João Vinicius Marques
Vem saltando às agendas
dos movimentos sociais, das pequenas às grandes mídias e às conversas de bar o
debate sobre a atuação repressiva e criminalizante do Estado às manifestações
sociais que vem eclodindo no País – boa parte delas, insurgentes às
intervenções e violações de direitos decorrentes da Copa. Em meio a essa
discussão da criminalização dos movimentos sociais e dos direitos de protesto
da população, outro lado desse debate vem questionando os impactos positivos e
mesmo a pertinência das manifestações contra violações de direitos na Copa e
megaeventos sobre o que seria o ambiente
festivo, de comemoração nacional que esses grandes acontecimentos, e que os
protestos refletiriam um complexo típico (ou melhor, tipificante) que teria o
povo brasileiro em denunciar suas mazelas
e desigualdades: desperdiçando um momento de grande festa nacional; expiando de
forma um tanto conspiratória uma Fifa ou uma Copa do Mundo que se instalou em
meio a contradições e problemas sociais que já existiam, que não foram por eles
criados; que as autoridades públicas e governantes envolvidos no empreendimento
estatal desses megaeventos não tem culpa; que o povo brasileiro não pode se privar de festejar, afinal, há muito
o que comemorar etc, etc.
É verdade, os problemas
de que falam os protestos contra as intervenções estatais e privadas no Brasil
decorrentes da organização da Copa do Mundo e Olimpíadas não são novos, nem
inventados por esses megaeventos. Afinal, remoções, falta de moradia, higienização,
precarização do trabalho e da garantia integral na proteção e efetivação de
direitos sociais e ação policial ostensiva na repressão aos segmentos
trabalhadores e marginalizados não são novidades, né? Mas é por isso mesmo que as
manifestações por direitos que se espalharam e vem enfrentando o projeto
político da festa da Copa não estão
falando apenas de Copa. Como trouxe o Comitê Popular da Copa na tal famosa
Primavera brasileira de junho do ano passado, o cartão vermelho dos movimentos
sociais se dirigia a uma Copa, a um projeto político e social de Copa em
específico, e que, infelizmente, veio se consolidar como a alternativa política
escolhida pelo Estado brasileiro em realizar: a Copa que viola Direitos. São,
acima de tudo, desses Direitos ora violados – e não de Copa – de que esses
movimentos estão falando.
Outro ponto também, da
mesma forma que estamos falando de modo geral não de lutas socais contra a Copa, e sim por Direitos, é que
essas lutas sociais por Direitos não surgiram ou vieram do nada, mas se situam
principalmente na própria dinâmica social brasileira, profundamente marcada
pela resistência institucional e política à garantia de direitos às populações
marginalizadas e ao enfrentamento permanente travado pelos movimentos sociais
no Brasil pela efetivação desses mesmos direitos, na figura de grandes
conquistas sociais. Conquista social a muito ferro e luta, de sangue e de muita
morte para a incorporação pelo sistema de marcos formais que continuam
sistematicamente ameaçados por retrocessos no campo político e, o que é ainda
mais dramático, por violações e
acontecimentos recorrentes na sociedade que provam, na prática social, o quanto
estas conquistas estão não apenas permanentemente em xeque nas ruas e nas relações
entre as pessoas, como indicam que as conquistas sociais tão arduamente
disputadas precisam ainda serem
conquistadas, talvez pelo longo caminho que ainda nos falta para consolidar
uma cultura de direitos, seja perante a ampla sociedade, seja mesmo diante do
Estado brasileiro, que deveria ser, pelo menos em tese, o grande protetor – e
não o contra-agente – dos direitos previstos constitucionalmente e
permanentemente reconstituídos na prática cotidiana e na vivência oprimida, mas
resistente, das populações subalternizadas no país.
É assim que é necessário
pontuar também que, na medida em que os direitos violados e as ameaças postas
na atual conjuntura política às conquistas sociais dizem respeito a segmentos e
populações específicas no país – aquelas marginalizadas, minoritárias, ou
histórica e circunstancialmente oprimidas pela nossa tradição social e política
autoritária, racista e elitista –, não é possível pensar as lutas sociais em
torno dos Direitos violados no contexto da Copa como movimentações nacionais,
ou de um uno e unívoco povo brasileiro,
mas como movimentos populares estritamente identificados com uma parcela
substancial, mas específica da grande população brasileira, que o conceito de
nação brasileira recorrentemente tenta sufocar: a da imensa aglutinação de
minorias subalternizadas no país e afetadas pela falta de reconhecimento
político de sua cidadania, as minorias sofridas e violadas cotidianamente e das
mais diferentes formas que, juntas, contadas e reunidas, constituem a grande
maioria da população brasileira e que se vê recorrentemente amordaçada dentro
dos valores nacionais que permite dizer a essa maioria de minorias que o
momento de dar evidência ao seu sofrimento não é esse; que não há motivo para
revolta contra uma nação; que, em uma unidade, não há ninguém contra ninguém,
nem contra direitos, nem contra liberdades, não há porque levantar-se contra
uma Copa, contra um país melhor. É uma outra perspectiva de
organização política da população oprimida, outra perspectiva de construção de
identidade que permite levantar-se e questionar: pra quem? Copa pra quem? País e nação para quem? São estas as
questões e disputas que permitem questionar o discurso homogeneizante de nação
e de país que está posto e que problematizam também, e do ponto de vista
prático, social, que direitos são esses que estão previamente garantidos a
todos, se permanece a pergunta, diante da heterogeneidade da população
brasileira, a quem esses direitos estão
garantidos e a quem a violação desses mesmos direitos favorece. Direito
para quem.
Estas perguntas podem
ser irrelevantes para quem virá sustentar a unidade do povo brasileiro, ou para quem virá dizer que isso não tem nada a
ver nem com direitos, nem com Copa, ou para quem virá argumentar que a
democracia já efetivou e garantiu o que essas manifestações insistem em dizer
que ainda não chegou. A essas pessoas ou visões, é necessário dizer que essas
manifestações talvez não se dirijam a elas, mas reivindiquem um espaço de
reconhecimento e cidadania para pessoas e, acima de tudo, para condições de
existência diferentes demais daqueles que reivindicam tão somente comemorar a
Copa ou seu sentimento tacanho de nação. Para estes, a comemoração nacional à
Copa, ou a manifestação contrária ao que se passa em torno dela será uma escolha, protegida dentro de seu lugar
confortável e justo de seus direitos garantidos, suas condições de
sobrevivência resguardadas, suas ostentadas liberdades individuais e
cordialmente associativas também protegidas. Tudo certo. Para o outro lado e às
margens desse grande sentimento de nação, outros tantos terão em relação à Copa
e aos seus direitos o que historicamente tiveram, tem – e, atualmente, parece
que continuarão tendo por suas vidas inteiras: a necessidade de resistir,
construir e de lutar por seus direitos não garantidos como única opção.
Se há um lugar para as
margens dentro do Direito, é imprescindível reconhecer como um direito
fundamental o que, para as populações revoltadas com a imposição exploratória a
suas próprias condições de vida, torna-se uma necessidade. Onde nem todo mundo
dispõe do direito a ter direitos, é o mínimo do mínimo em um Estado pretensamente
democrático garantir a todas e todos o direito de lutar. Para muitos ainda no
Brasil esse será um direito compulsório, frente à impossibilidade de
sobreviverem sem a necessidade de resistirem e de lutarem permanentemente pela
proteção de sua própria dignidade, mas é em respeito e apoio a esses sujeitos
políticos obrigados à luta pela sobrevivência que o direito e proteção às manifestações
sociais devem ser garantidos, sempre, no Brasil.
(*) O texto foi apresentado como atividade da disciplina Sociologia Jurídica, do 1º semestre, do Curso de Direito da Faculdade de Direito da UnB
Nenhum comentário:
Postar um comentário