É comum escutarmos sobre as mazelas da escravidão e dos processos violentos e opressivos da colonização como fatos passados. Pensando-os como passado cria-se um conforto social, para os não negros e para o estado, de que já não vivenciamos os infortúnios de sermos negros escravizados na contemporaneidade.
É importante, de início, construir um marco epistemológico
distinto sobre o “tempo”, pois o tempo ocidental e moderno é completamente
distinto e violento do tempo dos povos diaspóricos, assim, passado para nós não
encerra a construção social racista e discriminatória vivenciada há mais de 500
anos. Passado e presente são a expressão real da desumanização e classificação
racial do nosso povo e de um racismo travestido de democracia.
Não esperem, portanto, que este texto, seja um conforto
social para as opressões e racismo que vivenciamos principalmente por um
Judiciário, ou por uma (in)Justiça, que tem sido instrumento e sujeito para
manutenção de um estado racista.
No último dia 24 de outubro, o Conselho Nacional do
Ministério Público realizou uma sessão para discussão e votação de um Termo de
Ajustamento de Conduta (TAC) para “regularizar” os limites sonoros durante os
cultos e liturgias das religiões de matriz africana em Santa Luzia (MG).
De acordo com o TAC e informe do Centro Nacional de
Africanidade e Resistência Afro-brasileira (CENARAB) “a casa poderia executar
as atividades somente nas quartas-feiras e em único sábado do mês, utilizando
apenas um atabaque”.
Ademais, o referido TAC impõe uma multa diária pelo
descumprimento de R$ 100,00 (cem reais), inclusive com punição para práticas de
culto silenciosas fora dos dias estipulados no referido Termo.
Temos vivenciado um acirramento nos últimos tempos de perseguições,
sejam físicas, seja político-judiciárias, às religiões de matriz africana no
Brasil. Muitos debates têm girado em torno de dois grandes pontos. O primeiro
ponto é sobre a laicidade do estado, ou seja, um país que declara
constitucionalmente ser um Estado sem um vínculo confessional com qualquer
religião, na prática tem se revelado como um Estado confessional cristão.
Segundo, pela presença de segmentos evangélicos extremistas,
particularmente, os neopentecostais, nos espaços políticos do estado, a dizer,
dentro dos poderes legislativo, executivo e judiciário, que vomitam nas suas
práticas públicas, dogmas religiosos e alianças econômicas, constituindo-se em
verdadeiros Tribunais Inquisitoriais e Cruzadas contra as religiões afro.
Neste texto privilegiarei o primeiro ponto, pois não é
objetivo deste texto, trabalhar o papel dos neopentecostais, embora central
para nossa discussão, mas importante para mim é refletir o papel do Judiciário,
dentro do Estado Democrático de direito, na construção e manutenção do racismo
religioso e manutenção de um estado confessional católico.
Assim, fundamental perguntar sobre até que ponto, embora não
acredite na neutralidade, o Judiciário que se diz e se camufla como um espaço
neutro tem sido um espaço de proteção aos direitos fundamentais
constitucionais? Em que medida, a “neutralidade” não está imbuída de dogma
religioso, por uma cultura religiosa cristã? Em que medida, para manutenção do
estado democrático de Direito, o Judiciário tem sido o capitão do mato na
captura e regularização cosmológica dos “selvagens”?
Alguns fatos podem nos ajudar a refletir sobre os
questionamentos acima.
Recentemente,
o Supremo Tribunal Federal (STF) realizou julgamento sobre Ensino religioso nas
escolas. O referido julgamento é uma expressão importante na compreensão da “neutralidade” do Judiciário e sua impregnação dentro
de uma cultura cristã. A maioria dos Ministros afirmou que o ensino
confessional nas escolas deve existir. Num país onde a cristandade é forte como
cultura e como estrutura estatal desde o tempo colônia, a decisão reflete
verdadeira inconstitucionalidade:
Segundo Gilmar, neutralidade não é o mesmo que indiferença, e a religião
é importante para a formação da sociedade. “Nem preciso dizer que a outra
proposta retira o sentido da própria norma constante do texto constitucional.
Ensino religioso passa a ser filosofia, passa a ser sociologia das religiões,
deixa de representar o ensino religioso.
Dias Toffoli também acompanhou a divergência e disse que não há uma
separação total entre Estado e religião. Lewandowski também votou pela
possibilidade de professores pregarem a religião em sala de aula, mas ressalvou
que não deve haver qualquer tipo de discriminação com alunos de outras
crenças.”[2]
Outro caso importante foi da Justiça Federal no Rio de
Janeiro emitiu uma sentença que considera que os cultos afro-brasileiros não
fazem parte de uma religião. O juiz Eugênio Rosa de Araújo, da 17ª Vara Federal
do Rio de Janeiro, entende que há a necessidade de um texto base - uma Bíblia
Sagrada, Torá ou Alcorão, por exemplo -, e que deve existir uma estrutura
hierárquica, com um deus a ser venerado, para que se constitua uma religião.
Importante
destacar parte da Sentença:
Em relação à retirada dos vídeos, bem como o
fornecimento do IP dos divulgadores, indefiro a antecipação da tutela, com base
nos seguintes argumentos. Com efeito, a retirada dos vídeos referentes a
opiniões da igreja Universal sobre a crença afro-brasileira envolve a
concorrência não a colidência entre alguns direitos fundamentais, dentre os
quais destaco: Liberdade de opinião; Liberdade de reunião;
Liberdade de religião. Começo por delimitar o campo semântico de liberdade, o
qual se insere no espaço de atuação livre de intervenção estatal e de terceiros.
No caso, ambas manifestações de religiosidade não contêm os traços necessários
de uma religião a saber, um texto base (corão, bíblia etc) ausência de
estrutura hierárquica e ausência de um Deus a ser venerado. Não se vai entrar,
neste momento, no pantanoso campo do que venha a ser religião, apenas, para ao
exame da tutela, não se apresenta malferimento de um sistema de fé. As
manifestações religiosas afro-brasileiras não se constituem em religiões, muito
menos os vídeos contidos no Google refletem um sistema de crença são de mau gosto, mas são manifestações
de livre expressão de opinião.[3]
Alguns podem estar me questionando que nada tem a ver
tribunais de inquisição ou tribunais do santo ofício com os espaços de
perseguição e violência contra as religiões de matriz africana na
contemporaneidade. Não é verdade? Recordemos a tempo e a história.
O Tribunal do
Santo Oficio criado nos fins da Idade Média, tinha por função combater qualquer
tipo de manifestação que representasse uma ameaça contra a hegemonia dogmática
católica e a hegemonia colonial.[4]
Os Tribunais da Inquisição foram um importante aliado colonial e
estruturalmente desenvolvido para opressão dos ditos “selvagens”, e,
principalmente, para retirá-los de seus territórios e enfraquecê-los enquanto
pessoas. Aprisioná-los e açoitá-los pela diferença. Verdadeiros capitães do
mato.
O que temos
vivenciado nos últimos dias, com o TAC e com o julgamento, por exemplo, pelo
STF do ensino religioso nas escolas, permite-nos influir que o Judiciário tem
sido um Tribunal da inquisição contemporâneo, que embora não declare sentenças
de morte e de penas físicas, assevera entendimentos racistas e confessionais
cristãos, que fortalecem práticas racistas de violência e discriminação.
O referido TAC e a discussão na última terça-feira reflete
justamente esse lugar de perseguição religiosa às religiões de matriz africana.
O desconhecimento da teologia afro, oral, da magia, da ancestralidade, da
coletividade, do respeito aos mais velhos, da relação do ser com a natureza –
que inclusive não cabe na categorização “sujeito de direito” – constituindo o
ser Muntu vem assinalado na proibição
do uso dos atabaques, na limitação dos dias para nossos atos espirituais e de
fé e pelo nosso silêncio.
A retórica da neutralidade e justiça são racistas!
A neutralidade a favor da barbárie. A neutralidade travestida
de justiça. A neutralidade que persegue. A neutralidade que é incapaz de
enxergar seus privilégios. A neutralidade que evidencia inconstitucionalidades
em prol de um grupo cristão. Neutralidade que tem sido fundamental para
manutenção e reforço do racismo contra religiões de matriz africana.
Temos um Judiciário cada dia mais colonizado, branco,
ocidental, liberal e lócus de injustiças contra a população negra no Brasil,
por ser incapaz de refletir os privilégios que sempre construiu em prol do
racismo e da opressão.
[1] Advogada
popular. Membro do Instituto fará Imorá odé. Doutoranda em Direito pela UNB.
[2]Disponívelem:https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2017/09/22/interna_politica,902589/virada-no-stf-e-a-favor-de-ensino-religioso-confessional-nas-escolas.shtml
[3]
Disponível em:
http://odia.ig.com.br/noticia/brasil/2014-05-16/justica-federal-define-que-cultos-afro-brasileiros-nao-sao-religiao.html
[4]
Seria ingênuo
pensar que Igreja Católica na sua missão clerical e de fé tinha na salvação
apenas a dimensão espiritual de sanar da ignorância e trazer para o reino de
Deus “os selvagens”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário