sexta-feira, 28 de julho de 2023

 

A Reforma Trabalhista e a Percepção de Lesões a Direitos

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

 

 VERÔNICA FONSECA DE RESENDE. A Reforma Trabalhista e a Percepção de Lesões a Direitos: O fim da homologação sindical das rescisões e a questão do acesso à justiça. Monografia apresentada na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (FD/UnB). Brasília, 2023, 78 fls.

 

A monografia, requisito para a obtenção do grau de bacharel em Direito, foi orientada pelo professor Antonio Sergio Escrivão Filho e contou com a participação da professora Talita Tatiana Dias Rampin, assim como a minha participação também, todos docentes da Faculdade de Direito da UnB.

Do que trata a monografia diz o seu resumo:

O presente estudo busca analisar o impacto do fim da homologação sindical das rescisões de contratos de trabalho na capacidade do trabalhador de percepção de lesões a direitos trabalhistas. Em um primeiro momento, será examinado o papel assumido constitucionalmente pela Justiça do Trabalho sob uma perspectiva histórica, a partir da análise da evolução ocorrida nos três grandes paradigmas constitucionais e da teoria de justiça igualitária de Rawls. Para além disso, será estudado o impacto da Lei n.º 13.467/2017 (Reforma Trabalhista) na pirâmide de litígios trabalhistas, a partir de teorias desenvolvidas no campo dos estudos de soluções de conflitos, em conjunto com a concepção de garantia ao acesso efetivo à justiça de Cappelletti e Garth. Em especial, será visto como a revogação dos §§ 1º e 3º do artigo 477 da CLT impacta diretamente na base da pirâmide de litígios trabalhistas, na medida em que afeta a capacidade de percepção de lesões a direitos trabalhistas. Por fim, será analisado como o tema da homologação sindical da rescisão contratual vem sendo tratado no pós-Reforma Trabalhista, tanto em normas coletivas quanto na jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho, por meio de exame de relevante julgado da Seção Especializada em Dissídios Coletivos.

 

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

  1. A JUSTIÇA DO TRABALHO COMO MODELO DE JUSTIÇA SOCIAL

1.1. DOS DIREITOS INDIVIDUAIS AOS DIREITOS SOCIAIS: DEBATE SOBRE O

IGUALITARISMO

1.1.1. Os três grandes paradigmas constitucionais

1.1.2. O Igualitarismo de Rawls

1.2. O SURGIMENTO DO DIREITO DO TRABALHO E DA JUSTIÇA DO TRABALHO NO BRASIL: ENTRE AVANÇOS E RETROCESSOSII. UMA LEITURA DA REFORMA TRABALHISTA A PARTIR DA PIRÂMIDE DE LITÍGIOS

2.1. A PIRÂMIDE DE LITÍGIOS E O ACESSO À JUSTIÇA APLICADOS AOS CONFLITOS TRABALHISTAS

2.1.1. A base da pirâmide e a capacidade de percepção de lesões

2.1.2. Para além da percepção da lesão: a reclamação, sua rejeição, a correspondente reação

e os meios de resolução dos litígios

2.1.3. O fim do litígio e conclusões a respeito do acionamento da via judiciária estatal

2.2. IMPACTOS DA LEI N.º 13.467/2017 NA PIRÂMIDE DE LITÍGIOS TRABALHISTAS

2.2.1. Escolhas da Lei n.º 13.467/2017 e seus impactos no acesso à Justiça do Trabalho: o topo da pirâmide de litígios trabalhistas

2.2.2. A fragilização dos sindicatos: impactos promovidos pela Reforma Trabalhista no

corpo da pirâmide de litígios

2.2.3. O fim da homologação sindical da rescisão contratual: ataque à capacidade de percepção de lesões a direitos trabalhistas

III. HOMOLOGAÇÃO SINDICAL DA RESCISÃO CONTRATUAL NO PÓSREFORMA TRABALHISTA

3.1. PREVISÃO DA HOMOLOGAÇÃO SINDICAL DAS RESCISÕES CONTRATUAIS

EM NORMAS COLETIVAS NO PÓS-REFORMA TRABALHISTA

3.2. ENTENDIMENTO DO TST SOBRE A MATÉRIA NO PÓS-REFORMA TRABALHISTA

3.2.1. O grande quiproquó: confusão entre a homologação de rescisões de contratos de trabalho e a homologação de acordos extrajudiciais

3.2.2. Suposto precedente da SDC que legitima o entendimento de que os entes coletivos não podem condicionar a assistência sindical à fiscalização do sindicato laboral

3.2.3. Análise do voto vencido

CONSIDERAÇÕES FINAIS

REFERÊNCIAS

ANEXO A

 

            Vou me deter mais atentamente aos pressupostos filosófico-políticos do trabalho de Verônica, no que ela assenta no que denomina três grandes paradigmas constitucionais – Estado Liberal, Estado Social e Estado Democrático de Direito. Conquanto ela se ponha preventivamente em resguardo de posições esquemáticas reducionistas, aludindo a esses paradigmas.

            Com efeito, apoiando-se em Renata Dutra, para quem “mudanças de paradigmas e de racionalidade não ocorrem de modo linear ou necessariamente em um rumo progressista. Há avanços e recuos no caminho e eles são decisivamente atravessados pela dialética das relações sociais”, a nossa Autora é bastante atenta em afirmar que o caminho adotado em sua monografia, o é “por motivos didáticos, [tal como o] é apresentado na maioria das vezes de maneira linear e progressista é permeado de progressos e retrocessos.

Assim, ela diz, “sem perder isso de vista e aceitando o reducionismo histórico e teórico que ocorre inevitavelmente nesse tipo de explanação, faz-se relevante destacar algumas das particularidades de cada paradigma constitucional e, principalmente, as inovações propostas, que constituem o principal fator para os categorizarmos dessa maneira”.

Até aqui ela está como Borges (Jorge Luís), que no conto O idioma analítico de John Wilkins, sugere que “sabidamente não há classificação do universo que não seja arbitrária e conjectural”. Ora, arbitrariedade e conjectura podem estabelecer, no limite, resguardo racional. A questão que se coloca é, qual o limite. Por isso que o seu livro se intitula “Direito do Trabalho: Uma Introdução Político-Jurídica. Belo Horizonte: RTM, 2021). Fiz uma recensão dessa obra – http://estadodedireito.com.br/direito-do-trabalho-uma-introducao-politico-juridica/, para acentuar que os ensaios reunidos no livro de Renata Queiroz Dutra, para além de seu interesse pedagógico, se prestam a contribuir para esse momento de retomada democrática e de resgate do valor trabalho como centro ético das relações de produção. Conforme ela própria indica: “Ao pensar sobre esse projeto, me veio a curiosa percepção de que escrever um texto sobre o paradigma político-jurídico de afirmação do direito do trabalho e suas interfaces com diversos aspectos da regulação do trabalho, no lugar de me ocupar de um texto de crítica ao paradigma político-jurídico neoliberal, era algo pouco usual no período recente de minha vida acadêmica…Me fio na esperança de que esse texto, por sua pretensão introdutória e ao se propor a um nível mediano de aprofundamento dos conteúdos, possa se apresentar também como opção de aproximação de leitores e leitoras que não sejam necessariamente estudantes universitários/as, mas que, como pessoas que vivem do seu trabalho, possam se interessar pelo tema e encontrar aqui um canal de aproximação com a regulação social em torno do qual gira a vida da maior parte das pessoas: o trabalho”.

Verônica tem as qualidades de rigor do que melhor caracteriza um intelectual. Desenvolve com precisão os elementos caracterizadores dos paradigmas constitucionais, todos assentados na perspectiva ideológica da hegemonia liberal, no social e na construção do democrático, bem assim, no sistema de justiça que deriva dessa perspectiva, forte no distributivismo da teoria de justiça de Rawls, que é muito mais ocultada do que revelada quando se rasga o véu da ignorância aparentemente uma idealizada metáfora de que tudo é equitativo por baixo dos panos.

Não tenho reparos ao bom enquadramento que faz. Me move a responsabilidade de cooperar para que ela se projete para além da síntese que elaborou nos dois planos, e dê impulso a pelo menos duas categorias muito consistentes que de modo criativo pois em causa, ambas aptas a lhe permitir sai fora do interior da esfera em que fica circulando, como nos aparatos dos “globos da morte” dos antigos circos dentro dos quais os motociclistas rodavam, rodavam, e não iam para lugar nenhum.

Fiquei bastante satisfeito, na banca, em ter essa perspectiva corroborada pela análise de minha colega Talita Rampin, sabidamente uma qualificada formuladora do tema teoria da justiça, conforme se pode inferir da leitura de sua tese de doutoramento Estudo sobre a reforma da justiça no Brasil e suas contribuições para uma análise geopolítica da justiça na América Latina (https://repositorio.unb.br/handle/10482/32203).

Retive da colocação de Talita, nesse passo, o seu preciso comentário:

E aqui acho que há um aspecto a ser aprofundado, por você, em estudos futuros: os limites da teoria da John Rawls (liberal). Sua leitura sobre a teoria de Rawls é correta (a avançada!). Mas será que a teoria dele é a mais ‘adequada’ para desenvolver o potencial crítico que você apresenta sobre o tema? Não seria ele um teórico do capital? Não se trata de negar a relevância de seus estudos (inclusive, ele contribui para a crítica ao utilitarismo, que é muito importante), mas, sim, seus limites. E tanto é assim que muitos/as autores/as posteriores o estudam, aprofundam a análise e tecem críticas contundentes. Você verá que é surpreendente a centralidade que a obra de Rawls ocupa nos esforços das críticas capacitária de Amartya Sen, comunitarista de Alasdair Chalmers MacIntyre, procedimentalista de Jürgen Habermas e de reconhecimento em Nancy Fraser (em diálogo com Axl Honneth). Rawls trabalha dentro de uma chave do contratualismo, que estabelece um ‘véu da ignorância’ como ‘posição original’ dos sujeitos em sociedade. Mas que posição é essa? O que é esse véu e o que ele esconde? Amartya Sen é um dos críticos mais famosos (ganhador do prêmio Nobel), ao desvelar a centralidade que as causas reais de injustiça e desigualdade ocupam na vida em sociedade (e na exploração do capital ao trabalhador, para dialogar diretamente com seu trabalho), e denunciar o quanto Rawls deixa tudo isso de fora em suas formulações. E por que deixar tudo isso de fora é um problema?

 

No que diz respeito aos paradigmas, a linearidade das continuidades paradigmáticas, nos seus formuladores, não dá conta para o salto para fora do “globo”, pensando outros constitucionalismos. Notadamente, no recorte latino-americano, em que a liberdade (na perspectiva dos autores que cita, Berlin a frente de todos eles), não é uma dádiva da evolução paradigmática, mas uma conquista dramática da emancipação.

Por isso falamos já com muita base de um novo constitucionalismo latino-americano. Como anota a peruana Raquel Yrigoyen Fajardo, aferindo as experiências constitucionais na América Latina, incluindo o Canadá, há um primeiro ciclo caracterizado como “constitucionalismo multicultural” (Canadá, 1982), (Guatemala, 1985), (Nicarágua 1987) e (Brasil, 1988). O segundo ciclo referente ao “constitucionalismo pluricultural” (Colômbia, 1991), (México e Paraguai, 1992), (Peru, 1993), Bolívia e Argentina, 1994), (Equador, 1996 e 1998) e (Venezuela, 1999). E o terceiro ciclo, finalmente, é reconhecido pelo alcance de um “constitucionalismo plurinacional”, a partir das inovadoras Constituições do (Equador, 2008) e (Bolívia, 2009), nas quais, diz Raquel, já se trata de um ciclo pluricultural, plurinacional e ecológico, nas quais “se pluraliza a definição de direitos, a democracia e a composição dos órgãos públicos e as formas de exercício do poder”.

Raquel Yrigoyen, que já inscrevera em sua concepção a tese de um constitucionalismo plurinacional, tem avançado fortemente, desde seu diálogo com as cosmogonias e cosmovisões dos povos ancestrais, em direção a um constitucionalismo ecológico ou eco-constitucionalismo, sem contudo abdicar de suas teses originais sobre o pluralismo jurídico.

Ainda que nessa passagem o foco da leitura do pluralismo jurídico, desde a leitura de Raquel Yrigoyen, compreendido propriamente como pluralismo jurídico igualitário (consulte-se entre outros estudos, os escritos fundamentais com aberturas inéditas para a aplicação dessa categoria, de Boaventura de Sousa Santos – sempre presente nas atividades do IIDS -, até o mais recente de Antonio Carlos Wolkmer e de Maria de Fatima S. Wolkmer, se dirija aos povos indígenas e originários, essa acepção, orientada “por uma racionalidade jurídica diferente”, que nela, alcança também os ronderos campesinos, em enfoque autoral bem conhecido:

Tal como dissemos eu e meu colega Antonio Escrivão Filho (ESCRIVÃO FILHO; SOUSA JUNIOR, 2019), mais que reconhecimento de direitos, tais ciclos tratam do grau de abertura à efetiva participação constituinte das distintas identidades, aliado à efetiva incorporação de seus valores sociais, econômicos, políticos e culturais não apenas no ordenamento jurídico, mas no desempenho institucional dos poderes, entes e entidades públicas e sociais.

Ou seja, a partir do que atualmente, com as experiências constituintes em curso na América Latina, com as novidades trazidas pela proposta de Constituição do Chile, aprofundam-se temas emergentes de um constitucionalismo em chave decolonial, que para Antonio Carlos Wolkmer em texto publicado há poucos dias – Notas para Pensar la Descolonización del Constitucionalismo en Latinoamérica in Constitucionalismo en clave descolonial / Amélia Sampaio Rossi … [et al.].; Liliana Estupiñán- Achury, Lilia Balmant Emerique, editoras académicas. — Bogotá: Universidad Libre, 2022.

 

A novidade agora vem do Chile, e aponta para o que Wolkmer identifica como propostas de um constitucionalismo crítico na ótica do sul global referida a aportes do constitucionalismo transformador de que fala Boaventura de Sousa Santos, do constitucionalismo andino, pluralista, horizontal decolonial, comunitário da alteridade, ladino-amefricano e, ainda, do constitucionalismo achado na rua.

É a partir dessa perspectiva, algo que deixo como sugestão ao autor para suas pesquisas futuras considerando que o que vou dizer não se colocava quando o trabalho foi publicado. Ou seja, a partir do que atualmente, com as experiências constituintes em curso na América Latina, aprofundar temas emergentes de um constitucionalismo em chave decolonial.

Disso cuida Antonio Carlos Wolkmer em texto publicado há poucos dias – Notas para Pensar la Descolonización del Constitucionalismo en Latinoamérica in Constitucionalismo en clave descolonial / Amélia Sampaio Rossi … [et al.].; Liliana Estupiñán- Achury, Lilia Balmant Emerique, editoras académicas. — Bogotá: Universidad

Para Wolkmer, “la propuesta de un constitucionalismo crítico bajo la óptica del sur global puede ser contemplada en los aportes innovadores de la propuesta del consti tucionalismo transformador de Sousa Santos, B. de y de las variaciones presentes que tienen en cuenta las epistemologías del sur y, más directamente, del constitucionalismo andino, ya sea en la vertiente del constitucionalismo pluralista (Yrigoyen Fajardo, 2011; Wolkmer, 2013, p. 29; Brandão, 2015), del constitucionalismo horizontal descolonial (Médici, 2012), constitucionalismo comunitario de la alteridad (Radaelli, 2017), constitucionalismo crítico de la  liberación (Fagundes, 2020), constitucionalismo ladino-amefricano (Pires, 2019) o aún del constitucionalismo hallado en la calle (Leonel Júnior, 2018)”.

Realmente Gladstone Leonel Junior trouxe essa designação, ainda sem a aprofundar em seu livro de 2015, reeditado – Novo Constitucionalismo Latino-Americano: um estudo sobre a Bolívia, 2a. Edição. SILVA JUNIOR, Gladstone Leonel. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, (SILVA JUNIOR, 2018).

Na segunda edição, novas questões ensejam novas análises para a construção de um projeto popular para a América Latina a partir do que a experiência na Bolívia e em outros países nos apresenta. Das novidades dessa edição, a Editora e o Autor destacam: Um capítulo a mais. Esse quarto capítulo debate “O Constitucionalismo Achado na Rua e os limites apresentados em uma conjuntura de retrocessos”. A importância do mesmo está na necessidade de configurar um campo de análise jurídica que conjugue a Teoria Constitucional na América Latina com o Direito Achado na Rua, situando então, o Constitucionalismo Achado na Rua.

O livro, aliás, pavimenta o caminho para estudos e pesquisas nessa dimensão do constitucionalismo e o próprio professor Gladstone Leonel, em sua docência na Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense, criou a disciplina “O Constitucionalismo Achado na Rua e as epistemologias do Sul”, ofertada no programa de pós-graduação em Direito Constitucional na UFF.  O programa da disciplina e maiores informações podem ser obtidos no seguinte site: http://bit.ly/2NqaABn.

Resenhei esse percurso em http://estadodedireito.com.br/novo-constitucionalismo-latino-americano-um-estudo-sobre-bolivia/. Claro que em O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática, volume 2, cit., no capítulo (Parte IV): O Direito Achado na Rua: Desafios, Tarefas e Perspectivas Atuais, já inscrevemos uma anotação programática nessa direção, ao indicar (p. 224): que “Essas experiências refletem uma espécie de ‘Constitucionalismo Achado na Rua’, em que os atores constituintes, os protagonistas desses processos, que envolveram povos indígenas, feministas, campesinas e campesinos, trabalhadoras e trabalhadores e setores historicamente excluídos, arrancam do processo constitucional novas formas de pluralismo jurídico e conquistas de Direitos”.

Com Gladstone eu também trabalhei o tema, procurando fixar a sua mais precisa enunciação. Assim, em Revista Direito e Práxis, On-line version ISSN 2179-8966 (http://old.scielo.br/scielo.php?pid=S2179-89662017000201008&script=sci_abstract&tlng=pt). LEONEL JUNIOR, Gladstone  and  GERALDO DE SOUSA JUNIOR, José. A luta pela constituinte e a reforma política no Brasil: caminhos para um “constitucionalismo achado na rua”. Rev. Direito Práx. [online]. 2017, vol.8, n.2, pp.1008-1027. ISSN 2179-8966.  https://doi.org/10.12957/dep.2017.22331, valendo o resumo: “A crise política brasileira, evidenciada a partir de junho 2013, enseja novas reflexões para a conjuntura recente. A reforma do sistema político é necessária e um das formas de viabilizá-la é por meio de uma Assembleia Constituinte. Sobretudo, se observado os movimentos político-jurídicos dos últimos 15 anos nos países da América Latina. Cabe refletir sobre o momento e as possibilidades dessa aposta pautando-se em um ‘constitucionalismo achado na rua’”.

Quase que simultaneamente, também com Gladstone publicamos em La Migraña… Revista de Análisis Político, nº 17/2016. Vicepresidencia del Estado Plurinacional de Bolívia: La Paz, o artigo La lucha por la constituyente y reforma del sistema político em Brasil: caminhos hacia um ‘constitucionalismo desde la calle’.

Com essas referências, alcança-se o patamar que, juntamente com Antonio Escrivão Filho (ESCRIVÃO FILHO; SOUSA JUNIOR, 2016), especialmente no Capítulo V – América Latina, desenvolvimento e um Novo Constitucionalismo Achado na Rua, páginas 123-150), enunciamos, vale dizer, que o Constitucionalismo Achado na Rua vem aliar-se à Teoria Constitucional que percorre o caminho de retorno a sua função social. Uma espécie de devolução conceitual para a sociedade, da função constitucional de atribuir o sentido político do Direito, através do reconhecimento teórico-conceitual da luta social como expressão cotidiana da soberania popular. Um reencontro entre a Teoria Constitucional, e o Direito compreendido como a enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade (p. 149).

Para o Professor Menelick de Carvalho Netto, prodigamente referido pela Autora, o mais importante é escapar do reducionismo dos modelos paradigmáticos. Discorrendo a propósito da Contribuição do Direito Achado na Rua para um Constitucionalismo Democrático (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al (orgs). O Direito Achado na Rua, vol. 10: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade. Brasília: Editora UnB/Editora OAB Nacional) – p.232 – “a problemática levantada pela teoria acerca da relação entre o Direito e a Democracia encontra-se assim no cerne do debate e da produção reflexiva da filosofia, da filosofia política, da ciência política e da história das ideias e das instituições, desaguando na necessária revisão e reconstrução da doutrina constitucional. Sendo imperativo concluir que os abusos institucionais não mais podem ser aceitos seja como democracia, seja como Direito, e nem mesmo como constitucionais. A democracia só é democrática quando constitucionalmente construída, a Constituição só é constitucional quando democrática. Do mesmo modo, a legitimidade impõe que a igualdade que reciprocamente nos reconhecemos constitucionalmente só possa ser entendida como o direito à diferença, pois carrega em si também o sentido oposto do reconhecimento recíproco do direito à liberdade de cada um. Por isso mesmo o Direito só pode ser atualmente compreendido em sua complexidade que se tornou visível como a ‘legítima organização social da liberdade’”.

Sigo considerando o quanto é importante recordar que o constitucionalismo é permanente tentativa de se instaurar e se efetivar concretamente a exigência idealizante que inaugura uma modernidade no nível da organização de uma sociedade complexa, incapaz de lançar mão de fundamentos absolutos e que, por isso, só pode legitimar seu próprio sistema de direitos na medida em que os potenciais podem se reconhecer como coautores e autoras das normas que os regem. Ou seja, ou o direito é constitucionalmente achado na rua e nas ruas, e com as ruas, é construído e reconstruído de forma plural e inclusiva, ou, sem dúvida, tende-se a privatizar o próprio Estado, mediante a colonização do direito por uma lógica simplista binária de cunho plebiscitário e nada democrática, pois infensa a qualquer eficaz debate”.

Por isso que, nesse passo, com Verônica, quero por em causa a categoria protagonismo, não só do Direito do Trabalho, mesmo concordando com ela, que é o trabalho que tem centralidade no processo de transformação do social. Mas para distinguir os sujeitos que operam essas transformações, fazem o trânsito paradigmático e instauram sociabilidades emancipatórias, alargando as vias de acesso à Justiça, na melhor qualificação que ela trouxe para a sua monografia, num belo capítulo em que nos encontramos todos os que forma esta banca, com nossos textos, nossos enunciados e modos de fundamentar direito e direitos humanos.

Em texto que publiquei recentemente (http://estadodedireito.com.br/esquerda-e-poder/), aludi, citando Marx, que sem renunciar ao que divisa o horizonte revolucionário, há como antecipar o fim de todo domínio de classe e de privilégios que o revestem (Programa de Gotha), e arrancar direitos iguais para todos (naturalmente o direito do trabalho e não o direito do capital, cf. Roberto Lyra Filho. Direito do Capital e Direito do Trabalho. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 1982) e vislumbrar essa dimensão transformadora nas ações que podem mobilizar a consciência emancipadora: “A fixação de uma jornada de trabalho normal escreve Marx — é o resultado de uma guerra civil prolongada, mais ou menos encoberta, entre a classe capitalista e a classe proletária. Para libertar-se da víbora que provoca os seus sofrimentos (Heine) os trabalhadores devem unificar-se como classe, e arrancar a lei que, poderosa barreira social, os impede de se venderem livremente ao capital, condenando-os, e a seus descendentes, à escravidão e à morte.” (O Capital). Naquele momento, revolucionário foi lutar pela jornada de oito horas. A referência eu a encontrei em Roberto Lyra Filho, exatamente em sua preciosa obra Direito do Capital e Direito do Trabalho, citada, para com ele distinguir o protagonismo do sujeito coletivo trabalhador, pois sem esse protagonismo o direito que nos cerca será ainda o Direito do Capital, mas nossa práxis há de ser voltada, segundo as aptidões de cada um, para a sociedade em que todo Direito seja Direito do Trabalho (o que equivale a uma instigadora teoria de justiça).

Assim que, postas essas duas categorias divisadas por Verônica – protagonismo e centralidade de trabalho – se justifica um certo desalento que a Autora revela, sobretudo com o sistema judicial incluindo a jurisdição do trabalho.

Esse o fecho de sua monografia:

Portanto, tendo em vista que as disputas – sociais, jurídicas e até mesmo semânticas – que se encontram na ordem do dia, principalmente no pós-Reforma Trabalhista, não só fazem referência aos conceitos trabalhados, como também colocam muitos deles em xeque, conclui-se que o resgate à função da Justiça do Trabalho historicamente assumida a partir da Constituição de 1988, em contraste com o que foi decidido no âmbito da Seção Especializada em Dissídios Coletivos do Tribunal Superior do Trabalho, mostra-se extremamente necessário. Conforme nos ensina Sousa Junior, “realizar a promessa democrática da Constituição, eis o desafio que se põe para o Judiciário e para responder a esse desafio precisa ele mesmo recriar-se na forma e no agir democrático, nessa parte, uma referência ao meu SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Por uma concepção alargada de Acesso à Justiça. Revista Jurídica, Brasília, v. 10, n. 90, Ed. Esp., p.01-14, abr./maio, 2008. p. 11.

Essa, pode-se dizer, é uma constatação realista, mas não derrotada. Lembrei isso ao fazer a recensão do livro de Renata Dutra, por nós ambos mencionado, com tanto mais ênfase quanto estrategicamente tendo Renata assumido a presidência da ABET poderá trazer para agenda de seus grandes debates essas grandes questões.

Questões que vêm sendo assumidas por integrantes da Corte. Estou pensando em Delaíde Alves Miranda Arantes, de cuja dissertação Trabalho Decente: Uma Análise na Perspectiva dos Direitos Humanos Trabalhistas a Partir do Padrão Decisório do Tribunal Superior do Trabalho (PPGD-Programa de Pós-Graduação em Direito. Brasília: Universidade de Brasília/Faculdade de Direito, 2022), já transformada em livro, participei com vivo interesse.

Aliás, fiz também uma recensão da dissertação (http://estadodedireito.com.br/trabalho-decente-uma-analise-na-perspectiva-dos-direitos-humanos-trabalhistas-a-partir-do-padrao-decisorio-do-tribunal-superior-do-trabalho/), para acentuar a perspectiva posta no trabalho que “a pessoa humana na centralidade do trabalho, como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, a relevância da Organização Internacional do Trabalho na vanguarda da elaboração e aprovação de normas de direitos humanos trabalhistas e o papel do Judiciário Trabalhista brasileiro, podem concretizar o objetivo de justiça social como opção pela pesquisa dos direitos humanos trabalhistas, levando o padrão decisório do Tribunal Superior do Trabalho a compreender a necessidade de fundamentar e contribuir para dar consistência aos enunciados do trabalho decente”.

A questão que se coloca para todos nós, tal como suscitei no exame de outra dissertação  – A dimensão da saúde no direito fundamental ao trabalho digno: uma análise justrabalhista do trabalho na limpeza urbana do Distrito Federal”. Helena Martins de Carvalho. Dissertação de Mestrado. Brasília: UnB/Faculdade de Direito, 2020, já publicada no formato livro: Varrendo para cima do tapete: da invisibilidade social à regulamentação jurídica do trabalho na limpeza urbana. Helena Martins de Carvalho. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2022, ver a propósito a minha resenha http://estadodedireito.com.br/a-dimensao-da-saude-no-direito-fundamental-ao-trabalho-digno-uma-analise-justrabalhista-do-trabalho-na-limpeza-urbana-do-distrito-federal/, são, em si, e em seu modo de apresentação não só tomar posição, mas interpela os operadores do Direito e os agentes políticos na direção de convocá-los a compromissos de aplicação e de interpretação do Direito do Trabalho, como arena de resistência ao processo de desdemocratização e de desconstitucionalização em curso.

Se se pudesse acrescentar questões para a Autora, eu diria, aliás, como questões que também me proponho. Estarão esses operadores e esses agentes à altura das expectativas civilizatórias que os desafiam, no plano constitucional e no plano convencional. A Corte Interamericana de Direitos Humanos em diversos julgados tem assentado a irrenunciabilidade e a reparabilidade do projeto de vida frustrado. Indiquei com Antonio Escrivão Filho, em nosso livro Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos (Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016), várias aplicações desse fundamento para orientar formas de reparação, reivindicáveis em sede de litígio estratégico em direitos humanos. Assim como recuperei formas de resistência e de intransponibilidade, mesmo no Supremo tribunal Federal em tempos de ditadura, para lembrar com Victor unes Leal a necessidade que tem a jusrisprudência, inclusive do STF, de andar nas ruas, para que a promessa do Direito não se torne vazia. Em voto célebre contra as interdições da ditadura ao exercício de greve, esse grande juiz afastou aplicação porque segundo definiu em voto “a lei não pode exigir do operário que ele seja herói ou soldado a serviço do patronato”.

Considero de muita pertinência o enquadramento que Verônica faz de sua proposição sob a perspectiva do alargamento não só funcional e modernizante mas também epistemológico do acesso à Justiça. Percebo que ela dialoga com autores muito qualificados nesse tema. A partir dessa interlocução na qual me reconheço, tenho com ela é que podemos nos entender sobre realizar a promessa democrática da Constituição que era e é ainda o desafio que se põe para o Judiciário e para responder a esse desafio precisa ele mesmo recriar-se na forma e no agir democrático. Mas o desafio maior que se põe para concretizar a promessa do acesso democrático à justiça e da efetivação de direitos é pensar as estratégias de alargamento das vias para esse acesso e isso implica encontrar no direito a mediação realizadora das experiências de ampliação da juridicidade. Com Boaventura de Sousa Santos podemos dizer que isso implica dispor de instrumentos de interpretação dos modos expansivos de iniciativas, de movimentos, de organizações que, resistentes aos processos de exclusão social, lhes contrapõem alternativas emancipatórias.

Com seu orientador, com o qual sei Verônica prepara uma participação em obra que está sendo organizada pela professora Gabriela Rebouça, tenho discutido muito essa questão, e também com a professora Talita Rampin, presente na banca examinadora da monografia. Aludo aos livros nos quais travamos uma boa parte desse diálogo: REBOUÇAS, Gabriela Maia; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; CARVALHO NETO, Ernani Rodrigues de (Organizadores). Experiências Compartilhadas de Acesso à Justiça: Reflexões teóricas e práticas. Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo, 2016, 281 p. Texto Eletrônico. Modelo de Acesso World Wide Web (gratuito). www.esserenelmondo.com.br; REBOUÇAS, Babriela Maia; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; ESTEVES, Juliana Teixeira (Organizadores). Políticas Públicas de Acesso à Justiça: Transições e Desafios. Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo, 2017, 177 p. E-Book (gratuito). www.esserenelmondo.com.br. Sobre essas obras ver a minha recensão em http://estadodedireito.com.br/experiencias-compartilhadas-de-acesso-a-justica-reflexoes-teoricas-e-praticas/.

Aliás, nessa resenha, abro uma nota de identidade que se estabelece para aferir a coerência e o potencial utópico desse material, está na sua virtualidade, inclusive semântica (CORREIA, Ludmila Cerqueira, ESCRIVÃO FILHO, Antonio; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Exigências Críticas para a Assessoria Jurídica Popular: Contribuições de O Direito Achado na Rua. Coimbra: CesContexto, Debates  n. 19, outubro de 2017), de se instalar como plataforma para um direito emancipatório (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Concepção e Prática do O Direito Achado na Rua: Plataforma para um Direito Emancipatório. Brasília: Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário, 6(1), abril/junho, 2017), para o exercício protagonista, crítico e criativo, operando novos e combinados mecanismos políticos e técnicas jurídicas, para o alargamento democrático do sistema de justiça.

Deixo pois, de avançar na arguição sobre esse tema. Entretanto, repito aqui para concluir, a questão que ponho para Verônica: estarão os operadores e os agentes políticos à altura das expectativas civilizatórias que os desafiam, no plano constitucional e no plano convencional? Nessa quadra dramática de interpelação a um paradigma civilizatório, serão alcançados nos seus misteres para, com a tempestade que desaba sobre o mundo, limpar “a maquilhagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso «eu» sempre preocupado com a própria imagem; (e deixar) a descoberto, uma vez mais, aquela (abençoada) pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos”, como exorta o Papa Francisco em sua HOMILIA Adoração do Santíssimo e Bêncão Urbi et Orbi, pronunciada em seu exemplar distanciamento social na grande praça de São Pedro, totalmente vazia, nesse 27 de março de 2020?

Será o Direito, realmente Direito se, como exortou Francisco, não for “capaz de resgatar, valorizar e mostrar como as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns (habitualmente esquecidas), que não aparecem nas manchetes dos jornais e revistas, nem nas grandes passarelas do último espetáculo, mas que hoje estão, sem dúvida, a escrever os acontecimentos decisivos da nossa história: médicos, enfermeiros e enfermeiras, trabalhadores dos supermercados, pessoal da limpeza, curadores, transportadores, forças policiais, voluntários, sacerdotes, religiosas e muitos – mas muitos – outros que compreenderam que ninguém se salva sozinho”, e operar para realizar e ser instrumento por meio da eficácia horizontal dos direitos humanos nas relações justrabalhistas, para além da pacificação social, (a) concretização dos ideais de igualdade material, de democracia e de justiça social, com a consolidação do valor trabalho (digno) ancorado na centralidade da pessoa humana e sua dignidade”?

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua

sexta-feira, 21 de julho de 2023

 

O Reitor Cancellier, o Absurdo e o Suicído: Reparar a Injustiça

  •  em 



Afirma Albert Camus, em O Homem Revoltado, que o núcleo de toda revolta é o sentimento de injustiça. Essa consideração me vem à mente toda vez que penso em Luiz Carlos Cancellier de Olivo, jurista como eu, jornalista, professor universitário como eu e que como eu foi reitor, ele da Universidade Federal de Santa Catarina entre 2016 e 2017, eu da UnB entre 2008 e 2012.

 

 

Cancellier e outros professores da UFSC foram investigados, em 2017, por conta de supostas irregularidades na distribuição de recursos em cursos de educação a distância da universidade. A Operação Ouvidos Moucos foi conduzida, na época, pela Polícia Federal (PF).

 

 

Em matéria do Brasil Popular – https://www.brasilpopular.com/ele-se-suicidou-mas-foi-um-assassinato-diz-lenio-streck-sobre-ex-reitor-da-ufsc-preso-injustamente/ -acusado de desvio de dinheiro público, Luiz Carlos Cancellier cometeu suicídio 18 dias depois de sua prisão. Agora, seis anos depois, o Tribunal de Contas da União (TCU) prova sua inocência. Delegada que prendeu ex-reitor é acusada de forjar depoimento. O Jornal lembra que “na época, porém, 18 dias após sua prisão, Cancellier cometeu suicídio em consequência da situação de injustiça que viveu. Preso por 36 horas e impedido de retornar à universidade, o então reitor se atirou do último andar de um shopping center em Florianópolis. No bolso, ele carregava um bilhete dizendo que sua morte tinha sido decretada quando foi afastado da UFSC”.

 

 

Ainda a matéria Brasil Popular dá voz ao jurista e professor LenioStreck, para quem “o Estado tem obrigação de realizar uma prestação de contas do caso e punir os responsáveis”.

 

 

Conforme resume a CNN (https://www.cnnbrasil.com.br/politica/quem-foi-luiz-carlos-cancellier-reitor-homenageado-por-lula/), após a morte do reitor, se discutiu muito sobre o modo como a operação estava sendo conduzida, a espetacularização do caso e uma suposta falta de provas. A polícia divulgou que o total de dinheiro desviado teria sido de R$ 80 milhões e voltou atrás, retificando que esse valor, na verdade, era o total destinado ao programa, mas o número já havia sido amplamente divulgado pela mídia.

 

 

Segundo a família de Cancellier, o ato extremo foi desencadeado após a prisão do reitor em 14 de setembro daquele ano.

 

 

Ele foi detido após ser acusado de interferir nas investigações. No dia seguinte à prisão, a juíza federal MarjorieFreiberger determinou sua soltura por falta de provas apresentadas pela delegada Erika Marena, que também atuava na Operação Lava Jato.Todo o processo contou com intensa exposição e cobertura midiática, e a família de Cancellier acusou a PF de abuso de poder.

 

 

Volto a Camus. O gesto de Cancellier, na sua tragicidade, realça o que o grande escritor havia pontuado quando designou só haver “um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio”. Tanto mais, quanto no trágico fatal que levou à derrota do projeto de vida do Reitor, se dá aquela, diz Camus, “relação entre o absurdo e o suicídio, a medida exata em que o suicídio é uma solução para o absurdo” (O Mito de Sísifo).

 

 

Põe-se, assim, em relevo, nesse aspecto, iniciativas de organismos de defesa de direitos humanos e da cidadania, que se mobilizam, pela causa da reparação da injustiça e da necessidade de reparação que a facticidade dramáticaem face das circunstâncias da morte do Reitor reclama.

 

 

Um lugar crítico para reconhecer os enunciados dessa formulação. Afinal, foi nesse lugar – a Corte Interamericana de Direitos Humanos – notadamente sob a presidência do juiz brasileiro Antonio Augusto Cançado Trindade que se deu o alargamento criativo do alcance dos direitos humanos, assim por exemplo, o de reparação não apenas indenizatória mas de reposição da dignidade ofendida por violação de projetos de vida.

 

 

Mas o próprio Cançado Trindade, que define o projeto de vida (Sentencia de 19 de noviembre de 1999, Caso Villagrán Morales y Otros – Caso de losNiños de laCalle), como a disponibilidade das condições integráveis ao universo conceitual do direito de reparação quando violado, porquanto “elproyecto de vida se encuentra vinculado alalibertad, como derecho de cada persona a elegirsu próprio destino. (…) El proyecto de vida envuelve plenamente el ideal de laDeclaración Americana (de losDerechos y DeberesdelHombre) de 1948 de exaltar elespíritu como finalidade suprema y categoria máxima de la existência humana”, adverte para alguns obstáculos, com implicações na construção de aberturas hermenêuticas para a expansão de direitos, o que venho insistindo há muito tempo (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de (org). O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2015; com ESCRIVÃO FILHO, Antonio. Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016).

 

 

Não se trata de relevar aquele erro de procedimento que a miopia redutora do burocrata do direito aplica por incompreensão de seu próprio alcance. Isso para dizer com Anatole France que esses são os melhores, os de boa fé, que sequer compreendem, quando se trate de uma estrutura complexa, colegiada, descentralizada de um universidade pública que não é uma mera repartição, a responsabilidade não é uma precipitação de uma competência presumida. Cada um de nós Reitores já tivemos ensejo de demonstrar, em procedimentos de auditoria, nas controladorias e no Tribunal de Contas, que é preciso demonstrar a cadeia, o nexo, o contínuo dessa responsabilidade, que não é presumida, mas culposa ou dolosamente demonstrada. É o que acaba de fazer o TCU em relação à responsabilidade de Cancellier, presumida num procedimento que ele sequer deve ter tomado conhecimento, salvo quando a ele submetidos os acordos iniciais e os relatórios de execução desses protocolos e convênios.

 

Me refiro aos maliciosos, aqueles que já se demonstrou o quanto baste, que desencadeiam relações indecentesa pretexto de cumprir seus ofícios. Esse o teor de minha participaçãona obraRelações Indecentes [recurso eletrônico] / organização Camila Milek, Ana Júlia Ribeiro; coordenação Mírian Gonçalves, Wilson Ramos Filho, Maria Inês Nassif, Hugo Melo Filho; 1ª edição – São Paulo: TirantLoBlanch /Instituto Defesa da Classe Trabalhadora, 2020, 190 p. Links para acesso gratuito: https://editorial.tirant.com/br/libro/relacoes-indecentes-E000020005394; https://bit.ly/DownloadRelacoesIndecentes, com o ensaio Entre Os Maus, Quando Se Juntam, Há Uma Conspiração. Não São Amigos, Mas Cúmplices, a tanto me instigou o quadro de degradação funcional, no sistema de justiça no que vem sendo caracterizado como lawfare.

 

 

Cuidono meu texto, fazendo referência a registros do sítio Intercept Brasil, cujas revelações ecoaram com a virulência da indecência, agravando a enfermidade de relações que a cada nova divulgação revelam a inversão perversa do institucional que se deteriora no arranjo cúmplice de engajamentos clandestinos, nada republicanos, fortemente conspiratórios, afrontando subjetividades no plano individual e atentando corrosivamente contra a Democracia, o Estado de Direito, a Ética Funcional e os Direitos Humanos.

 

 

Em nosso círculo de reitores e ex-reitores, reitoras e ex-reitoras, o caso Cancellier tem sido um marcador de nossas reflexões, até porque contá-lo e recontá-lo, representa “um anteparo e uma proteção a todos e todas nós, em face de recrudescências autoritárias contra a institucionalidade universitária. Assim o fizemos em mesa na 74ª SBPC, realizada em Brasília, na UnB, em 2022 (https://www.apufsc.org.br/2022/05/11/74a-reuniao-anual-da-sbpc-esta-com-inscricoes-abertas-caso-cancelier-e-pauta-de-uma-das-mesas-redondas/), numa Sessão Especial: O Caso Cancellier, com a minha participação, do jornalista Luís Nassif e da ex-Reitora da Unifesp Soraya SoubhiSmaili (uma das redatoras de nota publicada por ex-reitores conforme se verá adiante), sob a moderação do ReitorJoão Carlos Salles (UFBA), então presidente da Andifes (Associação dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior).

 

 

Não é um fato isolado. No limite do lawfareele traduz o recrudescimento de uma ação hostil a autoritária que já conduziu a que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) junto com a Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão (RELE) e a Relatoria Especial sobre os Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (REDESCA), aprovasse e publicasse, no final de 2021, a Declaração de Princípios Interamericanos sobre Liberdade Acadêmica e Autonomia Universitária, com o objetivo de fortalecer a proteção e a garantia da liberdade acadêmica na região.

 

 

Por isso que os ex-Reitores, 56 de nós, em manifestação pública, da qual fui um dos subscritores – https://www.correiobraziliense.com.br/euestudante/ensino-superior/2023/07/5109002-ex-reitores-pedem-justica-por-luiz-carlos-cancellier-morto-em-2017.html, reclamamos reparação e responsabilização:

 

 

“É preciso não só contar mais uma vez a história do Reitor Cancellier mas exigir justiça, para que não seja esquecida e para que não se repita, por seu simbolismo e por representar um período no qual sofremos com as denúncias infundadas. Ao abrir mão de sua vida tragicamente, Cancellier também foi um anteparo e uma proteção aos demais, diante de tanta criminalização”.

 

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)


José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.

 

Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.

 

Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).


quarta-feira, 19 de julho de 2023

 

Educação Jurídica: da Aderência ao Sistema de Avaliação à Formação por Competências

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

 


Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

Jailson Alves Nogueira. Educação Jurídica: da Aderência ao Sistema de Avaliação à Formação por Competências – uma Experiência de suas Possibilidades de Inovação na Faculdade de Direito da UnB. Tese de doutorado em Direito. Faculdade de Direito/Universidade de Brasília, 2023, 178 fls.

 

Começo celebrando o candidato/autor e a Banca Examinadora, da qual fui membro interno, constituída pelas professoras e professores Loussia P. Musse Felix (FD/UnB), orientadora; José Garcez Ghirardi (FGV/SP); Rodolfo de Carvalho Cabral (MEC); e Fernanda de Carvalho Lage (FD/UnB). Saúdo a orientadora com quem tenho um bom percurso lado a lado na construção do modelo de diretrizes curriculares e de avaliação dos cursos jurídicos, na OAB (Comissão de Ensino Jurídico), no MEC (Comissão de Especialistas de Área) e na própria UnB (Faculdade de Direito). Saúdo também o professor Ghirardi da FGV/Direito (SP). Fui o relator do projeto de criação do curso na OAB, reconhecido então como um projeto portador de grande novidade. Registro com uma memória pedagógica a apresentação, defesa e debate sobre o projeto pela equipe completa do curso proposto, naquela ocasião presidida pelo ilustre professor Ary Oswaldo Mattos Filho, que foi o primeiro diretor do curso, hoje soba qualificada direção do querido amigo Oscar Vilhena – do sistema financeiro empresarial aos direitos humanos.

Continuei em orgânica relação conceitual com a FGV/Direito, São Paulo, e carrego com apreço duas premiações (menção honrosa) no seu prestigioso Prêmio Esdras de Ensino do Direito que tem por objetivo fortalecer a metodologia de ensino de cursos jurídicos que adotam o protagonismo do aluno como base de todo o processo de aprendizagem, por meio da identificação de experiências semelhantes em outras instituições de ensino de Direito no Brasil. No Banco de Materiais do Prêmio (http://ejurparticipativo.direitosp.fgv.br/material-de-ensino), há um bom descritivo de duas experiências que coordenei: Pesquisa em (qual) direito e Hermenêutica – Sociedade de Debates da Universidade de Brasília, ambas desenvolvidas a partir da disciplina e com a participação de seus monitores e monitoras Pesquisa Jurídica ministrada no primeiro semestre do Curso na Faculdade de Direito da UnB.

A tese, conforme seu resumo, busca compreender:

a formação baseada em competências pode contribuir para o aperfeiçoamento da educação jurídica brasileira, historicamente, alvo de críticas e geradora de “crises” do Direito. No primeiro capítulo, descrevemos o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (SINAES) e seus três procedimentos de avaliação, bem como seus respectivos indicadores. No segundo capítulo, estudamos as resistências epistemológicas e metodológicas que circundam os cursos de Graduação em Direito, e como esses aspectos tem contribuído para o avanço qualitativo da educação jurídica brasileira. Por fim, no terceiro capítulo, analisamos, a partir da observação participante na disciplina de Pesquisa Jurídica, na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), em que medida a formação por competências pode ser desenvolvida nos cursos de graduação em Direito. Para tanto, a nossa pesquisa foi de cunho bibliográfico, com abordagem qualitativa, e do tipo descritiva, exploratória e explicativa, lançando mão do método dialético, dentro de uma visão interdisciplinar dos fenômenos sociojurídicos. A técnica de observação participante foi utilizada no terceiro capítulo da pesquisa, considerando a nossa experiência de assistente docente, dialogando com documentos inerentes à disciplina. Evidenciamos que a formação por competências potencializa a formação jurídica em nível de graduação e contribui para o aperfeiçoamento da educação jurídica, com foco na materialização de competências gerais e específicas do Direito, atualmente pouco desenvolvidas. Dentre as competências fomentadas com os estudantes durante a disciplina de Pesquisa Jurídica, podemos citar: capacidade para identificar, colocar e resolver problemas, capacidade de analisar criticamente e propor soluções a demandas jurídicas e capacidade de raciocinar, argumentar e decidir juridicamente, pesquisa empírica, capacidade de praticar a interdisciplinaridade, respeito à democracia e aos direitos humanos e trabalho em equipe.

O Sumário enuncia o contexto da tese, cuja chave de leitura talvez se encontre no seguinte descritivo: “Apesar de todos esses processos de avaliação da educação superior, sobretudo os focados nos cursos de graduação em Direito, o atual sistema avaliativo tem se mostrado insuficiente para enfrentar as “crises” contemporâneas da educação jurídica. A educação não só sofre com problemas de outrora, como se deparou com novos problemas sociais contemporâneos, não demonstrando capacidade para dar uma resposta a esses problemas, que se expressam por sua natureza técnica e metodológica (formativa)” (p. 14).

Confira-se:

INTRODUÇÃO       

1 O SINAES E A LUTA POR UMA EDUCAÇÃO SUPERIOR DE QUALIDADE        1

1.1 O SINAES e seus três procedimentos: AI, ACG e ENADE     

1.1.1 Avaliação Institucional

1.1.2 Avaliação dos Cursos de Graduação   

1.1.3 Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes – ENADE

1.2 Indicadores Oficiais        

1.2.1 Conceito Preliminar de Curso – CPC 

1.2.2 Indicador da Diferença entre os Desempenhos Observados e Esperado – IDD        

1.2.3 Índice Geral de Cursos – IGC 

1.2.4 Conceito ENADE        

1.2.5 Selo OAB Recomenda: indicador sui generis 

2 ASPECTOS EPISTEMOLÓGICOS E METODOLÓGICOS DA EDUCAÇÃO JURÍDICA BRASILEIRA: DA TRADIÇÃO À (IN)SUFICIÊNCIA CONTEMPORÂNEA  

2.1 Da crise global as micro crises da educação jurídica     

2.2 Diretrizes Curriculares Nacionais: do momento de ruptura à (nova) esperança de mudança  

2.3 Resistências às mudanças epistemológicas e metodológicas    

3.4 Considerações acerca da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão nos cursos de graduação em Direito

3 A FORMAÇÃO POR COMPETÊNCIAS COMO PROPOSTA DE APERFEIÇOAMENTO DA EDUCAÇÃO JURÍDICA: UMA EXPERIÊNCIA NA FD/UNB  

3.1 A formação baseada em competências: a possibilidade para um novo momento de ruptura na educação jurídica brasileira   

3.2 Formação por competência no campo do Direito: uma experiência na FD/UnB         

3.3 Formação por competências nos cursos de graduação em Direito em tempos de educação remota: dificuldades e possibilidades 

CONCLUSÃO         

REFERÊNCIAS       

 

Na explicitação do Autor, do que trata o núcleo da tese é o que ele propõe nos três capítulos em que ela se desdobra.

 No primeiro capítulo, descreve o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (SINAES) e seus três procedimentos de avaliação, bem como seus respectivos indicadores. Além do SINAES, sistema oficial de avaliação da educação superior, também descreveremos indicadores não-oficiais de avaliação. No campo do Direito, o indicador não-oficial a ser descrito será o Selo OAB Recomenda.

No segundo capítulo, estuda os aspectos epistemológicos e metodológicos que circundam os cursos de Graduação em Direito, e sua insuficiência para o atual modelo avaliativo. O nosso ponto de partida será a aula inaugural dos cursos da Faculdade Nacional de Direito, ministrada por Francisco Clementino de San Tiago Dantas, em 1955. Foi nessa aula que a “crise” da educação jurídica começou a vir à tona, chamando a atenção para o anacronismo entre a estruturação pedagógica dos cursos de Direito e os problemas sociais e políticos da época.

No terceiro capítulo, analisa, a partir da observação participante na disciplina de Pesquisa Jurídica, como a formação por competências pode ser desenvolvida nos cursos de graduação em Direito. Dentro desse capítulo intercruza-se as observações feitas na disciplina com categorias teóricas da formação por competências. Além disso, analisa-se as competências adquiridas pelos estudantes durante a disciplina: Capacidade para identificar, colocar e resolver problemas, capacidade de raciocinar, argumentar e decidir juridicamente, Cenários futuros para as profissões jurídicas, tripé universitário, fomento à pesquisa empírica e interdisciplinaridade, capacitação discente em nível de pós-graduação e domínio das novas tecnologias, sobretudo após o período pandêmico, em que houve uma maior utilização das plataformas digitais. Importante destacarmos que as competências destacadas não se esgotam entre si, devendo ser observadas como rol exemplificativos e recorte metodológico. Numa disciplina ou curso baseado em competências, podem emergir capacidades estudantes até então não planejadas ou almejadas pela docente, por isso a importância da flexibilização e abertura pedagógica, aceitando conhecimentos diversos e abordagens múltiplas.

Em Kant, que compreende a razão sob a perspectiva categorial do que ele denomina imperativos (categóricos e hipotéticos), para orientar a ação humana, tem-se que todos os imperativos ordenam, e são fórmulas para exprimir as relações entre as leis objetivas do querer em geral, e a discordância subjetiva da vontade humana. Mas em permeio a esses atributos racionais, um requisito que é a habilidade na escolha dos meios para atingir o maior bem-estar próprio pode-se chamar sagacidade. Algo que, no limite, também se constitui como um imperativo que se expõe sob a forma, até podemos dizer, de uma educação prática para o agir que nos revela seres humano hábeis, prudentes e moralmente orientados.

O catalizador da leitura de Jailson é o discurso de San Tiago Dantas (1955), para marcador da “crise” como ponto de clivagem paradigmática na educação jurídica, contrapondo o discurso pedagógico de confirmação de uma ordem político-jurídica e as tensões de um social que se dá conta da condição alienada e subalterna de sua posição entre uma cultura colonial de favor enquanto se interpela mudanças nessa estrutura (descolonização) para instituir e universalizar direitos. A partir do discurso de San Tiago Dantas Jailson vai adotar o seu posicionamento analítico em relação ao conhecimento do direito, suas formas de difusão e seu lugar instituinte no social e na política.

Se se pudesse encontrar um parâmetro de contemporaneidade para ajustar esse posicionamento em face das interpelações do campo, eu quase poderia indicar, a partir de autores que Jailson adota, que aqui se tem, de certo modo, a advertência feita por Joaquim Falcão, Sérgio Ferraz e José Lamartine Correa em seu relatório sobre a crise do ensino jurídico no Brasil, apresentado à reunião de 1990 do Colégio de Presidentes da OAB, e que motivou a criação da Comissão de Ciência e Ensino Jurídico pela OAB (ato de Marcello Lavénère Machado) e que tive a honra de integrar como membro. Conforme transcrito no primeiro volume da Série Ensino Jurídico OAB: Diagnóstico, Perspectivas e Propostas, a crise do ensino de Direito devia-se “à praga do positivismo que assola o ensino jurídico”.

Claro que, em qualquer acepção, em Jailson ou em minha consideração, a expressão “crise” é tomada sempre em sentido epistemológico, hegelianamente, como tensão de transição co-implicada entre o velho que reluta em morrer e o novo que luta para nascer. Do ponto de vista econômico e até político (em contexto neoliberal), não há que se falar em crise, porque tudo está muito bem, em estoque de artefatos e rentabilidade do negócio da educação.

Participei da banca de qualificação da tese e fiz várias sugestões a Jailson para retomar essa atualização, não só em seu enfoque pedagógico, como em seu enfoque epistemológico. Embora possa considerar que elementos dessas sugestões estão contidos nos enunciados propostos por Jailson, notadamente quanto aos aspectos dos fundamentos, não os divisei explicitamente no texto ou nas referências.

Anoto o livro ENSINO JURÍDICO. A Descoberta de Novos Saberes para a Democratização do Direito e da Sociedade, de Fábio Costa Morais de Sá e Silva. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2007. Orientei a tese e fiz o prefácio.

Assinalo que o foco das diretrizes da área jurídica, conforme aparece em Fábio, reflete uma visão de crise do Direito e procurava iluminar reflexões sobre suas determinações. Em perspectiva epistemológica esta reflexão articulou elementos: 1) de representação social relativa aos problemas identificados, 2) de conhecimento do Direito e suas formas sociais de produção, 3) de cartografia de experiências exemplares sobre a autopercepção e o imaginário dos juristas e de suas práticas sociais e profissionais. Ao fim e ao cabo, condições para superar a distância que separa o conhecimento do Direito de sua realidade social, política e moral, possibilitando a edificação de pontes sobre o futuro através das quais pudessem transitar os elementos novos de apreensão e compreensão do Direito e de um novo modelo de ensino jurídico. Tratava-se, como se vê, de empreender um trabalho crítico e consciente, apto a afastar o jurista das determinações das ideologias, quebrar a aparente unidade ou homogeneidade da visão de mundo constitutiva de um pensamento jurídico hegemônico produzido por essas ideologias e romper, em suma, com a estrutura do modo abstrato de pensar o direito, inapto para captar a complexidade e as mutações das realidades sociais e políticas.

Este trabalho representou, pode dizer-se, uma espécie de superação do mal-estar de uma cultura jurídica convertida em caleidoscópio de ilusões e de crenças responsáveis pelo estiolamento de modelos e paradigmas de racionalidades fundantes de certeza e segurança, adquiridas ao preço do imobilismo científico e da eliminação do espírito crítico na formação intelectual do jurista e do profissional do Direito. Propunha-se, então, articular o ensino jurídico com a exigência científica de identificação de parâmetros para a legitimidade epistemológica de conceitos permanentemente reelaboráveis e de ampliação crítica para a apreensão de categorias aptas a organizar uma prática de ensino na qual a disponibilidade de artefatos científicos operacionais e de hipóteses relevantes de conhecimento não viessem a funcionar como substitutivos de visões globais acerca dos fenômenos estudados, ao risco de condicionar todo o procedimento, a produção de seus resultados e a própria transmissão dos conhecimentos desse modo gerados.

Nesse ponto, presente também em Jailson, está a advertência feita por Roberto Lyra Filho, para o que ele indicava o direito que se ensina errado. Lembrei por isso, em estudo anterior (Movimentos Sociais e Práticas Instituintes de Direito: Perspectivas para a Pesquisa Sócio-Jurídica no Brasil in OAB Ensino Jurídico – 170 Anos de Cursos Jurídicos no Brasil. Brasília: Comissão de Ensino Jurídico e Conselho Federal da OAB, 1997). Segundo Roberto Lyra Filho, essa acepção “pode entender-se, é claro, em pelo menos dois sentidos: como o ensino do direito em forma errada e como errada concepção do direito que se ensina”. Se o primeiro aspecto “se refere a um vício de metodologia; o segundo à visão incorreta dos conteúdos que se pretende ministrar”, ambos permanecem vinculados, “uma vez que não se pode ensinar bem o direito errado; e o direito, que se entende mal, determina, com essa distinção, os defeitos da pedagogia” (O Direito que se Ensina Errado. Brasília: Editora Obreira, 1980).. Por isso recomendava o mesmo Roberto Lyra Filho a necessidade, tanto no ensino quanto na pesquisa, de se estar atento a que eles visam a uma definição de posicionamento: “o simples recorte do objeto de estudo pressupõe, queira ou não o cientista (o professor ou o estudante), um tipo de ontologia furtiva. Assim é que, por exemplo, quem parte com a persuasão de que o Direito é um sistema de normas estatais, destinadas a garantir a paz social ou a reforçar o interesse e a conveniência da classe dominante, nunca vai reconhecer, no trabalho de campo, um Direito praeter, supra ou contra legem e muito menos descobrir um verdadeiro e próprio Direito dos espoliados e oprimidos. Isto porque, de plano, já deu por ‘não-jurídico’ o que Ehrlich e outros, após ele, denominaram o ‘direito social’” (Pesquisa em que Direito? Brasília: Edições Nair Ltda, 1984). Este mesmo autor pôde, assim, falar em “Direito Achado na Rua”, apreendendo-o “não como ordem estagnada, mas positivação, em luta, dos princípios libertadores, na totalidade social em movimento”, onde o Direito se constitui como enunciação dos princípios de uma “legítima organização social da liberdade” (O Que é Direito. Coleção “Primeiros Passos”. São Paulo: Editora Brasiliense, 1ª edição, 1982).

Nestas condições, o conhecimento do Direito opera exatamente na consciência das interações que toda atividade intelectual e prática constitui historicamente, articulando condições sociais e teóricas (SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela Mão de Alice. O Social e o Político na Pós-Modernidade. Porto: Edições Afrontamento, 1ª edição, 1994). O mundo jurídico não pode, com efeito, ser propriamente conhecido, senão, diz Michel Miaille, “em relação a tudo o que permitiu a sua existência e o seu futuro possível. Este tipo de análise desbloqueia o estudo do Direito do seu isolamento, projeta-o no mundo real onde encontra o seu lugar e a sua razão de ser, e, ligando-o a todos os outros fenômenos da sociedade, torna-o solidário da mesma história social” (Uma Introdução Crítica ao Direito. Lisboa: Livros de Direito Moraes Editores, 1a edição, 1979).

Nos seus antecedentes e nos seus pressupostos, os caminhos percorridos visando à reforma do ensino do Direito no Brasil tiveram como leito as condições sociais e as condições teóricas que sustentam ainda agora o debate acerca da função, do sentido e dos modos de produção do próprio conhecimento, no contexto das múltiplas transições que determinaram e determinam ainda o seu valor para as práticas sociais. Enquanto reflexão sobre as condições de possibilidade da ação humana projetada nessas práticas sociais, este debate remonta à consideração, mesmo quando se cuide de designar o que é aí propriamente jurídico, destacada por Boaventura de Sousa Santos, de que “nenhuma forma de conhecimento é, em si mesma, racional; só a configuração de todas elas é racional e é, pois, necessário dialogar com outras formas de conhecimento, deixando-se penetrar por elas” (Um Discurso sobre as Ciências. Porto: Edições Afrontamento, 1987).

Tratava-se, pois, de abrir uma perspectiva de futuro acerca da função do Direito e do papel do jurista na sociedade, buscando condições para ultrapassar a fase de estagnação burocratizante e medíocre a que chegara o ensino do Direito. Para Álvaro Melo Filho, estas eram as condições para: “a) romper com o positivismo normativista; b) superar a concepção que só é profissional do Direito aquele que exerce atividade forense; c) negar a auto-suficiência disciplinar do Direito; d) superar a concepção de educação como sala de aula; e) formar um profissional com perfil interdisciplinar, teórico, crítico, dogmático e prático” (Inovações no Ensino Jurídico e no Exame de Ordem. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 1996).

Essa perspectiva vai se espraiar em Ensino Jurídico, Diálogos com a Imaginação. Construção do projeto didático no ensino jurídico. Inês da Fonseca Pôrto. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2000.

O livro de Inês da Fonseca Pôrto – que assessorou a Comissão de Ensino Jurídico da OAB em seu período de implantação estatutária – se coloca também como “tarefa e promessa” de “espionamento do real pela imaginação”, capturando ângulos em que ele não se percebe observado e, desde a perspectiva de testemunho (“testemunho da construção do projeto didático-pedagógico na reforma do ensino jurídico”), avalia “o modelo central do ensino jurídico” e indica, na medida em que “a imaginação dê forma à vontade de transformação”, as possibilidades que ele comporta de abrir-se “a novas experiências – não vividas, mas possíveis”, como projeto de futuro.

Configurado a partir dos seus elementos característicos – a descontextualização (negação do pluralismo jurídico), o dogmatismo (exclusão das contradições e preservação dos processos unívocos de seu pensamento constitutivo) e a unidisciplinaridade (exclusividade de um modo de conhecer) – a Autora demonstra o impasse crítico a que chegou o modelo central de ensino jurídico e o esgotamento paradigmático de sua matriz positivista e formalista.

A abordagem de Inês Pôrto, fruto de seu protagonismo no processo, apreende nitidamente o foco de intervenção dos sujeitos nele engajados, principalmente o da Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e interpreta, fielmente, a visão de crise do Direito que iluminou as reflexões sobre suas determinações e os elementos nucleares que ela articulou. Esses elementos, a meu ver (Anais da XVI Conferência Nacional da OAB) são, em sua dimensão epistemológica: 1) de representação social relativa aos problemas identificados; 2) de conhecimento do Direito e suas formas sociais de produção; 3) de cartografia de experiências exemplares sobre a autopercepção e imaginário dos juristas e de suas práticas sociais e profissionais. É por meio deles que se dá o balizamento para a superação da distância que separa o conhecimento do Direito de sua realidade social, política e moral, possibilitando a edificação de pontes sobre o futuro, através das quais possam transitar os elementos novos de apreensão e compreensão do Direito e de um novo modelo de ensino jurídico.

Daí o apelo à imaginação como método de interpelação do novo. Luiz Alberto Warat, o primeiro a propor uma didática do imaginário para o ensino jurídico (Manifesto do Surrealismo Jurídico), vale-se de Bachelard para indicar a imaginação como uma forma de interpelação, na medida em que nos propõe que “a possibilidade de pensar e sentir sem censuras, nos revela os segredos da singularidade, o ponto neurológico da diferença: o homem novo, aquele que não tem seus sonhos, seu imaginário censurado pela instituição e que organiza seus afetos sem desejos alugados”.

O trabalho de Inês Pôrto localiza na cartografia dos problemas definidos pela Comisão da OAB, conforme a coletânea de textos por ela coordenados (OAB Ensino Jurídico), a construção de “figuras de futuro” aptas a traduzir as perspectivas paradigmáticas para a edificação desse futuro, o qual não pode configurar-se, eu já o disse, senão sobre a consciência da responsabilidade que tem o ensino jurídico para a constituição das categorias novas apreendidas na leitura atenta da realidade social. Percebidas como demandas ao ensino jurídico, essas categorias constituem um novo imaginário que se nutre, diz Roberto Aguiar (O Imaginário dos Juristas), do diferente, do ousado e da recusa: 1) demandas sociais; 2) demandas de novos sujeitos; 3) demandas tecnológicas; 4) demandas éticas; 5) demandas técnicas; 6) demandas de especialização; 7) demandas de novas formas organizativas do exercício profissional; 8) demandas de efetivação do acesso à justiça; 9) demandas de refundamentação científica e de atualização dos paradigmas.

 A meu ver, livro de Inês da Fonseca Pôrto – que deriva da dissertação que também orientei na UnB – é a mais criativa leitura até agora sobre os caminhos e instrumentos que estruturam a reforma do ensino jurídico sintetizada nas diretrizes curriculares inauguradas na Portaria n. 1886\94, do MEC.

O eixo de sua leitura é a noção de exemplaridade enquanto, diz ela, “instrumento que criou condições para que cada curso jurídico refletisse sobre sua função social (diálogo com a realidade contextual em que se inseria), sobre suas experiências, através de outros cursos (o diálogo pela diferença, através dos referenciais comuns) e sobre as relações que definem o processo de ensino\aprendizagem (diálogo consigo mesmo)”.

Por exemplaridade entenda-se o singular. Contrariamente a uma renitente vocação funcionalista agarrada ao conforto de requisitos de objetividade, o trabalho de Inês sugere o risco do diálogo, o ouvir antes de predicar, a aposta qualitativa na promessa, sem condições a priori, a partir do projeto didático-pedagógico.

Também apresentei a Jailson o trabalho de Thiago Fernando Cardoso Nalesso. EDUCAÇÃO JURÍDICA BRASILEIRA: entre as Diretrizes Curriculares Nacionais e o Exame de Ordem.  Doutorado em Direito. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2021.

Participei de sua banca de doutoramento e acabei fazendo o prefácio da obra. Ali indico uma preocupação relevante nesse campo. Basta ver que apenas no âmbito da OAB, à luz de suas Conferências Nacionais, a primeira realizada em 1958, a XXIV convocada para 2021 mas adiada por causa da pandemia, o tema do ensino jurídico, juntamente com o do acesso à justiça, são os dois recorrentes, em todas as Conferências. Em 1958, com Ruy de Azevedo Sodré, ao lado da preocupação com a “proliferação” dos cursos de direito (não deviam ser mais que 20 em comparação aos mais de 1700 atuais), o zelo para que a advocacia não fosse considerada apenas uma profissão, mas uma função social, um múnus público, de fato constitucionalmente reconhecida como atividade essencial à administração da justiça.

 Penso que reside nessa preocupação o cuidado com que o Autor assenta já na página 11, o exame das questões que traz para seu estudo: “Dessa maneira a pesquisa realizada passou pelo campo: a) do Direito Educacional, no que se refere ao conjunto normativo que orienta o processo de autorização, funcionamento e definição curricular e metodológica dos cursos de Direito, b) pela sociologia jurídica, ao buscar compreender o papel exercido pela entidade corporativa mais representativa das profissões jurídicas no Brasil, a OAB, na educação jurídica brasileira e, c) da Filosofia do Direito, na medida em que toda definição curricular elege um recorte e uma perspectiva vinculados a uma certa forma de concepção do fenômeno jurídico, mesmo que se busque ocultar tal escolha, que, para ser descortinada, depende de um processo analítico de base filosófica. De outro, a análise crítica do ensino jurídico e de suas crises, em grande parte, é realizada por meio de estudos no campo da epistemologia, ou metodologia jurídica, o que reforça a perspectiva de análise filosófica”.

Nessa ordem de consideração acrescentei que, conquanto os sinais já lançados exibam tremendos retrocessos epistemológicos, pedagógicos e políticos, com movimentos de clara intervenção (até aqui contido, com as salvaguardas constitucionais, pelo Supremo Tribunal Federal, em face a ataques à autonomia das universidades e à liberdade de ensinar), e também em operações hostis à vocação crítica e livre da educação em geral (leis de mordaças, escola sem partido), que já feriram gravemente a própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), no tocante a fundamentos como flexibilidade curricular, interdisciplinaridade e redução dos elementos reflexivos do manejo pedagógico, é certo que na Revisão (Parecer n. 635/2018), apreende-se um vínculo não rompido como o movimento crítico e plural instaurado em 1994, com a Portaria n. 1886, conferido em 2004, com a Resolução n.9, guardando fidelidade a esses elementos estruturantes de uma orientação curricular, ainda que acessíveis a indicações de mais detida qualificação (conferir, nessa direção, o artigo de Horácio Wanderlei Rodrigues, ainda inédito no momento de redação deste comentário, mas já circulando restritamente, em seu esboço inicial – para depois se integrar ao volume 8 da Coleção Caminhos Metodológicos do Direito, coordenada pelos Professores Fabrício Veiga Costa, Ivan Dias da Motta e Sérgio Henriques Zandona Freitas, Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de Direito: Análise do Parecer CNE/ N. 635/2018.

Como se percebe é inevitável uma certa nostalgia presente em minhas leituras do tema em razão do engajamento nessas ações que levaram às grandes modificações no campo do ensino jurídico e no sistema de avaliação da educação superior no Brasil. Incluindo o SINAES, de cuja comissão formuladora participei, representando o MEC, na qualidade de Diretor do Departamento de Política do Ensino Superior do MEC/SESu. E posso dizer que, se na questão do ensino jurídico o enlace do epistemológico com o funcional se fez muito forte – não se ensina bem o que se apreende mal – no campo da avaliação a ênfase acabou por se focar nos imperativos de habilidade, que caracterizam todo o procedimento. Não é pouco, se considerarmos os impactos do paradigma no arranjo do funcional e se nos dermos conta de que o só deslocamento do modelo bancário (Paulo Freire) para o modelo interpelante da pedagogia movida por habilidades e competências já é si, o avanço extraordinário.

Chego a pensar, lendo a tese de Jailson, que a educação centrada nos requisitos de competências e de habilidades, elementos que formam o arcabouço dos sistemas de avaliação da educação superior no Brasil hoje, incluindo naturalmente a formação em Direito, respondem sem o enunciar ao que Kant poderia designar de imperativo de habilidade ou destreza.

Não se trata aqui de simplesmente aludir aos imperativos já definidos por Kant, como imperativos de habilidade ou de destreza, como o que se tem de fazer para alcançar uma finalidade razoável e boa (Fundamentação da Metafísica dos Costumes).

Em Kant, tal como Michel Villey já observara (Leçons D’Histoire de la Philosophie du Droit), de nada valem tais imperativos, ainda que se leve em conta que “todas as ciências têm uma parte prática, que se compõe de problema que estabelecem que uma determinada finalidade é possível”, se na clivagem por ele estabelecida (Le Conflit des Facultés), o ensino jurídico exclui do jurista a discussão de fundo acerca do justo (quid sit ius), objeto de análise do filósofo (na Faculdade de Filosofia), restando-lhe apenas (na Faculdade de Direito), estabelecer se um determinado fato ou ato seja lícito ou ilícito sob o ponto de vista jurídico (quid sit iuris).

Convenhamos. Como afirma Jailson nas suas conclusões, “a cultura pedagógica tradicional, que acaba por criar uma resistência à pesquisa e extensão por parte dos cursos de Direito, seja por meio de discurso discente, docente ou até mesmo institucional, também é um fator a ser apontado. Foi somente a partir da década de 1990, com as diretrizes curriculares nacionais que a pesquisa e extensão passaram a ser concebidas como perspectivas formativas essenciais à formação do bacharel em Direito, o que não significa a perda de espaço do ensino. Pelo contrário, o ensino foi incentivado a ser desenvolvido de forma articulada com pesquisa e a extensão, formando o que denominamos de tripé universitário. As Diretrizes curriculares de 2004 e 2018 ratificaram a necessidade de os cursos de Direito fomentarem a pesquisa e extensão, com o objetivo de oferecer outras modalidades pedagógicas além do ensino”.

Não é só isso. Tenho dito que mesmo os mais qualificados estudiosos do campo, mal arranham a crosta que encobre o miolo substantivo do núcleo formador das diretrizes tal como elas foram pensadas, debatidas em auditórios sofisticados e ampliados país a fora, e os experimentos metodológicos ativos realizados com imaginação e ineditismos em muitos belos projetos propostos na conjuntura. Um que de inércia, de indolência e de resistência conteve muito e ainda contêm, o melhor potencial do que se formulou nesses debates: sair do encadeado das disciplinas para expandir a matéria que dá identidade ao projeto acadêmico e de curso; descolonizar os currículos; estimular a autonomia do estudante para seu autor de sua formação abrindo-se ao seu próprio currículo gerado pela sua autônoma e transdisciplinar gestão de atividades complementares que não se confinem ao burocrático de “gincana” de eventos; entender o significado epistemológico da prática e o alcance da teoria convertida em práxis transformadora. 

Por isso diz o Autor, concluindo, com apoio no trabalho de sua orientadora que abriu um horizonte de compreensão para o que representam competências e habilidades (Projeto Tuning America Latina), algo que sequer é alcançado pelas proposições oficiais ou não oficiais do sistema de formação superior no Brasil. Diz Jailson, aliás, cujo esforço classificatório representa um dos mais bem cuidados de divulgação de todos os achados do projeto, “é notório que há resistência às atividades de pesquisa, sobretudo a empírica, e à extensão universitária. A interdisciplinaridade é outra prática não muito concebida nos cursos de graduação em Direito, restringindo à formação discente às categorias dogmáticas e ao direito positivo. Portanto, resta nítido que a resistência epistemológica e metodológica no campo do Direito deve ser superada, sendo urgente adotarmos outras formas de aprendizagem além do ensino, com a pesquisa e extensão fazendo parte da formação dos juristas do Brasil, não só do ponto de vista formal, com previsão em diretrizes curriculares, mas do ponto de vista prático, com projetos sérios desenvolvidos nos cursos de graduação, almejando uma formação sólida, crítica e emancipatória. Diante desse contexto de crises e deficiências formativas nos cursos jurídicos, analisamos, no terceiro capítulo, que a formação estudantil baseada em competências emerge como alternativa para o melhoramento qualitativo dos cursos de graduação em Direito. Os cursos deverão focar seus processos pedagógicos baseado em competências, o que pode possibilitar um momento de ruptura metodológica e epistemológica no campo da educação jurídica, abrindo espaço para fomentar abordagens até então prejudicadas pela perspectiva tradicional”.

Assim que, cumprimentando Orientadora e orientando, devolvo, sobretudo ao doutorando, a questão que fecha o trabalho:

Adotar a formação por competência, abre a possibilidade para “novas propostas pedagógicas capazes de fomentar na capacitação até então não desenvolvidas pela formação tradicional. Não se trata apenas de mudar a metodologia, mas é preciso criar estratégias de enfrentamento às crises jurídicas e formar bacharéis com foco nas demandas sociais contemporâneas, rompendo com o anacronismo que predomina nos cursos de graduação em Direito, com os conteúdos e abordagens deslocadas dos fatos socio-jurídicos”. Quais os limites e possibilidades para vencer esse anacronismo, para ultrapassar o fosso entre projetos e os fatos sócio-jurídicos e que estratégias de enfrentamento às crises jurídicas divisa? Não precisa avançar na completude dessas possibilidades e limites, mas indicar uma síntese enunciativa para questões que possam emergir, para alguma revisitação a experiências não plenamente completadas e para permitir a continuidade de uma travessia sem fim.

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua