Pedro Henrique M. de Farias
Graduando
em Direito pela Universidade de Brasília
Pensar as reivindicações sociais,
nutridas de todo o seu valor potencial, nos remete à noção da capacidade da
demanda a qual detém o corpo social vis-à-vis o âmbito da política e do
direito. Isso quer dizer que a sociedade, enquanto administrada, detém,
sobretudo, no contexto democrático e representativo, a força de estabelecer
demandas ao escopo de seus administradores, ou os seus representantes.
Nessa
medida, recorrendo-se, neste breve trabalho, à história social e política do
Brasil, podem ser mencionados alguns dos principais acontecimentos, a exemplo
da Inconfidência Mineira, esta havendo sido ponderada enquanto um movimento
elitista, todavia que, para sua época, fora marcada por demandas sociais contra
a ordem política vigente, a Conjuração Baiana, as insurgências do período
regencial, bem como, a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, os Caras
Pintadas e, mais recentemente, os protestos radicados em junho de 2013 por todo
o território nacional.
Todas
as formas de reivindicação mencionadas, por mais diferentes, em termos de
demandas, que elas tenham sido, concretizam o fato de que a história do Brasil
fora marcada, desde longa data, pela atuação e demanda social em maior ou menor
grau. Conforme observado pelas ideias de Boaventura de Sousa Santos (1980, p.
116), é como se cada célula, cada indivíduo fosse imbuído, dentro de seu
macrocosmo social, a um “centro de produção de juridicidade”,dotado de
soberania. Conforme providencialmente ele pondera, “no momento, porém, em que
os conflitos sugem, o choque não é meramente entre reivindicações fáticas ou
normas jurídicas isoladas, é antes entre duas ordens jurídicas, duas pretensões
globais de juridicidade ou ainda entre duas vocações contraditórias (mutuamente
exclusivas) de universalização jurídica.”. Assim, percebemos o grau de mudança
do contexto positivista de uma neutralidade científica, que tolhia da égide
jurídica, a inserção de valores, princípios e ações que visassem à produção
normativa. A neutralidade, vale dizer estaria na desvinculação entre política e
direito, num ato político de vontade discricionária do operador jurídico,
conforme preconizado por autores positivistas como Hans Kelsen.
Em
sentido similar, António Manuel Hespanha (2007, pp. 55-56), de forma perspicaz
aponta para o saber jurídico enquanto inserido no âmbito social. Isso é mister
à noção da participação e do poder decisório que se amarra à sociedade, pois,
conforme ele salienta, o ato de reger “a interpretação, a integração, os
conflitos de leis – não podem ser decididas autoritariamente pelo legislador”.
Isso quer dizer que haveria um deslocamento do centro de produção e demanda normativa
que não estaria mais na hierarquia do Estado, mas sim no potencial da
sociedade, abarcando o pluralismo jurídico: “nomeadamente quando eles
(pluralistas) negam o monopólio estatal da criação de direito e admitem que a
comunidade, constituída por uma pluralidade de grupos autônomos, pode criar o
seu próprio direito plural, correspondendo a essa multiplicidade de interesses
organizados, mas não hierarquizados ou harmônicos entre si, que coexistem no
seu seio.”. Isso, de mais a mais, seria
o que corresponderia ao agir, ao participar social enquanto programador de
demandas e consolidador da democracia: “o sentido democrático exige que todas
as vozes do povo se possam fazer ouvir” (ibidem, p. 129).
Participando
do pano de fundo teórico para tal tema, pode ser interessante pôr em voga o
debate que correspondeu ao entrelaçamento entre as noções de direito, política,
liberdade e participação social. Numa mister linha de pesquisa que abrange, com
propriedade, essa urdidura está o Direito Achado na Rua. Esse campo
contemporâneo de estudo está consistentemente vinculado à proposta e a reflexão
sobre os principais desafios, problemas e a necessidade de voz que a população
depende na consolidação da ideia de justiça e de liberdade social.
Para
essa discussão, com efeito, faz-se mister a menção de um dos estudiosos mais
proeminentes nessa área: Roberto Lyra Filho. Lyra Filho publica, no início dos
anos 1980, no Brasil, o que ficou conhecido como uma obra concisa e, ao mesmo
tempo, densa sobre temas pertencentes à grande área das ciências humanas e
sociais, no que tange ao entrelaçamento entre direito e sociedade, ou o
pensamento acerca da chamada sociologia geral e jurídica, radicada na
perspectiva da dialética jurídica, entre a justiça e a ordem, vinculando um real
fato social (SOUSA JÚNIOR, 2002).
Conforme
propõe o autor, deve-se prezar pelo Direito não como de um âmbito excludente, top
down, de cima para baixo, que venha a tolher a participação social. Isso
quer dizer que, em sentido contrário, bottom up, as lutas e demandas
sociais comportam o que seria um dos fundamentos do pensamento socialista, de
que o direito não deveria ser estatal. As normas, também, denotariam o sentido
para além do mero controle social. Isso, para justificar a noção de crítica ao
positivismo em seu “mito da 'neutralidade'”, conforme apontado, o qual era
desvelado pela ótica dominadores versus dominados, ou seja, os
formuladores da lei em prejuízo dos destinatários ou o povo.
A
lógica socialista far-se-ia nessa dinâmica espoliadores/espoliados. Aqui entra,
ademais, a noção fundamental da Sociologia Jurídica, enquanto a consideração
premente da cientificidade dos fatos sociais, ou o que Lyra Filho mitiga na
crítica à metafísica do social. Quer dizer, a dialética “não tolera aquela antinomia
(contradição insolúvel de direito positivo e natural, tomados como unidades
isoladas, estanques e desligadas da totalidade jurídica, na totalidade maior,
histórico-social.” (LYRA FILHO, 1982, p. 29). Sendo assim, o deslocamento do
protagonismo do Estado registra a sua qualificação secundária, submetida ao
protagonismo primário da sociedade, dentro da dialética do Direito, sob a
Sociologia Jurídica. Conclui ele, “aplicando-se ao Direito uma abordagem
sociológica será então possível esquematizar os pontos de integração do
fenômeno jurídico na vida social, bem como perceber a sua peculiaridade
distintiva, a sua “essência verdadeira”” (ibidem, p. 33).
Com
efeito, devemos pensar, pelo legado de Lyra Filho, na sociedade enquanto
protagonista de direitos, enquanto dinâmica e de onde parte o núcleo do Direito
e da sua capilarização, dialeticamente vinculando um viés centrípeto, de fora
para dentro, de coesão, e de um norte centrífugo, de dentro para fora,
ensejando um não engessamento social e da dinâmica jurídica. Isso sedimentaria
a noção de direito/antidireito.
Com
efeito, podemos concluir que o termo, conforme ficara conhecido de Direito
Achado na Rua, corresponde a essa intersecção entre direito e sociedade; entre
a crítica do direito e da sociedade em prejuízo do cientificismo e do
positivismo. A noção de liberdade, de participação e de autonomia é o que nutre
o âmbito social dialeticamente ao Direito, pois “o direito, em resumo, se
apresenta como positivação da liberdade conscientizada e conquistada nas lutas
sociais e formula os princípios supremos da Justiça Social que nelas se
desvenda” (ibidem, p. 57). Assim, a justiça e o direito não são
metafísicos, mas sim sedimentados e legitimados pelo fato social. O ensino
jurídico, nessa tessitura, é partícipe do legado que constituiria a
contribuição ensejada pelo Direito Achado na Rua e por outros autores como
Evandro Lins e Silva. Na medida em que a dogmática jurídica fosse minada strictu
sensu, ou seja, no distanciamento para com o cientificismo positivista, em
aproximação para com o estudo da Sociologia Geral e Jurídica, bem como de uma
Filosofia Jurídica, incorporar-se-ia, assim, o norte da discussão de uma
construção dialética do direito.
Como
perspectivas atuais, podemos dizer que o estudo de Lyra Filho correspondeu à
ideia de que a sociedade assenta dialeticamente a relação com o direito. O
acesso à justiça, conforme previsto pela futura Carta de 1988, citando o Art.
1°, parágrafo único, de que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de
representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” (BRASIL,
1988, p. 11), bem como o Art. 5°, incisos LXXIII, que formula que “qualquer
cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo
ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade
administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico-cultural, ficando o
autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus de
sucumbência” (ibidem). Por fim, há o Art. 134, que diz que “a Defensoria
Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbido-lhe
a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma
do art. 5°, LXXIV” (ibidem, p. 41).
Abordando-se
os acontecimentos de junho de 2013, chegamos, assim, à noção de que a liberdade
de expressão, bem como a necessidade de expressar as demandas, observando-se a
sua amplitude em caráter nacional, mostrou que a situação jurídica e política
do país se concatenara a um entrelaçamento para com a sociedade. A democracia
preza, assim, pela conferência de voz e de discurso ao, bem como pela
consideração ao povo. Com efeito, o impacto registrado por essas demandas
registra o fato da importância da contribuição de estudiosos como Lyra Filho,
pois ele, mesmo anos antes da atual Carta Magna, já observava e dotava de
fundamental importância a égide do fato social e da necessidade de vinculação
do direito à sociedade, com o desiderato da Sociologia Jurídica.
Referências Bibliográficas
BRASIL.
Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.
Brasília, DF, Senado, 2012.
HESPANHA, António Manuel. O caleidoscópio do
direito: o direito e a justiça nos dias e no mundo de hoje. Coimbra:
Edições Almedina, 2007.
LYRA FILHO, Roberto. O que é direito?.
São Paulo: Brasiliense.
SANTOS,
Boaventura de Sousa. “Notas sobre a história jurídico-social de Pasárgada”. In:
SOUTO, C.; FALCÃO, J. (Org.). Sociologia e direito: textos básicos de
sociologia jurídica. 1. ed. São Paulo: Pioneira, 1980, p. 109-117.
SOUSA JR., José Geraldo de. Sociologia
Jurídica: Condições e Possibilidades Teóricas. Sergio Antonio Fabris
Editor: Porto Alegre, 2002, pp. 11-51.
(*) Texto preparado para a disciplina Sociologia Jurídica, Faculdade de Direito da UnB, 1º semestre de 2014
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