Brasília
e os discursos de apropriação: da urbs à polis
Embora o contexto
trazido pela citação pareça contemporâneo às nossas cidades, ele faz parte de
trecho da Carta de Atenas, escrita pelo urbanista Le Corbusier em 1931, durante
o Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos de Monumentos Históricos que
ocorreu na Grécia
CORREIO BRAZILIENSE, OPINIÃO,
24/04/2024, p. 11
JOSÉ GERALDO DE SOUSA
JUNIOR*
BENNY SCHVARSBERG**
SABRINA DURIGON MARQUES
e LUDMILA CORREIA***
"Ficando
a cidade saturada, sem poder acolher novos habitantes, fez-se surgir
apressadamente cidades suburbanas, vastos e compactos blocos de caixotes para
alugar ou loteamentos intermináveis. A mão de obra intercambiável, que
absolutamente não está ligada por um vínculo estável à indústria, suporta de manhã,
à tarde e à noite, no verão e no inverno, a perpétua movimentação e a
deprimente confusão dos transportes coletivos. Horas inteiras se dissolvem
nesses deslocamentos desordenados." (Carta de Atenas)
Embora o contexto
trazido pela citação pareça contemporâneo às nossas cidades, ele faz parte de
trecho da Carta de Atenas, escrita pelo urbanista Le Corbusier em 1931, durante
o Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos de Monumentos Históricos que
ocorreu na Grécia.
Brasília, erguida no
período que imediatamente antecede à ditadura militar e dentro do propósito
modernista, teve como um de seus principais inspiradores Le Corbusier, membro
de um grupo de urbanistas modernos que acreditavam serem capazes de mudar a
vida das pessoas a partir da arquitetura e do urbanismo. Tivemos, no início da
década de 1960, uma conjuntura que minava fortemente a participação popular nas
discussões sobre os rumos que a cidade tomaria a partir de sua ocupação e
consolidação. Ao mesmo tempo em que o momento político reprimia a vontade
popular e a ocupação das ruas, o ideário arquitetônico e urbanístico moderno se
julgava com potencial de resolver, de cima para baixo, os problemas da cidade.
Mas a tomada da rua
pelo povo não desapareceu, ficou desvanecida até a redemocratização do país e,
recentemente, passou por novo processo de esvaziamento por quase uma década,
quando vivemos um momento de forte repressão política nas ruas. Vivemos agora
novas oportunidades de resgatar as esferas democráticas representadas pela rua
— enquanto espaço público da ação —, por meio dos processos de caráter
participativo em andamento, mesmo que limitadamente, no Distrito Federal.
O Plano Diretor de
Ordenamento Territorial passa por processo de revisão, tendo sido realizadas
oficinas nas diferentes regiões administrativas. A estrutura de governança para
sua revisão conta com um Comitê de Gestão Participativa, que vem gerindo, junto
à Secretaria de Estado de Desenvolvimento Urbano e Habitação do DF, os debates
que culminarão com uma proposta legislativa a ser enviada à CLDF. Antes disso,
no entanto, serão promovidas as audiências públicas, para as quais é
indispensável, amparada no marco legal do Estatuto da Cidade, a participação da
população distrital.
Outro projeto em debate
público atualmente na CLDF é o Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de
Brasília (PPCUB), que regula a área tombada como patrimônio pela Organização
das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e traz a
possibilidade de pensar a requalificação de diversas áreas pouco ocupadas ou
esquecidas pela mudança dinâmica da cidade.
Também este ano, o
governo federal convocou a Conferência Nacional das Cidades para novembro, com
o mote Cidades Inclusivas, Participativas e Socialmente Justas, com subtemas:
cidades dignas, solidárias, sustentáveis e dinâmicas. Transformar Brasília, uma
das cidades mais desiguais do mundo, em uma cidade justa e solidária, é um dos
desafios que está colocado para nós, seus habitantes.
A Conferência Distrital
é etapa do ciclo local precedente à nacional, e está prevista para setembro
deste ano, com o tema Função Social da Cidade e da Propriedade Urbana,
oportunidade em que poderemos reivindicar a escala humana de Brasília,
repensando a cidade enquanto bem comum, que deve ser igualmente usufruída por
todas as pessoas, independentemente do local de moradia. As cidades têm caráter
dinâmico, mudam constantemente. A Brasília de 1960 não existe mais. É preciso
adequar a legislação às demandas populares a fim de que tenhamos uma cidade
democrática e em conformidade com os objetivos da Nova Agenda Urbana,
proporcionando um espaço público que acolha toda a população.
Passados 64 anos de
criação da nossa capital, já acumulamos experiência suficiente para adequar o
espaço concebido ao espaço vivido, e por isso "vamos precisar de todo
mundo" para construir a Brasília que queremos para as presentes e futuras
gerações. A transformação de nossa capital em uma pólis só será possível com a
efetiva tomada do protagonismo pela população.
Cada um de nós —
técnicos do governo, comunidade acadêmica, entidades de classe, os movimentos
sociais, os coletivos e todas organizações da sociedade civil — dentro de
nossas competências, tem um papel fundamental a desempenhar. Enquanto os
técnicos do governo trazem sua experiência em políticas, planejamento e gestão
públicos; a comunidade acadêmica desenvolve pesquisas, análises e propostas
embasadas em conhecimento científico; as entidades de classe representam os
interesses de diversos setores da sociedade; e os movimentos sociais e
coletivos trazem a voz das comunidades vulnerabilizadas, defendendo seus
direitos e necessidades. Agindo de forma articulada, poderemos avançar no
sentido de efetivar a participação social no planejamento das cidades, rompendo
com a lógica autoritária de cima para baixo e fortalecendo as dinâmicas
democráticas e participativas.
*Professor emérito e
ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)
**Professor titular da
UnB e integrante do Comitê de Gestão Participativa
***Professoras
universitárias e integrantes do Comitê de Gestão Participativa, acompanham a
revisão do Plano Diretor de Ordenamento Territorial
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