O Direito Achado na Rua: nossa conquista é do tamanho da nossa luta

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

 

PNDH-3 10 anos depois: balanço prospectivo

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

PNDH-3 10 anos depois: balanço prospectivo. Organização: Paulo César Carbonari e Enéias da Rosa. Passo Fundo: Saluz, 2020, 112 p.

(http://monitoramentodh.org.br/publicacoes/sem-categoria/pndh-3-10-anos-depois-balanco-prospectivo/).

           Começo apresentando o Sumário da Obra. Além da Introdução, a cargo de Enéias da Rosa (Secretário Executivo da Articulação para o Monitoramento dos Direitos Humanos no Brasil) e Leonardo Pinho (Vice-Presidente Conselho Nacional de Direitos Humanos), fortes na organização do Seminário que deu origem à publicação, o livro traz a Contextualização que no encontro contribuiu para situar a discussão em seus termos:  PNDH-3 em seu contexto e no contexto atual, Paulo Vannuchi;  As alianças astutas em torno do PNDH-3, Romi Márcia Bencke; PNDH-3 e seu contexto, desafios no contexto atual, José Geraldo de Sousa Junior. Segue-se uma seção de Análise: PNDH-3: potências e limites para induzir políticas, Paulo César Carbonari; 10 anos do PNDH-3: Nossa História, Lutas, Conquistas e Perdas!,  Deise Benedito; Programa Nacional de Direitos Humanos III e os  desafios de implementação enfrentados em 2019, Bruno Ribeiro de Paiva, Manoel Severino Moraes de Almeida,  Gabriella Rodrigues Santos, Luis Emmanuel Barbosa da Cunha, Maria Júlia Poletine Advincula e Arthur de Oliveira Xavier Ramos. Depois a seção Perspectivas:

           PNDH-3: desafios Estruturais num Contexto de Crise Econômica, Política e Socio-Cultural, Mércia Alves; fechando com Recomendações, notadamente dirigidas ao CNDH – Conselho Nacional de Direitos Humanos.

            Conforme se diz na Introdução, a “publicação é resultado do Seminário Nacional realizado pela Articulação para o Monitoramento dos Direitos Humanos no Brasil (MNDH; PAD; FE ACT Brasil e parceiros de Misereor) em parceria com o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), em Brasília, nos dias 27 e 28 de novembro de 2019, nos 10 anos do PNDH-3. Contou com a participação de representantes de organizações, movimentos, articulações e também de conselheiros/as ligados/as aos Conselhos Estaduais de Direitos Humanos de pelo menos vinte e dois Estados brasileiros. 

           Os Programas Nacionais de Direitos Humanos (PNDH) se inserem num conjunto de instrumentos e mecanismos de direitos humanos que podem ser adotados por países. Embora tenham sido uma orientação da Convenção de Viena (1993) e o Brasil tenha sido um dos primeiros países a promover esta formulação (PNDH-1/1996), não há dúvidas de que eles têm sido resultado, sobretudo, de uma série de movimentações sociais e populares realizadas no campo popular e das lutas por direitos humanos, em especial, após o processo constituinte de 1998, até o final da primeira década deste século.

           Podemos dizer que este período foi muito rico no desencadeamento de um conjunto de modalidades instituintes que resultaram na construção e conformação de diversas redes e articulações nacionais, de movimentos populares, com as mais diversos matizes, temas, perspectivas e bandeiras na luta por direitos e pela democracia. Simultaneamente, também avançou-se num esforço de construção de canais de aglutinação destas diversidades e da produção de eixos comuns de ação e de intervenção política, nem sempre facilmente realizáveis, mas que foram se expressando em vários processos e até mesmo nas formulações legislativas de normatividades democráticas e de garantia da efetivação dos direitos constitucionais, umas mais liberais e outras mais sociais, a maioria socialdemocratas.

           O contexto era também de efervescência do neoliberalismo que, por seus interesses e forças, conseguiu avançar em partes na flexibilização das institucionalidades garantidoras de direitos, impactando no avanço do investimento em políticas públicas e direitos universalizados. Por outro lado, também se ensaiava a participação ampliada através da criação de espaços de democracia deliberativa (conselhos, conferências e outros). No campo específico dos direitos humanos, também foram sendo sentidos processos de institucionalização crescente, mesmo que insuficiente, dos direitos humanos no seio das políticas e das ações do Estado (Secretaria de Direitos Humanos no Executivo, Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão no Ministério Público, entre outras). Merece destaque aqui, que somente em 2014, mais precisamente no dia 2 de junho, após vinte anos de luta e pressão das organizações e movimentos que atuam no campo dos direitos humanos, foi instituído pela Lei Federal n° 12.986, o Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH). O CNDH substituiu o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), criado em 16 de março de 1964, sob a Lei Federal nº 4.319, e assume sua missão institucional tendo como orientação os Princípios Relativos ao Status das Instituições Nacionais de Direitos Humanos (Princípios de Paris), definidas pela ONU em 1991, marcados pelo pluralismo e pela autonomia. Importante ainda dizer que, ainda no primeiro mandato, logo após sua instituição, o CNDH abriu um processo junto às Nações Unidas para sua admissão formal como Instituição Nacional de Direitos Humanos (INDH)”.

           O contexto, as análises e as recomendações, balizadoras do objetivo de monitoramento que conforma o seminário e a publicação, trazem a perspectiva de 10 anos de implementação do Programa, suas vicissitudes intrínsecas e mais diretamente ligadas aos elementos constitutivos de sua concepção, origem e finalidade, mas não descura das urgências e das singularidades que decorrem da conjuntura política, global e local, que afetam essa implementação.

            É o que dizem os formuladores do evento:

            “As dificuldades encontradas para a implementação do PNDH-3, embora tragam certa decepção pela dificuldade de avançar em políticas efetivas e orientadas numa perspectiva dos direitos humanos no Brasil, não resumem por si só o sentido do PNDH-3 nestes pouco mais de 10 anos de sua existência. Pode-se dizer que, se não há um consenso, seja no campo da sociedade civil organizada que atua com direitos humanos, bem como de representantes de diferentes espaços institucionais como são os próprios Conselhos de Direitos Humanos, de órgãos de Estado em diferentes esferas, de especialistas no campo de direitos humanos entre outros, há uma justa e real compreensão de que o PNDH-3 simboliza muito do que é a diversidade e o querer do que é a luta por direitos humanos no nosso país. Se, por um lado, seu conteúdo ainda precisa ser transformado em políticas de direitos humanos, por outro, o Programa é, e continua sendo, ainda mais nos dias atuais, uma orientação de referência, talvez a maior que tenhamos no país, além da Constituição Federal 1988, para quem atua com direitos humanos e entende que esta luta é permanente e está sempre por ser feita. Isto fica muito nítido nos posicionamentos manifestos pelos autores e seus textos que compõem esta publicação e que merecem um olhar atento sob esta perspectiva, uma vez que a vida segue e a luta por direitos humanos também.

           Por fim, adiantamos como breves indicativos de leitura que a presente publicação está posicionada numa perspectiva de retomada do processo, do contexto no qual se deu a construção do PNDH-3 e do seu próprio significado, da perspectiva e da capacidade de indução de políticas de direitos humanos no Brasil a partir do PNDH-3, desde a sua publicação até este momento, e, também, da importância e inserção do PNDH-3 para o atual momento e contexto de país, seja no campo dos direitos humanos propriamente, mas também da democracia, no qual os cenários são de muitos retrocessos, obscurantismos, barbárie e políticas de morte. É deste lugar, para uns um tanto a mais, para outros um pouco a menos, que sempre fizemos e deveremos continuar a fazer a luta por direitos humanos no Brasil. Isto significa dizer que o que até aqui aprendemos com o PNDH-3, de positivo ou de negativo, mostra muito das nossas capacidades e dos nossos modos de resistir e de atuar, e que urge para as organizações da sociedade civil no atual momento para a continuidade das suas lutas, é o grande desafio de seguir fazendo uma agenda popular de direitos humanos. Este deve ser o nosso horizonte, isto deve nos juntar, isto deve nos fazer convergir, na permanente e incansável busca pela garantia dos direitos humanos para todas e para todos”.

           Contribui para o debate na Mesa 1 – Contextualização PNDH-3 em seu contexto e no contexto atual, no diapasão dessas preocupações, tal como a indicação da Ementa proposta para orientar a discussão: “A centralidade desta mesa e situar de modo contextualizado o processo e o acumulado no momento da construção e adoção e agora, 10 anos depois. Retomada do processo de construção do PNDH-3 e do impacto de sua adoção, os debates públicos, o posicionamento do governo e dos movimentos sociais populares na sua construção e na sua adoção em contraste com o contexto atual, identificando recorrências, urgências e emergências. Traçar cenários para apontar o significado do PNDH-3 no contexto atual”.

           A minha exposição veio para o livro no formato da fala e aqui a compartilho com os leitores desta Coluna Lido para Você:

           Eu queria primeiro saudar a oportunidade deste encontro duplamente. Primeiro pelo requisito de sua missão, este papel relevante de monitoramento que é o objetivo principal desta assembleia. Depois, para reafirmar um ponto: quando o institucional se fecha, o único espaço relevante para protagonismo social é a rua. Nesta condição de presença ativa, instituinte, participativa, é que nós podemos resistir, seguir no rumo, que o professor João Batista diria, de um projeto de direitos humanos como um projeto de sociedade. É um tema com o qual ele trabalha e tem feito inúmeros encontros, consolidando posicionamentos que reivindicam esta condição de direitos humanos enquanto projeto de sociedade. É um pouco o que o PNDH representa. É a expressão de um projeto de sociedade. É para além de um conteúdo enunciativo dos eixos que o Paulo acabou de referi-los todos. Ali se indica a possibilidade de um programa ou de um plano de direitos humanos, exatamente numa concepção de sociedade.

           No caso do Brasil, que sabemos aderiu de saída este instrumento, somos o segundo país que elabora um plano depois que Viena, o que indica que esta é uma diretriz importante para cultura global. O Programa em si é a expressão do modelo de sociedade que nós vínhamos construindo nos últimos anos, depois da superação daquele hiato do Regime Militar de 64, não só militar, civil e militar, que inseriu na nossa representação ideológica a ideia da democracia participativa, de democracia direta, do protagonismo social constituído nos espaços organizativos da sociedade. Constituído, sobretudo, nas organizações e movimentos sociais. Então, este encontro é importante porque quando a institucionalidade se fecha, ou se torna incompatível com aquilo que é a construção deste programa, que neste momento, por exemplo, esta incompatibilidade está expressa em tudo que traduza a sua formulação.

           O Leandro Scalabrim (representando o CNDH) acabou de traduzir os últimos encaminhamentos de governo sobre o que são os direitos humanos para esta conspiração toda que se instalou na máquina de governo. A condição de protagonismo social é a nossa referência de continuidade histórica e de continuidade social. Eu acho que primeiro é preciso saudar isso e, ao mesmo tempo, transformar este encontro num efeito de demonstração de pujança da sociedade civil, desta capacidade de se expandir em todos os espaços possíveis. Inciativas como esta, que no momento atual não é conveniente dialogar com o governo, porque não há diálogo possível, são referenciais éticos incompatíveis. Não há possibilidade de se quer construir agendas deste tipo, a não ser quando se construa canais para salvaguarda dos direitos, como penso que é o objetivo da Comissão Arnes. Não é para fazer interação no sentido de diálogo, é para fazer comunicação no sentido de reivindicar, de denunciar, de construir referenciais de interpelação, o que representa o esgotamento de uma concepção de sociedade e de direito. Este é o primeiro ponto.

           O Segundo é dizer, depois do que disse o Paulo Vannuchi, traduzindo um pouco sua experiência de gestor deste sistema e o que foi a formulação programática da construção desta proposta, dizer que este momento aqui, curiosamente, um pouco distinto de um momento equivalente – eu até trouxe, Paulo, o volume cinco da revista de Direitos Humanos que o Ministério criou, na qual eu tive a honra de compor o Conselho Editorial – na edição de 2010 o conteúdo da revista era exatamente um dossiê especial para avaliar o PNDH3. Então, é um conjunto de pronunciamentos com assinaturas extremamente relevantes deste percurso que, de algum modo, com aquelas observações que o Paulo acabou de fazer, celebrava o que o PNDH3 representava.

           O primeiro ponto era de constatar, por exemplo, que neste campo havia um consenso e que a cultura de direitos humanos expressa no plano representou no Brasil, uma equivalência em todas as estruturas de governo instaladas no país. O Paulo lembrou que num dos eventos derivados desta proposta, todas as expressões partidárias desde que o Plano foi instaurado estavam ali presentes. E, por conseguinte, é constatação de que os direitos humanos formam uma agenda consenso natural ou pelo menos formavam. Ou seja, todos os partidos que exerceram a responsabilidade da governança, o PNDH 1 foi instalado na governança do PSDB, e todos os ministros ou secretários de Estado que nas formas de institucionalização na área de direitos humanos no governo, desde que ela se instalou lá no Ministério da Justiça e depois se emancipou como ministério próprio, todos tinham este compromisso comum de entender que não se realiza os direitos humanos  quando o social não se realiza. Isso porque o social é o experimento da humanização. O social é o campo onde o processo de nos tornarmos pessoa, nos tornarmos humanos, se realiza.

           Como dizia o filósofo Hegel, “nós não nascemos pessoas humanas, nós não nascemos humanos, nossa origem biológica não nos designa humano.” Humano é uma construção social, uma experiência na história. Nós nos tornamos humanos. E isso é nas suas várias projeções, como depois, por exemplo, hegelianamente, Simome de Beauvoir diria em relação ao feminino “nós não nascemos mulheres, nós nos tornamos mulheres”. Isso por conta do fato de que na experiência histórica a representação do humano é uma conquista, uma luta. E é uma luta que coloca na agenda deste processo desde os catadores de papel à indígenas, mulheres, crianças, os que são diferentes na sua identidade, os que reafirmam a expectativa de reconhecimento a partir de suas diferenças de raça, de sexo e que são, em geral, no social atravessadas por obstáculos que são econômicos, que são políticos, que são sociais, que são religiosos, que são jurídicos e demarcam este dramático experimento que é acentuado quando a gente passa por experiências como, por exemplo, o colonialismo. Que do ponto de vista religioso, do ponto de vista filosófico, do ponto de vista econômico, do ponto de vista jurídico tende a separar os humanos dos não humanos.

           Foi preciso uma bula do Papa Paulo III, em 1537, para dizer que os índios são gente e tem alma. Foi preciso muito embate teológico contra Tomás de Aquino, que na Suma dizia que a mulher também não tinha alma, era um vaso de cuspe. Elas estavam no campo da negação, do inquisitório, vistas, em geral como diabolizadas, como figuras não humanas. Como figuras que desviavam aqueles que eram os intuídos e que são humanos. Boaventura chama isso de separação dos que são humanos dos não humanos pela linha abissal que distingue na economia, na política e tudo mais.

           Em 2010, a gente celebrava, com as ressalvas que Paulo acentuou, o primeiro elemento de reflexão. Nós não imaginávamos, mas ali se plantava uma espécie de semente do mal. O fato de que lá na sua aprovação nós não nos demos conta de que o pretexto de uma ou outra objeção criou uma plataforma de recusa. Por exemplo, da questão da justiça de transição, memória, verdade e justiça, ficou memória e verdade, se tirou justiça. Fez-se a concertação, mas ali se fez o pretexto para tomar a questão religiosa, tomar a questão da comunicação e a cada um, no seu ângulo, juntar uma objeção geral e pôr o germe de algo em que, em algum momento, iria nos assombrar. Eu diria que eu não perco o otimismo, porque quem está encastelado na experiência da história, sabe que a emancipação se realiza. Sabe que os direitos se constituem, sabe que a civilização se realiza, sabe que a recusa de protagonismo no tempo vai ser a projeção dos valores do outro tempo. Sabe que o crime dos nossos ancestrais é o nosso direito hoje. Sabe que o nosso crime de hoje será a expressão dos direitos dos que nos sucederem.

           Todos os direitos como os direitos humanos de base que fundou os direitos positivados em geral, na origem, foi a condição de criminalização de quem lutou por estes processos. Por isso, Marx dizia, no Capital, que quando o fundo da sua população fosse representar uma base para a grande revolução que emancipasse o proletariado, que universalizasse sua agenda de uma sociedade de inclusão, este momento seria muito revolucionário. Lutar pela jornada de oito horas foi algo que levou a criminalização dos fatos de Chicago. Onde lutaram por jornada de oito horas e, com greve, foram criminalizados por sabotadores e executados. Assim, levando a nós o primeiro de maio como o dia do trabalho. Dia do nosso feriado é o dia de execução deles. O dia de nosso direito é o dia de execução deles.

           Então, no primeiro ponto eu queria dizer que a condição de celebrar há 10 anos o PNDH3, esta condição não mudou apesar da mudança da conjuntura, porque ele, além daquilo que ele enunciou, projetou esta dimensão pedagógica educadora que ele representa como agenda de nossa própria emancipação, em sentido freiriano. No sentido de autonomia, no sentido de que a educação é uma pedagogia de superação da opressão. Aqui, neste volume (se referindo a Revista Direitos Humanos, Especial PNDH3, de abril de 2010), eu e Maria Vitória Benevides escrevemos um texto exatamente sobre o caráter pedagógico do PNDH 3. Para lembrar que ele expressa, na síntese de seus eixos, uma agenda educadora. Não no sentido da educação como um artefato, produto educacional. É no sentido da educação como uma forma de constitucionalizar a dimensão ativa da cidadania, da capacidade de exercitar a política, de nos transformar, como diria Aristóteles, em animais políticos. Não porque temos ou não temos mais ou menos razão, pois não é a racionalidade que nos designa, é exatamente a nossa capacidade de produzir o exercício da política. É nossa função social na pólis. Nossa capacidade de governar e orientar nosso próprio destino.

           Então, eu diria que se lá atrás havia um otimismo celebratório, eu acho que o nosso momento atual é de um otimismo, como diria Boaventura, mais trágico. Otimismo mais trágico, mas é aquele otimismo da filosofia: que não fique na análise, mas que arme a ação. Pessimismo da razão, mas otimismo da vontade. A nossa capacidade mobilizadora de não cedermos a rua, de não cedermos a praça, de continuarmos a construir um projeto nas nossas relações. Expandir as nossas interações, as nossas alianças. Configurar a ampliação dos nossos espaços do diálogo. Inventar outras estratégias de atuação. O Paulo mencionou, para mim uma coisa mágica, isso que os governadores do nordeste fizeram, de criar um consórcio legal, que gerou uma capacidade de interlocução global que assusta a tal ponto que já são muitos os sinais de que esta governança instalada teme este processo. Porque, inclusive, ele tem feito demonstração pedagógica, que mostra a possibilidade de um outro modo de governar, de uma outra forma de fazer política, de uma outra forma de estabelecer o diálogo entre a institucionalidade e a rua.

           Eu queria recuperar, nesta conjuntura que a gente vive, este sentido da nossa referência como representação do PNDH para reorganizar nossas capacidades de interlocução. Abrir outros espaços imaginados de diálogo. Por exemplo, se o executivo se fecha e nós não temos o interesse em dialogar com este executivo, no institucional há espaços plurais ainda disponíveis. Há o espaço plural do parlamento que, apesar das hegemonias deliberativas, mantem aquelas condições de abertura para nosso protagonismo. A Constituição de 88 criou uma dimensão para o parlamento que não é aquela formal, do momento geral da deliberação, é o momento participativo com as comissões, algumas com competências terminativas de produzir regulações, normas, mas todas com capacidade de enunciação da nossa disputa pela narrativa da democracia e participação social. Há espaços ali. Há espaços para construir, por exemplo, contra hegemonia. Há espaços para manter nossa capacidade de defender os projetos ou, pelo menos, de reduzir o sentido dramático do que hoje se faz no campo econômico, da ganância ultraneoliberal de privatizar tudo, de coisificar a vida e reduzir a dimensão republicana da construção do acervo da economia para a satisfação das necessidades do povo. Isso cria uma agenda em que os direitos humanos têm de estar ligados àqueles campos em que esta disputa se dá, como na saúde e na educação. É exatamente ali onde se trava o cabo de guerra entre o que é do mundo do mercado e o que é do mundo da sociedade, do mundo dos valores, do mundo dos símbolos que estão necessariamente fora do mercado.

           Há também espaço no judiciário, não obstante os limites de uma leitura formal do científico que gera no direito um positivismo que é um obstáculo a implantação dos direitos humanos. O presidente da Corte Interamericana advertiu, nesse sentido, dizendo que o principal obstáculo à internalização dos direitos humanos escritos nos tratados e convenções é o obstáculo do positivismo, que limita a possibilidade de internalização nas regras nacionais das promessas normativas que os tratados e as convenções de direitos formulam. Está aí o caso da justiça de transição. Os dois exemplos citados e outros. Ou da leitura da política que os organismos internacionais, na parte política, continuam a formular na linha do seu alinhamento como no caso da OEA no incidente da Bolívia.

           Eu diria que esta condição educadora do Plano (PNDH3), aqui e agora, nos propõe que se instale entre nós, como condição de monitoramento, a radicalização desta condição pedagógica dos direitos humanos. E que isso represente criar agendas para atuar em dois planos: um máximo de radicalização instituinte para fazer a leitura daquilo que se deve enfrentar nessas agendas. Por exemplo, a vida não é a questão da concepção, a vida é a dimensão da dignidade da existência, são as condições materiais desta dignidade. Como diz o Papa, recentemente, é “colocar os pobres no centro da teologia”. Estou só desafiando a Pastora Romi, aqui, para ela avançar por este caminho. É recuperar uma teologia da libertação e não uma teologia que serviu ao golpismo global na linha do econômico, na linha da promoção do bem-estar. Esta teologia que agregou, por exemplo, o campo cristão, não é só evangélico, é também católico, na associação com todas as ações golpistas.

           Se a gente tivesse lido o relatório Rockfeller, do tempo do governo Nixon, teria percebido que naquele documento se indicava que melhor do que as formas de intervenção militares seriam as formas de intervenção teológicas. Enquanto era a teologia da libertação, se deveria de inserir a teologia da prosperidade, a teologia do capital, a teologia da armação dos que acumulam egoisticamente em face dos que são sujeitos da opressão. Então, radicalizar, esta questão educadora para que a gente veja que a emancipação coloca agendas dramáticas, por exemplo, como estas que recuperam o interesse neoliberal de mercadorizar tudo e que tem a ver com as transferências para o rentismo da poupança e nas formas de entrega da infraestrutura do desenvolvimento que envolva salvaguardar projetos de sociedade em que a dignidade do humano se estenda, inclusive, para o humano natural. Ou seja, a dimensão do humano é da própria natureza. E a questão ambiental que está levando a outra ação de enfrentamento que é, de novo, o assassinato político dos militantes, dos ativistas, das organizações, dos protagonistas indígenas, camponeses, defensores de direitos humanos e criminalizando o protesto. Aí já há o anuncio do novo Ato Institucional n° 5. Como sabemos este não virá da forma de um decreto. Ele está vindo aos pedaços. Ontem (dia 25.11.2019) o presidente disse que quer concessão para, em nome de insurreição, movimento de rua, ter a capacidade de militarizar a repressão com dois instrumentos letais. A capacidade de generalizar o que ele chama de GLO – Garantia da Lei e da Ordem – e a capacidade de instruir o excludente de ilicitude. O que está incrementando o extermínio de opositores, de jovens, de negros. É exatamente o modelo carioca. Então, como disse o Paulo, tem muitas coisas, mas não dá, vou parar aqui.

           Quero dizer que não sucumbamos a angústia do momento em que a gente está vivendo. Aqui eu vejo, com algumas exceções, uma interlocução com um auditório que já amadureceu na democracia ou, pelo menos, num regime de enunciado democrata. A democracia nunca está completa. A democracia é sempre mais. Os direitos não são relações, não é um estoque legislativo que se implanta numa prateleira normativa. São novas relações, são novas emancipações, novas formas de reconhecimento. Estamos vivendo conjunturas dramáticas, mas a gente sabe que eles passam e é possível trazer para o lado experiência um horizonte que opera a passagem daquilo que é a angústia da conjuntura com a expectativa de que ainda assim há acumulado para produzir novas e mais avançadas transformações.

           Não nos esqueçamos, contra a angústia, que a gente não pode sucumbir a ela, mas trabalhar para exercitá-la. E o povo que cuspia na tumba do czar era o mesmo que, no dia anterior, beijava o chão que ele pisava. Não nos esqueçamos disso! Que consciência eclodiu com a constatação de que somos amorfos, de que somos conformistas, de que somos alienados. Paulo Freire, com Goldman, lembrava a passagem da consciência real à consciência possível. A consciência real, a que gente mede aqui e agora, é a consciência possível que é esta memória histórica e nos habilita em momentos de perigo a operar sínteses de mobilização. Como disse o Paulo Vannuchi, que agora já foram antecedidas pelas mulheres, pelos indígenas, pela bandeira Mapuche que foi colocada como símbolo da luta no Chile. O que é a bandeira Mapuche? Porque foram os indígenas que desceram para La Paz, na Bolívia? Porque foram os indígenas que avançaram no Equador? Porque são eles que estão com a consciência possível alargada, antes mesmo que muitos de nós nos déssemos conta de que a crise estava presente e exigia de nós uma retomada da rua, do protagonismo na luta social.

           Note-se que essa ordem de consideração sequer havia sido tocada pela superveniência da crise sanitária advinda com a pandemia do Covid 19. Os fatos e as muitas interpretações que logo se desenvolveram, nas quais, juntamente com as múltiplas incidências, invariavelmente inseriram aquelas direta e agudamente referidas ao tema direitos humanos. Eu próprio tenho tido ensejo de oferecer contribuições nesse campo. Confira-se aqui neste espaço da Coluna Lido para Você (https://estadodedireito.com.br/a-cruel-pedagogia-do-virus/) e mais especificamente no conjunto de textos que integram livro que organizei juntamente com Alberto Amaral e Talita Tatiana Dias Rampim, para a Editora D’Plácido de Belo Horizonte, no prelo, com edição prevista ainda para este ano de 2020: Direitos Humanos e Covid – 19: grupos sociais vulnerabilizados e o contexto da pandemia.

           O Balanço foi publicamente lançado neste novembro de 2020 e por isso, indeclinavelmente, num contexto recrudescido pelo obscurantismo desse período. Algo que coincide com os termos conclusivos postos na publicação: “Por fim, o obscurantismo deste período como estratégia das forças conservadoras aponta para a complexidade e desafios que se colocam nas dimensões teórico-políticas no campo da defesa dos direitos humanos diante de uma intensa disputa nas narrativas, como a defesa de direitos – cidadão de direitos versus mercantilização dos direitos – cidadão – consumidor, uma vez que toma corpo na ação governamental a perspectiva autoritária, uma razão instrumental, pragmática e gerencialista no âmbito estatal, e que também se afirma como expressão cotidiana, do individualismo, consumismo e do isolamento dos sujeitos, destituindo-os da perspectiva histórica. É a ideia do não sujeito – desviando-o da vida política e pública gerando uma aversão à política no sentido largo do termo”.

E como tendência deste governo observa-se, ainda, diz o texto “a militarização na sua composição.            Desde o processo de abertura lenta e gradual da ordem democrática, este é o governo que apresenta um maior número de militares nos cargos do executivo federal, ocupando cargos civis, num total de 2.930 integrantes das forças armadas da ativa e cedidos ao governo, 92,6% estão em postos abertos no governo Bolsonaro; 7,2% no Judiciário e 0,03% no Congresso. Esses dados são do Tribunal de Contas da União que, em razão da crescente presença militar tomou uma definição por realizar um levantamento com vistas a identificar se não há por ocasião da ocupação destes cargos desvirtuamento da função.

           O governo de Jair Messias Bolsonaro se caracteriza por sua feição ultraliberal, teocrática e civil-militar e dado sua definição conservadora, “terrivelmente cristã”, dá sinais de que não tem interesse pela agenda dos direitos humanos numa perspectiva universal e de respeito às diferenças. Mas, suas ações e medidas executivas e legais caminham por uma visão punitivista dos direitos humanos, seletiva, excludente. É também uma ação de apagamento da memória, da história de luta da sociedade brasileira queimar, incinerar documentos de direitos humanos é exterminar a memória de luta social participativa. Inclusive, pauta uma outra narrativa quanto a inexistência no Brasil e na América Latina de um período de ditadura militar, marcado por torturas e desaparecimentos políticos. Para o governo em curso o que houve “foi uma transição pacífica num período em que o país foi governado pelas forças armadas” (sic) .

           Os entraves na efetivação do PNDH-3 se complexificaram neste cenário de fragilidade política da institucionalidade democrática e que se coaduna com o projeto político em curso  de cunho ultraliberal, em defesa de um modelo de família,  moralista de base neopentecostal, na defesa da propriedade privada; do estado mínimo no social e máximo para os interesses do mercado/ economia e com  forte ação punitivista e racista, elegendo como inimigos reais para ataque público permanente os movimentos sociais urbanos e rurais, populações de territórios tradicionais, populações negras, mulheres e LGBTQ+.

           As lutas sociais são criminalizadas, demarcadas e tipificadas como terrorismo e perturbação da ordem. Uma vez que o centro deste governo é a defesa da propriedade privada, elegeu como inimigos da chamada ordem conservadora os movimentos de sem-teto urbano e sem-terra rural, sindical, partidos de oposição e feministas, na sua alegoria no vídeo “o Leão contra as hienas”, conforme definição do gabinete do ódio bolsonarista. E, com reforço a esta perspectiva de criminalização das lutas sociais o governo conta com o suporte institucional do Legislativo, do Judiciário e da mídia corporativa como expressão evidente de uma necropolítica de Estado, a fim de exterminar pela anuência do Estado a população preta periférica, indígenas e quilombolas.

           E, por fim, é importante chamar a atenção para a perda real dos parâmetros que deve nortear a ação de um Estado laico, conforme as definições na Carta Constitucional de 1988. Apesar das análises apontarem que hoje os ataques à laicidade são mais evidentes, é fato que nestes mais de 30 anos da Constituição Federal, a laicidade sempre foi uma questão, uma vez que nunca foi respeitada. Mas, agora toma novos formatos e contornos com notória adesão e consentimento social por expressar interesses e valores morais de dado setor da sociedade brasileira ancorado na mercantilização da fé. A moralização cristã evangélica de base neopentecostal em curso se efetiva via o adestramento social a um modelo de sociedade e família que se contrapõe à perspectiva da razão e dos direitos humanos.

           As reflexões que aqui trazemos se deram em roda, onde cada ponto do novelo puxou novos pontos que nos inspiraram em meio a dureza necessária da crítica para compreendermos os nós que se apresentam na luta em defesa dos direitos humanos, na sua totalidade, universalidade, mas, sobretudo, na sua singularidade a partir da vivência dos sujeitos em suas conexões e interconexões com classe, gênero/sexualidade e étnico/racial, tendo como horizonte um novo padrão societário, utópico, que permita vislumbrar a luta por igualdade na riqueza das diferenças e diversidades da nossa condição de pessoas marcadas diariamente por lutas e resistências”.

           O fecho da publicação, permite um esquematismo, que não reduz o alcance dos aprendizados e desafios postos pelo PNDH3, tal como os apontaram os participantes do Seminário:

  • PNDH-3 é resultado de processo de disputas, diálogos, sobre a interdependência dos direitos humanos, como uma Programa/Plano na ação para o Estado, no entanto, se revelou com pouca efetividade governamental, inclusive na disposição orçamentária;
  • O PNDH-3 tem uma dimensão educativa a ser explorada para o enfrentamento das desigualdades de classe, gênero, étnico-racial e vivência sexual, como instrumento de estímulo à forma ativa da cidadania;
  • Alguns campos de luta continuarão a ser objeto de enfrentamento na atual conjuntura, como o modelo de desenvolvimento e direitos humanos; direito à memória e à verdade; os direitos sexuais e direitos reprodutivos; dos direitos da população negra, povos tradicionais e LGBTQ+;
  • O PNDH-3 é um instrumento para a luta política por anunciar um novo projeto de sociedade, civilizatório;
  • PNDH-3 tem possibilidades de abrir canais de interlocução, referenciado nos seis eixos, aproveitando as “brechas”, os espaços em aberto, para disputa de sentidos, denunciar violações, os impactos das ações ultraliberais deste governo e fortalecer as resistências para radicalizar a luta por direitos;
  • A defesa do direito à vida, para além da concepção, mas também das condições materiais vitais e objetivas para enfrentamento ao golpismo e ao anti-direito, diante das violações que a perspectiva fundamentalista exerce sobre os corpos políticos femininos, negros;
  • É necessário avaliar o PNDH-3 numa lógica processual e histórica para enfrentar os nós éticos dos pontos conflitantes e divergentes, não ter medo de enfrentar pontos que nos diferenciam da pauta conservadora: direito à vida, o aborto, casamento homoafetivo, propriedade privada, isto também não é consenso dentro do campo da esquerda;
  • O PNDH-3 não conseguiu ser determinante para induzir políticas, mas se estruturou como lógica da ação estatal; e neste governo, por sua clara linha política, há um abandono, negação, destituição deste acúmulo político;
  • O PNDH-3 enquanto experiência histórica apresentou convergências e diálogos possíveis na luta dos direitos humanos, mas atualmente é muito mais instrumento para luta política a disputa de narrativas do que indutor de políticas públicas.
  • A questão que se coloca aqui é: não se trata de salvar o PNDH-3, mas refletir sobre sua capacidade política para incidir sobre a política e como instrumento para pensar nossa capacidade política futura;
  • É preciso, nesta conjuntura, reposicionar o debate da luta dos direitos humanos e em conjunto com os sujeitos nos territórios, fortalecer a ação territorial e as novas exigências que a cultura política nos coloca para as ações de resistência.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

 

Justiça Comunitária

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

Justiça Comunitária. Por uma justiça de emancipação. Gláucia Falsarella Foley. Belo Horizonte. Editora Fórum, 2010, 200 p.

            O Programa Justiça Comunitária criado e desenvolvido pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal, cumpre neste ano, 20 anos de atividades contínuaJá em 2005, pouco depois de criado, o Justiça Comunitária foi o vencedor da 2ª edição do Prêmio Innovare, na categoria Tribunal de Justiça, e desde então tem sido apontado como referência nacional pelo Ministério da Justiça.

           Para marcar os 20 anos de existência do programa Justiça Comunitária, um seminário on-line será promovido em 12 e 13 de novembro. O I Seminário Nacional de Mediação Comunitária — Construindo um Futuro de Paz ocorre em parceria com o programa EUROsociAL da União Europeia. O evento debaterá questões relacionadas à mediação comunitária, além de compartilhar experiências internacionais e traçar estratégias políticas para o fortalecimento da prática. Na ocasião, será lançada a 2ª edição do Manual de Mediação Comunitária elaborado pela juíza de Direito do TJDFT Gláucia Falsarella Foley e pela consultora Célia Passos. O seminário será aberto para todos e ocorrerá na plataforma Zoom.

             A programação do Seminário, já expressa em seu conteúdo uma síntese da fortuna crítica do projeto. Claro que ele se abre com solenidade, com registro audiovisual, apresentações culturais (cordel comemorativo e encerramento com celebração) dos 20 anos, mas proporciona uma oferta substantiva com o lançamento da 2ª edição do Manual de Mediação Comunitária, que tem a autoria da juíza Gláucia Foley e da consultora Célia Passos. Mas, sobretudo pela estrutura das mesas e de seus participantes convidados, proporcionando uma interlocução ampla e internacionalizada sobre conceitos e diretrizes orientadoras da proposta: MESA MEDIAÇÃO E CONVIVÊNCIA,  Francisco Díez (Argentina) – Construção da paz diante das violências estruturais; Fadhila Mammar (Tunísia) – O medo do outro – exclusão e não integração; Alejandro Natò (Argentina) – Mediação Comunitária na perspectiva dos Direitos Humanos. MESA COM AGENTES COMUNITÁRIOS 1 – Mediador comunitário: quem são, como são capacitados e qual a sua função (moderadora Thais Andreozzi – Brasil); 2 – Experiências e vivências do mediador comunitário nos 20 anos do Programa Justiça Comunitária (moderadora Vera Lúcia Soares – Brasil); 3 – Justiça comunitária em tempos de pandemia e perspectivas de futuro – (moderador Cláudio Monteiro Benício – Brasil). MESA TEMÁTICA, na qual participo, com Juan Vezzulla (Argentina) – Mediação Comunitária; José Geraldo de Sousa Junior (Brasil) – Educação para os Direitos; Célia Passos (Brasil) – Processos Circulares; Gláucia Foley (Brasil) – Mediadora da Mesa.

         Há alguns anos, vivenciei a forte experiência de participar, como painelista, de um encontro de juízes no Rio Grande do Sul, convocados por suas entidades associativas para discutir a crise da conjuntura: da ordem econômica internacional, do sistema judiciário, da lei e da subjetividade dos magistrados. Neste painel, chamava a atenção, a presença majoritária de palestrantes psicanalistas.

            Lembro desse encontro pela afirmação forte do mais reconhecido expoente entre os seus pares, incumbido da fala de clausura, de que “os juízes se encontravam no fundo da lata de lixo da história”. A afirmação fora feita na confiança de que ali se encontravam alguns poucos convidados não pertencentes à categoria de juízes, mas suficientemente solidários para entenderem que o desabafo não traduzia uma rendição, ou o desalento angustiado mas, ao contrário, um chamado à mobilização por quem dispunha de força e protagonismo bastantes para exercitar a insegurança própria a tempos de crise, sem se deixar sucumbir às suas incertezas.

            Daquele encontro e das constatações que ele permitiu estabelecer, pude extrair referenciais paradigmáticos posteriormente apresentados em livro de cuja organização participei (padre José Ernnanne Pinheiro, José Geraldo de Sousa Junior, Melillo Dinis e Plínio de Arruda Sampaio (orgs). Ética, Justiça e Direito. Reflexões sobre a reforma do Judiciário, Rio de Janeiro, Editora Vozes, 1ª. edição, 1996) mostrando que as profundas alterações que se dão na sociedade e nos valores que estruturam as bases éticas das instituições, afetam igualmente o Judiciário e os Juízes, postos diante da necessidade de compreender essas mudanças. O claro esgotamento do modelo ideológico da cultura legalista da formação dos juristas e dos magistrados e o franco questionamento ao papel e à função social dos juízes, não poucas vezes tem empurrado seus principais órgãos e operadores à inusitada situação identificada pelo sociólogo Boaventura de Sousa Santos, segundo a qual, “faz-se da lei uma promessa vazia”.

            As alternativas abertas para lidar com as aporias derivadas dessas múltiplas crises tem apontado para a necessidade de reconhecer que, da contraposição entre o direito oficialmente instituído e formalmente vigentes e a normatividade emergente das relações sociais, de um lado; e da distinção entre a norma abstrata e fria das regras que regem os comportamentos e a normatividade concreta aplicada pelos juízes de outro; têm-se acentuado a pertinência de compreender novas condições sociais, como a emergência de movimentos sociais, de novos conflitos, de novos sujeitos de direitos, e do pluralismo jurídico que instauram e reclama reconhecimento.

            Aplicadas aos juízes e à juíza Gláucia Foley, essas categorias traduzem as expectativas de mediação humanística entre visão de mundo e consciência social, de modo a traduzir aquela exigência funcional já destacada por Bistra Apostolova (Perfil e Habilidades do Jurista: razão e sensibilidade): como “a habilidade de ver o outro como diferente e saber colocar-se no lugar dele, e desse modo, desenvolver a capacidade de imaginar e de compreender, essencial na formação do bacharel”.

         Ela vem se juntar àquela estirpe de juízes que, no Supremo Tribunal Federal – Victor Nunes Leal e Evandro Lins e Silva – souberam exercitar a compreensão plena do ato de julgar, rejeitando a falsa oposição entre o político e o jurídico, ao entendimento de que, para se realizar, “a justiça não deve encontrar o empecilho da lei”. Provedores de uma justiça poética é esta estirpe de juízes que, lembra Josaphat Marinho em discurso de homenagem a Víctor Nunes Leal na UnB, citando Aliomar Baleeiro, leva a jurisprudência do Supremo a andar pelas ruas porque, “quando anda pelas ruas, colhe melhor a vida nos seus contrastes e se prolonga pela clarividência da observação reduzida a aresto”.

           Essa a razão principal, certamente, que terá levado a Deputada Érika Kokay, de firme trajetória na defesa dos direitos humanos e cidadania, a identificar na Juíza Gláucia Falsarella Pereira Foley, a intérprete sensível capaz de reconhecer e assegurar as condições de mediação institucional para o acolhimento do protagonismo social coletivo que se move para realizar direitos, e assim, a ela conceder o título de cidadã honorária de Brasília, festejado em sessão solene na Câmara Legislativa do Distrito Federal – CLDF, em cerimônia marcante em 3/5/2013.

            Tive o ensejo de ser convocado como orador na cerimônia e de poder ter destacado os avultados méritos da homenageada, mas principalmente de mostrar que por meio do Projeto Justiça Comunitária, inicialmente Justiça Itinerante, ela desencadeou os procedimentos institucionais para instalar, na organicidade do Tribunal de Justiça do DF, uma proposta, diz ela, em livro no qual relata a experiência, de uma justiça emancipatória. Prática reconhecida e premiada (Prêmio Innovare de 2005 (Escola de Direito da FGV-Rio, Associação dos Magistrados Brasileiros, Secretaria de Reforma do Judiciário, do MJ e Associação do Ministério Público), o modelo traduz, nas suas próprias palavras em artigo elaborado em co-autoria com o Secretário de Reforma do Judiciário Flávio Crocce Caetano (http://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/artigos/2013/justica-para-todos-2013-juiza-glaucia-falsarella-foley, acesso em 02/05/2013), a proposta de “democratizar radicalmente o acesso à Justiça, mitigando a sua clássica associação com acesso ao Judiciário. Afinal, se os conflitos emergem onde a vida acontece, as possibilidades de sua resolução não podem se limitar aos rígidos pilares da liturgia forense. E é somente por meio das múltiplas vozes que ecoam nos diálogos plurais e, sobretudo acessíveis, que a justiça e a paz estarão ao alcance de todos”.

            Com força para se internacionalizar, dado o apoio das Nações Unidas (PNUD) e da Agência Brasileira de Cooperação, o trabalho da Juíza Gláucia Foley ganhou nota de referência assinada por Boaventura de Sousa Santos em seu livro Para uma Revolução Democrática da Justiça (São Paulo: Cortez Editora, 3ª. edição, 2010), que o qualificou de “extraordinário”. Dedicando-lhe toda uma seção, este excerto dá a medida da importância que lhe confere: “A experiência de justiça comunitária no Brasil está relacionada com o impulso dos tribunais de justiça estaduais em capacitar os membros das localidades mais pobres a prestar orientação jurídica e dar solução a problemas que não poderiam ser solucionados devidamente no judiciário por não se adequarem às exigências formais/probatórias do juízo ou porque não obteriam uma pronta resposta na justiça oficial. A mediação é o meio de solução de conflitos do qual o projeto lança mão. A formação do agente comunitário é contínua, conjugando um período de formação teórica inicial com a prática nos casos que aparecem no quotidiano”.

            Agora, em depoimento gravado para marcar a celebração dos 20 anos, o professor Boaventura de Sousa Santos, reafirma essa percepção que vem colhendo em seu acompanhamento do Programa e reafirma a sua importância como inovação, democratização e aproximação da Justiça aos anseios, às aspirações e às práticas das comunidades marginalizadas e vulnerabilizadas às quais o projeto se destina e reforça a sua proposta de capacitação das comunidades, mas também dos operadores do sistema, não porque ela seja um complemento da jurisdição formal, mas porque enquanto mediação participativa e dialógica, é um modo de expansão e de acesso à própria Justiça que assim, se abre para o reconhecimento e ao acolhimento dessas expectativas de inclusão.

            Inscrito na institucionalidade, como programa organizado pelo Tribunal de Justiça, a Justiça Comunitária, tão bem fundamentada na prática do acesso democrático e na teoria, como se vê  em sua dissertação brilhantemente apresentada e defendida pela Juíza em seu Mestrado na Faculdade de Direito da UnB, carrega a marca que tive o cuidado de assinalar em texto que publiquei (Mediação Popular de Conflitos, in José Geraldo de Sousa Junior, Ideias para a Cidadania e Para a JustiçaPorto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008), escolhendo uma afirmação da Juíza Gláucia que a meu ver, é a sua melhor síntese: ”A Justiça Comunitária representa um conjunto de movimentos necessários para impulsionar a universalização do acesso à Justiça, por meio de um modelo sem jurisdição, efetivamente operada na comunidade, para a comunidade e, sobretudo, pela comunidade”.

            No livro ora Lido para Você, um de seus prefaciadores Joaquim Falcão, realça essa síntese e a confirma, assinalando que no livro, “Um dos caminhos a um Judiciário mais acessível à população e mais eficiente é desvendado. Não se verá aqui a construção de uma teoria baseada em um mundo ideal. Em um mundo no qual todos têm acesso aos direitos e bens considerados mínimos e essenciais. A discussão aqui ocorre com base no mundo real. Com os pés encharcados nos chãos do Brasil. O mundo das desigualdades. Materiais e imateriais. E do reconstruir o futuro aparentemente inevitável. Ter duas mãos e o sentimento do mundo, diria o mineiramente brasileiro Carlos Drummond. O ponto de partida é o reconhecimento pelo Estado, ainda que de forma tácita, de não ser ele o único detentor da prestação da Justiça. Para que haja a Justiça é necessário que a própria sociedade se concretize de seus deveres. E a paz social está entre eles. Com essa mudança de foco, tem-se uma sociedade mais ativa, mais responsável, mais participativa. No final, uma sociedade com menos exclusão. Com mais cidadania”.

            No livro, a Autora descreve e caracteriza institucional e politicamente O Programa Justiça Comunitária do Distrito Federal, mas não de modo a circunscreve-lo no funcional-burocrático. Ela situa a proposta no marco do Paradigma Moderno e em sua Reconstrução Teorética, as Ressonâncias nas Teorias da Justiça (em Debate), em Decorrência da Crise do Paradigma Moderno e aponta para A Realização da Justiça a partir de Modelos de Resolução de Conflitos, de onde busca os Elementos para a Construção da Justiça Comunitária, que se represente numa Justiça Comunitária para a Emancipação.

            Um roteiro consistente e bem fundamentado com rigor teórico que é bem avalizado pelo outro prefaciador Professor Cristiano Paixão que foi fundamental na orientação da dissertação desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Direito, da Faculdade de Direito, da Universidade de Brasília: “Num quadro tão complexo, em que não há lugar para soluções prontas, surgem alternativas possíveis, interessantes, inesperadas. Uma delas é a reflexão em torno da justiça comunitária, na forma em que apresentada e desenvolvida por Gláucia Foley. A abordagem da autora não parte do pressuposto – simplista e redutor – de formulação de uma modalidade de resolução de conflitos que sirva tão somente para diminuir o número de processos submetidos ao Poder Judiciário. O livro, em sua principal tese, contém bem mais do que isso. A obra aponta para uma justiça de emancipação, que permita a afirmação de direitos e demandas por inclusão numa sociedade complexa e multifacetária. E essa indicação não se encontra apenas no texto de um bem-sucedido trabalho acadêmico. Como o último capítulo do livro revela, o Justiça Comunitária já é uma realidade concreta, uma experiência em andamento, um projeto com uma expressiva história já escrita por meio de suas práticas. A obra chega, então, no momento exato. No momento de demonstrar que, se são muitas as concepções e formas da justiça, são igualmente plurais os meios de acesso à jurisdição. Essas modalidades de acesso se traduzem num direito experimentado em sua acepção mais ampla, libertária, emancipatória, tudo isso compreendido no paradigma do Estado Democrático de Direito”.

            “Feito pela comunidade e para a comunidade. “É uma prática social transformadora. Um programa escolar que oferece curso de formação para que a própria população possa lidar com os conflitos e entender os direitos e deveres de cada um”, afirma a juíza Gláucia Falsarella Pereira Foley,  idealizadora do projeto.

            É a partir de uma configuração crítica desse enviesamento ideológico que se torna possível pensar os processos sociais e operar soluções para os conflitos que dele emergem (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Mediação Popular de Conflitos. Revista do SinjusDF, nº 40, maio de 2007, p. 4). Mediar conflitos, portanto, requer atuar em uma situação de alteridade sem hierarquias, sejam as que opõem as práticas do social às prescrições da autoridade localizada no Estado; do Direito adjudicado por um especialista (o juiz) a partir de uma pauta restrita (o código, a lei), em relação a sujeitos que não são reconhecidos em suas identidades (ainda não constituídos plenamente como seres humanos e cidadãos) e que buscam construir a sua cidadania por meio de um protagonismo que busca o direito no social, em um processo que antecede e sucede o procedimento legislativo e no qual, o Direito, que não se contêm apenas no espaço estatal e dos códigos é, efetivamente, achado na rua.

         Em artigo (Acesso universal à Justiça, Correio Braziliense, Brasília, 26/06/2007, pág. 19), a juíza Gláucia Falsarella Foley referiu-se a um conjunto de movimentos necessários para impulsionar a universalização do acesso à Justiça, aludindo a uma Justiça sem jurisdição porque efetivamente operada na comunidade, para a comunidade e, sobretudo, pela comunidade.

         Cuida-se assim, conforme destaquei em prefácio ao livro de José Eduardo Romão (Justiça Procedimental. A prática da mediação na teoria discursiva do direito de Jürgen Habermas, Maggiore Editora/UnBFaculdade de Direito, Brasília, 2005), de trazer ao Direito descolonizado, como propõe o autor, uma dimensão dialógica para a mediação, de modo que ela possa se constituir, como indica um outro autor (Luis Alberto Warat (O Ofício do Mediador, Florianópolis: Habitus Editora, 2001), um trabalho de reconstrução simbólica, imaginária e sensível, com o outro do conflito e de produção com o outro, das diferenças que permitam superar as divergências e formar identidades culturais. A mediação é então compreendida como um procedimento de tradução como propõe Boaventura de Sousa Santos, ou seja, capaz de criar uma inteligibilidade mútua entre experiências possíveis e disponíveis para o reconhecimento de saberes, de culturas e de práticas sociais que formam as identidades dos sujeitos que buscam superar os seus conflitos.

         Numa perspectiva de alargamento do acesso democrático à justiça (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Uma Concepção Alargada de Acesso à Justiça. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Idéias para a Cidadania e para a Justiça.Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008, o. 101-102), não basta institucionalizar os instrumentos decorrentes desse princípio, é preciso também reorientá-los para estratégias de superação desses mesmos pressupostos. Principalmente pelo Poder Judiciário que se mostrado extremamente recalcitrante à abertura de espaços para a ampliação das condições democráticas de realização da justiça.

         Nesse sentido, algumas contradições precisam ser resolvidas. Primeiro, criar condições para inserir no modelo existente de administração da justiça, a ideia de participação popular que não está inscrita em sua estrutura; segundo, superar o obstáculo de uma demanda de participação popular não estatizada e policêntrica, num sistema de justiça que pressupõe uma administração unificada e centralizada; terceiro, fazer operar um protagonismo não subordinado institucional e profissionalmente, num sistema de justiça que atua com a predominância de escalões hierárquicos profissionais; quarto, aproximar a participação popular do cerne mesmo da salvaguarda institucional e profissional do sistema que é a determinação da pena e o exercício da coerção; quinto, considerar a participação popular como um exercício de cidadania, para além do âmbito liberal individualizado, para alcançar formas de participação coletiva assentes na comunidade real de interesses determinados segundo critérios intra e trans-subjetivos.

         Pode residir aí a situação percebida pela juíza Gláucia Falsarelli Foley, responsável em Brasília, pelo programa de justiça comunitária, quando se refere ao conjunto de movimentos necessários para impulsionar a universalização do acesso à Justiça, pleiteando, assim, por uma Justiça sem jurisdição porque, repito com ela, “efetivamente operada na comunidade, para a comunidade e, sobretudo, pela comunidade”.

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

 

Trabalhadores Pobres e Cidadania

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

SOUSA, Nair Heloisa Bicalho de. Trabalhadores Pobres e Cidadania. A experiência da exclusão e da rebeldia na construção civil. Uberlândia: EDUFU, 2007, 258 p.

                 Num tempo de globalização econômica, de permanente revolução tecnológica, em que a criação de emprego e o próprio emprego perdem, aparentemente, o seu vínculo finalístico com o processo de criação social de riqueza, a ideia do trabalho como centralidade do sistema de produção e eixo da solidariedade democrática, passou a ser uma ideia vulnerável.

            O trabalho havia sido, durante a construção da modernidade capitalista e do consenso liberal, o fator ético do próprio contrato social e a condição de acesso à cidadania e aos direitos. De fato, ao longo do século XIX e durante a segunda metade do século XX, as lutas operárias se constituíram um catalisador de conquistas sociais e o protesto operário foi, em grande parte, o garantidor da universalização de direitos civis e políticos e de conquista de novos direitos, não somente vinculados ao mundo do trabalho, mas também econômicos e sociais. Não apenas específicos para os coletivos de trabalhadores, mas universalizáveis, na sua expressão própria de direitos humanos.

 

           

            Num sistema de produção e distribuição da riqueza social globalizados, com mercados livres de controles e com tecnologias que criam riquezas, mas não empregos, o trabalho entrou num nível de segmentação e de fragilização organizativa, comprimido num sistema regulatório que o fragiliza e enfraquece suas formas de organização. Estas condições, diz Boaventura de Sousa Santos, levam a uma lógica de exclusão, facilitada por mecanismos lenientes de flexibilização de garantias, levando a que, em muitos países, a maioria dos trabalhadores entrem no mercado de trabalho já desprovidos de qualquer direito.

            Por essa razão, Boaventura de Sousa Santos indica que o direito e a redescoberta democrática do mundo do trabalho são fatores cruciais para a construção de novas sociabilidades, resgatando a globalização para a solidariedade e a produção da riqueza social para uma lógica de distribuição inclusiva.

            É claro que essa tarefa não se realiza sem se conceber círculos amplos de alternativas e de estratégias, como por exemplo, o Fórum Social Mundial, realizado em Porto Alegre, e a sua projeção para um novo mundo possível. Mas não se realiza, também, sem um repensar das estratégias sindicais, mais politizadas na configuração de seus antagonismos sociais, mais conscientes do alcance internacional de suas reivindicações, mais engajadas na condição civilizatória das lutas que devam ser travadas por um mundo melhor, no qual, como diz Sousa Santos, nada que tenha a ver com a vida dos trabalhadores, mas também dos que não são trabalhadores de outros grupos ou movimentos sociais, seja deixado de fora de sua pauta de direitos.

            A questão se coloca quando se trata de saber se os operadores e os agentes políticos estarão à altura das expectativas civilizatórias que os desafiam, no plano constitucional e no plano convencional (para a salvaguarda de direitos)? Nessa quadra dramática de interpelação a um paradigma civilizatório, serão alcançados nos seus misteres para, com a tempestade que desaba sobre o mundo, limpar “a maquilhagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso «eu» sempre preocupado com a própria imagem; (e deixar) a descoberto, uma vez mais, aquela (abençoada) pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos”, como exorta o Papa Francisco em sua Homilia Adoração do Santíssimo e Benção Urbi et Orbi, pronunciada em seu exemplar distanciamento social na grande praça de São Pedro, totalmente vazia, em 27 de março de 2020?

            Será o Direito, realmente Direito se, como exortou Francisco, não for “capaz de resgatar, valorizar e mostrar como as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns (habitualmente esquecidas), que não aparecem nas manchetes dos jornais e revistas, nem nas grandes passarelas do último espetáculo, mas que hoje estão, sem dúvida, a escrever os acontecimentos decisivos da nossa história: médicos, enfermeiros e enfermeiras, trabalhadores dos supermercados, pessoal da limpeza, curadores, transportadores, forças policiais, voluntários, sacerdotes, religiosas e muitos – mas muitos – outros que compreenderam que ninguém se salva sozinho”, e operar para realizar e ser instrumento por meio da eficácia horizontal dos direitos humanos nas relações justrabalhistas, conforme sustenta a Autora, em sua conclusão, e buscar (p. 144) “para além da pacificação social, (a) concretização dos ideais de igualdade material, de democracia e de justiça social, com a consolidação do valor trabalho (digno) ancorado na centralidade da pessoa humana e sua dignidade”?

            Uma resposta já se apresenta de imediato, procedente daquela mesma fonte bi-centenária que expressamente inspirou a constituição do campo dos direitos sociais e do trabalho e a formação da OIT, a Rerum Novarum. Em Carta aos Movimentos Sociais no domingo de Páscoa (12/4) exortou o Papa Francisco: “Talvez seja a hora de pensar em um salário universal que reconheça e dignifique as tarefas nobres e insubstituíveis que vocês realizam; capaz de garantir e tornar realidade esse slogan tão humano e cristão: nenhum trabalhador sem direitos. Também gostaria de convidá-los a pensar no “depois”, porque esta tempestade vai acabar e suas sérias consequências já estão sendo sentidas. Vocês não são uns improvisados, têm a cultura, a metodologia, mas principalmente a sabedoria que é amassada com o fermento de sentir a dor do outro como sua. Quero que pensemos no projeto de desenvolvimento humano integral que ansiamos, focado no protagonismo dos Povos em toda a sua diversidade e no acesso universal aos três T que vocês defendem: terra e comida, teto e trabalho”.

   Um livro muito interessante, forte nesta compreensão, foi editado pela Editora da Universidade Federal de Uberlândia (Trabalhadores Pobres e Cidadania: a experiência da exclusão e da rebeldia na construção civil, 258 p., http://www.edufu.ufu.br), antecipando em parte essa urgência de atenção solidária com as exigências de dignificação do trabalho dos mais pobres. A autora é Nair Heloisa Bicalho de Sousa, professora da Universidade de Brasília, onde também coordena o Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos. Autora de uma obra de referência nesse campo (Construtores de Brasília. Estudo de operários e sua participação política. Petrópolis: Vozes, 1983), com o acumulado de uma rica, extensa e qualificada investigação, ela trabalha os materiais de uma vasta pesquisa realizada de 1989 a 1992 entre operários da construção civil do Distrito Federal (DF e Entorno), Natal, João Pessoa, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo, portanto, trabalhadores pobres no limite da exclusão do sistema produtivo, e discorre sobre o processo de formação do sujeito coletivo na construção civil. Com base nas suas experiências no mundo privado e nos conflitos vivenciados no cotidiano de trabalho, nos quebra-quebras e nas greves, ela constata a configuração de uma identidade de interesses compartilhados, que tornam possível a instrumentalização de uma luta coletiva pela criação de direitos.

            Todas essas manifestações apontam para um novo mundo solidário que se oriente, “na ausência generalizada de estrelas no céu, ou de referências básicas de orientação”, conforme indica o Papa Francisco na sua última encíclica, a Fratelli Tutti, a restauração da “consciência histórica” e de um “projeto comum de sociedade”, desconstruídos pela “cultura do consumismo e do descarte”, e assim, estabelecer ética e comunitariamente solidariedade fraterna e compromissos políticos para resguardar “os direitos humanos”, em superação “a medos, conflitos e polarizações exacerbadas”, em direção a uma economia globalizada que não reduza o valor do humano e do trabalho e que não aprofunde o fosso que separa “uma parte da humanidade (que) vive na opulência, e outra parte (que tem) a própria dignidade não reconhecida, desprezada ou espezinhada, e os seus direitos fundamentais ignorados ou violados”.

            Por isso se mostra tão importante a mobilização dos uberizados, a mais precarizada condição do trabalho hoje, e o destaque que uma de suas lideranças, no Brasil, Paulo Lima Galo quando chama a sua categoria a se mobilizar na defesa de direitos e ser protagonista de conquistas, incluindo novos marcos legais. Em suas últimas mobilizações, com paralizações significativas, os entregadores por aplicativo marcaram os pontos estratégicos de sua ação política, no atual: 1. Entregadores são trabalhadores essenciais e não contam com políticas de proteção ou auxílio durante a pandemia; 2. Entregadores recebem valores aviltantes, ainda mais com  a pandemia e a necessidade do isolamento social, porque as empresas contrataram um número maior de entregadores, o valor das taxas por cada entrega diminuiu, assim como a quantidade de pedidos para cada um;  3. Os APPs obrigam os entregadores a trabalhar nos finais de semana e os bloqueiam quando querem; 4. As empresas não têm nenhuma responsabilidade com estes trabalhadores, pois a legislação neoliberal não atribui responsabilidade das contratantes com os entregadores; 5. A uberização do trabalho não vai se limitar aos entregadores; 6. Esta é uma luta antirracista; 7. Esta é uma luta fundamental para derrotar o fascismo miliciano instalado no País.

            Se até 31 de maio deste ano de 2020, apenas a extrema direita estava nas ruas, com sua defesa assassina da flexibilização do distanciamento social, responsável por 54 mil óbitos, e sucessivas ameaças golpistas. A partir de atos de categorias, como os da enfermagem, e da entrada em cena das torcidas organizadas e dos entregadores em atos pela democracia, isso começou a mudar. E prosseguiu com a série de atos Vidas Negras Importam. A entrada em cena da classe trabalhadora, em especial dos setores precarizados, que estão na vanguarda das lutas no mundo, colocam uma saída para a crise política a partir das ruas.

            Com tudo isso, é um alento ver o emergir de outras fortes mobilizações, atribuindo sentido crítico ao espaço virtual que transforma as “comunidades de solidão” que se camuflam nas redes sociais, em comunidades solidárias que repolitizam as ruas eletrônicas. Entre essas mobilizações, vejo e participo com empenho da convocação que está sendo feita nesse momento para instalar, no Brasil, entre 21 e 26 de setembro de 2021, de um Fórum Social Mundial Temático Justiça e Democracia.

            A partir de uma convocação de entidades, organizações e movimentos que convidam, apoiam e se coordenam para o realizar, entre elas o Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, vão apresentar os termos dessa convocação, numa divulgação ampla que se dará no dia 22/11, por meio do Programa do Conde e de todas as organizações que se associam nessa rede de comunicação, que será antes bem divulgada, e que se designam a partir do seguinte ponto de partida, cujo teor completo se fará no dia 22:

            “As organizações e movimentos sociais abaixo-assinados vêm por meio desta CARTA convidar a sociedade civil brasileira, latino-americana e mundial para que se engajem no processo de preparação e realização do Fórum Social Mundial Justiça e Democracia a realizar-se no Brasil, de 21 a 26 de setembro de 2021. Este processo resulta da união de várias entidades progressistas formadas por integrantes do Sistema de Justiça, a saber, os coletivos Transforma MP, Associação Brasileira dos Juristas pela Democracia, Associação Juízes para a Democracia, Associação Advogadas e Advogados Públicos para a Democracia, Coletivo Defensoras e Defensores Públicos pela Democracia e Movimento Policiais Antifascistas que, frente aos ataques ao estado democrático de direito no Brasil, na América Latina, e em outras partes do mundo, sentiram a necessidade de somar esforços para criarem iniciativas conjuntas de resistência.

             Motivados pelos processos dos fóruns sociais, estas organizações buscaram ampliar contatos e agregar novos movimentos e organizações para, num primeiro momento, promover um espaço de encontros e de compartilhamentos de percepções e informações e, num segundo momento, buscar construir condições para ações concretas e coletivas frente a desafiadora conjuntura atual…”

            É uma iniciativa forte, aberta ainda a Informações, Adesões e Contatos (facilitacaofsmjd2021@gmail.com), e de saída subscritas pelas entidades que CONVIDAM: ABJD – Associação Brasileira dos Juristas pela Democracia, AJD – Associação Juízes para a Democracia, APD – Associação Advogadas/os Públicos para a Democracia, Coletivo Defensoras/es pela Democracia, Coletivo Transforma MP, Movimento Policiais Antifascistas; por entidades que APOIAM: ABONG – Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais,  ALJT – Associação Latino-americana de Juízes do Trabalho,  APD – Academia Paulista de Direito,  AMDH – Articulação para o Monitoramento dos Direitos Humanos no Brasil, AMSUR – Instituto Sul-americano para a Cooperação e a Gestão de Estratégica de Políticas Públicas,  APIB – Articulação dos Povos Indígenas Brasileiros, ANEPS – Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde, ABEFC -Articulação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara, CBJP – Comissão Brasileira Justiça e Paz/CNBB, CLACSO – Conselho Latino-americano de Ciências Sociais,  CONAQ – Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas, CONEN – Coletivo de Entidades Negras, CUT – Central Única dos Trabalhadores – Secretaria Nacional de Assuntos Jurídicos SNAJ/CUTBrasil, DECLATRA – Instituto de Defesa da Classe Trabalhadora, FENED – Federação Nacional dos Estudantes de Direito, FESPSP – Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, GPMT – Grupo de Pesquisa Metamorfoses no Mundo do Trabalho, ICS – Instituto Cidades Sustentáveis, IMAG – Instituto de Advogados de Minas Gerais, INP – Instituto Novos Paradigmas, IDDF -Instituto Democracia e Direitos Fundamentais, IDhES – Instituto de Estudos Jurídicos de Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais, Instituto Lavoro, MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, Núcleo de Estudos para a Paz e Direitos Humanos da Universidade de Brasília, Observatório Permanente da Justiça Portuguesa do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, ONG Vida Brasil, RedhBrasil – Rede Internacional de Intelectuais, Artistas e Movimentos Sociais em Defesa da Humanidade, REMIR trabalho – Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista,  RENOSP – Rede Nacional de Operadores da Segurança Pública LGBTI+, UPMS – Universidade Popular dos Movimentos Sociais.

            Volto ao livro de Nair Bicalho. A Autora, com forte atuação no Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, onde lidera duas sub-linhas de pesquisa: Educação em direitos humanos, novos saberes e práticas pedagógicas emancipatórias e Trabalhadores, justiça e cidadania, oferece com esse livro contribuições que colocam a questão dos novos sujeitos sociais na perspectiva do sujeito coletivo de direitos (cf. Novos Sujeitos Sociais: a classe trabalhadora na cena histórica contemporânea. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de;AGUIAR, Roberto A. R., Série O Direito Achado na Rua, vol. 2: Introdução Crítica ao Direito do Trabalho. Brasília: Editora UnB, 1993). Nesse tema ela parte da ideia da pluralidade de sujeitos, cujas identidades são fruto da interação social que permitre reconhecimento, assim como seu caráter5 coletivo está vinculado à politização dos espaços da vida cotidiana e à prática de criação de direitos. Nesse sentido, a classe trabalhadora se soma às lutas de diferentes movimentos sociais (mulheres, LGBTQI+, indígenas, ecologistas e tantos mais), que entram na cena pública com suas demandas específicas de reconhecimento e negociação de direitos.

            Assim, em diálogo com suas referências bibliográficas, analisa a classe trabalhadora – porque se trata ainda de marcar essa categoria política e teoricamente – como sujeito e movimento “em permanente autofazer-se a partir do cotidiano onde estão presentes suas tradições, crenças, sentimentos e valores, mediados por relações sociais que expressam a experiência vivida a respeito de suas condições sociais de existência. Falamos assim de sujeitos com experiências comuns e identidade de intere4sses que se contrapõem às de outros agentes sociais com os quais se relacionam na sociedade”. Ao tratar da trajetória da classe trabalhadora brasileira desde 1889 até os anos 1990, a Autora demarca um cenário histórico onde4 os trabalhadores aparecem em uma trajetória de luta por direitos em contínua expectativa inovadora.

            Em Trabalhadores pobres e cidadania, Nair Heloisa Bicalho de Sousa trata exatamente do processo de formação do sujeito coletivo na construção civil a partir da vida em família, da experiência de trabalho nos canteiros de obra e da cidadania do protesto presente nos quebra-quebras, onde os trabalhadores usam a violência para garantir direitos até a vivência das greves operárias, momentos de configuração emergencial do sujeito coletivo. Com base nas suas experiências no mundo privado e nos conflitos vivenciados no cotidiano de trabalho, nos quebra-quebras, nas greves e nas representações sociais sobre justiça, lei e direito, a Autora constata a configuração de uma identidade de interesses compartilhados eu tornam possível a instrumentalização de uma luta coletiva pela criação de direitos.

            A tese exposta no livro reforça o significado transformador presente na ideia de redescoberta democrática do trabalho, como condição para projetar um novo mundo possível. Ainda que empurrados para o limite da exclusão com a supressão dos direitos da cidadania, a luta operária e sindical, quando articulada à questão da justiça, abre um campo simbólico nas representações culturais da ação, para o autoreconhecimento de um sujeito coletivo, capaz de se tornar protagonista de estratégias de alcance público que garantem legitimidade e reconhecimento para suas demandas e seu projeto de sociedade e de mundo.

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.