segunda-feira, 12 de junho de 2017

Resenha do artigo "A expansão semântica do acesso à justiça e o direito achado na assessoria jurídica popular", por estudantes de Pesquisa Jurídica na UnB

Resenha: CORREIA, Ludmila Cerqueira; ESCRIVÃO FILHO, Antonio; SOUZA JUNIOR, José Geraldo. A expansão semântica do acesso à justiça e o direito achado na assessoria jurídica popular. In: REBOUÇAS, Gabriela Maia; SOUSA JUNIOR, José Geraldo; CARVALHO NETO, Ernani Rodrigues (Org.). Experiências compartilhadas de acesso à justiça: Reflexões teóricas e práticas. Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo, 2016.


Autoras e autores: Alyne Maria Figueira de Alencar; Ana Luísa Domingues Galvão; Camila Almeida Ferreira; Carlos Eduardo Silva Barbedo; Carlos Henrique da Silva Figueiredo; Diogo da Silva Ferreira; Égon Rafael Oliveira; Gustavo Galassi; Jhonas de Sousa Santos; João Mário Ribeiro Santos; Julyane Laine Gomes da Silva; Mariana Maciel Viana Ferreira; Myllena Cristina Araujo de Moura; Samya Trinie da Silva S. Costa; Victor Vicente. Brasília.


1. INTRODUÇÃO

A relatoria apresentada à disciplina de Pesquisa Jurídica tem como objetivo discutir o tema Assessoria Jurídica Popular. A premissa inicial versava sobre a apresentação do texto (produzido por Ludmila Cerqueira Correia – Universidade Federal da Paraíba; Antonio Escrivão Filho – Universidade de Brasília; e José Geraldo de Sousa Junior – Universidade de Brasília) “A expansão semântica do acesso à justiça e o direito achado na assessoria jurídica popular”, que compõe os escritos da parte I do livro “Experiências compartilhadas de acesso à justiça: Reflexões teóricas e práticas”, onde a autora e os autores propõem uma reflexão teórica a respeito do acesso à justiça através da experiência da assessoria jurídica popular.
Sabendo da extensão e importância do tema, buscamos, no trabalho apresentado aqui, a articulação, dessa perspectiva inicial, com discussões correlatas. Assim, somamos os escritos de Boaventura de Sousa Santos, expoente na discussão de acesso à justiça e pautas de cunho democratizante e outros pensadores que dialogam com o tema e suas ramificações. Logo, o presente trabalho irá abordar e delinear as principais características da assessoria jurídica popular e algumas de suas possíveis intersecções.
Para isso o trabalho foi dividido em: Para uma revolução democrática da justiça; O direito na concepção de “O Direito Achado na Rua”; Deslocamentos analíticos para a compreensão do acesso ao direito e à justiça; Reflexões a partir da assessoria jurídica popular; e O Direito Achado Na Rua e a assessoria jurídica popular.

2. PARA UMA REVOLUÇÃO DEMOCRÁTICA DA JUSTIÇA

2.1. A politização do Direito

Um dos maiores impasses da atualidade é a relação conflituosa entre perguntas fortes e respostas fracas, segundo Boaventura de Sousa Santos. Assim, no que tange ao direito, faz-se o seguinte questionamento forte: “Se o direito tem desempenhado uma função crucial na regulação das sociedades, qual a sua contribuição para a construção de uma sociedade mais justa?” (SANTOS, 2011, p. 25). A resposta fraca para a indagação em tela consiste em focalizar a importância do Estado de direito e das instituições jurídicas para garantir o desenvolvimento econômico. Nesse sentido, a busca por uma resposta forte exige o alargamento dessa concepção hegemônica de Estado monopolizador da produção normativa, de forma a buscar um novo senso comum jurídico que possibilite a emancipação social.
O neoliberalismo que se verifica na contemporaneidade clama por um sistema judiciário eficiente, que confira segurança jurídica aos negócios. As reformas pelas quais passa a Justiça, então, são orientadas pelo ideal de rapidez, servindo seletivamente aos interesses econômicos de entes como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI). Na contramão desse movimento situa-se outro campo, constituído por cidadãos que veem no direito um instrumento de busca de suas justas aspirações (SANTOS, 2011). O que esse setor contra-majoritário enxerga é a exclusão social, a precarização do trabalho, como se verifica nos recentes projetos de reforma e na violência opressora. Boaventura de Sousa Santos denomina essa realidade a partir da noção de fascismo social (IBIDEM).
Nos últimos anos, esses cidadãos organizaram-se em movimentos sociais, criando uma nova base para a reivindicação de direitos. Utiliza-se, então, o exemplo do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) para denotar o que o autor define como “legalidade cosmopolita ou subalterna” (SANTOS, 2011, p.22). Esse movimento passou a dar um novo sentido a sua luta, incorporando os institutos jurídicos como os de função social da propriedade. Verificou-se a utilização dos instrumentos hegemônicos de forma não hegemônica, mas, sim, para o atendimento das demandas por justiça social.
Ainda nesse pleito, os movimentos sociais lançam luz sobre outra ideia de muita relevância. Evidenciam que, para além da procura efetiva de direitos, existe uma procura suprimida. “É a procura daqueles cidadãos que têm consciência dos seus direitos, mas que se sentem totalmente impotentes para os reivindicar quando são violados” (SANTOS, 2011, p.23). O titular do direito violado sente-se esmagado, oprimido pela opulência da linguagem jurídica, pela luxuosidade dos prédios, pela complexidade do processo. Esse é um distanciamento socialmente construído e que, se considerado, deve levar a uma grande revolução do sistema judiciário.
Nesse contexto, é de suma importância o questionamento a respeito de que tipo de mobilização política pode ser feita para sustentar a mobilização jurídica de aprofundamento democrático. Focaliza-se, então, uma mudança recíproca, de cunho jurídico-política, baseada em profundas reformas processuais; novos protagonismos no acesso ao direito à justiça; pluralismo jurídico; revolução na formação do profissional do direito; uma relação do poder judicial mais transparente com o poder político e a mídia, entre outros (SANTOS, 2011).
Portanto, é fundamental que o sistema judicial afaste a posição de independência corporativa rígida para assumir uma postura engajada, angariando aliados na sociedade e abandonando o isolamento a fim de buscar a articulação com outras organizações e instituições para melhor realização da justiça social. A politização do direito, nesse sentido, consiste em aumentar o nível de tensionamento na relação com outras instâncias de poder, adequando-se ao ideal de sistema jurídico e judicial em um Estado Democrático de Direito.

2.2. As três ondas do acesso à justiça

Objetivando sua universalização, o acesso à justiça tem passado por grandes transformações em âmbitos estrutural e processual nos últimos 50 anos (SANTOS, 2011). Em um estudo sociológico deste movimento histórico, Cappelletti e Garth apontam 3 grandes “ondas” no desenvolvimento do acesso à justiça, e que pautaram a luta por este direito.
A primeira onda, chamada por Cappelletti e Garth de “assistência judiciária para os pobres” (1988, p.31), compreenderia o processo em que as sociedades ocidentais buscariam “proporcionar serviços jurídicos para os pobres” (IBIDEM). De acordo com Cappelletti e Garth, a tecnicidade que as práticas jurídicas adquiriram exigiram um conhecimento cada vez mais especializado e, por isso, cada vez mais distante da realidade das classes mais pobres, cenário que a primeira onda almejaria mudar. A partir dos avanços desta onda, “o apoio judiciário deixa de ser entendido como filantropia e passa a ser incluído como medida de combate à pobreza” (SANTOS, 2010, p. 31).
A segunda onda se diferiu da primeira no ponto em que buscava a representação de interesses coletivos e difusos, se opondo ao esquema tradicional de resolução de processos, que se baseava no contraponto entre duas partes de caráter individuais (CAPPELLETTI & GARTH, 1988). Cappelletti e Garth ainda afirmam que este movimento está fortemente vinculado com o caráter de política pública que muitos destes litígios adquiriram e que a legitimação de grupos os quais representam interesses coletivos se deu neste contexto. Assim “a visão individualista do devido processo judicial está cedendo lugar rapidamente, ou melhor, está se fundindo com uma concepção social, coletiva” (CAPPELLETTI & GARTH, 1988, p.51).
A terceira e última onda alia pontos e conquistas das duas anteriores, porém as apresenta como algumas dentre várias possibilidades, já que estas estão estritamente vinculadas a uma busca por representação, individual na primeira onda e coletiva na segunda (CAPPELLETTI & GARTH, 1988). A terceira onda surge à procura da ampliação da concepção de acesso à justiça, propondo uma gama maior de reformas, considerando os tribunais como parte de uma rede e admitindo formas alternativas de resolução de litígios (SANTOS, 2011, p. 31).

2.3. As Defensorias Públicas

Ao discorrer sobre as defensorias públicas, Boaventura de Sousa Santos enumera seus objetivos, contidos em sua concepção: a orientação pela defesa da população mais encarecida e a universalização do acesso. Ambos dialogam com os movimentos das ondas de acesso à justiça. Um modelo ideal de defensoria pública, como está prevista a atuação desta instituição no Brasil, carregaria consigo uma série de vantagens potenciais, como “universalização do acesso […], assistência jurídica especializada […], diversificação do atendimento e da consulta jurídica […], e ainda, atuação na educação para os direitos” (SANTOS, 2011, p.33).
Obviamente que estas vantagens nem sempre se traduzem em vantagens reais. A limitação do atendimento, as diferenças de estruturas funcional e orçamentária nos diversos estados da federação e a sobrecarga dos defensores públicos são apenas alguns dos obstáculos apontados por Sousa Santos. Há ainda a problemática que diz respeito a juridicidade da defensoria pública e de sua atuação: a Ordem dos Advogados do Brasil pleiteia a competência de processos individuais enquanto o Ministério Público atua na direção dos processos coletivos e difusos.

2.4. Custas judiciais

Talvez o maior desafio enfrentado por um projeto de universalização do acesso à justiça ainda seja o dos custos envolvidos em um processo judicial. A disparidade existente entre os custos das diversas Unidades Federativas traduz uma carência de padrões nos critérios envolvidos (SANTOS, 2011). Mas não é apenas isso, Sousa Santos aponta também a falta de transparência da legislação, a existência de políticas que oneram classes economicamente inferiores em alguns estados e a distorção entre valores praticados nas 1ª e 2ª instâncias*. Como soluções para estes problemas, Sousa Santos aponta a padronização dos valores envolvendo o sistema judiciário e, principalmente, o aumento do estímulo a outras iniciativas, alternativas às resoluções nos tribunais.

2.5. Modelos de iniciativas de assessoria jurídica popular

Apresentando como modelos alternativos, Santos demonstra o sucesso e importância de inciativas como as promotoras legais populares, as assessorias jurídicas universitárias populares, a capacitação jurídica de líderes comunitários e a advocacia popular. Cada uma possui um enfoque, porém se encaixam dentro de uma proposta geral de sistema judiciário alternativo, que está intimamente ligado à realidade social e que busca a resolução de litígios fora dos tribunais de justiça e a emancipação de seus participantes através do conhecimento jurídico. Santos descreve modelos organizacionais de assessoria jurídica popular. Nessa descrição, é digno de nota, o avanço histórico deste tipo de atividade a partir da transição democrática. Nota-se também um tom otimista do autor (em 2010). A assessoria jurídica popular transita de campo temático: inicialmente com ênfase nos direitos sociais, passa a focalizar direitos coletivos. Há avanço quantitativo e qualitativo das organizações prestadoras de assessoria jurídica popular. Nas defensorias públicas, aumento do quadro de pessoal, do número de entes federativos que a prestam, positivação legal e constitucional, autonomia funcional e financeira. Por fim, é possível perceber na sociedade civil a ampliação do número de atendimentos e dos laços com o setor público, um maior nexo entre a práxis social e o tripé universitário ensino-pesquisa-extensão.

3. O DIREITO NA CONCEPÇÃO DE O DIREITO ACHADO NA RUA

É possível observar, no século XX, o momento de esgotamento do paradigma do modelo econômico de organização social pautado no pensamento liberal e a expansão discursiva de pautas, dadas, até então, a partir de uma perspectiva socialista. Essa perda de hegemonia do pensamento liberal clássico interfere nas demais estruturas e relações sociais, dentre elas o direito. Esse processo possibilita a busca por uma nova orientação jurídica, com vistas à expansão da justiça social em detrimento de noções puramente positivistas.
Essa busca por noções claras de justiça social leva em consideração o papel dos oprimidos e historicamente marginalizados, como criadores de direitos, e a negação do Estado, como único produtor do direito. Sendo fruto de um momento histórico, que rompe paradigmas, tal como fez o movimento da magistratura democrática italiana no final da década de 60, que preza por um “uso alternativo do direito”, tendo influenciado pensamentos em outros países da Europa, como Espanha, França, Alemanha e diversos países da América Latina (BERCLAZ, 2005), bem como “O Direito Achado na Rua” no Brasil. Marcada pela luta por abertura política e formação da constituinte que favoreceu o desenvolvimento dessa nova prática do direito, que buscava manter o diálogo entre a norma e a realidade, bem como o respeito aos Direitos Humanos e a busca pelos direitos sociais. Dessa forma, o direito passa a compreender e reconhecer a existência de estruturas sociais dinâmicas e reivindicações populares.
Desse modo o direito é o meio para a formação de uma sociedade menos díspare, na qual o respeito pela dignidade humana é superior aos aspectos econômicos e puramente jurídicos. Como defende Roberto Lyra Filho, em um de seus muitos princípios, “não nos curvamos ante o fetichismo do chamado direito positivo, seja ele costumeiro ou legal” (FILHO, 2000, p.499). Assim, O Direito Achado na Rua contribui como propositor de noções emancipatórias e não a repetição de uma restrição regulamentar, usando o direito de maneira política, afirmando-o de maneira clara e sem subterfúgios de suposta neutralidade, sendo o seu objetivo, sobretudo, a busca por legitimar a luta por direitos dos movimentos populares nos âmbitos jurídico e normativo brasileiro.

4. DESLOCAMENTOS ANALÍTICOS PARA COMPREENSÃO DO ACESSO AO DIREITO E À JUSTIÇA

Com a criação da Constituição de 1988 – que em seu artigo 5º garante a todos o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder – houve a positivação do direito ao apoio para acesso jurídico para todos os cidadãos brasileiros. O direito de acesso à justiça, portanto, é assegurado pela Carta Magna, e configura-se entre os direitos fundamentais. Contudo, no Brasil, esse acesso à justiça não é assegurado a todos, havendo grandes desigualdades nessa área, uma vez que a porta de entrada na Justiça não tem se configurado como possibilidade de inclusão e construção da cidadania.
Essa dificuldade de consonância é expressada por obstáculos de ordem econômica, social e cultural. Em outras palavras, no Brasil, apresenta-se a possibilidade positivada de acesso aos direitos constitucionalizados, mas a impossibilidade de produção e expansão desses direitos. Por isso fez-se, e ainda é, indispensável a abertura de canais de interlocução a respeito das disparidades experimentadas entre o direito da lei e o direito da práxis. Assim sendo, o deslocamento proposicional realizado pela assessoria jurídica popular, que transporta dos gabinetes e autarquias, das formas e normas dadas e postas, o direito inteligível e inacessível, para as camadas desassistidas e invisibilizadas, dando a elas condições de expansão da noção de direito e de exercício de cidadania, permite-me, logo, conceber o alinhamento conceitual dessas práticas com as proposições realizadas pelo O Direito Achado na Rua que “se apoia sobre um exercício analítico que desloca a centralidade e prioridade da norma estatal enquanto referencial de legitimidade e validade do direito, para encontrar como referencial os processos sociais de lutas por libertação e dignidade” (CORREIA; ESCRIVÃO FILHO; SOUZA JUNIOR, 2016, p.85). A partir disso “a investigação passa então a demonstrar como o acesso à justiça está relacionado com a mobilização jurídica dos movimentos sociais, reconhecendo os fatores que impedem que o acesso seja efetivo” (IBIDI, p.88).

5. REFLEXÕES A PARTIR DA ASSESSORIA JURÍDICA POPULAR

Assim, a assessoria jurídica popular nasce no Brasil como expressão jurídico-política da emergência dos movimentos sindicais e sociais, que a partir da década de 1970 viriam a combater a ditadura civil-militar e conquistar a abertura a um regime de enunciado democrático. A assessoria jurídica popular se configura como uma prática jurídica diferenciada, voltada para a realização de ações para garantia do acesso à justiça a sujeitos coletivos organizados em torno da luta por direitos, mesclando assistência jurídica e atividades de educação popular em direitos humanos, organização comunitária e participação popular (CORREIA; ESCRIVÃO FILHO; SOUZA JUNIOR, 2016, p.90).

A assessoria jurídica se torna um instrumento de acesso à justiça por grupos e indivíduos marginalizados, cujos direitos, até então, haviam sido completamente negados. Assim, para sua efetivação, faz-se necessário o contato com os assessorados, para que se compreendam suas reais demandas e necessidades e se façam ações organizadas. Esse contato e a socialização do saber jurídico se dão pelas metodologias empregadas de educação popular, sendo indispensável o empoderamento de grupos e indivíduos para que sejam os atores principais da luta pelos seus próprios direitos.
Quanto à sua unidade e organicidade, no país, temos a Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares – RENAP. Além disso, existem os advogados profissionais, cuja atuação é pautada no compromisso com a luta social, e os mais de 40 escritórios de Assessoria Jurídica Universitária Popular – AJUPS. Todas essas organizações, advogados e escritórios atuam na formação de uma cultura participativa. Por meio do assessoramento popular, as pessoas têm a oportunidade de se inserir no meio jurídico com o apoio de profissionais, os quais podem contribuir para a construção de um direito democrático e plural com vistas à emancipação jurídica. Além de propor a desconstrução do modelo político instituído, que reserva o direito à voz política, na prática, apenas a uma classe dominadora e ao Estado. Sua atuação, leva à aproximação entre o direito e a realidade social e procura garantir o direito dos vulneráveis, proporcionando a atuação do Direito na práxis e a introdução do indivíduo na prática da cidadania.

6. O DIREITO ACHADO NA RUA E A ASSESSORIA JURÍDICA POPULAR: REALIZAÇÃO POLÍTICA DO DIREITO E DA JUSTIÇA

O Direito Achado na Rua assume uma posição emancipadora que envolve teoria crítica social sem excluir a prática da mesma, apresentando-nos sua eficácia. Nesse aspecto, o projeto se apresenta como uma proposta epistemológica e orgânica, a qual se concretiza em materiais didáticos, seminários, encontros de debate e deliberação e em práticas de formação comunitária. Tamanha é a magnitude de O Direito Achado na Rua, que ele se reflete, por exemplo, em experiências como a Assessoria Jurídica Universitária Popular, doravante tomada pela sigla AJUP, a qual é orientada pela interação entre assessoria jurídica para comunidades secundarizadas e educação popular no campo dos direitos humanos. É ainda a representação de um projeto de extensão universitária que busca viabilizar o diálogo entre diversas camadas sociais acerca dos problemas enfrentados por elas, a fim de solucioná-los por meio da efetivação dos direitos fundamentais de cada indivíduo, que se dá através de mecanismos institucionais e extrajurídicos.
A universidade tem um papel primordial nesse contexto, uma vez que é ponto convergente de ensino, pesquisa e extensão. Essa tríade fundamental é transformada na variante “pesquisa-ação, ensino crítico e extensão popular” (SOUSA JÚNIOR, 2015, p.164), programas esses que foram incrementados pelo prisma d’O Direito Achado na Rua, visando que os estudantes não sejam meros assimiladores de conteúdo, mas que possam articular sala de aula e ruas, o que exige deles um aprofundamento filosófico para que trabalhem a partir das necessidades sociais, mas com o rigor metodológico que convém. Essa nova dinâmica inserida no aprendizado do Direito proporciona a concretização da responsabilidade social que cabe às Universidades como centros pensantes e atores de otimização pública. Assim, os estudantes têm a oportunidade de abandonarem uma posição passiva frente aos conteúdos e o modo como são ensinados e tanto assumirem o papel de críticos, quanto poderem ser ativos na sociedade. Eles são estimulados a pensar no Direito como ferramenta de transformação que se dá por intermédio da relação direta com a comunidade.
As AJUPS estão sediadas nas principais universidades brasileiras, não sendo a Universidade de Brasília uma exceção. Aqui está representada a AJUP Roberto Lyra Filho, a qual além de evocar o nome do mentor teórico de O Direito Achado na Rua, assessora as comunidades marginalizadas do Distrito Federal. Essa relação implica em resultados satisfatórios para ambas as partes envolvidas no projeto. O protagonismo estudantil favorece a prática do Direito no sentido em que desconstrói a visão elitista e burocrática do mesmo, e o 11 concebe como um caminho para o exercício da cidadania e de se fazer política. Pois, através do diálogo público, pode-se identificar os anseios sociais e propor elucidações que precisam ser testadas e ponderadas pelos estudantes e pesquisadores que são gerados aqui.
Desfaz-se assim a rotulação de que a universidade é um meio autossuficiente: visão que ainda permeia o imaginário e perpassa gerações, cegando e limitando a prática jurídica genuína. Em contrapartida, a prática da Assessoria Jurídica Universitária Popular auxilia os movimentos sociais e populares na medida em que, além de na educação dos direitos, atua na defesa jurídica e com estratégias políticas, fazendo do direito um recurso de empoderamento comunitário. Nesse sentido, os grupos secundarizados da sociedade que são atendidos se veem em uma posição ativa que os permitem ter acesso à justiça, uma vez que são não apenas instruídos para isso, como são encorajados em seu ativismo e prática cidadãs.
Esse caráter engajado, como já havia sido anunciado por Sousa Junior, se substancializa quando da intervenção social se objetiva a democratização da justiça e se leva essa experiência para o ambiente acadêmico como “referência para a definição de novas práticas docentes e de pesquisa” (SOUSA JÚNIOR, 1993, p. 13). Desse modo a partir do momento em que advogados populares, estudantes e educadores desenvolvem um trabalho com vistas ao esclarecimento, conscientização e reivindicação dos indivíduos frente às leis, ao direito positivo, fazendo com que essas pessoas invisibilizadas percam o temor de cobrar e buscar o que lhes é assegurado pela Constituição, o Direito achado na rua e a ação da Assessoria Jurídica Popular se complementam e notabilizam a afirmação do direito como sendo uma legítima organização social da liberdade.

7. CONCLUSÃO

São muitas as faces do direito e todas elas ficam claras na temática de O Direito Achado na Rua. Mulheres, trabalhadores, pessoas sem terra e muitos outros movimentos sociais lutam por seu espaço na sociedade e lutam por ver brotar, a cada dia, o direito legítimo, ancorado na liberdade. Esse Direito legítimo já nos é formalmente afirmado na nossa dita Constituição Cidadã, claramente no Art. 3°, IV, em que se promove o bem de todos os cidadãos independentemente das diferenças. É garantida a justiça e o acesso a essa justiça. Porém, como diz Dalmo de Abreu Dallari:

Não basta afirmar, formalmente, a existência dos direitos, sem que as pessoas possam gozar desses direitos na prática, [é] indispensável também a existência de instrumentos de garantia, para que os direitos não possam ser ofendidos ou anulados por ações arbitrárias de quem detiver o poder econômico, político ou militar. (DALLARI, 2004, p. 96).

Com a demanda criada a partir da Constituição, surgem e se desenvolvem muitos mecanismos de assistência, como a Assessoria Jurídica. O Direito Achado na Rua, por meio dessa Assessoria Jurídica, se faz presente na sociedade, na "rua", saindo do domínio da universidade, de dentro das salas de aula, para lutar junto com os movimentos sociais pela justiça, pela liberdade e pelos direitos de cada um, principalmente dos oprimidos pelas classes sociais detentoras do poder. A contribuição de O Direito Achado na Rua para o Direito social é tanto afirmada na teoria, com a interação entre docentes e discentes nas muitas produções didáticas por meio do tripé ensino, pesquisa e extensão, como na prática, na formação de profissionais que dialoguem com os movimentos sociais.
Por fim, é possível concluir que “a atuação articulada da assessoria jurídica popular possibilita a aproximação do direito à realidade social” (CORREIA; ESCRIVÃO FILHO; SOUSA JUNIOR, 2016, p.93) e que esta reflete, a práxis de uma urgência anunciada pel’O Direito Achado na Rua desde sua fundação, num processo de dialogicidade e dialética que transmuta em sua interlocução o sujeito individual de não-direito, num sujeito coletivo de direito, “proporcionando o apoio à efetivação dos direitos dos grupos subalternizados, seja através de mecanismos institucionais, judiciais ou por mecanismos extrajudiciais, políticos e de conscientização” (IBIDEM).

8. BIBLIOGRAFIA

BERCLAZ, Marcio. O Movimento do Direito Alternativo no Brasil: Aportes e Fragmentos para Compreensão e Atualização. 2015. Disponível em http://emporiododireito.com.br/omovimento-do-direito-alternativo-no-brasil/. Acessado em 01 de Maio de 2017.

CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988.

CORREIA, Ludmila Cerqueira; ESCRIVÃO FILHO, Antonio; SOUZA JUNIOR, José Geraldo. A expansão semântica do acesso à justiça e o direito achado na assessoria jurídica popular. In: REBOUÇAS, Gabriela Maia; SOUZA JUNIOR, José Geraldo; CARVALHO NETO, Ernani Rodrigues Org(s). Experiências compartilhadas de acesso à justiça: Reflexões teóricas e práticas. Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo, 2016.

DALLARI, Dalmo de Abreu. Direitos humanos e cidadania. São Paulo: Moderna, 2004.

LYRA FILHO, Roberto. A Nova Escola Jurídica Brasileira. Revista Notícia do Direito Brasileiro. Brasília, n.º 7, 2000. p. 497-507.

SANTOS, Boaventura de. Para uma revolução democrática da justiça. São Paulo: Cortez Editora, 2011.

SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2015.

SOUSA JUNIOR, José Geraldo de (Org.). Introdução crítica ao direito. 4. ed. Brasília: Ed. UnB, 1993. (Série O Direito Achado na Rua, v. 1).



* Boaventura de Sousa Santos usou um estudo realizado pelo Departamento de Pesquisas Judiciárias do Conselho Nacional de Justiça como base para estas afirmações.

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