José Carlos Moreira da Silva Filho
Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUC-RS; vice-presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça
As ações da polícia, do Ministério Público e do Judiciário cariocas no
caso das prisões dos ativistas, e que foram respaldadas por outros
órgãos de segurança pública no Brasil, tanto em nível federal quanto
estadual, bem como, veículos da imprensa, que em boa parte dos casos não
se limitaram a noticiar mas tomaram claramente partido contra os
ativistas presos, devem ser compreendidas a partir de algumas
considerações pontuais que faço abaixo:
1. O Brasil detém,
segundo dados deste ano do CNJ, a terceira maior população carcerária do
mundo. Desta população, 32% estão em prisão provisória, utilizada, de
modo geral, de maneira pouco criteriosa e abundante. Muitos dos direitos
e garantias assegurados pela legislação brasileira à população
carcerária, incluindo-se aí o direito às mínimas condições de higiene,
saúde, alimentação e dignidade são cotidianamente desrespeitados, sem
falar da extrema e alta violência policial praticada contra esta
clientela. Não é portanto novidade a adoção de práticas autoritárias e
ilegais por parte das forças de segurança pública brasileiras e presente
soberanamente no sistema prisional do país.
2. A atuação
repressora e violenta, contudo, não se limita ao trato da criminalidade
comum, ela se manifesta, historicamente, como forma de controle político
e contenção das forças descontentes ou contestadoras na sociedade,
coordenadas tanto pelo governo quanto por grupos que o sustentam. Neste
sentido, o Brasil tem uma larga ficha corrida e se tornou exímio em
consolidar uma figura que podemos chamar de "legalidade autoritária",
isto é, a arte de criar uma aparência legal para atos que violam
princípios constitucionais, internacionais e direitos fundamentais. A
ditadura civil-militar foi pródiga em nos fornecer, com o prestimoso
auxílio de juristas brasileiros, muitos exemplares dessa espécie quando
substituiu a legitimidade constitucional pelos atos institucionais e
quando judicializou a repressão política, criando procedimentos
judiciais para ocultar a prática da tortura na busca de informações ou
para justificar a estigmatização do "subversivo".
3. No Brasil,
após a ditadura, não houve uma depuração administrativa e judicial, não
houve reforma da segurança pública e não houve sequer a
responsabilização e o arrependimento pelos atos violentos e autoritários
praticados. Neste departamento nossa justiça de transição é
praticamente inexistente. Não é, pois, de se admirar que mesmo durante o
período democrático instaurado pela Constituição de 1988, a "legalidade
autoritária" continue a pleno vapor.
4. O caso das prisões dos
manifestantes é um claro exemplo disto. Objetos apreendidos e
transformados em indícios no contexto de uma narrativa viciada,
preconceituosa e mirabolante a la teoria da conspiração ("bombar" pode
significar utilizar bombas; ter gasolina em casa transforma a pessoa em
um terrorista em potencial; advogar pro bono é uma prova de cumplicidade
ou liderança de atos criminosos; ter a biografia do Marighella na
mochila transforma seu portador em um perigoso sociopata, etc), para
reprimir crimes que nem sequer ocorreram (como no filme "minory
report"), realizando-se a análise judicial em tempo recorde, malgrado o
tamanho das laudas da "investigação", incluindo na denúncia pessoas que
nem se conhecem como se fossem cúmplices e formadores de quadrilha, e
fazendo, como já é de hábito na história do país, acrobacias com o
conceito de "segurança nacional" ou de "ordem pública".
5. A
estratégia é muito clara: trata-se de criminalizar as lideranças que
organizam os protestos, por mais democráticos e pacíficos que sejam,
para cortar o "mal" pela raiz, imaginando-se que qualquer aglomeração
pública na rua é sinal de baderna (ainda mais durante a Copa ou qualquer
outro evento oficial de maiores dimensões). Não se separa os
aproveitadores que em meio aos eventos promovem quebradeiras dos que
atuam comprometidos com a militância e com projetos de um país melhor,
por mais que possamos discordar de suas ideias. Como as cenas,
devidamente registradas, e inúmeros relatos de violência policial
durante as manifestações de junho de 2013 (e até mesmo no dia da final
da Copa, como se viu na praça Saens Peña, na Tijuca), ou como o
procedimento padrão de disparar bombas de lacrimogênio em meio a
aglomerações pacíficas mostram, a polícia está preocupada, via de regra,
em que a manifestação acabe e não que ela aconteça. A sua importância
democrática ou o sinal de que seja um amadurecimento democrático da
sociedade civil organizada rumo a uma sociedade melhor é abruptamente
substituída pelo receio de destruição de objetos públicos ou pelo
incômodo que possa causar ao cotidiano das cidades, sem falar na
contestação que representam às autoridades constituídas. Ao se
criminalizar a ação política da sociedade em geral, que passa a ser
vista como foco de crimes e violência, quem perde somos todos nós, que
desejamos viver em uma democracia e ter a liberdade de manifestação,
organização e protesto.
(*) Texto publicado na edição do Estadão Noite hoje,
publicação para tablets (25/07/2014)
Nenhum comentário:
Postar um comentário