terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Inscrições Abertas para o VIII Curso de Promotoras Legais Populares do Distrito Federal



Segue cartaz de divulgação do VIII Curso de Promotoras Legais Populares do Distrito Federal (2012). Este ano as vagas estarão limitadas para 50 mulheres, por isso as interessadas devem comparecer ao Núcleo de Prática Jurídica da UnB (NPJ/UnB), local do curso, impreterivelmente no dia 10 de março (sábado), das 9h às 12h. A aula inaugural será dia 17 de março de 2012.


quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Rio+20: as críticas

Boaventura de Sousa Santos

Antes da crise financeira, a Europa foi talvez o continente em que mais se
refletiu sobre a gravidade dos prolemas ecológicos que enfrentamos. Toda esta reflexão está hoje posta de lado e parece, ela própria, um luxo insustentável. Disso é prova evidente o modo como foram tratados pela mídia dois acontecimentos das últimas semanas, o Fórum Econômico Mundial de Davos e o Fórum Social Mundial Temático de Porto Alegre.
O primeiro mereceu toda a atenção, apesar de nada de novo se discutir nele: as análises gastas sobre a crise europeia e a mesma insistência em ruminar sobre os sintomas da crise, ocultando as suas verdadeiras causas. O segundo foi totalmente omitido, apesar de nele se terem discutido os problemas que mais decisivamente condicionam o nosso futuro: as mudanças climáticas, o acesso à água, a qualidade e a quantidade dos alimentos disponíveis ante as pragas da fome e da subnutrição, a justiça ambiental, os bens comuns da humanidade. Esta seletividade mediática mostra bem os riscos que corremos quando a opinião pública se reduz à opinião que se publica.

O Fórum de Porto Alegre visou discutir a Rio+20, ou seja, a Conferência da ONU sobre o desenvolvimento sustentável que se realiza no próximo mês de Junho no Rio de Janeiro, 20 anos depois da primeira Conferência da ONU sobre o tema, também realizada no Rio, uma conferência pioneira no alertar para os problemas ambientais que enfrentamos e para as novas dimensões da injustiça social que eles acarretam.

Os debates tiveram duas vertentes principais. Por um lado, a análise crítica dos últimos vinte anos e o modo como ela se reflete nos documentos preparatórios da Conferência; por outro, a discussão de propostas que vão ser apresentadas na Cúpula dos Povos, a conferência das organizações da sociedade civil que se realiza paralelamente à conferência intergovernamental da ONU. Nesta crônica centro-me na análise crítica e dedicarei a próxima crônica às propostas.
As conclusões principais da análise crítica foram as seguintes. Há 20 anos, a ONU teve um papel importante em alertar para os perigos que a vida humana e não humana corre se o mito do crescimento econômico infinito continuar a dominar as políticas econômicas e se o consumismo irresponsável não for controlado; o planeta é finito, os ciclos vitais de reposição dos recursos naturais estão a ser destruídos e a natureza “vingar-se-á” sob a forma de mudanças climáticas que em breve serão irreversíveis e afetarão de modo especial as populações mais pobres, acrescentando assim novas dimensões de injustiça social às muitas que já existem. Os Estados pareceram tomar nota destes alertas e muitas promessas foram feitas, sob a forma de convenções e protocolos. As multinacionais, grandes agentes da degradação
ambiental, pareceram ter ficado em guarda.
Infelizmente, este momento de reflexão e de esperança em breve se desvaneceu. Os EUA, então principal poluidor e hoje principal poluidor per capita, recusou-se a assumir qualquer compromisso vinculante no sentido de reduzir as emissões que produzem o aquecimento global. Os países menos desenvolvidos reivindicaram o seu direito a poluir enquanto os mais desenvolvidos não assumissem a dívida ecológica por terem poluído tanto há tanto tempo. As multinacionais investiram para influenciar as legislações nacionais e os tratados internacionais no sentido de prosseguir as suas atividades poluidoras sem grandes restrições.
O resultado está espelhado nos documentos preparados pela ONU para a Conferência Rio+20. Neles recolhem-se informações importantes sobre inovações de cuidado ambiental mas as propostas que fazem — resumidas no conceito de economia verde — são escandalosamente ineficazes e até contraproducentes: convencer os mercados (sempre livres, sem qualquer restrições) sobre as oportunidades de lucro em investirem no meio ambiente, calculando custos ambientais e atribuindo valor de mercado à natureza. Ou seja, não há outro modo de nos relacionarmos entre humanos e com a natureza que não seja o mercado. Uma orgia neoliberal.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Nasce o Instituto Direito e Movimentos Sociais

Divulgando o evento e a carta do Instituto Direito e Movimentos Sociais




Nasce o Instituto de Pesquisa, Direito e Movimentos Sociais


Intelectuais se reunirão para fundar o Instituto em Goiás Velho, no mês de abril.


Professores e estudantes das principais universidades brasileiras, junto com movimentos sociais do campo e da cidade, profissionais do Direito e assessores populares, fundarão o instituto durante o II Seminário Direito, pesquisa e Movimentos Sociais  que será realizado entre os dias 26 e 28 de abril, na cidade de Goiás Velho, em Goiás.
A ideia de criação do instituto começou a ser discutida no I Seminário, realizado na Faculdade de Direito da Universidade de Sao Paulo (USP) em 2011. Esse primeiro encontro fortaleceu a articulação dos grupos envolvidos e a concepção de que os movimentos sociais são atores fundamentais na construção, fortalecimento e aperfeiçoamento dos instrumentos e mecanismos de intervenção do Estado nos conflitos sociais.
Em 2011, a atividade foi organizada pela Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (Renap), Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), por professores da USP  e pelo Centro Acadêmico XI de Agosto e contou com a participação de inúmeros grupos de pesquisadores autônomos e outros ligados a universidades, institutos de pesquisa e ao Estado brasileiro, como grupos de assessoria jurídica universitária, escritórios de advocacia popular.
Também participaram representantes da Turma especial para beneficiários da Reforma Agrária e agricultores familiares tradicionais Evandro Lins e Silva da UFG, do Observatório da Justiça
Brasileira da UFMG, da procuradoria federal do INCRA, da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça e da Defensoria Pública do Estado do RJ.
Neste II Seminário ocorrerão três mesas de debates sobre Direito, pesquisa e Movimentos Sociais, nas quais poderão ser inscritas comunicações orais nos grupos de trabalho.
Informações sobre as inscrições e para apresentações de trabalhos podem ser obtidas pelo correio eletrônico ipdmscorreio@gmail.com, ou então no endereço do blogue http://www.ipdms.blogspot.com/



Carta Convite - II Seminário Direito, Pesquisa e Movimentos Sociais



São Paulo e Cidade de Goiás, 17 de dezembro de 2011.

Carta Convite para o
II Seminário Direito, Pesquisa e Movimentos Sociais e fundação do Instituto de Pesquisa, Direito e Movimentos Sociais (IPDMS)

Aos Trabalhadores da Educação, da Ciência e do Pensamento Livres,
À Classe Trabalhadora, e
Aos Lutadores do Povo brasileiro,

Nós, professores, professoras, pesquisadores, pesquisadoras, militantes, profissionais e estudantes, conscientes da necessidade de construirmos uma práxis crítica sobre novos horizontes utópicos, decidimos pelo apoio aos movimentos populares brasileiros. Para tanto, pesquisa e ação devem se reencontrar e superar os escombros da crítica jurídica nacional.
A formação do Povo brasileiro se deu em um processo histórico complexo e violento, com um ajuntamento de povos que aqui já viviam e que aqui passaram a viver, dando vez a uma nova e mestiça realidade social. Tal processo recebeu a marca do etnocídio embasado no etnocentrismo, no eurocentrismo e no heleno-romanocentrismo, que abateu, especialmente, índios e negros. Daí que se faz necessária a crítica à colonialidade, por uma América Latina e por um outro mundo pluricultural, feita com as gentes da terra, outrora desterrados, e das margens dos campos e das cidades, ainda hoje condenados e famélicos.
Nossas disputas buscam conformar a contra-hegemonia e incluímos em nossa crítica os cortes estruturais à sociedade brasileira: classe, raça e gênero. Combatemos a dependência e a colonialidade. Nossas dimensões da crítica jurídica são o uso combativo do direito posto, a releitura deste mesmo direito, a insurgência – pelo Direito Insurgente ou Novo Direito -, o antinormativismo e o novo. Somos pela libertação das opressões de todas as espécies e nosso horizonte é irredento tanto no que se refere a estrutura do mundo em que vivemos quanto às idéias que o hegemonizam.

A insurgência contém o trabalho como fonte da produção de nossa existência, a resistência dentro desta mesma existência, a educação popular para a conscientização, junto da organização dos movimentos populares, vale dizer, os movimentos sociais que reúnem em seu seio a dialética reivindicação-contestação, a partir de pautas identitárias unidas à materialidade do trabalho e à concepção de totalidade da condição humana.
Contribuímos e queremos potencializar nosso apoio às assessorias populares: a jurídica, a política e a de formação. Nossos princípios são a pesquisa-ação, a educação popular, o trabalho coletivo e o protagonismo estudantil e dos movimentos sociais

Assim, noticiamos, por meio desta Carta - que é notícia e é convite: a realização do II Seminário Direito, Pesquisa e Movimentos Sociais e a fundação do Instituto de Pesquisa, Direito e Movimentos Sociais.

Todos estão chamados e convidados para assinar esta convocação e para participar do II Seminário Direito, Pesquisa e Movimentos Sociais, e da assembléia de fundação do Instituto de Pesquisa, Direito e Movimentos Sociais, que será realizado na Universidade Federal de Goiás – UFG, Campus Cidade de Goiás/GO, nos dias 26, 27 e 28 de abril de 2012.
Informações podem ser obtidas via endereço eletrônico:  ipdmscorreio@gmail.com

Assinam esta carta, até o presente momento:


Antonio Escrivão Filho, advogado - DF.
Assis da Costa Oliveira, professor - UFPA
Carolina Alves Vestena, professora - UERJ.
Cleuton César Ripol de Freitas, professor - UFG
Daniel Araújo Valença, professor - UFERSA
Danilo Uler, mestrando - USP.
Diana Melo Pereira, advogada popular e estudante - UNB
Eduardo Faria Silva, professor - PR.
Erika Macedo Moreira, professora - UFG
Fabiana Severi, professora - USP FDRP.
Giane Álvares Ambrósio Álvares - Advogada
João Paulodo Vale de Medeiros,professor - UERN.
Jose Carlos Moreira da Sila Filho – PUC/RS
José do Carmo A. Siqueira, professor - UFG.
José Humberto de Góes Junior, professor - UFG
José Ricardo Ferreira Cunha - UERJ
Luiz Otávio Ribas, professor - RJ.
Marcus Orione Gonçalves Correia, professor - USP.
Ney Strozake, advogado - SP.
Priscylla Joca, professora e pesquisadora - UFC.
Priscilla Mello, estudante - UFRJ.
Ricardo Prestes Pazello, professor - UFPR.
Rosane M. Reis Lavigne, defensora pública - RJ.

Chamada de Trabalhos


Nos dias 26 a 28 de abril de 2012, será realizado, na Universidade Federal de Goiás - Cidade de Goiás o II Seminário Direito, Pesquisa e Movimentos Sociais. Além da fundação do Instituto de Pesquisa, ocorrerão seções de comunicações orais de trabalhos de estudantes, pesquisadores, professores e militantes organizados nos seguintes grupos temáticos:

1.    Direito e marxismo
2.    Sistemas de Justiça e Políticas Públicas
3.    Observatório da Justiça e Direitos Humanos
4.    Função Social da Terra
5.    Teoria do Direito e Epistemologias do Sul
6.    Direito e relações de gênero
7.    Antropologia jurídica dos movimentos sociais
8.    Dimensões da assessoria jurídica popular
9.    Criminalização e resistência dos movimentos sociais

Ao realizar a inscrição, interessado(a) em participar deverá indicar um Grupo Temático e enviar resumo expandido (2 páginas) para o endereço eletrônico do Seminário (IPDMScorreio@gmail.com), indicando no título “CHAMADA DE TRABALHOS – NOME – GT (número). No corpo do email, deverão ser indicados os dados pessoais e contatos.

Os resumos serão recebidos até o dia 24 de março de 2012.

A programação dos Grupos Temáticos respeitará, como parâmetro, o número de 5 trabalhos por seção a fim de garantir o debate aprofundado dos temas. A comissão organizadora do Seminário poderá alterar esse número de acordo com a relevância e volume de submissões recebidas, respeitando a disponibilidade de tempo para as discussões.

As regras para o envio de resumos e participação nos grupos temáticos são:
a)    Os resumos devem ser enviados em extensão word (.doc ou .docx), em Times New Roman, tamanho 10, espaçamento 1,0, margens de 2cm, com introdução, justificativa, referencial teórico, resultados e referências bibliográficas, contendo entre 3000 e 4000 caracteres.
b)    Cada pessoa poderá apresentar apenas um trabalho como autor(a).
c)    Cada pessoa poderá apresentar apenas um trabalho como co-autor(a).
d)    Os autores selecionados deverão enviar os trabalhos completos para a publicação nos anais no seminário até o dia 22 de abril de 2012, pelo email do instituto (ipdmscorreio@gmail.com).
e)    Os trabalhos completos deverão ter entre 15 e 20 páginas (incluídos bibliografia e anexos) e obedecer às regras da ABNT.

A Comissão organizadora divulgará o resultado dos trabalhos selecionados no dia 2 de abril na página www.ipdms.blogspot.com

Informamos, ainda, que o Instituto não poderá financiar os participantes do evento.



Comissão Organizadora

II Seminário Pesquisa, Direito e Movimentos Sociais

MARILENA CHAUÍ: AMOR À SABEDORIA E SOLIDARIEDADE COM A VIDA


José Geraldo de Sousa Junior
Na biografia que fez de Hannah Arendt, a sua discípula Elizabeth Young-Bruehl alude à atitude de amor ao mundo que caracterizava a grande pensadora, incapaz de ser contida na invisibilidade do pensamento e na intemporalidade da história. Uma interlocução em torno de Marilena Chauí evoca imperceptivelmente sentimento equivalente. A poderosa energia de sua trajetória filosófica, como amor ao conhecimento que, se bem modelo sofisticado e elegante de pensar o mundo, não se deixa jamais alienar das expectativas do real, mantendo-se sempre solidária ao sentido da existência humana projetada na vida.
Como Arendt, Marilena Chauí parece também conduzir-se ao impulso de uma “vocação para a amizade”, o que em parte explica a pronta acolhida de tão importantes personalidades para uma interlocução em torno do seu pensamento. Mas, se em Arendt o que a movia era a “linguagem da amizade”, na prazeirosidade de boa companhia, a amizade em Marilena Chauí tem ainda a dimensão do compartilhamento, isto é, disposição fraterna e agregadora, apta à comunhão e ao entrosamento de esforços, que se escoram reciprocamente a partir de uma causa comum.
Por isso, o potencial mobilizador de seu pensamento é capaz, simultaneamente, de orientar a reflexão crítica empreendida em trabalhos de companheiros associados, formando vivo entreposto de trocas intelectuais, enquanto deixa livre a inteligência dos que se associam em engajamento da razão, para reconhecer a legítima influência de quem acumulou mais conhecimento e experiência.
Uma interlocução com Marilena Chauí é, portanto, um compartilhar fraterno em torno de uma causa comum, tendo como denominador a pujança de seu pensamento filosófico e de seu engajamento político que tornam possível o colóquio com as aproximações históricas, sociológicas, políticas e jurídicas dos que acudiram a essa interlocução.
Penso que ela própria acolherá esses pressupostos de interlocução, se se recordar da referência que fez – num debate de 1982, com Roberto Lyra Filho a propósito de seu livro “O Que é Direito” – à virtude da amizade, citando La Boétie: “A amizade é um momento sagrado, é uma coisa santa; ela nunca se entrega senão entre pessoas de bem e só se deixa apanhar pela mútua estima; se mantém não tanto através de benefícios como através de uma vida boa; o que torna um amigo seguro do outro é o conhecimento que tem de sua integridade; as garantias que tem são sua bondade natural, a fé e a constância. Não pode haver amizade onde está a crueldade, onde está a injustiça; e, entre os maus, quando se juntam, há uma conspiração, não uma companhia; eles não se entreamam, mas se entretemem; não são amigos, mas cúmplices”.
A referência é duplamente relevante. Primeiro, no sentido de reafirmar o pressuposto intencional de participação num colóquio de interlocução em torno do pensamento de Marilena Chauí: a amizade, em sentido filosófico, de amor ao conhecimento; e em sentido político, de solidariedade com a vida. Depois, como razão de presença nessa interlocução: a homenagem ao pensamento de escola, influente na crítica e na reconstrução do pensamento jurídico fundante de um agir político para legítima transformação do mundo.
De fato, no final dos anos 1960, a crise de paradigmas de conhecimento e de ação humanas projetadas no mundo abriu, no campo jurídico, o mesmo debate crítico que se travava nos demais âmbitos sociais e teóricos. Sob o enfoque da crítica, portanto, e ao impulso de uma conjuntura política complexa em sua adversidade, notadamente no contexto social da realidade latino-americana, o pensamento jurídico ocidental buscou reorientar-se paradigmaticamente, rejeitando a matriz positivista da redução da complexidade ao formalismo legalista e de descolamento dos pressupostos éticos que fundam uma normatividade legítima.
Um pouco por toda parte, no Brasil também organizaram-se núcleos críticos de pensar jurídico, com vocação política e teórica, reorientando o sentido de sua reflexão. Com denominações comuns – critical legal studies, critique dudroit, uso alternativo delderecho, direito insurgente – esses movimentos convocavam em manifestos a sua reinserção do direito na política, impulsionados por um protagonismo que derivava em geral da crítica marxista a uma atitude militante, sob a perspectiva ora de um “jusnaturalismo de combate”, ora de um “positivismo ético”.
A partir de seus estudos desenvolvidos desde os anos 1960 na Universidade de Brasília, em perspectiva dialética, o jurista Roberto Lyra Filho organizou a seu turno uma sofisticada reflexão crítica ao positivismo jurídico, inicialmente inscrita num manifesto, lido na UnB em 1980, no qual formulou os fundamentos de uma concepção de Direito (1982), livre dos condicionamentos ideologizantes dos modelos antitéticos do juspositivismoempiricista e do jusnaturalismo metafísico, entendido este, assim, não como a norma em que se exteriorize, senão como “enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade”.
Não se trata aqui de fazer a recuperação histórica desse processo, de estabelecer o balanço de seus achados ou a cartografia dos temas que suscitou, senão, para efeito da interlocução com Marilena Chauí, designar pontos de inflexão que, com sua influência, lhe atribuíram configuração e sentido epistemológico relevantes.
Com efeito, no debate com Roberto Lyra Filho, já referido, enquanto esse autor procurava imprimir à sua reflexão uma perspectiva dialética que permitisse romper a aporia antinômica dos pares ideológicos – jusnaturalismo e juspositivismo –, foi Marilena Chauí, certamente, a referência filosófica para a superação do obstáculo epistemológico:
“Penso que o livro de Roberto Lyra Filho trabalha no sentido de superar uma antinomia paralisante: a oposição abstrata entre o positivismo jurídico e o idealismo jusnaturalista”, afirmando que: “Se o Direito diz respeito à liberdade garantida e confirmada pela lei justa, não há como esquivar-se às questões sociais e políticas onde, entre lutas e concórdias, os homens formulam concretamente as condições nas quais o Direito, como expressão histórica do justo, pode ou não realizar-se” (Chauí, 1986).
A alta densidade do pequeno estudo de Marilena Chauí contido nesse texto influenciou decisivamente o pensamento jurídico crítico brasileiro, constitutivo do que já foi denominado “Nova Escola Jurídica Brasileira”, sendo significativo recolher, para efeito desta interlocução, um aspecto por ela levantado para a compreensão da gênese da própria justiça e do direito em sua apreensão dialética, vale dizer, ou como ela própria diz, “a apreensão do direito no campo das relações sociais e políticas entre classes, grupos e Estados diferentes permite melhor perceber as contradições entre as leis e a justiça e abrir a consciência tanto quanto a prática para a superação dessas contradições. Isso significa abrir o Direito para a História e, nessa ação, para a política transformadora”.
Neste aspecto, aliás, os trabalhos de Marilena Chauí estabeleceram um norte seguro para a interpretação dessa ação transformadora, conduzida pela mediação do Direito, enquanto processo dentro do processo histórico.
Com efeito, a partir da constatação derivada dos estudos acerca dos chamados novos movimentos sociais, desenvolveu-se a percepção, primeiramente elaborada pela literatura sociológica, de que o conjunto das formas de mobilização e organização das classes populares e das configurações de classes constituídas nesses movimentos, instauravam, efetivamente, práticas políticas novas, em condições de abrir espaços sociais inéditos e de revelar novos atores na cena política capazes de criar direitos.
Ana Amélia da Silva, em sua tese de doutoramento (1996), referiu-se à “trajetória que implicou uma concepção renovada da prática do direito, tanto em termos teóricos quanto de criação de novas institucionalidades”.
É disso que trata Eder Sader (1988), apontando para a dimensão instituinte dos espaços sociais instaurados pelos movimentos sociais e aludindo à capacidade de constituir direitos em decorrência de processos sociais novos que eles passaram a desenvolver.
O fato é que a irrupção dos movimentos operário e populares, sobretudo a partir dos anos 70, rompendo em ação coletiva o isolamento determinado por uma ordem autoritária que restringia a mobilização das organizações sociais, fez emergir uma nova sociabilidade, com a marca da autonomia que passou a caracterizar a ação dos sujeitos sociais assim constituídos.
Vera da Silva Telles (1988) referiu-se a esta emergência dizendo: “hoje, descobrem-se os trabalhadores como sujeitos autônomos, dotados de impulso próprio de movimentação, sujeitos de práticas cujo sentido político e dinamismo não são derivados dos espaços cedidos pelo Estado e cujas reivindicações não são reflexo automático e necessário das condições objetivas, mas passam por formas de solidariedade e de sociabilidades coladas na vida cotidiana”.
Caracterizados a partir de suas ações sociais, estes novos movimentos sociais, vistos como indicadores da emergência de novas identidades coletivas, isto é, coletividades políticas, sujeitos coletivos, puderam elaborar um quadro de significações culturais de suas próprias experiências, ou seja, do modo como vivenciam suas relações, identificam interesses, elaboram suas identidades e afirmam direitos.
A análise sociológica ressalta que a emergência do sujeito coletivo pode operar um processo pelo qual a carência social contida na reivindicação dos movimentos, é por eles percebida como negação de um direito, o que provoca uma luta para conquistá-lo. De acordo com Eder Sader, “a consciência de seus direitos consiste exatamente em encarar as privações da vida privada como injustiças no lugar de repetições naturais do cotidiano. E justamente a revolução de expectativas produzidas esteve na busca de uma valorização de dignidade, não mais no estrito cumprimento de seus papéis tradicionais, mas sim na participação coletiva numa luta contra o que consideram as injustiças de que eram vítimas. E, ao valorizarem a sua participação na luta por seus direitos, constituíram um movimento social contraposto ao clientelismo característico das relações tradicionais entre os agentes políticos e as camadas subalternas” (Sader, 1988).
A questão que se coloca, a partir da experiência da ação coletiva dos novos sujeitos sociais, é a da designação jurídica destas práticas sociais, em configuração determinada pelos processos sociais e os direitos novos que elas enunciam.
É, novamente, Marilena Chauí quem vai oferecer a fundamentação filosófica que permite sustentar o sentido projetivo dessa nova identidade social para indicar o seu potencial protagonismo de sujeito instituinte de direitos.
Em prefácio ao livro de Eder Sader, ela propõe a seguinte questão: “Por que sujeito novo? Antes de mais nada – ela própria responde – porque criado pelos próprios movimentos sociais do período: sua prática os põe como sujeitos sem que teorias prévias os houvessem constituído ou designado. Em segundo lugar, porque se trata de um sujeito coletivo e descentralizado, portando, despojado das duas marcas que caracterizam o advento da concepção burguesa da subjetividade: a individualidade solipsista ou monádica como centro de onde partem as ações livres e responsáveis e o sujeito como consciência individual soberana de onde irradiam idéias e representações, postas como objeto, domináveis pelo intelecto. O novo sujeito é social; são os movimentos populares em cujo interior indivíduos, até então dispersos e privatizados, passam a definir-se a cada efeito resultante das decisões e atividades realizadas. Em terceiro lugar, porque é um sujeito que, embora coletivo, não se apresenta como portador da universalidade definida a partir de uma organização determinada que operaria como centro, vetor e telos das ações sociopolíticas e para qual não haveria propriamente sujeitos, mas objetos ou engrenagens da máquina organizadora. Referido à Igreja, ao sindicato e às esquerdas, o novo sujeito neles não encontra o velho centro, pois já não são centros organizadores no sentido clássico e sim ‘instituições em crise’ que experimentam a ‘crise sob a forma de um deslocamento com seus públicos respectivos’, precisando encontrar vias para reatar relações com eles”.
Formulada nesses termos a questão, tornou-se possível para o pensamento jurídico crítico abrir novas perspectivas paradigmáticas, de relevante alcance político, quando se consideram os problemas de legitimação em sede de teoria da justiça, para poder pensar-se em um novo sujeito coletivo que se emancipe enquanto sujeito coletivo de direito, num novo modo de produção do social, do político e do jurídico.
É que, no paradigma da modernidade, o direito constituiu-se à base de uma noção fundamental – a noção de sujeito de direito –, a partir da qual a pessoa humana que lhe serve de referência antropológica se individualiza e polariza a estrutura abstrata da relação jurídica.
Na tradição filosófica, o sujeito aí radicado reflete, na sua impregnação iluminista, uma visão de mundo dominada pela racionalidade e a autotransparência do “pensar em si mesmo” que deseja “ser sujeito”, segundo Kant. Nesta sua origem histórico-filosófica, o conceito coincide com a noção aristotélica de substância ou, como em Descartes, com quem começa a tradição moderna do sujeito como “início” em si mesmo do indivíduo – o legislador de si próprio no sentido kantiano.
As referências trazidas por Marilena Chauí e então apropriadas para o debate do pensamento jurídico crítico vão permitir as condições de intersubjetividade não substancial, mas relacional, do fazer-se sujeito, no processo mesmo no qual este se revela e se realiza.
Franz J. Hinkelammert (2000), desde uma perspectiva de libertação, sugere que o sujeito não é um a priori do processo, senão que resulta como seu a posteriori. Supõe, portanto, uma intencionalidade solidária no agir protagonista dos novos sujeitos, em alargamento das possibilidades institucionais e da criação de espaços de vivência da “sujeiticidade humana”.
Penso que em outro viés, mas com resultado idêntico, Patrick Phato (1985) propõe um “civismo ordinário” para se referir às formas de sociabilidade constituídas em relações de reciprocidade de um cotidiano que adestra a convivência e legitima padrões sociais livremente aceitos.
No estudo de Ana Amélia da Silva, que toma como base as estratégias sociais para a institucionalização do “direito à moradia”, ela refere à formação de “agendas sociais” e de “espaços públicos” para aí inserir o que denomina “direitos de cidadania”, reivindicando outras leituras aptas a conceber “o horizonte de propostas e lutas pelos direitos de cidadania como um campo social em construção”.
Trata-se de ampliar “os sentidos da democracia”, de modo a permitir, como lembra Maria Célia Paoli (1999), “recuperar os direitos de uma cidadania que, reinventando a si própria pela discordância e pela sua própria recriação, possa reinventar novos caminhos de construção democrática”.
A noção de democracia como invenção, que Marilena Chauí toma em Claude Lefort para redesignar a cidadania, compreendida como cidadania ativa, é outra importante contribuição que permitiu amplificar o seu diálogo com o pensamento jurídico crítico.
Por ocasião de sua participação na XIIIª Conferência Nacional da Ordem dos Advogados, realizada em Belo Horizonte, em 1990, propõe: “a cidadania ativa é a que é capaz de fazer o salto do interesse ao direito, que é capaz portanto de colocar no social a existência de um sujeito novo, de um sujeito que se caracteriza pela sua autoposição como sujeito de direitos, que cria esses direitos e no movimento da criação desses direitos exige que eles sejam declarados e cuja declaração abra o reconhecimento recíproco. O espaço da cidadania ativa, portanto, é o da criação dos direitos, da garantia desses direitos e da intervenção, da participação direta no espaço da decisão política”.
Antecipando o tema da questão democrática, que retomaria depois no último capítulo de seu Convite à Filosofia (1994), ela o associa ao processo de “criação de direitos” e, discorrendo sobre a “liberdade como autonomia”, designa os “sujeitos capazes de dar a si mesmos a lei”, sujeitos, portanto auto-nomos (auto, isto é, a si próprios; nomos, a norma, a lei), referindo-se à “possibilidade de que, no interior da sociedade civil, para além do privado e dos interesses, se constitui uma região instaurada pelos direitos, âmbito da cidadania”. E, conclui: “cidadania – a capacidade de colocar no social um sujeito novo que cria direitos e participa da direção da sociedade e do Estado”.
Até aqui elaborei um esboço de algumas referências destacadas que demarcam o estatuto da interlocução do pensamento jurídico crítico com a potente reflexão de Marilena Chauí. Uma interlocução que abre perspectivas, para recuperar, no dizer do constitucionalista português J. J. Gomes Canotilho, o “impulso dialógico e crítico que hoje é fornecido pelas teorias políticas da justiça e pelas teorias críticas da sociedade”, sob pena de restar o direito, no caso deste autor, o direito constitucional, “definitivamente prisioneiro de sua aridez formal e do seu conformismo político”. Por isso, para Canotilho, há que “incluir-se no direito constitucional outros modos de compreender as regras jurídicas”, a partir de um “olhar vigilante das exigências do direito justo e amparadas num sistema de domínio político-democrático materialmente legitimado”.
É assim que Roberto Lyra Filho passa a entender o direito como modelo de legítima organização social da liberdade. Mas o que significa isso? Conforme ele indica, “o direito se faz no processo histórico de libertação enquanto desvenda precisamente os impedimentos da liberdade não lesiva aos demais. Nasce na rua, no clamor dos espoliados e oprimidos, e sua filtragem nas normas costumeiras e legais tanto pode gerar produtos autênticos (isto é, atendendo ao ponto atual mais avançado de conscientização dos melhores padrões de liberdade em convivência), quanto produtos falsificados (isto é, a negação do direito do próprio veículo de sua efetivação, que assim se torna um organismo canceroso, como as leis que ainda por aí representam a chancela da iniquidade, a pretexto da consagração do direito)”.
A rua aí, evidentemente, é o espaço público, o lugar do acontecimento, do protesto, da formação de novas sociabilidades e do estabelecimento de reconhecimentos recíprocos na ação autônoma da cidadania (autônomos: que se dão a si mesmo o direito). Por isso mesmo, Marshall Berman fala da rua como espaço de vivência que, ao ser reivindicada para a vida humana, “transforma a multidão de solidários urbanos em povo”.
Mas a rua é concomitantemente, lugar simbólico, a impregnar o imaginário da antropologia e da literatura, em arranjos sutis de natureza explicativa dos acontecimentos. Assim em Roberto da Matta, que faz articulação dialética entre a “casa” e a “rua” para esclarecer comportamentos culturais. Assim também na poesia, sempre em antecipação intuitiva de seu significado para a ação da cidadania e da realização dos direitos. Veja-se Castro Alves (“O Povo ao Poder”) e Cassiano Ricardo (“Sala de Espera”). Do primeiro, são conhecidos os verbos: “A praça! A praça é do povo/ Como o céu é do condor/ É o antro onde a liberdade/ Cria águias em seu calor./ Senhor!, pois quereis a praça?/ Desgraçada a populaça/ Só tem a rua de seu.../”. Do segundo, não menos expressivos estes versos: “... Mas eu prefiro é a rua./ A rua em seu sentido usual de / Em seu oceano que é ter bocas e pés para exigir e para caminhar/ A rua onde todos se reúnem num só ninguém coletivo./ Rua do homem como deve ser/ transeunte, republicano, universal./ onde cada um de nós é um pouco mais dos outros/ do que de si mesmo./ Rua da reivindicação social, onde mora/ o Acontecimento ...
“O Direito Achado na Rua”, expressão criada por Roberto Lyra Filho, título que designa atualmente uma linha de pesquisa e um curso organizado na Universidade de Brasília, quer, exatamente, ser expressão deste propósito de compreensão do processo aqui descrito, enquanto reflexão sobre a atuação jurídica dos novos sujeitos coletivos e das experiências por eles desenvolvidas de criação de direito e, assim, como modelo atualizado de investigação: 1) determinar o espaço político no qual se desenvolvem as práticas sociais que enunciam direitos ainda que contra legem; 2) definir a natureza jurídica do sujeito coletivo capaz de elaborar um projeto político de transformação social e elaborar a sua representação teórica como sujeito coletivo de direito; 3) enquadrar os dados derivados destas práticas sociais criadoras de direitos e estabelecer novas categorias jurídicas.
Iniciei este texto numa alusão à amizade, citando, por lhe saber dileta, uma passagem de La Boétie. E findo com outra citação também referida à amizade, que é igualmente cara à Marilena Chauí, tanto mais que em palavras de Espinosa: “Somente os homens livres são gratos uns aos outros e procuram unir-se pelos laços da mais estreita amizade... Somente os homens livres agem de boa-fé e jamais com perfídia”.
Num colóquio a que acudimos livremente, somos agraciados por uma interlocução com o poderoso pensamento de Marilena Chauí que nos ilumina a todos, e aos de boa-fé engrandece.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Artigo publicado no livro Diálogos com Marilena Chauí, Maria Célia Paoli, organizadora. – São Paulo: Editora Barcarolla: Discurso Editorial, 2011, págs. 15-28