quarta-feira, 13 de julho de 2022

 

Máscaras no Varal: a revolução é preta, feminista e imparável

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

 

 

 

Gabriela Tunes. Máscaras no Varal: a revolução é preta, feminista e imparável. São Paulo: Terra Redonda, 2022, 144 p.

Gabriela Neves Delgado. Chico, Bela e a Estrelinha-do-Mar. Brasília: Mais Amigos, 2021, 24 p.

Gabriela Jardon. Putão, Putinho, Plutão in Subtextos. Revista Digital Especializada em Contos. https://escritorbrasileiro.com.br/subtextos/?fbclid=IwAR25_6WGa9lUiYFFIAwm3_Q62jPY5fbdviPJvbBW7x4rxc7btqgzn6WYE6g

 

 

                               

 

          Três Gabrielas. Três mulheres incríveis. Minhas amigas de longa data. Amizades descobertas por trás de suas máscaras de mulheres empoderadas, mas que não ocultam a forte intelectualidade e profissionalismo, que imprimem à ciência e à arte. Duas juristas, a Delgado e a Jardon, acadêmicas altamente tituladas em seus mestrados e doutorados; uma musicista, flautista virtuose, na ascendência, na descendência e na colateralidade, um encantamento na cena brasiliense musical (também uma campeã no nado em piscina, no Paranoá e no Oceano Atlântico).

            Mulheres sentipensantes. Na linha da reflexão, lembra Orlando Fals Borda (sociólogo colombiano), com engajamento; mulheres que sabem (conhecimento é sabor), mulheres com qualidade, para se afirmarem, aludindo a Robert Musil, em sua disposição a cravo e canela, que se expressam como atitude de qualidade, própria de quem, diferente do que é sem qualidade (Robert Musil, O Homem sem Qualidades), se recusam a uma “existência [que não seja] feita, naturalmente, de ações, não de discursos de que assimilamos o ponto de vista, de opiniões e de contra-opiniões correspondentes numa palavra da acumulação impessoal de tudo quanto sabemos ou ouvimos”.

                                  

                                  

 

            Aqui neste espaço da Coluna Lido para Você, em geral focalizando sugestões para pesquisadores e editores, com a leitura de livros, teses, dissertações, monografias, relatórios, quase sempre em formato acadêmico, mais de uma vez fixei a atenção em leituras que não escondem o pensamento crítico e reflexivo, também mediado pela aproximação interpretativa e em última análise, epistemológica, na combinação de diferentes e integráveis racionalidades.

            Como sustenta Eduardo Lourenço (A Mitologia da Saudade, Companhia das Letras), a literatura não é um delírio, mas a apropriação do real por meio de outra linguagem. Ou, como mostra Roberto Lyra Filho (aliás, Noel Delamare, seu pseudônimo poético), o reflexionar humano é uma combinação de atitudes que se inter-relacionam de forma integrada ou com ênfases, o explicar, causal da ciência; o divertir-se, do lúdico; o intuir, do artista; o fundamentar, do filósofo; o revelar, da experiência mística (Filosofia Geral e Filosofia Jurídica em Perspectiva Dialética, in Palácios, Carlos, Cristianismo e História, Edições Loyola).

            Também aqui neste espaço trouxe ao auditório outras referências de expressões literárias do feminino multiverso: A Rua de Todo Mundo. Carolina Nogueira. Brasília: Longe/Edição da Autora. 2 edição, 2015; A História de Você. Carolina Nogueira. Brasília: Longe/Edição da Autora, 2015. Carolina Nogueira conta e também ilustra as histórias. Certamente ela está falando de seu filho, entre o Antes e o Para Sempre. Também ela vai falar e ilustrar A Rua de Todo Mundo, “livro que nasceu da generosa colaboração dos meus amigos do mundo todo”, numa história “da maior rua do mundo, a mais legal de todas. A rua de todo mundo”. Uma rua na qual “os vizinhos são ao mesmo tempo diferentes e bem parecidos”. Eu cheguei a esses livros “infantis” de Carolina Nogueira, da forma como em geral se chega a essas histórias escritas para crianças, mas que nos alcançam de modo inesperado (http://estadodedireito.com.br/a-rua-de-todo-mundo/).

            Com a mesma disposição, em Farol, Ancoradouro, Oásis e Sal. Vozes Femininas na Literatura. Organização Bel Parolim. Bauru-SP: Editora Mireveja, 2021; Fazia Calor e Usávamos Máscaras. Volume II. Lara Ovídio (Organização), Marília Panitz (Prefácio). Bragança Paulista: Hecatombe, 2021 e Rabeca Conquista a Orquestra. Luciana Lorens Braga. São Paulo: Biruta, 2009, de novo vozes femininas, simultaneamente profissionais e seiva transformadora do mundo, Ísis, Erika e Luciana Lorens Braga, assim como as autoras trazidas aqui neste Lido para Você, todas plurais e multidimensionais, “brincam com as palavras”, como diz Luciana, psiquiatra e psicanalista, doutora (Unifesp) nesse campo, mas apostando “nas próprias loucuras como forma de ser feliz e escrever [que] é uma delas” (http://estadodedireito.com.br/29288-2/).

            De cuidado, de amizade e de como ser feliz na forma de estória infantil é como se expressa também minha querida colega de universidade (UnB) e de atenção ao que salvaguarda a dignidade do humano, Gabriela Delgado. Fundamento inarredável de todos os muitos e referenciados trabalhos jurídicos que ela publica. Em sua estreia (ao que me consta) nesse campo do imaginário infantil, amplificado pelas magnificas ilustrações de sua parceira na obra Rosângela Grafeti, é de acolher as pessoas com delicadeza, cuidado, respeito e amizade para ser potente. Assim como seus personagens: “O tempo passou. Chico e Bella (Francisco e Isabela são filhos crianças da Autora) continuavam espalhando alegria e, a cada dia, um novo cuidado. A estrelinha se deixou transformar por aquela sincera amizade. Preenchida pela graça da infância, [e] recuperou sua cor, ganhando força e luz”.

            Na edição ano 2, volume 10, de Subtextos, Revista Digital Especializada em Contos, encontro entre textos e autores e autoras: Corpo Mole, Jamyle Dionísio; Dali pra frente, Peterson Nogueira; Aspirações, Rodrigo Domit; Inventário, Benjamim Franco; Para onde vamos?, George Amaral; Ivanzinho,  Davi Bernardo; Menino no ônibus, Guilherme Balarin; Voltas, Caroline Rodrigues; Pororoca,  Aura Grube; Pombas Palace, Noah Mancini; e Putão, Putinho, Plutão de Gabriela Jardon.

            Que boa surpresa re-encontrar minha aguda orientanda autora de uma dissertação primorosa (conferir meu Lido para Você sobre seu trabalho: http://estadodedireito.com.br/o-direito-de-escuta-das-partes-processuais/). Gabriela está em programa de doutoramento em Coimbra, no Centro de Estudos Sociais, sob a direção de meu dileto amigo Boaventura de Sousa Santos. Enquanto espero sua carta(s) de viagem para o Blog Diálogos Lyrianos (www.odireitoachadonarua.blogspot.com), constato que ela segue refinando sua habilidade de cronista. Volta e meia o facebook me exibe seus arranjos nesse fundamento.

 

                                  

 

            E agora, encontro Gabriela Jardon em Subtextos. Claro que para mim, não houve surpresa. A experiência de orientação descortinara esse talento e seu estilo, o que levara a exibi-lo, bem antes, em seu estrito sentido literário ao ler trabalho de crônica da Autora. Assim, nesta Coluna Lido para Você – http://estadodedireito.com.br/retratofalado/ – quando trouxe para os leitores a obra Retratofalado. Ensaios em Estado de Imagem. Textos Danielle Martins, Gabriela Jardon, Mariana Carvalho. Fotografias Wanessa Montoril. Brasília: Edição das Autoras/Athalai Gráfica e Editora, 2019. Aqui reencontro na juíza a contista refinada, que enfabula um narrador-personagem no texto Buenos Aires, assinado por GJ: “(Ou pensei que entendi. Ou fingi que entendi. Ou queria tanto que tivesse entendido que de fato entendi.)”.

Com Gabriela Jardon – GJ, já não deveria haver surpresa mas mesmo assim ela surpreende. Eu já dissera que por trás ou por dentro da Juíza togada, ardia a quentura de um vulcão prestes lançar larvas incandescentes. Antes de acolhê-la como colega pesquisadora nos grupos de pesquisa da UnB (Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania), já tinha divisado as frestas de uma vivacidade literária, na leitura de sua Coluna Enquanto Isso na Sala de Justiça, publicada no Jornal Metrópoles. Ali, na crônica Reflexões sobre uma inspeção judicial: “A lei é morta, o juiz é vivo”, ela se indaga: “A cruzada judicial contra a corrupção vem sendo feita por um juiz vivo? Será que as ruas, o povo, o passado, a história vêm sendo devidamente inspecionados tanto por este juiz quanto pelos que o criticam? A decisão do HC foi uma vitória de juízes vivos sobre uma lei morta? Ou ali, ao contrário, na intenção de se vivificar uma lei, a realidade foi apagada, ninguém se lembrando de “inspecionar” o que de fato ocorreu travestido de processo?” (http://estadodedireito.com.br/retratofalado/).

Em Putão, Putinho, Plutão, escuta profunda permanece sintonizada e a juíza, tal qual o magistrado de Tolstói (A Morte de Ivan Ilitch) vai discernindo o fio tênue entre vida e morte; entre estar na zona do ser e a zona do não-ser (F. Fanon): mesmo que a identidade se forje na condenação negadora de si mesmo, confessando-se autor de crime que não cometeu: “O ziguezague na sua cabeça o jogava num abismo e só de uma coisa mantinha certeza: nunca foi de ter medo de altura; iria cair em pé. “Terminar com isso de uma vez. Sou homem de atitude, não de conversa”, definiu-se pra si mesmo. “Fui eu, sim, senhor juiz. Eu, Plutão.”.

Recebi de Gabriela Tunes dois livros. Um deles Contos de Quarentena (Organizador Léo Bueno. São Paulo: Terra Redonda, 2020) uma coletânea, na qual, com o último texto, página 253, ela menciona A quarentena reversa. Um efeito peculiar de toda quarentena.

No distanciamento social, que impõe um necessário recolhimento, os que não se rendem ao imobilismo depressivo, mas que sabem exercitar suas angústias, ao invés de a elas sucumbir, disse Boaventura de Sousa Santos, há algum tempo, acabam construindo no isolamento um campo fecundo para a criatividade e para a reflexão em profundidade. Na quarentena Boaventura escreveu muito. Entre esses escritos A Cruel Pedagogia do Vírus. Coimbra: Edições Almedina, 2020 (http://estadodedireito.com.br/a-cruel-pedagogia-do-virus/) e O Futuro Começa Agora. Da pandemia à utopia. São Paulo: Boitempo, 2021).

Diz-se que William Shakespeare escreveu o Rei Lear, Macbeth e Antônio e Cleópatra, em quarentena, ou pelos menos para vencer as dificuldades da ocasião, ao tempo da peste bubônica que se alastrou em Londres, por volta dos 1606 quando, em conformidade com as posturas os teatros foram fechados, incluindo o The King’s Men, do qual era ator e acionista.

Outro dramaturgo, seu contemporâneo, Thomas Nashe, também durante a febre bubônica que atingiu Londres em 1592, retirou-se para o interior da Inglaterra para evitar infecções. Data desse período a peça Summers’ Last Will and Testament, na qual expõe suas experiências durante a pandemia.

 Nessa mesma época, um pouco mais à frente, em 1665, Isaac Newton, também em quarentena retirado de Cambridge e confinado na propriedade da família em Woolsthorpe Manor, teria, nessa ocasião, esboçado a Teoria da Gravidade. Nesse período, um quarto da população de Londres morreu por causa da doença.

Antes deles, o escritor e poeta florentino Giovanni Boccaccio foi pessoalmente afetado pela peste bubônica. Quando atingiu Florença em 1348, seu pai e madrasta sucumbiram à doença. Boccaccio sobreviveu ao surto fugindo da cidade e se refugiando na zona rural da Toscana. O Decamerão conta as estórias de amigos que vivenciaram a quarentena durante a peste.

Outro artista, Edvard Munch, pintor do célebre quadro O Grito, não só testemunhou, mas sofreu a pandemia da gripe espanhola, ao contrair a doença no início de 1919, na Noruega. O seu autorretrato figura-o com as feições ainda abatidas, à frente do leito de doente.

Ninguém atravessa uma condição tão avassaladora e permanece insensível ao que ela interpela, no que somos e no que vivenciamos, mesmo após o amainar da condição tormentosa. Não será extravagante supor que a voz de Próspero, em A Tempestade, (Ato IV), de Shakespeare, não carregue esse sentido de uma reflexão sobre a vida humana, tanto quanto sobre os escombros de um mundo em necessária transformação. Algo que não escapou à observação de Marx e sua aplicação depois, no manifesto para um mundo em transformação.

 Aqui está a fala de Próspero, na tradução de Bárbara Heliodora (Nova Aguilar, 2006), com grifos meus, em negrito e em itálico:

“Próspero [dirigindo-se a Ferdinando] – Você parece, meu filho, consternado, como se estivesse preso de algum temor. Anime-se, senhor. Nossa diversão chegou ao fim. Esses nossos atores, como lhe antecipei, eram todos espíritos e dissolveram-se no ar, em pleno ar, e, tal qual a construção infundada dessa visão, as torres, cujos topos deixam-se cobrir pelas nuvens, e os palácios, maravilhosos, e os templos, solenes, e o próprio Globo, grandioso, e também todos os que nele aqui estão e todos os que o receberem por herança se esvanecerão, nada deixará para trás um sinal, um vestígio.”.

Essa a característica também de Fazia Calor e Usávamos Máscaras. Volume II. Lara Ovídio (Organização), Marília Panitz (Prefácio). Bragança Paulista: Hecatombe, 2021, que mencionei antes. Aliás, Gabriela Tunes bem ensaiara alguns textos em postagens do facebook que me davam a certeza de uma obra em progresso.

Ela me confirma isso. Na dedicatória manuscrita de Contos de Quarentena, um mimo juntamente com Máscaras no Varal, ela diz: “Querido professor José Geraldo, esse livro contém minha primeira aventura literária. É o último conto. O nosso Parque Olhos D’Água está presente. Tomara que goste”. Como não gostar?!

Em Máscaras no Varal ela se reafirma nesse operar em progresso. Também em dedicatória afetuosa e autobiográfica ela me diz: “Prezado Professor José Geraldo, Espero muito que goste do meu texto e da minha escrita. Nunca me esquecerei de um encontro no Parque Olhos D’Água, caçando duendes, em que me disseste para escrever, e que leria meu livro. Ei-lo, então. Agradeço de coração o apoio e o incentivo, foram de muita importância nessa realização que agora tens em mãos”.

Li seu livro Gabriela Tunes, e reconheci você entre “as mulheres [que] sabem o que fazer”, como você afirma em seu prefácio.

Sabem que “uma pandemia é um período denso da história, em que os acontecimentos se precipitam uns sobre os outros sem que a racionalidade civilizatória seja capaz de digeri-los”. Mas sabem também, que têm a matéria da “mulher abrigo de semente moto-contínuo do mundo”, tal a eu-mulher de que fala Conceição Evaristo, na epígrafe que você escolheu parar marcar a sua própria escrita.

A foto do livro Máscaras no Varal que usei para ilustrar este Lido para Você foi tirada do facebook. Ela está em postagem de Karla Andrade, parceira de Gabriela Tunes no projeto “Direitos Humanos e Política”, Aliás, na postagem, ela diz: “A escrita da Gabi é muito “dedo na ferida”, um tapa cheio nas classes média e alta. Li alguns trechos com olhos de contentamento de quem diz: Boa, Gabi! Li outros trechos quase me escondendo atrás das almofadas, como quem diz: Eu já me vi aqui! Mulheres brancas, leiam Máscaras no Varal! Nós precisamos nos constranger com as verdades ditas, com os números calculados e estimados, e com o cenário que encontrarmos do lado!”.

Então, é disso que trata a escrita de Gabriela Tunes. Do exercitar a existência, quer dizer, deixar o pessimismo para tempos mais promissores e apaziguados e prosseguir no “viver uma pandemia [o que significa] aprender a conviver com o medo e a incerteza sobre futuros”, sem se deixar sucumbir por esses sentimentos desmobilizadores, exercitando escolher os caminhos que quer percorrer e o ponto utópico que quer alcançar pela força de seu pensamento de sujeito que age para transformar a realidade. Uma característica comum às minhas “Gabrielas”.

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.

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