Artigo publicado no site Brasil em 5, em 05/06/2018.
Por Pedro Brandão*
Esse é um texto homenagem.
Na última quinta-feira recebemos a notícia que o sociólogo
peruano Aníbal Quijano faleceu. O pensamento crítico latino-americano perdeu um
de seus grandes expoentes. O autor peruano é, sobretudo, um intelectual
profundamente comprometido com as lutas de nosso povo e com os explorados do
mundo
[1].
Há pessoas que não deveriam morrer nunca. Quijano certamente
é uma delas. Mesmo sem nunca ter encontrado pessoalmente o sociólogo peruano,
na quinta-feira da última semana senti como se tivesse perdido alguém muito
próximo. São partilhas de ideias somente explicadas pelas lutas e projetos
comuns.
O pensamento de Aníbal Quijano foi meu guia teórico na tese
de doutorado defendida recentemente no Programa de Pós-graduação em Direito da
Universidade de Brasília
[2]. Foi a partir da Colonialidade do poder
que analisei como raça, classe e capitalismo se articulam mutuamente na
formação do Direito oficial a partir da construção do novo marco legal da
biodiversidade (Lei nº 13.123/2015). A partir dos âmbitos de existência social
propostos por Quijano, pude investigar a incidência da Colonialidade do poder
na formação da legalidade.
Por trás de regras e procedimentos que supostamente
estabilizam o jogo democrático e o tornam neutro e imparcial, está presente a
marca da Colonialidade do poder. As estratégias da Colonialidade passam tanto
por desconsiderar o que está positivado quanto pela criação de uma nova
legalidade condicionada à colonialidade.
Foi através do trabalho de Quijano que pude compreender de
maneira mais complexa as relações entre raça e capitalismo.
Para Rita Laura Segato, são quatro as teorias
latino-americanas que cruzaram as fronteiras e impactaram o pensamento mundial,
fraturando o bloqueio dos teóricos do Norte: i) teologia da libertação; ii)
pedagogia do oprimido; iii) teoria da marginalidade e; iv)
Colonialidade
do poder. A autora ressalta, ainda, que se trata de uma teoria não
apenas para a América Latina, mas para pensar o conjunto do poder globalmente
hegemônico
[3]. Já Catherine Walsh afirma que Quijano
desafiou a história da invisibilidade da raça no pensamento político
latino-americano, o que serviu como um componente fundamental para compreender
a dominação colonial e o capitalismo como um sistema eurocentrado
[4].
A ideia de raça tem centralidade na teoria quijaniana e
permeia todas as instâncias de poder. Para o autor peruano, o colonialismo,
como domínio formal e político está quase totalmente extinto, mas, como base
cultural e social, permanece onipresente, de forma que as relações de poder que
se iniciaram há 500 anos até hoje permanecem ativas.
O eurocentramento do padrão colonial se deveu principalmente
à classificação social básica da população mundial fundada na ideia de raça. As
identidades sociais foram combinadas com a distribuição racista do trabalho e
das formas de exploração. Elas estão estruturalmente associadas e se reforçam
mutuamente
O salto teórico de Quijano é exatamente permitir a
articulação das dimensões transversais do étnico e do econômico. Nesse sentido,
Quijano propõe uma inseparabilidade entre a exploração capitalista e a
racialização como modelo constitutivo do capitalismo que se fundamentou na
colonização das Américas
[5].
Se a violência colonial fundou o capitalismo da forma como
conhecemos hoje, capitalismo e raça estão, portanto, imbricados no sistema de
exploração, sendo a raça organizadora das múltiplas hierarquias.
Essa leitura parece afastar a premissa, a partir de uma
visão conduzida por interpretações eurocêntricas do marxismo, de que a questão
racial é apenas uma consequência do capitalismo e de que determinados setores
seriam mais explorados que outros por conta de sua vulnerabilidade na
perspectiva de classes. O que Quijano parece apontar, com razão, é que a
questão racial se constitui, muito antes de uma consequência, como o processo
fundador e constitutivo do capitalismo. Por outro lado, coloca o capitalismo na
rota da formação racial, evitando análises culturalistas ou afastadas da
dinâmica econômica.
A expansão da economia capitalista – atrelada à ideia de
raça – foi também acompanhada pela expansão da Colonialidade do saber e os seus
conceitos ocidentais.
A ideia de controle do imaginário e da subjetividade também
explica que, desde a formação da América, não somente um sistema econômico foi
imposto, mas sobretudo uma poderosa forma de controle epistêmico.
Portanto, na sua ideia de totalidade heterogênea, o atual
padrão de poder consiste na articulação entre: a) a Colonialidade do poder,
tendo a ideia de “raça” como padrão universal de classificação social e de
dominação social, imposta sobre a totalidade da população do mundo; b) o
capitalismo mundial como padrão universal de exploração, uma estrutura que
articula as formas de controle de trabalho historicamente conhecidas e afeta a
totalidade da população mundial, consistindo na primeira forma global de
exploração social; c) o Estado, como forma central de controle da autoridade;
d) o eurocentrismo como forma hegemônica de controle da
subjetividade/intersubjetividade. É por isso que o padrão de poder foi, desde o
início, mundial, capitalista, eurocentrado e colonial/moderno
[6]
Nesses tempos de crise democrática, impressiona a atualidade
e permanência do seu pensamento, especialmente no Brasil, em que o sistema
mundo moderno e colonial permanece em plena operação. Sobretudo nesses tempos
de retrocessos, nunca foi tão importante, tão atual e tão central, questionar
esse sistema.
Como lembra outro grande latino-americano que nos deixou,
Eduardo Galeano, o mundo não é uma multidão de solidões amontoadas, todos
contra todos, salve-se quem puder. Ainda existe o sentido comum, o sentido
comunitário da vida e das lutas. O pensamento de Quijano deve orientar os
posicionamentos críticos ao capitalismo e imaginar novas formas de sociedades a
partir da socialização radical do poder.
Aníbal Quijano, presente, presente, presente!
* Pedro Brandão é advogado, com
doutorado em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília.
Atualmente, é coordenador técnico da assessoria da bancada do PSOL na Câmara
dos Deputados.
[1] Quijano também teve um papel ativo na
luta contra a ditadura militar peruana. Fundou, em conjunto com intelectuais,
trabalhadores e estudantes, o Movimento Revolucionário Socialista (MRS), que
participou ativamente das lutas populares no Peru. Clímaco analisa a trajetória
política e intelectual de Quijano: CLÍMACO, Danilo. Prólogo. In: CLÍMACO, Assis
(Org.).
Cuestiones y horizontes: de la dependência histórico-estructural
a la colonialidad/descolonialidade del poder/Aníbal Quijano, 1ª ed. Ciudad
Autónoma de Buenos Aires: CLACSO, 2014.
[2] O trabalho ainda não está disponível no
repositório. Há um fértil e produtivo campo de reflexões sobre o Direito a
partir da Colonialidade do Poder. Entre outros, destaco os seguintes trabalhos
que utilizam o referencial teórico quijaniano para pensar criticamente o
Direito: PAZELLO, Ricardo Prestes.
Direito Insurgente e movimentos
populares: o giro descolonial do poder e a crítica marxista ao direito,
2014. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade Federal do Paraná; TELÉSFORO,
João.
Neoconstitucionalismo, democracia neoliberal e Colonialidade do
Poder: o caso da criação do Tribunal Constitucional da Bolívia (1992-1999).
Dissertação (Mestrado) – Universidade de Brasília, 2017; BALDI, César. Contra o
apartheid epistêmico: a luta das comunidades quilombolas pela justiça
cognitiva.
Revista Crítica do Direito, v.54, p.1, 2013; BRAGATO,
Fernanda Frizzo e FERNANDES, Karina Macedo. Da colonialidade do poder à
descolonialidade como horizonte de afirmação dos direitos humanos no âmbito do
constitucionalismo latino-americano. In: BELLO, Enzo; BRANDÃO, Clarissa
(Orgs.).
Direitos Humanos e Cidadania no Constitucionalismo
latino-americano, 1ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016; BELLO, Enzo. O
pensamento descolonial e o modelo de cidadania do novo constitucionalismo
latino-americano. In: BELLO, Enzo; BRANDÃO, Clarissa (Orgs.).
Direitos
Humanos e Cidadania no Constitucionalismo latino-americano, 1ª ed. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2016; PIRES, Thula. Por uma concepção Amefricana de
Direitos Humanos. In: BELLO, Enzo; BRANDÃO, Clarissa (Orgs.).
Direitos
Humanos e Cidadania no Constitucionalismo latino-americano, 1ª ed. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2016.
[3] SEGATO, Rita Laura. La perspectiva de
la colonialidad del Poder y el giro descolonial. In: PALERMO, Zuma; QUINTERO,
Pablo (Orgs.).
Anibal Quijano. Textos de Fundación. Buenos
Aires, Argentina: Ediciones del Signo, 2014.
[4] WALSH, Catherine. Sobre el género y su
modo-muy-otro. In: QUINTERO, Pablo. (Org.). Alternativas descoloniales al
capitalismo colonial/moderno. Buenos Aires, Argentina: Ediciones del Signo,
2016, p. 166.
[5] ESPASANDÍN LÓPEZ, Jesús; ERREJÓN
GALVÁN, Iñigo. Devolviendo el balón a la cancha: Diálogos con Walter
Mignolo.
Tabula Rasa, Jun 2008, n.8, p. 300; LUGONES, Maria. Rumo a
um feminismo descolonial.
Estudos Feministas, Florianópolis,
v. 22, n. 3, p. 935-952, jan. 2015. p. 939.
[6] Entre outros textos consultados:
Quijano, Aníbal. Colonialidade, poder, globalização e democracia.
Novos
Rumos, São Paulo, ano 17, n. 37, 2002, p. 4-29; ¿Sobrevivirá América
Latina? In: PALERMO, Zuma; QUINTERO, Pablo (Orgs.).
Textos de
Fundación. Buenos Aires, Argentina: Ediciones del Signo, 2014ª;
Colonialidad
y modernidad-racionalidad. In: PALERMO, Zuma; QUINTERO, Pablo
(Orgs.).
Textos de Fundación. Buenos Aires, Argentina:
Ediciones del Signo, 2014b;
Colonialidad del poder, eurocentrismo
y América Latina. In: PALERMO, Zuma; QUINTERO, Pablo (Orgs.).
Textos
de Fundación. Buenos Aires, Argentina: Ediciones del Signo, 2014f. p
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