina empregada freqüentemente nos frontispícios dos jornais pilhéricos, para o lazer e as burlas na Europa do século XIX.
Assim, Honoré-Victorien Daumier, o caricaturista, chargista, pintor e ilustrador francês, tido como o homem que ria de seu tempo. Suas caricaturas gens de justice são uma incisão na nervura de um sistema burocrático, indolente, negligente, sonolento do modo real do realizar-se da Justiça como sistema, como organicidade, como função institucional:
Se em Daumier é o artista que representa até cruelmente a desrazão do sistema e da gente da justiça, erigido nefelibaticamente à altura de racionalidade institucional, de outro lado há o próprio jurista, o cientista social e o cientista político que se apropriam do artístico para exercitar a autocrítica mais aguda do que a movida por discursividade argumentativa refratária a refutações ou contestações contra-argumentativas.
Essa dimensão sensível que se anima na subjetividade dos melhores, eu a vejo aflorar cotidianamente no meu ofício docente, já no revelar-se as jovens vocações. Mesmo no comecinho do abrir-se ao apelo pedagógico, especialmente entre os que se dedicam ao compromisso de monitores.
Em 2020, numa competição de processos de metodologias ativas, participei com meus monitores de pós-graduação (estágio docente) e de graduação, da 3ª Edição do Prêmio Esdras de Ensino do Direito, promovido pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo. Alcançamos Prêmio Destaque na 3ª Edição do Prêmio. Concorremos com o projeto Pesquisa em (qual) direito, eu, os pós-graduandos Eduardo Xavier Lemos e Renata Carolina Corrêa Vieira; e os graduandos/monitores Maria Antônia Melo Beraldo, Julia Caroline Taquary dos Reis, Rafael Luis Muller Santos, Juliana Vieira Machado e Lucca Dal Soccio.
A proposta consta do Banco de Materiais da FGV (https://ejurparticipativo.direitosp.fgv.br/portfolio/pesquisa-qual-direito). Ali se constata que no desenho da disciplina Pesquisa Jurídica (1º semestre do curso de Direito da Faculdade de Direito da UnB), regida pelo professor proponente e equipe e, seguindo o roteiro programático (Programa e elementos metodológicos), se habilitam, com autonomia cognitiva, teórica e ética, “a desentranhar dos discursos teóricos e técnicos operados, as pré-compreensões neles inscritas, consciente ou inconscientemente”.
Projetada para o desempenho regular de curso, a atividade foi atingida dramaticamente pela pandemia de Covid-19. Inserida nesse contexto, a atividade passou a ter dupla finalidade: acadêmica e subjetiva. De um lado, proporcionou a/ao estudante a reflexão teórica e epistemológica sobre os fundamentos da disciplina, e de outro, favoreceu o acolhimento, na medida em que proporcionou um espaço orgânico de troca de experiências e vivências por meio da atividade “Cartas da Quarentena”, em que as e os estudantes foram convidados a refletirem criticamente a conjuntura vivenciada, compartilhando suas angústias, dores, esperanças e sentimentos sobre o momento atual. Ao escreverem cartas ao grupo, as/os estudantes foram estimulados a manterem o vínculo coletivo durante o período e não se dispersarem ou se sentirem desamparados no começo da sua vida acadêmica, tendo em vista que a disciplina Pesquisa Jurídica é ofertada no primeiro semestre do curso.
Parte desse grupo se integra à nova equipe de monitores do semestre atualmente em curso (2/2020, ano civil 2021), com a inclusão de novos integrantes. Os novos integrantes, Ana Clara Barros de Carvalho, Marco Antonio Poti de Souza Silva, Letícia Medeiros Vieira Sorrequia e Mayara Rodrigues de Sousa, trouxeram uma expansão do imaginário para inserir na plataforma fria do distanciamento imposto pela pandemia, um espaço acolhedor para o aprendizado transcorrer solidário, fraterno, sensível, lúdico.
Eles criaram espaços virtuais para debates, convertidos em torneios temáticos do campo da pesquisa jurídica, mobilizando o acervo familiar desse imaginário ao recriar a Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts, ou simplesmente Hogwarts, palco principal dos primeiros seis livros da série Harry Potter, de J. K. Rowling. E o fizeram com a garridice da licença literária de refazer muito melhor do que eu próprio fizera (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. No Jardim da Faculdade de Direito da UnB in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Ideias para a Cidadania e para a Justiça. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 2008, p. 85-86), para virtualmente situar “os animais fantásticos e onde habitam”: Agatemicus, Comensais da Olímpia, Extencanis, Ministério da Magia da Advocatta, Pombúrdia, Saruentia. A seguir dois brasões:
À criação coletiva, agrega-se o talento individual, inesperado. Letícia Medeiros Vieira Sorrequia, uma das monitoras, revela-se ela própria uma chargista de boa escola. Seu traço e estilo verruma o real maravilhoso, surreal:
Aqui a charge, diz Letícia, “faz referência ao mundo dos animes. O livro que o Bozo tá segurando é o death note, em tese, as pessoas cujos nomes foram escritos nele morreriam. Atrás é um deus da morte japonês (também referência a um anime). A representação da democracia desfalecida na frente. Ela usa as cores preto e amarelo em referência às Diretas Já. Escolhi a temática de anime pra alcançar o nicho de jovens”.
Nessa ilustração Letícia, remete a uma antiga charge de Ziraldo para falar, ela explica, “sobre a hipocrisia do Bolsonaro que tem uma postura negacionista mas que recentemente surgiu uma reportagem falando que ele ia se vacinar”.
Espero que Letícia não brilhe de modo incidental. Há outros com brilho igual e incidental. Em todo caso fulgurante.
Prestei por anos um pouco antes e depois da Constituinte de 1988, assessoria a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos de Brasil) no tema. No volume que editamos, nós da Comissão de Acompanhamento da Constituinte, pelo selo editorial das Paulinas (Estudos da CNBB 60. Participação Popular e Cidadania. A igreja no processo constituinte, 1990), Dom Luciano Mendes de Almeida, presidente da Entidade me faz uma dedicatória. A sua assinatura é uma ilustração de um bispo sorridente e apaziguador com seu cajado, um evidente auto-traço:
Com o traço suave, náutico, de quem encontrou a serenidade navegando em mares sem fim, Amyr Klink me pôs com ele no meio do oceano na dedicatória de seu livro, quando visitou a UnB para as aulas de inquietação com as quais, no espaço aberto do teatro de arena na praça maior do campus, fazíamos em meu reitorado o acolhimento de cada semestre letivo (https://www.youtube.com/watch?v=ILeoJpJ1Q).
Não é o caso de Fernando Lopes (LOPES, Fernando de Castro. A Arte de Ilustrar. Brasília: Edição do Autor, 2014, 240 p.). De Fernando já falei com reconhecimento em edição anterior de Lido para Você (http://estadodedireito.com.br/constituinte-e-constituicao/): “Aqui o registro de apreço ao trabalho social realizado por dirigentes, jornalistas, ilustradores do Correio Braziliense (além dos já mencionados, Fernando Lopes, que viria a ilustrar o volume 2, da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito do Trabalho, com traço comprometido na temática dos direitos humanos). Cada edição bem diagramada, com documentos pertinentes, fotografias, poesias, letras de música, informações) davam consistência a matéria programática daquele número”.
Este é mestre coroado, por ofício e vocação. Não é bissexto. Dele o traço personalizado, na edição de sua obra de síntese, para mim e para minha esposa a professora Nair Bicalho:
Seja pelo modo de textualizar, seja pelo entre-estílos que a ilustração, a charge, a caricatura, o affiche, o cartaz expressam, eles acabam se constituindo suportes de fragmentos, difíceis de designar. Minha querida amiga Graça Ramos no texto de introdução ao livro de Fernando Lopes citado, fala da mistura de assombro e curiosidade que acaba servindo à construção de seres deformados.
Em relação à obra de Fernando ela destaca: “Se, nos retratos, ele busca a integridade do retratado, em grande parte de suas criações, é preciso voltar a salientar, Fernando recorre à ironia e reforça aspectos extravagantes. Mais reflexivos que expansivos, seus desenhos em crayon, guache ou nanquim apontam para o dissonante, estruturando cicatrizes, arranhando texturas, buscando realçar o que está vivo, escondido na forma. Nessas obras, capazes de induzir o espectador – também leitor – a ‘perceber e mostrar, em si e nos outros, os monstros que nos fizemos’, o desenho é gráfico, mas a expressão se faz pictórica”, fundindo arte e política” (p. 16-17).
Assim é que neste Os Cartazes desta História, ao apresentar o projeto, tenha Clarice Herzog indicando o valor de luta e de resistência que a coleção representa, uma delas, a de “recolher fragmentos da história do Brasil -, pouco visível na época”, para se tornar “um testemunho vivo de momentos bem pouco conhecidos de uma das muitas formas de combater regimes de força: a criação, produção e distribuição de cartazes que foram exibidos e colados em paredes solidárias de universidades, sindicatos, fundações e tantos outros espaços democráticos mundo afora, particularmente na Europa” (p. 5).
No livro – continua Clarice – “estão coletados 243 cartazes, muitos feitos no exterior, com uma infinidade de mensagens contra os militares brasileiros e, também, em solidariedade aos povos latino-americanos que tiveram o seu poder político usurpado por uma sequência macabra de golpes inspirados a partir do golpe dos militares brasileiros em 1964”.
O livro está dividido em sete capítulos e em alguns textos pré-textuais: A história nas paredes (Vladimir Sacchetta); Resistências; Anistia; Movimentos; Mulheres, trabalhadores e estudantes; Solidariedade; Mortos e Desaparecidos; A gráfica da ação (Chico Homem de Melo); Créditos.
No seu conjunto formam os que os autores da obra – Vladimir Sacchetta, José Luiz Del Roio e Ricardo Carvalho – designaram de “as muitas resistências”. É uma advertência para os desatinos do presente. Que saibam os seus fautores. Apesar da inconsciência ainda inapta a armar o quadro completo de seus atos de lesa pátria, lesa democracia, lesa Constituição e lesa humanidade, as resistências estão ativadas e os Fernando Lopes, Aroeira, Larte, os Carusos, Letícia Sorrequia, Glauco, Angeli, Latuf, Andreato, Sua arte política, conforme diz Sacchetta (A história nas paredes), “coloca em circulação ideias e causas, resistências e combates”. É libelo e memorial. Documenta “o passado e o presente (e por que não o futuro?) da vida política de um povo” (p. 9).
Por isso este Lido para Você, sobre essa bela obra, um projeto do Instituto Herzog, que coleciona os cartazes de um quartel (no duplo sentido de tempo e caserna) de nossa história, como memória do terror, da mentira e da barbárie e como advertência da importância da verdade, da democracia e da justiça, para a dura escovação da experiência, lembra Benjamin, que tem a intenção do nunca mais.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
E-book “Direitos Humanos: uma coletânea pela perspectiva dos estudos de gênero e diversidade – volume 2”, Organização Josiane Petry Faria, Caroline Vasconcelos Damitz, Renato Duro Dias. – Rio Grande, RS : Ed. da FURG, 2021. 441 p. ; 21 cm. – (v.02); disponível no Repositório da FURG. O número de ISBN para inserção no currículo Lattes é: 978-65-5754-054-1. Acesso ao material no repositório: http://repositorio.furg.br/handle/1/9348.
Recebi com grande satisfação o convite, em nome da Universidade Federal do Rio Grande, do programa de Pós-Graduação Mestrado em Direito da Universidade de Passo Fundo e dos organizadores do livro Direitos Humanos: uma coletânea pela perspectiva dos estudos de gênero e diversidade – Vol. 2, para realizar a apresentação da obra, que está sendo lançada em “diálogo virtual”.
Não fora a circunstância de desde logo surpreender no projeto, o concurso de um seleto consórcio de programas e de instituições, conduzidos pela Universidade do Rio Grande – FURG e pela Universidade de Passo Fundo, o convite me alcançou como uma convocação, uma vez que partiu de seus organizadores, as professoras Josiane Petry Faria e Caroline Vasconcelos Damitz e pelo professor Renato Duro Dias, este último que além da projeção de seu trabalho acadêmico desde a FURG, é parte do círculo afetivo que muitas vezes excede e se prorroga da convivência universitária para o círculo mais eletivo de projetos de vida fraternalmente compartilhados.
E assim, sem outras mediações abracei a requisição para o mister que me foi confiado, sabendo de partida, que os trabalhos realizados sob essa liderança, se voltam invariavelmente, para a finalidade de dar publicidade a produções confiáveis voltadas à pluralidade das áreas do saber, solidariamente realizado e com o mais aberto e democrático acesso.
Todos esses valores e fundamentos saltaram aos olhos, na visualização da lista de artigos e correspondentes autoras e autores, que compõem o sumário da edição, a cargo da Editora da Universidade Federal do Rio Grande:
Necropolítica de gênero e o dispositivo de produção e administração de sofrimento e morte às mulheres no Brasil, Joice Graciele Nielsson e Maiquel Ängelo Dezordi Wermuth.
A redução das assimetrias de gênero como um direito humano necessário ao desenvolvimento sustentável, Paulo Márcio Cruz, Carla Piffer e Bruna Borges Moreira Lourenço.
Crise global e colonialidade: a agroecologia como espaço para proteção do meio ambiente, igualdade de gênero e sustentabilidade, Joana Silvia Mattia Debastiani, Cleide Calgaro e Liton Lanes Pilau Sobrinho.
Masculinidades, trabalho e violação de direitos humanos, Patricia Ketzer, Róbson Peres da Rocha e Ivan Penteado Dourado.
O Sistema Interamericano e a Proteção da Diversidade: da tutela à garantia dos direitos humanos das pessoas LGBTI, Clóvis Gorczevski e Micheli Piucco.
O debate dos direitos coletivos e fundamentais em períodos de crise, Marli Daniel, Luiz Fernando Fritz Filho e Karen Beltrame Becker Fritz.
A luta por reconhecimento: políticas públicas dedicadas às mulheres, Ariane Faverzani da Luz, Janaína Faverzani da Luz e Alex Faverzani da Luz.
Ponderações sobre a proibição da discriminação em razão do gênero e normas peremptórias de direito internacional, Gabriela Werner Oliveira e Maria Olívia Ferreira Silveira.
O reconhecimento da identidade sexual e de gênero como direito fundamental do indivíduo: contribuições das teorias de Nancy Fraser e Axel Honneth, Letícia Vasconselos Barcellos e Adriana Fasolo Pilati.
Violência doméstica e a cultura da submissão da mulher, Leticia Dalbosco Telles e Giovani da Silva Corralo.
Desafios do acesso à justiça pela vítima em situação de violência doméstica e/ou familiar: uma análise sobre a renúncia da representação, Josiane Petry Faria e Vivian da Cruz Neves.
Dimensões do poder e criminologia crítica: breves tese, antítese e síntese sobre os discursos legitimadores da proteção jurídico-penal da mulher, Gabriel Antinolfi Divan e Laís Franciele de Assumpção Wagner.
Relações tóxicas em tempos de isolamento social: “não tira o batom vermelho”, Karen Beltrame Becker Fritz e Estéfani Luise Fernandes Teixeira.
Mulheres e vulnerabilidade social: da intersecção entre dependência econômica e violência doméstica e/ou familiar, Josiane Petry Faria e Amanda Caroline Zini.
Justiça social: uma questão de redistribuição ou de reconhecimento?, Isabela Bohnen e Alex Faverzani da Luz.
Por que a revenge pornography é uma violência de gênero? Considerações entre o poder punitivo e a violação dos direitos humanos, Caroline Vasconcelos Damitz.
O papel do manicômio judiciário na produção de corpos abjetos, Willian Guimarães.
A redução do estado de coisas inconstitucional do sistema carcerário por meio do benefício da prisão domiciliar às gestantes e mães de crianças e as implicações com a lei de drogas, Vinícius Francisco Toazza.
O amplo, sofisticado e interdisciplinar painel de temas e abordagens, em suas aproximações interpelantes, críticas e atentas às emergências teóricas e sociais, se organizam com adequada integração no conjunto editorial desse volume 2, de Direitos Humanos: uma coletânea pela perspectiva dos estudos de Gênero e Diversidade.
A coletânea originalmente apresentada ao Programa de Edição de Livros, edital nº 01/2020 da Universidade Federal do Rio Grande/FURG, inserida na Linha Editorial de Divulgação científica ou cultural, precipuamente, tem como propósito a difusão do conhecimento em diversos campos do saber, apresentados e debatidos no transcorrer dos capítulos.
É uma perspectiva, que para a Reitora Cleuza Maria Sobral Dias da Universidade Federal do Rio Grande, que prefacia o livro, contextualiza a educação “como potência nos estudos emancipatórios em e para os Direitos Humanos e a Justiça Social, especialmente por ser lócus privilegiado para a produção de novos mecanismos teóricos, epistêmicos e metodológicos que configurem os saberes, fazeres e discursos enquanto sujeitos em transformação”.
Daí, diz ela no Prefácio, “a importância histórica deste livro que ora apresento a toda a sociedade. Construir um caminho a partir de uma dialética em que a educação protagonize práticas solidárias que revertam a subalternidade, emancipando e dando voz às vidas precarizadas e invisibilizadas é um propósito de grande envergadura”.
Por isso que os textos cuidam de problematizar temas pertinentes aos direitos humanos pela perspectiva dos estudos de gênero, considerando a sociedade multicultural, global e tecnológica, e que, portanto, se faz necessário discutir as demandas que as envolvem.
Valho-me do resumo que recebi junto com o convite, para discernir o fio condutor da publicação: “direitos humanos, gênero e diversidade, dentro do sistema prisional brasileiro, bem como a inserção no mercado de trabalho e relações adjacentes; no exército; nas políticas públicas de proteção; nas ferramentas da mediação e na justiça restaurativa pelo olhar dessas novas demandas. Estas ensejam um olhar científico e estatístico, pois são emergentes e as ciências sociais aplicadas precisam moldar-se a este cenário”.
Mas também no contexto de sua elaboração “sob a perspectiva da trajetória de lutas na construção e manutenção do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos, pesquisa baseada no materialismo-histórico-dialético, que aborda os direitos humanos enquanto um conjunto de processos contraditórios de conquistas e, bem como as questões fundantes do sistema de proteção dos direitos humanos nas Américas, é uma das reflexões realizadas; reforçando o papel nuclear do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos na garantia da manutenção da dignidade dos seres humanos ao proteger e promover os direitos humanos”.
A Coletânea concentra a atenção nas questões de gênero, relacionadas às dimensões do poder e sexualidades, questões que foram problematizadas a partir das interconexões entre Direito e Sociedade. Aqui aparece como registro de experiências refletidas aquelas desenvolvidas no Programa de Extensão Projur Mulher e Diversidade e do assessoramento jurídico à mulheres em situação de violência.
Os trabalhos trazidos nessa direção se orientam notadamente pela consideração de que “a situação das mulheres latino-americanas no mercado de trabalho, ultimamente se afigura nas relações de trabalho como uma forma de obstaculizar a efetivação do princípio da não-discriminação e da igualdade de oportunidades, como é o exemplo da licença-maternidade”. E, atentos ao contexto patriarcal que permeia a realidade de nosso substrato político, indica recortes inéditos do atual no tocante a reificação perversa do feminino. Assim os estudos sobre “a revenge pornography no ambiente virtual pode ser entendido enquanto uma violência de gênero, a qual o Direito ainda não está totalmente apto a lidar. Nessa senda, a trajetória feminina na política brasileira e a inserção de mulheres no exército brasileiro também são objetos de análise crítica na presente coletânea”.
Na linha dessa vertente de estudos a Coletânea traz textos “sobre a norma processual penal, justiça restaurativa e mediação de conflitos em caso de violência doméstica. A justiça restaurativa surge como um meio de resolução de conflitos e de violências, orientada pela criatividade e pela sensibilidade da escuta dos ofensores e das vítimas da violência. Atrelando a justiça restaurativa como meio de resolução em casos de violência doméstica e familiar, é possível minimizar os efeitos deste problema”.
Outra vertente é a de estudos sobre o sistema prisional brasileiro, os quais, “devido a sua falência em vários aspectos tem demonstrado o esquecimento em seu dever de ressocializar os sujeitos que ingressam em seu domínio. Logo, a problemática reside em avaliar as previsões legais que dispõem sobre direitos fundamentais aos encarcerados bem como a realidade não vista por trás das grades”.
Aqui, uma nota de relevo, alusiva ao julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de habeas corpus específico, ordenando a “substituição da prisão preventiva pela domiciliar a todas as presas gestantes, puérperas ou mães de crianças de até doze anos de idade ou de deficientes sob sua guarda, tema que merece protagonismo, em razão do papel destinado à mulher pela sociedade, sobretudo no que tange à maternidade”. Os estudos, ao elegerem essa orientação, apontam para “a compreensão de como o gênero e o poder se entrelaçam na criação do atual paradigma do gênero e a partir disto buscar as estruturas de proteção criadas tendo em vista o conflito de gênero que envolve a sociedade, é ponto fulcral para entender a construção do gênero”.
Nesse passo, os estudos recuperam uma aparente virada de adesão aos princípios de um constitucionalismo fraternal, no qual se inscreve politicamente, o princípio esquecido do tríduo que marca a era dos direitos modernos. É que parece ter ocorrido no Supremo Tribunal Federal, em apelo à inclusão dos desassistidos, e tem sido recorrentes as decisões que se apoiam nesse fundamento, vale dizer, que externalizam a necessidade de se colocar no lugar do outro.
Lembrei isso ao elaborar minha Coluna semanal Lido para Você que é publicada no Jornal Estado de Direito, editado eletronicamente em Porto Alegre. Ao discorrer sobre a obra Pela Liberdade. A história do habeas corpus coletivo para mães & crianças. Vários Autores. São Paulo: Instituto Alana, 2019, (https://estadodedireito.com.br/pela-liberdade-a-historia-do-habeas-corpus-coletivo-para-maes-criancas/), mencionei que não é extravagante aferir a adoção desse fundamento, por exemplo, na decisão proferida na ADPF 347 – STF, relator Ministro Marco Aurélio, 2015. O Plenário, como é conhecido, concluiu o julgamento de medida cautelar em arguição de descumprimento de preceito fundamental em que discutida a configuração do chamado “estado de coisas inconstitucional” relativamente ao sistema penitenciário brasileiro. Na mesma ação também debateu a adoção de providências estruturais com objetivo de sanar as lesões a preceitos fundamentais sofridas pelos presos em decorrência de ações e omissões dos Poderes da União, dos Estados-Membros e do Distrito Federal. No caso, alegou-se estar configurado o denominado, pela Corte Constitucional da Colômbia, “estado de coisas inconstitucional”, diante da seguinte situação: violação generalizada e sistêmica de direitos fundamentais; inércia ou incapacidade reiterada e persistente das autoridades públicas em modificar a conjuntura; transgressões a exigir a atuação não apenas de um órgão, mas sim de uma pluralidade de autoridades.
Em que pese a fixação desse entendimento no STF, o Judiciário ainda reluta em reconhecer esse estado de coisas inconstitucional. O Superior Tribunal de Justiça indeferiu em abril deste ano, um Habeas Corpus da Defensoria Pública da União impetrado em favor de todas as pessoas presas ou que venham a ser presas e que estejam nos grupos de risco do novo coronavírus (Covid-19). Em sua decisão o relator ao analisar o novo Habeas Corpus, afirmou não ter verificado constrangimento ilegal na decisão do TRF-3. “A questão em exame necessita de averiguação mais profunda pelo tribunal regional, que deverá apreciar a argumentação da impetração e as provas juntadas ao Habeas Corpus no momento adequado”, sentenciou. Isso, apesar de a DPU ter sustentado que o Brasil tem mais de 800 mil presos, provisórios ou não, e que não pretendia discutir a legalidade de cada uma das prisões no momento em que foram decretadas. Mas alertou que a pandemia “tem o potencial de atingir praticamente todos os presos do país, amontoados em cadeias superlotadas, sem ventilação adequada e sem as mínimas condições de higiene”. Ou seja, apesar de presentes aquelas condições que o STF indica como caracterizadoras do estado de coisas inconstitucional.
A dimensão fraternal (alusão ao princípio esquecido do tríduo liberal) da decisão pode ser incluída nessa categoria sensível do jurídico, posta em relevo pelo relator ministro Ricardo Lewandowski, conforme excerto de sua manifestação: “Há, como foi reconhecido no voto, referendado por todos os ministros da Corte, uma falha estrutural que agrava a ‘cultura do encarceramento’, vigente entre nós, a qual se revela pela imposição exagerada de prisões provisórias a mulheres pobres e vulneráveis. Tal decorre, como já aventado por diversos analistas dessa problemática seja por um proceder mecânico, automatizado, de certos magistrados, assoberbados pelo excesso de trabalho, seja por uma interpretação acrítica, matizada por um ultrapassado viés punitivista da legislação penal e processual penal, cujo resultado leva a situações que ferem a dignidade humana de gestantes e mães submetidas a uma situação carcerária degradante, com evidentes prejuízos para as respectivas crianças”.
Voltando ao resumo, a obra releva distinguir o relevo que ela atribui a temas específicos alusivos a “violações dos direitos humanos, quais sejam: a saúde LGBTI+, o acesso à educação no ambiente carcerário, a confiança do testemunho feminino frente ao Direito, por uma perspectiva da epistemologia e a cultura enquanto direito fundamental, potente ferramenta de validação dos direitos humanos. Nesse sentido, compreender qual processo de saúde é ofertado a população LGBTI+ é também pensar no cotidiano da assistência; acompanhar os processos intersubjetivos entre profissionais e usuários que reafirmem a intersetorialidade e a interdisciplinaridade necessária a constituição das políticas públicas. Problematizar a fronteira que delimita quais corpos importam é um caminho viável para evidenciar os dispositivos empregados para a sustentação das marginalidades sobre a população LGBTI+”.
Apor fim, há ainda uma vertente singular na Coletânea que trata da “garantia ao acesso à educação no ambiente carcerário”, sob a hipótese educadora e não retributiva de poder ser esse “um dos fatores de emancipação social para evitar a reincidência”.
Honrado com o convite para esta Apresentação, confesso que hesitei em aceita-lo por não me sentir investido de qualificação suficiente, não digo na temática dos direitos humanos posto que milito, professo, construo sentidos e atuo academicamente no campo, mas na sua articulação com o feminismo enquanto uma área bem demarcada com referenciais muito bem constituídos social e teoricamente.
Mas logo me recuperei da hesitação, em parte pelo aprendizado que recebi de colegas e alunas cujos trabalhos teóricos – na pesquisa e na formulação, acompanhei ou como orientador ou como avaliador; também porque seria desleal com essas autorias se me negasse a examinar uma obra em cujos temas elas próprias tinham tido o cuidado de me iniciar e de até me incorporar no exercício de co-autoria.
Assim é que escrevi com Lívia Gimenes da Fonseca, que foi minha orientanda no Mestrado e no Doutorado, e essa autora ela mesma desenvolve em estudo específico, aprofundando essa elaboração, para refletir sobre processo de transformação, no qual as práticas de organização feminista decolonial sejam capazes de se abrir para os aprendizados coletivos entre as mulheres, por meio de trocas interculturais, em contextos de diálogos horizontais no qual não se busque uma resposta única para a superação do patriarcado moderno, mas que constrói relações de uma rede de solidariedade e de práticas coerentes de respeito às vivências coletivas diversas” (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; e FONSECA, Lívia Gimenes Dias da. O Constitucionalismo achado na rua – uma proposta de decolonização do Direito. Revista Jurídica Direito e Práxis, UERJ: vol. 8, n. 4 (2017); FONSECA, Lívia Gimenes Dias da. Despatriarcalizar e decolonizar o Estado brasileiro – um olhar pelas políticas públicas para mulheres indígenas. Tese (Doutorado em Direito). Brasília: Universidade de Brasília, 2016, p. 182).
Do mesmo modo, depois de ter participado da banca de seu concurso de titulação na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, compartilhei com as minhas colegas da USP, Carmen Simone Grilo Diniz, Gislene Aparecida dos Santos e Raquel Santos Santana, o Prefácio a oito mãos do livro Lei Maria da Penha e o projeto jurídico feminista brasileiro, de Fabiana Cristina Severi. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2018, resultado da tese apresentada aquele concurso.
Para mim, considerando a minha contribuição pessoal para o prefácio, em Fabiana, situar sua leitura na perspectiva de um projeto feminista de legalidade significa descolar-se da leitura rasteira do dogmatismo jurídico legalista, fonte do mal-estar na cultura jurídica moderna que percebe estagnado o movimento do social e confinado o protagonismo dos sujeitos de sua transformação no cipoal do formalismo jurídico positivo, legal e burocrático.
Cuida-se, portanto, aplicando essa perspectiva aos trabalhos da Coletânea, de pensar o projeto feminista da legalidade abrindo-se a outros modos de pensar o direito, ao impulso de teorias de sociedade e de justiça, para se fazer sensível as demandas de novas juridicidades inscritas sociologicamente na dinâmica do instituinte.
Algo que revele, no protagonismo feminino, o modo pelo qual, as mulheres constituídas em sujeitos coletivos de direito, reivindicam o jurídico, para se verem reconhecidas como titulares de formas próprias de organização, de formularem um projeto de sociedade e de poder, não só reivindicar mas criar direitos, achados na rua (ao entendimento teórico e político que permitiu desenvolver “a percepção, primeiramente elaborada pela literatura sociológica, de que o conjunto das formas de mobilização das classes populares e das configurações de classes constituídas nesses movimentos instaurava, efetivamente, práticas políticas novas em condições de abrir espaços sociais inéditos e de revelar novos atores na cena política capazes de criar direitos” (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de, Direito como Liberdade. O Direito Achado na Rua. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2011, p. 47).
Logo, ainda que se concretize sob a expressão de um sistema de legalidade, traduzido na lei, o que está em causa é afirmar, em disputa política e hermenêutica, um sistema de legitimidade, uma vez que se bem “o movimento das mulheres seja paradigmático, o é porque, ao lutarem pela diferença está se dirigindo ao conjunto da sociedade e não apenas às mulheres, com efeito, portanto, disruptivo e desafiador da lógica do sistema social” (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Op. cit. p. 158).
Daí que Ísis Dantas Menezes Zornoff Táboas, autora de É LUTA! Feminismo Camponês Popular e Enfrentamento à Violência, Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2018, que também orientei, tanto no Mestrado em Direitos Humanos e Cidadania, quanto no Doutorado em Direito, na UnB, reivindique catalogar o que denomina “teorias feministas do Direito”, dada a necessidade de estabelecer pertinências, porque “há uma grande diversidade de correntes nas teorias feministas jurídicas que questionam de diferentes formas o impacto do Direito na vida das mulheres”, valendo singularizar, na busca dessas pertinências, “o elemento comum a todas (que) é a denúncia do caráter patriarcal do Direito”, levando à exigência de refinar “métodos jurídicos feministas” para questionar, exatamente, o “papel do Direito na investigação e manutenção das relações desiguais de poder” e, ao mesmo tempo, abrir ensejo para que “a entrada das mulheres no campo do Direito não apenas acrescente novos elementos à ciência jurídica, mas a perturbe intensamente e provoque revoluções epistemológicas” (Métodos Jurídicos Feministas e o (Des)Encobrimento do Direito no Cotidiano das Mulheres, in SCHINKE, Vanessa Dorneles (Org.). A Violência de Gênero nos Espaços do Direito: Narrativas sobre o Ensino e Aplicação do Direito em uma Sociedade Machista. 2ª. edição. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2017, p. 337).
São autoras que souberam confrontar questões complexas como as da interseccionalidade e colonialidade que nos levam a questionar se o direito seria um lócus para a luta por reconhecimento que as mulheres estão a travar. E são leituras que auxiliam não só na compreensão deste terreno como também nos dá armas para percorrê-lo, não fugindo das armadilhas e das aporias que o tema do reconhecimento legal traz já que sabemos que a cada esfera e etapa de reconhecimento se percebe que há algo que ficou de fora. A cada momento que se nomeia, se percebe que se criou uma exclusão. Então, é um terreno de complexidades.
Trata-se, ao fim e ao cabo, de “a partir dos marcos teóricos da linha de pensamento jurídico crítico “O Direito Achado na Rua” (cf. SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; APOSTOLOVA, Bistra S.; FONSECA, Lívia G. D. da (Orgs). O Direito Achado na Rua, vol. 5: Introdução Crítica ao Direito das Mulheres. Brasília: CEAD/UnB, 2011) apresentar-se uma perspectiva de possibilidades e desafios na construção de um constitucionalismo que inclua na sua pauta uma transformação no modelo de organização estatal moderno de modo a decolonizá-lo e despatriarcalizá-lo, abrindo-o para o reconhecimento de suas mobilizações jurídicas emancipatórias, desenvolvidas a partir das lutas sociais especialmente das mulheres”. (José Geraldo de Sousa Junior e Lívia Gimenes Dias da Fonseca. Rev. Direito e Práxis., Rio de Janeiro, Vol. 08, N.4, 2017, p. 2882-2902).
Retomo para concluir esta Apresentação, ao que diz a Reitora Cleuza Maria Sobral Dias, em seu Prefácio, para com ela concordar no sentido de que se divulga “uma obra que em muito contribui para aprofundar e balizar essas discussões no campo do ensino superior com argumentos sólidos e consistentes. A ruptura com o status quo pode ser promovida por meio de uma educação mais libertadora, ativa, dialógica e transformadora. Como se propõe este livro. Somente assim, a educação brasileira poderá potencializar a produção de um conhecimento emancipado e dar voz a quem, historicamente, vem sendo silenciado por um cenário social devastador e desigual”.
Só isso já lhe atribui valor, em tempos de travessia, de incertezas, de releituras do passado e de obscurecimento sobre futuros que se divisem num horizonte turbado, na política, por um negacionismo rasteiro e bruto; e na crise sanitária, por uma absurda redução do sentido do humano que nos projete eticamente para uma vida digna e decente; o livro revela coragem e enorme mobilização para dispor de capacidade teórica e social para liberar as reservas utópicas acumuladas por lutas sociais com horizonte de emancipação.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
CAIO SANTIAGO FERNANDES SANTOS. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E NEOLIBERALISMO: UMA ANÁLISE DO PERÍODO PÓS-1988. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2021, 260 p.
O livro, no prelo, já para lançamento pela Editora Lumen Juris , cujo selo dá relevo a algumas de minhas publicações (e que em breve, ao que tenho notícias, estará abrindo uma coleção para acolher o Professor Boaventura de Sousa Santos), é resultante de Tese de Doutorado realizada no Programa de Pós-Graduação em Direito, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, sob a orientação do Professor Celso Fernandes Campilongo e coorientação do Professor Boaventura de Sousa Santos (Universidade de Coimbra), aprovada por banca em 20/08/2019.
Já nos agradecimentos o Autor registra, para além do preito de gratidão a seus orientadores, não só pelas referências intelectuais que aplicaram ao processo de elaboração, mas ao ambiente de acolhimento para a serenidade necessária à execução da obra; revela igualmente o movimento de transformação da tese em livro, uma outra etapa diligente necessária a uma boa edição e seus requisitos próprios.
Essa disposição já se mostra notável, fiel ao escopo da obra centrada na análise do papel do Supremo Tribunal Federal após a Constituição brasileira de 1988, enquanto localização do tema de estudo no campo destacado da Sociologia da Justiça e dos Tribunais.
O Sumário enquadra bem o roteiro para a compreensão dos objetivos da obra. A partir da Introdução, um capítulo inicial focaliza a Sociologia do Direito e os Tribunais, localizando o tema em Boaventura de Sousa Santos e no formalismo jurídico de Hans Kelsen; reivindica uma Sociologia dos Tribunais no Brasil, pela mediação do Estado brasileiro no contexto internacional, pela atuação de grandes grupos econômicos brasileiros, pela atuação dos movimentos sociais, pelo desenho institucional e o perfil dos magistrados e em face da recepção de teorias críticas ao formalismo jurídico. Então aborda o Supremo Tribunal Federal, traçando o seu panorama e a incidência de sua atuação a partir de casos que põe em tela de discussão.
O que o Autor se propõe, ele esclarece na Introdução, seguindo Boaventura de Sousa Santos é “analisar os tribunais em sociedade. A premissa teórica fundamental é que, para explicar a atuação dos tribunais, é necessário considerá-los não como um objeto isolado, mas sim inserido na sociedade. Os tribunais estão submetidos a diferentes influências e pressões oriundas de grupos e classes sociais com interesses diversos. Nesse sentido, as práticas dos tribunais são em alguma medida reflexo dessas pressões, as quais podem contribuir para que se afastem de ideais liberais. Sem considerar essas pressões oriundas do contexto político brasileiro, não é possível explicar a atuação dos tribunais. Além disso, a própria reação dos tribunais a essas pressões também tem relação com o contexto político, uma vez que os magistrados estão inseridos na sociedade. Dessa forma, a sua atuação pode refletir valores políticos e vínculos sociais, por exemplo. A tendência de se considerar os tribunais como um objeto isolado é comum na área do direito e na ciência política contemporânea, que tendem a focar em diversos fatores institucionais dos tribunais e perder de vista o contexto mais amplo em que sua prática está situada”.
Compreendo perfeitamente a preocupação do Autor em adotar esse ponto de partida. Há alguns anos tive o ensejo de coordenar pesquisa empírica seguindo protocolo do Ministério da Justiça, por suas Secretarias de Assuntos Legislativos e de Reforma do Judiciário, visando a criação de um Observatório do Judiciário.
Esse projeto ganhou relevo e passou a constituir um destaque da Série Pensando o Direito, UnB/UFRJ, PNUD/Secretaria de Assuntos Legislativos/Ministério da Justiça, Brasília, nº 15/2009. A Série, dentro da qual por meio de chamada em edital o protocolo de pesquisa foi estabelecido, remonta a uma conjuntura de forte mobilização democrática dentro do princípio de inserção do Estado e de sua alta burocracia no paradigma de governança participativa, nos marcos da Constituição de 1988, uma condição que desde os acontecimentos de 2016 (afastamento da Presidenta da República), entra em refluxo, num claro processo de desconstitucionalização e de desdemocratização do País.
Neste trabalho foi possível estabelecer pesquisa com assessorias jurídicas de movimentos sociais e extrair de suas observações, a visão negativa dos modelos adjudicatórios do sistema legal e judiciário, presos às normas constituídas como unidade de análise das relações de conflito e incapazes de realizar até mesmo as promessas constitucionais de realização da Justiça, entre outros fatores, pela “resistência a trabalhar com o direito da rua”, pela “baixa sensibilidade para as demandas da comunidade”, pelos “limites culturais para a percepção de sujeitos e demandas inscritas nos conflitos sociais”, pela manutenção de “corpo com formação técnica desvinculada das experiências do mundo da vida”, pela “postura institucional burocrática” e pela “pouca permeabilidade ao controle social”.
Em contrapartida, pediam esses prestamistas de uma Justiça atualizada e modernizada para além do simplesmente funcional-burocrático-legal: “respeito às temporalidades democráticas”, “fortalecimento comunitário”, “educação em Direitos Humanos”, “uso dos meios de comunicação”, “conscientização e sensibilização” e, em síntese, “reconhecimento e acreditamento do protagonismo das experiências de mediação social realizadas fora das instâncias estatais”.
Voltei a me defrontar com essas interpelações quando fui chamado a participar da banca e depois prefaciar o livro NEOLIBERALIZAÇÃO DA JUSTIÇA NO BRASIL: MODO GOVERNAMENTAL DE SUBJETIVAÇÃO, DISPOSITIVO JURISDICIONAL DE EXCEÇÃO E A CONSTITUIÇÃO COMO UM CUSTO. THIAGO ARRUDA QUEIROZ LIMA. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2020.
Escrito num cenário de exceção já delineado, mas sem que se fizesse tão agudo quanto no contexto da pandemia que passou a assolar o mundo, e sem que o trabalho pudesse sequer imaginar tal cenário, o livro se abre, a partir de um conjunto de enunciados oriundos de atores pertencentes ao campo jurídico brasileiro, com a problematização acerca dos influxos que pressionam, hoje, o Poder Judiciário do país.
O Autor admite não ser possível, diante que foi exposto ao longo do trabalho, desprezar ou ignorar o que está em jogo. Discorrendo, em meio a uma guerra epistêmica, e agora em meio a uma crise total, estão a ser, ele diz, definidos os destinos do direito nacional. O que emergirá após o cenário de crise, que já não é só política? Esse é o ponto, e é toda a nossa cultura jurídica que está em questão. A revolução jurídica que se anuncia, indissociável de uma “reforma dos juristas”, tem alcance muito maior do que eventuais mudanças legislativas. Ao se remodelar o comportamento dos que decidem quanto à própria aplicação – ou desaplicação – da lei, altera-se algo muito mais profundo e relevante, que é o modo de produção de verdades jurídicas estabelecido no país.
No fundo, me deslocando um tanto para uma outra perspectiva que não aquela focalizada pelo Autor para enquadrar a mesma ordem de problemas, o que está em causa, não é só reivindicar, a modernidade de um sistema, inclusive de acesso à justiça, mas um repensar e reorientar a própria concepção de justiça para a qual ter acesso, o que modifica muito a percepção sobre modernidade e governamentabilidade. E isso não pode ocorrer sem que se abra o tema, não só aos sujeitos econômicos no mundo dos negócios, mas à participação popular porque, como eu próprio já afirmei, as Reformas do Judiciário em curso atingem o núcleo central, funcional, organizativo do sistema de justiça como estrutura de poder mas não o abre à participação social democrática. O tipo de acesso à justiça que tem sido debatido é ainda o “acesso a um sistema de justiça patrimonialista, sexista, patriarcalista, que criminaliza os movimentos sociais”. Uma reforma do judiciário de raiz precisa ser construída pelos movimentos sociais, e, neste sentido, requer abrir espaços de articulação das grandes pautas que envolvem a democratização da justiça (http://www.jusdh.org.br/2014/12/19/reforma-do-judiciario-precisa-de-participacao-popular/).
É nessa linha de interpelação que se localiza, por exemplo, o trabalho Porteiro ou Guardião? O Supremo Tribunal Federal em Face aos Direitos Humanos, estudo coordenado e redigido por Antonio Escrivão Filho (Porteiro ou Guardião? O Supremo Tribunal Federal em Face aos Direitos Humanos. Antonio Escrivão Filho. São Paulo: Friedrich-Ebert-Stiftung (FES) Brasil/Articulação Justiça e Direitos Humanos (JusDh), maio de 2018).
Com efeito, na mesma linha de sua tese de Doutorado, a que se pode ter acesso pelo Repositório de Teses da UnB – Mobilização social do direito e expansão política da justiça: análise do encontro entre movimento camponês e função judicial. 2017. 315 f., il. Tese (Doutorado em Direito)—Universidade de Brasília, Brasília, 2017 – Escrivão Filho oferece o resultado de uma pesquisa que tem por objeto o fenômeno de encontro entre o movimento social e a função judicial no Brasil, analisando a experiência do movimento camponês a partir da década de 1980, com foco empírico (primário e secundário) e bibliográfico nos conflitos fundiários e no MST, observando a sua capacidade de reivindicação e mobilização constitutiva (criação) e instituinte (efetivação) de direitos.
Neste cenário, segundo o resumo do trabalho, observa-se um fenômeno de expansão política da sociedade brasileira, e com ela uma dialética de expansão política do direito, no bojo da ativação social dos direitos fundamentais. De modo complementar, neste período observa-se ainda a densificação das funções de controle judicial sobre a sociedade e os entes estatais, o que, por via de consequência, proporciona uma potencial transferência da deliberação de assuntos de elevada intensidade política para a arena judicial – como a relação ‘Estado-sociedade’ inscrita nos direitos fundamentais- culminando, enfim, no fenômeno identificado pela noção de expansão política da justiça. Identifica-se, assim, que a análise da mobilização social do direito realizada pelo movimento camponês, e o respectivo padrão de enfrentamento judicial com proprietários, tanto pode ser melhor analisada sob o enfoque da expansão política da justiça, como fornece elementos para a própria compreensão do fenômeno da expansão judicial no Brasil, a partir do regime de enunciado democrático.
Esse é o mesmo cenário, embora alargado em alcance histórico e político, no qual Escrivão, aqui denominando contexto, instala sua análise sobre o Supremo Tribunal Federal em face dos direitos humanos. Trata-se, diz ele (pp. 5-6) de reconhecer a política como o campo constitutivo (de criação) e instituinte (de efetivação) de direitos, a partir do que antigos e novos movimentos sociais, urbanos e rurais, comunitários e eclesiais, locais e nacionais, de gênero e étnico-raciais entram em cena, primeiro deslocando o lócus da ação política dos espaços institucionais para achá-la na rua, espaço público por excelência, depois, ocupando também os espaços institucionais para então disputar a participação no próprio processo constituinte de 1987-88. Assim que, se não parece Possível afirmar a existência de um regime democrático sem direitos fundamentalmente referidos à cidadania – ou seja, às garantias de dignidade, bem estar social e participação ativa na vida política da sociedade – não soaria lógico conceber um regime de direitos sem identificar que, por detrás da sua conquista, traduzida em reconhecimento jurídico-institucional, estão os sujeitos que irromperam a história, superando violências, exploração e opressões cotidianas para, a cada novo momento, a cada nova emergência em luta social, afirmar novos direitos.
Seja sob a perspectiva com que trata Caio Santiago o tema, seja naquela a que remete abordagens quais a de Antonio Escrivão, do que se cuida é conferir a ocorrência de uma expansão política do judiciário em face de sua interação com o sistema político e a sociedade civil. E de modo mais preciso, a necessidade de considerar nesse processo, não bastar compreender a ideologia que compromete a ação individual de juízes sem entender o fluxo de interação ideológica entre tribunais e academia, mídia, grupos sociais organizados e outras instituições políticas.
Não é difícil estimar, adverte Escrivão, um potencial curto-circuito, quando se constata a súbita sobrecarga política sobre uma estrutura destreinada a participar democraticamente da deliberação sobre conflitos de elevada intensidade política, econômica e social, na medida da Formula que alia expansão política e blindagem institucional e em oposição à sua abertura democrática ao dialogo nos termos da participação e controle social.
De certo modo, eu já havia antecipado essa sobrecarga, ao examinar esse tema a partir de uma questão política que me havia sido formulada por um sindicato de servidores do judiciário como tema de um de seus congressos: é possível uma sociedade democrática com um poder judiciário conservador? Minha resposta, à altura, trilhou a mesma senda que Escrivão Filho percorre agora em seu estudo (Que Judiciário na Democracia?, in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Ideias para a Cidadania e para a Justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008): A resposta, obviamente, é não. Não é possível uma democratização plena da sociedade se uma de suas instituições essenciais se conserva como modelo instrumental resistente porque ele se tornará obstáculo à própria mudança. Esta é sem dúvida a questão candente hoje, em nosso pais, quando se coloca em causa o problema de sua democratização e se identifica no judiciário a recalcitrância que é social e teórica para a realização de mudanças sociais, conferindo à regulamentação jurídica das novas instituições o seu máximo potencial de realização das promessas constitucionais de reinvenção democrática.
Para Escrivão Filho, voltando ao texto de sua pesquisa, ao contrário da disposição de fomentar noções de autonomia e independência concebidas como princípios políticos próprios da função judicial diretamente referentes à garantia da sociedade contra a arbitrariedade do Estado, as alianças então construídas sobretudo durante a mediação constituinte (1988), ao invés de forjar requisitos de neutralização do sistema – reconhecimento ontológico da condição política da justiça – deixou que esse se visse permeado pela ideologia da neutralidade – enredando-o em injunções a serviço da reprodução das tradições de uma cultura institucional acostumada e orientada à manutenção do status quo.
Eis o tamanho do desafio que se coloca para a sociedade na qual se constitui a expressão de soberania popular que deve designar o perfil do Judiciário no desenho da institucionalidade em construção.
Ou ainda pior, tudo isso ainda com o que estamos assistindo agora em nosso próprio País, com a Constituição arguida contra a própria Constituição, para dela extrair-se, com o uso meramente formal de seus enunciados, como por ocasião do afastamento da Presidenta da República, numa aplicação de retórica mobilizadora de engajamentos (sociais, políticos, jurídicos), delirantes de seu necessário fundamento material; na seletividade de decisões envolvendo lideranças de oposição político-partidária; na tipificação criminal do protesto social; na judicialização da política; tudo levando à configuração desse processo como um golpe, sem armas, sem quartelada, mas uma ruptura com a base de legitimidade do sistema constitucional-jurídico, um atentado à democracia, uma forma de traduzir, sem nenhuma sutileza, o Estado de Exceção Democrática, que se vale da lei e da Constituição para esvaziá-las de suas melhores promessas (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Estado Democrático da Direita, in BUENO, Roberto, org., Democracia: da Crise à Ruptura. Jogos de armar: reflexões para a ação. São Paulo: Editora Max Limonad, 2017, pp. 407-424).
O livro, conforme esquematiza o próprio Caio Santiago, está organizado em três capítulos: “No primeiro apresentam-se as bases teóricas para o desenvolvimento de uma sociologia dos tribunais com foco na análise do seu papel em conflitos políticos. Essas bases residem sobretudo na obra de Boaventura de Sousa Santos. Além disso, discute-se a possibilidade de se incorporar aspectos do formalismo jurídico de Kelsen para análise dos tribunais. No segundo capítulo, desenvolve-se um quadro teórico sobre a atuação dos tribunais no Brasil no período pós-1988. Com base nos trabalhos de Santos e de autores brasileiros, com destaque para Armando Boito Jr. e André Singer, são discutidas as variáveis que influenciam a atuação dos tribunais nos conflitos políticos. As três primeiras variáveis (contexto internacional, grandes grupos econômicos brasileiros e movimentos sociais) referem-se mais diretamente ao contexto político, do qual se originam diversas pressões sobre os tribunais. As outras variáveis (desenho institucional, perfil dos magistrados e teorias do direito) têm mais relação com a reação dos tribunais a essas pressões. O terceiro capítulo tem um caráter empírico e está voltado para a análise do Supremo Tribunal Federal, órgão de cúpula do Judiciário brasileiro, à luz do quadro teórico desenvolvido no segundo capítulo. Para isso, são adotadas duas abordagens complementares: um panorama e um estudo de caso. A abordagem panorâmica é realizada por meio da análise de acórdãos de julgamentos emblemáticos do tribunal no período pós-1988. O estudo de caso aprofunda-se na atuação do STF no HC 126.292 e na Medida Cautelar das ADCs 43 e 44, e articula distintos métodos de pesquisa, como análise de processos judiciais, de documentos diversos e de entrevistas de profissionais do direito. As análises empíricas são precedidas de breves reflexões sobre o estudo de caso, os métodos de pesquisa adotados e seus potenciais e limites para análise dos tribunais”.
Para o Autor, “em que pese a existência de decisões que contribuíram para a inclusão social no período pós-1988, o STF forneceu consistentes contribuições para a agenda neoliberal nos julgamentos sobre taxa de juros, privatizações de empresas estatais, valor do salário mínimo e persecução criminal de agentes que integravam governos que promoviam a agenda neodesenvolvimentista. Enquanto nos anos 1990 prevaleceu um neoliberalismo com algum respeito a direitos individuais e à democracia, nos anos 2010 o tribunal facilitou a emergência de um neoliberalismo autoritário, que reduz direitos individuais e ataca a democracia. Nesse sentido, o aspecto conservador, de contribuição para o avanço do neoliberalismo no Brasil, foi o prevaleceu na atuação do STF até 2018”.
Claro que em sua abordagem, assim como nas de outros analistas a que fiz referência, em Caio Santiago a observação sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal focaliza com mais nitidez a sua vinculação com a agenda neoliberal. Ele cita nesse sentido, minha colega de universidade, Talita Rampin, a partir de sua tese de doutoramento, aliás, desenvolvida sob minha orientação.
Com efeito, em sua tese, Talita Rampin partindo de um mapa conceitual no qual, de modo completo, cabal, enquadra o acervo teórico e de ideias da Justiça, para considerar que enquanto fenômeno social, algo que se experimenta no mundo dos fatos, na realidade social, a justiça é multifacetada, plurívoca. Como ideia, a justiça pode expressar valores ou interesses derivados da correlação de forças de poder existentes em uma determinada sociedade. Enquanto teoria explicativa, a justiça pode auxiliar para a compreensão das relações de poder em um determinado contexto. Atenta ao enfoque proposto por Roberto Aguiar (O Que é Justiça. Uma Abordagem Dialética. São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1984), Rampin identifica em sua enunciação do que é justiça, a sua implicação com as práticas sociais, pois, como registra a autora, ele considera que não é possível desenvolvermos uma concepção dialética da história, do conhecimento e do homem e continuarmos a encarar a justiça como um princípio ou conjunto de princípios que pairam no absoluto de topos uranon, destacando, ainda de Aguiar, a alternativa que apresenta, vale dizer, tal como ela destaca no seu mapa das teorias, a da dialética social da justiça. Citando Roberto Aguiar (1984: XII), a dialética social da justiça significa tomar partido ao lado dos dominados, dos oprimidos, dos reprimidos e das minorias ou seja, passar pela mudança social, pela derrubada de poderes discricionários e pela transformação da economia em favor dos dominados.
Com Aguiar, a autora participa do entendimento de que não há consenso sobre o que é justiça, sendo, contemporaneamente, um tema que desafia conhecimento e posicionamento, política e epistemologicamente, vale dizer, as atenções correntes: “A justiça está em disputa: interessa ao mercado, que a incorpora como fator incidente sobre a segurança jurídica dos contratos e a livre circulação de mercadorias; interessa ao Estado de direito, que a incorpora como vetor de orientação política, materializada em garantias para a realização da cidadania, e como instrumento de resolução de conflitos e reconhecimento de direitos e interesses, tais como o acesso aos bens jurídicos considerados essenciais para a manutenção da vida; e interessa, entre outros, às ciências, que a incorporam como objeto de investigação e buscam explicar o fenômeno desde diferentes perspectivas, metodologias e áreas de conhecimento (RAMPIN, 2018: 65)”.
Mas o que Caio Santiago, extrai de Talita Rampin, ao trazê-la como fundamento para o seu trabalho, é a identificação de “outra agenda objeto de diversas influências internacionais”, muitas conferidas nos protocolos de financiamento dos Sistemas de Justiça pelo Banco Mundial, não apenas para os interesses de “estabilização dos negócios no período neodesenvolvimentista” mas para exercitar pressões sobre os tribunais brasileiros (cf. RAMPIN, Talita Tatiana Dias. Estudo sobre a reforma da justiça no Brasil e suas contribuições para uma análise geopolítica da justiça na América Latina. Tese de Doutorado em Direito, Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2018).
Em linhas gerais, diz Caio, “realizar uma análise sobre a condição da justiça na sociedade moderna é considerar, em alguma medida – quer dizer, sem olvidar as experiências de justiça que emergem do pluralismo jurídico – o modo como a mediação de valores normativos e institucionais orientados para a solução de conflitos e controle da relação entre Estado e sociedade, se expressa desde a imposição do monopólio estatal de aplicação do direito, através do poder judiciário”.
De fato, com o advento da modernidade, cogitar sobre a justiça é cogitar da sua expressão como mediação institucional estatal, nos termos da função judicial. E cogitar da sua função judicial como expressão da justiça, por seu turno, significa identificar que o exercício do poder de decidir quem está certo ou errado em face de um conflito jurídico, se constituí como um dos poderes politicamente delegados pela sociedade, ao Estado.
Desse modo, o exercício da função judicial como expressão da justiça estatal se apresenta, no desenho institucional do Estado Moderno, como o exercício de uma função eminentemente política, que por seu turno fundamenta o seu exercício de aplicação do direito sobre os estritos referenciais jurídico-normativos em perceptiva material e procedimental.
A par desta consideração, o que parece importante reconhecer, neste sentido, é que em primeira e última instância, o referencial de legitimidade do exercício da função judicial é encontrado na soberania popular. Sendo este o ponto que nos permite, finalmente, cogitar acerca de uma práxis de justiça fundada nos direitos humanos, uma vez que, à revelia da tradicional e conservadora cultura de hermetismo jurídico e judicial, parece ser possível e necessário trazer para o âmbito da concepção e do desenho político de justiça estatal, o referencial da participação e controle social.
E neste sentido, parece pertinente também compreender os contornos políticos assumidos pelo sistema de justiça brasileiro nas últimas décadas, mais precisamente no que diz respeito ao que a literatura convencionou denominar de fenômeno de expansão política da justiça, e que, por seu turno, confere ainda mais relevo ao debate sobre uma práxis democrática de controle e participação social na justiça, forjada e inspirada nos valores da educação em direitos humanos.
Desse modo, na nova ordem constitucional o poder judiciário se vê, assim como toda a institucionalidade estatal e a sociedade, diante de desafios históricos para a reconstrução da sua função social. E nesse processo, acicato pelas tensões da conjuntura, no Brasil especialmente, mais que nunca vale a advertência de J. J. Gomes Canotilho, no sentido da atenção ao Direito Constitucional, “com o olhar vigilante sobre as exigências do justo, com base em teorias de sociedade e de justiça”.
Não é diversa a percepção que traz em sua leitura da obra, o cientista político Armando Boito Jr, da Unicamp: “Este livro de Caio Santiago representa uma contribuição muito importante para a compreensão da atuação jurídica e também política do Supremo Tribunal Federal. Sem ceder a simplismos, Caio Santiago expõe para o leitor diferentes facetas, à primeira vista contraditórias, dessa atuação. Examinando cuidadosamente inúmeros processos e decisões da instância superior do Judiciário brasileiro, Caio Santiago mostra que se o STF tem recebido positivamente ações que favorecem a manutenção do modelo capitalista neoliberal no Brasil, a Corte tem também acolhido ações que contribuem para a modernização dos costumes na sociedade brasileira. No primeiro caso, a Corte favorece minorias econômicas cujos interesses se opõem aos da grande maioria da população; no segundo, favorece a democracia. Numa sociedade politicamente dividida como a brasileira, tal atuação do STF causa muita polêmica e pode desagradar a gregos e troianos.”
De notar, portanto, o tamanho do problema no qual nos situamos nesta complexa relação política entre o desenho institucional da justiça, a democracia e os direitos humanos no Brasil: se por um lado atingimos um estágio político e social no qual se vislumbra confiar ao Poder Judiciário a função de solucionar ou intermediar conflitos sociais de alta intensidade política, como a efetivação ou proteção contra a violação de direitos humanos, de outro lado é justamente essa hipótese que desperta o alerta e sérias preocupações acerca da legitimidade e capacidade institucional do Poder Judiciário para lidar com tamanho alargamento político das suas funções.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
O Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
O Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas: enunciados jurídicos. Organizadoras e organizadores Valéria Torres Amaral Burity, Antonio Escrivão Filho, Roberta Amanajás Monteiro, José Geraldo de Sousa Junior (Organizadores). Brasília: FIAN Brasil e O Direito Achado na Rua, 2021, 195 p.
O livro ora Lido para Você, cujo lançamento seguirá um programa de debates em breve anunciado, pode ser antecipado em seu contexto, seus pressupostos e intencionalidade, a partir do Sumário que o organiza e expõe a medida de sua pretensão política, agudamente interpelante. Em todo caso, no marco de 20 anos da FIAN Brasil, vem fortalecer o escopo de sua missão institucional: “Exigir Direitos, Alimentar a Vida”.
Abre com uma Apresentação, assinada pela FIAN (Organização pelo Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas) e pelo Coletivo (Grupo de Pesquisa) O Direito Achado na Rua, os Organizadores Valéria Burity, Antonio Escrivão Filho, Roberta Amanajás e eu próprio.
Segue-se o Prefácio, assinado por Carlos Marés e os Contextos: Da expansão judicial à decadência de um modelo de justiça, por Boaventura de Sousa Santos; Conceito e base legal do Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas(DHANA), por Valéria Burity; O Direito à Alimentação como um Direito Humano Coletivo dos Povos Indígenas, por Raquel Fajardo e Renata Vieira (colaboração); O Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas em tempos de expansão judicial, por Antonio Escrivão Filho, José Geraldo de Sousa Junior e Renata Vieira.
Créditos: PixaBay/ikon
Em sequência, com a designação de Enunciados Jurídicos para o Direito à Alimentação e à Nutrição Adequadas, os textos que constituem o núcleo da obra com assinaturas simultaneamente orgânica (representação de conceitos politicamente estabelecidos) e autoral (sentido interpretativo, em estilo e enunciativo de seus redatores): Terra e território como elementos centrais para a garantia do Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas de Povos Indígenas e Povos e Comunidades Tradicionais, UCL e FIAN – Olivier De Schutter, Valéria Burity e Felipe Bley Folly;O direito constitucional à retomada de terras indígenas originárias,APIB e FIAN – Eloy Terena e Roberta Amanajás; A agroecologia como meio para a promoção efetiva do Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas, FIAN e UFF – Valéria Burity e Gladstone Leonel;Os índios e o direito ao processo justo, CIMI – Rafael Modesto; A demarcação de terras indígenas como imperativo constitucional, CIMI – Rafael Modesto; A responsabilização sobre danos causados por agrotóxicos e a aplicação da teoria do risco integral (socio)ambiental; Terra de Direitos – Naiara Bittencourt e Eduarda Domingues; Do direito fundamental a uma educação quilombola de qualidade, nos quilombos urbanos e rurais, CONAQ e Terra de Direitos – Givânia Silva, Vercilene Francisco Dias e Camila Cecilina Martins; Dos desafios para efetivação do direito ao território quilombola,Terra de Direitos e CONAQ – Vercilene Francisco Dias; Militarização dos territórios quilombolas Rio dos Macacos, Marambaia e Alcântara, AATR e CONAQ – Joice Silva Bonfim, Carlos Eduardo Lemos Chaves e Vercilene Francisco Dias; A prioridade convencional e constitucional dos territórios tradicionais em face da sobreposição no Cadastro Ambiental Rural,GRAIN – Larissa Packer;O direito à posse: Acampamento Quilombo Campo Grande – Fazenda Ariadnópolis/MG,MST – Letícia Santos Souza e Diego Vedovatto; A luta Sem Terra, MST – Edgar Menezes Mota e Euzamara de Carvalho;A prioridade da preservação dos costumes e conhecimentos tradicionais em face das regras de vigilância sanitária, UFF – Gladstone Leonel e Victoria Gonçalves.
Na Apresentação, a justificativa da obra, construída em oficinas instaladas por ocasião do Seminário Internacional O Direito como Liberdade: 30 Anos de O Direito Achado na Rua, momento em que os autores e autoras submeteram a debate seus esquemas e conceitos enunciativos posteriormente completados para compor o miolo da obra.
Assim dissemos os organizadores: “Embora se vivencie, desde as eleições de 2018, um ambiente de rápido e intenso retrocesso no que tange ao reconhecimento e ao respeito aos direitos humanos em suas múltiplas dimensões, é possível observar e afirmar que no Brasil desenvolvem-se também, desde o advento da Constituição de 1988, agudas tendências de expansão e interferência judicial nas temáticas do Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas (DHANA), hoje talvez associadas ao ascenso do conservadorismo e ao retorno do neoliberalismo, entendido em perspectiva política e econômica.
Diante disso, a FIAN Brasil – Organização pelo Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas e O Direito Achado na Rua reuniram esforços para fomentar uma agenda de discussão sobre os impactos do sistema de justiça na garantia, proteção, efetivação ou violação do DHANA no Brasil e na América Latina, a partir das experiências e concepções de movimentos sociais, entidades de direitos humanos e advocacia popular, juristas e intelectuais, com vistas a produzir uma obra coletiva que debata, com base nessas experiências e concepções, enunciados jurídicos orientados conduzir a uma interpretação e aplicação do direito que sirva à proteção e à efetivação do Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas. Tais enunciados expressam, portanto, o olhar de advogados/as populares, movimentos sociais e pesquisadores/as sobre o tema, que buscam dizer como esse direito pode e deve ser garantido e, com isso, criar novos entendimentos que permitam sua realização”.
Ainda na perspectiva dessa construção, em metodologia ativa e participativa, os organizadores e animadores das oficinas e das reuniões virtuais que se seguiram para finalizar o conjunto autoral, cuidaram de “fomentar uma agenda de debates acerca do Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas em suas múltiplas e diferentes dimensões, sob o ponto de vista das suas experiências de (des)encontros com a via judicial e o sistema de justiça. Os enunciados e os textos que os explicam tratam dos limites e possibilidades de (i) proteção, garantia e reparação a direitos violados ou ameaçados; (ii) efetivação de direitos sonegados; (iii) implementação de políticas públicas e (iv) reconhecimento jurídico e institucional de modos de ser e viver relacionados ao Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas, com especial atenção para o modo como esses direitos – em suas dimensões de posse, territorialidades e agroecologia, considerando o protagonismo das mulheres, as perspectivas étnicas e raciais, além a incidência de tratados internacionais e o impacto da atuação de empresas – são efetivados ou negados, quando se deparam com a via judicial e as diferentes instituições do sistema de justiça”.
Ainda na Apresentação, que autêntica e pertinentemente expõe a obra, encontra-se a indicação de como o livro foi organizado, em suas duas seções.
“A Seção I, intitulada “Contextos”, apresenta três textos de cunho analítico e conceitual que projetam o pano de fundo do debate aqui proposto: o primeiro, de autoria do professor Boaventura de Sousa Santos, traz uma compreensão do cenário atual de expansão judicial no Brasil e se alinha à análise dos elementos que compõem a noção expandida de Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas, presente no texto de autoria de Valéria Burity, secretária-geral da FIAN Brasil. Ambos são complementados pelo texto de Raquel Yrigoyen Fajardocom a colaboração e a tradução para o português de Renata Vieira – sobre o direito à alimentação como um direito humano coletivo dos povos indígenas, concluindo a seção com uma abordagem que busca observar as expressões do Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas em tempos de expansão judicial no Brasil, de autoria de Antonio Escrivão Filho, José Geraldo de Sousa Junior e Renata Corrêa Vieira. A partir daí, a Seção II é intitulada (e dedicada à apresentação dos) “Enunciados Jurídicos para o Direito à Alimentação e à Nutrição Adequadas”. Primeiramente verificam-se três enunciados formulados e desenvolvidos no âmbito da FIAN Brasil: o primeiro, elaborado por Valéria Burity e Felipe Bley Folly, advogado coordenador do Programa de Justiciabilidade da FIAN Internacional, em parceria com Olivier De Schutter, ex-Relator Especial da ONU sobre o Direito à Alimentação, associa o DHANA ao direito ao território dos povos indígenas e povos e comunidades tradicionais; o segundo, escrito pelo advogado indígena Eloy Terena, membro da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), em parceria com Roberta Amanajás, então assessora de Direitos Humanos da FIAN Brasil, trata do direito indígena à retomada de suas terras frente à omissão estatal; finalmente, o terceiro enunciado, construído por Valéria Burity, em parceria com Gladstone Leonel Júnior, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), analisa a relação entre o DHANA e a agroecologia. O Conselho Indigenista Missionário (CIMI) contribuiu com dois enunciados formulados por seu advogado, Rafael Modesto. O primeiro trata do direito indígena ao acesso à justiça, fundamentado na vedação ao uso do regime tutelar, em face de sua não recepção pela Constituição de 1988. O texto refere-se, em especial, aos processos de demarcação de terras indígenas. O segundo enunciado refere-se à inaplicabilidade da discricionariedade e do marco temporal, em face do caráter de imperativo constitucional associado aos procedimentos de demarcação de terras indígenas. A Terra de Direitos em parceria com a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) contribuem com os três enunciados seguintes. O primeiro, formulado por Naiara Bittencourt e Eduarda Domingues, trata da inversão do ônus da prova em casos de intoxicação e contaminação por agrotóxicos, considerando a teoria do risco integral e a perspectiva da responsabilização objetiva e solidária dos agentes violadores por ação ou omissão. O segundo, de autoria de Givânia Silva, Vercilene Dias e Camila Martins, trata do direito e garantia a uma educação quilombola fundada respeito às formas culturais e memórias coletivas, de modo a contribuir para o reconhecimento, valorização e continuidade quilombola. O terceiro, de autoria de Vercilene Francisco Dias, trata do direito ao território coletivo, ancestral, uno e indivisível como fonte de subsistência e alimentação dos povos quilombolas. A Associação de Advogados/as de Trabalhadores/as Rurais no Estado da Bahia (AATR), representada por Joice Bonfim e Carlos Chaves, em parceria com Vercilene Dias, da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), apresentam um enunciado sobre o direito de livre acesso e utilização, pelas comunidades quilombolas, dos bens naturais resguardados em seus territórios, ante ofensivas militares que repreendem e desarticulam as redes comunitárias que caracterizam o modo de viver tradicional do povo quilombola. O décimo primeiro enunciado foi formulado por Larissa Packer, advogada responsável pelo escritório da GRAIN Brasil, e trata da vinculação do Cadastro Ambiental Rural (CAR) para povos e comunidades tradicionais aos tratados internacionais de direitos humanos e da prioridade do cadastro de povos e comunidades tradicionais, na hipótese de sobreposição de cadastros, com especial atenção à incidência do direito à consulta livre, prévia e informada no cadastramento dessas comunidades. Na sequência, temos dois enunciados formulados por advogadas e advogados do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). O primeiro, redigido por Letícia Santos Souza e Diego Vedovatto, trata da necessária associação da hermenêutica do direito agrário aos conflitos fundiários coletivos, em oposição à aplicação do Código Civil, cujos paradigmas são eminentemente privatistas. O segundo, formulado por Edgar Menezes Mota e Euzamara de Carvalho se refere ao caráter ampliado da luta pela terra no acesso a direitos econômicos, sociais e culturais diretamente associados ao acesso à terra. Finalmente, encerrando a obra, temos o enunciado redigido por Gladstone Leonel e Victoria Gonçalves, professor e mestranda da Universidade Federal Fluminense, que discute o direito à prioridade do respeito às práticas tradicionais, com caráter de normas consuetudinárias, na aplicação de normas de vigilância sanitária, determinando-se o ônus da prova, em caso de eventual proibição de circulação de produtos provenientes desses grupos, à Anvisa”.
Produzido poucos meses antes que a pandemia do Covid19 se abatesse sobre o mundo e explicitasse toda a limitação decorrente do modelos de produção da existência social e até dos sentidos civilizatórios que designavam nosso campo de visão, pondo a nu a incapacidade governante – com muito raras exceções, em relevo as exercitadas por mulheres enfim projetadas em novos modos de construir políticas – a construção da obra investiu-se também de uma interpelação à capacidade social orientada por outras dimensões da política de apresentar alternativas para um futuro possível, a travessia enfim, para um outro mundo possível, mais solidário, leal ao planeta e apto a concretizar o princípio esquecido da antevisão de direitos humanos plenamente realizáveis: o princípio da fraternidade.
Para essa travessia aponta o prefácio de Carlos Marés: “A alimentação adequada – a vida –,que não deveria ser mais do que umarealidade concretizada pela sociedade,está de variadas formas negada. Por essarazão, foi necessário erigir essa compreensão do Direito à Alimentação e àNutrição Adequadas, porque quando odireito é explicitado positivamente, háque o fazer cumprir. Se não se cumpre odireito, o Estado-juiz tem que determinar seu cumprimento. Mas como fazê-lo,se sua violação não se dá apenas pela negação do acesso aos alimentos, mas pelanegação do acesso à terra, à natureza, àcultura, à produção e à distribuição dealimentos? Quem garantirá o direito dosindígenas, dos quilombolas e de outrospovos e agricultores tradicionais à terra,suas formas de produção e suas relaçõescom a natureza? Quem coibirá o avançodo veneno sobre o alimento, sobre os povos e a natureza não humana? O Direitoà Alimentação e à Nutrição Adequadasestá posto. Como aplicá-lo?É disso que trata este livro, escrito apartir de uma análise teórica e de enunciados jurídicos formulados por quemvive, vê, analisa e estuda a realidade concreta e sabe que o Direito à Alimentaçãoe à Nutrição Adequadas relaciona-se intimamente com os direitos coletivos dospovos, da natureza e do chamado meioambiente. A teoria e a prática expostasneste livro revelam um Poder Judiciário criado e estruturado para tratar dedireitos individuais e que, cada vez quedepara com conflitos de ordem coletiva,hesita e teme ao desconsiderar os direitos dos proprietários. Um Judiciário que natureza e alimentaçãoprecisa ser mudado. Esta publicação também revela um Estado que flutua aos ventosdos interesses econômicos, mas sabe as obrigações para as quais foi criado e fica impotente frente às pressões do capital. Ele também precisa ser mudado.Cada página deste livro coteja o ser com o dever ser, fundados no Direito à Alimentação, tendo muito claro que isso significa desafiar os limites do capitalismo.Por essa razão, a obra situa-se na fronteira do possível e da utopia, que é, em últimainstância, a construção de um mundo novo possível”.
Assim, numa emergência composta de impulsos para o esvaziamento político dos espaços de protagonismo do social, na qual a exceção se avizinha do Jurídico que deixa de se constituir como arena de resistência ao processo de desdemocratização e de desconstitucionalização em curso no País e à banalização da vida pela ação de governança absolutamente incompetente para agir no enfrentamento à pandemia, nublando o horizonte civilizatório, a resposta cabal, contra essa incompetência delinquente (consta que o Tribunal Internacional Penal começa a examinar a denúncia de conduta genocida na omissão em face da saúde dos povos indígenas no contexto da pandemia), virá mesmo do social organizado, de onde algumas dessas ações da sociedade organizada e também de edilidades inscritas em compromisso com a cidadania.
Nas ações de produção social de atenção alimentar agendas, notadamente na conjuntura que antecede o golpe parlamentar-judicial-midiático que levou ao afastamento da Presidenta Dilma Rousseff e com ela, à derrocada do projeto popular-democrático que abriu ensejo à construção dessas agendas e logo, à instalação de uma governança a serviço do modelo capitalista de concentração da terra e do território, vê-se nitidamente que o tema da estrangeirização compunha essa agenda, em concreto no âmbito da formulação de políticas públicas, juntamente com a questão estratégica da preservação da água como um bem social, do direito agrário, da educação do campo, do cooperativismo, do fortalecimento da agricultura familiar, e da função social da terra e da propriedade, para valorizar a agroecologia para garantir a soberania alimentar brasileira e a humanização da produção agrícola com a substituição do modelo de produtividade apoiado no sistema de uso intensivo de agrotóxicos.
Certamente há outros aspectos que se inserem nessa agenda, de algum modo aceita pela governança para conferir itens de negociação, sobretudo com os movimentos sociais do campo. Basta ver os enunciados dos representantes dos principais movimentos – MST e também Via Campesina – enquanto denunciam a criminalização que sofrem e propõem “a valorização da vida no interior, com geração de emprego e oportunidade de formação para jovens com a implantação de milhares de pequenas agroindústrias na forma de cooperativas, capazes de dar emprego e estudo a milhões de assentados e participantes dos programas de reforma agrária e de acesso à terra e a territórios (quilombolas, ribeirinhos, indígenas), em confronto com os modelos promovidos pelo capitalismo financeiro e por suas grandes empresas assentadas na monocultura, onde cada fazenda se especializa em um produto, com uso intensivo de máquinas agrícolas e agrotóxicos”.
Assim, a inclusão nessas agendas de uma diretriz de apoio à produção de alimentação adequada se inscreve na plataforma formulada pelo Projeto O Direito Achado na Rua para, com a sua reflexão, contribuir criticamente para a qualificação teórica e política dos movimentos sociais do campo, corroborando o que dizia Plínio de Arruda Sampaio, no vol 3, da Série O Direito Achado na Rua (Introdução Crítica ao Direito Agrário”, Brasília/UnB/São Paulo/Imprensa Oficial de São Paulo, 2002, pág. 317: “o desenvolvimento de um pais está travado por uma questão agrária quando a trama das relações econômicas, sociais, culturais e políticas no meio rural produz uma dinâmica perversa que bloqueia tanto o esforço para aumentar a produtividade, como as tentativas de melhorar o nível de vida da população rural e sua participação ativa no processo político democrático”.
Cuida-se, nessa conjuntura, de resgatar das energias utópicas que calçaram o percurso de lutas emancipatórias, a força instituinte para vencer bloqueios que não só travam o país no âmbito da questão agrária, mas muito mais gravemente, no plano de disputa do próprio projeto de sociedade e de futuro à base do qual o país se constitui, num momento crítico no qual essa disputa se trava, aliás, de modo tão grave que está se internacionalizando em suas consequências nefastas.
O livro ora Lido para Você, nos seus fundamentos e nos seus enunciados, contribui para fortalecer as posições emancipatórias que se organizam nesse embate e nesse percurso.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
Mapa Territorial, Temático e Instrumental da Assessoria Jurídica e Advocacia Popular no Brasil
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Mapa Territorial, Temático e Instrumental da Assessoria Jurídica e Advocacia Popular no Brasil / José Antônio P. Gediel, Leandro Gorsdorf, Antonio Escrivão Filho, Hugo Belarmino, Marcos J. F. Oliveira Lima, Eduardo F. de Araújo, Yuri Campagnaro, Andréa Guimarães, João T. N. de Medeiros Filho, Tchenna Maso, Kamila B. A. Pessoa, Igor Benício, Virnélia Lopes, André Barreto – Curitiba/PR – Brasília/DF – João Pessoa/PB 2011. 90 p. ISBN: 978-85-62707-38-4
Completa dez anos o estudo paradigmático contido na obra tema deste Lido para Você. Ainda que novos dados certamente possam ser acrescentados para atualizar a obra, ela guarda, no seu arranjo original, total relevância e pertinência por sua exemplaridade metodológica e marcadores conceituais que a caracterizam por sua singularidade.
Essa é a mesma característica que está presente noutro texto emblemático, de 1998. Refiro-me a Ceilândia: Mapa da Cidadania. Em rede na defesa dos direitos humanos e na formação do novo profissional do direito, resultado também de pesquisa conduzida pelas sociólogas, ambas professoras de UnB, Maria Salete Kern Machado e Nair Heloisa Bicalho de Sousa, no âmbito do Projeto Núcleo de Prática Jurídica e Escritório de Direitos Humanos e Cidadania, coordenado por mim e pelo professor Alexandre Bernardino Costa, na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (http://estadodedireito.com.br/ceilandia-mapa-da-cidadania/).
Esse projeto foi desenvolvido em parceria com o Ministério da Justiça, pela antiga Secretaria de Estado dos Direitos Humanos (que deu origem ao Ministério dos Direitos Humanos), seguindo diretriz do Plano Nacional de Direitos Humanos. Note-se uma outra singularidade. É nesse projeto que se vai designar, antes que as diretrizes curriculares da área adotasse a categoria, a denominação Núcleo de Prática Jurídica, em substituição a expressão Escritório Modelo de Advocacia, como assim eram nomeados as estruturas de prática dos cursos de direito. O projeto, aliás, formulou uma inversão intencional a partir de seu título exatamente para sugerir uma nova significação, simultaneamente teórica e política: Núcleo de Prática e Escritório de Direitos Humanos e Cidadania.
Foto: Reprodução/Commons
Conforme o release da Terra de Direitos, uma das instituições que formularam o termo de referência da pesquisa, a prática da assessoria jurídica e advocacia popular, em diferentes contextos sociais e eixos de atuação, é tema de pesquisa realizada pela Terra de Direitos e Dignitatis Assessoria Técnica Popular. Ao longo de um ano, as duas entidades trabalharam na elaboração do “Mapa Territorial, Temático e Instrumental da Assessoria Jurídica e Advocacia Popular no Brasil”, apoiado e publicado recentemente pelo Observatório da Justiça Brasileira (OJB), vinculado ao Centro de Estudos Sociais da América Latina – CES/AL.
Voltando ao release, “o estudo trata a assessoria jurídica e advocacia popular como indicadores do grau de qualidade democrática do sistema de justiça, compreendendo o papel dessas organizações tradutoras e mediadoras das lutas políticas dos movimentos sociais com as instituições do poder público, em especial as da justiça. Presente na história institucional da Terra de Direitos e da Dignitatis, a Renap – Rede de Advogadas e Advogados Populares está entre as motivações para a realização da pesquisa. A Rede foi criada em 1995 com o propósito de fortalecer a comunicação e a interlocução entre os diversos advogados e advogadas que atuam junto aos movimentos sociais no Brasil. Desde a criação da Rede, a advocacia popular se expandiu acompanhando o movimento histórico próprio do desenvolvimento da luta por direitos no Brasil. Aliado à Renap, a pesquisa surge também no âmbito dos debates da JusDh – Articulação Justiça e Direitos Humanos, que vem atuando sobre uma agenda política voltada para a democratização da justiça.
Segundo levantamento feito pela pesquisa, o cenário da assessoria e advocacia popular no Brasil conta com 96 entidades, distribuídas por 117 pontos de atuação, considerando que há organizações com escritórios em mais de uma cidade. A maior concentração está nas regiões metropolitanas e nas capitais, o que reafirma a atuação da advocacia popular no trabalho de tradução entre o mundo dos movimentos sociais e as instituições públicas das três esferas de poder, agrupados principalmente nas capitais.
Já os escritórios localizados no interior estão principalmente nas regiões Norte. Estado com de alto índice de conflitos fundiários, o Pará se destaca pelo número de entidade espalhadas pelo seu território, voltadas especialmente aos temas agrários, como Terra e Território, Meio Ambiente e Trabalho Escravo. Dados da Comissão Pastoral da Terra, publicados no Relatório de Conflitos no Campo, mostram que houve registro de 89 conflitos por terra no estado em 2012, despontando como o mais violento da região e o 4º estado com o maior número de conflitos no país.
A pesquisa traz, ainda, outras duas abordagens: a identificação da variação temática da atuação das entidades de assessoria jurídica e advocacia popular, e o instrumental manejado em sua atuação. No âmbito do “mapa temático”, foram identificados 13 temas de direitos humanos usualmente defendidos pelas entidades pesquisadas. Segundo Antonio Escrivão Filho, co-coordenador da pesquisa pela Terra de Direitos, “um dado interessante foi a revelação de que há variações na distribuição e presença de temas, na medida das diferentes regiões do país. Neste sentido, destacaram-se, por exemplo, a elevada incidência do tema “LGBTT” no Nordeste, ao passo em que a temática de “Criança e Adolescente” se concentrou na região Sudeste”.
No que se refere à dimensão instrumental, a pesquisa buscou verificar quais as ferramentas e estratégias presentes no cotidiano de atuação das entidades, confirmando a análise que aponta para uma utilização combinada de instrumentais políticos e jurídicos na solução de demandas referentes à violação ou efetivação dos direitos humanos no Brasil”.
Nessa linha de especificação e de continuidade de uma experiência que de fato “revoluciona” o ensino jurídico e contribui para o processo de democratização da justiça (Justiça como categoria de reconhecimento e de emancipação e não como sistema funcional e burocrático), tal como propõe Boaventura de Sousa Santos – http://estadodedireito.com.br/para-uma-revolucao-democratica-da-justica/ – guardo grande expectativa do estudo que Adda Luisa de Melo Sousa, estudante de graduação na UnB, dirigente do Centro Acadêmico e do Projeto de Extensão Universitária Assessoria Jurídica Roberto Lyra Filho, está desenvolvendo no PIBIC – Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica): “Histórico, concepção e prática da Assessoria Jurídica Universitária Popular da UnB – Roberto Lyra Filho“.
Folgo em que a base teórica em que se quer apoiar Adda Luisa também esteja presente nos pressupostos conceituais que orientam a elaboração do Mapa, sobretudo quando os autores da pesquisa, constatam o reaparecimento dos “movimentos sociais no cenário político da reivindicação de direitos civis, políticos, econômicos e sociais como sujeitos coletivos de direitos”, capazes de, “Instituir novos modos de vida e de juridicidade, não apenas do ponto de vista semântico (como fonte de argumentos que ajudam a criar novas interpretações para velhas categorias), mas também do ponto de vista pragmático (como fonte de práticas que inspiram novas formas de operabilidade do fenômeno jurídico)”, valendo-se, nesse passo, de fontes que se organizam no Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua:
“Esses movimentos sociais, segundo Sousa Júnior, constituem-se como sujeitos coletivos a partir da elaboração do modo como vivem suas relações e identificam seus interesses. Para o autor, o que dá o caráter de sujeito coletivo a esses grupos “é a conjugação do processo de identidades coletivas, como forma do exercício de suas autonomias e a consciência de um projeto coletivo de mudança social a partir das próprias experiências” (1999, p. 257). Ainda de acordo com Sousa Júnior (1999, p. 258), a ação desses sujeitos coletivos na defesa de interesses reflete o entendimento por parte deles de negação de um Direito, daí a luta para conquistá-lo. É justamente essa luta por Direitos, fundada nas necessidades desses grupos, articuladores de vontades gerais, que realça o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, constituindo novos espaços sociais de participação política nos quais se enunciam novos Direitos e que torna os movimentos sociais como novos sujeitos de Direito, os sujeitos coletivos de Direito”.
Confira-se, sobre isso, notadamente as páginas 22 e 23 do texto. Ali se verá ainda, conforme os autores que “Pensar a democratização da justiça a partir dessa ótica exige um duplo movimento de observação, análise e reflexão: primeiro, em torno dos processos e práticas de lutas sociais concretas, em cujos horizontes se instituem os direitos humanos (nesse sentido, Sousa Júnior, 1999); segundo, a respeito das formas – de reconhecimento e abertura, ou de invisibilização e indiferença, ou ainda de escancarada repressão – como os órgãos do sistema estatal de justiça relacionam-se ou não com essas lutas”.
Além dos pressupostos teórico-conceituais, dos elementos vivos colhidos em entrevistas e questionários, a pesquisa alcança ainda o objetivo de oferecer instrumentalidade. Há uma importante bibliografia reunindo referências teórico-epistemológicas e relatórios de intervenção. Por sua vez, os mapas são muito ilustrativos e desenham o cenário do desenvolvimento da assessoria jurídica popular no Brasil. Nesse aspecto, designam os autores (p. 74):
“Ainda sobre a perspectiva instrumental verifica-se que a pesquisa revelou novos elementos empíricos aptos a contribuir para o debate sobre a judicialização dos conflitos sociais e dos direitos humanos. Neste sentido os dados permitiram realizar um importante debate sobre a medida em que a judicialização pode representar uma tendência voltada para o acesso à justiça ou, de modo contrário, um processo de criminalização da luta por direitos.
De um modo geral, portanto, a pesquisa aponta para a renovada importância jurídico política da assessoria jurídica e advocacia popular na atualidade. Afinal, a necessidade de transformar as condições objetivas de vida da população brasileira aponta para a centralidade dos movimentos sociais e populares na percepção e luta por direitos e acesso à justiça. Desta forma, o campo da assessoria jurídica e advocacia popular se consolida junto aos movimentos sociais num cenário de luta por direitos.
Resta, por fim, um firme agradecimento ao Observatório da Justiça Brasileira, e em especial a todos aos movimentos e organizações presentes na pesquisa, em especial àquelas que contribuíram com suas experiências e vivências respondendo às entrevistas. Espera-se que esta pesquisa configure, ao final, uma contribuição útil para a avaliação e construção do cenário da assessoria jurídica e advocacia popular no Brasil”.
É nesse sentido que tenho destacado o protagonismo emancipatório dos movimentos sociais, apoiados por assessorias jurídicas, que concebem o Direito como condição de constituir processos sociais legítimos de liberdade (LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito. São Paulo, Brasiliense. Coleção Primeiros Passos, 1ª ed. 1982), para afinal pensar concepção alargada de acesso à justiça e da justiça a que se tem acesso (cf. SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al. Por uma concepção alargada de Acesso à Justiça”. In: Revista Jurídica da Presidência da República, Brasília, v. 10, n. 90, ed. especial, pp. 01-14, abr./maio, 2008. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_90/Artigos/PDF/ JoseGeraldo_Rev90.PDF; também, et al. Observar a justiça: pressupostos para a criação de um observatório da justiça brasileira. Relatório de Pesquisa. Brasília: Ministério da Justiça, PNUD, 2009, aqui já citado).
Reside aí o princípio esperança, no sentido utópico de uma sociedade que se transforme por mediação da Justiça e da Democracia, contra toda forma de obscurantismo. ‘Alguém acredita que esse processo termina com Lula vivo?’, indaga o presidente do Clube Militar, em nota abusiva, boquirrota, em seguida a julgamento no Supremo Tribunal Federal que anula processo corrompido contra o ex-Presidente Lula. Uma declaração que confirma, além da instigação criminosa, a erosão institucional que caracteriza o Brasil hoje, em todos os âmbitos e com sua casta específica, trânsfuga da hierarquia, se aboleta no enorme banco de cargos civis com os quais passa a remunerar-se e a gerir com assombrosa incompetência (veja-se o descalabro do sistema de saúde no enfrentamento à pandemia). Desorientados até nos rudimentos da logística, nem sabem mais que foi Rondon, Pandiá Calógeras, marechal Bittencourt. Não saberiam entregar uma mensagem a Garcia. Garcia? Quem é Garcia?.
A leitura e o acesso à justiça levados a sério – http://estadodedireito.com.br/experiencias-compartilhadas-de-acesso-a-justica-reflexoes-teoricas-e-praticas/ -, tal como tratados nesse estudo ora Lido para Você, indicam ser possível resgatar o país e permitir que não se perca o rumo do futuro, o acumulado utópico das forças sociais organizadas na sociedade civil, de cuja mobilização derivam todas as conquistas democráticas e a defesa da Constituição, dos direitos e da cidadania, para quem faz a leitura atenta e correta da história social de nosso povo.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
DIREITOS HUMANOS E COVID-19. Grupos sociais vulnerabilizados e o contexto de pandemia. Organizadores: José Geraldo de Sousa Junior, Talita Tatiana Dias Rampin e Alberto Carvalho Amaral. Prefácio de Boaventura de Sousa Santos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2021,
A obra já disponível na Editora terá lançamento virtual no dia 19/3, a partir das 14.30 hs, pelo Canal Youtube de O Direito Achado na Rua (www.odireitoachadonarua.blogspot.com), com uma programação que contará com os organizadores e autores e que poderá ser acompanhada no endereço: https://www.youtube.com/watch?v=0j6-JRRBVFU .
Com Prefácio de Boaventura de Sousa Santos – O coronavírus, nosso contemporâneo, este livro foi uma demanda direta do editor Plácido Arraes, mobilizado para oferecer uma leitura panorâmica mas crítica que abrangesse o campo interpretativo da pandemia e a afetação de grupos vulnerabilizados sob a perspectiva dos direitos humanos.
Assim é que nos convocou os organizadores da obra, todos editados pela D’Plácido portanto, sintonizados com os fundamentos editoriais do selo que fundou e que já ostenta um expressivo catálogo de referência sobretudo nos temas dos direitos humanos e das teorias de justiça e de sociedade.
A resposta foi imediata, de autores e de autoras consagrados, nacionais e estrangeiros, e logo excedemos o volume razoável de textos, tanto que acumulamos material para um segundo volume, já programado pelo Editor para lançamento em março de 2022.
Além de nosso texto de organizadores, que abre o Sumário: A pandemia e o isolamento de direitos: uma análise a partir da perspectiva de O Direito Achado na Rua e se constitui, por seus fundamentos, fio condutor do rico material assim produzido, o livro se desdobra num arranjo muito sofisticado de temas que se prestaram a organizar as abordagens oferecidas pelos Autores e Autoras reunidos no livro: PARTE 1 – Aprender com o presente para disputar e construir o futuro; PARTE 2 – Direitos Humanos e Democracia: vida e subjetividade protagonista no contexto da pandemia; PARTE 3 – A Recusa da Vulnerabilização: ser sujeito e definir um futuro solidário; PARTE 4 – O Pós-Pandêmico e Direitos Humanos.
Compondo esse arco e distribuídos nas quatro partes do Sumário, o libro contêm os seguintes temas e respectivos Autores e Autoras:
El cinismo, el escepticismo y la tecnocracia frente a los derechos humanos en el contexto del Covid-19, de O Direito Achado na RuaDavid Sánchez Rubio; Não podemos lavar nossas mãos, de Manuel E. Gándara Carballido; A Covid-19 e os desafios para a sociologia, de Lourdes Maria Bandeira; Austeridade fiscal em tempos de coronavírus: reflexos da emenda constitucional do teto de gastos públicos no aumento das desigualdades educacionais no Brasil, de Claudiane Silva Carvalho e Alexandre Bernardino Costa; Direitos humanos e democracia: os atalhos da pandemia da COVID-19, de Antonio Henrique Graciano Suxberger; Democracia adoecida: crise do tempo da Constituição e as promessas de justiça ameaçadas no Brasil, de Mauro Almeida Noleto; A oportunidade e o abismo: deslocamentos criminológicos em tempos de pandemia, de José Carlos Moreira da Silva Filho; Diálogo remoto no processo legislativo durante a pandemia e os riscos para as garantias trabalhistas, de Eneida Vinhaes Bello Dultra; Tempo, trabalho e sociedade ocidental: a esperança de reflexões pandêmicas, de Catherine Coutinho; Emergências em saúde pública, Covid-19 e justiça reprodutiva: o que deveríamos aprender com a epidemia de Zika para proteger mulheres e meninas, de Luciana Brito e Gabriela Rondon; Acesso à justiça & Defensoria Pública na pandemia: entre os fatores de vulnerabilidade e os vulnerabilizados, de Edilson Santana Gonçalves Filho, Jorge Bheron Rocha e Maurilio Casas Maia; Emergencia penitenciaria y emergencia sanitaria. Propuestas para mitigar las violaciones a derechos humanos en las cárceles argentinas, de Gabriel I. Anitua; Do açoite ao calabouço, da casa de correção à superlotação carcerária: revisitando o sistema punitivo brasileiro em tempos de Covid-19, de Eduardo Xavier Lemos; O direito humano à moradia no contexto da Covid-19: as disputas em torno da suspensão das remoções, de Adriana Nogueira Vieira Lima, Alex Ferreira Magalhães, Luciana Bedeschi e Rosane Tierno; Quilombos e quilombismo: uma luta permanente, de Eduardo Fernandes de Araújo, Fernando Gallardo Vieira Prioste, Givânia Maria Silva e Vercilene Francisco Dias; Agência quilombola, racismo e covid-19: reoríentando a luta por direitos, de Rodrigo Portela Gomes; Vírus, telas e crianças: entrelaçamentos em época de pandemia, de Vanessa Ponte e Fabrício Neves; O impacto da pandemia para mulheres em situação de violência doméstica e familiar no Distrito Federal: observações a partir de um projeto de extensão universitária, de Ela Wiecko V. de Castilho, Sônia Maria Alves da Costa e Isabella Flávia Maia Coutinho; Pandemia, Legislativo brasileiro e o enfrentamento à violência doméstica e familiar contra as mulheres e meninas, de Fabiana Cristina Severi, Ana Carolina de Sá Juzo e Inara Flora Cipriano Firmino; A pandemica violação dos direitos humanos das mulheres e o contexto do Covid-19, de Lívia Gimenes Dias da Fonseca; Direitos Humanos LGBTI+: gênero e sexualidade em tempo de pandemia, de Luanna Marley; Reflexões sobre o futuro e sobre o direito no pós-Pandemia: uma perspectiva solidária aos povos indígenas, de José Geraldo de Sousa Junior e Renata Carolina Corrêa Vieira.
O texto dos organizadores, que abre o livro, está assim resumido: “a partir dos pressupostos teóricos de O Direito Achado na Rua e visualizando as mudanças drásticas de rotinas, vidas e relacionamentos, o texto procura situar o acesso à justiça em tempos de pandemia do Covid-19, problematizando uma situação de isolamento que é marcada pelas dessemelhanças estruturais, que fragiliza ainda mais os grupos socialmente. Compreender o acesso à justiça exige, com ainda maior força, visualizar para além da letra positivada e visualizar o não-dito, mas socialmente inegável, na busca de minorar a exclusão de direitos dos excluídos”.
E ainda que se tenha, em tempos de pandemia, a rua sensivelmente esvaziada, já que são preenchidas, com todos os riscos e adversidades inerentes, pelos necessitados, precarizados, obrigados a se expor para garantir uma condição mínima para si e sua família, ao lado dos impertinentes negativistas, negadores e afrontadores, que amealharam uma discussão política mais profunda em um triste episódio de desrespeito à razoabilidade, sem qualquer empatia para os demais e, pior, sem qualquer estima por sua própria situação e das pessoas próximas a si. Mas se a rua é esvaziada, de outro lado, esta rua indiscutivelmente irá adentrar nos lares e os locais, antes públicos, são publicizados por formas diversas, que acabam por ressignificar e reposicionar questões históricas e sentidos novos.
Mesmo nesse cenário, mostra-se pertinente a compreensão de que a “rua”, externa ou instrusivamente incluída, é ainda “o lugar simbólico do acontecimento, do protesto, do gesto paradigmático que, como divisa Marshal Berman, “transforma a multidão de solitários urbanos em povo e reivindica a rua da cidade para a vida humana”.
Nesta rua ressignificada, local propício para que sociabilidades reinventadas abram “a consciência de novos sujeitos para uma cultura de cidadania e de participações democráticas”, tomando como protagonismo dos sujeitos para romper a as situações que os alienem ou coisifiquem, por isso que não se diz que são vulneráveis, mas vulnerabilizados, podendo representar-se em projetos de sociedade com possibilidades reais de emancipação.
Trata-se de confrontar e de superar destempos de nossa coexistência, atentos ao que, no prefácio, vislumbra Boaventura de Sousa Santos, acerca das implicações da contemporaneidade do vírus.
“O coronavírus – ele diz –é nosso contemporâneo no sentido mais profundo do termo. Não o é apenas por ocorrer no mesmo tempo linear em que ocorrem as nossas vidas (simultaneidade). É nosso contemporâneo porque partilha connosco as contradições do nosso tempo, os passados que não passaram e os futuros que virão ou não. Isto não significa que viva o tempo presente do mesmo modo que nós. Há diferentes formas de ser contemporâneo. O camponês africano é contemporâneo do executivo do Banco Mundial que foi avaliar as condições de investimento internacional no seu território. Nos últimos 50 anos acumulou-se um repertório extremamente diverso de problematizações da noção de contemporaneidade. Muito diferentes entre si, todas essas noções têm vindo a questionar as conceções dominantes de progresso e de tempo linear herdadas do Iluminismo Europeu dos séculos XXVIII e XIX. Essas conceções buscavam reduzir a contemporaneidade ao que coincidia com o modo de pensar e de viver das classes dominantes europeias, tudo o resto sendo considerado resíduo ou lixo histórico.
Sermos contemporâneos do vírus significa que não podemos entender o que somos sem entender o vírus. O modo como o vírus emerge, se difunde, nos ameaça e condiciona as nossas vidas é bem fruto do mesmo tempo que nos faz ser o que somos. Implica ter presente que, se nos quisermos ver livres do vírus, teremos de abandonar parte do que mais nos seduz no modo como vivemos”.
É um alento dar-se conta que por toda parte começa-se a operar um movimento responsável para mudar o estado de coisas que produziu tamanho assombro nos sentidos de nossa existência. Noto com esperança que entre esses movimentos distinguidos ressoa muito convocatoriamente a voz do Papa Francisco, resoluta em vários pronunciamentos, exortações, encíclicas. Agora mesmo, enquanto escrevo, o Vaticano publica a sua Mensagem para o Dia Mundial da Paz 2021 a ser celebrado em1º de janeiro de 2021.
O Papa retoma o tema da pandemia para lembrar que “o ano de 2020 ficou marcado pela grande crise sanitária da Covid-19, que se transformou num fenómeno plurissectorial e global, agravando fortemente outras crises inter-relacionadas como a climática, alimentar, económica e migratória, e provocando grandes sofrimentos e incómodos. Penso, em primeiro lugar, naqueles que perderam um familiar ou uma pessoa querida, mas também em quem ficou sem trabalho. Lembro de modo especial os médicos, enfermeiras e enfermeiros, farmacêuticos, investigadores, voluntários, capelães e funcionários dos hospitais e centros de saúde, que se prodigalizaram – e continuam a fazê-lo – com grande fadiga e sacrifício, a ponto de alguns deles morrerem quando procuravam estar perto dos doentes a fim de aliviar os seus sofrimentos ou salvar-lhes a vida. Ao mesmo tempo que presto homenagem a estas pessoas, renovo o apelo aos responsáveis políticos e ao sector privado para que tomem as medidas adequadas a garantir o acesso às vacinas contra a Covid-19 e às tecnologias essenciais necessárias para dar assistência aos doentes e a todos aqueles que são mais pobres e mais frágeis. É doloroso constatar que, ao lado de numerosos testemunhos de caridade e solidariedade, infelizmente ganham novo impulso várias formas de nacionalismo, racismo, xenofobia e também guerras e conflitos que semeiam morte e destruição. Estes e outros acontecimentos, que marcaram o caminho da humanidade no ano de 2020, ensinam-nos a importância de cuidarmos uns dos outros e da criação a fim de se construir uma sociedade alicerçada em relações de fraternidade. Por isso, escolhi como tema desta mensagem «a cultura do cuidado como percurso de paz»; a cultura do cuidado para erradicar a cultura da indiferença, do descarte e do conflito, que hoje muitas vezes parece prevalecer”.
Na contramão desses esforços, no Brasil, em meio à desorientação funcional e errática de autoridades das quais um mínimo de coordenação devesse ser esperada, concedendo que não se atenham a intenções dolosas, constatar a mobilizada resposta social de defesa sanitária e de respeito à cidadania, tal como tratei aqui neste espaço (https://estadodedireito.com.br/28656-2/).
Algo que ultrapassa “todos os limites” ao impulso da “estupidez assassina” que implica o próprio “presidente diante da pandemia de coronavírus” ao ponto de uma “irresponsabilidade delinquente”, que sequer finge “capacidade e maturidade para liderar a nação de 212 milhões de habitantes num momento dramático da sua trajetória coletiva”. É o que diz em editorial o Jornal Folha de São Paulo (O que Pensa a Folha, 12/12/2020), ao apostrofar: “Chega de molecagens com a vacina!”.
Com mais de 180 mil pessoas que já morreram de Covid-19 no Brasil pela contagem dos estados, subestimada e com a epidemia voltando a sair do controle, o jornal considera “o presidente da República, sabotador de primeira hora das medidas sanitárias exigidas e principal responsável por esse conjunto de desgraças”, largando a população “abandonada pelo governo federal”, em “descaso homicida!”.
Por isso começam as mobilizações da Sociedade Civil, tal como a campanha Vacinas Já!, lançada nesse 10 de dezembro (dia universal dos direitos humanos), pela Comissão Justiça e Paz de São Paulo exatamente “pelo direito de todo ser humano à vacina gratuita contra o Covid-19”, chamando o País a se unir “para assegurar o direito humano à vida , garantido pelo art. 5o da Constituição Federal”, pois “a vida de todo ser humano importa”. Além de um amplo registro de muitas iniciativas, no nível local de governança (prefeituras), ou regional (Consórcio Nordeste) ou ainda de organizações sociais do campo (MST), indígenas e pastorais, oferecendo respostas à crise que não encontram correspondência no plano nacional.
Assim, é com o valioso respeito e consideração ao acumulado democrático de políticas públicas e sociais, sobretudo na área de saúde, que desde a Constituição de 1988 foi considerada direito de todos e dever do Estado, por meio de um sistema único de atenção universal mantida pelo orçamento público.
Ainda bem que se assiste nessa quadra de desconstrução de políticas, o engajamento para a defesa desse modelo de atenção, não só por meio de atuação de defesa do sistema público de saúde e de seu principal instrumento o SUS, como acontece agora com a Campanha O Brasil Precisa do SUS. Soa como uma canção ouvir Caetano Veloso entoar que no “Brasil tão desigual precisamos defender o SUS como nossa maior política pública social”.
O nosso editor Plácido Arraes, por isso mesmo, já solicitou aos Organizadores da obra um outro volume centrado exatamente na identificação dessas respostas, sua exemplaridade, sua extensão solidária, seu horizonte de possibilidades para novos sentidos sociais e para novos futuros possíveis.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Cidadania e Contratos Atípicos de Trabalho. Marcos Francisco Reimann. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 2002, 224 p.
Segue firme e com preparação bem consistente a iniciativa de convocação de um Fórum Social Mundial Temático Democracia e Sistema de Justiça, para confrontar sobretudo no Brasil, a voragem neoliberal desdemocratizante e destituinte de direitos, profundamente antipovo, hostil à cidadania, aos direitos humanos e aos trabalhadores.
Relativamente às motivações e às mobilizações que concorrem para a instalação dessa edição temática do FSM, o documento de convocação e a lista inicial das entidades e coletivos que se associaram para o promover, dei notícia aqui neste espaço (http://estadodedireito.com.br/para-uma-revolucao-democratica-da-justica/).
Entretanto, essa ordem de preocupações se encontra também numa ampla frente de posicionamentos políticos, funcionais e acadêmicos que se confrontam à direção da voragem neoliberal, que ganhou espaço no Brasil e mostra como logo a seguir, às movimentações com perfil de golpe de estado, as reformas política, trabalhista, previdenciária seguiram a lógica da hegemonia do capital em relação ao trabalho, agudizada, na conjuntura por uma opção econômica que naturaliza a morte (o desgoverno antipovo) mercadorizando a vida, neste mês de março que mal se in icia (4/3) chegando à cifra imoral de um morto a cada 45 segundos.
Recuperando um poema trágico (Anne Philipe, Spirale, Paris: Gallimard – coll. Folio, 1971, p. 45-48) diante do horror de uma estatística de mortalidade infantil no Brasil:
“’Au Brésil, trois cent mille enfants, chaque année meurent de faim’. Trois cent mille divisé…..
…Un enfant au Brésil meurt de faim
Toutes les deux minutes.
On peut les imaginer rassemblés sur la place de la Concorde ou sur les pistes d’Orly. Quelqu’un, pendant une année entière, sans dimanches ni jours fériés, va de l’um à l’autre et passe moins de deux minutes auprès de chacun d’eux. Le temps de leur fermer les yeux.
Ou encore,
Un homme qu’on appellerait ‘le plus grand criminel de l’histoire’, sans prende le temps de manger ni de dormir, fusille un enfant toutes les deux minutes pendant trois cent soixante-cinq jours…”
“Este homem”, agora, com a mortalidade desgovernada, “fusila” uma pessoa a cada 45 segundos.
Seja na destituição de direitos histórica e cruentamente conquistados, seja no desmantelamento das estruturas de proteção funcional e de orientação das políticas, seja na logística exposta com a extinção do Ministério do Trabalho, com suas atribuições transferidas ao Ministério da Economia, juntamente com a competência de segurança e saúde do trabalhador, temos que o maior efeito-demonstração dessa inversão hierárquica, que é o centro do debate justrabalhista hoje no Brasil, está na ampliação da autonomia negocial, não como reconhecimento da subjetividade jurídica do trabalhador e do seu dever de resistência mas, num ponto nevrálgico apontado por Helena Martins de Carvalho, em dissertação defendida na UnB: “A ampliação da autonomia negocial coletiva trazida pela Lei n.o 13.467/2017 deve ser interpretada sistematicamente, porquanto situada em um ordenamento jurídico coeso e dotado de princípios gerais consagrados pelo Constituinte originário a fim de balizar a atuação legislativa posterior, além daqueles previstos em normas internacionais das quais o Brasil é signatário, que configuram o resultado de processos históricos de amadurecimento social, inadmitindo retrocesso em matéria de proteção ao valor da dignidade no trabalho”.
Ainda avancei mais nesse tema no momento em que a convite da organização editorial, contribui para avaliar a fortuna crítica do artigo 6º da Constituição Federal e as ameaças em curso para fragiliza-lo, conforme a obra Comentários Críticos à Constituição da República Federativa do Brasil.Gabriela Barreto de Sá, Maíra Zapater,Salah H. Khaled Jr, Silvio Luiz de Almeida (Coordenadores); Brenno Tardelli (Organizador). São Paulo: Editora Jandaíra (Carta Capital), 2020 (cf. nesse espaço Lido para Você, meu comentário em http://estadodedireito.com.br/comentarios-criticos-a-constituicao-da-republica-federativa-do-brasil/).
Na linha de comentários celebratórios, contribui para o repertório de análises sobre os 30 anos, numa entrevista que realça a incompletude concretizadora do projeto ainda em construção da Constituição de 1988 e as tensões que ele vivencia, nesse contexto de retirada de direitos (http://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/7230-a-constituicao-e-ainda-projeto-de-construcao), numa publicação do IHU-Unisinos (IHU On-Line, Revista do Instituto Humanitas Unisinos, n. 519, ano XVIII, 9/4/2018, p. 67-71): o processo em curso teve início com o afastamento da presidenta da República eleita, se faz atentado à Democracia, à Constituição e, em última análise, aos trabalhadores, com a Constituição arguida contra a própria Constituição. Ou ainda com iniciativas de reformas constitucionais e legislativas, retirando direitos, transferindo ativos e reorientando o orçamento público para transferir o financiamento de políticas sociais para subsidiar a lucratividade financeira e industrial em nítido movimento de estrangeirização O que nos impõe postura de engajamento, resistir em face de ameaças e avançar sem temer enfrentamentos, sabendo que as energias utópicas acumuladas nessa experiência podem animar o protagonismo que mobilize, nas crises, as forças emancipatórias do social.
Para mim, os direitos inscritos no art. 6º da Constituição de 1988, resumem e traduzem o grande programa social formulado pelos Movimentos Sociais (Populares e Sindicais). Agora, sob ataque direto justificando.cartacapital.com.br/2016/09/12/direitos-sociais-garantidos-pela-constituicao-estao-sob-ataque-de-um-governo-ilegitimo-2/, tal como conferido pelo professor Pedro Pulzatto Peruzzo, abre-se a perspectiva de que o próprio Judiciário, que sobre esse dispositivo pouco tivesse diretamente constrangido as promessas nele contidas, ao contrário, como mostra o professor Peruzzo, houvesse inclusive iniciado uma hermenêutica de proibição de retrocesso social, sustentando haver obstáculo constitucional à frustração e ao seu inadimplemento pelo poder público, ou em perspectiva de controle constitucional de políticas públicas, tenha afastado a dirimente da reserva do possível que não se constitui justificativa para que o Poder Público possa se eximir das obrigações impostas pela Constituição, renda-se ao movimento neo-liberal de desconstituição desses direitos e do programa social nele investido.
Daí a questão que me acode nessas circunstâncias, fragilizados em suas lutas os seus principais protagonistas e desassistidos do estatal que devia ser o seu ponto de ancoragem, a de saber se estarão os operadores de direito à altura das expectativas civilizatórias que os desafiam, no plano constitucional e no plano convencional, assim como esteve em tempos difíceis o Supremo tribunal Federal, para lembrar com Victor Nunes Leal a necessidade que tem a jurisprudência, inclusive do STF, de andar nas ruas, para que a promessa do Direito não se torne vazia. Em voto célebre contra as interdições da ditadura ao exercício de greve, esse grande juiz afastou aplicação porque segundo definiu em voto “a lei não pode exigir do operário que ele seja herói ou soldado a serviço do patronato”.
Agora, repito a questão: estarão os operadores e os agentes políticos à altura das expectativas civilizatórias que os desafiam, no plano constitucional e no plano convencional? Nessa quadra dramática de interpelação a um paradigma civilizatório, serão alcançados nos seus misteres para, com a tempestade que desaba sobre o mundo, limpar “a maquilhagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso «eu» sempre preocupado com a própria imagem; (e deixar) a descoberto, uma vez mais, aquela (abençoada) pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos”, como exorta o Papa Francisco em sua HOMILIA Adoração do Santíssimo e Bêncão Urbi et Orbi, pronunciada em seu exemplar distanciamento social na grande praça de São Pedro, totalmente vazia, nesse 27 de março de 2020?
Será o Direito, realmente Direito se, como exortou Francisco, não for “capaz de resgatar, valorizar e mostrar como as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns (habitualmente esquecidas), que não aparecem nas manchetes dos jornais e revistas, nem nas grandes passarelas do último espetáculo, mas que hoje estão, sem dúvida, a escrever os acontecimentos decisivos da nossa história: médicos, enfermeiros e enfermeiras, trabalhadores dos supermercados, pessoal da limpeza, curadores, transportadores, forças policiais, voluntários, sacerdotes, religiosas e muitos – mas muitos – outros que compreenderam que ninguém se salva sozinho”?; e operar para realizar e ser instrumento por meio da eficácia horizontal dos direitos humanos nas relações justrabalhistas, conforme sustenta a autora da Dissertação, em sua conclusão, para buscar (p. 144) “para além da pacificação social, (a) concretização dos ideais de igualdade material, de democracia e de justiça social, com a consolidação do valor trabalho (digno) ancorado na centralidade da pessoa humana e sua dignidade”?
Uma resposta já se apresenta de imediato, procedente daquela mesma fonte bi-centenária que expressamente inspirou a constituição do campo dos direitos sociais e do trabalho e a formação da OIT, a Rerum Novarum. Em Carta aos Movimentos Sociais no domingo de Páscoa (12/4) exortou o Papa Francisco: “Talvez seja a hora de pensar em um salário universal que reconheça e dignifique as tarefas nobres e insubstituíveis que vocês realizam; capaz de garantir e tornar realidade esse slogan tão humano e cristão: nenhum trabalhador sem direitos. Também gostaria de convidá-los a pensar no “depois”, porque esta tempestade vai acabar e suas sérias consequências já estão sendo sentidas. Vocês não são uns improvisados, têm a cultura, a metodologia, mas principalmente a sabedoria que é amassada com o fermento de sentir a dor do outro como sua. Quero que pensemos no projeto de desenvolvimento humano integral que ansiamos, focado no protagonismo dos Povos em toda a sua diversidade e no acesso universal aos três T que vocês defendem: terra e comida, teto e trabalho”.
Base do humanismo do século XIX o trabalho se constituiu fonte de riqueza e condição fundamental de toda a vida humana. Engels, na esteira do pensamento de Marx chega a erigir o trabalho como princípio mesmo da humanização, indicando, na Dialética da Natureza (A Humanização do Macaco pelo Trabalho), ter o trabalho criado o próprio homem.
Na filosofia do agir humano, inscrita na ética do cristianismo, é a condição do trabalho que vai ganhar centralidade não somente para orientar a conduta de dignidade do membro da comunidade, tal como orienta Paulo (2 Tessalonicenses 2-10: “De fato, quando estávamos entre vocês, demos esta norma: quem não quer trabalhar, também não coma”); mas assim também como princípio político de constituição da comunidade, conforme ainda Paulo e expressamente Lucas (conf. Atos 34-35: “Entre eles ninguém passava necessidade, pois aqueles que possuíam terras ou casas as vendiam, traziam o dinheiro e o colocavam aos pós dos apóstolos; depois ele era distribuído a cada um conforme a sua necessidade”). Curioso que a máxima dessa ação tenha alcançado a pregação anarquista e comunista do século XIX e tenha sido transposta diretamente por Marx, para núcleo constitutivo de sua crítica ao Programa de Ghota (plataforma partidária socialista adotada pelo nascente Partido Social-Democrata da Alemanha (SPD) em seu congresso inicial em 1875): “De cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades.”.
Mesmo o liberalismo, na principiologia de seu fundamento ideológico originário, cuidou também de inserir o trabalho na categoria dos direitos humanos, movendo-o no percurso de sua ressignificação histórica para fazê-lo abrigar-se como direito fundamental inscrito na atual Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Esse é o ponto de partida do estudo de Marcos Francisco Reimann, nesse livro que traz o selo prestigioso de Sergio Antonio Fabros Editor: Cidadania e Contratos Atípicos de Trabalho. Desenvolvendo um tema que já fora objeto de sua atenção acadêmica, em estudo que publicou com a co-autoria de Márcia de Melo Maertins Kuyumjian (Direito Humano e Direito Social: para onde vai o trabalho?, in Revista de Informação Legislativa. Brasília: Senado Federal, abril-junho/2001 – ano 38 – nº 150), depois objeto de uma pesquisa acadêmica no Programa de Pós-Graduação em Política Social, do Departamento de Serviço Social, da Universidade de Brasília, o autor afirma a sua convicção de ser o trabalho “criação e referência de humanidade”, simbolizado numa “profusão de figuras” que se projetam por meio de diferentes modalidades que ganham conteúdo social preciso dentro de um contexto histórico e, nesse processo, “expressão real e humana”.
O estudo de Marcos Francisco Reimann contido em seu livro, se coloca pois, na mesma perspectiva preconizada em obra célebre de Roberto Lyra Filho também oferecida em sua singularidade pelo catálogo de Sergio Antonio Fabris Editor. Refiro-me ao influente texto de 1982, Direito do Capital e Direito do Trabalho, no qual o autor, entre outros achados preciosos para fixar a sua concepção de direitos verdadeiramente humanos, senão sob o pressuposto de extinção da exploração econômica e também do fim de todo tipo de opressão, sem o que a dignidade humana é impossível, alude à necessidade de “uma práxis voltada, segundo as aptidões de cada um, para a sociedade em que todo Direito seja Direito do Trabalho”.
Trata-se, aí radicava o seu programa de orientação dirigida aos juristas, de dar-se conta, tal como fizemos muitos de nós, de enfibrar nossas atitudes sociais e teóricas, especialmente, assim o formulamos em programa próprio (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; AGUIAR, Roberto A. R. de (orgs), Introdução Crítica ao Direito do Trabalho, Série O Direito Achado na Rua, v. 2, Curso de Extensão Universitária a Distância, Brasília: Universidade de Brasília, Editora UnB/CEAD, 1993), “nesse terreno em que o processo de conquistas graduais, pelo exercício de pressões emancipatórias mais problematiza a questão do direito, tornando necessário avaliar os aportes teóricos e as mediações políticas em condições de esclarecer as interconexões entre práxis social e prática intelectual dos vários operadores jurídicos”.
Marcos Reimann dá-se conta, como indica o título do seu livro, dessa intrincada combinação de elementos, dessa interconexão de fatores econômicos, sociais, políticos, culturais que conduzem à construção dos direitos humanos e da cidadania, cujo processo tem no trabalho uma centralidade essencial, na medida do protagonismo histórico dos trabalhadores que forjaram com suas lutas sociais, ao longo do século XIX e na primeira metade do século XX, os direitos sociais, levando-os à constitucionalização.
Mas, dá-se conta também e conduz sua análise com bem documentada fundamentação teórica, dos impactos da pós-modernidade e dos efeitos da globalização sobre o trabalho, retirando-o de seu contexto social de centralidade, a partir do que, precarizado, flexibilizado, para usar a linguagem neo-liberal, o trabalho, como diz Boaventura de Sousa Santos (Reinventar a Democracia, Cadernos Democráticos 4, Lisboa: Fundação Mário Soares/Gradiva Publicações, 1998), “apesar de dominar cada vez mais os valores das pessoas, está a desaparecer das referências éwticas que sustentam a autonomia e a auto-estima dos sujeitos”, ocasionando o que Laymert Garcia dos Santos denominou de “perda do humano inscrito no caráter do investimento competitivo” para caracterizar esse processo (Tecnologia, perda do humano e crise do sujeito de direito, in OLIVEIRA, Francisco de; PAOLI, Maria Célia. Os Sentidos da Democracia. Políticas do dissenso e hegemonia global. Coleção Zero à Esquerda. Petrópolis: FAPESP/Editora Vozes, 1999).
Com efeito, em primoroso estudo acerca da reinvenção da democracia (op. cit.), Boaventura de Sousa Santos identificou um conjunto de elementos de integração do que chamou “consenso democrático liberal” para acentuar, nesse conjunto, como marco de um contrato social fundador da modernidade, liderado pelo movimento operário, o primado do direito e dos tribunais para assegurar a concretização de suas expectativas de inclusão social numa sociedade solidária.
Em estudo que realizei, tendo essa análise como pano de fundo (Trabalho e Cidadania: Dignidade Humana e Projeto de Vida. Brasília: Revista do Tribunal Superior do Trabalho, vol. 67, nº 2, abril/junho de 2001), saliento o papel que o trabalho desempenhou nesse processo para instaurar vias de acesso à cidadania, indicando as circunstâncias históricas de extensão aos trabalhadores dos direitos civis e políticos ou a conquista de direitos novos concretizados pelo agir coletivo dos próprios trabalhadores, como o próprio direito do trabalho e os direitos econômicos e sociais.
Entretanto, tal como descreve Boaventura de Sousa Santos, num contexto crescente de globalização dos mercados, que permite criar riqueza sem criar empregos, a erosão consequente dos direitos, combinada com o aumento do desemprego estrutural, leva os trabalhadores à perda de seu estatuto de cidadania.
Trata-se, diz ele, de uma realidade na qual se aprofunda uma “lógica de exclusão” gerando precariedade da vida, quando então “o trabalho deixa cada vez mais de sustentar a cidadania e, vice-versa, esta deixa cada vez mais de sustentar o trabalho: ao perder o seu estatuto político de produto e produtor da cidadania, o trabalho reduz-se à penosidade da existência, quer quando existe, quer quando falta”.
O livro de Marcos Francisco Reimann, sem perder de vista esse quadro e forte numa orientação que procura colar-se ao esforço de “redescoberta democrática do trabalho como condição de reconstrução da economia como forma de sociabilidade democrática” (SANTOS, Boaventura de Sousa op. cit.), analisa os contratos atípicos ou alternativos recentemente introduzidos ou objeto de alteração na legislação brasileira, com o álibi de reduzir o desemprego mediante mudanças no ordenamento trabalhista, e os impactos dessas novas modalidades contratuais na construção da cidadania.
Em resumo sugerido pelo próprio autor, na primeira parte da obra são analisados, em primeiro lugar, as razões do capital, e suas artimanhas de reestruturação produtiva, trazendo impacto no processo legislativo de mudanças; em segundo lugar, analisa-se o neoliberalismo como a ideologia que pretende atribuir racionalidade ao capital e às suas relações com os direitos sociais, especialmente os trabalhistas. Na sequência, examina a flexibilização jurídica e suas relações com a ineficácia econômica da legislação, considerando a profundidade das mudanças que chegam a atingir os princípios do Direito do Trabalho.
Na segunda parte de seu livro, o autor tendo como referência a concepção derivada da construção de uma cidadania regulada, como razão de uma política social, juntamente com a ideia de opacidade da legislação como fator de ineficácia social da regulação jurídica e as características das relações entre o contrato de trabalho e o contrato social, identifica as dificuldades e os limites efetivos, de realização das promessas legislativas, nos planos social e econômico.
Na terceira parte de seu texto o autor analisa, em suas singularidades, as diversas modalidades de contratos de trabalho atípicos ou alternativas introduzidos ou modificados na legislação, nos primeiros cinco anos do governo Fernando Henrique Cardoso, marco da clivagem neoliberal atualmente base da governança e da gestão da economia.
Por isso que o corte empírico temporal não data a análise, uma vez que o autor opera com recursos teóricos e metodológicos que lhe permitem captar o significado da “profusão de figuras no trabalho”, no processo de “encaixe e de desencaixe” das relações sociais, para aludir a duas categorias analíticas utilizadas por Anthony Giddens e que ele adota. Assim é, que, não inserido no horizonte de análise do texto, porque a ele posterior, o projeto que pretende colocar os acordos e convenções coletivas num patamar de validade superior ao da legislação, encontra na argumentação do livro uma tomada de posição que repudia essa possibilidade aberta de renúncia a direitos em decorrência de negociações fragilizadas pela subordinação da autonomia sindical e política a fatores econômicos e antecipa a preparação de um repertório de medidas deverá produzir em sequência ao avanço de modelo de acumulação.
Com efeito, Cidadania e Contratos Atípicos de Trabalho orienta-se em sentido inverso ao movimento que retira as referências sociais do Direito do Trabalho. Para o autor, pressentindo essa direção neoliberal desconstituinte, cabe ao Estado assumir a garantia dos direitos mínimos constitucionais para todos os trabalhadores. O autor faz, pois, coro à melhor direção de expectativas que decorrem das condições que confiam na redescoberta democrática do trabalho quando se tem como horizonte o sentido globalizado de sua inserção na luta pelos direitos humanos, e das reservas inclusive utópicas, para armar resistências democratizantes e de salvaguarda da dignidade humana do trabalho. De fato, como acentua Boaventura de Sousa Santos, contra a voragem neoliberal que se arma no horizonte do tempo, é necessário aí “desenhar um novo e mais arrojado arco de solidariedade adequado às novas condições de exclusão social e às formas de opressão existentes nas relações na produção, extravasando assim o âmbito convencional das reinvindicações sindicais, ou seja, nas relações de produção” (op. cit.).
No momento em que escrevo esta Coluna, os diferentes Grupos Operacionais que organizam o Forum discutem suas atribuições, entre elas a de configurar os eixos de orientação da dinâmica reflexiva e participativa do encontro, um dos eixos ainda em processo de discussão que quer acolher o debate urgente e necessário sobre Democracia, Desigualdades, Capitalismo e Sistema de Justiça.
Isso porque, quando se discute “acesso a direitos e de busca de eliminação das desigualdades, essenciais à democracia, não raro, a discussão se intersecciona com o tema do capitalismo, da dissolução das relações sociais, com os modelos econômicos adotados em determinados momentos históricos, na relevância de um sistema público de regulação e de proteção social, temas que se imbricam e que têm dimensão material que se traduz na repartição e investimento da riqueza produzida numa sociedade, assim como dos recursos naturais que sustentam o modelo de desenvolvimento entendido como equilibrado do ponto de vista social e ambiental e na regulação pública de proteção. A intersecção entre capitalismo, modelos econômicos implementados é vital para a própria Democracia que é sequestrada pelos modelos que afirmam e aprofundam as desigualdades sociais e interagem com a ideia de Justiça e com os sistemas de Justiça existentes”.
Cito de memória um conjunto de enunciados que os organizadores trouxeram para a discussão, ainda não finalizada, mas que em tudo coincide com as preocupações que por toda a parte, advertem para o movimento anti-humano que o neoliberalismo promove hoje na sua exacerbação capitalista, e que vem alcançando seu máximo implemento de desumanização no contexto atual da pandemia do coronavírus que expôs o caráter perverso, genocida e tenebroso da opção política, animada por governos, no sentido do primado da economia em detrimento da vida e da própria sobrevivência do planeta.
Neste eixo pretende-se discutir, entre outros, temas: as desigualdades sociais aprofundadas pela ação disruptiva do capitalismo e formas de limites e ou de superação; as desigualdades sociais e seus impactos na democracia; o papel de uma regulação pública que a todos busque incorporar; o papel e a atuação do Poder Judiciário e seus limites na colocação de freios à sua ação, e ao papel do Judiciário diante das reformas liberalizantes, inclusive, da trabalhista e da previdenciária; e, ainda, mais especificamente, em relação: a) à reconfiguração dos mundos do trabalho e das formas de ação coletiva; b) à cidade; c) à segurança pública; d) às desigualdades sociais; e) à defesa do direito de propriedade e à sua função social; f) ao uso e ocupação do solo; g) ao manejo dos recursos naturais; h) ao sistema de saúde e i) aos atos de corrupção.
As interpelações que são levadas ao Forum Social Mundial Temático de 2022, seguem a mesma linha de confrontação ao capitalismo desumanizador. E coincidem na sua ênfase com as posições mais solidárias que querem trazer para o centro da política o humano como dignidade contra a coisificação do econômico sobretudo na sua forma capitalista que, como diz o Papa Francisco, opera uma “economia que mata”.
“A justa distribuição dos frutos da terra e do trabalho humano não é mera filantropia. É um dever moral. Para os cristãos, o encargo é ainda mais forte: é um mandamento. Trata-se de devolver aos pobres e às pessoas o que lhes pertence. O destino universal dos bens não é um adorno retórico da doutrina social da Igreja. É uma realidade anterior à propriedade privada. A propriedade, sobretudo quando afeta os recursos naturais, deve estar sempre em função das necessidades das pessoas. E estas necessidades não se limitam ao consumo. Não basta deixar cair algumas gotas, quando os pobres agitam este copo que, por si só, nunca derrama. Os planos de assistência que acodem a certas emergências deveriam ser pensados apenas como respostas transitórias. Nunca poderão substituir a verdadeira inclusão: a inclusão que dá o trabalho digno, livre, criativo, participativo e solidário”, afirmou o Papa Francisco, num discurso considerado por lideranças dos movimentos populares como ‘irretocável“, proferido no Encontro Mundial dos Movimentos Populares, em Santa Cruz de la Sierra, no dia 09-07-2015 (http://www.ihu.unisinos.br/169-noticias/noticias-2015/544477-qesta-economia-mataq-afirma-papa-francisco).
O livro de Marcos Franscisco Reimann foi e ainda é uma leitura de advertência num ambiente conformado e que procura recuperar o horizonte solidário do direito do trabalho como alternativa civilizacional. A concertação social num palco globalizado não é um destino. É um campo de discussão e dele nada que diga respeito à vida dos trabalhadores, sua dignidade e seu projeto pode ser descartado, pelo menos, sem luta.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.5
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Italo Calvino. Por Que Ler os Clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1ª edição, 1993, 279 p.
“Os clássicos são aqueles livros dos quais, em geral, se ouve dizer: ‘Estou relendo…’ e nunca ‘Estou lendo…”. Este é o ponto de partida dessa obra insuprimível na formação de qualquer intelectual, acadêmico ou mesmo diletante.
Aliás, é com essa definição, a primeira dentre algumas propostas, que o autor Ítalo Calvino, abre o livro. Com efeito, nessa abertura ele oferece e discute 14 diversas propostas de definição, para trabalhar a questão que é a matéria do livro Por que ler os clássicos.
Seguem-se: 2. Dizem-se clássicos aqueles livros que constituem uma riqueza para quem os tenha lido e amado; mas constituem uma riqueza não menor para quem se reserva a sorte de lê-los pela primeira vez nas melhores condições para apreciá-los; 3. Os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual; 4. Toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a primeira; 5. Toda primeira leitura de um clássico é na realidade uma releitura; 6 Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer; 7. Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes); 8. Um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente as repele para longe; 9. Os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais revelam novos, inesperados, inéditos; 10. Chama-se de clássico um livro que se configura como equivalente do universo, à semelhança dos antigos talismãs; 11. O ‘seu’ clássico é aquele que não pode ser-lhe indiferente e que serve para definir a você próprio em relação e talvez em contraste com ele; 12. Um clássico é um livro que vem antes de outros clássicos; mas quem leu antes os outros e depois lê aquele, reconhece logo o seu lugar na genealogia; 13. É clássico aquilo que tende a relegar as atualidades à posição de barulho de fundo, mas ao mesmo tempo não pode prescindir desse barulho de fundo; 14. É clássico aquilo que persiste como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível.
Cada um de nós já terá, certamente, experimentado em nosso percurso cultural formativo, um ou outro sentimento ou apelo que essas definições sugeridas por Calvino a propósito dos clássicos, nos provocam. Trata-se, em certa medida, daquele atributo, designado por Werner Jaeger, em sua monumental Paidéia – a formação do homem grego, como cultura, enquanto totalidade das manifestações e formas de vida que caracterizam um povo, em última análise, um humanismo pois alude à formação do homem e da sua vida inteira, em Jaeger, algo que brota da consideração não do homem genérico na sua validade universal e normativa, mas da intersubjetivação do individual ligando-se a sua projeção civilizatória como ideia.
Talvez seja exatamente no trânsito desse percurso que tome forma a substância das metáforas. Algo assim como transpor em mergulhos no tempo o Rio Meandro, descrito nos clássicos porque topônimo de sua incrível sinuosidade e logo projetando-se como linguagem nos meandros da existência. Ou para desentranhar do emaranhado das ideologias jurídicas as armadilhas das reduções juspositivistas e jusnaturalistas, sendo Hegel para divisar as sutilezas da ação trágica em Antígona (Estética, Fenomenologia do Espírito) que depois permitiriam a Roberto Lyra Filho revelar na infradialetização tridimensional de Miguel Reale a sua verdadeira face de Creonte (LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito. São Paulo: Editora Brasiliense. Coleção Primeiros Passos, 1ª edição, 1982). Ou, com a epistemologia transgressora de Boaventura de Sousa Santos, poder emergir com Alice (SOUSA SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela Mão de Alice. O social e o político na pós-modernidade. Porto: Edições Afrontamento, 2ª edição, 1994), que não mais se deixasse conduzir por meio de representações simbólicas de um mundo contemplado por Alice de mãos dadas com Kafka (APOSTOVA, Bistra Stefanova. Amnésia in juris. Revista do SAJU. Serviço de Assessoria Jurídica Universitária vol.2, nº 1. Porto Alegre: UFRGS, 1999, p. 89-96).
Junto aqui Jaeger e Calvino, porque em ambos há esse apelo à educação clássica, no sentido do pensar e do agir humanos na modelagem do mundo. Jaeger, lembrando Fênix, educador de Aquiles, assinala a lição dada ao herói-protótipo dos gregos, sobre a importância de educar-se para proferir palavras e realizar ações.
Calvino tem me acompanhado, com o apoio de seus textos brilhantes, em várias passagens distribuídas nesta Coluna Lido para Você. Conforme os temas, já me vali de seus As cidades invisíveis, Os amores difíceis. Suas Seis propostas para o próximo milênio, também conhecidas como lições americanas, conjunto do que deveriam ser, conforme o projeto, seis palestras que seriam proferidas na Universidade de Harvard em 1985 (um programa de visitas de grandes intelectuais. Em 1993, o visitante foi Umberto Eco, do que resultou a obra Seis passeios pelo bosque da ficção) mas o autor faleceu repentinamente antes de escrever a sexta conferência, sobre a consistência, e antes de proferir as palestras, que foram publicadas postumamente, em 1988, enfocando temas paradigmáticos para o milênio (2000), e que me têm sido referências para me situar no tempo, a leveza, a rapidez, a exatidão, a visibilidade e a multiplicidade.
Com ele, sobretudo neste Por que ler os clássicos, tenho constatado essa continuidade cultural que quase se aproxima do que, na filosofia com Platão e os neoplatônicos, pode-se compreender o que Jung definiu como arquétipo, conjuntos de imagens psicoides primordiais que dão sentido aos complexos mentais e às histórias passadas entre gerações, formando o conhecimento e o imaginário do inconsciente coletivo; agem como estruturas inatas, imateriais, com que os fenômenos psíquicos tendem a se moldar, e servem de matriz para a expressão e desenvolvimento da psique (https://pt.wikipedia.org/wiki/Arqu%C3%A9tipo).
Sempre me impressionou, na minha vivência nordestina, encontrar nas grandes feiras – Caruaru, Caicó – as coleções de cordéis, sobretudo nas composições de Leandro Gomes de Barros dos dois “épicos” da Literatura de Cordel – Batalha de Oliveiros com Ferrabrás e Prisão de Oliveiros e de João Melchíades Ferreira com “Roldão no Leão de Ouro” e Antonio Eugênio da Silva com a “História do Principe Roldão”. Não fora a explicação de Câmara Cascudo (que também já esteve nessa coluna Lido para Você), e eu jamais compreenderia a presença do rei Carlos Magno e seus cavaleiros, os doze pares de França liderados por seu sobrinho Rolando, para além da edição de 1516, do poema Orlando Furioso escrito por Ludovico Ariosto, o maior poeta italiano do romance de cavalaria. Sem falar no Castelo de Engady, que visitei em Caicó, no Rio Grande do Norte, construído pelo Monsenhor Antenor Salvino de Araújo, para ser um local de recolhimento, estudos, meditação, tal como a fonte de Engady, na Palestina foi nos tempos bíblicos o local de sossego e de proteção de Davi, perseguido pelo rei Saul.
Em todo caso, aqui pertinho de Brasília, na cidade de Pirinópolis, Goiás, os pares de Carlos Magno continuam a enfrentar, agora os mouros, nas Cavalhadas de Pirenópolis após a Festa do Divino Espírito Santo, com seus exércitos contendo doze cavaleiros cada, em batalhas acirradas durante três dias.
Em Calvino trata-se, afinal, de considerar que os clássicos servem para entender quem somos e aonde chegamos… devem ser lidos (não) porque ‘servem’ para qualquer coisa, mas porque vale à pena: citando Cioran: enquanto era preparada a cicuta, Sócrates estava aprendendo uma ária com a flauta. ‘Para que lhe servirá?’, perguntaram-lhe. ‘Para aprender esta ária antes de morrer’. E também para descobrir esse novelo de Ariadne que nos liga entre nós, os humanos.
Na coluna (http://estadodedireito.com.br/comunicacao-e-musica/), citando expressamente Por que ler os clássicos, anoto que Vicente Celestino certamente, sem ter lido Howard Fast (Espártaco. São Paulo, Abril Cultural, 1976), jamais suspeitou que o mote de sua canção (Coração Materno) já circulava nas lendas de uma antiguidade europeia, anterior a era cristã. Na narrativa romanceada da grande guerra servil, 71 a. C., o autor surpreende personagens em volta a uma fogueira, recuperando histórias de outros tempos, como a do rapaz que em prova de amor oferece um presente muito simples: “o coração de sua mãe. E ele assim o fez. Apanhou um punhal, enfiou-o no peito da mãe e arrancou-lhe o coração. Depois, empolgado com o horror e a excitação do que fizera, correu através da floresta para onde morava sua bela amada. E, enquanto corria, prendeu o pé numa raiz e, caindo, deixou cair o coração que trazia nas mãos. Ao abaixar-se para apanhar o precioso coração, que lhe compraria o amor de uma mulher, ouviu-o dizer: ‘Meu filho, meu filho, tu te machucaste com a queda?’”.(p. 251).
Foto: PixaBay
Em Por que ler os clássicos Calvino reúne ensaios e artigos sobre os clássicos; escritores, poetas, cientistas que compõem a sua biblioteca destinada, se voltarmos a Jaeger, a traduzir o esforço próprio para abranger a totalidade do humano, ou ao menos configurá-lo numa espécie de patafísica, que não se reduza a uma ciência das soluções imaginárias (p. 264).
Gosto de reter na mente essa tessitura imaginária haurida dos clássicos para esse esforço abrangente. Gosto de me perguntar e de buscar seguir os fios imaginados e às vezes reinventados dessa tessitura. Renová-los, ver transmutar-se o homem da formação descrita por Jaeger, na cultura grega resgatado no feminino que se emancipa nas surpresas dos arquétipos de algum modo deslocalizados, atemporais, insurgentes, ainda assim universais, em direção ao cósmico, além do humano (Sirius Alfa. A Lei da Atração – Mistérios e Explicação da Evolução. Amazon:Formato eBook Kindle, 2021).
Assim é que encontro Hua Mulan, a jovem que para honrar o pai e a família se disfarça de guerreiro, se une a um exército exclusivamente masculino conforme descrito no famoso poema narrativo chinês A Balada de Mulan. A obra foi composta no século VII, durante a maior parte do qual a dinastia Tang (618-907) governou a China. A coleção de cantos à qual pertencia Hua Mulan originalmente se perdeu, no entanto, preserva-se hoje uma versão posterior, incluída em uma antologia de poemas líricos e baladas compilada por Guo Maoqian no século XI ou XII.
Lenda ou tradição composta de fragmentos de eventos com alguma historicidade, o certo é que há narrativas, romances, filmes (a Disney lançou recentemente uma versão dessa memória) e a mais referenciada A balada de Hua Mulan cuja cópia mais antiga está no Music Bureau Collection, antologia de poemas e canções compiladas por Guo Maoqian entre os séculos XI e XII que conserva a guerreira Hua Mulan viva no imaginário de seu povo.
A versão mais antiga da “Balada de Mulan” consiste em 31 dísticos, compostos principalmente de frases com cinco caracteres. Existem, entretanto, muitas outras versões. Abaixo, confira a tradução de uma delas, disponibilizada pelo site Epoch Times:
Suspiro após suspiro,
Mulan tece diante de sua porta.
Ninguém pode ouvir o som do tear,
apenas os suspiros da pobre menina.
Pergunte-a quem está em seu coração,
ou quem está em sua mente.
Ninguém está em seu coração,
e ninguém está em sua mente.
Ela viu os rascunhos militares ontem à noite,
Khan está convocando muitos soldados.
Uma dúzia de listas rascunhadas,
cada uma com o nome de seu pai.
O pai não tem um filho crescido,
Mulan não tem irmão mais velho.
Ela decide adquirir um cavalo e sela,
e alistar-se em lugar de seu pai.
No mercado leste, ela compra um cavalo,
no mercado oeste, uma sela.
No mercado norte, ela compra um freio,
e, no mercado sul, um longo chicote.
À alvorada, ela se despede de seu pai e de sua mãe,
ao anoitecer, ela acampa às margens do Rio Amarelo.
Ela não podia ouvir os pais chamando pela filha,
apenas as águas do rio fluindo.
À alvorada, ela deixa o Rio Amarelo,
ao anoitecer, ela chega à Montanha Negra.
Ela não podia ouvir os pais chamando pela filha,
apenas os cavalos selvagens na vizinhança do Monte Yan.
Viajando dez mil milhas ao encontro da batalha,
passando montanhas e serras como se voando.
…
Ventos amargos carregam os sons do sino do vigia,
uma luz pálida brilha em sua armadura de ferro.
Generais morreram em uma centena de batalhas,
os soldados mais fortes retornaram após dez anos.
Eles retornaram para encontrar o imperador,
o Filho do Céu sentado no palácio imperial.
Ele recordou seus méritos em doze pergaminhos,
e concedeu centenas de milhares de recompensas.
O Khan pergunta a Mulan o que ela deseja,
um título de grande ministro não tem utilidade para Mulan.
Ela pede uma montaria rápida para levá-la a milhares de milhas,
e trazer a filha de volta para casa.
…
Quando pai e mãe ouvem sobre sua chegada,
eles se apoiam até o portão da cidade.
Quando a irmã mais velha ouve sobre sua chegada,
ela se adorna e a espera em sua porta.
Quando seu irmão mais novo houve sobre sua chegada,
ele afia a faca e prepara o porco e a ovelha.
“Abram a porta de meu quarto ao leste, eu sento no sofá de meu quarto ao oeste.
Removo meu uniforme de guerra, e visto minhas roupas dos velhos tempos.”
De frente para a janela, ela prende seus cabelos macios como nuvem,
no espelho, ela põe flores amarelas.
No portão, ela encontra seus camaradas,
eles ficaram todos surpresos.
Lutando juntos por doze anos,
eles jamais suspeitaram que Mulan fosse mulher.
Lebres macho gostam de chutar e pisar,
lebres fêmeas têm olhos enevoados e acetinados.
Mas se as lebres correm lado a lado,
quem pode dizer qual é ele ou ela?
E então encontrar Mulan, na Donzela que vai à Guerra, representada no romantismo português recriado por Almeida Garret, com sua literatura de raiz lusitana para enaltecer povo e cultura. Veja-se a seguir o seu texto e se houver motivação a bem humorada recitação de Ariano Suassuna, que me serviu de fonte para pesquisar o texto na origem (https://www.youtube.com/watch?v=8iOcjbsyT_o):
A DONZELA QUE VAI À GUERRA
(Almeida Garrett)
Já se apregoam as guerras
Entre a França e o Aragão:
— Ai de mim que já sou velho,
Não nas posso brigar, não!
De sete filhas que tenho,
Sem nenhuma ser varão,
Responde a filha mais velha
Com toda a resolução:
— Venham armas e cavalo
Que eu serei filho varão.
—Tendes los olhos mui vivos.
Filha, conhecer-vos-ão.
— Quando passar pela armada
Porei os olhos no chão.
—Tendes los ombros mui altos
Filha, conhecer-vos-ão.
— Venha gibão apertado,
Os peitos encolherão.
—Tend’-las mãos pequeninas
Filha, conhecer-vos-ão.
— Venham já guantes de ferro
E compridas ficarão.
— Tend’ los pés delicados,
Filha, conhecer-vos-ão.
— Calçarei botas e esporas,
Nunca delas sairão.
— Senhor pai, senhora mãe,
Grande dor de coração,
Que os olhos do conde Daros
São de mulher, de homem não.
— Convidai-o vós meu filho
Para ir convosco ao pomar,
Que, se ele mulher for,
À maçã se há-de pegar.
A donzela, por discreta,
O camoês foi apanhar.
— Oh que belos camoezes
Para um homem cheirar!
Lindas maçãs para damas
Quem lhas pudera levar.
— Senhor pai, senhora mãe,
Grande dor de coração,
Que os olhos do conde Daros
São de mulher, de homem não.
Convidai-o vós, meu filho,
Para convosco jantar,
Que, se ele mulher for,
No estrado se há-de encruzar.
A donzela por discreta,
Nos altos se foi sentar.
— Senhor pai, senhora mãe,
Grande dor de coração,
Que os olhos do conde Daros
São de mulher, de homem não.
— Convidai-o vós, meu filho,
Para convosco feirar,
Que, se ele mulher for,
Às fitas se há-de pegar.
A donzela, por discreta,
Uma adaga foi comprar.
— Oh que bela adaga esta
Para com homens brigar!
Lindas fitas para damas:
Quem lhas pudera levar!
— Senhor pai, senhora mãe,
Grande dor de coração,
Que os olhos do conde Daros
São de mulher, de homem não.
— Convidai-o vós, meu filho,
Para convosco nadar,
Que, se ele mulher for,
O convite há-de escusar.
A donzela, por discreta
Começou-se a desnudar…
Traz-lhe o seu pajem uma carta,
Pôs-se a ler e pôs-se a chorar.
— Novas me chegam agora,
Novas de grande pesar:
De que minha mãe é morta,
Meu pai se está a finar.
Os sinos da minha terra
Os estou a ouvir dobrar
E duas irmãs que eu tenho
Daqui as oiço chorar.
Monta, monta, cavaleiro,
Se me quer acompanhar.
Chegavam a uns altos paços,
Foram-se logo apear.
— Senhor pai, trago-lhe um genro,
Se o quiser aceitar;
Foi meu capitão na guerra,
De amores me quis contar…
Se ainda me quer agora
Com meu pai há-de falar.
Sete anos andei na guerra
E fiz de filho varão.
Ninguém me conheceu nunca
Senão o meu capitão;
Conheceu-me pelos olhos,
Que por outra coisa não.
E eis ainda a personagem, vestida de Diadorim, campeando nos Cerrados e nas Gerais. Personagem-chave do romance Grande Sertão Veredas, de João Guimarães Rosa é tida como homem durante quase toda a narrativa. Apenas nas últimas páginas o narrador conta que, depois de sua morte, quando o corpo é despido e lavado, descobre-se que se tratava de uma mulher. Diadorim havia conhecido Riobaldo, quando ainda eram jovens, em uma travessia do rio São Francisco. Nessa ocasião, ela já vivia disfarçada de menino e dizia chamar-se Reinaldo, para aturdimento de Riobaldo, quando se reencontram que se deixa apaixonar, apesar do que esse sentimento contraditório, reprimido, proibido, provoque no jagunço.
Por isso, retomando Calvino, se os clássicos servem para entender quem somos e aonde chegamos, o que o livro propõe é que nos disponibilizemos para inventar para cada um de nós uma biblioteca ideal de nossos clássicos…clássicos que sejam lidos não só por dever ou por respeito mas só por amor.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
A Revista FORGES é publicada pela Associação Fórum da Gestão do Ensino Superior nos Países e Regiões de Língua Portuguesa (FORGES). É uma publicação digital de acesso aberto e permanente, com revisão de artigos por pares, com periodicidade bianual, podendo ter outros números extraordinários. Tem como objetivo publicar resultados significativos de pesquisa com incidência nas problemáticas da gestão sobre o ensino superior numa perspectiva multidisciplinar, constituindo-se como uma plataforma para investigadores e profissionais da educação terciária promoverem, partilharem e discutirem experiências e desenvolvimentos dos domínios da gestão, administração e governança das instituições de ensino superior naqueles países.
Nesse número especial (2020), lançado por ocasião da 10ª Conferência Forges, celebra-se também dez anos da Associação. Conforme o Editorial, trata-se de uma edição comemorativa: “Há exatamente dez anos concretizava-se a criação da FORGES, com um grupo de sócios que estiveram na base da associação, alguns dos quais integraram a Comissão Instaladora, e aos quais muitos se foram juntando. Nascia, registrada em Cartório a Associação Fórum da Gestão do Ensino Superior nos Países e Região de Língua Portuguesa (FORGES) com o propósito de promover e fortalecer a difusão de conhecimentos sobre Gestão e Políticas de Ensino Superior em todas as suas dimensões, no âmbito dos países de língua portuguesa. Como uma organização voltada à ciência, não poderia deixar de existir entre suas ações uma revista que servisse de veículo para a difusão de conhecimentos produzidos nesse espaço geopolítico da língua portuguesa. Enfrentando desafios de uma organização ainda jovem, a Revista FORGES se fez presente em quatro continentes (Europeu, Americano, Asiático e Africano) editada, inicialmente, em formato impresso. Hoje, pela dimensão que a revista vem tomando e a facilidade para seu maior alcance proporcionada pelas tecnologias, não se justifica mais a sua impressão. Assim, a data de comemoração dos dez anos da Associação FORGES é também um marco para lançarmos o projeto da Revista FORGES online.
Imagem: PixaBay / Wild0ne
Nesse contexto, este número comemorativo conta com as contribuições assinadas majoritariamente por reitores e ex-reitores: Alfredo Gabriel Buza (Políticas Públicas de Desenvolvimento e de Reforma do Ensino Superior no Contexto da República de Angola), Ivan M. T. Camargo (Os Desafios do Ensino Superior no Brasil), Luísa Cerdeira (A Evolução do Ensino Superior nos Países de Língua Portuguesa: tendências e desafios), Paulino Lima Fortes (A FORGES e a Nova Racionalidade Educativa: algumas nótulas), José Geraldo de Sousa Junior (Uma Universidade Popular para uma Educação Emancipatória), Roberto Leher (Políticas do Ensino Superior para a Promoção do Desenvolvimento Humano), José Barata-Moura (Missão da Universidade), António Nóvoa (A Universidade à Procura de si Mesma), Nobre Roque dos Santos (Gestão, Democraticidade e Avaliação do Ensino Superior em Moçambique), José Dias Sobrinho (Universidade em Tempos de Precarização e Incertezas), Paulo Speller& Stela M. Meneghel (Os dez Anos da Unilab e da Forges diante dos Desafios da Educação Superior: pertinência da universidade para um projeto de sociedade), Mano Margarida (“Revisitar o Roteiro de Plane(j)amento Estratégico em tempos de Pandemia”).
Segundo ainda o Editorial, assinado pela Diretora Josefa Sônia Fonseca, “O leitor pode perceber nas reflexões que compõem este número especial, as preocupações com os desafios que as instituições do Ensino Superior têm a enfrentar. Entre elas as advindos da pandemia que tem marcado o ano de 2020. Todas estas reflexões entretanto, dão-nos a certeza que estamos no caminho certo ao insistirmos em levar a diante um espaço que reúne investigadores de língua portuguesa pesando, discutindo e partilhando suas inquietações e resultados de pesquisas. Nada mais apropriado do que uma revista que possa difundir e dialogar com essas inquietações”.
Contribuo com um texto que corresponde minha exposição no encerramento da 9ª CONFERÊNCIA DO FÓRUM DE GESTÃO DO ENSINO SUPERIOR NOS PAÍSES E REGIÕES DE LÍNGUA PORTUGUESA – FORGES, realizada de 20 a 22 de Novembro – 2019, Brasília, Brasil, na Universidade de Brasília, tendo como tema central “A integração do ensino superior dos países lusófonos para a promoção do desenvolvimento humano”. O título do artigo publicado é o mesma da conferência proferida naquela ocasião: “Uma Universidade Popular para uma Educação Emancipatória”.
Aqui destaco alguns excertos do que está publicado. Iniciei a minha saudação aos participantes desta 9ª CONFERÊNCIA DO FÓRUM DE GESTÃO DO ENSINO SUPERIOR, com uma evocação.
Presente em Coimbra, na Sala dos Capelos, da vetusta universidade, nos começos da década de 2000, para um Congresso Portugal-Brasil, guardo em mim até hoje o sentimento marcado pela disposição de todos ali presentes, de construir caminhos para a uma história comum: “a história comum que forja a comunidade de culturas e a comunidade de afetos que somos” (Boletim da Faculdade de Direito – STVDIA IVRIDICA 48, Colloquia – 6, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, Conferências na Faculdade de Direito de Coimbra 1999 / 2000).
Estas palavras, ditas, pelo aquela altura, Presidente do Conselho Diretivo da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, logo a seguir, seu vice-Reitor, o Professor António José Avelãs Nunes, assinalaram as distinções entre o Portugal português e o Brasil brasileiro, no que tange aos seus caminhos, nas condições daquele congresso. Mas se prestam também, para designar as distinções entre o Portugal português e os países que formam a comunidade de povos de língua portuguesa, presentes nesta 9ª Conferência (Angola, Cabo Verde, Macau, Moçambique e certamente entre os participantes, Guiné Bissau, Guiné Equatorial, São Tomé e Príncipe, Timor-Leste) no que tange aos seus próprios e intercruzáveis caminhos, em que pese, lembra Eduardo Lourenço, “cada povo só o é por se conceber justamente como destino” (Portugal como Destino).
Temos sim, os povos que se expressam em língua portuguesa, essa história comum que nos forja enquanto comunidade de culturas e comunidade de afetos, e que nos amalgama a partir de algum momento em nossas próprias histórias. Mas, se temos uma história desde aí comum, o que temos de comum em nossos destinos?
A direta atenção aos temas da Grande Conferência tangidos de modo aprofundado e interpelante nas conferências, painéis, sessões especiais, orais e de pôsteres, mesas-redondas, atividades culturais e assembleias, ao se discutir e confrontar experiências e reflexões: políticas de ensino, comunicação entre instituições e sociedade, impacto glocalizado do agir institucional, concertações entre alternativas pedagógicas, estratégias de gestão, revela já uma linha de orientação para atender à indagação do que há de comum a partir de nossa origem histórica, social, antropológica, cultural, espiritual e a possibilidade de um destino comum aqui vislumbrado desde a questão-geradora que nos mobiliza: O Ensino Superior e a Promoção do Desenvolvimento Humano: contextos e experiências nos países e regiões de língua portuguesa.
Ao meu perceber, o que há de comum entre nós, desde um momento objetivo de encontro e de qualquer possibilidade de um destino também comum, é o impacto dramático do colonialismo que se impôs sobre nossas identidades e as projeções decorrentes dessa experiência em nossa atualidade pós-colonial afetada econômica e politicamente pelas injunções atuais do ultra-neoliberalismo e pelos desafios de toda ordem como exigências de libertação e de emancipação num processo de ação decolonial.
Sob a perspectiva da condição ultra-neoliberal, sigo pensando num bom português que ajude a interpretar os desafios que se colocam à nossa consideração, tal como se debateu aqui nesta 9ª Conferência. Retomo Avelãs Nunes: Nos últimos anos – diz ele – tenho dado alguma atenção à problemática da globalização. Refiro-me ao que costumo chamar a terceira onda da globalização, marcada por um processo acelerado de desenvolvimento científico e tecnológico, especialmente no que toca aos transportes, às telecomunicações e à informática. Para as classes dominantes, para as multinacionais e para o seu estado, pouco importa que milhões de pessoas morram de fome e de doenças provocadas pela fome. O que importa, num quadro como este, é melhorar o poder de compra dos clientes (a pequena camada de ricos) e, se possível, acrescentar mais uns quantos privilegiados a este núcleo de elite. O que, evidentemente, aconselha a (e pressiona no sentido da) concentração dos rendimentos ainda mais acentuada e desigual.
A exclusão social crescente é a outra face deste tipo de desenvolvimento perverso ou maligno. E a exclusão social é um dos fenómenos mais dramáticos do nosso tempo. Como escreveu um autor, quando se falava de exploradores e explorados, havia que contar com estes, porque os explorados estavam dentro do sistema (sem explorados não pode haver exploradores), enquanto os excluídos estão, por definição, fora do sistema, são inexistentes.
É importante salientar, porém, que a crítica da globalização não pode confundir-se com a defesa do regresso a um qualquer ‘paraíso perdido’, negador da ciência e do progresso. A saída desta caminhada vertiginosa para o abismo tem de assentar na confiança no homem e nas suas capacidades. Tem de partir da rejeição da lógica de uma qualquer inevitabilidade tecnológica, que nos imporia, sem alternativa possível, a actual globalização neoliberal, uma das marcas incontornáveis desta civilização fim-da-história.
Assim como esta globalização não é um ‘produto técnico’ deterministicamente resultante da evolução tecnológica, antes é um projecto político levado a cabo de forma consciente e sistemática pelos poderes dominantes, enquadrado e apoiado pelas grandes centrais produtoras da ideologia dominante, assim também a luta por uma sociedade alternativa pressupõe que a política prevaleça sobre as pretensas ‘leis naturais’ do mercado ou da economia, pressupõe um espírito de resistência e um projecto político inspirado em valores e empenhado em objectivos que o ‘mercado’ não reconhece nem é capaz de prosseguir.
Todos sabemos, porém, que as mudanças necessárias não acontecem só porque nós acreditamos que é possível um mundo melhor. Essas mudanças hão-de verificar-se como resultado das leis de movimento das sociedades humanas, e todos sabemos também que o voluntarismo e as boas intenções nunca foram o motor da história. Mas a consciência disto mesmo não tem que matar o nosso direito à utopia e o nosso direito ao sonho.
De resto, talvez a utopia de Marx esteja a confirmar-se: o desenvolvimento científico e tecnológico conseguido pela civilização burguesa proporcionou um aumento meteórico da produtividade do trabalho humano, criando condições novas no que toca à capacidade de produção. Este desenvolvimento das forças produtivas (entre as quais avulta o próprio homem enquanto produtor e utilizador do conhecimento e do saber) só carece de novas relações sociais de produção, de um novo modo de organizar a vida colectiva, para que a humanidade possa saltar do reino da necessidade para o reino da liberdade.
Nesse diapasão, trata-se, pois, de indagar-se de que desenvolvimento se cuida, quando falamos em desenvolvimento. Essa é a questão proposta por Roberta Amanajás Monteiro, em tese defendida na Faculdade de Direito da UnB, sob minha orientação. (2018). Com o tema “Qual desenvolvimento? O deles ou o nosso? A Hidrelétrica de Belo Monte e seus impactos nos direitos humanos dos povos indígenas”, a pesquisadora apresenta exatamente a tensão entre o desenvolvimentismo e os direitos humanos a partir do estudo de caso da construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte e os seus impactos aos indígenas Arara da Terra Indígena Volta Grande e Juruna, da Paquiçamba. A pergunta central de sua tese interpela como ocorre a tensão entre projetos de desenvolvimentismo e os direitos humanos dos povos indígenas, e se os conflitos se inscrevem na matriz colonial de poder. Fundamentada na teoria da Colonialidade do Poder de Anibal Quijano e nos autores do pensamento decolonial, a metodologia eleita por Roberta Amanajás apoiada em investigação empírica, fornece os argumentos da constatação da incidência da ideia de raça no percurso do licenciamento ambiental do empreendimento. Para a autora, numa aproximação sociológico-jurídica, a compreensão de que é a partir da ideia de raça que é negada a condição de sujeito de direitos e de conhecimento aos povos indígenas, consequentemente dos seus direitos de território, natureza, modo de vida e direito à participação e consulta prévia, a conclusão leva, necessariamente, à expectativa militante de construção de elementos de desenvolvimento a partir dos próprios povos indígenas. Igual indagação coloca Erina Batista Gomes, em relação a exigência de consulta para salvaguardar direitos de comunidades tradicionais diante de grandes empreendimentos energéticos, oportunidade para movimentos sociais do campo, das florestas e das águas interpelarem as políticas desse setor com questões fundantes: desenvolvimento para quê e para quem? (SOMBRAS, BRECHAS E GRITOS: vozes silenciadas, consulta prévia e re-existência nas margens do rio Tapajós. Brasília: Faculdade de Direito da UnB, Dissertação de Mestrado, 2018).
Em Avelãs Nunes, a aproximação mediada pela economia política e pela filosofia, e mais propriamente por teorias da justiça, segue uma linha civilizatória que mais se afasta das opções que mercantilizam a vida, enquanto se orienta para projeções que garantam o direito à vida plena, de homens e mulheres de carne e osso sim, porque ideologicamente o nosso percurso colonial separou seres humanos, para distinguir os que se inserem no contrato social os que ficam fora dele, os selvagens, os bestializados, os escravizados, os diminuídos, os segregados, os sobrantes “civilizatórios” todos alienados do humano.
Abri essa linha de problematização exatamente com um autor português, até para ponderar o lugar de Portugal no experimento colonial e indicar que desde esse lugar o modo decolonial é também uma condição para que a libertação e a emancipação sejam possíveis.
Para Paulo Freire, tão marcante em nossa cultura comum, A DESUMANIZAÇÃO NÃO É DESTINO. “A luta pela humanização, pelo trabalho livre, pela desalienação, pela afirmação dos homens como pessoas, como ‘seres para si’, esta luta pela humanização somente é possível porque a desumanização, mesmo que um fato concreto na história, não é, porém, destino dado, mas resultado de uma ‘ordem’ injusta que gera a violência dos opressores e esta, o ser menos. (…) O ser menos leva os oprimidos, cedo ou tarde, a lutar contra quem os fez menos. E esta luta somente tem sentido quando os oprimidos, ao buscarem recuperar sua humanidade, que é uma forma de criá-la, não se sintam opressores, nem se tornem, de fato, opressores dos opressores, mas restauradores da humanidade em ambos. E aí está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos – libertar-se a si mesmos e aos opressores. (…) Só o poder que nasça da debilidade dos oprimidos será suficientemente forte para libertar a ambos.”
É assim que as literaturas africanas de língua portuguesa participam da “tendência – quase um projecto – de investigar a apreensão e a tematização do espaço colonial e pós-colonial e regenerar-se a partir dessa originária e contínua representação. Os significadores desse processo, que constituem a singularidade da nossa pós-colonialidade literária, são potencialmente produtivos: sinteticamente dizem respeito a uma identidade nacional como uma construção a partir de negociações de sentidos de identidades regionais e segmentais e de compromisso de alteridades. O que as literaturas africanas intentam propor nestes tempos pós-coloniais é que as identidades (nacionais, regionais, culturais, ideológicas, sócio-econômicas, estéticas) gerar-se-ão da capacidade de aceitar as diferenças” (Conforme O pós-colonial nas literaturas africanas de língua portuguesa, Inocência Mata da Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa (https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4033274/mod_resource/content/1/MATA%2C%20Inoc%C3%AAncia%20-%20O%20p%C3%B3s-colonial%20nas%20literaturas%20africanas.pdf)
Nos debates desta 9ª Conferência, esse foi um pano de fundo para as leituras mais explícitas ou mesmo as implícitas em circulação. Não perder de vista que a tríade dominação/exploração/conflito, apresentada pelos estudos decoloniais, explode a univocidade discursiva no estágio em ensino, sobretudo, de filosofia. Afirmam Ana Claudia Rozo Sandoval e Luís Carlos Santos (ESTUDOS DECOLONIAIS e FILOSOFIA AFRICANA: POR UMA PERSPECTIVA OUTRA NO ENSINO DA FILOSOFIA. Revista Páginas de Filosofia, v. 6, n. 2, p.1-18, jul./dez. 2014) que “a disputa pela realidade é um traço comum dos filósofos, seja ele interpretando, desconstruindo, criando conceitos, mas o que se quer é disputar a realidade. E para isso colocamos em crise o solo em que se pisa, como um lugar produzido à imagem e semelhança da produção de um discurso que legitimou historicamente a exploração e dominação, e o conflito estabelecido ao buscar filosofar-se caiu na armadilha da representação. Este é um dos primeiros elementos que precisam ser descortinados, a representação. Pois a imagem que se traduziu nos discursos era apenas a europeia. O exercício de pensar-se, o que é próprio da filosofia encontra-se no poço sem fundo, no beco sem saída da armadilha da representação europeia moderna, ocidentalizada na contemporaneidade. A perspectiva decolonial (ou estudos Modernidade/colonialidade) e as filosofias africanas colocam em discussão o epistemicídio e o semiocídio cultural. O conhecimento, e as formas de acessá-lo, e a diversidade cultural no fazer filosófico colocam em evidência outros modos de ser e fazer filosofia. Problemas não considerados filosóficos começam a ser problemas de interesse de outros sujeitos que foram negados pelo sistema mundo eurocentrado”.
Questões que se ligam ao pensar potente africano, ainda que não expresso em português, do camaronês Achille Mbembe, um dos teóricos mais brilhantes sobre estudos pós-coloniais, centrados no conceito por ele forjado de necropolítica e expressos em temas que bem recortam o que aqui foi discutido quando ele trata da proliferação do divino na África subsaariana, do racismo como prática da imaginação, do poder, violência e acumulação ou, destacadamente da necropolítica, em textos como cenas fantasmas na sociedade global, além do influente livro A pós-colónia, ensaio sobre a imaginação política na África contemporânea (‘On the Postcolony’, 2000).
Todavia, o núcleo de minha exposição foi retomar em Boaventura de Sousa Santos sua proposição feita no espaço do Fórum Social Mundial de Porto Alegre uma bem elaborada proposta para a constituição de uma Universidade Popular dos Movimentos Sociais, atenta a essas exigências de um conhecimento emancipatório. Retomei o tema para articulá-lo aos pressupostos levantados até aqui.
E o fiz para salientar que sses pontos correspondem, em seus fundamentos, às expectativas que defendem uma universidade aberta à cidadania, preocupada com a formação crítica dos acadêmicos e mais democrática. Uma universidade, como lembrava Boaventura de Sousa Santos em sua recente visita à UnB, consciente de que “o que lhe resta de hegemonia é o ser um espaço público onde o debate e a crítica sobre o longo prazo das sociedades se podem realizar com muito menos restrições do que é comum no resto da sociedade” e que encontra no exercício da pluralidade tolerante a mediação apta a torná-la uma “incubadora de solidariedade e de cidadania ativa”.
Um modelo assim já se apresenta como proposição interpelante da universidade convencional, desde que ela se abra a, pelo menos, duas condições. A primeira é o dar-se conta da natureza social do processo que lhe cabe desenvolver. Não é condição trivial, porque ela implica opor-se à tentação de mercadorização do ensino e da pesquisa e conseqüente redução do sentido de indisponibilidade do bem Educação, constitucionalmente definido como um bem público, processo dramático e cruento em curso autoritário em muitos de nossos países, num projeto claramente hostil à ideia de universidade como valor social e ao conhecimento crítico como elemento nutriente de práticas e de pensamentos democrático e emancipatório.
A outra condição, é a de interpelar a universidade para que ela se abra a novos modos de ingresso e de inclusão de segmentos dela excluídos, a exemplo das políticas de ações afirmativas. Possibilita, assim, alargar o âmbito das pautas pedagógicas que desenvolve e fazer circular no ambiente do ensino e da pesquisa novos temas, cosmologias plurais, epistemologias mais complexas e um diálogo mais amplo entre os saberes.
Insere-se nessa condição, esforços como o do professor de filosofia Wanderson Flor do Nascimento da nossa UnB que criou um sítio na WEB – página Filosofia Africana – para disponibilizar obras em português de filósofos africanos, de modo a incrementar a cultura africana nas escolas e universidades brasileiras, superando barreiras como a dificuldade de acesso aos materiais e a hegemonia linguística presente na maioria dos títulos em geral disponibilizados apenas em inglês ou francês.
Ao fim e ao cabo, concluindo com o recorte que propus para meu sub-tema naquela exposição, de pensar Uma Universidade Popular para uma Educação Emancipatória, algo que, a meu ver, transparece nos debates que se deram na 9ª Conferência, o que nela também transparece, é que libertar-se, emancipar-se, dizemos nós em nosso projeto acadêmico que denominamos O Direito Achado na Rua: “não é dom; é tarefa, que se realiza na História, porque não nos libertamos isoladamente, mas em conjunto”. E se ela não existe em si, o Direito de emancipar-se é comumente a sua expressão, porque ele é a sua afirmação histórico-social “que acompanha a conscientização de liberdades antes não pensadas (como em nosso tempo, a das mulheres e das minorias eróticas) e de contradições entre as liberdades estabelecidas (como a liberdade contratual, que as desigualdades sociais tornam ilusória e que, para buscar o caminho de sua realização, tem de estabelecer a desigualdade, com vista a nivelar os socialmente desfavorecidos, enquanto ainda existam” .
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Miroslav Milovic. Comunidade da Diferença. 1. ed. Rio de Janeiro, Ijuí: Relume Dumará, UNIJUI, 2004, 142 p.
Com o título, “Miro, compromisso com a filosofia política e o mundo”, publiquei, por solicitação da Secretaria de Comunicação da Universidade de Brasília, um obituário do nosso colega professor e amigo querido Miroslav Milovic, o Miro.
Miro morreu nesse 11 de fevereiro em Recife, em decorrência de complicações septcêmicas, enquanto internado por infeção do Covid-19. A notícia caiu de modo fulminante entre seus colegas e alunos, absolutamente chocados, surpreendidos. Miro tinha 65 anos e estava na plenitude de sua docência, atualmente na Faculdade de Direito da UnB, onde era Professor Titular, regendo a cadeira de Filosofia do Direito.
Miro “filósofo verdadeiro, buscava sempre a coerência entre seu discurso e sua ação na vida”, assim o caracterizava nossa colega Bistra Stefanova Apostolova, como ele originada dos Balcãs, ele dos Alpes Dináricos da Sérvia, ela das montanhas Rila, na terra de Spartacus, a antiga Trácia, de cujo comentário também retirei o título deste depoimento.
Fonte: PixaBay
E, na vida e na morte, encarnadamente premonitório. Há poucas semanas escreveu: “O vírus nos confronta com o nosso próprio mundo. Obviamente que ele não pode resolver problemas, mas ele pode tornar o mundo mais transparente, pode nos fazer pensar o que esquecemos. E nos mostrar a ordem maquiavélica do mundo, chamada neoliberalismo”.
Contra essa ordem maquiavélica Miro estruturou a sua prática acadêmica e de mundo. Pensador rigoroso com graduação em Filosofia pela Faculdade de Filosofia de Belgrado (1978), doutorado de Estado em Filosofia – Université de Paris IV (Paris-Sorbonne) (1990), com a tese Razão teórica e razão prática e suas relações com a comunidade ética e política, tendo como orientador J. Chanteur e doutorado em Filosofia – Universitat Frankfurt (Johann-Wolfgang-Goethe) (1987), com a Tese Subjetividade e comunicação, tendo como Orientador Karl Otto Apel. Miro, lembra ainda Bistra, abrindo-se às diferenças, “sua excelente produção acadêmica não o impedia de se fazer presente na vida das pessoas”.
“Ele sempre foi aberto, generoso, engajado em transformar o mundo e genial”, diz Alexandre Araújo Costa, nosso colega professor na Faculdade de Direito da UnB; Bruno Henrique Moura, relembra as suas aulas de metafísica. “Ele tinha pureza e elegância. Nunca perdia a paciência nas aulas. Uma das mentes mais brilhantes que eu conheci”; “Deixa sua marca em diversas gerações que passaram pela Faculdade de Direito, sem mencionar o seu impacto inigualável no desenvolvimento do direito e da filosofia”, afirma a nota do Centro Acadêmico de Direito da universidade; “Hoje partiu meu grande amigo Miroslav Milovic, professor de tantos anos, orientador de tantas pesquisas, um gênio da filosofia”, diz sentidamente Juliano Zaiden Benvindo, ex-Coordenador de Pós-Graduação da Faculdade de Direito. “Ele foi um professor muito importante para a construção não apenas da graduação, mas da pós-graduação da Faculdade de Direito, tendo participado do projeto de mestrado e doutorado desde o seu início. Fica aqui a nossa homenagem ao seu legado, nossos sentimentos à família e aos amigos mais próximos e nosso alerta para que continuemos nos cuidando”, assim se manifestou nossa colega Claúdia Roesler, que dirigiu nosso programa de pós-graduação em Direito; todas expressões de um luto sentido e introjetado, afinal reconhecido e decretado pela direção da Faculdade de Direito. Para Mamede Said Maia Filho, que foi nosso Diretor na Faculdade de Direito: “Nele se fundiam o intelectual brilhante e o homem simples: para além do conhecimento que tinha sobre filosofia e sobre política; para além de ter sido orientado por Karl-Otto Apel em Frankfurt; para além de ser o acadêmico que foi (professor titular da Faculdade de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Metafísica da UnB), Miro era apaixonado pelas coisas triviais da vida: estar com os filhos, ver o Flamengo jogar, brincar no Carnaval do Rio, compartilhar uma boa mesa, falar com saudade de sua terra natal, a Sérvia, e do papel de Josip Broz Tito como o homem que conseguiu unir e manter a paz entre os diferentes povos da antiga Iugoslávia”.
A Professora Loussia Felix, que na minha gestão como Diretor da Faculdade de Direito conduziu o processo de institucionalização do Doutorado em Direito, com abertura interdisciplinar, trazendo para o espaço jurídico professores como Miro e Terrie Groth,mas também Luis Roberto Cardoso de Oliveira (Antropologia), Rebeca Igreja (Antropologia), Simone Rodrigues Pinto (Ciências Sociais) e Débora Diniz (Ciências Sociais), traça seu perfil: “Miro, assim como Terrie Groth (também professor da Faculdade de Direito, da cadeira de Ciência Política, falecido no ano passado) foram docentes que trouxeram tanto para a FD. Os dois vieram para o PPGD em 2003. Uma linda, profícua e intensa trajetória. Mais tarde retorno aqui. Miro nos desafiava. Lembro dele em tantas, tantas reuniões. Era sempre participativo. Tão sério em seu trabalho. Chegou de tão longe e vai deixar tantas sementes no Brasil”.
Em Carta Pública Aberta, que a emoção ditou, a Professora Loussia sintetizou:
“Na formação jurídica que vislumbrávamos ambiciosa um conceito tornava-se então inarredável. Interdisciplinaridade. Mesmo que a teoria social crítica então se disseminasse como água que escorria de um veio precioso em terra calcinada, não havia tantos docentes com tua formação de velho mundo. Onde tudo ocorrera (as promessas iluministas, a barbárie das “soluções finais”). Você chegava então como promessa de filósofo “old school”, a formação impecável, a mente treinada nos rigores da academia alemã, mas também associada a uma perspectiva generosa de compreensões do agora. Aqui mesmo. No Brasil que era então micro cosmo das tantas possibilidades globais de, enfim, nos tornarmos tolerantes, diversas, propiciar lugares de educação superior até então negados para – que surpreendente – a maioria. Lá fomos nós. Tua história na FD-UnB vai se consolidando ao mesmo tempo que tantas esperanças de educação jurídica que pudesse propiciar mais amplas compreensões”.
Com efeito, docente altamente adestrado em contextos acadêmicos bastante avançados e complexos – Chiba University, Japão; Universidad de Granada, UGR, Espanha; Middle East Technical University, METU, Turquia; Faculdade de Filosofia de Belgrado, FFB, na ex-Iugoslávia, Miro foi adensando e refinando os temas que organizou para agrupar seus alunos, orientandos e associados: Direito como Potência no contexto da Tradição, Modernidade e Contemporaneidade; Biopolítica e Direito no contexto da despolitização moderna e da aproximação entre política, biopolítica e direito; a Impossibilidade da Democracia na modernidade e a questão do Direito e muito designadamente a questão da Democracia e da Diferença, visando a analisar a modernidade como afirmação de uma nova identidade: a identidade do sujeito ou a sua desconstrução.
Relacionado a esses temas, um livro de Miroslav chama a minha atenção: Comunidade da Diferença. 1. ed. Rio de Janeiro, Ijuí: Relume Dumará, UNIJUI, 2004, traduzido para várias línguas. A obra remete a uma questão presente no seu pensamento, posta em termos por ele próprio, em entrevista que concedeu ao sítio http://filosofia.com.br/vi_entr.php?id=21 (www.filosofia.com.br) . Nesse livro, ele diz: “tentei questionar a Modernidade não nos contextos políticos, como mencionei acima, mas discutindo as perspectivas abrangentes da racionalidade. Assim, a gente chega até os próprios fundamentos da Modernidade, até a sua própria rigidez tratada como a Identidade. Modernidade é uma forma da Identidade, da nivelação, mediocrização que apaga com as possibilidades da Diferença. A cultura global, como a consequência da Modernidade é um exemplo disso. Estamos na sombra hegeliana, vivendo o fim da história, onde a nossa vida só tem sentido como a reprodução do passado. Futuro do capitalismo é o passado da história. É o mundo sem futuro. Precisamos repensar isso, nos confrontar para que seja possível nossa autenticidade”.
Projetando essa ordem de preocupação, ele dirá em obra mais recente, o livro Política e Metafísica, de 2017, tecendo críticas aos processos de globalização, o quanto eles se desenvolvem como “forma de colonização do mundo”, até para advertir as opções que se colocam para o Brasil, nesse processo, afirmando que “o futuro do Brasil não é seguir os caminhos estabelecidos e metafísicos da globalização. Isso seria muito estranho”, pois, “um país tão grande ficar como uma pequena nota de rodapé na história”.
Claro que em seu pensamento filosófico, muito mais instigado por uma percepção sistêmica, racional ao impulso espiral dos grandes processos, hegelianamente falando, Miro se propunha pensar o Brasil num movimento dialético inscrito na historicidade. Não podia sequer imaginar que se pusesse intencionalmente numa vocação redutora para descer ao nível de rodapé, tangido pelo banal malicioso convertido em ação política. Quem poderia imaginar esse regresso? Esse suicídio histórico? Essa politização despolitizadora do social?
Ao ferir a questão da despolitização da modernidade como um sintoma de tipo de fenômeno profundo de nosso tempo, Miro apontava para o que considerava um fenômeno característico de nosso tempo, a despolitização, indicando a exigência de reinvenção da política como perspectiva de articulação das novas subjetividades.
É sobre essa condição dramática que Miro adverte em aguda entrevista que concedeu ao sítio IHU Unisinos, para a EDIÇÃO 438 | 24 MARÇO 2014 (http://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/5391-miroslav-milovic-3), na inteligente instigação de Márcia Junges e Ricardo Machado, afinal resumidas no título que indexa seus comentários, “Contemplar para compreender, entender a si mesmo para fazer o bem”, pois, para Miro, “agir no mundo requer, antes de tudo, saber o que é o mundo, o que é a própria natureza, para nos entendermos”. Por isso ele diz: “Tantos crimes, mas quase sem culpados. O indivíduo que não pensa e se torna cúmplice dos crimes: essa é a banalidade do mal diagnosticada por Hannah Arendt como a consequência dessa tradição filosófica que quase mumificou a estrutura do ser e nos marginalizou”.
Miroslav nos deixa nesse momento crucial. Que falta ele fará com seu filosofar potente, exatamente quanto mais é necessário sofisticar a habilidade do pensamento para prevenir, o que agora nos desafia, as “catástrofes políticas” do nosso tempo.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
Direitos Humanos e covid-19: grupos sociais vulnerabilizados e o contexto da pandemia
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
REVISTA HUMANIDADES. Autores: Vários. Editora UnB. N 64, dezembro de 2020.
A revista está disponível impressa na loja e no site da Editora UnB, e digitalmente, para acesso livre: https://www.editora.unb.br/Acessolivre.php
Conforme a Apresentação de sua editora Inês Ulhoa: “Ninguém que tenha noção da importância da vida dos outros pode permanecer alheio ao que ocorre em nosso país, testemunhas que somos da grave iniquidade daqueles que ocupam os lugares de decisão do Estado diante dos desafios que a pandemia trouxe aos brasileiros”.
Ainda segundo ela: “A Universidade de Brasília, assim como outras instituições brasileiras, assumiu um papel fundamental neste cenário de perplexidades, demonstrando uma visão acurada de nosso momento histórico, enfrentando as inúmeras demandas que esse processo requereu. De fato, logo no início da pandemia, a UnB, no sentido de proteger a comunidade acadêmica, suspendeu as atividades presenciais e criou o Comitê Gestor do Plano de Contingência da Covid[G1] -19 para realizar ações, orientações acerca de ocorrências relacionadas à Covid-19 na UnB, em consonância com as diretrizes da Organização Mundial de Saúde, buscando contribuir para a redução dos efeitos nefastos dessa doença na população do Distrito Federal e do Brasil[G2]” .
Ela continua na Apresentação: “Diante dessa realidade inescapável e à luz de uma reflexão sobre a pandemia, seu impacto e os sentidos metafóricos a ela atribuídos em uma explosão de narrativas pelas redes sociais e veículos da imprensa, a revista Humanidades, em compromisso com a memória de tempos históricos, publica esta edição especial dando vazão à percepção dos sentidos diante da nossa dor e da dor dos outros. Foram muitos textos recebidos, pelos quais agradecemos a todos que se dispuseram a escrever. Narrativas, versos, artigos acadêmicos, ensaios, contos, crônicas, relatos testemunhais: recebemos mais de cem colaborações dessas diversas tipologias textuais. Infelizmente, seria impossível publicar todas as contribuições. Porém, temos a certeza de que os textos aqui publicados representam muitas narrativas sobre a vivência e experiência em um tempo inteiramente novo e fora do contexto de muitos brasileiros”.
Textos inéditos revelam o espanto e a dor de brasileiros diante de um cenário inesperado e assustador. Conforme a nota editorial, “foram muitos textos recebidos, pelos quais agradecemos a todos que se dispuseram a escrever. Narrativas, versos, artigos acadêmicos, ensaios, contos, crônicas, relatos testemunhais: recebemos mais de cem colaborações dessas diversas tipologias textuais. Infelizmente, seria impossível publicar todas as contribuições. Porém, temos a certeza de que os textos aqui publicados representam muitas narrativas sobre a vivência e experiência em um tempo inteiramente novo e fora do contexto de muitos brasileiros”.
Disso Dá conta o Sumário da edição, compreendendo os artigos e ensaios:
Pesquisa Social UnB: saúde e condições de trabalho remoto em meio à pandemia da Covid-19 – Lucio Rennó, Michelle Fernandez, Ana Maria Nogales, Janaina Penalva, Ronaldo Pillati e Jhames Sampaio
Uma pandemia neoliberal – Alfredo Saad Filho
Manifesto agrestino pernambucano: “Temos o direito de viver!” –Ingrid Silva de Melo e Diogivânia Maria da Silva
Se essa rua (ainda) fosse minha…: reflexões sobre o brincar em tempos de pandemia –Rebeca Azambuja, Ana Luiza Batista e Gabriela Mietto
Do abraço ao toque digital: mídias e pandemia – Vanessa Moraes
Pandemia, autorrelação e a crise da gestão dos alimentos – Mariana Paolozzi
Lições da pandemia para o mundo do trabalho – Gabriela Neves, Lucilia de Almeida Neves Delgado e Mauricio Godinho Delgado
Arte e promoção de saúde em tempos de COVID-19 – Flávia Mazitelli de Oliveira, Daniela da Silva Rodrigues e Josenaide Engracia dos Santos
A vida como valor absoluto – Uribam Xavier
Reflexões sobre o futuro e o direito pós-pandemia – José Geraldo de Sousa Junior
Antropoceno: a importância da implantação da cultura da inovação no contexto social contemporâneo – Rodolfo Augusto Melo Ward de Oliveira
Do pessimismo ao neorrealismo: uma passagem em meio ao assédio pandêmico –Rafael Reginato Moura
Humanidade e pertencimento: lições em tempos de pandemia – Maria Ivoneide de Lima Brito, Margô Gomes de Oliveira Karnikowski e Zaíra Nascimento de Oliveira
Solidariedade em tempos de Covid-19 – Wladimir Porreca
Pandemia: o que tememos e o que seremos – Marcos Cesar Danhoni Neves
Adaptação e o impacto socioeconômico no combate à Covid-1 – Marcos Mourão Santa Brígida, Tiago Duarte da Silva, Vitória Carolina Farias de Oliveira, Raquel Soares Casaes
As torturas do silêncio – Elen Geraldes, Georgete Medleg e Kênia Figueiredo
De pandemia em pandemia: antipolíticas do luto – Sávio Barros
A cultura popular embala os pequenos brincantes do Ensino Infantil – Leandro Costa da Fonsêca e Isabel Haialy Pereira da Silva
O ambiente da pandemia – José Domingues de Godoi Filho
E ainda, Contos, Crônicas e Poesias:
Resumo da ópera: pandemia e pandemônio – Jorge Antunes
A Bolha – Matheus Zucato Robert
Que país é esse? Colonizado e periférico ou protagonista? Isaac Roitman
Diário da peste – Fernando Fiorese
2020: o ano da reconstrução – Neila Conceição Cunha-Nardy
Tempo invisível – Rodrigo Cristalino Bezerra da Silva
A súbita intimidade com os aplicativos, ou a adolescência das máquinas – Hilan Bensusan
Que fim levou a New Age? – Angélica Torres
Solene momento pela alma dos mortos – Josafá de Orós
Guerra e paz – Elieni Caputo
Pericentral – Francisley da Silva
O ovo da serpente – Osvaldo Duarte
Plinto – Joba Tridente
Estou em boa companhia, ao contribuir, a convite da edição, com o texto Reflexões sobre o Futuro e o Direito Pós-Pandemia.
Em meu texto, que sintetiza várias manifestações que tenho feito a partir desse tema, entre elas, por todas, as que balizam o livro que organizei juntamente com meus colegas de UnB Talita Tatiana Dias Rampim e Alberto Amaral, a pedido do nosso editor Plácido Arraes (Editora D’Plácido), “Direitos Humanos e covid-19: grupos sociais vulnerabilizados e o contexto da pandemia” (lançamento neste primeiro trimestre de 2021).
No fundo, sempre pensando que um futuro que pode começar hoje, se a pandemia e a quarentena revelam que são possíveis alternativas, que as sociedades podem se adaptar ou inventar novos modos de viver quando isso é necessário, se se pode, como exortou o Papa Francisco na Evangelii Gaudium, redescobrir a política como dimensão sublime da caridade (n. 205), “só com uma nova articulação entre os processos políticos e os processos civilizatórios”, será possível alternativas para uma nova humanidade.
Foto: Pixabay
Trata-se de uma mobilização sensível e criteriosa do jurídico na direção a que apontam os estudos do extraordinário Cidadania e Inclusão Social. Estudos em Homenagem à Professora Miracy Barbosa de Sousa Gustin, tal como se oferece no precioso texto de Márcio Túlio Viana – Os não-lugares do Direito: uma pesquisa em classe com trabalhadores de rua (p. 367-376). Com riqueza de estilo e intensidade narrativa, o querido mestre faz o direito andar nas ruas para recuperar nas histórias de vida, os projetos frustrados, do gritador, dos malabaristas, da mulher do cabide, as filha dela, do engraxate, tipos sociais a se reimpregnar do humano.
Assim, numa emergência composta de impulsos de exceção, o Jurídico é chamado a se constituir como arena de resistência ao processo de desdemocratização e de desconstitucionalização em curso no País e à banalização da vida pela ação de governança absolutamente incompetente para agir no enfrentamento à pandemia.
Estarão os juristas à altura das expectativas civilizatórias que os desafiam? Repito a questão: estarão os operadores e os agentes políticos à altura das expectativas civilizatórias que os desafiam, no plano do Direito? Nessa quadra dramática de interpelação a um paradigma civilizatório, serão alcançados nos seus misteres para, com a tempestade que desaba sobre o mundo, limpar “a maquilhagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso «eu» sempre preocupado com a própria imagem; (e deixar) a descoberto, uma vez mais, aquela (abençoada) pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos”, como exorta o Papa Francisco em seu exemplar distanciamento social na grande praça de São Pedro, totalmente vazia? Será o Direito, realmente Direito se, como exortou Francisco, não for “capaz de resgatar, valorizar e mostrar como as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns (habitualmente esquecidas), e operar para realizar e ser instrumento por meio da eficácia horizontal dos direitos humanos?
Indiquei, no âmbito da construção do projeto O Direito Achado na Rua e com Antonio Escrivão Filho, em nosso livro Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos, várias aplicações e fundamentos de teoria e de práxis para orientar e recuperar formas de resistência e de transponibilidade às exceções, mesmo no Supremo Tribunal Federal, para lembrar com Victor unes Leal, a necessidade que tem a jusrisprudência, inclusive do STF, de andar nas ruas, para que o promessa do Direito, nelas achado, não se torne promessa vazia.
Pois, se é verdade, conforme diz o Papa Francisco (Mensagem para o IV Dia Mundial dos Pobres, em 15 de novembro de 2020), de que essa “pandemia chegou de improviso e apanhou-nos impreparados, deixando uma grande sensação de desorientamento e impotência”, a experiência histórica e política do agir responsável não podem ser um improviso: “Não nos improvisamos instrumentos de misericórdia. Requer-se um treino diário, que parte da consciência de quanto nós próprios, em primeiro lugar, precisamos duma mão estendida em nosso favor”, como agir misericordioso ou como agir por vocação política no interesse do bem comum.
Para o Papa Francisco, sob essa perspectiva, é preciso resgatar a caridade como dimensão sublime da política porque ela representa a abertura de “caminhos de esperança”. Na Carta Encíclica Fratelli Tutti sobre a Fraternidade e a Amizade Social (São Paulo: Edições Paulinas, 2020), o Papa Samaritano exorta: a “recente pandemia permitiu-nos recuperar e valorizar tantos companheiros e companheiras de viagem que, no medo, reagiram dando a própria vida. Fomos capazes de reconhecer como as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns que, sem dúvida, escreveram os acontecimentos decisivos da nossa história compartilhada”.
“Caminhos de esperança”, diz o Papa. Talvez, também, indica Boaventura de Sousa Santos (em seu recente livro que acabo de receber e que comecei a ler pra você O Futuro começa agora. Da pandemia à utopia, São Paulo: Boitempo, 2021), descortinar “entre o medo e a esperança”, possibilidades credíveis para “o começo de uma nova época, de um novo modelo civilizacional”.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
O DIREITO ACHADO NA RUA V.8 – INTRODUÇÃO CRÍTICA AO DIREITO À COMUNICAÇÃO E À INFORMAÇÃO. Organizadores José Geraldo de Sousa Júnior, Murilo César Ramos, Elen Cristina Geraldes, Fernando Oliveira Paulino, Janara Kalline Leal Lopes de Sousa, Helga Martins de Paula, Talita Tatiana Dias Rampin, Vanessa Negrini. – Brasília: FACUnB, edição impressa (ISBN 978-85-9-3078-06-4), 2016, 455p. Edição e-book file:///C:/Users/Jos%C3%A9%20Geraldo/Pictures/faclivros_direitoachadorua8.pdf
O livro O Direito Achado na Rua v.8 – Introdução Crítica ao Direito à Comunicação e à Informação.
Idealizado pelo grupo de pesquisa O Direito Achado na Rua e pelo Laboratório de Políticas de Comunicação – LaPCom, o volume conta com textos de Boaventura Santos, Nita Freire, além de reunir a produção de 40 autoras e autores sob a organização dos professores José Geraldo de Sousa Junior, Murilo César Ramos, Elen Cristina Geraldes, Fernando Oliveira Paulino, Janara Sousa, Helga Martins de Paula, Talita Tatiana Dias Rampin e Vanessa Negrini.
A obra ganhou ilustrações inspiradas na arte gráfica russa do início do século XX, em homenagem aos 100 anos da Revolução Russa, realizadas de conformidade com edital lançado com esse objetivo. O volume, assim, se destaca pelas ilustrações, tanto quanto, neste aspecto, os sete que o antecedem e os dois posteriormente editados no espírito da Série O Direito Achado na Rua.
Conforme a Apresentação da obra, o desafio foi debater sobre o direito à comunicação e à informação como um direito humano “achado na rua”, ou seja, fruto da luta dos movimentos sociais e dos sujeitos coletivos de direito. A obra coletiva envolveu quase 60 pessoas, entre organizadores, autores, ilustradores e colaboradores diversos, ao longo de quase dois anos de trabalho, e serve de pontapé inicial desta interlocução entre Direito e Comunicação, a partir da perspectiva de O Direito Achado na Rua.
Créditos: PixaBay / MichaelGaida
Assim que, ainda conforme a Apresentação “Este livro é o resultado dos debates empreendidos naquele semestre, com as aulas ministradas em formato de palestras, por vários de professores dos dois programas e diversos convidados externos, pesquisadores e representantes de movimentos sociais. Contribuíram para o amadurecimento deste trabalho, as reflexões ao longo de eventos como Conversa de Justiça e Paz, com o ministro das Comunicações Ricardo Berzoini (2015); Em Defesa da Comunicação Pública (2016); VI Encontro Nacional da União Latina da Economia Política da Informação, da Comunicação e da Cultura (ULEPICC) – Capítulo Brasil (2016); A Democracia Difícil, aula magna do professor Boaventura de Sousa Santos (2016)”.
A obra é uma leitura útil e pertinente na conjuntura. Basta examinar o seu Sumário e a qualificação autoral que a estrutura:
Parte I – Conceitos e categorias para compreensão do Direito Humano à Comunicação e à Informação sob a perspectiva do Direito Achado na Rua.
– Introdução Crítica ao Direito à Informação e à Comunicação na Perspectiva de “O Direito Achado na Rua”,\ José Geraldo de Sousa Junior, Helga Maria Martins de Paula e Talita Tatiana Dias Rampin;
– O Direito Humano à Comunicação e à Informação: em busca do tempo perdido | Elen Geraldes, Murilo César Ramos, Janara Sousa, Fernando Paulino, Vanessa Negrini, Luiza Montenegro e Natália Teles;
– A Constituinte e a Reforma Universitária | Roberto Lyra Filho (in memoriam);
– A Democracia difícil: é possível um novo contrato social? | Boaventura de Sousa Santos;
– Acesso à Justiça e a pedagogia dos vulneráveis | Ana Maria Araújo Freire (Nita Freire);
– Ciência, comunicação, relações de poder e pluralismo epistêmico | Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gonçalves Rocha;
– Comunicação como exercício da liberdade| Antonio Escrivão Filho e Ísis Menezes Táboas;
Parte II – Reflexões e trajetórias de luta pelo Direito Humano à Comunicação e à Informação.
Marco Legal
– Sociedade da Informação, Direitos Humanos e Direito à Comunicação | Marcos Urupá;
– As mudanças no marco regulatório das telecomunicações no Brasil | Elizabeth Machado Veloso;
– Radiodifusão comunitária: das barreiras do processo de outorga à criminalização da prestação irregular do serviço | Gisela Aguiar Wanderley e Marcelo Barros da Cunha;
– A TV Brasil e o debate conceitual em torno do Artigo 223 da Constituição Federal de 1988 | Natália Oliveira Teles;
– Os direitos autorais como expressão de liberdade seletiva no audiovisual | Pedro Andrade Caribé;
Comunicação e Governo
– O discurso democrático entre governo e esfera pública digital: a construção do portal Dialoga Brasil| Karenina M. Cabral e Francisco Rocha;
– O Direito à Comunicação nos sites de rede social: análise das interações mútuas na página do Humaniza Redes no Facebook| Leonardo Luiz de Souza Rezio;
– Os sites governamentais na era da transparência e da interatividade: um estudo de caso sobre o site do Senado| Valéria Castanho;
– O acesso à cultura e o reconhecimento dos direitos culturais: experiência cubana | Janny CarrascoMedina;
Direito à Informação
– Direito de informar: a participação do cidadão comum | Delcia Maria de Mattos Vidal;
– Jornalismo e Direitos Humanos: o papel do jornalista na concretização do acesso à informação |Angélica Peixoto e Marcela D’Alessandro;
– As verdades da e na gestão pública: uma leitura da lei de acesso à informação e da comissão nacional da verdade | Dirlene Santos Barros e Mônica Tenaglia;
– Direito à Verdade e Comissões da Verdade: direito de informação sobre graves violações de direitos humanos | José Carlos Moreira da Silva Filho;
– Direito à informação sobre transgênicos e agrotóxicos | Viviane Brochardt;
Comunicação e Minorias
– Educação Jurídica Popular e Direito à Comunicação e à Informação: experiências de loucura e cidadania | Ludmila Cerqueira Correia e Olívia Maria de Almeida;
– TV Universitária e o direito à comunicação e à informação | Neuza Meller e Flávio Castro;
– Políticas públicas de comunicação e de cultura em uma perspectiva multicultural: desafios para a diversidade racial e étnica | Luísa Martins Barroso Montenegro;
– Ciberfeminismo e o “Direito Achado na Rede”: o ciberespaço como plataforma de inteligência coletiva e enfrentamentos na luta feminista | Patrícia Vilanova Becker;
– Radiodifusão Sonora Comunitária em Terras Indígenas: os obstáculos da colonialidade na legislação de RadCom | Rosane Freire Lacerda;
Comunicação e Golpe
– Mídia e a nova metodologia de golpe na América Latina: o caso de Honduras | Sílvia Alvarez e Jacques de Novion;
– Cultura, política e moral: as diversas faces da censura na ditadura militar brasileira | Cristiano Paixão e Claudia Paiva Carvalho;
– Comunicação e democracia: o impacto da cobertura televisiva nas manifestações de março no Brasil | Vanessa Negrini, Elen Geraldes e Janara Sousa;
Comunicação Achada na Rua
– O Intervozes e a luta dos movimentos sociais pelo direito à comunicação | Bia Barbosa e Helena Martins;
– Histórico da comunicação popular e contra-hegemônica do MST | Solange I. Engelmann e Ana Iris Nogueira Pacheco;
– Entre Ocupar e Invadir: a disputa midiática sobre o Direito | Geraldo Miranda Pinto Neto;
– Resistência e Arte: o teatro do Movimento de Mulheres Camponesas | Ísis Menezes Táboas, Letícia Pereira e Rosângela Piovesan;
– Fotografia Achada na Rua: dialética e práxis sob o foco de uma câmera | Daniel Vitor de Castro;
– A relação entre a luta sindical e a pauta pela democratização da comunicação | Vanessa Galassi;
Na base dessas reflexões o que a edição põe em causa, é antes de tudo o princípio da liberdade de imprensa contra toda forma de censura e de cerceamento de seu papel como veículo da livre expressão. Mesmo em sistemas em que os meios de comunicação se constituem, como tudo o mais, bem de mercado e de apropriação de grandes proprietários, mantêm-se a salvaguarda de que há prerrogativas a proteger e de que o controle e a fiscalização de suas atividades não podem ser subterfúgios para reduzir o princípio fundamental que é a liberdade de imprensa. Liberdade de imprensa permeada pela perspectiva de se traduzir enquanto espaço de amplo debate e informação, com responsabilidades éticas balizadoras do cuidado que se deve ter quando se é compreendido como formador de opiniões.
Certamente a contrapartida para essa valorização simbólica é não descuidar, que mesmo propriedade, os meios de comunicação se constituem uma esfera pública e têm que realizar os valores democráticos que asseguram o direito à livre informação. Por essa razão, controles sociais não são estranhos em um mundo impulsionado por acelerados processos de globalização, com racionalidades afetadas por demandas regulatórias inéditas e por complexas formas de interação, no plano dos valores, da produção, dos processos democráticos e de garantia dos direitos específicos das e dos profissionais de comunicação.
Não é o que assistimos no Brasil quando a opinião fica adstrita a uma linha editorial que confere aos meios de comunicação o aparato político de ideologização da opinião única, divulgada como se fosse proselitismo de um partido político. E, principalmente quando se associa ou se articula com estratégias de rotulação estigmatizante que se prestam a forjar uma orientação criminalizadora.
É esse o fenômeno que estamos presenciando no Brasil hoje, com os grandes meios mobilizando a sociedade para assumir pontos de vista sobre os problemas sociais, espetacularizando de forma prestidigitadora, manipulando mesmo, a opinião, para alcançar objetivos que servem as suas alianças políticas e econômicas (em países mais nitidamente constituídos no modelo capitalista o que acontece no Brasil é inaceitável e a divulgação espetacularizada de procedimentos de ofício – como denúncias – com o ilusionismo de apresentações valendo-se de efeitos especiais, têm sido base para a anulação judicial dos processos levados a cabo com esses artifícios). E é desastroso quando esse processo agrega agentes públicos que se valem desse espetáculo ilusório para calçar seus objetivos confessáveis ou inconfessáveis de vigilantismo messiânico. São, aqui, os vazamentos seletivos (conferindo perfis criminais sob o manto da informação jornalística), ali, a glamourização do arbítrio (a justificação eficiente da colheita de provas ilegais e abusivas, a tolerância com a banalização das prisões cautelares e preventivas), ali a introdução de instrumentalidade processual na contracorrente do avanço civilizatório (a desqualificação do habeas corpus, da proteção recursal e do duplo grau de jurisdição) e, em suma, para subliminarmente inculcar na mentalidade social a imagem do bode expiatório oferecido em expiação para cumprir função sacrificial, e logo entregar-se às acomodações ao modo de reformas, cujo único intuito, lembra Giuseppe Tomasi Di Lampedusa, é conservar: “se queremos que tudo fique como está é preciso que tudo mude”.
Não alcançaremos amadurecimento democrático e verdadeiramente republicano, sem uma profunda transformação institucional do campo da política e sem introduzir no sistema democrático, como impõe a Constituição Federal de 1988, formas claras e legítimas de controle social dos meios de comunicação, para garantir pluralidade e acesso pleno à informação.
A comunicação no conceito de transparência ativa, de diálogo com a cidadania e com a sociedade, realiza o direito à informação, como direito do cidadão. É condição inescapável, no plano de qualquer institucionalidade, para a construção de um ambiente mais democrático, participativo e transparente, incluindo tanto o direito de ser informado quanto o direito de informar. Não apenas visando ao sujeito da informação e da comunicação, mas também ao produtor da comunicação e da informação, quando se organize de modo independente, autônomo relativamente à propriedade dos grandes meios e engajado em seus compromissos sociais e democráticos. A comunicação, em suma, como lócus da práxis para a necessária transformação social, livre de assédios.
O texto que acompanha a atividade O jornalismo sob assédio judicial, preparado por suas organizadoras e organizadores, é bem contundente:
“A Constituição Federal do Brasil assegura a plenitude da Liberdade de Imprensa como um dos pilares do Estado Democrático de Direito. Isso significa afirmar que a liberdade de expressão e o direito à informação não podem sofrer qualquer tipo de restrição, sob pena de grave violação à democracia, daí porque a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal rejeitou a censura prévia como mecanismo de controle do conteúdo a ser divulgado. O pensamento crítico é inerente ao jornalismo livre e, caso haja violação a direitos individuais, como o direito à honra, por exemplo, o direito de resposta e a indenização são mecanismos legítimos para proporcionar a devida reparação e a coibição de novos abusos. Ocorre que, ao longo dos últimos tempos, o Sistema de Justiça vem adotando mecanismos de controle prévio – edição de textos, supressão de artigos, proibição de publicações, dentre outros – em clara desobediência à previsão constitucional. Além disso, são inúmeros os casos em que o salutar exercício da crítica, assegurando o livre trânsito de ideias e opiniões, é interpretado como ofensivo à honra, hipótese em que o Sistema de Justiça privilegia o direito individual em detrimento do interesse público, o que desafia os preceitos constitucionais. E, ainda, nas hipóteses de condenação à indenização após a publicação da matéria jornalística, o valor estabelecido com base no instituto da responsabilidade civil tem asfixiado o jornalismo independente, que não possui musculatura financeira par arcar com os custos judiciais das demandas que lhe são ajuizadas. Por fim, é preciso destacar que as decisões, marcadas por nítida perseguição ideológica, sufocam o contraditório, próprio do pluralismo de ideias e indispensável ao gozo do direito à informação. Muito embora revestidos de um verniz de legalidade, o chamado “assédio judicial” – controle judicial prévio dos conteúdos jornalísticos, adoção de valores desproporcionais e condenações ideológicas – está submetendo a nossa democracia a risco. Nesse sentido, é essencial que esse debate seja realizado por toda a sociedade, com a colaboração dos profissionais do jornalismo e do sistema judicial. É preciso assegurar que a independência judicial – pilar também essencial do Estado Democrático de Direito – não implique ameaça ao jornalismo livre, plural e independente”.
Participante do debate e tendo sido um dos organizadores da obra tema deste Lido para Você, fui tanto mais mobilizado para essa discussão necessária, quanto ela demonstre que há em nosso país, uma onda obscurantista que nubla o processo democrático, a institucionalidade republicana e turva a função contramajoritária do sistema de justiça e do próprio Judiciário. Mas com a expectativa de que, se recaídas eruptivas de autoritarismo reassentam o sitio à cidadela da autonomia e da liberdade de ensinar, de criticar e de expressão, capturando os caminhos da própria judicialização, há a salvaguarda do monitoramento internacional, em sede de aplicação dos enunciados cogentes do sistema jurídico convencional. Tanto mais se em causa, ameaças à dinâmica democrática.
Nos últimos meses acumularam-se os atos de assédio explícito contra os meios independentes, combinando instrumentos políticos e econômicos, para cujo sucesso obstrutivo do exercício livre do direito de informar, a partir de igrejas, setores econômicos e de áreas da governança, acabou por mobilizar o judiciário numa enxurrada de ações distribuídas país afora. Algumas dessas ações instauradas por juízes inconformados com a crítica à ação judicante numa conjuntura acirrada pelo uso político da jurisdição num fenômeno denominado lawfare. Jornalistas e estruturas independentes de notícias passaram a ser o alvo desse verdadeiro assédio a ponto de tornar praticamente impossível o exercício profissional do jornalismo ou o próprio empreendimento, abalado por condenações, inclusive financeiras, desproporcionais senão exorbitantes. Jornalistas e seus veículos, entre eles Leonardo Sakamoto, Amaury Ribeiro Jr, Elvira Lobato, Vitória Famer e mais gritantemente Luís Nassif, junto com seu trabalho à frente do GGN, caracterizando ainda o que “relatório da Repórteres Sem Fronteira também introduz um tema cada vez mais urgente, embora menos abordado ou questionado do que deveria: a ‘perseguição judiciária como mecanismo de censura’” (veja em: https://noticias.uol.com.br/colunas/camilo-vannuchi/2021/01/14/crescem-os-ataques-a-veiculos-de-comunicacao-e-jornalistas.htm?cmpid=copiaecola; veja também em: https://noticias.uol.com.br/colunas/camilo-vannuchi/2021/01/14/crescem-os-ataques-a-veiculos-de-comunicacao-e-jornalistas.htm?cmpid=copiaecola; conforme também, https://apublica.org/2017/08/e-quando-o-jornalista-e-vitima-de-perseguicao/; situações que estão na raiz da formação de coletivos de solidariedade e de defesa da liberdade de imprensa, no que se enquadra no tema desse debate no qual participei recentemente.
Neste caso, a leitura dos bens tutelados ainda mais robustece o sentido relacional que o conjunto normativo civilizatório mais preserva, tal como, aliás, já decidiu a Corte Interamericana de Direitos Humanos (OEA), conforme expressa o Caso López Lone e outros Vs. Honduras (Sentença de 5 de outubro de 2015), ocasião em que a Corte reconheceu a relação existente entre os direitos políticos, a liberdade de expressão, o direito de reunião e a liberdade de associação. Reconheceu também que, em conjunto, esses direitos tornam possível a dinâmica democrática. Em situações de ruptura institucional, após um golpe de Estado, ou na iminência de que se consume, a relação entre esses direitos torna-se ainda mais manifesta. Do mesmo modo, a Corte apontou que as manifestações e expressões a favor da democracia devem contar com a máxima proteção possível, e, dependendo das circunstâncias, podem estar ligadas a todos ou a alguns desses direitos.
Certamente essa é uma questão que provoca cuidados preventivos no mundo civilizado e engaja os sistemas regionais, tal como a OEA e os sistemas universais, desde a ONU – Organização das Nações Unidas. No Sistema ONU ponho em relevo as Diretrizes para promotores de justiça em casos de crimes contra jornalistas, que a UNESCO atualizou agora ao final de 2020 (unesdoc.unesco.org/in/rest/annotationSVC/DownloadWatermarkedAttachment/attach_import_d89be8ce-3007-4184-8dba-0ef4ccc22585?=375138por.pdf?to=16&from=1).
Remetendo às diretrizes propriamente ditas, chamo a atenção para o trecho do preâmbulo sobre os riscos e ameaças reais e recorrentes contra a liberdade de de expressão e de comunicação:
“Por conseguinte, estas diretrizes reconhecem a importância da liberdade de expressão e de meios de comunicação livres, independentes, plurais e diversificados, tanto online quanto offline. Os promotores de justiça devem considerar esse direito fundamental como essencial na construção e no apoio a sociedades inclusivas, à cidadania informada, ao Estado de direito e à participação nos assuntos públicos, assim como na responsabilização das instituições públicas e suas autoridades. Em todo o mundo, as atividades dos jornalistas frequentemente os colocam em situações de risco específico de violações e abusos a direitos humanos, incluindo assassinato, tortura, desaparecimento forçado, detenção ou prisão arbitrária, expulsão arbitrária, violência física e sexual, bem como intimidação, ameaças e todos os tipos de assédio, inclusive visando a seus familiares. Essas táticas nocivas e perigosas muitas vezes dissuadem os jornalistas de continuar suas atividades, ou incentivam a autocensura, consequentemente, privando a sociedade de informações importantes. Assim sendo, as Nações Unidas instam os países a fazer com que suas leis, políticas e práticas estejam em conformidade com suas obrigações e seus compromissos no âmbito da legislação internacional de direitos humanos…”. Estas diretrizes – diz ainda o preâmbulo, “não visam a atribuir uma condição especial aos jornalistas, sendo todos os cidadãos iguais perante a lei. O objetivo consiste em assegurar o direito de exercer as atividades relacionadas ao jornalismo sob condições que permitam a consecução dos direitos fundamentais”.
Não posso deixar de recuperar, também já tema de um de meus comentário nesta coluna Lido para Você, a obra Todos temos que Lembrar – A lição e a missão do jornalista. CUNHA, Maria Jandyra C. (Org.), CUNHA, Luiz Cláudio, SOUSA JUNIOR, Jose Geraldo de, MOTTA, Luiz Gonzaga, TAVARES, Flávio e BUARQUE, Cristovam. Brasília: Editora UnB, 2013.
O livro reúne os memoriais, pareceres e discursos que precedem e se materializam na cerimônia de concessão do título de Notório Saber em jornalismo a Luiz Cláudio Cunha, pela Universidade de Brasília, em sessão solene do seu Conselho Universitário, no dia 9 de maio de 2011 e foi organizado pela esposa do agraciado, a também professora Maria Jandyra C. Cunha, que agregou à obra, além do material já mencionado, a saudação do Professor Luiz Gonzaga Motta, a minha manifestação na qualidade de Reitor e de Presidente do Conselho, acrescentando um prefácio a cargo do Jornalista Flávio Tavares, ex-professor da UnB e um posfácio do senador e ex-Reitor da UnB, Cristovam Buarque. E, naturalmente, o discurso do homenageado, jornalista Luiz Cláudio Cunha, um dos mais conhecidos e reconhecidos profissionais do jornalismo do Brasil.
Muito pertinente essa evocação, quando na edição, a propósito das inquietações da conjuntura, a Organizadora tenha incluindo na edição, um anexo, contendo uma série de doze artigos de Cunha sobre eventos como o golpe civil-militar de 1964, a tortura, a repressão, os desaparecimentos forçados, a autoanistia, a violência e a impunidade que marcam a alma brasileira, mesmo após o fim da ditadura temas que estão sempre presentes no fascismo inconsciente que se aninha na sociedade brasileira e que em momentos tensos, nos quais se agudizam os dissensos sociais, rapidamente afloram. Por isso, do mesmo modo, anexou o texto A força da palavra, a palavra da força, conferência proferida por Cunha no encerramento do XIV Congresso Internacional de Humanidades Brasil-Chile: Palavra e Cultura na América Latina – heranças e desafios (2011). A Organizadora justifica essa inserção, expressiva sobre ser essa dimensão do trabalho jornalístico de Cunha, algo que o identifica profissionalmente, em temas e estilo. Mas, sobretudo, tal qual uma premonição, porque o texto, tal como Cunha o apresenta, se entrelaça com o tema maior do evento pondo em relevo, no presente e para o futuro, o ancestral conflito entre a liberdade e o autoritarismo no uso da palavra, assunto em boa parte retomado no seu discurso na cerimônia de outorga do Notório Saber.
Com efeito, digo no meu comentário “é a palavra que define o jornalismo, assim se posicionou Flávio Tavares, no prefácio (p. 15-160). E ao dizer isso, referindo-se a Luiz Cláudio Cunha, pontifica para os que se dedicam a esse ofício, principalmente hoje: No mundo da sociedade de consumo, cada vez mais as palavras perdem valor e significação e viram sons indefinidos e difusos, sem compromisso com a realidade. Já não se exige que a palavra se ligue à dignidade da existência. De tanto ser usada em vão, defendendo a mesquinhez, justificando guerras ou a degradação do planeta, a palavra perde o sentido e vira simples som de tambor”.
Vem a calhar a lição de Luiz Claúdio Cunha, se conferimos o seu texto, sobretudo quando ele lembra quadra sombria da história brasileira, uma história de extrema violência institucional, de enorme perigo, principalmente para a higidez das próprias instituições. O alcance da lição está em que ela não isola no passado um acontecimento para recuperá-lo por meio de uma narrativa embora crítica. Mas porque ela mostra que o passado se enrosca no presente e furtivamente se prorroga para o futuro. É recidivo, repristinatório. Sua sombra densa se estende na paisagem e eventualmente ganha nitidez. Como nesse momento, ainda obscuramente mas já se prenunciando em meandros palpáveis. Uma institucionalidade que se fragiliza, uma representação que se falseia, uma juridicidade que se esgarça e eis o paroxismo que volta à tona. O monstro do fascismo não dorme, hiberna.
Por isso que para advertir no presente o que o passado ensina, mencionei uma outra grande lição, esta do historiador (Walter Benjamin, Sobre o Conceito da História. In Obras Escolhidas, Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Editora Brasiliense, 3a. edição, 1987, p. 222-232): construir a história como um relampejar do momento em que vivemos no perigo para que a nossa consciência aberta sobre o seu significado nos oriente à ação transformadora, para o nunca mais.
Em Luiz Cláudio Cunha, em Vladimir Herzog, em Luiz Nassif, no jornalismo independente e de resistência democrática, a lição é antes de tudo um dever de casa, porque visa a abrir o ofício para a experiência política e para a democracia, para recuperar o sentido legítimo da anistia que não se preste de abrigo para perpetradores de crimes contra a humanidade e para a realização plena do projeto de sociedade inscrito na Constituinte de 1988. Projeto contra o qual estão em permanente armação golpes letais de opressões e de espoliações de ontem e de hoje, e dos autoritarismos impertinentes, de qualquer natureza, legislativos, judiciários, midiáticos, civis e militares com os quais se instalam, felizmente, nunca de forma permanente.
Tratei disso também em outros textos, em coluna que mantive durante muitos anos na Revista do SindjusDF, o Sindicato dos Servidores do Judiciário e do Ministério Público do Distrito Federal, ferindo temas como Atividade jornalística e liberdade de imprensa e Liberdade de Expressão e Limites ao Acesso à Informação, depois reunidos em SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Ideias para a Cidadania e Para a Justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008.
Ao fim e ao cabo, lembrava Marx em seus libelos sobre a liberdade de imprensa e de comunicação, que “a primeira condição que precisa ter a liberdade é a autoconsciência” e, em sua autodefesa, aliás seguida de absolvição pelo júri, sob aplausos da audiência, derrubou a denúncia à sua condição de editor: “Por que deveria a imprensa fazer qualquer denúncia post festum, depois de uma decisão ter sido tomada? A função da imprensa é ser o cão-de-guarda público, o denunciador incansável dos dirigentes, o olho onipresente, a boca onipresente do espírito do povo que guarda com ciúme sua liberdade” (O Papel da Imprensa como Crítica de Funcionários Governamentais|).
Revendo esses textos, dou-me conta que então como agora, as coisas estariam se passando, para lembrar conhecida crítica de Marx (Debates sobre a Liberdade de Imprensa e Comunicação, em A Liberdade de Imprensa, L&PM Editores, Porto Alegre, 1980), num crescendo de restrições à liberdade como prova irrefutável de que os governantes foram convencidos de que a liberdade deve ser restringida. Alguns comentários até se preocuparam com o desfocamento da questão, mostrando o maniqueísmo que acabou resultando do acirramento de posições (Luiz Gonzaga Motta, Além do Maniqueísmo, http://www.unb.br/acs/artigos/at0804-04.htm, a ponto de se perder de vista a dimensão republicana do debate, uma vez que “o jornalismo é um espaço público, não pertence a governos nem deve ter donos. Pertence à sociedade”.
O Sumário do Livro, organizado em duas partes, a primeira para configurar o panorama brasileiro e a segunda o estrangeiro, exibe a boa organização da obra, seja pela convocação dos expertos que a ela acudiram cujas bibliografias, indicam concomitante a associação de seus estudos e obras e percurso no campo (p. VII-XIII), sejam pelo desdobramento analítico do tema elaborado por meio de itens que revelam o cuidado coordenador do livro, inclusive na extensão de cada texto. Não surpreende, conhecendo a boa formação das Organizadoras ao impulso orientador da homenageada, reconhecidamente uma das principais referências fundantes do Direito Sanitário, juntamente com Sueli Gandolfi Dallari e Celso Campilongo, estes vinculados ao CEPEDISA, por eles institucionalizado enquanto área de pesquisa e de pós-graduação na Universidade de São Paulo.
Para efeito deste texto de divulgação desdobro o sumário, no seu desenho analítico e autoral:
PARTE 1 – PANORAMA BRASILEIRO
POR QUE UMA TEORIA GERAL DO DIREITO SANITÁRIO?, Jairo Bisol e Moacyr Rey Filho; 2. A IMPORTÂNCIA SOCIAL DO SUS, Alethele de Oliveira Santos, Lourdes Lemos, Almeida; 3. O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE E A EMENDA CONSTITUCIONAL: IMPACTOS SOBRE O DIREITO DEMOCRÁTICO À SAÚDE, Jarbas Ricardo Almeida Cunha; 4. A IMPORTÂNCIA DA PRODUÇÃO NORMATIVA PARA A EFETIVAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE NO BRASIL, Luiz Carlos P. Romero; 5. DIREITO À SAÚDE, DEMOCRACIA E TEORIA DA REGULAÇÃO, Márcio Iorio Aranha; 6. DEMOCRACIA SANITÁRIA: UM CAMINHO AINDA LONGO A PERCORRER, Fernando P. Cupertino de Barros; 7. A DEMOCRACIA ELETRÔNICA NO SETOR SAÚDE: UM PROCESSO EM CONSTRUÇÃO, Sandra Mara Campos Alves; 8. JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE, DIÁLOGOS INSTITUCIONAIS E O STF, Daniel dos Santos Rodrigues e Jordão Horácio da Silva Lima; 9. AS OMISSÕES NA JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE, Clenio Jair Schulze; 10. PODER REGULAMENTAR DA ANVISA NO CONTROLE DOS PRODUTOS DERIVADOS DO TABACO: ANÁLISE DA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 4.874, Edith Maria Barbosa Ramos e Dhiego Melo Job de Almeida; 11. REGULAMENTAÇÃO DO CULTIVO DA CANNABIS PARA FINS MEDICINAIS: O PROBLEMA DA CONCESSÃO DE HABEAS CORPUS PREVENTIVO PARA AUTORIZAÇÃO DO PLANTIO DOMÉSTICO DA MACONHA SOB O FUNDAMENTO DO DIREITO À SAÚDE, Alvaro Luis de A. S. Ciarlini.
PARTE 2 – PANORAMA ESTRANGEIRO
PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS EM SAÚDE: ANÁLISE DAS LEGISLAÇÕES BRASILEIRA E ARGENTINA, Amanda Nunes Lopes Espiñeira Lemos e Edilenice Passos; 13. INTERVENCIÓN DE LAS NIÑAS, NIÑOS Y ADOLESCENTES EN ACTOS MÉDICOS SEGÚN EL NUEVO DERECHO PRIVADO ARGENTINO, Viviana Perracini; 14. EL SEGURO DE SALUD PROVINCIAL FRENTE A LOS AMPAROS EN SALUD: ¿UNA CONDENA ANTICIPADA?, Augustín Carignani; 15. A DEMOCRACIA SANITÁRIA E OS DIREITOS DOS DOENTES ONCOLÓGICOS EM PORTUGAL, André Gonçalo Dias Pereira, Ana Elizabete Ferreira e Carla Barbosa; 16. DAÑOS EN EL SENO DEL CONTRATO DE CLÍNICA U HOSPITALIZACIÓN: RÉGIMEN DE RESPONSABILIDAD EN EL DERECHO ESPAÑOL, Joaquín Cayón-de las Cuevas; 17. LA SOCIOLOGIA DELLA MEDICINA IN PROSPETTIVA SISTEMICA, Giancarlo Corsi.
As organizadoras homenageiam Maria Célia Delduque, quando ela se jubila de suas funções públicas depois de um percurso institucional de Pesquisadora em Direito Sanitário da Fundação Oswaldo Cruz, fundadora do Programa de Direito Sanitário daquela instituição, do qual esteva à frente da coordenação por 13 (treze) anos.
Foto: Governo do Brasil
Conforme a Apresentação elaborada pelas Organizadoras, claramente influenciadas pela homenageada, porque também participaram como alunas e depois colegas docentes, pesquisadoras e gestoras de políticas de saúde, no ensino e na pesquisa em Direito Sanitário e também na Fiocruz Brasília, onde contribuíram para a criação do Curso de Especialização em Direito Sanitário, sendo, até hoje, a única oferta pública e gratuita neste campo do saber.
Ainda na Apresentação, as Organizadoras indicam parte do percurso de Maria Célia, que também foi “responsável pela coordenação pedagógica de cursos de Direito Sanitário junto a relevantes órgãos que guardam estreita relação com a garantia do Direito à Saúde, tais como: Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU); Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS) e Conselho Nacional de Secretário Municipais de Saúde (CONASEMS). Coordenou, ainda, cursos internacionais de Direito Sanitário apoiados pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS). Nessa esteira, integrou (e integra) programas de pós-graduação stricto sensu, ministrando a disciplina de Direito Sanitário e orientando dissertações e teses nessa área, além da participação em inúmeras bancas de defesa de trabalhos acadêmicos”.
A bibliografia da homenageada, prossegue com o relevo de sua contribuição no campo da pesquisa e na coordenação de importantes projetos, muitos deles financiados por órgãos de fomento nacionais, selecionados por meio de editais públicos. A Apresentação destaca o protagonismo da homenageada na “proposição de parcerias internacionais, com o objetivo de difundir a reflexão sobre o Direito Sanitário para além do território brasileiro. Nesse sentido foi membro fundadora da Rede Ibero-Americana de Direito Sanitário (2011) e da Associação Lusófona de Direito da Saúde (2015), permanecendo em cargos de direção junto a essas instituições por longo período. É também autora de inúmeros artigos acadêmicos, capítulos de livros, além de organizadora de obras coletivas, sempre tendo como foco a defesa e garantia do Direito à Saúde e do Sistema Único de Saúde (SUS)”.
Os textos que compõem o livro, fruto da organização que coordenou a sua elaboração amplificam o núcleo político-epistemológico desse diálogo fazendo da obra uma demonstração eloquente do sentido orgânico do agir acadêmico e intelectual. Marca o protocolo da continuidade de coletivos de pensamento e de pesquisa (Domenico de Masi,A Emoção e a Regra) que asseguram o avanço da inteligência à disposição do bem comum e da felicidade humana (Rousseau, na monografia de 1750, Um Discurso sobre as Ciências e as Artes).
Assim como os Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário (CIADS) a publicação trilíngue (português, espanhol e inglês), trimestral, de acesso livre, editada pelo Programa de Direito Sanitário da Fundação Oswaldo Cruz/Brasília. Dirigido por professores, pesquisadores e estudantes de Direito, Ciências da Saúde e Ciências Sociais; operadores do Direito; profissionais de saúde e gestores de serviços e sistemas de saúde, com o objetivo de difundir e estimular o desenvolvimento do Direito Sanitário na região ibero-americana, promovendo o debate dos grandes temas e dos principais desafios do Direito Sanitário contemporâneo, a publicação, das mais importantes da área, tem Maria Célia Delduque, da Fundação Oswaldo Cruz/Brasília, na direção editorial e também as Organizadoras e muitos dos autores e autoras que estão presentes no livro.
Eu próprio integro o seu Conselho Científico, desde a sua criação, com participação também autoral, embora bissexta, porque meu engajamento nesse tema é mais incidental, numa aproximação que busca associar o tema nuclear do campo epistemológico do Direito Sanitário ao da política, pelo recorte da construção democrática, aliás, trabalhado por mais de um autor ou autora no livro ora Lido para Você.
Assim, o meu artigo Concepção e prática do O Direito Achado na Rua: plataforma para um Direito Emancipatório, que saiu na edição v. 6 n. 2 (2017): (ABR/JUN. 2017), https://doi.org/10.17566/ciads.v6i2.389. Recupero aqui o resumo do artigo publicado: “Objetivo: o artigo tem o objetivo de resgatar a história da série O Direito Achado na Rua, lançado em 1987. Metodologia: fez-se um resumo histórico das publicações seriadas sobre o tema a fim de organizar a memória da coleção. Resultados: todos os números da série compõe uma coleção de referência do Direito e da Cidadania estabelecendo um diálogo entre a justiça social e o conhecimento necessário para sua realização e concretização. Conclusão: o Direito não é; ele se faz nesse processo histórico de libertação enquanto desvenda progressivamente os impedimentos da liberdade não lesiva aos demais. Nasce na rua, no clamor dos espoliados e oprimidos, até se consumar, vale repetir, pela mediação dos direitos humanos, na enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade”.
Nota-se, o artigo ao resgatar a história da Série O Direito Achado na Rua, na qual o Direito à Saúde foi tema de dois volumes, o 4 e o 6, este em espanhol numa parceria entre a UnB, a Fiocruz e a OPAS, “El Derecho desde la Calle”, confirma o aporte relevante do tema na bibliografia do Direito Crítico a ponto de terem esses dois volumes vindo a se constituir material de referência do campo. Mas, sobretudo, também põe em relevo a enorme contribuição de Maria Célia Delduque para a própria constituição desse campo (a propósito, ver em Jornal Estado de Direito, a minha Coluna Lido para Você, tendo como objeto o livro Introdução Crítica ao Direito à Saúde: https://estadodedireito.com.br/28656-2/).
A publicação dessa obra se dá num momento crítico para o mundo e para o país, quando nos encontramos assombrados por uma pandemia que mostra toda a vulnerabilidade da vida quando se combinam o modo temerário de cuidar do planeta, de dar prioridade ao econômico e à acumulação e não à equidade distributiva da riqueza em atenção ao social e à inclusão e de fazer a gestão coordenada da política.
Mais que nunca a saúde e o direito sanitário se fazem urgentes. E o livro é uma contribuição para atender a essas urgências. A sua organização, os seus autores e as suas autoras oferecem as pistas para repensar o sentido das prioridades e as diretrizes para a boa gestão das políticas de saúde e sanitárias.
De há muito, desde os debates constituintes de 1988 conduzidos pelo Movimento de Direito Sanitário que inscreveu na Constituição a saúde como direito e não como mercadoria, refuta-se a desculpa do improviso que chega a ser criminoso. Fiquei bem impressionado com um recente resgate desse percurso, que de resto, inclui minhas considerações sobre a construção social da cidadania e a afirmação como direito de todos e dever do estado, no espaço pré-constituinte instaurado nos eventos da 8ª Conferência Nacional de Saúde, exposto na dissertação de mestrado de Dorival Fagundes Cotrim Júnior Resistências Institucionalizadas: Gênese e Lutas do Movimento Sanitário Brasileiro, defendida na PUC-RJ em 2019.
E mais ainda com o modo pertinente com que sintetizou, ao discorrer sobre a oitava, a minha abordagem, de modo a figurá-la nos elementos, diz em seu texto: “Assim, os elementos “representação, liberdade e participação têm sido a tônica das reivindicações democráticas” ampliadoras da cidadania, passando do plano político ao social, segundo o autor; e que no país as lutas não eram pela tomada de poder (âmbito político), mas uma luta pelo direito de organização e de participação nas decisões. No âmbito social o problema não era apenas defesa/conservação de certos direitos, mas o da conquista do próprio direito à cidadania e a instituição do sujeito social desse direito” (p. 151-152). Considero uma boa síntese.
Em 2007, no espaço de debate do Observatório da Constituição e da Democracia que os Grupos de Pesquisa Sociedade, Tempo e Direito e O Direito Achado na Rua, editavam na Faculdade de Direito da UnB, em edição dedicada ao Direito e Saúde, a entrevista desse número foi conduzida pelas pesquisadoras Maria Célia Delduque e Mariana Siqueira de Carvalho Oliveira, que ouviram a Professora Sueli Gandolfi Dallari, num “Balanço da Saúde no Brasil: SUS, Participação Social, Formação Sanitária e Agências Reguladoras” (C&D Constituição e Democracia, nº 13, maio de 207, p. 12-13). Temas amplos, mas ao final uma dramática antevisão: “O ponto frágil do sistema de saúde brasileiro é o olhar para as questões de vigilância sanitária e epidemiológica. Trabalhar com estruturas separadas não funciona. Não se pode ter um emaranhado de estruturas burocráticas, que precisam dialogar. O fato é que a vigilância sanitária ainda hoje é uma estrutura pouco privilegiada no nosso sistema de saúde e é a mais importante. Se nós fizermos isso bem, inclusive a visão da assistência será outra”.
Se é verdade, conforme diz o Papa Francisco (Mensagem para o IV Dia Mundial dos Pobres, em 15 de novembro de 2020), de que essa “pandemia chegou de improviso e apanhou-nos impreparados, deixando uma grande sensação de desorientamento e impotência”, a experiência histórica e política do agir responsável não podem ser um improviso: “Não nos improvisamos instrumentos de misericórdia. Requer-se um treino diário, que parte da consciência de quanto nós próprios, em primeiro lugar, precisamos duma mão estendida em nosso favor”, como agir misericordioso ou como agir por vocação política no interesse do bem comum.
Uma mão estendida responsável, que se integre e coordene nas ações de solidariedade, sobretudo no plano político, e que não se amolde ao parasitismo oportunista do Chupim, a ave passeriforme sempre referida por causa da constante luta dos filhotes desta espécie pela alimentação oferecida pelos pais adotivos em detrimento aos irmãos, pois não constrói ninhos e deposita seus ovos em ninhos de outras espécies, com o instinto matreiro de o fazer um pouco antes para “rachar” a alimentação em benefício de sua postura, mesmo que a custa da morte dos filhotes do hospedeiro (como no caso dos tico-ticos), eliminados do ninho ou recebendo menos alimento, à custa de suas probabilidades de sobrevivência (https://www.wikiaves.com.br/wiki/chupim).
Não fosse o comportamento da ave uma metáfora da conduta abusiva na política que corrói toda a paciência, porque zomba de tudo e de todos, com desenfreada audácia, no Palatino ou na ronda noturna da cidade, sem respeito ao povo, sequer às Instituições e ainda insiste, já descobertas as razões e as conspirações soturnas, que confrontam a dignidade, a civilidade e a boa fé na governança.
Quem, nesses tempos, dentre nós, se pode dizer ainda, ignora o que foi feito na noite passada e na precedente, onde estiveram, com quem se encontraram, que decisão tomaram, enquanto não se levante uma voz ou vozes como a de Cícero (63 a. C.) para incriminar os atentados de Catilina contra o povo e a República, quousque tandem abutere patientia nostra?.
Que se ponha cobro a tanta afronta. Para o Papa Francisco, sob essa perspectiva, é preciso resgatar a caridade como dimensão sublime da política porque ela representa a abertura de “caminhos de esperança”. Na Carta Encíclica Fratelli Tutti sobre a Fraternidade e a Amizade Social (São Paulo: Edições Paulinas, 2020), o Papa Samaritano exorta: a “recente pandemia permitiu-nos recuperar e valorizar tantos companheiros e companheiras de viagem que, no medo, reagiram dando a própria vida. Fomos capazes de reconhecer como as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns que, sem dúvida, escreveram os acontecimentos decisivos da nossa história compartilhada”.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Traços Especial 5 Anos. Brasília: Associação Traços de Comunicação e Cultura, novembro/dezembro de 2020.
“Quando se pega uma revista Traços nas mãos você sente que ela pulsa. Que continuará pulsando. Porque arte é sangue” (Poeta Nicolas Behr, na abertura editorial do número especial 5 Anos).
O número especial abre assim, com a epígrafe poética de Nicolas Behr, o poeta-guia de Brasília. Não há amigo ou colega forasteiro, que chegando em Brasília, eu não o introduza à cidade com os poemas de Nicolas. Poemas e prosa que fui acompanhando refinarem-se, como os traços de Niemeyer, pois “nem tudo que é torto é errado, vejam as pernas do Garrincha e as árvores do Cerrado”. Desde Iogurte com Farinha, Chá com Porrada e tantos escritos mimeografados como devem ser os textos de protesto, que recebíamos nos 1980 nas filas do teatro da Escola-Parque, na W3 Sul, nas portas do Cine Brasília, do Atlântida, do Karim da 110 sul, tempos em que a arte ocupava os espaços, alguns dos quais depois se converteram em templos para adoração de bezerros de ouro.
Nicolas é a primeira lição, em poesia, que ofereço aos visitantes. Confiante na sua interpretação da cidade. Por isso que, Reitor, tive o Nicolas na agenda das aulas de inquietação nas quais, na UnB, no teatro de arena, eu recepcionava a cada semestre a comunidade universitária. Ali Nicolas falou de Brasília e do Brasil, na sequência das interpelações instigantes de Miguel Nicolelis, Amyr Klink, Ênio Candotti, Leonardo Boff, Clarice Niskier, Gog, Juliano Cazarré, José Miguel Wisnisk, Eric Nepomuceno, Marcelo Gleiser e, no último semestre de meu mandato, Boaventura de Sousa Santos.
A segunda lição é dada com as crônicas de Conceição Freitas. Na cronologia de seu mergulho na escala humana da cidade, não apenas a bucólica, a arquitetônica e a monumental. Por isso tenho instigado Conceição, agora dedicada ao refúgio cultural de sua banca de jornais na 308 Sul – Banca da Conceição, que continue o seu mergulho desde o banquinho de sua banca. Uma expectativa que guardo sobre constituir esse viés interpretativo da cidade, mais pelo imaginário e pelo intuitivo, talvez até pelo contraintuitivo, tal como expressei em meu Lido para Você sobre o livro de Clôdo Ferreira – Comunicação e Música, e sobre o Guia Musical de Brasília (https://estadodedireito.com.br/comunicacao-e-musica/). A banca afinal, é uma espécie de academia. Neste começo de janeiro, celebrando seus aniversários, tal qual a ABL, Conceição recebeu com máscaras e bolo seus acadêmicos mais assíduos e como ela diz “humanos fundamentais”,José Carlos Córdoba Coutinho e Vladimir Carvalho.
“A Traços é muito mais que uma simples revista. É um projeto social, coletivo e participativo. Porque a Traços é a maior aliada dos que brigam para ter direito à cidade e dos que lutam pelo direito de se manifestar nos espaços públicos. Expandindo o conceito de Brasília, dissociando a cidade-capital da ideia de poder. Mostrando os primeiros sinais de uma identidade cultural, rebelde, nesse diverso caldeirão cultural que é a Grande Brasília. A Traços é uma intervenção urbana ambulante. Que valoriza o impresso. Não dá pra deletar esta revista. Muito mais que informação a Traços estampa dignidade. Pois ela é comercializada pelos e pelas Porta-Vozes da Cultura. Que são, na verdade, também multiplicadores, difusores de cultura. Muitos desses e dessas porta-vozes, que viviam em estado de vulnerabilidade social, deixaram as ruas, pois com a venda de Traços conseguiram renda própria. Isso se chama cidadania. Isso se chama reinserção social” (Trecho do Editorial do número especial).
Projeto bem sofisticado, conduzido por uma equipe técnica e politicamente experiente e com clareza acerca da concepção gráfica e filosófica do empreendimento. A Traços, eles explicitam e reeditam neste número especial, “é uma publicação sobre arte e cultura, vendida nos espaços culturais e gastronômicos de Brasília pelas mãos dos Porta-Vozes da Cultura – pessoas que estavam em situação de rua ou em extrema vulnerabilidade financeira. Por meio da revista, o projeto contribui com a geração de renda e o ganho de autonomia dos Porta-Vozes (coordenados e orientados conforme um Código de Conduta), que ficam com 70% de valor de cada exemplar”
O modelo do projeto não é inédito. A Revista The Big Issue Japan ajuda e dá ofício para homeless. O projeto se inspira em experiência inglesa com uma proposta para ajudar moradores de rua. Está no país desde 2003 e oferece um ofício para quem não tem onde morar, como um incentivo para sair dessa situação, além de servir para que as pessoas voltem a socializar e aprendam um trabalho novo.
De certo modo essas experiências compõem o que já se designa como organização internacional dos moradores de rua –http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252005000100003. Uma das iniciativas mais bem-sucedidas internacionalmente são os chamados street papers, jornais e revistas elaborados ou vendidos por moradores de rua, e têm sido tema de debates em conferências, que já ultrapassaram mais de dez realizações da International Network of Street Papers (INSP), uma rede internacional que abrange as publicações do gênero.
A matéria publicada conforme a referência acima, dá conta de uma Rede dos Sem-Teto, sediada em Glasgow, na Escócia, que reúne 55 publicações de 28 países, responsáveis pela circulação total de 26 milhões de exemplares por ano. Todas as publicações são editadas em papel de boa qualidade, apresentam projetos gráficos inovadores e, além de questões ligadas ao cotidiano dos moradores de rua, abordam assuntos relacionados a arte, entretenimento, projetos sociais e comportamento. A rede começou a ser tecida em 1991, com a revista inglesa The Big Issue, inspirada na iniciativa do Street Journal vendido pelos chamados homeless (sem-teto) de Nova York.
A matéria dá conta também de experiências no Brasil. Duas publicações brasileiras integram a INSP: a revista Ocas da Organização Civil de Ação Social, entidade criada em 2002 em São Paulo e no Rio de Janeiro, e o jornal Boca de Rua, de Porto Alegre, que já participou de duas conferências da INSP:
“Embora faça parte da rede, cada jornal ou revista executa seu projeto de forma autônoma e coerente com a realidade da qual faz parte. O jornal Boca de Rua, por exemplo, atua de modo diferente da grande maioria das publicações que integram a INSP. Na medida em que são apenas vendidas por moradores de rua, poucas delas têm o seu conteúdo integralmente feito por eles, já que o objetivo principal desses jornais e revistas é a geração de renda. ‘A proposta do Boca de Rua é diferente: é dar voz a quem não tem. Nossa meta é conferir cidadania aos moradores de rua, por meio de um projeto de comunicação’, afirma Rosina Duarte que, juntamente com Clarinha Glock e Eliane Brum, criaram o Boca de Rua no ano de 2000. As jornalistas são responsáveis pela reuniões semanais de pauta e pela edição final do jornal. Boa parte da finalização consiste na transposição da linguagem oral para a escrita, já que a maioria dos 35 moradores de rua que produzem o conteúdo do jornal, é analfabeta. O tema de cada edição, as reportagens, fotografias e ilustrações são discutidos e produzidos pelos moradores de rua, que também escolheram o nome e o logotipo do jornal.
A experiência do Boca de Rua permite, assim, lembrar uma faceta pouco discutida a respeito dos moradores de rua: a sua exclusão cultural. ‘A exclusão cultural e a material não devem ser concebidas de modo isolado, pois são simultâneas. Buscar a integração social dos moradores de rua fornecendo-lhes apenas a alternativa para a sobrevivência econômica ou comida e abrigo é importante, porém insuficiente. Essas pessoas procuram, como quaisquer outras, um sentido para a sua existência e só por meio da cultura é que essa busca se faz possível’, afirma a antropóloga Cláudia Magni, da Universidade de Santa Cruz do Sul (RS)”.
É sobre essa experiência que o filme “De Olhos Abertos”, da diretora e roteirista Charlotte Dafol, trata em seus 112 minutos. Lançado pela Agência Livre para Informação Cidadania e Educação (ALICE), o filme conta a história dos quase 20 anos do jornal Boca de Rua. O filme já foi indicado em diversos festivais pelo mundo, e, recentemente, o documentário foi selecionado para o Hollywood Independent Filmmaker Awards, um festival de produtores independentes realizado em Hollywood, nos Estados Unidos (https://www.brasildefators.com.br/2021/01/11/documentario-sobre-jornal-boca-de-rua-e-selecionado-em-festival-de-hollywood?fbclid=IwAR2ZjLiFbfzRguZpzUbdA69VBSdk92dswlBcOeaRhUYbwJytX-OfuaJQGZQ).
Eis aí o horizonte de verdadeira inclusão e de protagonismo como condição para engajar, para além do empreendimento, a verdadeira emancipação desses sujeitos como titulares de sua própria interpretação da vida e da realidade. Sempre me impressionou e me mobilizou nesse sentido, a disponibilidade de minha colega de UnB a professora, hoje aposentada e notável escritora (por todos menciono seus livros Perdão África Perdão: Jornalismo Peregrina Entre os Cinco Continente; Crônica do Salário Mínimo; Além do Silêncio: Peregrinação Ecumênica por Mosteiros da Europa; Memória e Libertação), Arcelina Helena Públio Dias, atualmente entre seus retiros espirituais em mosteiros do mundo ou em Vila Boa de Goyaz, ou Goiás Velho, mas que na universidade e nos movimentos populares, desenvolveu projetos de formação em jornalismo comunitário.
Para Arcelina, “Revistas de rua no mundo lutam contra a exclusão. Revistas e jornais voltados para os problemas dos excluídos podem ser encontrados em quase todas as metrópoles do primeiro mundo. Semanais ou mensais, esses periódicos são vendidos pelas ruas, bares e metrôs, por desempregados, organizados em associações, o que lhes garantem, como renda, no mínimo, metade do valor de cada exemplar. A tiragem ultrapassa, na maioria das vezes, cem mil exemplares. O Street News, de Nova Iorque, e o Big Issue, de Londres, chegam a tirar meio milhão”. Ela participou ativamente, em Brasília, do surgimento, em final de 1997, da primeira revista pela inclusão social, vendida na rua por desempregados: NÓS – resultado de um curso de formação de jornalistas comunitários.
Penso que esse será um caminho indeclinável para Traços. Realizar rotineiramente o que há pouco celebrou como se fora um tesouro na ponta do arco-íris: “Traços tem primeira Porta-Voz da Cultura a iniciar uma graduação”, trazendo a história de Priscila do Carmo, que sonha em ser juíza de Família”:
“A Revista Traços começou o ano com uma grande notícia para o time de Social da publicação, que há três anos mantém de pé o projeto de inclusão social de pessoas em situação de rua ou extrema vulnerabilidade. Com base na geração de renda e autonomia, a iniciativa oferece aos Porta-Vozes da Cultura, os vendedores da Traços, setenta por cento do valor de capa de cada exemplar. E foi assim que a Porta-Voz Priscila do Carmo Limoeiro, 29 anos, conseguiu se planejar para estudar, fazer a prova do ENEM e garantir, este ano, o ingresso na graduação em Direito do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). As aulas começaram no dia 12 de fevereiro, mas Priscila já tem planos e sonhos a longo prazo: quer ser juíza de Vara de Família”.
Priscila costuma circular em meu território da Asa Norte e da UnB e é dela, prioritariamente, que recebo edições atualizadas de minha coleção de Traços. E mais de uma vez precisei mediar com gerentes e proprietários o seu direito e a importância de circular entre as mesas de seus estabelecimentos para exercitar o seu papel de porta-voz de um projeto cultural que impulsiona objetivos de inclusão e de circulação cultural para fazer pulsar a cidade. Fazer valer a sua engajada proposta editorial: “A proposta de Traços rompe com o traçado racionalista de Brasília, desafia a burocracia, o oficial. Escancara com a tensão entre o Plano Piloto (centro histórico) e as quebradas. E dessa tensão, desse conflito, nasce a arte, brota a criatividade, germina a lucidez de tantos artistas, consagrados e iniciantes. Todos têm vez e voz em Traços”.
A foto de Priscila, está estampada nesse número especial de Traços, posto que ela não seja a sua homônima das catacumbas em que se escondessem os primeiros cristãos na ainda clandestinidade romana. Com a sua 27 outras estampas aparecem na edição, num painel de “alguns dos porta-vozes da revista Traços”, entre as 300 pessoas que “ao longo dos primeiros cinco anos da publicação” foram recebidas no projeto. Todos eles, e todos os que foram atendidos no projeto, têm seus nomes impressos na edição comemorativa, na consideração dos editores que esperam “que gostem do passeio por essa história que, agora, já não é mais ó nossa”, porque, eles afirmam, “a Traços é da gente!”. Do mesmo modo, há registro remissivo dos “artistas, espaços e iniciativas culturais que passaram por nossas páginas nos últimos cinco anos”.
Vislumbro nesse projeto aquela dimensão discursiva que inseri como argumento ao participar do projeto Feirinha do Quadrado (https://www.feirinhadoquadrado.com.br/) quando convidado por sua coordenadora Carolina Nogueira para participar de uma live abrindo a sessão de debates do projeto, para discutir o tema Quem tem direito a Brasília? Tal como se pode ver na página, a descrição da proposta estava assim orientada: “No primeiro debate, a Feirinha do Quadrado 2020 tem a alegria de receber o ex-reitor da UnB José Geraldo de Sousa Júnior, ideólogo do Direito Achado na Rua. Ele discute conosco e com Luísa Porfírio e Guilherme Black, da ONG No Setor, como o direito à moradia, à livre circulação e ao lazer é distribuído na cidade de Brasília. Pessoas que moram na rua, vendedores ambulantes, pessoas que não moram no Plano Piloto: quem tem direito a Brasília? Em que contextos os espaços urbanos são apropriados de maneira real, para além de eventos temporários?” (https://quadradobrasilia.com.br/feiras/os-debates-da-nossa-vida-parte-1/?fbclid=IwAR2AqzFPfz-4W2QXTrUlkblkqDbbCFWhk_WaLcfnlZJQJFkwaA9pWlTpclE).
Ao fim e ao cabo, procurei, como se pode ver em minas locuções na live, recuperar o sentido de polis que o social reivindica para o projeto de Brasília, e que orienta a ação e o discurso sobre a cidade, na disputa entre consumo e cidadania, e que precisa ir além da civitas e da urbs, a cidade bela e funcional, pensada no projeto e usufruída por sua elite descendente dos pioneiros e com sensível tensão com os descendentes dos candangos, e inserir na interpretação da cidade o lugar que só a história de protagonismos pode inscrever, para a instaurar como polis (ver, em adição, minha coluna Lido para Você, publicada no Jornal Estado de Direito (https://estadodedireito.com.br/a-rua-de-todo-mundo/).
Número especial, o Sumário da edição é, necessariamente, um revival (está dicionarizado, pelo menos no Houaiss). Renascimento e ressurreição. Traz uma matéria de cada ano e, naturalmente, do ano 5, tudo embalado com muita arte, arrojo gráfico e ensaios, prosa, verso, fotografia. Entre elas de Luis Humberto. Desse mestre da fotografia, eu já disse, também em minha Coluna Lido para Você: “retenho a lição do duplo olhar intimista, para o dentro e para o fora (HUMBERO, Luis. Do Lado de Fora da Minha Janela. Do Lado de Dentro da Minha Porta. Brasília: tempo d’imagem, 2010)” (https://estadodedireito.com.br/retratofalado/).
Assim esse número especial de Traços de tantas linhas que se desenrolam para tantos enredamentos e que fecha a edição como uma espécie de profecia tão bem exibida pela querida Maria Maia: “vivemos face a face sem disfarce”.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
Lido para Você é uma coluna escrita pelo professor José Geraldo de Sousa Junior sobre livros, teses, dissertações, relatórios de pesquisa. Sugestões de leituras e notas para editores sobre justiça e direito.
Coluna Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito Algumas Contribuições da Neurociência Cognitiva para Explicar a Decisão Judicial, de Daniel Alves Pessoa. Tese de Doutorado defendida na Faculdade de Direito da UnB, como parte do Progr...
Coluna Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito Entre a Ocupação, a Certificação e a Titularidade da Terra: a Luta pelo Direito à Terra da Comunidade Quilombola de Macambira – RN. ÁUREA BEZERRA DE MEDEIROS. Dissertação de Mestra...
Minha Coluna Lido para Você publicada hoje no Jornal Estado de Direito (Entrelugares de Direito e Arte: experiência artística e criação na formação do jurista, de Marta Gama)
Coluna Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito Entrelugares de Direito e Arte: experiência artística e criação na formação do jurista, de Marta Regina Gama. Fortaleza: EdUECE, 2019, 445 p. O trabalho de Marta...
Coluna Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito A Razão da Idade: Mitos e Verdades. Brasília: MJ/SEDH/DCA, 2001, 248 p. Em Lido para Você anterior, com minha leitura sobre o trabalho Sujeitos de Direito Invisíve...
Texto de José Geraldo de Sousa Junior (articulista do Jornal Estado de Direito), para a Coluna Lido para Você, sobre a Dissertação de Mestrado de Gabriela Maria Mendonça (Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, do CEAM/UnB
Coluna Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito Sujeitos de Direito Invisíveis: o Clamor Silenciado de Crianças e Adolescentes em Situação de Rua, de Gabriela Maria Fernandes Mendonça. Dissertação de Mestrado. Brasília: UnB/Centro...
Coluna Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito Um Perfil do Advogado Brasileiro. Abril/1996 Uma Pesquisa Nacional. Brasília: Editora Brasília Jurídica/Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil/Comissão de Ensino Jurídico...
Coluna Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito Memória e Perspectivas. 50 Anos de Letras da Universidade de Brasília (1962-2012). Sylvia Helena Cyntrão e Enrique Huelva Unternbaumen. Instituto de Letras – Brasília – 2013, 215 p. ...
Coluna Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito Política & Direito, Uma Visão Autopoiética., de Benjamin Zymler. Curitiba: Juruá, 2002, 228 p. Entre os achados do livro de Benjamin Zymler, Política e Direito. Uma visã...
Coluna Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito As Dimensões do Direito à Moradia; o protagonismo da mulher na política de habitação de interesse social, Arleide Meylan, Tese de Doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em...
Coluna Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito O que é Justiça. Uma Abordagem Dialética, de Roberto A. R. de Aguiar, São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1a. edição, 1982, 110 p. ....
Coluna Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito Título da Obra – Direitos Humanos e Tenebrosas Transações: Um Estudo sobre os Usos do Direito na Aprovação da PEC do Congelamento dos Gastos Públicos, de Pedro Pompeo Pistelli Ferre...
Coluna Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito A Universidade Interrompida: Brasília 1964-1965, de Roberto A. Salmeron. Brasília: Editora UnB, 2ª Edição Comemorativa dos 50 Anos da UnB, 2012. 490 p. A reed...
http://estadodedireito.com.br/estudos-sobre-a-unb/ Está disponível o artigo do professor José Geraldo Sousa Junior da coluna Lido para Você no Jornal Estado de Direito. Tem interesse em ser Articulistas do Estado de Direito, entre em contato conosco, de forma coletiva mantemos um projeto independente voltado ao fomento da popularização do Direito como instrumento de cidadania. Acesse, comente e compartilhe esse artigo!
Coluna Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito Gestão Universitária – Estudos sobre a UnB, volume 1, organizado por César Augusto Tibúrcio Silva e Nair Aguiar-Miranda, Brasília: Editora UnB, 2011, 515 p; volume 2, 483 p. ....
Coluna Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; COSTA, Alexandre Bernardino; e MAIA FILHO, Mamede Said. A Prática Jurídica na UnB. Reconhecer para Emancipar, Coleção Prática Jurídica, vol. 1. Brasíli...
Coluna Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito BERNARDES, Helton Fonseca. Estratégias Punitivas e Legitimação. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005. 279 p. ... Lei...
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito DO DIREITO AUTOCONSTRUÍDO AO DIREITO À CIDADE. Porosidades, conflitos e insurgência em Saramandaia. De Adriana Nogueira Vieira Lima. Salvador: EDUFBA, Coleção PPG-AU,ISBN 978-85-232-1845-4, 2019, 302 ...
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito JUSTIÇA PROCEDIMENTAL. A Prática da Mediação na Teoria Discursiva do Direito de Jürgen Habermas, José Eduardo Elias Romão, Brasília: Maggiore Editora, 2005, 195p. ....
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito SOUSA JUNIOR, José Geraldo de (Organizador). Sociedade Democrática, Direito Público e Controle Externo. Brasília: Tribunal de Contas da União/Universidade de Brasília. 2006, 534 p. Sempre que s...
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito SOUSA JUNIOR, José Geraldo de (Organizador). Sociedade Democrática, Direito Público e Controle Externo. Brasília: Tribunal de Contas da União/Universidade de Brasília. 2006, 534 p. Sempre que s...
Está disponível artigo do professor José Geraldo Sousa Junior responsável pela coluna Lido para Você no Jornal Estado de Direito. Ficamos muito felizes em poder compartilhar conhecimento com apoio de professores que tanto admiramos. Leia, comente e compartilhe!
Já está disponível para leitura o artigo de José Geraldo de Souza Junior, Registro Arquitetônico da Universidade de Brasília-UnB, articulista do Jornal Estado de Direito. Leia, comente e compartilhe. Carmela Grüner.
Coluna Lido para Você por José Geraldo de Sousa Junior*, articulista do Jornal Estado de Direito ARAÚJO, Thiago Matias de Sousa. A Experiência Educativa do Lições de Cidadania (2005-2013). Dissertação de Mestrado. Natal: Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2014, 26...
Coluna Lido para Você José Geraldo de Sousa Junior* PAOLI, Maria Célia (Organizadora). Diálogos com Marilena Chauí. São Paulo: Editora Barcarolla, 2011, 260 p. Ao final de setembro de 2018, entre os dias 24 e 26, a Universidade de Brasília homenageou a filósofa Marilena Chauí, com...
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito SOUSA JUNIOR, José Geraldo de (Organizador). Na Fronteira: Conhecimento e Práticas Jurídicas para a Solidariedade Emancipatória. Porto Alegre: Editora Síntese, 2003, 463 p. REBOUÇAS, Gab...
já está disponível para a leitura o artigo de José Geraldo de Sousa Junior, Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federa, da Coluna Lido para Você. Leia. comente e compartilhe. Abraços Carmela Gr...
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito BRAZ, Graziela Palhares Torreão. Crime Organizado e Direitos Fundamentais. Brasília: Editora Brasília Jurídica, 1999, 190 p. Mais de meio século vigente e o Código Penal Bra...
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição...
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição...
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Está disponível para leitura o artigo do professor e Articulistas do Estado de Direito José Geraldo de Sousa Junior da coluna Lido para Vocêhttp://estadodedireito.com.br/relatorio-de-direitos-humanos-5-anos-de-najurp/ . Boa leitura e compartilhe!
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição...
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José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade…
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição...
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José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e
feliz professor!
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