quinta-feira, 10 de julho de 2014

Hábito com força de lei (*)


Beatriz Balestro Izzo                                                            


A presidente Dilma acaba de assinar, no último mês de maio, o Decreto nº 8.243, que institui a Política Nacional de Participação Social – PNPS e o Sistema Nacional de Participação Social – SNPS. A própria Constituição Brasileira estabelece formas de participação popular, como a ação popular (art. 5º, LXXIII) e a iniciativa popular de projetos de lei (art. 14, III), além da inquestionável titularidade popular da soberania democrática.
Apesar de toda a instrumentalização teórica, poucos são os exemplos da efetiva participação popular na formação de políticas públicas no Brasil. No entanto, é em Brasília que podemos citar um dos maiores exemplos de atuação popular efetiva, que serve de referência para os demais Estados brasileiros: o respeito à faixa de pedestres. Tal como nos demais Estados, em Brasília, a faixa de pedestres também não passava de uma mera pintura no asfalto, para a qual não se dava muita importância e, por este motivo, apresentava altas taxas de morte por atropelamento. Na capital federal, a situação era agravada por suas pistas largas que favorecem o abuso de velocidade e dificultam ainda mais a travessia das ruas pelos pedestres.
O respeito ao pedestre já era previsto no Código de Trânsito desde 1966[1] e foi mantido no Novo Código de Trânsito Brasileiro, promulgado em 1997, que estabelece multa gravíssima ao condutor que “deixar de dar preferência a pedestre (...) que se encontre na faixa a ele destinada.” A normatização, no entanto, não era suficiente para conscientizar tanto motoristas quanto pedestres.
Esse cenário começa a mudar em Brasília em 1996, a partir de uma mobilização social denominada “Campanha pela Paz no Trânsito”. O movimento foi encabeçado pelo jornal de maior circulação em Brasília, o “Correio Braziliense”, que promoveu uma contagem regressiva para o início da fiscalização, além de setores da sociedade civil e do governo. Neste mesmo ano, ela já foi responsável pela diminuição da velocidade dos veículos e das taxas de mortalidade no trânsito. No ano seguinte, a Universidade de Brasília assumiu a condução da campanha, criando o Fórum Permanente pela Paz no Trânsito que, em uma de suas primeiras reuniões, aprovou a campanha de conscientização pelo Respeito a Faixa de Pedestres.
Conforme descrição brilhante do Presidente do Instituto de Mobilidade Sustentável – RuaViva, Organização Não Governamental de atuação nacional, Nazareno Stanislau Affonso[2]: “Quase que um guarda presente por todo dia em cada faixa, lançamento com bailarinas e palhaços vestidos de faixa ou distribuindo rosas brancas para os que respeitavam as faixas e o resultado é que foi um mês de trombadas, xingamentos e reclamações da qualidade da sinalização horizontal e vertical das faixas. Mas, contrariando o ceticismo, o temor e as expectativas mais pessimistas, Brasília ofereceu um emocionante espetáculo de cidadania sem precedentes no País, quando os motoristas passaram a parar orgulhosos de sua cidadania em frente às faixas, sem quaisquer semáforos, para dar vez à travessia dos pedestres.” Interessante observar que, inicialmente, os policiais ficaram escondidos, para que a relação de controle entre motorista e pedestre fosse estabelecida. Quem devia ser respeitado era o pedestre, e não o fiscal.
Desnecessário argumentar sobre os números favoráveis em decorrência dessa mudança comportamental. Nenhuma lei, nenhuma sanção havia tido tanta influência no comportamento dos cidadãos como a campanha de conscientização.
Deste exemplo, podemos extrair a força que um movimento social organizado possui perante os agentes da sociedade. O hábito hoje possui maior força que a obrigatoriedade prevista em lei. O controle, feito por cada um e por todos, possui maior efeito repressor que os agentes fiscalizadores. Mas, maior e mais importante que isto, o orgulho do exercício da cidadania por quem para o carro para o pedestre e a satisfação destes por ter seu direito respeitado representam um ganho imensurável para a cidade. 
Como toda proposta de mudança cultural, também o respeito à faixa de pedestre foi visto inicialmente como uma proposta utópica, não-factível. No entanto, as melhorias foram tantas e tão positivas, que vêm sendo objeto de estudo de diversos pesquisadores. A sociedade, frente a uma demanda aparentemente sem solução, não ficou inerte. Arregaçou as mangas e fez a diferença, criando um modelo inspirador de respeito à cidadania.

Referências Bibliográficas:
1)      Affonso, N. S. Respeito à faixa: a marca da “Paz no Trânsito”. Disponível em: http://www.ruaviva.org.br/pazt_5.html. Acesso em 04/06/2014.
Machado, V.L.S.; Todorov, J.C.; Ramos, G.C.C. Dois exemplos de pesquisa documental. Disponível em: http://www.walden4.com.br/pww4/index.php?title=Cap%C3%ADtulo_12._Dois_Exemplos_de_Pesquisa_Documental

(*) O texto foi produzido como atividade da disciplina Sociologia Jurídica, neste 1º semestre de 2014. A disciplina integra o currículo (2º semestre) do Curso de Direito da Faculdade de Direito da UnB.  


[1] Lei nº 5.108/66. Art. 83, XI: “É dever de todo condutor de veículo: Dar preferência aos pedestres que estiverem atravessando a via transversal na qual entrar, aos que ainda não hajam concluído a travessia, quando houver mudança de sinal e aos que se encontrem nas faixas a eles destinadas, onde não houver sinalização.”
[2] Affonso, N. S. Respeito à faixa: a marca da “Paz no Trânsito”. Disponível em: http://www.ruaviva.org.br/pazt_5.html. Acesso em 04/06/2014.

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