segunda-feira, 18 de julho de 2022

 

Carta de apoio a Thiago Ávila, um ambientalista acusado de crime ambiental

 

Brasília, 18 de julho de 2022

 

 

Ao Excelentíssimo Governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha Barros Junior;

Ao Excelentíssimo Juiz de Direito, Sr. Osvaldo Tovani; e

Ao Excelentíssimo Promotor de Justiça, Sr. Roberto Carlos Batista.

 

            Ao saudar Vossas Excelências, antecipo que é com a supremacia do respeito que lhes devemos, face o que representam às coisas públicas da sociedade, para interceder por causa que mereça, antecipando-me que o cerne da questão é o julgamento – em curso – de Thiago Ávila, conforme passarei a elucidar, em contexto.

            Desde que passei a aprender com o Coletivo do Direito Achado na Rua[1], grupo de pesquisadoras e pesquisadores da UnB e braço da teoria crítica do Direito em várias universidades do Brasil e do mundo, minha visão acerca do Direito e da Justiça, ademais, da própria ideia de Estado, mudou significativamente.

Segundo nos[2] ensina Roberto Lyra Filho o Direito não habita apenas a norma em seu sentido formalíssimo. Aliás, a norma não é sequer a unidade finalística do Direito, este que se reveste de uma condição axiológica e ontológica que orbita a condição humana e ecológica no mais profundo da sua ordem existencial.

O que estamos a dizer é que, antes de nos avocarmos das normas como evento derradeiro da organização social-estatal, é necessário que vistamos a nossa roupagem do senso ético de história, justiça e equidade para somente então definir o equilíbrio entre os eventos jurídicos complementares e interdependentes da lei, dos fundamentos, dos princípios e da política, elementos existenciais e não-hierárquicos do Direito, equacionados, como o gradiente de uma voz para as multidões ao interesse de melhor ressonância às multidões.

E o melhor ouvir aqui - às multidões - não é a reafirmação do soberano (o Estado), mas seu aspecto do interesse fundante da vida humana: a liberdade e a emancipação (se falando de Estado) cidadã.

Adiante, antes de avançarmos no que se pleiteia nesta Carta é importante que deixemos claro que em momento algum invocamos a pretensão de termos o império da razão. Ademais, o empreendimento desta mensagem é apelar a vossas sensibilidades no intuito de podermos, juntos, vislumbrar outras possibilidades e (sabemos que existem) formas de se dizer o Direito; de se aplicar o Direito.

 

Quanto ao evento da luta por Direito ali no CCBB

 

Isto posto, lembramos o caso que motiva este diálogo.

Havia uma ocupação de catadores de recicláveis próximo ao Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB). Pessoas carentes que precisam de moradia e viram naquele espaço não o lugar definitivo de suas casas, todavia, o lugar – por ser área nobre do DF – de verem seus “gritos” por direitos melhor ouvidos pelas autoridades do Estado brasileiro.

O Governo do Distrito Federal (GDF), em condições típicas, isto é, sem a temporalidade de uma pandemia que mata e manda ainda mais quem vive na rua, ou sem condições básicas de isolamento e higiene, deve agir para prover a reintegração de posse e a proteção das áreas coletivas e das áreas ambientais. Este não era o caso. O sr. Thiago Ávila (doravante somente Thiago), ativista socioambiental e dos direitos humanos, provendo as condições para buscar os direitos dos mais desfavorecidos no caso em contexto, ao saber de uma operação de despejo daquelas famílias, foi ao local para apresentar uma liminar assinada pela juíza Mara Silda Nunes de Almeida que impedia a ação do GDF no local durante o período de pandemia.

Alegando desacato[3] – mesmo que as filmagens demonstrem o contrário –, o subsecretário de operação da DF Legal, Alexandre Bittencourt, deu voz de prisão ao Sr. Thiago. Esta atividade acontece no dia 23 de março de 2021 no local mencionado.

A liminar chegou a ser derrubada por decisão do presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministro Humberto Martins, no dia 2 de abril de 2021, que autorizou a retirada de ocupantes de área. Novamente o Sr. Thiago tentou intervir e impedir a derrubada dos barracos e da construção – provisória também – da chamada Escola do Cerrado (ali nas proximidades do CCBB), com vistas a atender os filhos daquela comunidade. De lá para cá, o ativista vive uma verdadeira saga a fim de provar que é inocente ao que alega o Ministério Púbico do Distrito Federal e Territórios, a saber, do crime ambiental[4].

            Lembremos que o Sr. Thiago Ávila não lutava contra o despejo daquelas famílias sem considerar outras leis[5] e jurisprudências. Ademais, para garantir o suposto do Direito, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF – nº 828 garantiu, ao menos até 31 de dezembro de 2022, em virtude de evitar a morte das pessoas pela culminância da COVID-19, o impedimento deste tipo de ação de despejo[6].

            Perguntamos: se o Sr. Thiago não pode oferecer a desobediência civil firmada no desespero de famílias que precisam do seu direito adquirido, como pode o Estado desobedecer o Congresso Nacional (à Lei posta) e a Suprema Corte do Brasil (face à ADPF mencionada)?

            Por estranho que possa parecer (não é ponto pacífico na doutrina do Direito), mas a desobediência civil – quando encontra guarida no impedimento de uma grave injustiça – é também uma forma de dizer o Direito.

 

O além-Positivação do Estado

 

            Analisemos, destarte, o caso concreto que envolve, de um lado, o Estado brasileiro, e de outro, dividido em dois polos, personificando o lugar de réu de uma ação, o Sr. Thiago, que, neste caso, carrega sobre seus ombros a potencial absolvição ou condenação de um grupo de espoliados, sujeitos coletivos de Direito[7], pessoas sem teto que precisavam de um lar e se viram despejadas; seus barracos vindo abaixo pelos tratores do próprio Estado brasileiro, instância civilizatória esta que invoca a lei para condenar o Sr. Thiago, no entanto, ignora – tantas vezes – a própria Lei Maior, a Constituição em todas as suas gramáticas cidadãs, lideradas aí pelo artigo 6º, cuja moradia é condição de dignidade no rol maior da pessoa humana. Portanto, se um humano se arvora na defesa deste comando – promessa – constitucional para outros humanos que não puderam vislumbrar o platô de sua humanidade e existência digna, onde reside o crime, a contravenção à norma?

            Fundamental lembrarmos que outros marcos, tanto legais, quanto axiológicos vestem este caso concreto que intercedemos por reflexão de Vossas Excelências. E neste ínterim, apelamos ao conjunto outro das epistemologias, da doutrina e mesmo da jurisprudência que carrega o compêndio das dimensões relacionadas ao princípio da função social da propriedade, na verdade, do direito “natural” à propriedade, queiramos ou não, implícito na arquitetura dos desdobramentos desta ação que, por coincidência, é também vinculada ao potencial dano ambiental.

            E sobre este contexto – embora não esteja em julgamento, no caso da Ação que envolve o Sr. Thiago – sabemos que a semiologia é fundamental para entendermos a prevalência do Direito brasileiro. Destarte, escrevi[8] a este respeito alguns anos atrás, nestes termos:

 

Como toda sociedade moderna, no Brasil há quem questione o caráter absoluto (quase absolutista) do direito de propriedade, embora, ainda o tenha como um de seus mais importantes institutos jurídicos. (...) o Brasil é um país bastante rico e paradoxalmente desigual, onde a propriedade é, sem dúvidas o concentrado de poder econômico de uma classe sobre outra – sempre ameaçadas. (LIMA, 2015, p 21)

 

            Lima (2015, p. 25) afirma ainda que “o apelo ao direito de propriedade, tão cristalizado instituto, é, sem dúvidas o mais vértice conceito de divergência ambiental a transgredir todas as barreiras do tempo, coexistindo dominante no rol das garantias humanas (individuais, por conseguinte)”.

            Esta prevalência – e desdobramento em tudo mais que lhe guarde simetria – ao direito de propriedade tem raízes históricas, sobretudo, construída a partir da trágica colonização de construção do nosso acervo estético-civilizatório de potente desigualdade.

            A isto, lembra-nos Gurgel[9] que toda a luta contra a escravidão, mesmo com a pressão internacional para a construção de inúmeros marcos legais “aprovados” no Brasil com vistas ao esforço de virar essa triste página de nossa história, era carregada de falácias. “Na verdade, a preocupação desses senhores com a nova lei antitráfico não estava relacionada ao acesso à mercadoria, e sim à garantia do direito de propriedade (GURGEL, 2008, p 7).

            A revisão [da dívida] histórica, vejamos, uma justiça de transição senhoril quanto às questões que estão na ordem do dia da estrutura do Estado, eivado dessa consciência cultural, política e jurídica, passa por revistar outros pressupostos que colidem, oportunamente, com o direito de propriedade.

É, portanto, Lei, contudo, é muito mais polissemia jurídico-política-histórica a situação que conjuga o caso concreto em que é acusado de crime o Sr. Thiago.

            Invocando outros teóricos, Costa e Acypreste (2019)[10], lembram-nos:

 

Já o direito à moradia, garantido no artigo 6º da Constituição Federal, está previsto em diversos tratados internacionais e é trabalhado sobre variadas matizes no âmbito jurídico (ABREU, 2011; SAULE JÚNIOR; LIBÓRIO; AURELLI, 2009). Após a inserção explícita do direito à moradia no texto constitucional brasileiro, houve uma progressiva ramificação legislativa desse direito nas normas infraconstitucionais, o que fortaleceu seu discurso normativo (ABREU, 2011, p. 395). Em decorrência disso, esse direito não fica dependente apenas da legalidade, isto é, se desenvolve de maneira relativamente autônoma, independentemente de se tratar de aquisição contratual de propriedade, de locação, de loteamento irregular ou de ocupação de áreas públicas ou privadas. A legitimidade deve ser analisada no caso concreto, tendo em vista todas suas peculiaridades, sem desconsideração de seu caráter normativo (ABREU, 2011, p. 397). (ACYPRESTE E COSTA, 2019, p. 259)

 

            Os autores deixam claro que a “ocupação de áreas de interesse ambiental ou de áreas públicas se tornou comum nas grandes cidades e não representa, de fato, uma forma de respeito ao direito à moradia”, tampouco, “pensar o ordenamento jurídico como norma estatal, garantidora da coesão social, não explica suficientemente a complexidade do problema aqui analisado” (ACYPRESTE E COSTA, 2019, p. 260).

 

O que parece estar em jogo nas ações de reintegração de posse é que, a despeito de toda normatização e positivação, tanto no âmbito nacional quanto no âmbito internacional, do direito à moradia e da solidificação normativa da função social da propriedade, ainda não se tem espaço para a efetivação concreta desses avanços. Isso porque essas alterações se dão dentro de uma organização institucional comprometida com interesses sociais dominantes, de defesa da propriedade absoluta. (ACYPRESTE E COSTA, 2019, p. 260)

 

            É evidente que não temos a intenção de neste manifesto de apoio a uma causa que se mostra agenda do Direito Achado na Rua, qual seja, a garantia do direito humano à moradia, ao inverso, defender qualquer tipo de agressão ao Meio Ambiente e, portanto, advogar em favor da consecução de crimes ambientais. O debate é outro. Queremos pensar, em que medida o uso de um artífice normativo encobre, mesmo que sem esta pretensão, o objeto central de violação de direitos fundamentais.

            Tais aspectos nos são apresentados por Pereira et al (2019)[11], a servir como analogia ao intento, nestes termos:

 

O desdobramento do que estamos chamando de fetiche dos instrumentos é a ideia de que certos instrumentos urbanísticos – ou até mesmo o Estatuto da Cidade de modo mais amplo – teriam sofrido uma espécie de deturpação ou sequestro. É frequente o uso desse tipo de argumento ao se analisar a trajetória das operações urbanas, por exemplo. Assim, tais instrumentos estariam sendo utilizados com finalidades distintas daquelas para as quais eles teriam sido originariamente concebidos. (PEREIRA et al, 2019, p. 96)

 

            Isto é, não podemos, de um lado ignorar os passivos ambientais e, de sorte, combater e prevenir quaisquer riscos ao ecossistema; e de outro, também não fazer uso indevido da legislação ambiental para criminalizar os movimentos sociais de luta por moradia. Há que se encontrar a dimensão do equilíbrio na aplicação jurisdicional destes instrumentos.

            Cardoso (2019)[12], ao dialogar teoricamente sobre os novos paradigmas legais e políticos que passou a operar o Governo Federal na segunda década dos anos 2000, afirma que as terras da União, antes servidas ao interesse público para seus usos e equipamentos, atendidas às sociedades tradicionais (ainda que sempre perseguidos pelos conflitos, alguns com a anuência ou omissão de agentes do Estado) e ao uso de outros fatores como a privatização e mercantilização com fins arrecadatórios (para acesso a quem “tem dinheiro”), passou a ser compreendida em outra dimensão. Senão, vejamos:

 

A Política Nacional de Gestão do Patrimônio da União (PNGPU) buscou, assim, a compatibilização entre interesses sociais, ambientais e econômicos. Para a concretização deste novo paradigma de democratização da gestão patrimonial, foram criados novos instrumentos de regularização fundiária de interesse social, como os Termos de Autorização de Uso Sustentável para o reconhecimento da posse tradicional de famílias e comunidades agroextrativistas ribeirinhas e costeiras; além da Lei de Regularização Fundiária de Terras da União (Lei nº 11.481/2007), com ênfase na regularização fundiária e provisão habitacional urbana; e, ainda, a Lei do Programa Terra Legal (Lei nº 11.952/2009), que enfatiza a regularização fundiária rural e urbana na Amazônia. (CARDOSO, 2019, p. 391)

 

            Não interessaria este tema, não fosse a simetria analítica com o caso concreto em questão. Ora, o Distrito Federal, por seus poderes Executivo, Judiciário podem pacificar a agenda jurisdicional que pretende, pelo MPDFT, a condenação do réu Thiago (e, na outra semiologia, dos sujeitos ocupantes do espaço territorial em impedimento). Ao final e ao cabo, convidado também o Poder Legislativo repactuarem juntos as áreas do Distrito Federal (as possíveis deste arranjo) para servir menos à mercantilização e mais ao bem social, guardadas as urgências ambientais, evidentemente.

            O que pretendemos até aqui é demonstrar que, até aqui, não se configurou um crime ambiental típico o caso concreto envolvendo estas famílias e o réu, Sr. Thiago. Vemos a gramática dos direitos sociais emergentes sendo convidados ao foro das institucionalidades na construção de pontos convergentes em cuja dimensão final seja a proteção do Meio Ambiente conjugada à proteção da vida, da liberdade, da emancipação e da cidadania, tanto do líder do movimento de preservação – durante a pandemia – dos barracos e construções à serviço destes sujeitos.

            Como dissemos noutro momento desta Carta, há uma intenção de substrato que opera o jogo da resistência e da reivindicação do cumprimento do direito à moradia, ainda pouco priorizado pelo Estado brasileiro:

 

Não fosse essa ocupação irregular da cidade, os conflitos sociais se dariam de forma mais explícita. Entretanto, os movimentos sociais urbanos organizados surgem como forma de resistência a esse processo ilegal do ponto de vista normativo estatal e violador de direitos humanos. Para isso, usam táticas de denúncia da desigualdade de propriedade e dos abusos proprietários do mercado imobiliário. (ACYPRESTE E COSTA, 2019, p. 264)

 

            Isto posto, se existe um crime a ser (pouco) significado é o da desobediência à ordem do Estado. Não intentemos um crime ambiental, em sentido típico, tampouco qualquer outro evento penal que, ao que nos ensina Foucault, possa ir tão além da dimensão do que contradita as prescrições do Estado para “pesar a mão” de forma desproporcional. Vejamos:

 

O suplício faz parte do procedimento que estabelece a realidade do que é punido. Mas não é só: a atrocidade de um crime é também a violência do desafio lançado ao soberano: é o que vai provocar da parte dele uma réplica que tem por função ir mais longe que essa atrocidade, dominá-la, vencê-la por um excesso que a anula (FOUCAULT, 1987)[13]

 

            Se este ativista cometera mesmo um crime – e insistimos que não é o ambiental, tampouco outro que se imponha como contravenção ao Direito – o suplício por que está passando tornara-se o apenamento necessário. Não há que o soberano (o Estado) insistir em tornar desproporcional qualquer outro intento punitivo.

 

O além-Conjuntura do Estado

 

A rigor, o Brasil vive um tempo complexo em que se conjugaram duas graves crises simultâneas: a crise sanitária com a presença de um vírus jamais visto em dimensão de catástrofe global, o novo coronavírus que tirou a vida de quase 700 mil compatriotas e elevou o Brasil a um dos piores índices de violência desta doença chamada COVID-19; e a crise alimentar, fator que, dadas as seriedades das pesquisas, denotam que 33 milhões de pessoas não têm absolutamente nada para comer hoje, não tiveram ontem e, tudo indica, ainda amanhã estarão sem comida. Ora, se é sabão e água a prevenção básica contra a COVID-19, portanto, à sobrevivência dos humanos – estes que, no caso concreto, já não estão mais sequer implorando por universidades para seus filhos, lazer ou outros direitos humanos, contudo, apenas, sobrevivência – como podemos imaginar um crime na meta-semântica deste pseudo crime “cometido” por estas pessoas que tão somente precisavam de um abrigo, com uma bacia d’água e uma barra de sabão, além das paredes que isolassem seus filhos de um vírus devastador?

            Esta semana vimos uma notícia[14] de que um megaprodutor agrícola – que não precisa mais de casa, pois tem todas as condições para possuir quantas quiser – teve sua multa de 42 milhões de reais prescrita por força do silêncio do Estado. Sim, o IBAMA que, neste caso é o braço do Estado para o caso concreto agora mencionado, não esteve a desempenhar o seu papel corretamente e – evidentemente sabemos que não é para o que se destina a multa, contudo, invocamos a hipótese em analogia – vermos usados estes 42 milhões de reais para construir moradias populares a estes mesmos que não têm, repetimos, não têm outra coisa a fazer senão implorar o perdão por sua desobediência civil que remete à sobrevivência e consequentemente “invadirem” – na melhor das semânticas: ocuparem – uma área ambiental para caçar o abrigo diante do desespero e da não-realização, em tempo, do Direito estatal.

            Portanto, em vista de todos os casos que trazemos como justa colisão principiológica para compreendermos juntos o tratamento equitativo – evento da máxima racionalidade e razoabilidade da Justiça – a pesar sobre o julgamento do Sr. Thiago (e dos a quem ele buscava defender). Destarte, não é somente o frio da letra da Lei que ordena o Direito. Se isto fosse, a pureza o determinante, não nos depararíamos com a “impureza” dos conteúdos que carregam tantos decisum cuja colisão dos princípios – sem hierarquia – demandam no caso concreto o desequilíbrio para que o pêndulo pare em um, ou no outro, tendo como evento finalístico, a Justiça (em toda a sua potência gramatical). E é isto que reiteramos como clamor para a inocência formal deste homem que também não precisa de casa: seu histórico de vida mostra que possui condições a tal direito; também não cometeria qualquer crime ambiental à revelia das normas ou da ética.

 

A razoabilidade a um ambientalista que defende o Meio Ambiente

 

            Ainda, por derradeiro, vale considerar o precedente existencial desse réu, o Sr. Thiago. Ora, se observarmos sua verdadeira militância e devoção é relacionado às causas ambientais, à agroecologia e ao bem-viver, um conceito de sociedade que vemos nos povos indígenas, povos que não apenas defendem a Natureza, mas a têm como uma comum com eles, interconectadas a todo o evento de suas existências. Não parece lógico que o Sr. Thiago, tendo uma vida confortável em família, oriundo da classe média típica brasileira, tenha feito a opção enganadora de, primeiro mergulhar na pobreza e no sofrimento (sim, porque quem luta pelos direitos dos espoliados, come com eles, sofre com eles e chora com eles); segundo, arriscar todo o seu patrimônio pessoal para defender as causas ecológicas e agroecológicas, seja este mesmo Sr., um degradador do Meio Ambiente. As coincidências (neste caso concreto) não coincidem com a vida ativa e a história do réu em questão. Portanto, uma não-coincidência recorrente precisa contraditar uma coincidência casual. Nem de longe seu ato (chamado de crime na Inicial formal da jurisdição em cunha) é, de fato, um crime – quando visto todos os antecedentes e recorrências éticas do seu viver.

            Neste intento, é também a Carta de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998) que divulga a razoabilidade na implicação de potencial pena. Vejamos:

 

Art. 6º Para imposição e gradação da penalidade, a autoridade competente observará:

I - a gravidade do fato, tendo em vista os motivos da infração e suas conseqüências para a saúde pública e para o meio ambiente;

II - os antecedentes do infrator quanto ao cumprimento da legislação de interesse ambiental. (BRASIL, 1998.)

 

            Por analogia, culminados outros supostos legais e princípios cadentes ao caso concreto, é pressentível a nulidade ou anistia de pena, e não-reconhecimento de evento penal em cunha.

            Neste diapasão, a concessão do perdão estatal jamais será vista como sinal de “fraqueza” da soberania deste mesmo Estado, tampouco conivência com a degradação (por crime) ambiental[15]. Ao contrário, como reconhecimento de verdadeiro Direito, o que brota da dialética, que cruza o conjunto dos elementos naturais (jusnaturais) e dos elementos fundacionais (juspositivos) para propor uma síntese de essencialidade, de emancipação, de liberdade e de vida.

            Isto posto, reiteramos nosso pedido para que este Egrégio Juízo, em três pessoas institucionais – cada um a seu modo – estabelecidas, possa conceder o veredito de inocência ao Sr. Thiago Ávila.

 

            Com o respeito em firma, somos grato,

 

Marconi Moura de Lima Burum

Professor, escritor, mestrando em Direitos Humanos e Cidadania/UnB

 

 

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[1] Para conhecer o Direito Achado na Rua, além dos eventos distribuídos na página da UnB, reunimos em conjunto neste blog: http://odireitoachadonarua.blogspot.com/.

 

[2] Muito embora eu esteja cursando o Programa de Direitos Humanos e Cidadania (CEAM/UnB) e me filiado ao grupo do Direito Achado na Rua, não tenho autorização para falar pelo Coletivo do DANR, entretanto, passei a utilizar a conjugação dos verbos no plural neste texto, face que não se trata de algo pessoal, todavia, de uma dimensão coletiva (neste caso, a sociedade).

 

[3] Aliás, sobre este instituto no Direito pátrio, também não é ponto pacífico. Anota-nos José Geraldo de Sousa Junior que, embora o STF (ADPF 496/2015) tenha formado maioria em 2020 para reafirmar a constitucionalidade do crime por desacato, os votos vencidos dos ministros, Edson Fachin e Rosa Weber, como síntese, compreendem o fator do interesse social perante o exercício público (por consequência, seus agentes públicos) e que, a ele demanda a livre opinião. E faz todo sentido, afinal, somos (sociedade) os fiscais naturais da coisa pública. Portanto, ao que dela brota –por seus servidores – denota opinião. E o que extrapola opinião (para ofensa) outros institutos do Direito já abarcam a responsabilização formal. Logo, desacato é a caduquez civilizatória de um Estado que teima ser patriarcal e patrimonialista.

 

 José Geraldo celebra o fato novo que pode construir uma nova reflexão, senão jurisdicional, ao menos ao debate público: “Notícia muito importante trazida pelo Jota, dá conta de que a CIDH – Comissão Interamericana de Direitos Humanos, acolheu denúncia da DPU – Defensoria Pública da União por considerar que crime de desacato viola direitos fundamentais e a liberdade de expressão”. Leia o conteúdo completo em: https://www.brasilpopular.com/crime-de-desacato-viola-direitos-fundamentais-e-a-liberdade-de-expressao/.

 

[4] Não iremos nos deter nos detalhes do conjunto fático, haja vista que a nossa moção se dirige aos atores institucionais que compreendem as nuances dos fatos e dos pressupostos invocados no Processo de nº 0711380-72.2021.8.07.0001, tendo como órgão julgador a 8ª Vara Criminal de Brasília.

 

[5] À exemplo, a Lei 14.216/2021, cuja determinante é o impedimento de despejo em razão da COVID-19. Seu escopo pode ser resumido neste dispositivo: “Art. 3º Considera-se desocupação ou remoção forçada coletiva a retirada definitiva ou temporária de indivíduos ou de famílias, promovida de forma coletiva e contra a sua vontade, de casas ou terras que ocupam, sem que estejam disponíveis ou acessíveis as formas adequadas de proteção de seus direitos, notadamente”.

 

[6] Sobre o assunto, saibamos mais acessando a página do STF: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=485010&ori=1.

 

[7] Isso, se aplicarmos uma extensão conceitual; se os liberamos de dimensões individuais para dedicarmos ao preceito de uma legítima organização por direitos – por liberdade, como nos ensina Lyra Filho.

 

[8] LIMA, Marconi Moura de. O Direito Ambiental numa abordagem crítica ao formato de atuação do Judiciário: Uma análise comparativa. Monografia de conclusão de curso. Brasília: Faculdade de Direito Prof. Damásio de Jesus, 2015. (Obs.: nesta época eu ainda não assinava como Burum.)

 

[9] GURGEL, Argemiro Eloy. Uma lei para inglês ver: a trajetória da lei de 7 de novembro de 1831. In: Revista Justiça e Historia. Vol. 6, nº 12. Rio Grande do Sul, 2008.

 

[10] ACYPRESTE, Rafael de e COSTA, Alexandre Bernardino. Direito à moradia achado na rua e o poder judiciário. In: José Geraldo de Sousa Junior [et al.]. Introdução crítica ao direito urbanístico [recurso eletrônico]. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2019. 496 p.

 

[11] PEREIRA, Alvaro, MILANO, Giovanna Bonilha e GORSDORF, Leandro Franklin. O Direito Urbanístico vai à cidade: por uma leitura jurídica inserida na produção conflitiva do espaço urbano. In: José Geraldo de Sousa Junior [et al.]. Introdução crítica ao direito urbanístico [recurso eletrônico]. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2019. 496 p.

 

[12] CARDOSO, Patricia de Menezes. Direito achado nas ruas, nos rios e nos mares: a regularização fundiária entre as funções arrecadatória e socioambiental do patrimônio da União. In: José Geraldo de Sousa Junior [et al.]. Introdução crítica ao direito urbanístico [recurso eletrônico]. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2019. 496 p.

 

[13] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad. de Raquel Ramalhete. Petrópolis, Vozes, 1987.

 

[14] Para saber mais sobre o fato em questão, acessar: https://www.metropoles.com/colunas/guilherme-amado/governo-deixou-vencer-multa-ambiental-de-r-42-milhoes-de-bolsonarista.

 

[15] Deixamos claro aqui que esta Carta jamais teria o sentido de buscar conivência com os crimes ambientais. É condição primeira para minha crença no Estado e no Direito, a certeza de que são estruturas para a proteção do Meio Ambiente em seu caráter intergeracional. Contudo, buscamos apresentar a amplitude da interpretação das semânticas jurídicas que acreditamos revestir o caso específico do Sr. Thiago que, na nossa visão – também passiva da dialogia de antítese – não cometera crime ambiental.

 

Para isto, recolhemo-nos na sapiência do legislador que encontrou num só dispositivo a carga principiológica cuja licença pedimos para resumir nosso esforço aqui no compêndio da Carta e que pode valer como reflexão ao intento jurisdicional derradeiro. Senão, vejamos:

 

“Parágrafo único. Para todos os efeitos, esta Lei, denominada Estatuto da Cidade, estabelece normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental”. (Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001.)

 

A luta do Estado pela preservação do Meio Ambiente precisa estar diametralmente vinculada aos direitos humanos, sua dignidade cidadã que reivindica, entre outras garantias, um lugar para chamar de seu... lar!

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