terça-feira, 3 de outubro de 2017

Resenha do livro “Para um debate teórico-conceitual e político sobre os Direitos Humanos”

RENATA CAROLINA CORRÊA VIEIRA
Graduada em Direito pela Universidade Federal do Pará - UFPA
Especialista em Direito Ambiental - Universidade da Amazônia
Especialista em Relações Internacionais - UNB
Atualmente é Oficial de Gabinete na Seção Judicária do DF - 16a Vara Federal

A obra “Para um debate teórico-conceitual e político sobre direitos humanos”, escrita por José Geraldo Sousa Júnior e Antônio Escrivão Filho, possui um diferencial inovador no campo teórico sobre o tema no sentido de que ultrapassa as barreiras dos direitos humanos em sua dimensão abstrata para abordar uma análise crítica da teoria dos direitos humanos, em sua concepção teórica, social, jurídica e política. Os autores, ao propor um debate teórico-conceitual e político sobre o tema, permitem aos seus leitores o alargamento de sua visão no campo epistemológico dos direitos humanos sob a perspectiva de O Direito Achado na Rua.
Os autores partem da abordagem dos conceitos e categorias dos direitos humanos, questionando-se sobre o que seria “direito” e o que seria “humano”. Estabelecendo uma crítica ao monismo jurídico, que segundo o qual direitos seriam apenas aqueles frutos das leis (civil law) ou da tradição institucionalizada (common law), os autores observam que tais definições reducionistas do direito geram incompreensões, que por sua vez jamais reconhecerão as normatividades constituídas em outros contextos sociais, ou seja, fora ou até mesmo contra os direitos estabelecidos pelo Direito Moderno, definidos como científico, pós-estatal e burocrático-legal.
Destaca-se a crítica feita pelos autores em relação ao próprio conceito de “humano”, quando em 1980, citam um julgamento de habeas corpus do Tribunal Federal de Recursos, em que se debateu acerca da condição de humanidade ou não do cacique Xavante Mário Juruna, além de ressaltar a condição jurídico-constitucional de semi-humanidade dos indígenas, traduzida na expressão “relativamente incapaz” na legislação que imperava na época da ditadura.
Assim, os autores demonstram que a definição do conceito de direitos humanos transborda os limites acadêmicos, as classificações em gerações ou as declarações internacionais supostamente universais, sendo sua concepção filosófica, política e jurídica, na medida em que “a legislação se coloca frequentemente em oposição aos valores dos Direitos Humanos, sobretudo em relação a vários segmentos étnicos e sociais subalternizados e excluídos” (ESCRIVÃO FILHO, SOUSA JUNIOR, 2016, p. 17).
Para os autores essa relação de não-humanidade de determinadas categorias da sociedade atual não difere daquela estabelecida no período em que os colonizadores chegarem nas Américas, quando ao se referirem aos povos originários aqui encontrados, os chamaram de “monstros” e “feras” em seus diários denominados como “bestiários”.
Questões como demarcação de terra e reconhecimento da identidade indígena continuam hoje sendo tratadas de forma não diversa da que eram tratadas quando os colonizadores empreenderam a conquista das Américas. Nesse contexto, destaca-se o recente debate acerca da adoção do marco-temporal como forma de demarcação de terra indígena, dentro de um sistema colonialista que persiste em negar os direitos dos povos originários a partir de uma concepção de semi-humanidade e de inferioridade racial desses povos.
A dificuldade, portanto, não recai apenas na definição do que é direito, não menos difícil é o dilema do que é definir o que é ser humano, de onde os autores apresentam a dificuldade de um consenso do que seja “direitos humanos”.
Assim é que os autores reconhecem um ponto de partida para a compreensão dos direitos humanos a partir da noção de processos históricos de lutas por direitos. Os autores descolam-se das teorias abstratas dos direitos humanos, sejam elas liberais, universalistas e normativas, eis que concebidas como algo essencialmente alheio à ação humana e, portanto, dissociada da dinâmica social e da história, para fundamentar os direitos humanos como sendo os direitos conquistados, como resultado de uma disputa social contra-hegemônica – conceito que se entrelaça às bases epistemológicas do Direito Achado na Rua.
Chega-se, portanto, a dimensão política dos direitos humanos, como fruto de combates travados pelos movimentos sociais na luta pelos seus direitos em face de contextos de dominação, exploração e discriminação. Utilizando-se de teóricos como Boaventura de Sousa Santos, Lyra Filho e Joaquín Herrera Flores, os autores apresentam uma concepção contra-hegemônica dos direitos humanos, cujo fundamento não recai mais sobre “mecanismos racionais, imanentes, místicos ou legais” (ESCRIVÃO FILHO, SOUSA JUNIOR, 2016, p. 30), mas em práticas sociais emancipatórias, fruto de uma condição eminentemente histórica e cultural, como “processos de combate às violações e luta pela efetivação de direitos ora previstos porém sonegados, ora já negados ante à sua própria possibilidade de previsão” (ESCRIVÃO FILHO, SOUSA JUNIOR, 2016, p. 30).
Os autores abordam o tema da universalidade dos direitos humanos sob uma perspectiva crítica, amparada no mito da modernidade teorizado por Dussel, segundo o qual por meio de uma violência educadora, aniquila-se a diferença étnica, racial e geracional. Com a finalidade de superar a tensão entre o universal e o fundacional, os autores apresentam o conceito de interculturalidade, que permite o diálogo equânime entre as diversas culturas.
A concepção dos direitos humanos como fruto de lutas sociais pela efetivação dos direitos, é retomada no segundo capítulo do livro, agora sob a ótica do cenário internacional. Para os autores, os direitos institucionalizados por meio das declarações e convenções internacionais não são isolados da dialética social, mas sim fruto de uma classe particular que reivindicou os direitos postos como universais. Os direitos humanos não são aqueles que estão encartados em declarações universais ou simbolizados em monumentos históricos, mas aqueles que foram fruto da luta entre os Estados e agentes internacionais.
Os autores apontam que, da mesma forma como ocorre no plano interno, os direitos humanos também sofrem os efeitos de ilusão e de ordem no plano internacional ao assumir um viés universal, que acaba justificando um modelo hegemônico neo-expansionista. Nesse contexto, os tratados que codificam os direitos são assinados por Estados-partes que aderem ao acordo, cada qual com seu respectivo interesse, sendo os direitos institucionalizados aqueles que refletem os interesses políticos, sociais e econômicos daquele Estado em particular, que possui, não raras as vezes, o poder hegemônico.
Por outro lado, os autores reconhecem que a partir da internacionalização dos direitos humanos se inaugura um novo cenário internacional, com o reconhecimento de indivíduos como titulares de direitos, que permite a ampliação da interlocução com movimentos sociais e organizações não governamentais, que além de superar a soberania estatal, inserem na agenda internacional novos debates como globalização e desenvolvimento.
Os autores abordam ainda a questão da exigibilidade e da justiciabilidade como uma dupla face política dos direitos humanos, ressaltando a importância de se fazer uma integração dialética dessas duas estratégias, “de um lado alargando os horizontes da agenda política de exigibilidade para finalmente alcançar as instituições do sistema de justiça, e de outro expandindo o conceito de justiciabilidade a fim de superar uma cultura judicial essencialmente engessada na via jurisdicional” (ESCRIVÃO FILHO, SOUSA JUNIOR, 2016, p.66).
No terceiro capítulo os autores tratam da evolução histórica dos direitos humanos no Brasil. Utilizando a teoria da sociologia das ausências de Boaventura, os autores demonstram o processo de negação do outro na formação econômica, social, política e cultural do Brasil, fruto de um colonialismo, que se manifestava em diversas dimensões da sociedade brasileira, estruturada sob o manto do patrimonialismo, patriarcado e racismo.
O projeto de direitos humanos chega ao Brasil de forma abstrata, normativa e tradicional. A partir de uma visão eurocêntrica do que é direitos humanos e marcada por traços de colonialidade, no conceito de Aníbal Quijano, a sociedade brasileira, tal qual na América Latina, teve sua histórica construída por um padrão de dominação europeu, que deixaram heranças latentes e trações essenciais nas instituições políticas e brasileiras até a atualidade.
Para os autores, justamente esse contexto de dominação é o marco para a história dos Direitos Humanos no Brasil, que encontra “nas dimensões e consequências da sociedade colonial não um trunfo, mas a sua própria condição emblemática que dá ensejo às lutas por libertação e dignidade que caracterizam os direitos humanos” (ESCRIVÃO FILHO, SOUSA JUNIOR, 2016, p. 75).
No mesmo capítulo, os autores retratam os contornos da justiça de transição inaugurada após o processo anti-democrático que ocorreu no Brasil no período da ditadura como uma conquista dos movimentos sociais e diversos setores da sociedade na luta pela redemocratização do país. O golpe militar é tratado, pelos autores, como uma reinvenção do colonialismo e uma potencialização da colonialidade para garantir a retomada do controle histórico sobre o poder político e social – tal qual ocorre nos atuais dias onde se tem um governo ilegítimo e marcado pela ruptura com direitos humanos já anteriormente conquistados.
No capítulo quarto, os autores retratam o cenário atual dos direitos humanos e o papel dos movimentos sociais no processo de redemocratização do país. Escrito antes do golpe que interrompeu o mandato da Presidenta Dilma Roussef, o livro não aborda o retrocesso atual do governo peemedebista na construção histórica dos direitos humanos . Abordando o contexto de redemocratização do país, pós-golpe militar, o livro aborda a conquista do regime enunciado democrático a partir de novos sujeitos de direitos que reconquistam a cena política, traduzindo-a em novos direitos ignorados pelo regime militar.
Os autores destacam nesse contexto a disputa dos novos sujeitos com as forças conservadoras “que ora cedem, ora avançam rumo à reconstrução da hegemonia de seu poder, em um movimento histórico e dialético de avanço e retrocessos na construção da democracia” (ESCRIVÃO FILHO, SOUSA JUNIOR, 2016, p. 100). A importância dos movimentos sociais para a criação e criatividade constitutiva de direitos advindos de outras esferas sociais e representativos da diversidade étnico-racial, cultural, geracional, de gênero e sexualidade, é destacada pelos autores, considerando que estes “emergem como uma potência de solidariedade ético-política na luta contra-hegemônica pelos direitos humanos” (ESCRIVÃO FILHO, SOUSA JUNIOR, 2016, p. 103).
No quinto capítulo, os autores problematizam os direitos humanos na América Latina, que apesar de apresentar um novo cenário com governos progressistas (muitos já foram destituídos e estão sendo fortemente ameaçados, vide caso do Brasil e Venezuela) ainda se deparam com projetos de desenvolvimento que impactam as comunidades locais violando a integridade dos direitos econômicos, sociais e culturais ainda em disputa, o que os autores chamam de modelo neo-desenvolvimentista que impera na América Latina.
Assim, o projeto de emancipação da América Latina, é marcado por uma dominação do capital industrial, fortemente pelo agronegócio, que desenvolve a sua estratégia política de dominação e expansão das fronteiras agrícolas e de mineração, criminalizando os movimentos sociais que resistem na luta pela terra e pelos seus direitos, que sofrem toda sorte de violências físicas e institucionais.
Para os autores, o estudo do constitucionalismo na América Latina deve ser retomado a partir das teses de Florestan Fernandes, acerca da teoria da dependência, na medida em que as elites que figuram o papel neo-imperialista se hegemonizam em sujeitos constituintes “de ordens fundadas sobre preceitos liberais de cidadania e conservadores no que diz respeito à organização institucional do poder” (ESCRIVÃO FILHO, SOUSA JUNIOR, 2016, p. 138). Os preceitos constitucionais insculpidos por essa elite marcada pela herança colonial e de capitalismo dependente, viria apenas legitimar, política e juridicamente, as desigualdades sociais.
No entanto, um novo constitucionalismo latino-americano inaugura-se nesse cenário de disputa e reivindicação pelos seus direitos, aos que os autores aproximam à ideia de um constitucionalismo Achado na Rua, cuja base dialoga com cinco importantes eixos do pensamento crítico latino-americano: i) a Ruptura Epistêmica Descolonial, ii) a Filosofia da Libertação; iii) o Pluralismo Jurídico; iv) a Teoria Crítica dos Direitos Humanos; e v) o Direito Achado na Rua (ESCRIVÃO FILHO, SOUSA JUNIOR, 2016, p. 145).
No capítulo seis, os autores abordam a questão da expansão da justiça na temática sociopolítica. Para os autores, seria necessário percorrer o caminho proposto por Lyra Filho, de “desentranhamento dos princípios e da condição eminentemente política que a função judicial assume nos marcos do desenho institucional do Estado Moderno” (ESCRIVÃO FILHO, SOUSA JUNIOR, 2016, p. 152). O alargamento político das funções do Judiciário na solução de conflitos sociais de alta intensidade política desperta o alerta e sérias preocupações acerca da sua legitimidade e capacidade institucional para lidar com tais demandas.
Partindo do conceito teórico de neutralização política da Justiça, formulado por Tércio Sampaio, os autores estabelecem a diferença entre neutralidade e neutralização, concluindo que tal relação entre autonomia e independência do judiciário pode assumir contornos paradoxais, na medida em que tal instituição não escapa à forma patrimonialista a qual foi estruturada a nossa cultura político-institucional, o que pode gerar um estado de alienação do judiciário ou até mesmo favorecendo setores conservadores da magistratura, que bloqueiam as demandas sociais por transparência e compromisso com os direitos humanos.
Por outro lado, os autores defendem a importância do papel das organizações de direitos humanos e da assessoria jurídica e advocacia popular no espaço de disputa de direitos que vem ser exercida por meio da judicialização dos direitos humanos. Muito embora reconheçam os avanços no acesso à justiça no Brasil – sobretudo, na consolidação da Defensoria Pública e justiça comunitária – os autores defendem uma concepção alargada de acesso à justiça, como a sustentada no âmbito do Direito Achado na Rua, em que, primeiramente, deve-se reconhecer o direito para além da norma estatal, como fruto de lutas sociais por liberdade e dignidade, dando-se voz aos sujeitos coletivos como agentes de criação e criatividade do Direito e de experiências da justiça, além de ser necessário desenvolver uma práxis de participação e controle social da justiça, a ser inserida dentro de uma reforma do Judiciário.
No sétimo capítulo, os autores retratam a situação do ensino jurídico no país que deságua na própria dificuldade do acesso à justiça, tema aqui trabalhado sob a ótica da educação jurídica, em que ainda impera uma homogeneidade de visão de mundo constitutiva de um pensamento hegemônico estruturado de modo abstrato e legalista de pensar o direito, com resistência à reflexão para compreensão de novas realidades sociais e políticas. Os autores destacam a importância da necessidade de uma reforma jurídica a partir de uma concepção teórica e prática – sobretudo dos núcleos de práticas jurídicas dos cursos de Direito – que conceba a promoção de ações que venham estabelecer caminhos para a formação cidadão dos estudantes, orientada pelos Direitos Humanos (ESCRIVÃO FILHO, SOUSA JUNIOR, 2016, p. 197).
Os autores finalizam a obra com um apanhado histórico e dos pressupostos do Direito Achado na Rua e a Teoria Crítica dos Direitos Humanos, situando o contexto em que nasce o pensar jurídico crítico no Brasil, na década de 60, em similitude com o “uso alternativo do direito”, “direito insurgente”, que promove uma reinserção do direito na política, a partir de uma crítica marxista e uma atitude militante. O novo pensar jurídico formulado pelo jurista e professor da Universidade de Brasília, Roberto Lyra Filho, reverbera no atual programa teórico, jurídico, sociológico, pedagógico e político que se transformou o Direito Achado na Rua, sob a liderança do professor José Geraldo de Sousa Júnior, co-autor da obra ora em comento, que encontra na linha de pesquisa de pós graduação na UNB, nas suas diversas publicações teóricas e na práxis, promovida pela atuação de assessorias jurídicas popular junto aos movimentos sociais, um novo e singular paradigma dentro do modo de pensar e viver o direito, como expressão do direito de liberdade, que “nasce na rua, no clamor dos espoliados e oprimidos” (ESCRIVÃO FILHO, SOUSA JUNIOR, 2016, p. 230).

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