quinta-feira, 28 de julho de 2022

 

A Voz dos(as) Invibilizados(as) no STF e STJ

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

Título original: Manuela de Santana Passos. A Voz dos(as) Invibilizados(as) no STF e STJ: a Eficácia do Grupo de Atuação Estratégica das Defensorias Públicas Estaduais nos Tribunais Superiores (GAETS) para a Defesa dos Direitos Humanos de Grupos Vulneráveis. Dissertação de Mestrado. Brasília: UnB/Faculdade de Direito, 2022, 161 f.

 

Anne Carolline Rodrigues da Silva Brito. Diálogos entre Justiça Comunitária e Justiça Restaurativa: um estudo a partir da experiência do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Dissertação de Mestrado. Brasília: Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, 2022, 133 f.

 

         Do que trata o trabalho, seu desenvolvimento e as conclusões a que chega, com o conforto de qualificada bibliografia que lhe dá sustentação, e com a nítida e segura orientação, conduzida pela professora Débora Bonat, do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito, da UnB, diz bem o seu Resumo:

O presente trabalho acadêmico investiga as atividades desenvolvidas pelo Grupo de Atuação Estratégica das Defensorias Públicas estaduais nos Tribunais Superiores (GAETS) para a formação de precedentes favoráveis aos direitos humanos de pessoas vulneráveis. Objetiva avaliar se as ações desenvolvidas por seus membros, como o uso de técnicas de litigância estratégica e advocacy, contribuem de maneira efetiva para a persuasão dos ministros em demandas judiciais sensíveis ao público assistido pela instituição Defensoria Pública e quais pontos podem ser potencializados. A metodologia empregada incluiu entrevistas semi diretivas com membros do GAETS, análise quantitativa dos processos com participação das Defensorias estaduais no STF e STJ e exame qualitativo de julgados destes órgãos com intervenção do grupo de defensores públicos. Os resultados obtidos demonstraram que a participação dos membros do GAETS nos processos criminais do STJ ocorre em cerca de 31% dos feitos, enquanto que nas ações em geral essa participação se reduz a aproximadamente 8% dos processos. Há, pois, uma preponderância de atuação do coletivo em matéria de Direito Penal no STJ. No âmbito do STF, a proporção de processos com atuação das Defensorias estaduais é reduzida, girando em torno de 1% das demandas, também com prevalência na seara criminal. Constatou-se que existe considerável diferença entre a demanda das diversas Defensorias estaduais do GAETS. Qualitativamente, concluiu-se que as atribuições do GAETS, seus peticionamentos enquanto amicus curiae, sustentações, uso de pesquisas, reuniões com ministros e outros instrumentos de litigância estratégica contribuem positivamente para que as cortes superiores emanem jurisprudência benéfica aos socialmente excluídos e expostos. Sugestionou-se, ainda, que a designação de profissionais com atuação exclusiva nas atividades do GAETS, criação de um sistema informatizado para o grupo e de uma estrutura administrativa própria (com coordenação) poderiam otimizar os resultados do labor desenvolvido.

Não tenho ressalvas de fundo a opor ao bem elaborado trabalho. Considero que a Mestranda, além de coordenar com pertinência os elementos empíricos de sua pesquisa para dar consistência a análise que desenvolve em face dos objetivos de sua pesquisa, realiza uma outra dimensão de sua disposição acadêmica que é a de estabelecer um ponto de vista para a sua observação, potencializando o alcance de essencialidade atribuída pela Constituição ao órgão de sua atuação, a Defensoria, naquilo que mais acentua a sua subjetividade conduzida para a consecução dessa essencialidade.

Por isso que me sinto autorizado a lhe oferecer uma indicação sobre o alcance desse posicionamento, que a meu ver, melhor corresponde aos seus objetivos e pressupostos, vale dizer, orientar-se segundo a compreensão de que a Defensoria é “uma instituição incumbida constitucionalmente de promover os direitos humanos dos vulneráveis, a Defensoria Pública tem o dever de garantir-lhes o acesso à justiça em todos os níveis e zelar para que esta defesa esteja além do plano formal. Os obstáculos a enfrentar com este fim são muitos, vez que enraizadas na sociedade brasileira estruturas de opressão do público alvo da Defensoria Pública, a exemplo da população preta e indígena, pessoas em situação de rua ou com deficiência, mulheres, idosos(as), crianças e adolescentes, LGBTQIs e outros grupos que lutam por dignidade e igualdade”.

Assim, aliás, ela começa o seu texto. Gosto de avaliar, logo no primeiro parágrafo, como um texto começa. Se a redação carrega força condutora para o que vem a seguir. Nunca me saiu da memória a primeira frase do Espírito das Leis, de Montesquieu: “As leis são as relações necessárias que derivam da natureza das coisas”. Em que pese poder divergir do autor depois, em muitos pontos, sente-se logo a vitalidade desse enunciado a se desenvolver com a qualidade que caracteriza essa obra fundacional.

Para aludir  a Robert Musil, em sua disposição de conferir qualidade, ela própria de quem, diferente do que é sem qualidade (Robert Musil, O Homem sem Qualidades), se recusa a uma “existência [que não seja] feita, naturalmente, de ações, não de discursos de que assimilamos o ponto de vista, de opiniões e de contra-opiniões correspondentes numa palavra da acumulação impessoal de tudo quanto sabemos ou ouvimos”.

Confrontando o que é opinião e contra-opinião, me chama a atenção as três primeiras notas de roda-pé:

1 O uso da terminologia “direitos humanos” em detrimento de vernáculos como “direitos fundamentais” ou “direitos”, lato sensu, decorre do viés do trabalho desenvolvido pela Defensoria Pública, no sentido de ampliação da proteção jurídica, política e normativa de vulneráveis, para incluir direitos consagrados internacionalmente, indo além da mera tutela de direitos individuais. O termo “direitos” pode dar a entender que a instituição protege apenas direitos individuais, enquanto que o termo “direitos fundamentais” refere-se apenas aos direitos humanos consagrados constitucionalmente. A expressão “direitos humanos”, por sua vez, engloba os direitos fundamentais e ainda outros previstos em documentos internacionais, mesmo que não oficialmente incorporados ao ordenamento interno. 2 Este trabalho pretende utilizar linguagem de gênero inclusiva. 3 Inicialmente foi utilizado o termo “invisíveis” para tratar dos grupos vulneráveis assistidos pela Defensoria Pública. Todavia, considerando que as pessoas não são de per si invisíveis e apenas não são enxergadas por estruturas sociais opressoras, o termo foi substituído por inviabilizados(as)

Essas três notas são para mim como que chaves de leitura do trabalho. E por essa razão questiono por que a Autora, tão vivamente interpelada pela perspectiva hermenêutica de desvendamento, conforme aliás sugere Boaventura de Sousa Santos para vencer silenciamentos de toda ordem e ater-se ao que é ausente e emergente, incluindo posições descolonizadoras, não se valeu da expressão vulnerabilizados(as) ao invés de vulneráveis.

Já no título da Dissertação, mas na abertura de posicionamento constato o que me parece ser uma exigência de posicionamento. Diz a Autora:

 

Todos devem ter voz e visibilidade para que a democracia realmente se consolide no Brasil e, assim, seja possível sonhar com a efetiva justiça social. O fortalecimento e o êxito de instituições contramajoritárias é condição indispensável para tanto, pois elas são muralhas que barram ataques às liberdades, em tempos tormentosos de arroubos antidemocráticos. A missão da Defensoria Pública é árdua, ainda mais porque os recursos estatais são minguados quando direcionados aos(às) invisibilizados(as), o que provoca o atual estágio de não implementação plena do órgão em todas as cidades do país. A instituição precisa utilizar a inteligência, numa realidade de recursos materiais e humanos muito limitados, e assim obter os melhores resultados possíveis em defesa dos direitos humanos. Para além da atuação casuística em processos judiciais, os(as) defensores(as) públicos(as) precisam articular-se e, com uma litigância estratégica, contribuir para a formação de jurisprudência favorável aos(às) seus(suas) assistidos(as), irradiando efeitos com a construção judicial do direito. Defender os direitos dos(as) necessitados(as) não se resume ao mero peticionamento e o patrocínio de causas individuais ou coletivas. Envolve principalmente o empoderamento e a consciência de direitos das minorias, dos movimentos sociais, o entusiasmo político, jurídico e social dos direitos humanos, no plano judicial, extrajudicial, nacional e internacional.

 

É certo que na passagem ela retoma o termo inscrito na Constituição e na Lei Complementar sobre a defesa de necessitados(as). Mas a expressão vulnerabilizados(as) já tem curso firme em posicionamentos da Instituição e de seus quadros mais conscientes.

Em texto de recensão, conforme está em coluna (Lido para Você), que mantenho no Jornal Estado de Direito, tratei do livro Defensoria Pública e a tutela estratégica dos coletivamente vulnerabilizados ((Orgs): Lucas Diz Simões, Flávia Marcelle Torres Ferreira de Morais, Diego Escobar Francisquini. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019, 948 p.), conferir em http://estadodedireito.com.br/defensoria-publica-e-a-tutela-estrategica-dos-coletivamente-vulnerabilizados/.

 Lançamento primoroso da Editora D’Plácido, este livro, conforme a nota de seus organizadores “aborda temas sensíveis à atuação das defensoras e defensores públicos na seara transindividual, pautando-se pela narrativa doutrinária atrelada a casos práticos relevantes”.

As suas 948 páginas compreendem uma apresentação, a cargo de Maria Tereza Aina Sadek, um prefácio assinado por Boaventura de Sousa Santos uma nota dos organizadores, seguindo-se doze partes. Além desses, 62 autores e co-autores assinam textos, distribuídos nessas doze partes, examinando-se no seu conjunto: 1 – diversos ramos do direito material – liberdades (religiosa, de expressão etc), infância e juventude, idoso, mulher, populações de rua, imigrantes, quilombolas, indígenas, direito à cidade, trabalho, moradia, saúde, pessoas com deficiência, em privação de liberdade, consumidor, meio ambiente etc; 2 – atuação judicial e extrajudicial via projetos de educação em direitos, de mediação, grupos de trabalho, requisições administrativas, recomendações, audiências públicas, TAC e outras formas de resolução consensual de conflitos, acordos de cooperação, atuação em rede, ações civis públicas, mandado de injunção coletivo, HC’s coletivos etc; 3 – Defensoria como parte e também 3ª interveniente via amicus curiae, custos vulnerabilis, custos plebis, amicus communitas, ombudsman (defensor del pueblo) e 4 – concepção das vulnerabilidades e sua organização coletivizada.

Para a apresentadora os artigos que compõem a obra “apresentam teses inovadoras e práticas que demonstram não apenas a preocupação de defensores públicos, professores e operadores do direito com questões relevantes, mas sobretudo evidenciam como suas atuações, em diferentes áreas, têm concretizado direitos, contribuindo para superar situações vividas por vulnerabilizados”.

O livro, conforme o prefácio de Boaventura de Sousa Santos, mostra de modo eloquente como “um conjunto notável de juristas profissionalmente bem preparados e com um sentido extraordinariamente vincado de compromisso com mandato da Constituição, se manteve firme na defesa dos direitos das classes e dos grupos sociais coletivamente vulnerabilizados”.

Com Alberto Carvalho Amaral, Defensor Público em Brasília e como minha colega professora na Universidade de Brasília Talita Tatiana Dias Rampim, contribuímos para a obra com o artigo “Exigências críticas para a assessoria jurídica popular: contribuições de O Direito Achado na Rua”, p. 803-826.

Também com Albeto Amaral e Talita Rampin, organizei o livro Direitos Humanos e Covid-19. Grupos sociais vulnerabilizados e o contexto de pandemia. Prefácio de Boaventura de Sousa Santos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2021, cf. em http://estadodedireito.com.br/direitos-humanos-e-covid-19/).

Já o Prefácio de Boaventura de Sousa Santos – O coronavírus, nosso contemporâneo, começa por oferecer uma leitura panorâmica mas crítica que abrange o campo interpretativo da pandemia e a afetação de grupos vulnerabilizados sob a perspectiva dos direitos humanos.

Em nosso texto de organizadores, que abre o livro, está assim resumido: “a partir dos pressupostos teóricos de O Direito Achado na Rua e visualizando as mudanças drásticas de rotinas, vidas e relacionamentos, o texto procura situar o acesso à justiça em tempos de pandemia do Covid-19, problematizando uma situação de isolamento que é marcada pelas dessemelhanças estruturais, que fragiliza ainda mais os grupos socialmente. Compreender o acesso à justiça exige, com ainda maior força, visualizar para além da letra positivada e visualizar o não-dito, mas socialmente inegável, na busca de minorar a exclusão de direitos dos excluídos”.

Em nossaa abordagens nesses trabalhos, colocadas as questões pressupostas, focalizamos dois aspectos destacados que pede enfoque teórico e também prático: 1- A Defensoria Pública como necessário ator qualificado para o alargamento e a democratização do acesso à justiça; 2 – O projeto “Defensoras e Defensores Populares do Distrito Federal”: ação difusora e conscientizadora sobre direitos humanos, cidadania e ordenamento jurídico.

No primeiro aspecto, para nós, o acesso à justiça constitui-se direito fundamental garantido pela Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada aos 5 de outubro de 1988 – CF/88 e não significa, necessariamente, acesso ao Judiciário. Partimos de uma visão axiológica da expressão “justiça”, que representa uma determinada ordem de valores e direitos fundamentais para o ser humano. Esse tema tem sido pesquisado por juristas e sociólogos, como Mauro Cappelletti e Bryant Garth , que consideram que o acesso à justiça pode ser encarado como o mais básico dos direitos humanos inseridos no contexto de um sistema jurídico moderno e igualitário, comprometido com a garantia (e não apenas com a proclamação) do direito de todos .

E com certeza, a Autora da Dissertação parece perfilhar essa dimensão alargada de acesso, para inferir, até em concordância comigo no que toca ao transbordar o próprio institucional, do papel de defesa interinstitucional que a Defensoria realiza, a possibilidade de fortalecer uma atuação sem a qual não alcança salvaguardar, diz ela, os direitos “da população vulnerável”:

a instituição também cumpre importante papel na defesa interinstitucional da população vulnerável, cooperando e fiscalizando o trabalho de outras instituições (a exemplo de órgãos do Poder Executivo, do Judiciário e do Ministério Público) para a adoção de providências para o avanço dos direitos fundamentais dos vulneráveis. Sousa Júnior, ao tratar sobre o alargamento do acesso democrático à justiça, indica como estratégia para ir além da institucionalização a consideração da participação popular no processo democrático além de seu formato individualizado, priorizando a organização coletiva.

 

A partir de entrevista que concedi ao Boletim DPU Escola Superior Fórum DPU Defensoria Pública e Acesso à Justiça, nota-se a emergência de uma agenda relevante de temas estratégicos, nos planos teórico e de aplicação, que logo se fez interpelante para prosseguir em análises que aprofundem a relação entre o sentido institucional-funcional da Defensoria Pública e a questão desafiante do acesso à justiça. Apesar de inicialmente pensados na articulação da Defensoria Pública da União e de suas atribuições específicas, dada a própria temática da entrevista, esses temas são instigantes para a atuação de todas as Defensorias Públicas estaduais e do Distrito Federal, emergindo como vórtices para uma atuação para além dos fixos quadros de processualização formal das violações a direitos.

Uma primeira questão para organizar essa agenda se coloca quase intuitivamente: quais seriam os principais desafios institucionais, econômicos e sociais de acesso à justiça?

Uma forte consideração nesse tema e, sobre ele, registros e reflexões que estão contidas em trabalhos nos quais as aproximações desde O Direito Achado na Rua, sua concepção e prática vem acumulando, sempre pensando um modo alargado de concepção do tema que leve em conta exatamente confrontar e superar esses obstáculos. O pressuposto para tal é apostar na democratização da sociedade e da justiça, abrindo-as à crescente participação da cidadania de modo a reduzir as barreiras econômicas, institucionais e sociais por meio de reconhecimento de sujeitos coletivos e de protagonismos que desindividualizem as demandas, pela afirmação das dimensões políticas que ordenam os conflitos mais agudos em nossa sociedade. Esse é um modo para deslocar a questão dos entraves burocráticos que pedem medidas modernizadoras – novos códigos, mais agentes, novos procedimentos – quando a questão é o questionamento da Justiça a que se tem acesso e o modo democrático de ampliar esse acesso.

Em resumo desse acumulado, o que baliza uma aproximação, que nos caracteriza, é conceber a assessoria jurídica popular como uma estratégia para promover o acesso ao direito e à justiça dos cidadãos, especialmente os subalternizados, na medida em que atua para que estes conheçam seus direitos e não se resignem em relação às suas violações bem como tenham condições para superar os obstáculos econômicos, sociais e culturais a esse acesso. Tomando os pressupostos da assessoria jurídica popular, na perspectiva de O Direito Achado na Rua, trata-se de acentuar a relação de compromisso político com os sujeitos coletivos organizados e movimentos sociais cuja atuação expressa práticas instituintes de direitos, e a combinação de instrumentais pedagógicos, políticos e comunicacionais com a dimensão jurídica. O que significa realizar um exercício analítico que desloca a centralidade e prioridade da norma estatal enquanto referencial de legitimidade e validade do direito, para encontrar como referencial os processos sociais de lutas por libertação e dignidade.

Voltando a minha Entrevista para o Boletim da DPU, e no interesse do debate nesta arguição, transcrevo uma pergunta que me foi posta: “Em que medida a atuação junto a instituições internacionais pela DPU são relevantes para a garantia do acesso à justiça?”.

Lembro essa questão para acentuar a relevância da atuação da Defensoria nesse âmbito caracterizado na Dissertação como o de “atuação da Defensoria Pública nos Sistemas de Justiça Nacional, Interamericano e Internacional de Direitos Humanos, um campo fundamental para abrir ensejo à plena atenção aos interesses dos vulnerabilizados no espaço de litigação estratégica.

Na minha resposta lembro que num tempo de globalização e de internacionalização das lutas sociais e dos direitos humanos, não é apenas uma exigência de natureza interlocutora ou de intercâmbio, para trocas de conhecimentos e de experiências, é um requisito de desempenho porque a salvaguarda dos direitos segue o princípio do jus cogens e caminha para a consolidação do reconhecimento da jurisdição universal relativamente a direitos da humanidade. A DPU precisa se instalar no âmbito dessa jurisdição porque nesse campo é inevitável prosseguir a defesa de direitos nas cortes internacionais. Por isso, o desafio político de estar sempre reavaliando a sua função social e política e ao mesmo tempo atualizando criticamente os pressupostos de sua cultura epistemológica de formação jurídica, algo que não se esgota com a diplomação acadêmico-universitária.

Retomei esse tema em duas oportunidades recentes de diálogo com a Instituição. Primeiro, em curso de formação para os defensores recém-nomeados (XXIV Curso Oficial de Preparação à Carreira de Defensora e Defensor Público Federal, em Brasília,  modos de pensar o Direito, inspirado em teorias de sociedade e teorias de justiça para abrir o jurídico para dimensões ampliadas e complexas que o social coloca de maneira instituinte desafiando o agir constituído. Então eu discorria sob a perspectiva formulada por O Direito Achado na Rua, sua concepção e prática.

Depois, em programa de formação da Escola Superior da Defensoria Pública do Estado da Bahia, participar do “Curso Sobre o Sistema Interamericano de Direitos Humanos”, desenvolvendo, exatamente, o módulo “História e internacionalização dos direitos humanos, pela perspectiva da teoria crítica dos direitos humanos”. Nesse passo, praticamente, o capítulo II, de meu livro em co-autoria com Antonio Escrivão Filho (Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019), voltado para o tema Um Panorama do Cenário Internacional dos Direitos Humanos, porém recortado em duas partes, a primeira tratando do Direito Internacional dos Direitos Humanos e a segunda, Sobre a exigibilidade e justiciabilidade, e o ambiente do Sistema Interamericano de Direitos Humanos.

Com a Autora da Dissertação tenho que sem a projeção para o plano de litigação estratégica, em defesa dos direitos humanos dos vulnerabilizados, não se completa o exercício pleno das atribuições da Defensoria Pública.

Em artigo de opinião – Crime de Desacato Viola Direitos Fundamentais e a Liberdade de Expressão – Jornal Brasil Popular em 11 de março de 2022 (https://www.brasilpopular.com/crime-de-desacato-viola-direitos-fundamentais-e-a-liberdade-de-expressao/ ), trouxe a debate a notícia de que a CIDH – Comissão Interamericana de Direitos Humanos, acolhera denúncia da DPU – Defensoria Pública da União por considerar que crime de desacato viola direitos fundamentais e a liberdade de expressão. Para o órgão internacional, que vai debater o assunto, condenação de homem que insultou PF pode violar a liberdade de expressão.

A notícia esclarecia que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) havia admitido petição da Defensoria Pública da União (DPU) contra o Estado brasileiro conforme relatório publicado dia 21/2. Nesse relatório consta que a petição alegou violações à liberdade de expressão de um homem condenado pelo crime de desacato por chamar um agente da Polícia Federal de “vagabundo”.

Conforme relato da DPU, o cidadão foi denunciado pelo Ministério Público Federal (MPF) e julgado pela Vara Criminal de Florianópolis, cujo magistrado o condenou com base em depoimentos de outros policiais federais. A suposta vítima recorreu à Turma Recursal e teve a sentença mantida. Seu pedido ante a Turma Nacional de Uniformização (TNU) foi inadmitido, e os embargos de declaração, rejeitados.

A Defensoria Pública sustentou o esgotamento dos recursos internos, vez que uma inadmissão proferida pela Presidência da TNU é irrecorrível, enquanto um recurso extraordinário no Supremo Tribunal Federal (STF) não seria efetivo, pois a Corte já havia se pronunciado sobre outros casos de desacato, reforçando a condenação dos réus. Completou afirmando que a revisão criminal não seria um recurso efetivo e que a condenação não poderia ser discutida na esfera civil.

Para além do aspecto constitutivo do tema em debate, que afronta um princípio nuclear da carta americana de direitos, relativo à salvaguarda do processo democrático, o tema expõe um grau acentuado do modo de atuação do judiciário brasileiro que tende a esvaziar as promessas constitucionais e legislativas de realização emancipatória do jurídico. Do piso (instâncias ordinárias), ao teto (o próprio Supremo Tribunal Federal).

Com efeito, na contra-mão de um continuado adensamento que a OEA (Organização dos Estados Americanos) por seus instrumentos de monitoramento dos direitos fundamentais derivados da Convenção Americana, vem estabelecendo no sentido de que legislações nacionais e decisões jurisprudenciais em temas como desacato e difamação penal (Relatorias Especiais 1998, 2000, 2002, 2004),  para afirmar “a necessidade de derrogar esta normativa a efeitos de ajustar a legislação interna aos padrões consagrados pelo sistema interamericano quanto ao respeito ao exercício da liberdade de expressão. É intenção da Relatoria continuar este acompanhamento a cada dois anos, já que é um tempo prudente para permitir, aos distintos Estados membros, levar adiante os processos legislativos necessários para as derrogações ou adaptações legislativas recomendas”; enquanto, “lamentavelmente, a Relatoria considera que não houve avanços significativos desde a publicação do último relatório sobre a questão: são muito poucos os países que derrogaram de sua legislação as leis de desacato” (https://www.oas.org/pt/cidh/expressao/temas/desacato.asp).

