sábado, 27 de setembro de 2014

Comer, ato revolucionário. Ou carta do céu na Terra*

        
                                 Luiza Valladares**
Escrevo esta carta com fome. Então, dentre os nove meses de andarilhagem em que degustei desde aromáticas especiarias das margens do Ganges até fétidos ovos cozidos no vapor sulfúrico dos vulcões de Java, vou contar o pedaço mais gostoso da viagem.
É o pedaço mais gostoso não só porque os quitutes que lá encontrei me regalaram com alguma reserva de energia abdominal necessária ao bom andamento da jornada.  É o mais gostoso porque alimentou como nenhum outro minha alma e meu coração.
Quanto ao coração, não consigo avançar muito aqui. É estranho como o sentimento transborda ao mesmo tempo que a timidez impede a palavra. Quanto à alma... bom, me sinto um bocado menos tímida pra falar da alma do que do coração, mas é mais difícil colocar as questões da alma no papel. Mas uma coisa é certa: quando a alma está com fome ela grita, e quando está alimentada a calmaria é notável. O tempo vivido em BumiLangit foi pra mim delicioso porque alimentou minha alma na forma do vislumbre de uma revolução. Explico.
Depois de três meses de viagem pela Ásia, em que percorri 7 países com muita sede, era hora de enraizar-me, só um pouquinho, mas o suficiente para sedimentar aquela mistura de curry indiano, dal nepalês e outros condimentos culturais apimentados que encontrei pelo caminho. A condição de estrangeira falava alto. Ser estrangeira é sentir a alteridade em sua forma mais radical. O abismo insondável entre o sujeito e o próximo sempre está lá, mesmo dentro de uma mesma cultura. Mas viajar é “estar fora”, é “desinscrever-se”, temporariamente, do espaço simbólico que habitamos, nos forçando a nos deparar com esse hiato próprio da nossa condição de seres falantes, portanto, faltantes. A solução de compromisso encontrada pela estrangeira ou pelo estrangeiro que não cede à tentação de domesticação ética do próximo, que aparece na forma da xenofobia ou de um estranhamento insustentável, é a saudade gostosa de casa e a busca por aconchego e familiaridade, mesmo nas terras mais longínquas. Assim fui parar em BumiLangit.
A alguns quilômetros de Yogyakarta, a “capital cultural” de Java, ficava o céu na Terra. Na língua indonésia, “Bumi” significa Terra e “Langit”, céu. É apenas uma fazenda de permacultura, mas a intenção colocada no nome pelo seu fundador, Pak IskandarWaworuntu, é mais que a de apetecer àqueles que buscam pelo Paraíso. É um apelo, há muitos séculos ouvido nas periferias das cidades. “Fugere Urbem!!!” já gritavam os antigos, em suas antigas línguas, em suas antigas fazendas tocadas com antigas técnicas de permacultura.
A fazenda não é muito grande. Nela vive e trabalha uma comunidade muçulmana de cerca de 15 pessoas, 3 vacas, 4 cabritos e incontáveis galinhas (incontáveis não porque são muito numerosas, mas porque são realmente difíceis de serem contadas). Quase tudo que é consumido é produzido por lá, desde a energia elétrica gerada por painéis solares até a manteiga de amendoim passada no pão quentinho, iguaria que revigora corpo e mente após o trabalho no campo. E tudo que é preparado, plantado, cuidado e construído procura atender os princípios da permacultura. O termo permacultura foi cunhado em 1988 por Bill Mollison e significa “agricultura permanente”. Mas é só um nome chique para práticas muito antigas, que consistem na criação e manutenção de sistemas e tecnologias que integrem as pessoas e suas necessidades às necessidades e elementos da natureza.
O potencial revolucionário de BumiLangit está na demonstração de que é possível suprir necessidades de forma sustentável e com direito a manteiga de amendoim. Mas veja bem, a questão na natureza ontológica de uma necessidade e de quais necessidades são “realmente necessárias” é matéria para uma faceta espiritual da revolução, que não cabe discutir aqui. Já que relato a minha experiência, no que toca às minhas necessidades, aquela manteiga de amendoim me calou!
A revolução que BumiLangit deixa entrever começa no ato de plantar. Plantar é uma das atividades culturais mais antigas e encerra em si um significado quase místico, que vai além de apenas colocar uma semente no chão. É observar a natureza criar e nos dá a oportunidade de coadjuvar nessa produção e de aprender com ela. Isso é muito importante em tempos que nos induzem a apertar o play e a apenas reproduzir um repertório cultural já batido, pois o ato criativo nos tira do modo de funcionamento baseado no consumo. Acredito que o apelo de plantar é parecido com o apelo da arte.
Contemplar como a natureza cria e agir de forma a facilitar esse processo nos ajuda também a restabelecer uma conexão perdida. As práticas agriculturais atuais procuram “reinventar” a natureza. É como se a agricultura de hoje em dia lutasse contra os processos naturais, lançando mão de pesticidas, fertilizantes, alimentos transgênicos e técnicas cada vez mais distantes do modo de operação da natureza. Além de gerar um passivo ambiental imenso, essa não é a opção mais eficiente e muito menos a mais saudável. A única explicação para a escolha por esse modo de produção é o beneficio daqueles poucos por trás da indústria do agronegócio.
O desconforto gerado pela desconfiança sobre um saber que deveria ser tão intuitivo, como é o ato de plantar, cedeu lugar à esperança por meio da práxis, pois o rompimento com as práticas agriculturais nocivas parte de uma atitude de não subtração à nossa própria natureza. Nesse sentido, a agricultura feita de forma respeitosa e responsável transcende o objetivo da produção de alimentos. Essa é apenas uma reação inevitável, apesar de desejada. Plantar pode ser uma forma de cultivar mulheres e homens com uma visão mais holística de seu lugar no mundo. 
Algo vai muito mal na cidade e BumiLangit foi um celeiro de reflexões sobre a questão agrária, ecológica, religiosa e... gastronômica. Sim, gastronômica porque o bem-querer ao plantar e colher transbordam para o sabor dos alimentos. E esse aspecto tempera bastante o argumento a favor da agricultura natural, ainda mais quando escrevemos com fome. Afinal, plantamos para comer e queremos comer bem e com sabor. Enfim, irei à mesa e ao quintal mantendo em mente que comer bem é suster a vida e traz em si o potencial de um ato revolucionário.
*As “cartas” têm sido publicadas neste Blog como impressões/reflexões de viagens para intercâmbio e estudos de pós-graduação de membros dos vários coletivos que se encontram nos Diálogos Lyrianos. Assim, estão aqui colecionadas as Cartas de Nagoya (Diego Nardi), as Cartas da Áustria, Finlândia, Áustria, Alemanha e agora da China (Layla Jorge Teixeira Cesar) e as Cartas do Gotemburgo  (Ana Luiza Almeida e Silva). A elas vem se colecionar as Cartas da Indochina de Luiza Valladares e, em breve as Cartas do Mondego, de Lívia Gimenes e de Patrick Mariano que estão embarcando para Coimbra para seguir programas de pós-graduação.
** Luiza Valladares faz graduação em Psicologia na UnB e em Direito no UniCEUB. Integra a AJUP Roberto Lyra Filho, assessoria jurídica universitária vinculada à FD/UnB e participa do Coletivo Diálogos Lyrianos.


quinta-feira, 25 de setembro de 2014

“Acesso à Justiça e a pedagogia dos vulneráveis”; ou “O pensamento de Paulo Freire e sua relação com o Direito como prática para a libertação”*





                              Ana Maria Araújo Freire (nita freire)**


Agradecendo o convite da Escola de Serviço de Justiça, especialização em Magistratura, da Argentina, quero antes de tudo dizer de minha ousadia em ter aceitado falar – que grande risco estou correndo de resvalar em enganos e erros- sobre este tema para especialistas do campo da ciência jurídica, pois sou apenas uma pedagoga e historiadora da educação brasileira, com ênfase em PAULO FREIRE.

Paulo Freire, meu marido, cursou e se diplomou Bacharel em Direito, em 1947, na respeitada Faculdade de Direito do Recife, Pernambuco, criada em 11 de agosto de 1827, pelo Imperador Dom Pedro I. Entretanto depois de iniciada sua primeira causa Paulo resolveu deixar a advocacia e continuar se dedicando à educação.

A ciência jurídica estudada nas faculdades de direito e praticada no Brasil tem sua origem no Direito Romano.  Veio através dos anos, da evolução de nossa sociedade, mudando a orientação tanto nos estudos desta ciência quanto na prática jurídica. Interpretações das leituras da Modernidade ___ que entendem o Direito quase que restrito à submissão das NORMAS jurídicas vigentes, à letra da Lei ___ elaboradas pelos “doutos” da elite social e econômica, que, priorizavam abandonar os homens e as mulheres de “segunda categoria”, os vulneráveis, os esfarrapados, os excluídos, os oprimidos à própria sorte e desgraça. Os “donos das leis e do poder”, até hoje, entendem e condenam estes à condição de objetos desencarnados e sem voz, nascidos para a submissão e a serventia, que, felizmente pela luta política no Brasil vem sendo substituída pela compreensão da abordagem dialética do Direito Social. Esta, de natureza progressista que tem como objetivo a igualdade de todos e todas perante uma justiça equânime como fator que abre a possibilidade de harmonia da vida social numa relação dialógica e dialética entre contexto (a realidade), texto (a legislação) e os conflitos sociais. Tarefa gigantesca  numa sociedade de classes, como a brasileira marcada por fortes traços escravagistas, interditores, elitistas e discriminatórios.[1]

Minha análise, fundamentalmente política e educacional vai incorporar[2] esta nova vertente, dialética e dialógica do Direito para todos, que ainda não majoritariamente está sendo aceita e abraçada por juristas importantes e posta em prática por muitos dos nossos juízes, promotores e desembargadores das diversas instâncias do Poder Judiciário brasileiro. Não na medida do necessário, mas em crescimento,  pleno caminho para este destino.

Citando Roberto Lyra Filho[3],um dos maiores pensadores brasileiros da ciência jurídica, que criou uma nova compreensão do Direito, e lhe deu um nome despretensioso e de rara beleza poética, política e ética:  o Direito Achado na Rua:, transcrevo:
“O Direito não é; ele se faz, nesse processo histórico de libertação – enquanto desvenda progressivamente os impedimentos da liberdade não lesiva aos demais. Nasce na rua, no clamor dos espoliados e oprimidos e sua filtragem nas normas costumeiras e legais tanto pode gerar produtos autênticos (isto é, atendendo ao ponto atual mais avançado de conscientização dos melhores padrões de liberdade em convivência), quanto produtos falsificados (isto é, a negação do Direito no próprio veículo de sua efetivação, que assim se torna um organismo canceroso, como as leis que ainda por aí representam a chancela da iniquidade, a pretexto da consagração do Direito).(Lyra Filho[4] apud Feitoza[5], p. 44).

Ainda citando o trabalho de Feitoza, sobre como ele e a abordagem dialética do Direito entendem o Direito:
Nesse processo histórico de libertação, o Direito teria como finalidade o desdobramento da liberdade, dentro dos limites da coexistência”. A nova abordagem dialética do Direito recuperaria a concepção do jurídico enquanto esfera da liberdade em coexistência. Por isso que para Lyra Filho é incorrer em erro ver o Direito como pura restrição à liberdade, quando, em verdade, o Direito constituiria a afirmação da liberdade conscientizada e viável, na coexistência social’. Restrições à liberdade de cada um se legitimariam apenas na medida da garantia da liberdade de todos. Deste modo, o Direito  modelaria o padrão social organizador da liberdade, resultado do processo mesmo. O que significa dizer que dentro do processo histórico ‘o aspecto jurídico representa a articulação dos princípios básicos da Justiça Social atualizada, segundo padrões de reorganização da liberdade que se desenvolvem nas lutas sociais’ dos seres humanos. Essa forma de conceber o Direito permite a Lyra Filho não apenas retomar sua identificação com a justiça, mas reenquadrá-la historicamente”(Feitoza, p 111-112):

O autor continua citando Roberto Lyra Filho:
“Direito e Justiça caminham enlaçados; lei e Direito é que se divorciam com frequência. Onde está a Justiça no mundo? , pergunta-se. Que Justiça é esta, proclamada por um bando de filósofos idealistas, que depois a entregam a um grupo de “juristas”, deixando que estes devorem o povo? A Justiça não é, evidentemente, esta coisa degradada. Isto é negação da Justiça, uma negação que lhe rende, apesar de tudo, a homenagem de usar seu nome, pois nenhum legislador prepotente, administrador ditatorial ou juiz formalista jamais pensou em dizer que o “direito” deles não está cuidando de ser justo. Porém, onde fica a Justiça verdadeira? Evidentemente, não é cá, nem lá, não é nas leis (embora às vezes nelas se misture, em maior ou menor grau); nem é nos princípios ideais, abstratos (embora às vezes também algo dela ali se transmita, de forma imprecisa): a Justiça real está no processo histórico, de que é resultante, no sentido de que é nele que se realiza progressivamente”( Lyra Filho apud Feitoza, p. 111)

Ainda palavras de Lyra Filho:
 “Justiça é Justiça Social, antes de tudo: é atualização dos princípios condutores, emergindo nas lutas sociais, para levar à criação duma sociedade em que cessem a exploração e opressão do homem pelo homem; e o Direito não é mais, nem menos, do que a expressão daqueles princípios supremos, enquanto modelo avançado de legítima organização social da liberdade. Mas até a injustiça como também o Antidireito (isto é, a constituição de normas ilegítimas e sua imposição em sociedades mal organizadas) fazem parte do processo, pois nem a sociedade justa, nem a Justiça corretamente vista, nem o Direito mesmo, o legítimo, nascem dum berço metafísico ou são presente generoso dos deuses: eles brotam nas oposições, no conflito, no caminho penoso do progresso, com avanços e recuos, momentos solares e terríveis eclipses.(Lyra Filho apud Feitoza, p.112)

Conclui Feitoza:
“A síntese jurídica (…) não é mero resumo de todo o processo. Se assim fosse, terminaria por identificar-se com a ordem dominante que subsiste apesar das atividades anômicas. A síntese jurídica é o vetor histórico da práxis jurídica que, a partir da dialética social do Direito, aponta tendencialmente no sentido de atualizar os princípios condutores rumo a uma práxis social justa e um controle social legítimo que permita a criação duma sociedade em que cessem a exploração e opressão dos seres humanos pelos seres humanos (….) (Feitoza, p.113)

“Compreender a noção de direitos humanos a partir de Paulo Freire demanda, acima de tudo, a percepção do direito como fenômeno social, cultural e histórico, concebido na dialética, nos conflitos, nas discussões e na prática social cotidiana em favor da justiça. (...) Sob esta nova epistemologia, não podem vigorar as condições segundo as quais a ciência Moderna se formula enquanto produção teórica universal, interpretadas, no âmbito do direito, como limitações e marcas ortodoxas ocidentais que reduzem a complexidade jurídica. (...) quanto ao positivismo, capaz de impedir que a perspectiva e condição de validade do direito seja reduzida a apenas um possível, mas no único, modo de expressão, a norma. Reintegrado à vida das pessoas, o fenômeno jurídico assume novos elementos, integra-se aos fundamentos axiológicos dos quais se apartou em nome da pureza metodológica e da neutralidade quanto aos efeitos de suas construções, vincula-se ao fazer político, à dialética das relações sociais, como mola propulsora da justiça, como campo de eticidade, volta-se, enquanto campo de disputas, para a emancipação social.” (Góes, p.173)[6]

Por tudo que foi exposto torna-se passível asseverar, que, a relação de Paulo Freire com o Direito nega veemente a concepção tradicional do direito da Modernidade e se alia ___ talvez fosse mais correto dizer que ele, ao lado de outros intelectuais que enriqueceram o pensamento da esquerda mundial criaram um nova leitura do mundo, humanista e transformadora,dentro da qual meu marido concebeu uma teoria epistemológico-ético-político-antropológico-critica de educação, que está alinhada com a concepçãodo Direito Achado na Rua, a Teoria Dialética Social do Direito. Entretanto,cabe aqui uma ressalva: o jurista Roberto Lyra Filho, que embasa Feitoza e Góes, como também este meu trabalho, não cita Paulo Freire em nenhum dos seus mais de 40 livros. Porém, fica evidente, com uma simples leitura dos trabalhos deles, que Lyra sorveu princípios e utilizou algumas categorias fundamentais da teoria do educador brasileiro, seu conterrâneo.

Enfim, desprezando mais delongas, concordando com Góes (“fenômeno jurídico, reaprendido e reapreendido no mundo da vida, torna-se autêntico quando se revela direitos humanos”), por que faz muito tempo que assevero e defendo a tese de que a luta de meu marido por justiça, autonomia e libertação, pela vivência da experiência democrática para todos/as os brasileiros, reafirmo que é no fundo e mais radicalmente a luta pelos direitos humanos deles e delas[7]

Devo falar agora das categorias epistemológicas e políticas, advindas das virtudes pessoais de Paulo, que se fizeram, coerente e intencionalmente, categorias político-antropológicas a serviço da ética, da humanização e da transformação social, em sua teoria.De sua compreensão de educação política crítica a serviço da dignificação de todos os homens e de todas as mulheres, independentemente da idade, da origem geográfica ou étnica, da religião professada, da idade, do nível de escolaridade, do gênero ou quaisquer outras diferenças, portanto em prol dos direitos humanos mais autênticos, fundamento do Direito Social Dialético, concebido por Roberto Lyra Filho.

Tenho afirmado que a teoria de Paulo vem sendo a “pedagogia do oprimido” [8] mesmo antes dele escrever um livro com este título, diante do fato que sua preocupação fundamental foi buscar mecanismos da inserção crítica dos homens e das mulheres nas suas sociedades ao possibilitar-lhes terem voz, dizerem a sua palavra, biografarem-se. Serem seres-mais. Possibilitando-os serem sujeitos também da história e nãoapenas objetos da exploração, de servidão a serviço das classes opressoras, assim, essa busca de dignificar os oprimidos/as é a luta pelos direitos humanos mais autênticos para os vulneráveis, os esfarrapados, os oprimidos/as . Portanto, a postura ético- político-epistemológica de Paulo, não resta dúvida, é a de quem luta pelos Direitos de toda ordem para todos e todas as pessoas.

Para isso devo citar trechos de alguns livros de Paulo Freire, talvez pouco conhecidos, mas que me tocam sobremaneira:[9]

Sobre a questão da natureza ontológica dos seres humanos:
“O opressor só se solidariza com os oprimidos quando seu gesto deixa de ser um gesto piegas e sentimental, de caráter individual, e passa a ser um ato de amor àqueles. Quando, para ele, os oprimidos deixam de  ser uma designação abstrata e passam a ser os homens [e as mulheres] concretos, injustiçados e roubados. Roubados na sua palavra, por isso no seu trabalho comprado, que significa a sua pessoa vendida. Só na plenitude deste ato de amar, na sua existenciação, na sua práxis, se constitui a solidariedade verdadeira. Dizer que os homens [e as mulheres] são pessoas e, como pessoas, são livres, e  nada concretamente fazer para que esta afirmação se objetive, é uma farsa.”(Pedagogia do oprimido, p. 59)

Sobre sua opção a favor dos oprimidos e das oprimidas:
“Os que inauguram o terror não são os débeis, que a ele são submetidos, mas os violentos que, com seu poder, criam a situação concreta em que se geram os “demitidos da vida”, os esfarrapados do mundo”(Pedagogia do oprimido, p. 67)

Sobre a amorosidade sempre presente e radical em sua gentidade e em sua obra e práxis:
“O sadismo aparece, assim, como uma das características da consciência opressora, na sua visão necrófila do mundo. Por isto é que o seu amor é um amor às avessas --- um amor à morte e não à vida. “(Pedagogia do oprimido, p. 74)]

Sobre a necessidade da amorosa dialogicidade:
“Sendo fundamento do diálogo, o amor é, também, dialógico.” (Pedagogia do oprimido, p. 130)

Sobre a necessidade da luta a partir da conscientização:
“Precisamos estar convencidos de que o convencimento dos oprimidos de que devem lutar por sua libertação não é doação que lhes faça a liderança revolucionária, mas resultado de sua conscientização” (Pedagogia do oprimido, p. 84)

Sobre a necessidade das virtudes do educador na prática educativa:
“Deve fazer  parte de nossa formação discutir quais são estas qualidades indispensáveis, mesmo sabendo que elas precisam ser criadas por nós, em nossa prática, se nossa opção política-pedagógica é democrática ou progressista e se somos coerentes com ela. É preciso que saibamos que, sem certas qualidade ou virtudes como amorosidade, respeito aos outros, tolerância, humildade, gosto da alegria, gosto da vida, abertura ao novo, disponibilidade à mudança, persistência na luta, recusa aos fatalismos, identificação com a esperança, não é possível a prática pedagógico-progressista, que não se faz apenas com ciência e técnica” (Pedagogia da autonomia, p. 135)

Sobre sua imensa capacidade ética da compaixão:
“Que coisa estranha, brincar de matar índio, de matar gente. Fico a pensar aqui, mergulhado no abismo de uma profunda perplexidade, espantado diante da perversidade intolerável desses moços desgentificando-se, no ambiente em que decrescem em lugar de crescer” (Pedagogia da indignação, p. 75)

Sobre a necessidade existencial do sonho, da utopia e da esperança:
Sonhar não é apenas um ato político necessário, mas também uma conotação da forma histórico-social de estar sendo de mulheres e homens. Faz parte da natureza humana que, dentro da história, se acha em permanente processo de tornar-se….Não há mudança sem sonho como não há sonho sem esperança….. A compreensão da história como possibilidade e não como determinismo….seria ininteligível sem o sonho, assim como a concepção determinista se sente incompatível com ele e, por isso, o nega.”(Pedagogia da esperança, p. 91-92)

Sobre a virtude ética da tolerância:
“(…) Falo da tolerância como virtude da convivência humana. Falo, por isso mesmo, da qualidade básica a ser forjada por nós e aprendida pela assunção de sua significação ética – a qualidade de conviver com o diferente. Com o diferente, não com o inferior. (…)   que não o neguem só porque é diferente. O que a tolerância legítima termina por me ensinar é que, na sua experiência, aprendo como diferente”(Pedagogia da tolerância, p. 25-26)

Sobre a necessidade dos sonhos, da utopia e justiça social:
“(…) Recentemente, forças reacionárias lograram sucesso em proclamar o desaparecimento das ideologias e o surgimento de uma nova história, desprovida de classes sociais e, portanto, sem interesses antagônicos em luta de classes. Ao mesmo tempo, preconizam que não há necessidade de se continuar falando de sonhos, utopia ou justiça social. Contudo, para mim, é impossível existir sem sonhos.” (Pedagogia dos  sonhos possíveis, p. 49)

Sobre os direitos dos seres humanos:
“O direito de ser tratados com dignidade pela organização para a qual trabalhamos, de ser respeitados como gente. O direito a uma remuneração decente. O direito de ter, finalmente, reconhecidos e respeitados todos os direitos que nos são assegurados pela lei e pela convivência humana e social.”(Política e Educação, p. 105)

Sobre a profunda indignação ética em favor do respeito e da VIDA: as últimas palavras escritas por Paulo:
“Desrespeitando os fracos, enganando os incautos, ofendendo a vida, explorando os outros, discriminando o índio, o negro, a mulher não estarei ajudando meus filhos a ser sérios, justos e amorosos da vida e dos outros.” (Pedagogia da indignação, p. 75)

Na sua compreensão ético-político-antropológica de uma epistemologia crítico-educativa que em última instância, tem como ponto central a humanização de todos e todas independentemente de sua classe social, sua idade, gênero, opção sexual ou local de nascimento ou moradia, Paulo está se referindo e lutando pelos plenos direitos de igualdade de oportunidades. Portanto, se a práxis de Paulo Freire se centra na luta pela dignificação das gentes, corporificação da humanização verdadeira, ele está se referindo aos direitos humanos. Dignificar as gentes, as pessoas, é, assim, a substantividade dos direitos humanos. Do Direito Achado na Rua dentro da concepção dialética social do direito de Roberto Lyra Filho.

Não tenho dúvidas, não tenho por que não afirmar que a obra e a práxis de Paulo influenciou sobremaneira o processo de conscientização política de grande parte da população nacional, sobretudo a pertencente às camadas populares e da construção e participação na democracia, que temos hoje, na sociedade brasileira.

Não tenho dúvidas, não tenho por que não afirmar que o acesso à Justiça pelos vulneráveis e oprimidos/as se deve em grande parte ao pensamento e a práxis de Paulo Freire, que lutou incessante, engajada e bravamente por toda a sua vida, através de sua crença nos homens e nas mulheres e  de sua solidariedade pessoal a todos e a todas os justos, postas na sua obra, pelo Direito como prática para a libertação.

O conjunto de obra de Paulo Freire, que tem como ponto nevrálgico a educação, é, em última instância, um Tratado do Direito Social Dialéticoa partir Do Direito Achado na Rua, pois está encharcadode politicidade, eticidade/esteticidade, amorosidade e problematicidade nascido do real e concreto, em favor dos oprimidos e oprimidas, os vulneráveis, os esfarrapados do mundo.

Muito obrigada.



[1]Estas quatro categorias são as que venho trabalhando em meus escritos sobre a sociedade brasileira, característica de nossa sociedade colonial, mas que ainda hoje tem enorme população de adeptos.
[2]Para elaborar este trabalho solicitei ajuda de bibliografia adequada ao tema ao amigo e ex-Reitor da UnB, o jurista José Geraldo de Sousa, que gentilmente me enviou os dois trabalhos acadêmicos que subsidiam meus escritos.
[3]Roberto Lyra Filho é o foco central das análises da dissertação de Pedro Feitoza.
[4] LYRA FILHO, R.. Desordem e Processo: Um posfácio explicativo. In: LYRA, Doreodó Araújo Desordem e Processo Estudos Sobre o Direito em homenagem a Roberto Lyra Filho, Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris,1986.p. 312
[5]Pedro Rezende Santos Feitoza. O direito como modelo avançado de legítima organização social da liberdade: a teoria dialética de Roberto Lyra Filho,. Dissertação apresentada em 2014, na UnB.

[6] GÓES JUNIOR, José Humberto de. Da Pedagogia do Oprimido ao Direito do Oprimido: Uma Noção de Direitos Humanos na Obra de Paulo Freire. Dissertação de Mestrado, Mestrado em Ciências Jurídicas, UFPB, João Pessoa, 2008.
[7]Está em processo de feitura, com organização minha e do prof. Erasto Fortes Mendonça, com radicais mudanças  e atualizações, o livro de Paulo Freire A educação na cidade, que tem como novo título Direitos humanos e educação libertadora: a gestão democrática da Secretária Municipal da Educação de São Paulo (1989-1991)
[8] Conferir em Pedagogia da libertação em Paulo Freire o meu ensaio: “A pedagogia do oprimido de Paulo Freire”  p. 25 a 31.
[9]Nestes textos farei negrito por minha própria conta para enfatizar a relação da citação com o texto desta Conferência.

 *Conferência proferida em Buenos Aires, em 25 de setembro de 2014, na Escola de Serviço de Justiça, em programa de especialização em Magistratura
** Biógrafa e sucessora legal dos direitos de Paulo Freire, a conferencista é viúva do grande educador, sendo com ele co-autora em diversos trabalhos. Mestra e doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). É autora, também, de Analfabetismo no Brasil: da ideologia da interdição do corpo à ideologia nacionalista, ou de como deixar sem ler e escrever desde as Catarinas (Paraguaçu), Filipas, Madalenas, Anas, Genebras, Apolônias e Grácias até os Severinos (3ª ed. São P aulo: Cortez, 2001) e Centenário do nascimento: Aluízio Pessoa de Araújo (Olinda: Edições Novo Estilo, 199

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

RESENHA DO ENSAIO "SOCIOLOGIA JURIDICA: CONDIÇÕES SOCIAIS E POSSIBILIDADES TEÓRICAS" *


Marcella Beatriz de Guimarães Carrasco**


                        Resenha do texto “Sociologia Jurídica: condições sociais e possibilidades teóricas” de José Geraldo de Sousa Junior
                        O texto “Sociologia Jurídica: condições sociais e possibilidades teóricas” de José Geraldo de Sousa Junior exprime um panorama sobre a atuação da Sociologia Jurídica, considerando as dificuldades e oportunidades indicadas por diversos autores sobre o modo como o âmbito social interage com o Direito, a partir de uma realidade de transição paradigmática.
                        Émile Durkheim afirmava que “é nas entranhas da sociedade que o direito se elabora”, indicando a necessidade do estudante perceber a influência e pressão das necessidades sociais sob o modo como o Direito se forma e transforma. É justamente a partir desse foco nas condições sociais que o texto abre espaço para discussão sobre a atuação da Sociologia Jurídica.
                        O autor expressa sua preocupação acerca da existência da Sociologia Jurídica como sendo, ao mesmo tempo, útil ao profissional do Direito e a seu teórico, a partir da elaboração de modos de pensar e da orientação a práticas profissionais. É a coexistência da utilidade prática com a cientificidade e tecnicismo.
                        Roberto Lyra Filho abonaum processo de “autoinvestigação” realizada pelos atores que utilizam e estudam a Sociologia Jurídica, que consiste em “compreender-se, reflexivamente, no próprio ato de compreender, transitivamente, a realidade social”. Conceito semelhante ao de Lyra Filho é a “autorreflexividade”, indicado por Boaventura de Sousa Santos. Essas perspectivas indicam que a Sociologia Jurídica busca, além de criticar objetos externos, ser objeto das próprias críticas. Como diz Sousa Santos, “quer ser autocrítica enquanto produz a sua crítica”.
                        Para lograr um amplo entendimento, é possível considerar os elementos anteriores e precursores da Sociologia Jurídica, como as observações de filósofos e sociólogos apresentados no texto: Aristóteles, Montesquieu, Comte, Marx, Weber e Durkheim. Ademais, é exequível buscar a multidisciplinariedade na análise das ideias, bem como o uso da imaginação e empatia para a devida interpretação, desenvolvimento e até mesmo exposição das ideias para que se alcance melhores reflexões. BistraApostolova considera também a arte, principalmente a literatura e o cinema, como elemento que desenvolve a imaginação, e essa, por sua vez, “cria condições para que as pessoas aprendam a se colocar no lugar do outro, envolvendo-se com seus valores e problemas”. Essa técnica corrobora com uma interpretação social abrangente, que não se limita na realidade de cada ser em sua individualidade.
                        ElíasDíaz apresenta a concepção de Sociologia Jurídica, em relação à sociologia geral, como a “análise empírica das mútuas e recíprocas conexões existentes entre Direito e sociedade”. Apesarda limitação do objeto da sociologia colocado por Durkheim como sendo a “sociedade em si e não em qualquer de suas subunidades”, a Sociologia Jurídica possui ainda objeto extremamente vasto, multidisciplinar e mutável.André-Jean Arnaud e Maria José Fariñas Dulce apontam a dificuldade de determinar um objeto específico para a Sociologia Jurídica considerando as transições paradigmáticas. Tais autores relacionam a ideia de um projeto de uma “sociologia jurídica renovada” para alcançar o objetivo de “compreensão tanto da complexidade crescente dos sistemas jurídicos quanto de sua dinâmica social”.
                        Para Díaz há de fato um processo de constituição e desenvolvimento da Sociologia Jurídica na contemporaneidade. Ao indicar um processo de reconstrução metodológica e refinamento conceitual, não mais considerando antecedentes e precursores da sociologia como referência para tal processo, ele apresenta a existência de “precedentes imperfeitos”. Esses se referem a um cenário antecedente no qual o Direito era destacado como norma, havendo uma indistinção entre sociologia jurídica e sociologismo jurídico antinormativista. Boaventura de Sousa Santos salienta a existência de uma visão normativistasubstantivista do Direito sobre o que se conhecia desde o século XIX, motivada por concepções jurídicas de mundo que denotam o Direito como criador da sociedade; as relações dessa seriam reduzidas apenas a relações jurídicas. O desenvolvimento do “direito vivo” e da criação judicial do Direito poderiam oferecer condições sociais e possibilidades teóricas que contribuem para a transição da visão normativista para a análise do Direito centrada nos conflitos, e não nas normas.
                        Considerando o que foi exposto, é claro perceber que a análise da sociedade ratifica a importância do âmbito social no Direito. Não obstante, há problemas na relação entre o Direito positivo e os fatos sociais. Para Roberto Lyra Filho, essa objeção deve-se à antítese marcada pelo jusnaturalismo e juspositivismo, podendo se desvanecer a partir da análise de processos histórico-sociais, introduzindo a ideia de uma Sociologia Histórica.
                        Além desse artifício, existem múltiplas propostas de renovação do campo sociojurídico, que colocam o Direito em um contexto de globalização, pluralidade, informalidade e alternatividade. Boaventura de Sousa Santos reporta-se a um processo de “repolitização global da prática social” e “renovação da teoria democrática”, possibilitando uma articulação entre democracia representativa e participativa. Esse processo favoreceria o exercício de uma cidadania ativa, ou um “civismo ordinário”, como mencionado por Patrick Pharo. A transição de certa visão normativista para uma concepção processual, institucional e organizacional do Direito, como fora apontado por Boaventura, é possível ao se considerar uma “reelaboração teórica dos conceitos de juridicidade e de direito”, como visto por Eliane Junqueira. Essa reelaboração corrobora com a desconstrução de imagens derivadas de um dogmatismo tradicional precedente, e torna real o desenvolvimento de novas condições sociais e teóricas que promovam reorientar o ensino jurídico com um viés pluralista.
                        Saindo de uma perspectiva formalista, a Sociologia Jurídica encara a trama social formada por novos movimentos, caracterizando um dinamismo social formado por sujeitos novos, coletivos e descentralizados (retomando a designação de Marilena Chauí). Meu entendimento é de que o Direito, neste momento, passa a ser conjuntamente fruto da sociedade, e não somente seu criador.O “Direito Achado na Rua”, expressão criada por Lyra Filho e que denomina uma linha de pesquisa na Universidade de Brasília, oportuniza o entendimento de que a rua, lugar simbólico que representa a dinâmica social, portanto, é o intermédio no qual os indivíduos percebem a capacidade de se relacionarem de maneira autônoma com o Estado e o Direito, exercendo assim uma “cidadania ativa”.
                        Considerando minha compreensão do texto e percepção pessoal, tal posicionamento da Sociologia Jurídica é imprescindível para o Direito brasileiro. A autocrítica, a meu ver, se afasta de um enfoque puramente sistemático ese aproxima de um pensamento problemático, que pode proporcionara identificação das melhores maneiras de atuação da Sociologia Jurídica, considerando diferentes métodos e meios que se atualizem conforme o processo de transformação da realidade social. Assim, a Sociologia Jurídica pode corroborar com possíveis mudanças no Direito brasileiro em relação a uma realidade que antigamente não era sequer cogitada, como os problemas envolvendo o uso da Internet.
                        Depreende-se, então, do texto de José Geraldo, que apreender uma nova formulação do Direito, longe de um dogmatismo tradicional e de certo formalismo estrito, a partir da visualização do âmbito social, possibilita obter um olhar crítico aberto às transições paradigmáticas e, consequentemente, propiciar melhorias ao Direito tanto em um quadro acadêmico quanto em um quadro profissional.


* O ensaio objeto da resenha está publicado no livro com o mesmo título, de José Geraldo de Sousa Junior, publicado por Sergio Fabris Editor, Porto Alegre,2002, págs. 11-51.
** A autora é aluna do segundo período do curso de Direito da UnB e a resenha foi elaborada como parte das atividades da disciplina Sociologia Jurídica, incluída no segundo semestre do currículo do curso de Direito, da Faculdade de Direito da UnB.