quarta-feira, 4 de junho de 2014

“O que é Direito” de Roberto Lyra Filho: uma abordagem contemporânea (*)




                    Thiago Rais de Castro, aluno do segundo semestre do curso de Direito da UnB
Ao ler o livro “O que é Direito” de Roberto Lyra Filho, publicado pela primeira vez em 1982, chamou-me atenção o quanto a proposta desse autor se encontra viva nos dias de hoje, apesar de terem passado mais de 30 anos desde a sua publicação e desse livro ter sido escrito antes da mudança de sistema de governo de aristocracia do Regime Militar para democracia do Estado Democrático de Direito.
Por isso, fiquei estimulado em apresentar, em linhas gerais, a definição de Direito desenvolvida dialeticamente por esse autor, contrapondo-a aos acontecimentos históricos atuais, a fim de despertar no leitor o interesse por esse assunto, que, embora possua raízes cravadas em um passado remoto, ainda se encontra em plena construção.
Lyra Filho inicia sua obra expondo seu maior objetivo: desvincular a ideia de Direito como sinônimo de lei. A ideia de Direito limitado às leis postas pelo Estado esconde toda a história de evolução das formas de governo e das conquistas do povo, uma vez que tal simplificação não inclui a dinâmica dos movimentos sociais.
O Direito sob essa ótica se resume a um conjunto de leis, utilizadas como ferramenta de dominação, as quais são postas pelo Estado, que representa o interesse de uma classe dominante. Assim, se tal simplificação fosse verdadeira, os direitos dos demais grupos sociais não teriam sofrido mudança alguma ao longo do tempo, dado o suposto equilíbrio forjado pelas classes dominantes. Não obstante, o Direito não se limita ao Estado, uma vez que a sociedade civil é fonte importante de novos direitos.
A concepção de Direito proposta por Lyra Filho, além de incluir as transformações históricas decorrentes das manifestações sociais, dá destaque especial aos Direitos Humanos. Tal enfoque deve-se ao fato de que esses direitos, nas palavras do Prof. Menelick de Carvalho Netto, nos descalçam, ou seja, eles são responsáveis por projetar o Direito para o futuro.
Dessa forma, os Direitos Humanos promovem transformações no Direito vigente, por exemplo, ao tornar determinadas definições ultrapassadas e preconceituosas, como o conceito de família, que antes reconhecia apenas a união de pessoas de diferentes sexos e negava direitos à união homoafetiva. Hoje em dia, ao interpretar as normas tendo como base os Direitos Humanos, fica praticamente impossível fundamentar de forma coerente uma argumentação que restrinja direitos de minorias, como os homossexuais.
Lyra Filho também discorre sobre o conceito de ideologias jurídicas, apresentando, de forma sucinta, o panorama das principais correntes do Direito – Positivista e Jusnaturalista – e suas respectivas vertentes. Além disso, o autor nos chama atenção para o fato da ideologia, muitas vezes, ser utilizada como instrumento de dominação.
A fim de demonstrar que tal observação se encontra presente ainda nos dias de hoje, remeto o leitor à matéria de Mello (2014), publicada pelo jornal Folha de S. Paulo em 18/05/2014 com o título: “Trabalho Sujo”. Essa matéria denuncia a condição desumana de 1,3 milhão de indianos catadores de excrementos. Veja um trecho da reportagem que descreve as atividades realizadas por um desses trabalhadores.
 “[...] [Sudhira] vai até o fundo do terreno, onde fica o ‘banheiro’ um buraco raso no chão, cercado por uma parede baixa de tijolos. Cheira muito mal. Em meio a uma nuvem de moscas, Sudhira se agacha, retira os excrementos com uma pá, que segura na mão sem luva. Junta um pouco de folhas, terra e cinzas e põe em cima das fezes. Recolhe esse bolo de excrementos com a pá e põe na cesta que leva sobre a cabeça. Às vezes, escorre.”
Dessa forma, os donos do poder – termo apropriado da obra de Raymundo Faoro – utilizam a ideologia baseada em uma suposta superioridade para legitimar tal exploração humana: as “pessoas” sequer tocam em indivíduos pertencentes à casta de Sudhira.
Essa matéria publicada pela Folha de S. Paulo também pode ser utilizada para ilustrar a afirmação feita por Lyra Filho de que o Estado representa o interesse de uma classe dominante, uma vez que o governo indiano não dá a devida atenção para as pessoas da casta de Sudhira. Tal afirmação se torna evidente ao se constatar que o maior empregador de catadores de excrementos é o próprio governo indiano por meio do sistema ferroviário.
Por fim, Lyra Filho destaca que a ideologia é um fato social antes de se tornar um fato psicológico, ou seja, as concepções de mundo nos são externas e não intrínsecas à nossa natureza. Por isso, é possível mudar a realidade criada pela ideologia ao se identificar a origem e a intenção das ideias por ela veiculadas, além de ser necessária a atuação por meio de movimentos sociais e da disseminação do conhecimento.
Esse assunto me remete ao livro “Perspectivas Sociológicas” de Peter Berger (2001), que também trabalha com a questão de ideologias como instrumento para atender a interesses de uma determinada classe social. Para esse autor, o fenômeno de superação de uma realidade imposta pelas ideologias é denominado “êxtase”, sendo que tal mudança de paradigma pode ser alcançada por meio da conscientização dos fatos.
No que se refere à manutenção de privilégios, Lyra Filho destaca que os representantes da ordem estabelecida, caso demonstrem preocupação com os interesses de uma classe diferente da dominante, serão substituídos por outros que não tenham essa atitude. A pergunta que surge é a seguinte. Em pleno século XXI, será que isso ainda acontece? Se sim, como?
Entre os instrumentos utilizados pela classe dominante para influenciar na definição dos representantes, pode-se citar o financiamento de campanhas eleitorais. A matéria apresentada por Friedlander e Mendonça (2014), publicada no jornal Folha de S. Paulo em 18/05/2014, denuncia que o PT recebeu mais financiamento do que o PSDB, PMDB e PSB juntos. Segundo a referida reportagem, a maior parte desse financiamento é proveniente de construtoras que também possuem negócios com o setor público.
Assim, essa matéria serve para evidenciar uma inconsistência inserida no sistema eleitoral vigente, qual seja a possibilidade de que uma minoria detentora de bens de produção influencie de forma incisiva a escolha dos representantes eleitos.
Tendo discorrido sobre os conceitos básicos, Lyra Filho inicia a discussão a respeito da sua proposta de modelo para descrever o Direito. A abordagem dialética adotada por esse autor considera o papel desempenhado pelo Estado, conquanto não o tenha como único polo capaz de emanar direitos.
Essa abordagem se encontra válida ainda nos dias de hoje, como fica evidenciado pela iniciativa do Direito Achado na Rua, idealizada por Roberto Lyra Filho, que discute o direito proveniente de fontes diferentes do Estado, como o direito que surge de movimentos sociais, de lutas de classes e de reivindicações de minorias.
O Direito Achado na Rua encontra-se atualmente engajado em causas sociais, como a defesa dos direitos humanos, além de desenvolver pesquisas que visam à disseminação de conhecimentos correlatos a esse assunto. Como exemplo de tema de interesse dessa iniciativa, pode-se citar a defesa dos direitos de visitantes de presidiários.
A matéria de Ferraz (2014), publicada na Folha de S. Paulo em 27/04/2014, denuncia as constantes humilhações que esses visitantes sofrem ao irem ver seus entes presos. Segundo essa matéria, “prática comum nas penitenciárias do país, as revistas íntimas pelas quais visitantes devem passar são descritas como sendo vexatórias e violentas. Enquanto um projeto de lei que prevê a extinção da prática tramita no Congresso, ONGs e Defensoria Pública paulista lutam por um acesso mais humanizado às prisões.”.
O modelo de Direito proposto por Lyra Filho incorpora, também, a influência exercida pela sociedade internacional na normatização produzida em um país. Um exemplo extremo e atual da influência exercida por países estrangeiros sobre um determinado ordenamento jurídico nacional é a independência da Crimeia em relação à Ucrânia e sua posterior anexação à Rússia ocorrida em março de 2014.
Ademais, esse modelo se estrutura por meio de dois eixos – centrípeto e centrífugo. O eixo centrípeto procura a manutenção do status quo do governo vigente, ou seja, visa à garantia da posição conquistada pela classe dominante. Para tanto, esse eixo utiliza-se dos usos, costumes, folkways e mores, os quais “constituem os veículos da dominação e se entrosam nas instituições sociais, invocando princípios ideológicos”, segundo Lyra Filho (1982, p. 44).
O eixo centrífugo, por sua vez, visa à incorporação do direito que se origina na sociedade civil. Assim, o direito proveniente das manifestações sociais – pacíficas ou violentas – introduz mudanças no ordenamento jurídico vigente. As reivindicações podem assumir a forma de reformas – o novo direito é incorporado à estrutura vigente sem impactar sua base – ou de revoluções – o novo direito remodela toda a estrutura vigente, possibilitando, inclusive, a alteração da classe dominante.
As manifestações de junho de 2013 podem ser utilizadas para exemplificar o funcionamento do modelo proposto por Lyra Filho. A insatisfação popular até o referido acontecimento estava latente, assim, imperava a estrutura apresentada pelo eixo centrípeto, em que a classe dominante mantem o controle por meio de instrumentos cotidianos, como more.
Contudo, a anomia gerada pelas reivindicações das referidas manifestações acionou o eixo centrífugo do modelo. O governo, em meio aos acontecimentos, chegou a cogitar a possibilidade de uma revolução na estrutura do poder por meio de uma assembleia constituinte. Apesar disso, essa medida não foi necessária, uma vez que a “ordem” foi reestabelecida por meio de reformas políticas específicas, as quais afetaram apenas o ordenamento infraconstitucional.
Assim, o modelo apresentado visa a abarcar todas as perspectivas possíveis do Direito, como o posicionamento de sociólogos, antropólogos e historiadores, sem privilegiar um ponto de vista em detrimento dos demais, como ocorre nas correntes precedentes – Positivista e Jusnaturalista.
Por fim, Lyra Filho, por meio de seu modelo, diferencia Direito de moral, uma vez que este é interno e visa à orientação do comportamento individual. O Direito, por sua vez, visa ao estabelecimento de regras para coexistência das pessoas, ou seja, o Estado deve garantir que um indivíduo não cause danos a outro, nem à comunidade como um todo.
Assim, o autor conclui que são ilegítimas definições legais que estipulam “crime sem vítima”, uma vez que uma ação individual não pode ser julgada como criminosa caso não prejudique terceiros. Por isso, é ilegítimo condenar criminalmente “a autodestruição física ou psíquica, pelo suicídio, pelo consumo de drogas, pela degradação moral da prostituição”, segundo Lyra Filho (1982, p. 58).
Esses comportamentos, conquanto possam ser contestados moralmente, não devem ser juridicamente reprimidos, uma vez que pertencem ao campo de arbítrio individual de cada um. Como exemplo de medida que evidencia a separação do Direito da moral, pode-se citar a legalização do uso e comercialização da maconha pelo Uruguai, em 2013.
Dessa forma, concluo este artigo com a minha percepção em relação ao livro de Roberto Lyra Filho aqui tratado. Embora apresente uma dimensão ínfima – apenas 61 páginas –, o autor consegue desenvolver de forma realista um tema tão controverso referente à definição do que é Direito.
Além disso, chama atenção a linguagem utilizada pelo autor, uma vez que este teve o zelo de explicar cada um dos termos que pudessem gerar dúvidas para um leitor não familiarizado com o assunto.
Enfim, a meu ver, esse livro é uma leitura obrigatória para todos que estiverem ingressando na carreira jurídica.


BERGER, Peter. Perspectivas Sociológicas: Uma visão humanística. Rio de Janeiro, Editora Vozes, 2001. 204 p.
FERRAZ, L. Dias sujos. Folha de S. Paulo, São Paulo, 27 abr. 2014. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2014/04/1445471-dias-sujos.shtml>. Acesso em: 20 maio 2014.
FRIEDLANDER, D.; MENDONÇA, R. PT recebe mais doações que PSDB, PMDB e PSB juntos. Folha de S. Paulo, São Paulo, 18 maio 2014. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/05/1456159-pt-recebe-mais-doacoes-que-psdb-pmdb-e-psb-juntos.shtml>. Acesso em: 18 maio 2014.
LYRA FILHO, R. O que é Direito. 11o ed. São Paulo: Brasiliense, 1982. 61 p.
MELLO, P. C. Trabalho sujo. Folha de S. Paulo, São Paulo, 18 maio 2014. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/166525-trabalho-sujo.shtml>. Acesso em: 18 maio 2014.
(*) Texto preparado para a disciplina Sociologia Jurídica, 1º/2014

Um comentário: