Luiza
Valladares**
Escrevo
esta carta com fome. Então, dentre os nove meses de andarilhagem em que
degustei desde aromáticas especiarias das margens do Ganges até fétidos ovos
cozidos no vapor sulfúrico dos vulcões de Java, vou contar o pedaço mais
gostoso da viagem.
É o pedaço
mais gostoso não só porque os quitutes que lá encontrei me regalaram com alguma
reserva de energia abdominal necessária ao bom andamento da jornada. É o mais gostoso porque alimentou como nenhum
outro minha alma e meu coração.
Quanto ao coração, não consigo avançar muito aqui. É
estranho como o sentimento transborda ao mesmo tempo que a timidez impede a
palavra. Quanto à alma... bom, me sinto um bocado menos tímida pra falar da alma
do que do coração, mas é mais difícil colocar as questões da alma no papel. Mas
uma coisa é certa: quando a alma está com fome ela grita, e quando está
alimentada a calmaria é notável. O tempo vivido em BumiLangit foi pra mim
delicioso porque alimentou minha alma na forma do vislumbre de uma revolução.
Explico.
Depois de
três meses de viagem pela Ásia, em que percorri 7 países com muita sede, era
hora de enraizar-me, só um pouquinho, mas o suficiente para sedimentar aquela
mistura de curry indiano, dal nepalês e outros condimentos culturais
apimentados que encontrei pelo caminho. A condição de estrangeira falava alto. Ser
estrangeira é sentir a alteridade em sua forma mais radical. O abismo
insondável entre o sujeito e o próximo sempre está lá, mesmo dentro de uma
mesma cultura. Mas viajar é “estar fora”, é “desinscrever-se”, temporariamente,
do espaço simbólico que habitamos, nos forçando a nos deparar com esse hiato
próprio da nossa condição de seres falantes, portanto, faltantes. A solução de
compromisso encontrada pela estrangeira ou pelo estrangeiro que não cede à
tentação de domesticação ética do próximo, que aparece na forma da xenofobia ou
de um estranhamento insustentável, é a saudade gostosa de casa e a busca por
aconchego e familiaridade, mesmo nas terras mais longínquas. Assim fui parar em
BumiLangit.
A alguns
quilômetros de Yogyakarta, a “capital cultural” de Java, ficava o céu na Terra.
Na língua indonésia, “Bumi” significa Terra e “Langit”, céu. É apenas uma
fazenda de permacultura, mas a intenção colocada no nome pelo seu fundador, Pak
IskandarWaworuntu, é mais que a de apetecer àqueles que buscam pelo Paraíso. É
um apelo, há muitos séculos ouvido nas periferias das cidades. “Fugere Urbem!!!”
já gritavam os antigos, em suas antigas línguas, em suas antigas fazendas
tocadas com antigas técnicas de permacultura.
A fazenda
não é muito grande. Nela vive e trabalha uma comunidade muçulmana de cerca de
15 pessoas, 3 vacas, 4 cabritos e incontáveis galinhas (incontáveis não porque
são muito numerosas, mas porque são realmente difíceis de serem contadas).
Quase tudo que é consumido é produzido por lá, desde a energia elétrica gerada
por painéis solares até a manteiga de amendoim passada no pão quentinho,
iguaria que revigora corpo e mente após o trabalho no campo. E tudo que é
preparado, plantado, cuidado e construído procura atender os princípios da
permacultura. O termo permacultura foi cunhado em 1988 por Bill Mollison e
significa “agricultura permanente”. Mas é só um nome chique para práticas muito
antigas, que consistem na criação e manutenção de sistemas e tecnologias que
integrem as pessoas e suas necessidades às necessidades e elementos da
natureza.
O
potencial revolucionário de BumiLangit está na demonstração de que é possível
suprir necessidades de forma sustentável e com direito a manteiga de amendoim.
Mas veja bem, a questão na natureza ontológica de uma necessidade e de quais
necessidades são “realmente necessárias” é matéria para uma faceta espiritual
da revolução, que não cabe discutir aqui. Já que relato a minha experiência, no
que toca às minhas necessidades, aquela manteiga de amendoim me calou!
A
revolução que BumiLangit deixa entrever começa no ato de plantar. Plantar é uma
das atividades culturais mais antigas e encerra em si um significado quase
místico, que vai além de apenas colocar uma semente no chão. É observar a
natureza criar e nos dá a oportunidade de coadjuvar nessa produção e de
aprender com ela. Isso é muito importante em tempos que nos induzem a apertar o
play e a apenas reproduzir um repertório cultural já batido, pois o ato
criativo nos tira do modo de funcionamento baseado no consumo. Acredito que o
apelo de plantar é parecido com o apelo da arte.
Contemplar
como a natureza cria e agir de forma a facilitar esse processo nos ajuda também
a restabelecer uma conexão perdida. As práticas agriculturais atuais procuram
“reinventar” a natureza. É como se a agricultura de hoje em dia lutasse contra
os processos naturais, lançando mão de pesticidas, fertilizantes, alimentos
transgênicos e técnicas cada vez mais distantes do modo de operação da
natureza. Além de gerar um passivo ambiental imenso, essa não é a opção mais
eficiente e muito menos a mais saudável. A única explicação para a escolha por
esse modo de produção é o beneficio daqueles poucos por trás da indústria do
agronegócio.
O
desconforto gerado pela desconfiança sobre um saber que deveria ser tão intuitivo,
como é o ato de plantar, cedeu lugar à esperança por meio da práxis, pois o
rompimento com as práticas agriculturais nocivas parte de uma atitude de não
subtração à nossa própria natureza. Nesse sentido, a agricultura feita de forma
respeitosa e responsável transcende o objetivo da produção de alimentos. Essa é
apenas uma reação inevitável, apesar de desejada. Plantar pode ser uma forma de
cultivar mulheres e homens com uma visão mais holística de seu lugar no
mundo.
Algo vai
muito mal na cidade e BumiLangit foi um celeiro de reflexões sobre a questão
agrária, ecológica, religiosa e... gastronômica. Sim, gastronômica porque o
bem-querer ao plantar e colher transbordam para o sabor dos alimentos. E esse aspecto tempera bastante o argumento a favor da agricultura
natural, ainda mais quando escrevemos com fome. Afinal, plantamos para comer e
queremos comer bem e com sabor. Enfim, irei à mesa e ao quintal mantendo em
mente que comer bem é suster a vida e traz em si o potencial de um ato
revolucionário.
*As
“cartas” têm sido publicadas neste Blog como impressões/reflexões de viagens
para intercâmbio e estudos de pós-graduação de membros dos vários coletivos que
se encontram nos Diálogos Lyrianos. Assim, estão aqui colecionadas as Cartas de Nagoya (Diego Nardi), as Cartas da Áustria, Finlândia,
Áustria, Alemanha e agora da China (Layla Jorge Teixeira Cesar) e as Cartas do Gotemburgo (Ana Luiza Almeida e Silva).
A elas vem se colecionar as Cartas da Indochina de Luiza Valladares e, em breve
as Cartas do Mondego, de Lívia Gimenes e de Patrick Mariano que estão embarcando
para Coimbra para seguir programas de pós-graduação.
** Luiza Valladares faz
graduação em Psicologia na UnB e em Direito no UniCEUB. Integra a AJUP Roberto
Lyra Filho, assessoria jurídica universitária vinculada à FD/UnB e participa do
Coletivo Diálogos Lyrianos.
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