Thiago Rais de Castro, aluno do segundo semestre do curso de Direito da
UnB
Ao ler o livro “O que é Direito” de Roberto Lyra Filho,
publicado pela primeira vez em 1982, chamou-me atenção o quanto a proposta
desse autor se encontra viva nos dias de hoje, apesar de terem passado mais de
30 anos desde a sua publicação e desse livro ter sido escrito antes da mudança
de sistema de governo de aristocracia do Regime Militar para democracia do
Estado Democrático de Direito.
Por isso, fiquei estimulado em apresentar, em linhas gerais, a
definição de Direito desenvolvida dialeticamente por esse autor, contrapondo-a
aos acontecimentos históricos atuais, a fim de despertar no leitor o interesse
por esse assunto, que, embora possua raízes cravadas em um passado remoto,
ainda se encontra em plena construção.
Lyra Filho inicia sua obra expondo seu maior objetivo:
desvincular a ideia de Direito como sinônimo de lei. A ideia de Direito
limitado às leis postas pelo Estado esconde toda a história de evolução das
formas de governo e das conquistas do povo, uma vez que tal simplificação não
inclui a dinâmica dos movimentos sociais.
O Direito sob essa ótica se resume a um conjunto de leis,
utilizadas como ferramenta de dominação, as quais são postas pelo Estado, que
representa o interesse de uma classe dominante. Assim, se tal simplificação
fosse verdadeira, os direitos dos demais grupos sociais não teriam sofrido
mudança alguma ao longo do tempo, dado o suposto equilíbrio forjado pelas
classes dominantes. Não obstante, o Direito não se limita ao Estado, uma vez
que a sociedade civil é fonte importante de novos direitos.
A concepção de Direito proposta por Lyra Filho, além de
incluir as transformações históricas decorrentes das manifestações sociais, dá
destaque especial aos Direitos Humanos. Tal enfoque deve-se ao fato de que
esses direitos, nas palavras do Prof. Menelick de Carvalho Netto, nos
descalçam, ou seja, eles são responsáveis por projetar o Direito para o futuro.
Dessa forma, os Direitos Humanos promovem transformações no
Direito vigente, por exemplo, ao tornar determinadas definições ultrapassadas e
preconceituosas, como o conceito de família, que antes reconhecia apenas a
união de pessoas de diferentes sexos e negava direitos à união homoafetiva.
Hoje em dia, ao interpretar as normas tendo como base os Direitos Humanos, fica
praticamente impossível fundamentar de forma coerente uma argumentação que
restrinja direitos de minorias, como os homossexuais.
Lyra Filho também discorre sobre o conceito de ideologias
jurídicas, apresentando, de forma sucinta, o panorama das principais correntes
do Direito – Positivista e Jusnaturalista – e suas respectivas vertentes. Além
disso, o autor nos chama atenção para o fato da ideologia, muitas vezes, ser
utilizada como instrumento de dominação.
A fim de demonstrar que tal observação se encontra presente
ainda nos dias de hoje, remeto o leitor à matéria de Mello (2014), publicada
pelo jornal Folha de S. Paulo em 18/05/2014 com o título: “Trabalho Sujo”. Essa
matéria denuncia a condição desumana de 1,3 milhão de indianos catadores de
excrementos. Veja um trecho da reportagem que descreve as atividades realizadas
por um desses trabalhadores.
“[...] [Sudhira] vai até o fundo do terreno, onde fica o ‘banheiro’ um
buraco raso no chão, cercado por uma parede baixa de tijolos. Cheira muito mal.
Em meio a uma nuvem de moscas, Sudhira se agacha, retira os excrementos com uma
pá, que segura na mão sem luva. Junta um pouco de folhas, terra e cinzas e põe
em cima das fezes. Recolhe esse bolo de excrementos com a pá e põe na cesta que
leva sobre a cabeça. Às vezes, escorre.”
Dessa forma, os donos do poder – termo apropriado da obra de
Raymundo Faoro – utilizam a ideologia baseada em uma suposta superioridade para
legitimar tal exploração humana: as “pessoas” sequer tocam em indivíduos
pertencentes à casta de Sudhira.
Essa matéria publicada pela Folha de S. Paulo também pode ser
utilizada para ilustrar a afirmação feita por Lyra Filho de que o Estado
representa o interesse de uma classe dominante, uma vez que o governo indiano
não dá a devida atenção para as pessoas da casta de Sudhira. Tal afirmação se
torna evidente ao se constatar que o maior empregador de catadores de
excrementos é o próprio governo indiano por meio do sistema ferroviário.
Por fim, Lyra Filho destaca que a ideologia é um fato social
antes de se tornar um fato psicológico, ou seja, as concepções de mundo nos são
externas e não intrínsecas à nossa natureza. Por isso, é possível mudar a
realidade criada pela ideologia ao se identificar a origem e a intenção das
ideias por ela veiculadas, além de ser necessária a atuação por meio de
movimentos sociais e da disseminação do conhecimento.
Esse assunto me remete ao livro “Perspectivas Sociológicas” de
Peter Berger (2001), que também trabalha com a questão de ideologias como
instrumento para atender a interesses de uma determinada classe social. Para
esse autor, o fenômeno de superação de uma realidade imposta pelas ideologias é
denominado “êxtase”, sendo que tal mudança de paradigma pode ser alcançada por
meio da conscientização dos fatos.
No que se refere à manutenção de privilégios, Lyra Filho
destaca que os representantes da ordem estabelecida, caso demonstrem
preocupação com os interesses de uma classe diferente da dominante, serão
substituídos por outros que não tenham essa atitude. A pergunta que surge é a
seguinte. Em pleno século XXI, será que isso ainda acontece? Se sim, como?
Entre os instrumentos utilizados pela classe dominante para
influenciar na definição dos representantes, pode-se citar o financiamento de
campanhas eleitorais. A matéria apresentada por Friedlander e Mendonça (2014),
publicada no jornal Folha de S. Paulo em 18/05/2014, denuncia que o PT recebeu
mais financiamento do que o PSDB, PMDB e PSB juntos. Segundo a referida
reportagem, a maior parte desse financiamento é proveniente de construtoras que
também possuem negócios com o setor público.
Assim, essa matéria serve para evidenciar uma inconsistência
inserida no sistema eleitoral vigente, qual seja a possibilidade de que uma
minoria detentora de bens de produção influencie de forma incisiva a escolha
dos representantes eleitos.
Tendo discorrido sobre os conceitos básicos, Lyra Filho inicia
a discussão a respeito da sua proposta de modelo para descrever o Direito. A
abordagem dialética adotada por esse autor considera o papel desempenhado pelo
Estado, conquanto não o tenha como único polo capaz de emanar direitos.
Essa abordagem se encontra válida ainda nos dias de hoje, como
fica evidenciado pela iniciativa do Direito Achado na Rua, idealizada por
Roberto Lyra Filho, que discute o direito proveniente de fontes diferentes do
Estado, como o direito que surge de movimentos sociais, de lutas de classes e
de reivindicações de minorias.
O Direito Achado na Rua encontra-se atualmente engajado em
causas sociais, como a defesa dos direitos humanos, além de desenvolver
pesquisas que visam à disseminação de conhecimentos correlatos a esse assunto.
Como exemplo de tema de interesse dessa iniciativa, pode-se citar a defesa dos
direitos de visitantes de presidiários.
A matéria de Ferraz (2014), publicada na Folha de S. Paulo em
27/04/2014, denuncia as constantes humilhações que esses visitantes sofrem ao
irem ver seus entes presos. Segundo essa matéria, “prática comum nas penitenciárias do país, as revistas íntimas pelas
quais visitantes devem passar são descritas como sendo vexatórias e violentas.
Enquanto um projeto de lei que prevê a extinção da prática tramita no
Congresso, ONGs e Defensoria Pública paulista lutam por um acesso mais
humanizado às prisões.”.
O modelo de Direito proposto por Lyra Filho incorpora, também,
a influência exercida pela sociedade internacional na normatização produzida em
um país. Um exemplo extremo e atual da influência exercida por países
estrangeiros sobre um determinado ordenamento jurídico nacional é a
independência da Crimeia em relação à Ucrânia e sua posterior anexação à Rússia
ocorrida em março de 2014.
Ademais, esse modelo se estrutura por meio de dois eixos –
centrípeto e centrífugo. O eixo centrípeto procura a manutenção do status quo do governo vigente, ou seja,
visa à garantia da posição conquistada pela classe dominante. Para tanto, esse
eixo utiliza-se dos usos, costumes, folkways
e mores, os quais “constituem os veículos da dominação e se
entrosam nas instituições sociais, invocando princípios ideológicos”,
segundo Lyra Filho (1982, p. 44).
O eixo centrífugo, por sua vez, visa à incorporação do direito
que se origina na sociedade civil. Assim, o direito proveniente das
manifestações sociais – pacíficas ou violentas – introduz mudanças no
ordenamento jurídico vigente. As reivindicações podem assumir a forma de
reformas – o novo direito é incorporado à estrutura vigente sem impactar sua
base – ou de revoluções – o novo direito remodela toda a estrutura vigente,
possibilitando, inclusive, a alteração da classe dominante.
As manifestações de junho de 2013 podem ser utilizadas para
exemplificar o funcionamento do modelo proposto por Lyra Filho. A insatisfação
popular até o referido acontecimento estava latente, assim, imperava a
estrutura apresentada pelo eixo centrípeto, em que a classe dominante mantem o
controle por meio de instrumentos cotidianos, como more.
Contudo, a anomia gerada pelas reivindicações das referidas
manifestações acionou o eixo centrífugo do modelo. O governo, em meio aos
acontecimentos, chegou a cogitar a possibilidade de uma revolução na estrutura
do poder por meio de uma assembleia constituinte. Apesar disso, essa medida não
foi necessária, uma vez que a “ordem” foi reestabelecida por meio de reformas
políticas específicas, as quais afetaram apenas o ordenamento
infraconstitucional.
Assim, o modelo apresentado visa a abarcar todas as
perspectivas possíveis do Direito, como o posicionamento de sociólogos,
antropólogos e historiadores, sem privilegiar um ponto de vista em detrimento
dos demais, como ocorre nas correntes precedentes – Positivista e
Jusnaturalista.
Por fim, Lyra Filho, por meio de seu modelo, diferencia Direito
de moral, uma vez que este é interno e visa à orientação do comportamento
individual. O Direito, por sua vez, visa ao estabelecimento de regras para
coexistência das pessoas, ou seja, o Estado deve garantir que um indivíduo não
cause danos a outro, nem à comunidade como um todo.
Assim, o autor conclui que são ilegítimas definições legais
que estipulam “crime sem vítima”, uma vez que uma ação individual não pode ser
julgada como criminosa caso não prejudique terceiros. Por isso, é ilegítimo
condenar criminalmente “a autodestruição
física ou psíquica, pelo suicídio, pelo consumo de drogas, pela degradação
moral da prostituição”, segundo Lyra Filho (1982, p. 58).
Esses comportamentos, conquanto possam ser contestados
moralmente, não devem ser juridicamente reprimidos, uma vez que pertencem ao
campo de arbítrio individual de cada um. Como exemplo de medida que evidencia a
separação do Direito da moral, pode-se citar a legalização do uso e
comercialização da maconha pelo Uruguai, em 2013.
Dessa forma, concluo este artigo com a minha percepção em
relação ao livro de Roberto Lyra Filho aqui tratado. Embora apresente uma
dimensão ínfima – apenas 61 páginas –, o autor consegue desenvolver de forma
realista um tema tão controverso referente à definição do que é Direito.
Além disso, chama atenção a linguagem utilizada pelo autor,
uma vez que este teve o zelo de explicar cada um dos termos que pudessem gerar
dúvidas para um leitor não familiarizado com o assunto.
Enfim, a meu ver, esse livro é uma leitura obrigatória para
todos que estiverem ingressando na carreira jurídica.
BERGER, Peter. Perspectivas
Sociológicas: Uma visão humanística. Rio de Janeiro, Editora Vozes, 2001.
204 p.
FERRAZ, L. Dias sujos. Folha de S. Paulo, São
Paulo, 27 abr. 2014. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2014/04/1445471-dias-sujos.shtml>.
Acesso em: 20 maio 2014.
FRIEDLANDER, D.;
MENDONÇA, R. PT recebe mais doações que
PSDB, PMDB e PSB juntos. Folha de S. Paulo, São Paulo, 18 maio 2014.
Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/05/1456159-pt-recebe-mais-doacoes-que-psdb-pmdb-e-psb-juntos.shtml>.
Acesso em: 18 maio 2014.
LYRA FILHO, R. O que é
Direito. 11o ed. São Paulo: Brasiliense, 1982. 61 p.
MELLO, P. C. Trabalho sujo. Folha de S. Paulo, São
Paulo, 18 maio 2014. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/166525-trabalho-sujo.shtml>.
Acesso em: 18 maio 2014.
(*) Texto preparado
para a disciplina Sociologia Jurídica, 1º/2014
ótimo artigo! parabéns
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