Admitida a petição a DPU adverte sobre o impacto que resultará desse debate quando o próprio STF em julgamento precedente, de junho de 2020, na ação de ADPF 496/2015, proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), fixou a tese de constitucionalidade e convencionalidade do crime de desacato.

Parte da ementa do acórdão ((ADPF 496, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 22/06/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-235 DIVULG 23-09-2020 PUBLIC 24-09-2020), sustenta, a meu ver impropriamente, que “de acordo com a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos e do Supremo Tribunal Federal, a liberdade de expressão não é um direito absoluto e, em casos de grave abuso, faz-se legítima a utilização do direito penal para a proteção de outros interesses e direitos relevantes”.

Ressalvem-se os votos vencidos dos ministros Luiz Edson Fachin e Rosa Weber. Para Fachin, seja por ofender os tratados internacionais, seja por ofender diretamente o próprio texto constitucional, o crime é inconstitucional. Para a ministra Rosa Weber na mesma linha, no caso da tipificação do crime de desacato, sobressai o particular interesse social em que seja assegurada a livre opinião relativamente ao exercício de função de interesse público.  Segundo ela, em consonância com a diretriz contínua da OEA, “uma sociedade em que a manifestação do pensamento está condicionada à autocontenção, por serem os cidadãos obrigados a avaliar o risco de sofrerem represália antes de cada manifestação de cunho crítico que pretendam emitir, não é uma sociedade livre, e sim sujeita a modalidade silenciosa de censura do pensamento”.

Aliás, os Relatórios de monitoramento têm sido enfáticos (http://www.oas.org/es/cidh/expresion/docs/informes/desacato/Informe%20Anual%20Desacato%20y%20difamacion%202004.pdf), no sentido da incompatibilidade das leis de desacato com o artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos. O problema reside, se vê, lembrava o ex-Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, Antonio Augusto Cançado Trindade, em vencer o obstáculo do positivismo que ainda impede, no país, internalizar no direito nacional, as decisões cogentes das Cortes Internacionais de Direitos Humanos sobre Tradados e Convenções relativas a Direitos Humanos.

De todos esses aspectos tratou a Dissertação, conduzido para a conclusão do que bem responde a sua pergunta de pesquisa: “a atuação das Defensorias Públicas estaduais e do GAETS está sendo eficiente para a construção de jurisprudência favorável aos direitos humanos de grupos vulneráveis no STF e STJ. Ademais, buscou analisar a sistemática de trabalho do grupo e indicar aspectos a serem aprimorados para o melhor desenvolvimento de suas funções. As hipóteses levantadas para a investigação foram em sua maioria confirmadas. Com efeito, a litigância estratégica das Defensorias Públicas estaduais e a atividade de advocacy dos(as) defensores(as) no STF e STJ trouxeram importantes resultados na evolução da jurisprudência em favor dos invisibilizados”.

A Autora teria grande proveito para a continuidade de seus estudos, a partir do criterioso levantamento de dados que realizou, no diálogo com estudos muito avançados que tomaram a promessa institucional de implantar serviços de atenção aos vulnerabilizados, para potencializar acesso à justiça.

Faço referência especial à tese de Doutoramento em Coimbra, de Élida de Oliveira Lauris dos Santos – Acesso para quem precisa, justiça para quem luta, direito para quem conhece : dinâmicas de colonialidade e narra(alterna-)tivas do acesso à justiça no Brasil e em Portugal. Coimbra : [s.n.], 2013, Orientador Boaventura de Sousa Santos. Participei como arguidor de sua banca e fiquei muito bem impressionado com a densidade de sua análise, que tem como base empírica no estudo comparado, o sistema português de listas de advogados para a assistência jurídica e o modelo brasileiro de Defensoria Pública, no caso, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

Com seu estudo, resume Élida, “convoca-se tanto o realismo da carência, quanto o potencial da promessa de acesso à justiça. Na conjugação dessas duas extremidades, reinvidica-se uma reflexão crítica quer sobre as condições de desenvolvimento dos mecanismos de acesso, quer sobre as direções apontadas e seguidas pelos estudos sociojurídicos. Com suporte em métodos de análise qualitativa e ancorados numa abordagem culturalista do direito, os resultados do estudo apuram uma constelação de significados, interpretações e experiências subjetivas inerente aos processos societais de criação, aplicação e uso do direito. As condições de cumplicidade entre a proposta de igualdade jurídica formal e as relações de dominação consagradas pelo sistema jurídico são desveladas a par do conhecimento ilustrativo do funcionamento dos serviços jurídicos de assistência”.

Finalizando, folgo em que a Autora da Dissertação, em sua conclusão, tenha firmado a condição de uma atuação que se faz em favor dos invizibilizados, assim tornados pelas políticas públicas e por uma governança anti-povo útil a um sistema de produção de ranço colonizador ao extremo da alienação da dignidade – portanto, quem mais precisa de acesso e quem luta por justiça.  Assim, a Autora já não usa o vocábulo invisíveis. Pergunto: Não pode, por tudo que sugeri, substituir a expressão vulneráveis por vulnerabilizados(as)?

 

 

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.5

segunda-feira, 25 de julho de 2022

 

A Segurança na Exceção: a Nova Chacina no Alemão e a Exclusão pela Inclusão

  •  em 

quarta-feira, 20 de julho de 2022

 

Diálogos entre Justiça Comunitária e Justiça Restaurativa: um estudo a partir da experiência do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

 

 

 

Anne Carolline Rodrigues da Silva Brito. Diálogos entre Justiça Comunitária e Justiça Restaurativa: um estudo a partir da experiência do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Dissertação de Mestrado. Brasília: Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, 2022, 133 f.

 

A Dissertação de Anne Brito, defendida perante a Banca Examinadora constituída pela Professora Talita Tatiana Dias Rampin – FD/UnB,Orientadora e pelos membros Gabriela Maia Rebouças – PPGDH/Unit e Antonio Sergio Escrivão Filho – FD/UnB, comigo também presente como membro arguidor, me impressiona por diferentes razões.

Primeiro, o esmero do trabalho, um valioso estudo de caso, apresentado pela descrição e avaliação de duas experiências, trazidas para análise com um milimétrico cuidado comparativo. Os elementos de aproximação dos casos são absolutamente equivalentes em seus termos, de modo que a sua descrição guarda proporção e equivalência.

O Resumo da Dissertação revela esse cuidado:

Esta pesquisa estuda como os programas Justiça Comunitária e Justiça Restaurativa do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) têm sido desenvolvidos dentro da lógica judicial e institucional na qual são gestados. A partir da empiria, identifica onde se localizam dentro da estrutura formal de justiça, quais movimentos desenvolvem, quais as práticas restaurativas e comunitárias adotadas pelos mesmos, e como suas práxis se aproximam e se distanciam, compreendendo as suas limitações e potencialidades dentro desse sistema. Para tanto, realiza um estudo de caso acerca das práticas restaurativas e comunitárias dos referidos programas do TJDFT, e utiliza as técnicas de revisão de literatura sobre justiça restaurativa e justiça comunitária – a fim de apresentar um panorama de como esses conceitos têm sido mobilizados –, de análise de conteúdo de documentos e de normativos relacionados aos programas analisados – com o intuito de conhecer o funcionamento dos programas, de consultas baseadas na Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/2011) ao Ministério da Justiça e da Segurança Pública e aos supracitados programas do TJDFT, e de conversas semiestruturadas inspiradas em entrevistas com informantes desidentificados desses órgãos – para contextualizar e complementar os dados coletados através da análise documental. Enfim, assimila como essas experiências dialogam entre si, mas assumem contornos próprios mediante suas vivências particulares, movimentando-se em direções e lógicas diversas conforme os sujeitos que as sensibilizem e a localização em que se posicionem dentro do aparato judicial.

Curiosamente, voltadas para, per se, o exame dos dois modelos designados na pesquisa de Anne, ainda que por ela não referidos, certamente porque não lançados ao tempo do desenvolvimento de seu estudo, acompanhei na UnB, localizadamente no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania (CEAM), dois trabalhos focados em cada uma das duas experiências, bem poderiam ter um efeito de de parametrização.

A Dissertação de Calimério Gonçalves Junior, com a Orientação da Professora Sinara Zardo, tem como título Agentes comunitários de justiça e cidadania: trajetórias e práxis de Direitos Humanos. 2021. 169 f., il. Dissertação (Mestrado em Direitos  Humanos e Cidadania) — Universidade de Brasília, Brasília, 2021. Calimério é servidor do TJDFT, atuando no sistema de Justiça Comunitária. O objetivo da Dissertação tratando-se de um programa de direitos humanos, volta-se,  “a partir de um contexto de violações de direitos humanos em realidades periféricas e da importância da educação em direitos humanos nesse contexto, o presente trabalho teve como objetivo geral investigar como se organiza o Programa Justiça Comunitária do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios e identificar a compreensão de direitos humanos dos agentes comunitários que atuam na cidade de Ceilândia – Distrito Federal (DF)”.

O segundo trabalho, também Dissertação defendida no mesmo programa (PPGDH), por Lilia Simone Rodrigues da Costa Vieira, com a Orientação da Professora Nair Heloisa Bicalho de Sousa. Lília é Juíza de Direito e sua Dissertação tem como título – Pedagogia da Restauração: aproximações entre a pedagogia da libertação de Paulo Freire e a Justiça Restaurativa a partir da experiência do Tribunal de Justiça do Distrito Federal. 2021. 209 f., il. Dissertação (Mestrado em Direitos Humanos e Cidadania) — Universidade de Brasília, Brasília, 2021, com o objetivo de “analisar as aproximações entre a proposta pedagógica de Paulo Freire para libertação dos/as oprimidos/as e a Justiça Restaurativa, tomando como parâmetro a sua aplicação no âmbito do Tribunal de Justiça do Distrito Federal”. A pesquisa, nesse caso, com apoio na Criminologia, concentrou-se na análise da “evolução do tratamento do crime e as respostas que a ele tem sido oferecidas ao longo do tempo, busca entender quais os reais objetivos da pena e quais os fundamentos para busca por outros meios de resposta à prática delitiva. Também a partir da Criminologia Crítica, intenta estabelecer os contornos teóricos da Justiça Restaurativa, seus valores, princípios e regulamentação, para posterior análise em confronto com a Pedagogia da Libertação”.

            A novidade e distinção que o trabalho de Anne proporciona, em sua singularidade, é que, tal como ela propõe, “especificamente esses dois modelos nominados restaurativos e comunitários de justiça chamam a atenção da autora por proporem, dentro de uma conjuntura predominantemente estatal e judicial, uma maior abertura à comunidade, além de demandarem, ao menos em tese, por mais protagonismo social e pela pluralidade sobre o que pode ser o direito. Inclusive, em algumas de suas vertentes – sobretudo quanto à justiça comunitária, guarnecem expectativas de redesenhar essas instituições profusas de tecnicismos e positivismo jurídico”.

            Com efeito, já ao abrir a Introdução, a Autora cuida de distinguir, nas expressões “justiça comunitária” e a “justiça restaurativa”, uma redução de “conceitos amplos, dinâmicos e em construção, que guardam relação com movimentos de formas consensuais de administração de conflitos, num espectro mais alargado do acesso à justiça”. Valendo-se de enunciado que eu próprio sugiro, em texto que ela evoca, previne que essas expressões “não se encerram nessa única área de atuação […] são conceitos em disputa, que têm estampado diversas práticas e experiências no país, sobretudo no âmbito do Poder Judiciário”. Aliás, em homenagem ao criterioso e avançado trabalho Gabriela Maia Rebouças, integrante da Banca, et pour cause, esse tem sido o eixo de uma linha de pensamento, com o qual tenho contribuído, presente entre outros estudos em REBOUÇAS, Gabriela Maia; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; CARVALHO NETO, Ernani Rodrigues (Orgs). Experiências Compartilhadas de Acesso à Justiça: Reflexões Teóricas e Práticas. Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo (e-book Editora), 2016; REBOUÇAS, Gabriela Maia; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; ESTEVES Teixeira (Orgs). Políticas Públicas de Acesso à Justiça: Transições e Desafios. Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo (e-book Editora), 2017; incluindo reflexões em tudo próximas ao tema da Dissertação, da ilustre Orientadora Professora Talita Rampin e do Professor Antonio Escrivão, entre outros autores e autoras vinculados ao Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua.

            Ainda guardando essa perspectiva emancipatória para pensar estratégias de alargamento concepções e práticas de acesso à Justiça, os textos de Gláucia Foley – Justiça Comunitária. Justiça e Democracia Muito Além dos Tribunais; de Gabriela Maia Rebouças – Acesso à Justiça e Neoliberalismo: o Direito a se Achar na Rua, publicados em SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al. (Orgs). Série O Direito Achado na Rua vol. 10: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade. Brasília: Editora UnB/Editora OAB Nacional, 2021.

            Às fls. 20 ela traça seu programa de estudo:

Organizamos a pesquisa em três momentos centrais, os quais se substancializam sob a forma dos seguintes capítulos. Em linhas gerais, a primeira parte é dedicada a apresentar o tema da Justiça Comunitária em dois sentidos elementares: enquanto uma concepção em movimento e em construção, evocando algumas elaborações conceituais para tanto, e principalmente, como força motriz do Programa Justiça Comunitária do TJDFT, descrevendo seu funcionamento como um todo, suas atividades, os atores que a integram e suas vertentes principais. Para mais, um espaço do capítulo é destinado a tecer algumas breves elucidações sobre a proposta nacional de Justiça Comunitária do Ministério da Justiça.

No segundo capítulo, realizamos um movimento similar com o tema da Justiça Restaurativa. Inicialmente, abordamos brevemente algumas tentativas conceituais e o contexto em que a discussão da temática está inserida, para em um segundo momento desenvolvê-la enquanto experiência do Programa Justiça Restaurativa do TJDFT. Neste momento medular, apresentamos sua atuação geral, suas práticas, seu histórico e diversos aspectos concernentes ao seu desenvolvimento.

O desígnio dessas duas primeiras seções do texto é, precipuamente, de retratar as vivências dos programas Justiça Comunitária e Justiça Restaurativa dentro do TJDFT, de forma que possamos identificar práticas restaurativas e comunitárias, espaços, atores, conceitos e significados manuseados por cada um dos programas em sua relação institucional. A partir desses esforços descritivos, nos encaminhamos para o terceiro e último capítulo, no qual focamos em assimilar como e em quais aspectos os dois programas se relacionam entre si e com o Poder Judiciário.

Por meio deste percurso, pretendemos sinalizar onde essas práticas têm se localizado, se cruzado e se distanciado dentro da estrutura judicial. Não há a pretensão, contudo, de comparar qualitativamente esses dois programas, considerando que se tratam de percursos, abordagens e propostas diferentes; mas de perceber seus pontos de encontro e de distanciamento, suas potencialidades, limitações e relações com a conjuntura que os abarca.

 

Esse roteiro organizativo conduz a Autora ao desfecho de seu trabalho, assumindo ela, em suas Considerações Finais, que “todo esse trajeto da pesquisa nos fez perceber que os programas Justiça Comunitária e Justiça Restaurativa do TJDFT desenvolvem práticas similares – tais quais as mediações e os processos circulares no âmbito da administração de conflitos, e também atividades didáticas, no campo da educação para direitos –, porém, em sentidos diferentes. Como demonstramos no terceiro capítulo da pesquisa, o programa Justiça Restaurativa é inserido, dentro da estrutura do TJDFT, no contexto do sistema de justiça criminal e restrito aos casos judicializados, ao passo que o Programa Justiça Comunitária atende uma quantia ínfima de casos que envolvam essa área e é mais voltado para a atuação na comunidade”.

Muito bem descritas as duas experiências, elas carregam a virtualidade metodológica já enunciada por Engels, segundo a qual, “a descrição verdadeira do objeto é, simultaneamente, a sua explicação” (Contribucion al Problema de La Vivienda, Obras Escogidas de Marx y Engels, Tomo I, Editorial Fundamentos, Madrid, 1975).

Mas a Autora, recuperando a sua premissa centrada na tese de alargamento da noção de acesso à Justiça, não se deixa conformar só no descritivo. Para ela, “embora essas duas experiências integrem a mesma estrutura administrativa institucional, conformem-se como contra-hegemônicas e complementares em relação à predominância adjudicatória judicial, e informalmente mantenham diálogos entre si, suas práticas são conduzidas por direções distintas. Os agentes atuantes, o grau de formalidade e de normatização institucional, os tipos de casos e seus procedimentos de entrada nos programas revelaram uma atuação mais aberta à comunidade e orientada por uma lógica de coletividade por parte do PJC, e mais focada em demandas interpessoais e institucionalizadas pelo PJR”.

E por isso, o seu fecho: “Enfim, esses movimentos de convergência e divergência entre os dois programas e a instituição judicial à qual são vinculados despertaram algumas indagações, potencialidades e limitações acerca dessas relações, as quais foram sintetizadas principalmente no terceiro capítulo. Essas pontuações abarcam desde riscos à sustentabilidade dos programas até à extensão de problemáticas inerentes ao sistema formal de justiça. Contudo, tendo em vista que o aprofundamento em cada uma dessas questões demandaria a convocação de outros trabalhos para além desta dissertação, nos limitamos a apresentá-las e referenciá-las junto a alguns aportes teóricos, com o fim de instigar novas pesquisas acerca do tema”.

Muito me instiga essa disposição para novos e mais avançados estudos, principalmente porque entendo que a Autora traçou enunciados para esse projeto. E folgo que eu possa ter contribuído de algum modo para a abertura dos horizontes que ela parece vislumbrar. É o que percebo quando ela indica – fls. 119-120 – que “essa percepção nos revela que, embora existam diversas limitações em relação a ambos os programas – inclusive advindas da própria relação com o aparato judicial, como em relação à autonomia, sustentabilidade e impacto dessas iniciativas150, há também potencialidades e possibilidades de transformações – ainda que a nível local – a serem reconhecidas. Em um contexto judicializado no qual “cidadãos que têm consciência de seus direitos (…) intimidamse ante as autoridades judiciais que os esmagam com a linguagem esotérica, o racismo e o sexismo mais ou menos explícitos, a presença arrogante, os edifícios esmagadores, as labirínticas secretarias” (SOUSA JUNIOR, 2008, p. 08), são de grande relevância as iniciativas que consigam propagar maior sentimento de acesso, acolhimento e aproximação entre cidadãos e justiça”.

Trata-se de um retorno aquele plano da abertura (fls. 21) para o balizamento do tema conceitual necessário ao deslinde a questão, que a Autora prefigurou na abertura de seu trabalho, para aludir ao que ela adverte como “espectro mais amplo e geral do conceito de justiça comunitária, encontramos uma constância na atribuição de algumas características e terminologias à tal categoria, tais quais as qualificações como uma justiça democrática, participativa, plural, não neutra, intercultural, de caráter coletivo e que considera parâmetros culturais específicos de cada comunidade. Diversos desses debates envolvem o pluralismo jurídico – sobretudo relacionados às teorias de Wolkmer (2001), acompanhadas de críticas à justiça estatal e sua racionalidade”.

Numa boa leitura de Antonio Carlos Wolkmer, a Autora, entende com ele, o risco que essas práticas – justiça comunitária e justiça restaurativa –  carregam de “se conformam no pluralismo de Estado, no sentido de que suas práticas se limitam a serem reconhecidas e impulsionadas institucionalmente, sem necessariamente romper por completo com lógicas liberais e individuais presentes em tais espaços, ou provocar relevantes mudanças estruturais. Contudo, ainda assim podem ser agentes de transformação em suas zonas de atuação, na medida em que introduzem e reconduzem práticas, atores, teorias e saberes”.

Fico contente, à luz de bons debates que travamos no período de sua formação, de poder ter-lhe sido útil. Afinal, diz ela, “como bem traduz José Geraldo de Sousa Junior, para ‘alargar’ o acesso democrático à justiça, é necessário ir além da institucionalização de métodos e ferramentas provenientes desse princípio, “é preciso também reorientá-los para estratégias de superação desses mesmos pressupostos. Principalmente pelo Poder Judiciário que tem se mostrado extremamente recalcitrante à abertura de espaços para a ampliação das condições democráticas de realização da justiça”.

Sousa Junior (2020) realiza, inclusive, algumas propostas para que se alargue esse acesso democrático à justiça: “Nesse sentido, algumas contradições precisam ser resolvidas. Primeiro, criar condições para inserir no modelo existente de administração da justiça, a ideia de participação popular que não está inscrita em sua estrutura; segundo, superar o obstáculo de uma demanda de participação popular não estatizada e policêntrica, num sistema de justiça que pressupõe uma administração unificada e centralizada; terceiro, fazer operar um protagonismo não subordinado institucional e profissionalmente, num sistema de justiça que atua com a predominância de escalões hierárquicos profissionais; quarto, aproximar a participação popular do cerne mesmo da salvaguarda institucional e profissional do sistema que é a determinação da pena e o exercício da coerção; quinto, considerar a participação popular como um exercício de cidadania, para além do âmbito liberal individualizado, para alcançar formas de participação coletiva assentes na comunidade real de interesses determinados segundo critérios intra e trans-subjetivos.”. SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Justiça Comunitária. Lido para você. Jornal Estado de Direito, 18 nov. 2020)”.

É importante que nesses estudos futuros Anne possa aproveitar propostas mais expandidas conforme a síntese que formulamos, em pesquisa desenvolvida sob os auspícios da antiga Secretaria de Reforma do Judiciário – Observar a Justiça: Pressupostos para a Criação de um Observatório da Justiça Brasileira – dentro do Projeto Pensando o Direito (nº 15/2009 – versão publicação). Fiz referência a esse relatório em (http://estadodedireito.com.br/observatorio-do-judiciario/), com hiperlink para seu inteiro teor, lembrando uma chave de interpretação para os achados da pesquisa quanto à questão do acesso à justiça, compreendida em dimensão “atualizada e modernizada para além do simplesmente funcional-burocrático-legal [ou seja]: “respeito às temporalidades democráticas”, “fortalecimento comunitário”, “educação em Direitos Humanos”, “uso dos meios de comunicação”, “conscientização e sensibilização” e, em síntese, “reconhecimento e acreditamento do protagonismo das experiências de mediação social realizadas fora das instâncias estatais”.  Remete-se, para melhor conhecimento, ao texto do relatório publicado no volume indicado e também aqui, acima, especialmente, as ementas explicativas das categorias  destacadas.

Assim que, conforme Anne Brito, “Essas adjetivações desdobram-se ainda em várias outras percepções e aspectos, como a caracterização da justiça comunitária enquanto um formato de administração da justiça que direciona o foco para as relações de uma comunidade, que considera múltiplos saberes, práticas e conhecimentos, e que problematiza a realidade social, cultural, política e jurídica. Por conseguinte, é relacionada à emergência de condições para a emancipação social, conformando um “paradigma de culturalidade, juridicidade e politização advindo de baixo, da periferia do sistema mundo, da América Latina, para seus próprios problemas herdados do processo colonial”.

O que me leva a uma nota designativa para ratificar concepções que derivem dessa perspectiva, que pode ser encontrada em Raquel Yrigoyen Fajardo, no sentido de apoiar povos tradicionais originários indígenas do Peru, e aos camponeses, principalmente das Rondas Campesinas titulares da construção político-jurídica de autonomia na gestão administrativa e de acesso à justiça, partir de seus territórios de produção e de existência.

Sobre isso cuidei em minha recensão sobre o livro Rondas Campesinas. Principios de Organización y Trabajo. Oscar Sanchez Ruiz. Chiclayo, Peru: Ediciones e Impressiones Frías/Grupo Cultural Wayrak/Colección Bicentenario, 2021 (http://estadodedireito.com.br/principios-de-organizacion-y-trabajo/), pondo em relevo a posição de Raquel Yrigoyen Fajardo:  “desde a invasão, os colonizadores buscam anular, reduzir ou subordinar a autoridade indígena, para facilitar a expropriação de seus recursos e impor-lhes o seus valores. Não obstante isso, os sistemas jurídicos indígenas têm resistido e se recriado para enfrentar problemas contemporâneos. Desde há uma três décadas, o direito internacional e o constitucionalismo pluralista reconhecem os direitos dos povos indígenas a sua identidade, territórios, ao controle de suas instituições, formas de vida e a seus sistemas jurídicos, incluindo funções jurisdicionais. Isso tem permitido passar do paradigma do monismo jurídico ao do pluralismo jurídico igualitário”. (sobre esses fundamentos cf. YRIGOYEN FAJARDO, Raquel. Qué es el Pluralismo Jurídico Igualitário?;. Revista Alertanet 2017 Em Litígio Estratégico y Formatión em Derechos Indígenas. IIDS – Instituto Internacional Derecho y Sociedad. Lima: IIDS/IILS, año 2, nº 1. 140, marzo 2017, p. 10-17).

E é um alento constatar, o trânsito político-epistemológico nessa, diz Boaventura de Sousa Santos, troca desigual de juridicidade, quando os sistemas (oficial e não oficial, estatal e comunitário, constituinte e instituinte), intercambiam dimensões de direitos que se co-implicam.

A partir da disciplina O Direito Achado na Rua desenvolvida em programa interinstitucional de pós-graduação (Mestrado) entre a UnB/Faculdade de Direito e a Escola de Magistratura do Tribunal de Justiça do Amapá, foi eloquente a abertura dos alunos-magistrados para outros modos de pensar o jurídico com inspiração em teorias de sociedade e de justiça e sob a perspectiva do movimento O Direito Achado na Rua, como sugere o constitucionalista J. J. Gomes Canotilho. Isso se deu com a criação de uma coluna semanal no Jornal Gazeta do Amapá: O Direito Achado nas Ruas, nos Campos, nos Rios e nas Florestas Amapaenses, espaço para relato e reflexões sobre experiências da jurisdição que reconhece a equivalência de direitos em registro de pluralismo jurídico.

Observe-se, numa das primeiras colunas, assinada por Esclepíades de Oliveira Neto,  Professor da Escola Judicial do Amapá (EJAP); Graduado pela UFMA; Mestrando da UnB; Juiz de Direito do TJAP, essa disponibilidade epistemológico-política:

Essa proposta, associada ao conceito de democracia participativa enquanto um direito de luta e resistência através da repolitização da legitimidade – como diria Paulo Bonavides –, encontra em seu trafegar a ideia de “novos sujeitos coletivos de direitos”, ou seja, movimentos sociais consolidados que, reivindicando um novo papel conferido por meio da legitimidade democrático-participativa constitucional atual – o poder emana do povo e pode ser por ele exercido diretamente –, afirmam-se de modo instituinte como protagonistas no processo de reconhecimento de direitos novos e ampliação da mediação democrático-participativas, levando a um registro expansivo de um rol sem limites de novas categorias jurídicas, como assinala José Geraldo de Sousa Junior em seu artigo “O Direito Achado na Rua: concepção e prática” (In: Introdução crítica ao direito. 4. ed. Brasília: Editora UnB, 1993; Série O Direito Achado na Rua, v. 1).

No curso destas correntezas filosófico-sociológico-jurídicas, não é difícil encontrar pontos de ancoragem para o Programa de Justiça Itinerante Fluvial do TJAP que, lançando os olhos para a população ribeirinha, desde 1996 busca assegurar o acesso à justiça e à cidadania a milhares de amapaenses, especialmente os moradores do Arquipélago do Bailique, localizado na foz do rio Amazonas, distante aproximadamente 170 quilômetros de Macapá, capital do Estado do Amapá.

A conclusão do artigo, na linha do que expõe a Autora da Dissertação, caminha na direção de um encontro entre juridicidades que se abrem a um trânsito recíproco de co-implicação:

O modelo mental do Programa de Justiça Itinerante Fluvial do TJAP preconiza uma construção jurídica que se identifique como síntese entre o aparato formal da Justiça tradicional e um projeto comunitário-participativo que visa priorizar os anseios sociais da comunidade amapaense. Ou seja, uma das características mais importantes da Justiça Itinerante como elemento conceitual no âmbito do TJAP é a consciência de que tal programa é um produto da atuação do Poder Judiciário (e de diversos parceiros) em sintonia com a participação popular comunitária dos moradores locais.

Nesse contexto, a comunidade é vista como agente de transformação do modelo jurídico tradicional, capaz de propor uma pluralidade de formas de soluções legítimas de conflitos. Os sujeitos coletivos presentes, atuantes e com forte posição de liderança têm potencial para, a partir da prática de autogestão de direitos, suplementar ou suprir a atuação do ordenamento formal.

Daí a necessidade de aprofundar o empoderamento da comunidade ribeirinha, com a identificação dos grupos sociais, lideranças legítimas comunitárias, representantes naturais de coletividades, que atuam no âmbito dos conflitos que surgem no Arquipélago do Bailique, identificando suas capacidades, atuação e posicionamento diante das questões jurídicas sob uma perspectiva dialética e dialogal que sintetiza os modelos formais e alternativos de solução de conflitos.

Penso que é nessa mesma direção que se propõe a Autora fazer incidir seus estudos futuros, mais avançados, conforme os pressupostos indicados de modo muito consistente, em sua Dissertação.

 

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua

segunda-feira, 18 de julho de 2022

 

Marcelo Arruda: uma vida imolada ao livre exercício dos direitos políticos e da democracia,pela barbárie

  •  em 



Inauguramos com este texto uma nova colaboração com o Jornal Brasil Popular que vai se denominar Coluna de Justiça e Paz. Em seu conteúdo, animado com a responsabilidade autoral do primeiro subscritor deste artigo, pretende-se dar concretude interpretativa a fatos que contribuam para a realização da política, enquanto “dimensão sublime da caridade” conforme orienta o Papa Francisco. Em suma, materializar a disposição, inscrita no tema que nos move: “Se queres a Paz, trabalha pela Justiça”.

 

Nesse sentido, essa primeira coluna, mais que tudo é um tributo, a um cidadão brasileiro que, confiando na Democracia Brasileira,em uma confraternização familiar, amistosamente, optou por exercer o seus direitos políticos garantidos pela Constituição Federal. Mais, de exercer o seu dever cívico de exaltar a democracia, celebrando sua livre manifestação política junto de seus amigos e familiares.Marcelo Arruda, assim como a grande maioria dos brasileiros e das brasileiras, confiou que ao reservar o espaço de lazer de uma associação, e, ao exaltar a democracia e sua posição político partidária, em festa com seus próximos, acreditou que seria respeitado em sua intimidade, que, jamais teria sua integridade física ou a própria vida imolados por simplesmente exercer seus direitos fundamentais em um país (em tese) democrático.

 

De certa forma, o assassinato de Arruda escancara uma série de atentados que estão acontecendo por todo o Brasil, sendo esse caso o mais grave deles.Como percebemos, por todas as regiões do país, candidatos e eleitores, têm tido sua liberdade de manifestação políticarestringida, sendo constrangidos e ameaçados, sofrendo atentados contra a vida e a incolumidade física e psíquica, o assassinato de Marcelo não pode ser interpretado e investigado de maneira isolada, sem contextualizar o que acontece por todo o país nos tempos atuais.

 

Nesse contexto reforçamos aqui as preocupações de muitos colegas quanto ao açodamento em encerrar as investigações do homicídio e, especialmente, o não aprofundamento do relatório final do inquérito quanto a eventual motivação política e/ou de ódio que teria ocasionado o assassinato.

 

Notícia com grande repercussão dá conta de que o segurança da Itaipu Binacional Claudinei Coco Esquarcini, tido como o “responsável pelo fornecimento de senhas” das câmeras de segurança na Aresf, a Jorge José da Rocha Guaranho, acusado de assassinar Marcelo Arruda que assim, viu imagens do aniversário da vítima antes de ir ao local e matar o guarda municipal e tesoureiro do PT (Partido dos Trabalhadores), teria cometido suicídio na manhã deste domingo.

 

Para quem aprendeu a pensar como Sherlock Holmes, mergulhando na mente mais arguta da história da literatura, tal como Conan Doyle dotou o seu personagem, o seu método de pensamento requer atenção e disciplina, um tanto de ceticismo natural, mirada inquisidora, curiosidade e energia, sabendo que quando numa investigação abundam as coincidências, é porque não é coincidência. É necessário investigar mais.

 

Para Joseph Bell, o médico forense em quem Doyle se inspirou para a sua criação literária, qualquer inquérito, seja forense, científico ou em outro processo de investigação, deve seguir três etapas: observar cuidadosamente, deduzir com astúcia e confirmar as evidências. Tudo que faltou no inquérito e no entorno da ação policial do assassinato de Marcelo Arruda: afastamento da delegada, designação de outra investigadora, aceleramento do procedimento e uma extemporânea ênfase de descaracterizar motivação política do ato criminoso.

 

Ao nos debruçarmos sobre os termos de encerramento do inquérito, saltou aos olhos depoimentos que confessavam descabidas relações de intimidade do algoz com a vigilância da associação,tendo amplo acesso ao monitoramento de câmeras e inclusive realizando patrulhamentos na associação. Mais que isso, causou estranheza que no relatório final do inquérito policial não foi advertida a nota de premeditação do atentado, tendo por vista que o mesmo teve conhecimento da festa de aniversário após ser informado pela equipe de segurança de que uma festa temática lá acontecia, despertando imediata reação de contrariedade, seguindo-se, ato contínuo, o deslocamento para o ambiente onde se consumou o assassinato de Arruda. Ainda, teria colocado uma música temática eleitoral de seu candidato político e ao chegar na festa, e posteriormente assassinar Arruda, teria proferido as seguintes frases: “Aqui é Bolsonaro, vou matar todos vocês”, “Vou matar todo mundo” “Aqui é Mito”, “Lula na cadeia”.

 

De fato, causa estranheza que umafesta temática de aniversárioonde uma família e amigos manifestavam seus direitos políticos, acabe por despertar tamanha raiva e ódio, a ponto de dezenas de pessoas serem ameaçadas e a vida de um ser humano ceifada. Como mencionamos, não há como apurar tais fatos isoladamente, eles se situamem um contexto mais amplo, em um tempo-espaço onde estímulos a agressão de adversários políticos tem acontecido constantemente, onde ameaças e constrangimentos tem sido reiterados, sendo Marcelo Arruda a maior das vítimas.

 

De bombas explodindo, tiros, espancamentos, xingamentos, até espargimento de excrementos naqueles e naquelas que estão por exercer seus direitos políticos assegurados pela Carta Maior,todos eles acontecidos em plena pré-campanha eleitoral do pleito de 2022.Os atentados que estão por repetir-se, acumulados com o assassinato de Marcelo Arruda  devem alertar todas e todos, especialmente as autoridades não só por seu crescendo mas pela maneira como estão a intensificar-se. Começaram com agressões verbais, passaram a arremessos de excrementos, posteriormente agressões físicas e agora a morte de uma pessoa, sem que as autoridades busquem as causas e estabeleçam conexões a outros fatos tão graves quanto o de Marcelo Arruda, o que pode estimular novas ações.

 

A partir desse ponto, medidas maiores tem que ser tomadas, as investigações do homicídio de Marcelo Arruda precisam ser aprofundadaspois, como procuramos demonstrar,os acontecimentos não são desconectados, e assim, não podem ser investigados isoladamente, mas sim trata-se de um todo complexo justificado por uma  cadeia de eventos, situados em um tempo que necessita de maior aprofundamento das autoridades, para situar onde, quando, como e porque tais atentados políticos passaram a realizar-se no pleito de 2022.

 

Nesse diapasão é notório que a regionalização das investigações não permitirá abranger a complexidade dos fatos, uma vez que isolará e descontextualizará o fenômeno. De fato, são atentados acontecidos em diferentes regiões do país e quase que simultaneamente, se fazendo necessária a federalização das investigações para que possa perceber a dimensão nacional dos acontecimentos e, inclusive, a eventual interligação do fato com outros acontecimentos, a comunicação dos autores, o estímulo provocado por grupos organizados, até mesmo a já apontada premeditação. O requerimento da família da vítima para que o Ministério Público requisite a reabertura do inquérito é um passo necessário no interesse da melhor investigação.

 

É, também, necessário repensar dispositivos penais para que, a luz dos acontecimentos,se faça a readequação do ordenamento brasileiro ao novo contexto, assim adequando dispositivos para a delinquência política, que não é comum, é qualificada, é atípica, portanto mais gravosa, mais intensa, e, que não pode ser equiparada a crime convencional. Valendo ressaltar que não se trata de aventura jurídica, mas sim de situar no tempo o que outras experiências penais exógenas[1] já regulam há bastante tempo.

 

Ademais, se faz necessário um olhar mais atento da sociedade civil e das autoridades, inclusive com a destinação de uma comunhão de forças e grupos especializados para tratar da violência nas eleições de 2022. Aqui falamos de um verdadeiro agrupamento dos tribunais eleitorais com as procuradorias e as forças policiais, amparados pela sociedade civil organizada, tendo por escopo garantir eleições livres e democráticas no Brasil nesse ano, garantindo a todo cidadão (eleitor ou elegível) o exercício pleno de seus direitos políticos.

 

 

Que a morte de Marcelo Arruda não seja em vão!

 

 

[1]Exemplo do Código Penal Português em seu art. 132º que dispõe do Homicídio Qualificado, 2- f) Ser determinado por ódio racial, religioso, político ou gerado pela cor, origem étnica ou nacional, pelo sexo, pela orientação sexual ou pela identidade de género da vítima; ou mesmo do Código Penal Espanhol em seu art. 607 que dispõe De los delitos de lesa Humanidad – En todo caso, se considerará delito de lesa humanidad la comisión de tales hechos:1.º Por razón de pertenencia de la víctima a un grupo o colectivo perseguido por motivos políticos, raciales, nacionales, étnicos, culturales, religiosos, de género, discapacidad u otros motivos universalmente reconocidos como inaceptables con arreglo al derecho internacional.

 

 

(*) Por Eduardo Xavier Lemos e José Geraldo de Sousa Junior. Os autores são, respectivamente, presidente e membro da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Brasília.