O Direito Achado na Rua: nossa conquista é do tamanho da nossa luta

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Tribunal da inquisição na modernidade: racismo religioso e inconstitucionalidade do Termo de Ajuste de Conduta do Ministério Público Federa

                                        Luciana de Souza Ramos (1)

        É comum escutarmos sobre as mazelas da escravidão e dos processos violentos e opressivos da colonização como fatos passados. Pensando-os como passado cria-se um conforto social, para os não negros e para o estado, de que já não vivenciamos os infortúnios de sermos negros escravizados na contemporaneidade.
É importante, de início, construir um marco epistemológico distinto sobre o “tempo”, pois o tempo ocidental e moderno é completamente distinto e violento do tempo dos povos diaspóricos, assim, passado para nós não encerra a construção social racista e discriminatória vivenciada há mais de 500 anos. Passado e presente são a expressão real da desumanização e classificação racial do nosso povo e de um racismo travestido de democracia.
Não esperem, portanto, que este texto, seja um conforto social para as opressões e racismo que vivenciamos principalmente por um Judiciário, ou por uma (in)Justiça, que tem sido instrumento e sujeito para manutenção de um estado racista.
No último dia 24 de outubro, o Conselho Nacional do Ministério Público realizou uma sessão para discussão e votação de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para “regularizar” os limites sonoros durante os cultos e liturgias das religiões de matriz africana em Santa Luzia (MG).
De acordo com o TAC e informe do Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro-brasileira (CENARAB) “a casa poderia executar as atividades somente nas quartas-feiras e em único sábado do mês, utilizando apenas um atabaque”.
Ademais, o referido TAC impõe uma multa diária pelo descumprimento de R$ 100,00 (cem reais), inclusive com punição para práticas de culto silenciosas fora dos dias estipulados no referido Termo.
Temos vivenciado um acirramento nos últimos tempos de perseguições, sejam físicas, seja político-judiciárias, às religiões de matriz africana no Brasil. Muitos debates têm girado em torno de dois grandes pontos. O primeiro ponto é sobre a laicidade do estado, ou seja, um país que declara constitucionalmente ser um Estado sem um vínculo confessional com qualquer religião, na prática tem se revelado como um Estado confessional cristão.
Segundo, pela presença de segmentos evangélicos extremistas, particularmente, os neopentecostais, nos espaços políticos do estado, a dizer, dentro dos poderes legislativo, executivo e judiciário, que vomitam nas suas práticas públicas, dogmas religiosos e alianças econômicas, constituindo-se em verdadeiros Tribunais Inquisitoriais e Cruzadas contra as religiões afro.
Neste texto privilegiarei o primeiro ponto, pois não é objetivo deste texto, trabalhar o papel dos neopentecostais, embora central para nossa discussão, mas importante para mim é refletir o papel do Judiciário, dentro do Estado Democrático de direito, na construção e manutenção do racismo religioso e manutenção de um estado confessional católico.
Assim, fundamental perguntar sobre até que ponto, embora não acredite na neutralidade, o Judiciário que se diz e se camufla como um espaço neutro tem sido um espaço de proteção aos direitos fundamentais constitucionais? Em que medida, a “neutralidade” não está imbuída de dogma religioso, por uma cultura religiosa cristã? Em que medida, para manutenção do estado democrático de Direito, o Judiciário tem sido o capitão do mato na captura e regularização cosmológica dos “selvagens”?
Alguns fatos podem nos ajudar a refletir sobre os questionamentos acima.
Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) realizou julgamento sobre Ensino religioso nas escolas. O referido julgamento é uma expressão importante na compreensão da “neutralidade”  do Judiciário e sua impregnação dentro de uma cultura cristã. A maioria dos Ministros afirmou que o ensino confessional nas escolas deve existir. Num país onde a cristandade é forte como cultura e como estrutura estatal desde o tempo colônia, a decisão reflete verdadeira inconstitucionalidade:

Segundo Gilmar, neutralidade não é o mesmo que indiferença, e a religião é importante para a formação da sociedade. “Nem preciso dizer que a outra proposta retira o sentido da própria norma constante do texto constitucional. Ensino religioso passa a ser filosofia, passa a ser sociologia das religiões, deixa de representar o ensino religioso.
Dias Toffoli também acompanhou a divergência e disse que não há uma separação total entre Estado e religião. Lewandowski também votou pela possibilidade de professores pregarem a religião em sala de aula, mas ressalvou que não deve haver qualquer tipo de discriminação com alunos de outras crenças.”[2]

Outro caso importante foi da Justiça Federal no Rio de Janeiro emitiu uma sentença que considera que os cultos afro-brasileiros não fazem parte de uma religião. O juiz Eugênio Rosa de Araújo, da 17ª Vara Federal do Rio de Janeiro, entende que há a necessidade de um texto base - uma Bíblia Sagrada, Torá ou Alcorão, por exemplo -, e que deve existir uma estrutura hierárquica, com um deus a ser venerado, para que se constitua uma religião.
Importante destacar parte da Sentença:

Em relação à retirada dos vídeos, bem como o fornecimento do IP dos divulgadores, indefiro a antecipação da tutela, com base nos seguintes argumentos. Com efeito, a retirada dos vídeos referentes a opiniões da igreja Universal sobre a crença afro-brasileira envolve a concorrência não a colidência entre alguns direitos fundamentais, dentre os quais destaco: Liberdade de opinião;  Liberdade de reunião;  Liberdade de religião. Começo por delimitar o campo semântico de liberdade, o qual se insere no espaço de atuação livre de intervenção estatal e de terceiros. No caso, ambas manifestações de religiosidade não contêm os traços necessários de uma religião a saber, um texto base (corão, bíblia etc) ausência de estrutura hierárquica e ausência de um Deus a ser venerado. Não se vai entrar, neste momento, no pantanoso campo do que venha a ser religião, apenas, para ao exame da tutela, não se apresenta malferimento de um sistema de fé. As manifestações religiosas afro-brasileiras não se constituem em religiões, muito menos os vídeos contidos no Google refletem um sistema de crença  são de mau gosto, mas são manifestações de livre expressão de opinião.[3]

Alguns podem estar me questionando que nada tem a ver tribunais de inquisição ou tribunais do santo ofício com os espaços de perseguição e violência contra as religiões de matriz africana na contemporaneidade. Não é verdade? Recordemos a tempo e a história.
O Tribunal do Santo Oficio criado nos fins da Idade Média, tinha por função combater qualquer tipo de manifestação que representasse uma ameaça contra a hegemonia dogmática católica e a hegemonia colonial.[4] Os Tribunais da Inquisição foram um importante aliado colonial e estruturalmente desenvolvido para opressão dos ditos “selvagens”, e, principalmente, para retirá-los de seus territórios e enfraquecê-los enquanto pessoas. Aprisioná-los e açoitá-los pela diferença. Verdadeiros capitães do mato.
O que temos vivenciado nos últimos dias, com o TAC e com o julgamento, por exemplo, pelo STF do ensino religioso nas escolas, permite-nos influir que o Judiciário tem sido um Tribunal da inquisição contemporâneo, que embora não declare sentenças de morte e de penas físicas, assevera entendimentos racistas e confessionais cristãos, que fortalecem práticas racistas de violência e discriminação.
O referido TAC e a discussão na última terça-feira reflete justamente esse lugar de perseguição religiosa às religiões de matriz africana. O desconhecimento da teologia afro, oral, da magia, da ancestralidade, da coletividade, do respeito aos mais velhos, da relação do ser com a natureza – que inclusive não cabe na categorização “sujeito de direito” – constituindo o ser Muntu vem assinalado na proibição do uso dos atabaques, na limitação dos dias para nossos atos espirituais e de fé e pelo nosso silêncio.
A retórica da neutralidade e justiça são racistas!
A neutralidade a favor da barbárie. A neutralidade travestida de justiça. A neutralidade que persegue. A neutralidade que é incapaz de enxergar seus privilégios. A neutralidade que evidencia inconstitucionalidades em prol de um grupo cristão. Neutralidade que tem sido fundamental para manutenção e reforço do racismo contra religiões de matriz africana.
Temos um Judiciário cada dia mais colonizado, branco, ocidental, liberal e lócus de injustiças contra a população negra no Brasil, por ser incapaz de refletir os privilégios que sempre construiu em prol do racismo e da opressão.
Judiciário que reflete Themis e não Xangô!!!!





[1] Advogada popular. Membro do Instituto fará Imorá odé. Doutoranda em Direito pela UNB.
[2]Disponívelem:https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2017/09/22/interna_politica,902589/virada-no-stf-e-a-favor-de-ensino-religioso-confessional-nas-escolas.shtml
[3] Disponível em: http://odia.ig.com.br/noticia/brasil/2014-05-16/justica-federal-define-que-cultos-afro-brasileiros-nao-sao-religiao.html

[4] Seria ingênuo pensar que Igreja Católica na sua missão clerical e de fé tinha na salvação apenas a dimensão espiritual de sanar da ignorância e trazer para o reino de Deus “os selvagens”.

Nenhum comentário:

Postar um comentário