quarta-feira, 30 de novembro de 2022

 

A Pandemia de COVID-19 e Respostas Sociais exitosas das Comunidades Periféricas

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

Ana Paula Daltoé Inglêz Barbalho. A Pandemia de COVID-19 e Respostas Sociais exitosas das Comunidades Periféricas. Monografia apresentada como  requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília. Brasília, 2022, 71 f.

 

Detenho-me neste Lido para Você na apresentação de uma monografia de graduação em Direito, na UnB, que tive ensejo de orientar, submetida a uma exigente banca formada por minha colega de Faculdade Talita Tatiana Dias Rampin e pelo advogado José Eymard Loguércio, integrante do programa de doutoramento em Direitos Humanos e Cidadania, da UnB; mestre em Direito.

Com Talita co-organizei os dois volumes editados pela D’Plácido sobre Direitos Humanos e Covid-19, o segundo volume tratando exatamente do tema respostas sociais à pandemia (http://estadodedireito.com.br/direitos-humanos-covid-19-vol-2-respostas-sociais-a-pandemia/).

Na divulgação desse segundo volume, a Editora pôs em relevo na sua página web um recorte do Prefácio de Boaventura de Sousa Santos que é como uma senha para a sua compreensão: “Uma lição que a história pode nos ensinar se estivermos dispostos a aprender, nessa quadra em que a pandemia parece acentuar a deriva da participação da pertença, sobretudo no colapso que os governos autoritários e antipovo revelam, é a que encontramos nas respostas sociais, autogestionadas, comunitárias que os movimentos e organizações sociais estão a oferecer. Neste livro há uma boa mostra dessas respostas, que representam um alento para conter a deriva, extremamente dramática, na realidade brasileira”.

Certo, para nós os Organizadores, que o fracasso na gestão da pandemia, por incompetência e por malícia, põe em risco a saúde do povo e a própria democracia. O livro busca responder a questões que nos fazemos, a partir de uma indagação básica: “Estaremos, então, dados à destruição, assim como nossa democracia? Acreditamos que não”.

            A pandemia reforçou o nosso entendimento de que é necessário transformar a realidade a partir da revisão da forma como realizamos nossa reprodução social. Construir outro modelo de sociedade é tarefa imperativa, inclusive, enquanto espécie. E essa transformação, a nosso ver, vem sendo historicamente pautada por sujeitos coletivos de direitos, que formulam e vivenciam outras formas de construção do real, tendo em seu horizonte a preservação da vida.

O primeiro cenário, que inaugura a obra, destaca um importante ator no vetor histórico de transformação social: o sujeito coletivo de direitos.

O Direito Achado na Rua tem como uma de suas categorias centrais o sujeito coletivo de direitos, que contribui para o desenvolvimento da abordagem dialética humanista do direito formulada por Roberto Lyra Filho e pela Nova Escola Jurídica Brasileira (NAIR), na década de 1980.

Refletimos, no primeiro volume de “Direitos humanos e Covid-19: grupos sociais vulnerabilizados e o contexto da pandemia”, que a metáfora “é um convite à ampliação da reflexão sobre os espaços de reprodução do direito a partir da consideração da reprodução social”, e por isso é “direito construído em movimento, ‘em casa e na rua’, ‘na encruza’, ‘no campo’, ‘no cárcere’, ‘na rede’, ‘no rio’, ‘no lixo, nos becos, nas aldeias, nas matas’”. Trata-se de uma provocação à identificação das zonas em que as ambiguidades, as contradições e as vindicações sociais são mobilizadas em torno da formação de sociabilidades reinventadas que permitem abrir a consciência de novos sujeitos para uma cultura de cidadania e de participação democrática .

Assim, como o social se expressa, atua e é constituído é o que a obra oferece. Por isso que na obra buscamos reunir relatos e análises de algumas dessas respostas sociais, que acabaram sendo formuladas pela sociedade civil e pelos sujeitos coletivos de direito, categoria central para O Direito Achado na Rua, diante cinco cenários que impulsionaram a organização interna da publicação: Quando o Estatal colapsa é o social organizado que institui direitos: nós por nós (parte 1); Quando a universidade é pública, a pesquisa e a educação não se submetem ao mercado, não se mercadorizam (parte 2); Quando o mundo do trabalho confronta o capital e defende a vida (parte 3); Quando a crise sanitária constata os limites do sistema de justiça e problematiza a justiça a que quer acessar (parte 4); Quando a resposta social à pandemia pede um novo paradigma para a institucionalidade e a governança (parte 5).

Nessa edição Ana Paula Barbalho ofereceu um texto incluído na PARTE 1 – Quando o Estatal colapsa é o social organizado que institui direitos: nós por nós,  que é a base da monografia: “Pandemia do coronavírus e organização social: respostas exitosas das comunidades periféricas”.

A contribuição de Ana Paula é fruto de uma formação e de uma atuação político-funcional carregada de rica experiência, não fora a atual Vice-Presidenta da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Brasília, uma qualificada Mestra em Biologia Animal (UnB) e analista ambiental federal (Ministério do Meio Ambiente), atuante também na Associação Brasileira de Profissionais pelo Desenvolvimento Sustentável.

Aliás, em seguida à defesa a monografia foi a referência para a apresentação de Ana Paula no programa da disciplina Direito à Saúde, Direitos Humanos e o Direito Achado na Rua: a Construção Social dos Direitos, que integra o Curso de Direito à Saúde (Mestrado) do Programa de Pós-Graduação da Escola Fiocruz de Governo, neste 2º semestre de 2022. A disciplina regida pelo professor Swedenberger Barbosa e por mim. Ali, em interlocução com alunos e alunas de todo o País, procedentes de diferentes áreas de conhecimento com atuação no sistema de saúde, o tema e a Autora deram consistência ao debate programático.

A monografia, trabalho de conclusão de curso de direito, não é pois trabalho de iniciante, mas incidência numa variante de sua formação – o Direito – para lhe conferir mais consistência.

 É o que se antecipa da leitura, a partir de atenção ao resumo do trabalho:

A pandemia do Coronavírus evidenciou as desigualdades sociais e as aprofundou em contextos urbanos de territórios vulneráveis como as comunidades periféricas. O presente trabalho pretende listar e registrar iniciativas de combate à pandemia de Coronavírus resultantes da organização social das comunidades periféricas brasileiras e seus impactos frente à pandemia do Coronavírus, refletindo sobre as inovações propostas diante de cenários complexos e de incerteza. 

Diferentes metodologias de coletas de dados foram utilizadas, em modalidade virtual, a partir da busca ativa de informações em diversas plataformas de comunicação, depoimentos dos coordenadores das redes comunitárias, de palestras e de intervenções em seminários virtuais depositados em diversas plataformas e utilizando dados governamentais. Buscou-se listar, categorizar e registrar alguns dos resultados obtidos entre março de 2020 e maio de 2021. 

Por serem populações marginalizadas e tradicionalmente invisibilizadas, existe uma dificuldade no mapeamento das ações locais, que possuem diferentes amplitudes, dimensões, capacidades de mobilização, públicos-alvo, mecanismos de comunicação e objetivos. 

De maneira geral, as iniciativas sociais nas favelas são estruturadas em redes comunitárias voltadas a segurança alimentar, a distribuição de materiais de higiene e limpeza, a ações para geração de renda e a manutenção e o fortalecimento de comércio local, o acesso à saúde e cuidados e prevenção em saúde, especialmente no controle da pandemia do Coronavírus, a produção e difusão de informações e conteúdos seguros e a apoio a artistas e grupos culturais locais. 

Ações, atores e organizações protagonizam reações potentes, efetivas, criativas e construtoras da realidade e de alternativas para a ausência histórica do Estado. A fundamental atuação das lideranças populares locais nas ações de mitigação da pandemia nas comunidades traz a necessidade urgente da democratização do debate do futuro das cidades e da agenda urbana pós-pandemia, de maneira a considerar imprescindíveis as tecnologias sociais desenvolvidas. 

 

A monografia está organizada conforme um roteiro inteiramente amigável para a compreensão e inteligibilidade da proposta. Destaca-se a oferta de consistente metodologia cuja resultante mais interessante é a elaboração de um thesaurus (tesauro, tesouro), no melhor sentido de um indexador de repositórios de informações, eventos e registros de atuações e iniciativas organizadas pelos coletivos das comunidades e de movimentos sociais, indicados nas notas e na Bibliografia.

             Destaco o Sumário distribuído em:

DESENVOLVIMENTO        

O Brasil de 2022         

Direitos Fundamentais e Direitos Humanos              

Histórico e conceito    

Direito à Saúde no Brasil        

O investimento de recursos na saúde pública no Brasil         

O Coronavírus e a pandemia de COVID-19  

A Pandemia, a ADPF 822/2021 e o descaso que gera um “Estado de Coisas Inconstitucional”     

             

A PANDEMIA DE COVID-19 E AS RESPOSTAS EXITOSAS  DAS COMUNIDADES PERIFÉRICAS

A pandemia no Brasil             

A pandemia de COVID-19 e o acesso a Direitos das populações  periféricas 

Breve introdução sobre as comunidades periféricas              

A pandemia nas populações periféricas         

Informando sobre a pandemia para uma audiência periférica 

Registro das Iniciativas Comunitárias            

Cumprindo as recomendações sanitárias em contextos de baixa infraestrutura

             

Da Conclusão da monografia recorto o que diz a Autora:

A reação social nesse contexto, conduzindo a mudança de prognóstico de desastre da pandemia do Coronavírus para as populações faveladas para controle e cenário de soluções concretas mostra a força e a resiliência das comunidades no enfrentamento de desafios coletivos. O aprendizado resultante dessas experiências, o conjunto da atuação das lideranças comunitárias e a forma múltipla de organização social compõem valioso repertório de estratégias e ações. 

Em uma perspectiva para além da pandemia, são importante referencial de tecnologias sociais de baixa tecnologia, elevada eficiência na utilização de recursos e alta penetrância nos territórios transformando-se em referencial para a construção de políticas públicas que devem, necessariamente, integrar a organização social já existente às soluções propostas. A rede comunitária, estruturada a partir de seus territórios, necessariamente deve fazer parte das soluções e considerada como elemento fundamental na definição das agendas e escolhas de implementação de políticas públicas para a superação de desigualdades estruturais.

A fundamental atuação das lideranças populares locais nas ações de mitigação da pandemia nas comunidades traz a necessidade urgente da democratização do debate do futuro das cidades e da agenda urbana pós-pandemia. Importante enfatizar que, por se tratar de populações marginalizadas, existe uma dificuldade no mapeamento das ações locais que possuem diferentes amplitudes, dimensões, capacidades de mobilização, públicos-alvo, mecanismos de comunicação e objetivos. Ações, atores e organizações protagonizam reações potentes, efetivas, criativas e construtoras da realidade e de alternativas para a ausência histórica do Estado.

Registrar as iniciativas, os formatos e principais características dessas ações se coloca como instrumento de luta pela garantia de direitos fundamentais e demonstra a potência das comunidades periféricas na luta pela sobrevivência e a importância da sua capacidade organizativa frente aos desafios para além do contexto da pandemia do Coronavírus. Nesse sentido, é necessário novo olhar sobre a importância da participação social na construção de uma sociedade brasileira mais justa e menos desigual. 

 

A monografia confirma a força do social mobilizado nos espaços públicos simbolizados pela metáfora da rua, tal como o expressamos os mesmos organizadores a partir da edição de DIREITOS HUMANOS E COVID-19. Grupos sociais vulnerabilizados e o contexto de pandemia. Organizadores: José Geraldo de Sousa Junior, Talita Tatiana Dias Rampin e Alberto Carvalho Amaral. Prefácio de Boaventura de Sousa Santos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2021(http://estadodedireito.com.br/direitos-humanos-e-covid-19/).

Ainda que se tenha, em tempos de pandemia, a rua sensivelmente esvaziada, já que são preenchidas, com todos os riscos e adversidades inerentes, pelos necessitados, precarizados, obrigados a se expor para garantir uma condição mínima para si e sua família, ao lado dos impertinentes negativistas, negadores e afrontadores, que amealharam uma discussão política mais profunda em um triste episódio de desrespeito à razoabilidade, sem qualquer empatia para os demais e, pior, sem qualquer estima por sua própria situação e das pessoas próximas a si.  Mas se a rua é esvaziada, de outro lado, esta rua indiscutivelmente irá adentrar nos lares e os locais, antes públicos, são publicizados por formas diversas, que acabam por ressignificar e reposicionar questões históricas e sentidos novos.

Mesmo nesse cenário, mostra-se pertinente a compreensão de que a “rua”, externa ou intrusivamente incluída, é ainda o lugar simbólico do acontecimento, do protesto, do gesto paradigmático que, como divisa Marshal Berman, “transforma a multidão de solitários urbanos em povo e reivindica a rua da cidade para a vida humana”, lugar democrático que agora, no Brasil, felizmente é recuperado, resgatado do fascismo, para a retomada de um percurso emancipatório, aqui e ali turbado, mas nunca contido.

 

 

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.

quarta-feira, 23 de novembro de 2022

 

Instabilidade presidencial e destituição abusiva: uma análise do julgamento por crime de responsabilidade de Dilma Rousseff

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

Instabilidade presidencial e destituição abusiva: uma análise do julgamento por crime de responsabilidade de Dilma Rousseff / Magnus Henry da Silva Marques. Tese (Doutorado – Doutorado em Direito) — Universidade de Brasília, 224 p.

 

Conclui a leitura desta tese duplamente inédita. Primeiro, tal como indica o seu título, o constituir-se um bem posto estudo acadêmico – há muitos de natureza mais política, na linha da denúncia, que estuda a violência de interrupção de um mandato presidencial com as características do que foi exercitado pela Presidenta Dilma Roussef; há obras com a extensão generalizadora desse procedimento, forte no substrato mais atento que é a crítica ao chamado lawfare; há até filmes, alguns excepcionais, entre eles o assinado com a direção da querida amiga Guta Ramos – que mergulha fundo no exame histórico-político do sistema institucional e do constitucionalismo para categorizar o que o autor designa como um “giro institucional que transforma o impeachment em um mecanismo para superar crise entre poderes [que] se apresenta como uma forma de o presidencialismo da região (América Latina) apresentar elementos de parlamentarismo [e se funcionalizar] como um instrumento encontrado pela ordem político-constitucional dos países da região para assegurar a continuidade do regime democrático”.

Perante uma qualificada Banca Examinadora, constituída sob a presidência do Orientador Professor Alexandre Bernardino Costa, os Professores Talita Tatiana Dias Rampin e Menelick de Carvalho Netto, da Universidade de Brasília; Professor  David Sánchez Rúbio, da Universidade de Sevilha e Professora Juliana Neuenschwander Magalhães, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, submeteram a prova o autor, interpelando-o sobre todos os fundamentos.

A tese, conforme o resumo:

Estuda o fenômeno da instabilidade política na América Latina e seus impactos para as ordens social e constitucional da região. Identifica critérios para reconhecer o uso abusivo das ferramentas constitucionais de destituição presidencial. Revisa a literatura sobre o presidencialismo na América Latina e sobre o fenômeno da instabilidade política na região para entender como as quedas presidenciais têm ocorrido desde a onda de democratização da década de 1980 e para verificar se a literatura sobre o tema tem identificado o uso abusivo da destituição presidencial. Por meio da teoria da dependência e das formulações de Florestan Fernandes sobre o Estado existente no capitalismo dependente, avalia os fatores não institucionais para a permanência da instabilidade política após a onda de democratização na América Latina na década de 1990. Identifica as balizas normativas dos mecanismos de impeachment para verificar a compatibilidade entre elas e o uso desse instituto como substituto aos mecanismos ordinários de sucessão presidencial. Analisa as decisões do Sistema Interamericano de Proteção em Direitos Humanos sobre destituição de autoridades civis de seus cargos por algum procedimento previsto na legislação nacional e que avaliam a imposição de pena de inabilitação por uma conduta não prevista na legislação penal, encontrando, nos documentos, a orientação de que a decisão aplicadora de qualquer penalidade deve se submeter ao princípio da legalidade. Realiza um mapeamento de processo dos eventos que culminaram na deposição de Dilma Rousseff ocorrida em 2016 com o objetivo de encontrar critérios para identificação do uso abusivo do impeachment. Conclui que a utilização do impeachment como alternativa aos processos ordinários de sucessão presidencial engendra um movimento de veto à agenda de governo escolhida pela soberania popular.

Afinal, aprovada, ela se fez aceita pelos indiscutíveis méritos teórico-políticos desenvolvidos pelo Autor, o que bem se pode aquilatar pela leitura do trabalho. Bem documentado, apoiado em estudo de caso – o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff – e cuidada bibliografia, pensando eu que a Banca atuou bem em confirmar e homologar a qualidade da tese.

Há pouco referi-me ao que considero uma leitura que, embora correta na sua perspectiva interpretativa, como que “funcionaliza” a análise, enredando-se no procedimental que abstrai o político de suas injunções dramáticas ou problemáticas, e confina o real no formal, mesmo constitucional, para lembrar Gomes Canotilho quando adverte para o estiolamento que o formal provoca, subtraindo da análise, inclusive teórica, a vigilância do olhar interpretativo sobre a exigências do legítimo que só pode ser aferido a partir da sociedade e da justiça e não das narrativas que pretendam delas apropriar-se.

O Autor adota, a perder a conta da aplicação do vocábulo, a expressão ferramenta, quase a ponto de circunscrever o real que se manifesta nesse processo, numa instrumentalidade apta a “indicar a formação de novas maneiras de solucionar problemas [de] instabilidade presidencial [erigida assim] como uma espécie de evolução institucional encontrada pelo presidencialismo latino-americano para tornar o sistema de governo mais flexível e, principalmente, para livrar a região do espectro da intervenção militar”.

O Autor chega a aludir à criação de um “otimismo democrático associado à sensação de que a região latino-americana finalmente viveria um estável e longo período de integração, pelo funcionamento ordinário da política local, de setores sociais excluídos, de funcionamento das instituições e, principalmente, capaz de permitir que o povo latino-americano constituísse práticas institucionais e constitucionais adequadas à sua realidade”. E até arremata: “Foi o entusiasmo gerado por esse otimismo democrático que fez surgir uma literatura que identificou a consolidação de um Novo Constitucionalismo Latino-Americano”.

Felizmente logo se vê que o Autor não se deixa enredar nesse ilusionismo funcional e celebratório. Têm suficiente cautela epistemológica para “identificar os padrões presentes nas crises” e seus desfechos.

Assim que, para o Autor:

Não é suficiente para garantir a higidez do procedimento de destituição presidencial nem muito menos sua legitimidade a utilização de um mecanismo previsto na Constituição. A noção de constitucionalismo abusivo, trazida por David Landau (2013), assegura que isso seja é insuficiente ao revelar que os ataques à democracia se alteraram de tal modo que as ferramentas constitucionais passaram a ser usadas, de forma velada, como instrumentos de subjugação do regime democrático.

Em que pese não ser uma novidade na história das constituições o uso da legalidade para objetivos autoritários (BARROS, 2004; LANDAU, 2013; PEREIRA, 2010), o constitucionalismo abusivo descreve um fenômeno por meio do qual o uso autoritário das ferramentas constitucionais não cria um regime abertamente autocrático, mas sim um de característica híbrida. Isso dificulta que tanto a sua identificação como a criação de mecanismos que protejam a democracia desse ataque com natureza furtiva. Dessa forma, os mecanismos clássicos de proteção da democracia constitucional – como as cláusulas democráticas, presentes nos tratados internacionais; a noção de democracia militante; e as vedações às alterações no texto da constituição – não são capazes de dar resposta a esse tipo de ameaça ao regime democrático uma vez que foram forjados para identificar e reagir a ações cujo caráter antidemocrático é expresso.

O constitucionalismo abusivo é produto de um contexto no qual existe uma reduzida tolerância a regimes abertamente autoritários, o que tornou obsoletas as estratégias clássicas de golpes (LANDAU, 2013). Em um cenário como esse, as aspirações autocráticas precisaram forjar mecanismos de legalidade fluída capaz de tornar no máximo duvidoso o caráter democrático do regime criado por eles. Por isso, se tornou instrumental a utilização de dispositivos constitucionais para subjugar a democracia, afinal, com essa estratégia, é possível escamotear as intenções antidemocráticas. Uma realidade como essa impõe como agenda de pesquisa a todos os pesquisadores e pesquisadoras do Direito Constitucional essa nova modalidade de ameaça à democracia constitucional.

Esse uso contraditório do constitucionalismo para destruir as bases da democracia tem como principal meio as alterações na Constituição (LANDAU, 2013), mas não é restrito a elas. É comum que o constitucionalismo abusivo seja usado para subjugar a oposição, o que depõe para a possibilidade de uma ferramenta que pode significar um veto a uma agenda política de determinado grupo, como o impeachment, ser uma forma de materialização desse fenômeno. Por isso, é fundamental que seja investigado o uso abusivo da destituição presidencial e seus efeitos para ordem constitucional do país que a enfrenta.

Por isso considero valiosas as conclusões a que o Autor chega, quando transpõe a a dimensão ilusória do problema para além do epifenômeno do institucional exibido pela discursividade particularmente a legal. Indo fundo na interconexão entre realidade e representação, o Autor encontra nas implicações entre a economia (relações de dependência) e representações (legitimação das hegemonias), o esclarecimento teórico que arrima essas conclusões, valendo-se das teses de Rui Mauro Marini, meu antigo colega na UnB, cujo exílio o deslocou para a condição de um leitor que pensa em espanhol, porque ainda não se traduzem as suas elaborações para o português.

 De fato, conclui o Autor:

Então, há incompatibilidade entre o uso do impeachment tal como defendido pela literatura pragmática (GINSBURG; HUQ; LANDAU, 2021; KLARMAN, 1999; PÉREZ-LIÑAN, 2018) e a sua natureza normativa e institucional. Por ser um procedimento normativamente orientado, é possível encontrar critérios importantes para identificação de seu uso abusivo: o descumprimento por parte da autoridade julgadora das hipóteses autorizativas da destituição presidencial ou a utilização de razões político-partidárias para a imposição de restrições significativas a direitos políticos da autoridade julgada e da comunidade política que escolheu uma agenda de governo para guiar a elaboração de políticas públicas.

A investigação sobre a relação entre dependência e instabilidade política, por seu turno, permitiu a identificação das razões não institucionais desse último fenômeno e, principalmente, a função social cumprida por ele nos países da América Latina. Com isso, foi possível verificar que o fenômeno da instabilidade, na ordem social formada a partir do capitalismo dependente, cumpre a função de assegurar a continuidade do padrão de acumulação baseado na superexploração do trabalho. Isso porque, para os setores beneficiados por ele, a instabilidade serve de mecanismo para deprimir a capacidade de pressão reivindicativa dos setores que sofrem com as iniquidades do modo de produção realmente existente na região projetadas também sobre o exercício do poder.

Como o modo de produção existente na América Latina precisa compensar a transferência de valor para o centro do capitalismo, para tanto, a acumulação de capital para as elites locais precisa contar com estratégias econômicas (como a constituição de um exército de reserva de trabalhadores para pressionar para baixo o rendimento do trabalho) e políticas (como exclusão de uma parcela significativa dos trabalhadores do processo de tomada de decisão e contenção de processos de ampliação de direitos). A ordem social do capitalismo dependente, portanto, conta com a redução da capacidade reivindicativa de setores que compõem a classe trabalhadora para poder se reproduzir. Para isso, há um processo de contenção de espaços abertos no poder para que a participação de movimentos políticos dos de baixo não coloquem em risco o padrão de acumulação de capital e as práticas que mantêm possível a reprodução dessa ordem social.

Então, nessa ordem social, a instabilidade política pode cumprir a função de disponibilizar às classes sociais beneficiadas por ela uma ferramenta de promover veto às escolhas feitas pela soberania popular quando elas coloquem em risco a sua reprodução e a continuidade do padrão de acumulação baseado na superexploração do trabalho. Como, no passado, havia uma certa tolerância com práticas abertamente ilegais por conta do contexto de guerra-fria, esse fenômeno foi executado por meio de golpes. Porém, com a obsolescência desse tipo de estratégia decorrente da baixa tolerância atual às rupturas democráticas abertas, houve um transformismo das práticas de ameaça às democracias para ações furtivas de esgotamento da ordem democrática. Diante disso, saber apenas se determinado ato foi praticado seguindo o rito previsto na Constituição importa pouco para identificar a ocorrência ou não do uso abusivo da destituição presidencial. Afinal, é possível que a América Latina tenha forjado um padrão de quedas presidenciais com aparência de legalidade para servir de equivalente funcional das práticas extralegais do passado. Então, é possível apontar outros critérios para identificação do uso abusivo do impeachment: se o uso das ferramentas constitucionais se deu de modo compatível com a natureza delas e com as balizas legais e constitucionais impostas a elas, bem como perquirir sobre a função social cumprida por ela.

Por seu turno, com o mapeamento do processo do impeachment de Dilma Rousseff, a tese confirmou a possibilidade de o uso dessa ferramenta como substituto aos meios ordinários de sucessão presidencial engendrar um processo de veto à agenda de governo escolhida pela soberania popular. Afinal, não ficaram apenas nas promessas as movimentações dos setores defensores do impeachment de pôr fim à estratégia de desenvolvimento adotada pelos governos do PT. Ao contrário, após a forte pressão para que o governo de Dilma adotasse a agenda social do neoliberalismo de encerrar a política de valorização real do salário-mínimo e de intervenção do Estado sobre a economia, com a sua destituição, a agenda de austeridade e a pulsão revisionista da Constituição foram efetivamente implantadas.

Por fim, foi possível identificar que o impeachment de Dilma Rousseff foi a manifestação de um conflito essencial às experiências constitucionais da América Latina entre a capacidade de a ordem constitucional regular efetivamente o exercício do poder e as exigências do modo de produção realmente existente na região pela manutenção do padrão de acumulação de capital a ele inerente. Sendo assim, a utilização do impeachment como uma alternativa não eleitoral para impor uma agenda política sem amparo na escolha da soberania popular não apresenta nenhuma novidade no conteúdo, tendo em vista que funciona como equivalente funcional das vias extralegais do passado ao: servir para impor veto à agenda escolhida pela soberania popular; ser instrumento para deprimir a capacidade reivindicativa dos setores da classe trabalhadora; suspender qualquer ameaça ao padrão de acumulação baseado na superexploração do trabalho.

Nessa linha de explicação, não há como escapar da designação clássica que a sofisticação das teses possa disfarçar. Vencida a “inércia da tradição”, é até possível o conservadorismo elaborar uma alternativa progressista (A Inércia da Tradição. José Nunes de Cerqueira Neto. Brasília: Colenda, 2022). Ou então, tudo se resolve com o Golpe. Chamo a atenção para o livro DEMOCRACIA: DA CRISE À RUPTURA. Jogos de Armar: Reflexões para a Ação.  Roberto Bueno (Organizador). São Paulo: Editora Max Limonad, 2017, 1131 p.

Presentei a obra aqui neste espaço da Coluna Lido para Você (http://estadodedireito.com.br/democracia-da-crise-a-ruptura/). O livro, eu disse, uma obra alentada, com suas 1131 páginas, média dos volumes organizados pelo Professor Roberto Bueno, da Universidade Federal de Uberlândia que concluiu sua edição quando se encontrava em programa de cooperação técnica na Universidade de Brasília, tem continuidade ainda na edição publicada em 2018, pela mesma Editora Max Limonad, o professor Roberto Bueno publicou outro volume também muito denso, 641 páginas, com o título Democracia Sequestrada. Oligarquia transnacional, pós-neoliberalismo e mídia.

 No livro de 2018, a finalidade é “a análise e a exposição pública de uma dura, inflexível, cruel e universal forma de poder e domínio aqui classificada como oligárquica-pós-neoliberal (e) seu exitoso desiderato (é) o de sequestrar a democracia de suas raízes sobreano-populares, e para isto (lançar) mão de instrumentos de domínio midiático-judicial-parlamentares articulados pela esfera financista oligárquico transacional”.

Estudioso do pensamento autoritário, que inclui referências teórico-doutrinárias, engajadas em projetos políticos de traços despóticos, desde Carl Schmitt, no contexto filosófico a partir de sua contribuição ao nacional-socialismo alemão; a Francisco Campos, que serviu à ordem ditatorial brasileira em seus diferentes momentos no Estado Novo e na Ditadura civil-militar de 1964-1985, o professor Bueno se tornou um voz acadêmico-militante contra o golpe parlamentar-judicial-midiático que se estabeleceu no Brasil desde 2016.

Convidado a participar da obra, contribui com um texto afinado com seu projeto, mas que se originou de provocação anterior que me havia sido feita em outro programa editorial. Denominei meu artigo de Estado Democrático da Direita.

 Nele, parto de uma observação do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos se presta bem para abrir este texto (1993: 73). Na sua posição de enfrentamento ao modelo capitalista de constituição da sociedade, ele afirma que não combate o capitalismo porque ele é democrático.  Para ele o capitalismo até logra cumprir as promessas democráticas que faz. Instituir, por exemplo, um estado de direito, com arcabouço legislativo, incluindo a sua principal expressão, qual seja, a de institucionalizar uma Constituição e nela, estabelecer o sistema de separação de poderes e a proteção aos direitos humanos (conforme a designação contida na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, “não será constituição a que não assegure a separação dos poderes e a proteção aos direitos do homem”).

 Para Boaventura, entretanto, o capitalismo, não pode ser plenamente democrático, porque a sua promessa carrega um vazio de possibilidade, conseqüente ao seu princípio ativo, a acumulação egoísta tendente a uma distribuição excludente e a sua representação ideológica, expressa no formalismo jurídico, que tudo promete formalmente, mas que pouco concretiza no plano material.

Para lembrar Ferdinand de Lassale (o antigo correligionário de Marx, depois bandeado para a articulação organizada por Bismark, para constituir o estado burguês alemão) e seu conceito de Constituição, se essa não realiza a expressão material dos “fatores de poder” que são a sua essência material, ela será não mais que uma forma jurídica e, em última análise, uma “mera folha de papel”.

            Digo tudo isso para lembrar, no Brasil, o alcance desse sentido retórico da institucionalização pelo jurídico, pondo em relevo o fato de que todas as experiências autoritárias de nossa formação social, tomaram forma jurídica. Todo o regime de 1964, com a ditadura que se instalou no País, se representou com forma jurídica, inclusive constitucional, mantendo a Constituição de 1946, promulgando a sua própria de 1967 e afeiçoando-a ao seu recrudescimento autoritário com a emenda plena de 1969 (que muitos denominam de Constituição), todas circunscritas a um sistema normativo sobre determinante, denominado Ato Institucional (como expressão “constituinte” do poder “revolucionário”, com todas as aspas possíveis).

Anote-se o quanto, nessa medida, o “sistema” incorporou a expressão  formal do Direito, com a linguagem atualizada das garantias fundamentais, indicando em seu texto a vigência do habeas corpus e da salvaguarda de exame judicial dos atos administrativos, enquanto no cotidiano de governança, se censurava, se torturava e se praticavam assassinatos políticos, sob a reserva de resguardo à “segurança nacional”, a partir de ações interditadas ao alcance de habeas corpus ou à apreciação de sua própria legalidade pelo Poder Judiciário (Cf meu livro com ANTONIO ESCRIVÃO FILHO Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos. Belo Horizonre: Editora D’Plácido 2016).

Lembro a Magnus. É nesse passo que o Estado de Direito Democrático se converte em Estado Democrático de Direita. Esse passo se dá na medida em que a convergência entre os interesses de poder e de acumulação capitalista, já não assimila sequer o discurso democrático, mesmo retórico, como por exemplo, o que se prestou a legitimar a sua emergência hegemônica para se afirmar como expressão dominante (a burguesia patrimonialista francesa afirmando os direitos do homem para arrebatar à aristocracia seus bens dominiais e seu poder político). Ou, no golpe de  Luiz Bonaparte (ironicamente chamado por Marx de o 18 Brumário de Luiz Bonaparte), escancarando situações em que a sua própria legalidade se torna um estorvo: “A legalidade nos sufoca”, proclamava Odilon Barrot, o chefe de governo contra a legalidade “dele”, para por em prática a política reacionária de restrição às liberdades de imprensa e de reunião e de dissolução dos “clubes” e outras formas de organização da oposição política à nova ordem instalada com o golpe (MARX, 1974: passim), configurando sempre A História de um Crime, como o classificou Victor Hugo.

 Ou ainda, o que assistimos agora em nosso próprio País, tal como registra a Tese, com a Constituição arguida contra a própria Constituição, para dela extrair-se, com o uso meramente formal de um enunciado, vale dizer, a previsão de aplicação de procedimento de afastamento do Presidente ou da Presidenta da República, uma retórica mobilizadora de engajamentos (sociais, políticos, jurídicos), delirantes de seu necessário fundamento material, a precisa tipificação de conduta que assim possa ser configurada como crime que justifique o afastamento (impeachment). Por isso, a configuração desse processo como um golpe, sem armas, sem quartelada, mas uma ruptura com a base de legitimidade do sistema constitucional-jurídico, um atentado à democracia, uma forma de traduzir, sem nenhuma sutileza, o Estado Democrático da Direita, que se vale da lei para esvaziá-la de suas melhores promessas.

Aqui entra em causa um outro modo, esse mais sutil, de identificar o Estado Democrático da Direita. Refiro-me a sua disponibilidade para usurpar, apropriar-se e investir-se das representações e das narrativas simbólicas das conquistas históricas e jurídicas conferidas nas lutas travadas pelos sujeitos individuais e coletivos por reconhecimento da dignidade humana, da cidadania e dos direitos.

É nesse ponto que ao Constitucionalismo Latino-Americano procuramos agregar uma nota de qualificação, falando de Constitucionalismo Achado na Rua. Com pesquisadores do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua (Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq), organizamos o livro O Direito Achado na Rua: questões Emergentes, revisitações e travessias (SOUSA JUNIOR, 2021), um capítulo é dedicado ao tema: Constitucionalismo Achado na Rua, com os temas A Democracia Constitucional e a Proposta para um Constitucionalismo Inclusivo no Brasil, de Bárbara R. R. C. de Oliveira, Jean Patrício da Silva, João Paulo Santos Araújo, Samuel Barbosa dos Santos e Betuel Virgílio Mvumbi; e O Constitucionalismo Achado na Rua, os Sujeitos Coletivos Instituintes de Direito e o Caso APIB na ADPF nº 709, de Marconi Moura de Lima Barum, Mauro Almeida Noleto, Priscila Kavamura Guimarães de Moura e Renan Sales de Meira.

É sempre estimulante poder construir com os compromissos de engajamento, sobretudo epistemológico, escoras teóricas para anaçar nessas emergências, revisitações e travessias, em arcos de cooperação não apenas orgânicos – os Grupos de Pesquisa – mas nos encontros conjunturais com aliados acadêmicos nos eventos, disciplinas e projetos que nossos coletivos de ensino, extensão e pesquisa proporcionam.

É nesse ambiente que podemos localizar abordagens instigantes que acolhem os achados desse processo, assimilando-os as suas estruturas de análise e de aplicação, e prorrogando seu alcance heurístico para novos níveis de discernimento. Assim, nesse recorte aqui realizado, o texto de Antonio Carlos Bigonha (Subprocurador-Geral da República, atua na 2a. Seção do Superior Tribunal de Justiça, proferindo pareceres em Direito Privado. Foi presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (2007/2011) e coordenador da 6a. Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais da PGR (2019/2021), além de destacado compositor, pianista e mestre em Música pela Universidade de Brasília. O texto, originalmente publicado na página do IREE, Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa, foi reproduzido pelo Expresso 61 (https://expresso61.com.br/2022/02/17/darcy-ribeiro-a-unb-e-o-constitucionalismo-achado-na-rua/), com o título Darcy Ribeiro, a UnB e o constitucionalismo achado na rua:

A interpretação constitucional que setores retrógrados da magistratura e do Ministério Público adotaram para o exercício arbitrário de suas prerrogativas e atribuições, ao longo dos últimos 30 anos, faria corar monges de mármore, para usar uma expressão muito referida pelo ministro Gilmar Mendes, em sessões de julgamento no STF. Desconheço em que fonte foram beber seu fundamento teórico, fruto talvez de uma corrupção semântica, resultado da leitura equivocada da matriz germânica ou estadunidense. Neste contexto, o Direito Achado na Rua afirma-se como um poderoso vetor hermenêutico, uma abertura capaz de barrar os exageros do neoconstitucionalismo e oferecer novas epistemologias que conduzam à interpretação da Constituição e das leis do País para a afirmação e o fortalecimento dos direitos humanos, segundo uma agenda comprometida com os interesses do nosso povo. E ouso supor que Darcy Ribeiro e Machado Neto subscreveriam, novamente, esta virada hermenêutica.

Em comunicação oral realizada no GT 12- Constitucionalismo achado na rua, por ocasião do Seminário Internacional O Direito como Liberdade – 30 Anos do Projeto O Direito Achado na Rua, Menelick de Carvalho Netto e Felipe V. Capareli, com o título “O Direito Encontrado na Rua, a Luta por um Constitucionalismo Plural e Inclusivo, e a necessidade de enfrentar o risco autoritário de uma política simplista e privatizante. Visão dicotômica do Estado e do Direito” (Revista da Defensoria Pública do Distrito Federal (RDPDF, 2019, vol. 1, n. 2) – Dossiê Ordenamentos jurídicos, monismos e pluralismos: O Direito Achado na Rua e as possibilidades de práticas jurídicas emancipadoras), também extraem consequências dessa dimensão constitucional estabelecida na rua.

É com esse acumulado que chegamos ao Seminário Internacional O Direito como Liberdade: 30 Anos do Projeto O Direito Achado na Rua, realizado em Brasília, na UnB, em dezembro de 2019. No programa toda uma seção (Seção III) para o tema Pluralismo Jurídico e Constitucionalismo Achado na Rua. Esse material veio para o volume 10 da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade. Brasília: Editora UnB/Editora da OAB Nacional, 2021. Na seção podem ser conferidos os textos: Pluralismo Jurídico Comunitário-Participativo: processos de descolonização desde o Sul, de Antonio Carlos Wolkmer; A Contribuição do Direito Achado na Rua para um Constitucionalismo Democrático, de Menelick de Carvalho Netto; Constitucionalismo Achado na Rua em México: de los acuerdos de San Andrés al concejo indígena de gobierno, de Jesús Antonio de la Torre Rangel; O Direito à Alimentação como um Direito Humano Coletivo dos Povos Indígenas, de Raquel Z. Yrigoyen Farjado; e Constitucionalismo Achado na Rua: reflexões necessárias, de Gladstone Leonel Júnior, Pedro Brandão, Magnus Henry da Silva Marques (SOUSA JUNIOR, 2021). Obssrve-se que Magnus forma protagonismo autoral nessa vertente.

É importante “recordar que o constitucionalismo é permanente tentativa de se instaurar e se efetivar concretamente a exigência idealizante que inaugura uma modernidade no nível da organização de uma sociedade complexa, incapaz de lançar mão de fundamentos absolutos e que, por isso, só pode legitimar seu próprio sistema de direitos na medida em que os potenciais podem se reconhecer como coautores e autoras das normas que os regem. Ou seja, ou o direito é constitucionalmente achado na rua e nas ruas, e com as ruas, é construído e reconstruído de forma plural e inclusiva, ou, sem dúvida, tende-se a privatizar o próprio Estado, mediante a colonização do direito por uma lógica simplista binária de cunho plebiscitário e na da democrática, pois infensa a qualquer eficaz debate”.

Voltando ao constitucionalista português J. J. Gomes Canotilho, em sede de debate que envolve teorias de sociedade, teorias de justiça e teorias constitucionais, cuida-se de ter atenção à multiplicidade de sujeitos que se movem no debate constitucional contemporâneo que tende a abrir expectativas de diálogo político estruturado na linguagem do direito, gerando na expressão dele, “posições interpretativas da Constituição” que emergem desse processo  e formam uma luta por posições constituintes, luta que continua depois de aprovada a constituição (CANOTILHO, J. J. Gomes. Cf. Entrevista que me concedeu: Pela Necessidade de o Sujeito de Direito se Aproximar dos ‘Sujeitos Densos’ da Vida Real.  Constituição & Democracia. Brasília: Faculdade de Direito da UnB, n. 24, julho de 2008, p.12-13), luta travada pela disposição a ir para o meio da rua, pois “do outro lado da rua, o ‘direito achado na rua’ e, perante o sangue vivo que brota dos vasos normativos da realidade e a sedução de um direito outro, ao direito formal das constituições, códigos e leis, compreende-se que o discurso hermenêutico dos juristas mais não seja que um manto ocultador do insustentável peso do poder”.

 

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Ru

 

Instabilidade presidencial e destituição abusiva: uma análise do julgamento por crime de responsabilidade de Dilma Rousseff

domingo, 20 de novembro de 2022

 

Artigo CJP-DF | Dos Movimentos Populares Depende a Direção para o Momento Histórico que o Brasil vai Tomar

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Tomamos a afirmação que abre esse artigo da Coluna Justiça e Paz, de mensagem que o Papa Francisco enviou aos participantes do encontro dos Movimentos Populares realizado em Modesto, Califórnia, em fevereiro de 2017.

 

Esse foi um primeiro de vários encontros que Francisco vem sistematicamente mantendo com os Movimentos Sociais, suas organizações, no sentido de fortalecer o fundamento social de seu pontificado que pode ser inscrito na consigna da “Teologia dos três Ts: terra, teto e trabalho”.

 

Na Bolívia, no Peru e por último em Roma (de modo virtual por causa da pandemia), o Papa realçou a fraternidade e a transparência das conversas, que têm permitido ser possível falar “sobre muros e medo; sobre pontes e amor”, temas que desafiam os valores mais profundos para re-humanizar o mundo, coisificado pela ganância e pelo egoísmo, em sua exacerbação neoliberal.

 

Disse o Papa: “Sabemos que nenhum destes males teve início ontem. Desde há tempos enfrentamos a crise do paradigma imperante, um sistema que causa sofrimentos enormes à família humana, atacando ao mesmo tempo a dignidade das pessoas e a nossa Casa Comum, para sustentar a tirania invisível do dinheiro, que garante apenas os privilégios de poucos. «A humanidade vive um momento histórico» (Papa Francisco, Evangeliigaudium, n. 52)”.

 

Numa disposição militante, quase encarnada e da rua, o Papa vem se fazendo presente em todas as oportunidades em que o diálogo intercultural possa construir mediações para o resgate das dimensões políticas que concretizem Justiça e Paz.

 

Mas, o mais importante, na escala de todas essas interlocuções, é a percepção do Pontífice de que, “da participação dos povos como protagonistas, e em grande medida de vós movimentos populares, dependem a direção que este momento histórico tomar e a solução desta crise que continua a exacerbar-se”.

 

Pensamos que a iniciativa anunciada de que os Movimentos Sociais, Populares e Sindicais, e suas Organizações, como o MST e o MTST, vão compor o grupo de transição instalado para a transmissão de poder, após as eleições (https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/movimentos-sociais-como-o-mst-vao-participar-da-transicao-de-lula).

 

Conforme o noticiário, movimentos sociais tradicionalmente próximos às gestões do PT irão compor o grupo de transição do futuro governo de Luiz Inácio Lula da Silva.Lideranças ou técnicos de movimentos como os sem-terra (MST), os sem-teto (MTST), centrais sindicais e organizações não-governamentais deverão ser indicados até terça-feira para integrar o grupo comandado pelo vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin. E já aconteceram as primeiras reuniões, orientadas pela ideia de fortalecer ponte com o futuro governo (https://www.brasildefato.com.br/2022/11/17/participacao-civil-movimentos-populares-se-reunem-pela-primeira-vez-com-equipe-de-transicao).

 

Conforme a matéria, representantes de movimentos populares se reuniram pela primeira vez nesta quinta-feira (17), em Brasília (DF), com interlocutores ligados ao presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Eles foram recebidos pela presidenta do PT, Gleisi Hoffmann, que coordena a articulação política do processo de transição.Estiveram presentes lideranças de diferentes segmentos, com destaque para nomes vinculados às Frentes Brasil Popular (FBP) e Povo sem Medo, as duas mais representativas do país, que reúnem dezenas de entidades cada, entre movimentos, sindicatos, coletivos e outros atores civis.

 

“É um momento de congratulação dos movimentos que construíram a campanha [eleitoral] desde a pré-campanha e desde a luta pelo ‘Lula Livre’. Chegar agora e ter a oportunidade de ter uma conversa institucional, o que a gente não tem há tantos anos por canal nenhum com o governo, é motivo de muita alegria para todos os momentos”, disse ao Brasil de Fato o militante Marcelo Fragozo, que atua como secretário da FBP e da Povo sem Medo.Ele destaca que “não é um momento de cobranças”. “Não nos interessa sair dessa reunião como se fosse um momento de reclamação, de reivindicação, porque as reivindicações estão sendo atendidas pela comissão de transição”.

 

Além do MTST e da Contag, figuram também a Confederação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadores na Agricultura Familiar (Contraf), o Fórum Baiano da Agricultura Familiar, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), a Uneafro Brasil, a Coalizão Negra e o Movimento Negro Unificado (MNU).Entre outros assuntos, os interlocutores presentes na agenda com Gleisi ficaram de levantar a lista de entidades civis que estão participando da transição. A reunião foi solicitada pelas próprias lideranças civis, que pretendem solidificar a relação histórica mantida pelo segmento com Lula e atores do PT, partido que ocupou a Presidência da República entre 2003 e 2016.

 

Dois impulsos são significativos nesse momento delicado entre a eleição e a posse do Presidente eleito, para transpor o vazio que a incompetência e a má-fé produziram no País, gerando uma erosão social sem precedentes, que liberou um ensandecido arrufo de grupos sem direção ou causa, como cães que correm atrás de pneus de carros e não sabem o que fazer quando os carros param; e o esgarçamento institucional, que teve efeito virulento particularmente nas forças armadas e de segurança, engolfadas numa inusitada inversão de hierarquia, além de subalterna, “fora das quatro linhas”, da Constituição e do “Manual”.

 

Ainda bem que um pouco de racionalidade weberiana faiscou no aparato burocrático e a transição pode ser organizada e vai cobrindo o vácuo de direção de um Presidente ainda no Palácio, mas que não inspira confiança e respeito.

 

Daí o segundo impulso que vem do exterior, com o mundo civilizado “dando posse” ao novo Presidente, legitimando a sua liderança e saudando a “exuberância” de um País respeitado que volta à cena internacional, econômica, política e diplomaticamente.

 

Desses temas cuidamos em conversa com Gilberto Carvalho, sobre as perspectivas éticas de resgate da dignidade cidadã para uma política de restauro da humanidade aviltada em nosso País, incluindo a retomada pedagógica para aprofundar esse processo. Um “Brasil Pedagogo” disse o ex-ministro, um dos fundadores da pastoral operária no Brasil (https://www.youtube.com/watch?v=QqYHZ4M390o).

 

Por tudo isso é preciso saudar a integração dos Movimentos Sociais na agenda da transição. Tal como o Papa o faz na sua mensagem para o quarto encontro que realizou: “É preciso construir pontes de amor contra a intolerância, xenofobia e ódio aos pobres; é preciso ter a poesia e a capacidade de sonhar juntos. “Os movimentos populares são, além de poetas sociais, ‘samaritanos coletivos’”, convencido, ele diz “de que o mundo se vê mais claramente a partir das periferias. Sigam impulsionando sua agenda de terra, teto e trabalho. Sigam sonhando juntos. E obrigado – obrigado seriamente – por deixar-me sonhar com vocês.”

 

 

(*) Por Eduardo Xavier Lemos, Presidente da Comissão Justiça e Paz de Brasília; José Geraldo de Sousa Junior, membro da Comissão Justiça e Paz de Brasília

 

sexta-feira, 18 de novembro de 2022

 

Artigo | Repúdio, culpabilidade, justiça e responsabilização

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O maior impacto em seguida à proclamação do resultado das eleições no dia 30 de outubro foi a unânime e entusiasmada manifestação internacional de saudação ao Presidente Lula e do retorno do Brasil à cena global econômica, política e diplomática.

 

Os comentaristas falam da despedida melancólica de um governo e de seu representante, absolutamente repudiado (https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2022/11/12/despedida-de-governo-na-onu-e-transformada-em-ato-de-repudio-a-bolsonaro.htm).

 

Enquanto é aguardado nos debates da COP27 e nas rodadas do G20, sem que a cúpula do País se faça representar (muitos fogem desse vexame a que deram causa), o governo brasileiro (leia-se Jair Bolsonaro), é objeto de sabatina na ONU.

 

Segundo o colunista Jamil Chade, conquanto “governos de todo o mundo, entidades internacionais e nacionais farão um exame do que foi a política de direitos humanos do país”, o centro do debate é a denúncia do “desmonte das instituições, entre elas a Funai, além de criticar o encolhimento do espaço cívico no Brasil durante os anos Bolsonaro: Violência policial, racismo, ataques contra a comunidade LGBT, indígenas e meio ambiente também prometem ser destacados”.

 

 

Segundo a matéria, “A sabatina — conhecida como Revisão Periódica Universal — ainda verá países apresentando recomendações ao novo governo brasileiro sobre como restaurar políticas de direitos humanos. Alguns dos europeus já indicaram que irão sugerir o fortalecimento de órgãos públicos, desmontados durante a gestão de Damares Alves, eleita senadora e que permaneceu até meados do ano como ministra da Família, Mulher e Direitos Humanos. Durante a revisão, a delegação brasileira será chefiada pela atual ministra, Cristiane Britto, que esteve ao lado do presidente quando ele fez seu primeiro pronunciamento após a derrota nas eleições. O sistema de sabatinas existe para que o mundo possa cobrar melhorias em termos de direitos humanos em um país. Recomendações são feitas e os estados têm a obrigação de dar respostas, quatro anos depois, No caso da revisão do Brasil, o processo ganha um outro componente, com uma espécie de oportunidade para que países que foram humilhados ou criticados por Bolsonaro deem suas respostas. Além das cobranças por parte dos estados, a sabatina ainda será marcada pela participação de mais de uma dezena de entidades da sociedade civil. Muitas delas, ao longo dos meses, submeteram informes para a ONU, trazendo dados sobre a situação do país”.

 

A partir de um quadro de omissões, há um verdadeiro libelo contra a governança e os dirigentes do país. O documento oficial, que serve de base para a denúncia, revela um quadro de desmantelamento de toda a rede de proteção aos direitos humanos, com repercussão letal sobre as populações vulnerabilizadas, notadamente no campo da saúde e do enfrentamento a Covid-19.

 

Em outra matéria, assinada pelo mesmo colunista (https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2022/11/12/parias-bolsonaro-e-putin-ficam-de-fora-da-cupula-do-g20.htm), tratando da ausência do presidente na reunião da cúpula do G20, ele avalia o significado dessa ausência, para estimar que ela “sedimenta a irrelevância internacional de Bolsonaro e seria um “réquiem” de um governo que apequenou o Brasil no mundo. Mesmo dentro do Itamaraty, sua ausência é um sinal de que ele não entendeu o cargo que assumiu em 2019 e que a presença de um presidente do Brasil na cúpula não tem relação com o resultado das eleições. Para diplomatas estrangeiros, a ausência de Bolsonaro é uma mistura de alívio e de “pena” diante do colapso de uma política externa de um país que servia de referência ao mundo. Já em 2021, na cúpula do G20 em Roma, Bolsonaro viveu uma situação de pária internacional, ignorado pelos demais líderes e com uma agenda completamente esvaziada. Mais recentemente, em Nova York, ele voltou a ver sua passagem pela Assembleia Geral das Nações Unidas marcada por uma ausência de encontros de alto escalão e chegou a faltar na reunião que teria com Antonio Guterres, secretário-geral da entidade”.

 

O repúdio internacional corrobora o rechaço interno revelado pelas eleições, contra um projeto, um sistema delinquente que canalizou recursos orçamentários para um objetivo de assalto ao patrimônio público, aparelhou o aparato de segurança e a linha auxiliar miliciana para interferir na livre manifestação, agrediu a institucionalidade de modo ilegal e inconstitucional, sendo, ainda assim derrotado.

 

Todavia, permanece a arregimentação criminosa, no financiamento, no aparelhamento inclusive de setores militares e de forças de segurança, com a docilidade leniente de muitos editoriais e de aliciamento de um colunismo rendido, num movimento torpe de solapamento da soberania popular e do interesse de restauração democrática das instituições.

 

Numa bela carta aberta dirigida ao Presidente Lula, o sociólogo Boaventura de Sousa Santos (https://sul21.com.br/opiniao/2022/11/carta-aberta-ao-presidente-lula-da-silva-por-boaventura-de-sousa-santos/), entre várias lúcidas e pertinentes considerações, celebra a vitória, que não é apenas pessoal, mas de uma ampla e ética mobilização, menciona a enorme credibilidade mundial que o Presidente acumula e que deverá exercitar em todas as agendas globais, mas adverte para essa conspiração subalterna e clandestina que só o voto não é bastante para debelar.

 

O Presidente Lula, diz Boaventura “Vai ter de conviver com a permanente ameaça de desestabilização. É a marca da extrema-direita. É um movimento global que corresponde à incapacidade de o capitalismo neoliberal poder conviver no próximo período com mínimos de convivência democrática. Apesar de global, assume características específicas em cada país. O objetivo geral é converter diversidade cultural ou étnica em polarização política ou religiosa. No Brasil, tal como na Índia, há o risco de atribuir a tal polarização um carácter de guerra religiosa, seja ela entre católicos e evangélicos ou entre cristãos fundamentalistas e religiões de matriz africana (Brasil) ou entre hindus e muçulmanos (Índia). Nas guerras religiosas a conciliação é quase impossível. A extrema-direita cria uma realidade paralela imune a qualquer confrontação com a realidade real. Nessa base, pode justificar a mais cruel violência. O seu objetivo principal é impedir que o Presidente Lula termine pacificamente o seu mandato”.

 

Por isso, estão certos aqueles que sustentam que é hora de falar em punição e não em pacificação, como o faz Milly Lacombe, colunista do UOL (https://www.uol.com.br/esporte/colunas/milly-lacombe/2022/11/05/e-hora-de-falar-em-punicao-e-nao-em-pacificacao.htm).

 

Na linha da melhor orientação da chamada justiça de transição, acentua que repúdio, culpabilidade, justiça e responsabilização, são marcas de memória para prevenir recorrências e não premiar contraventores que lesam a humanidade, o país e o povo.

 

Diz o seu texto: “Uma das mais eficazes ferramentas do capitalismo, especialmente em sua versão neoliberal, é a capacidade de inverter todas as pautas. Antes mesmo de Lula sair vencedor da eleição já escutávamos intelectuais liberais falando em anistia e em pacificação. As mesmas pessoas que passaram quatro anos numa boa vendo Bolsonaro afundar o Brasil em violências de todos os tipos, da lentidão para comprar vacinas até a congratulação a policiais que se comportavam como milicianos passando pelos inúmeros sigilos de 100 anos em qualquer suspeita de malfeito ou corrupção, agora pedem que Lula e sua turma sejam os pacificadores. Querem que aqueles que passaram quatro anos sendo abusados sejam os pacificadores. Não haverá pacificação sem punição. Não haverá pacificação sem a construção de um espaço de memória, de investigações e confrontos a respeito de um passado nem tão distante como o da ditadura. Agora é a hora de colocar todo esse horror na mesa e fazer uma autópsia do que passamos. Investigar, processar, punir”.

 

Bastaria incluir no libelo o horror da gestão necropolítica da crise sanitária. Talvez por isso o senador Renan Calheiros (MDB-AL), que foi o Relator da CPI da Covid, afirme que uma anistia a Jair Bolsonaro (PL) não acontecerá. “Bolsonaro está apavorado, querendo uma anistia, um acordo de não punição. Mas isso, na circunstância em que ele criou no Brasil, é difícil de acontecer”. É preciso, ele diz, “dar consequência a todas as investigações, inclusive aquelas que foram postas pela CPI. Não dá para passar pano nisso. Bolsonaro é responsável por uma grande quantidade de mortes no Brasil. A CPI demonstrou que se ele tivesse feito a sua parte, comprado as vacinas no momento em que foram oferecidas, nós teríamos salvo uma quantidade significativa de vidas”. (https://www.brasildefato.com.br/2022/11/13/renan-calheiros-afirma-que-bolsonaro-esta-apavorado-e-que-anistia-nao-acontecera).

 

Eis que o insuspeito Estadão, em matéria de Opinião (Editorial), também indique a necessidade de atribuir “responsabilidade jurídica de Bolsonaro”. Para o Jornal, “Não basta o juízo político das urnas. Se há indícios de que a lei penal foi descumprida, é preciso investigar. A paz não é fruto da impunidade, mas da efetiva igualdade de todos perante a lei” (https://12ft.io/proxy?q=https%3A%2F%2Fopiniao.estadao.com.br%2Fnoticias%2Fnotas-e-informacoes%2Ca-responsabilidade-juridica-de-bolsonaro%2C70004158307).

 

Para o Jornal, “os quatro anos de governo produziriam um respeitável passivo jurídico, com incidência direta na esfera penal”, que não pode ser desconsiderado: “O País precisa exatamente disso: investigação serena e criteriosa, dentro da mais estrita legalidade, respeitando as competências competentes, para apurar os indícios de crime e as respectivas responsabilidades, de forma a permitir depois, quando for o caso, a aplicação, pelas vias judiciais competentes, das penas legais cabíveis. Não se trata de perseguir ninguém. Mas não é plausível que, diante de tantas projeções – pequenos ou grandes, como, por exemplo, são as suspeitas envolvendo o MEC –, nada seja investigado. Jair Bolsonaro não está acima da lei. A tão necessária pacificação nacional não virá da impunidade, mas da efetiva percepção de que todos são iguais perante a lei”.

 

O gato pode se esconder, mas seu rabo comprido sempre ficará de fora. Assim como é inconstitucional e inconvencional (sistema internacional de direitos), medidas de autoanistia para infrações que são imprescritíveis por sua ofensividade, tortura entre elas, também será inconstitucional e inconvencional qualquer medida que tenha por fim gerar impunidade, tal qual a espúria iniciativa atribuída ao governo de criar por PEC,   cargo de senador vitalício para ex-presidentes (https://veja.abril.com.br/politica/governo-articula-para-criar-cargo-de-senador-vitalicio-para-ex-presidentes/).

 

Nem o escapimismo de exílios que se disfarcem em assunção de nacionalidades. O sistema internacional de proteção aos direitos humanos já consagrou com fundamento no conceito de jus cogens, a aplicação do princípio da jurisdição universal para responsabilizar a prática de crimes contra a humanidade. Foi assim que o ditador chileno Augusto Pinochet, estando em território inglês, foi submetido a julgamento a partir de jurisdição nacional (Espanha), e nesses termos sentenciado.

 

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)


José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.

 

Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.

 

Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).