IREE - Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa
A POLÍTICA DA CORRUPÇÃO
Boaventura
de Sousa Santos
8 de dezembro de 2021
Causa surpresa nos
meios internacionais que o pré-candidato Sérgio Moro esteja a transformar a sua
entrada na política eleitoral num manifesto de defesa da luta contra a
corrupção. É demasiado evidente que o seu propósito é tentar branquear o seu
infame legado nesta matéria. O fracasso da luta contra a corrupção no Brasil
não começou com Moro, mas aprofundou-se de tal maneira com a conduta deste
magistrado e dos seus acólitos de Curitiba que qualquer intento de o superar
tem forçosamente de significar uma ruptura com tudo o que foi e significou a
Lava Jato. À primeira vista, só por cegueira ou patética ignorância se pode
imaginar que Moro queira centrar o seu crédito político na sua desastrosa e
nefasta conduta.
Sendo a corrupção algo
endémico nas sociedades governadas por neoliberalismo radical, como é o caso do
Brasil neste momento, a luta contra a corrupção deve ser uma bandeira
importante de qualquer candidato que pretenda propor uma alternativa, mesmo
moderada, ao neoliberalismo reinante. Mas para que tal proposta tenha a mínima
credibilidade é essencial que ela signifique uma total ruptura com o desempenho
lavajatista e uma crítica radical dos seus protagonistas. Aliás, tenho
defendido que o lugar destes no actual momento, e depois de tudo o que se soube
e provou, não devia ser na política, mas nas malhas da justiça criminal. Esta
seria a única maneira de reestabelecer a credibilidade do sistema judicial
brasileiro e um contributo importante para travar o deslize autoritário da
democracia para o qual os prosélitos de Curitiba tão decisivamente
contribuíram.
Porquê então todo o afã
do pré-candidato Moro em defender de modo tão incauto o indefensável? São
várias as razões possíveis e talvez só o conjunto delas explique tamanho
dislate. A primeira e mais óbvia é que Moro, ao reconstruir politicamente o seu
legado, quer que ele passe a fazer parte do elenco da política brasileira e, se
assim for, ele deixa de ser a perversão a evitar para se transformar no modelo
a seguir. Esta será também a melhor maneira de eliminar da memória colectiva os
ilícitos disciplinares e criminais que poderão ter sido cometidos por ele e
pelos seus comparsas. A segunda razão é que Moro, enquanto figura política, é
uma criação do intervencionismo dos EUA no continente e no mundo. Não tem,
portanto, outro conteúdo político senão o da “luta contra a corrupção”. Sem
esta luta, é um ser político vazio. Com ela, é um ser político útil aos
interesses norte-americanos.
A terceira e talvez
mais profunda razão (da qual ele nem sequer se aperceberá dado não parecer ser
dado a exercícios de reflexão) reside em que, ao defender a sua conduta, Moro
afirma uma certa política de corrupção que só pode prosperar se a corrupção na
política continuar. A específica politização da luta contra a corrupção que ele
protagonizou redundou no aprofundamento da corrupção na política, como revelam
os dados recentes da CPI, atingindo, aliás, sectores (forças armadas) que até
agora se afirmavam imunes à corrupção. A mensagem subliminar do seu programa
político é, pois, a de que, com ele, a corrupção na política poderá continuar
sem grande sobressalto, uma vez que a luta contra ela será desenhada para
fracassar nos seus objectivos.
Em face disto e
pensando que o novo ciclo político brasileiro queira dar um combate efectivo à
corrupção, alinho a seguir algumas lições da experiência comparada que
felizmente é diversificada. Só para dar alguns exemplos, aos fracassos da
China, Rússia, Brasil ou Indonésia podem contrapor-se os êxitos de Singapura,
Dinamarca e Finlândia.
A primeira lição é que
a luta contra a corrupção não pode ser política no sentido de que tem de ser
imparcial e não selectiva, não podendo de modo nenhum ser usada como arma
contra opositores políticos. A segunda é que deve assentar em forte vontade
política e num consenso activo dos cidadãos. Só assim será possível canalizar
fundos suficientes para lutar eficazmente. A luta eficaz, que não assente na
vitimização fácil de supostos corruptos e no protagonismo insensato dos seus
perseguidores, é uma luta muito cara e muito exigente (em pessoal e recursos).
A terceira lição é que
deve dirigir-se às causas e não aos sintomas da corrupção. As causas variam de
país para país mas, em geral, os seguintes factores tendem a estar presentes:
um sistema político insuficientemente participativo e transparente para tornar
a tentação corruptiva pouco atractiva; se à falta de participação e
transparência se juntar a descentralização, o convite à corrupção torna-se
irrecusável; um sistema criminal ineficiente que torna o cálculo do infractor
num exercício de racionalidade pragmática: a recompensa com o acto corruptivo é
muito superior ao risco de ser punido por ela; baixos salários dos funcionários
públicos, sobretudo se combinado com a excessiva burocratização da acção administrativa
do Estado; uma cooperação internacional enviesada que selecciona os alvos
políticos e económicos e invisibiliza os corruptores sem os quais não há
corrompidos. A “cooperação internacional” de que fala Moro é a guerra económica
conduzida pelos EUA, através do Departamento de Justiça e da Foreign Corrupt
Practices Act, contra empresas estrangeiras que concorram com as
norte-americanas. A grande empresa francesa do sector energético Alstom não
resistiu melhor ao ataque e à compra final pela GE norte-americana do que as
empresas alvejadas pela Lava Jato no Brasil poderão resistir. E a procissão
ainda vai no adro.
Esta enumeração parcial
das causas mostra que a conduta de Sérgio Moro e seus parceiros foi um factor
decisivo do agravamento da corrupção endémica no Brasil e tornou a luta contra
ela imensamente mais difícil. Será que o
pré-candidato pensa genuinamente que os brasileiros não se darão conta disto?
Os artigos de autoria
dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Boaventura de Sousa
Santos
É sociólogo e poeta. É
professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de
Coimbra e Distinguished Legal Scholar da Faculdade de Direito da Universidade
de Wisconsin-Madison e Global Legal Scholar da Universidade de Warwick. É
Diretor Emérito do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e
Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça. Tem trabalhos
publicados sobre globalização, sociologia do direito, epistemologia, democracia
e direitos humanos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário