quinta-feira, 12 de junho de 2014

Um xeque contra a cidadania

Fabio de Sá e Silva (*) Mídia Ninja


Quem trabalha ou estuda gestão pública no Brasil deve estar acostumado a ser procurado por estrangeiros que tentam entender melhor as importantes inovações levadas a efeito no país, especialmente a partir da Constituição de 1988, no sentido de criar meios e oportunidades para permitir a participação direta dos cidadãos nos processos de política pública.

Dos pioneiros Orçamentos Participativos de Porto Alegre, que hoje são realidade em muitas cidades da Europa e até mesmo nos Estados Unidos – a partir do exemplo de Vallejo, na Califórnia – às consultas públicas que subsidiaram iniciativas legislativas de grande envergadura, como o Marco Civil da Internet, essas interfaces socioestatais se tornaram parte da gramática política contemporânea e, para usar uma expressão que está na ordem do dia, um dos principais legados do Brasil para a teoria e a práxis democrática do limiar do século XXI.

Curiosamente, aliás, isso sequer tem se dado exclusivamente no contexto de governos ou de projetos de esquerda. Ao contrário, instituições como o Banco Mundial também cumpriram um papel central na difusão da ideia de participação, no que enxergavam ser um elemento para a “boa governança” dos países que, ao longo dos anos 1990, experimentavam processos de abertura econômica, integração à economia global e adesão ao Estado de Direito.

Foi completamente inesperado, portanto, o Editorial com o qual o Estadão saudou a edição, pela Presidenta Dilma, do Decreto n. 8.243/2014, que “Institui a Política Nacional de Participação Social – PNPS e o Sistema Nacional de Participação Social – SNPS, e dá outras providências”.

No texto, o jornal acusa o Decreto “criar” estruturas para dar “acesso privilegiado” a certos atores (os “movimentos sociais”, diz a publicação, assim, entre aspas) em “todos os órgãos e entidades da administração pública federal direta e indireta”.

Essa medida, conclui o Editor, traduz uma visão de que “o Poder Legislativo é dispensável”, pois ignora que “a participação social, numa democracia representativa, se dá através dos seus representantes no Congresso, legitimamente eleitos”, buscando “por decreto, instituir outra fonte de poder”.

O que era, porém, apenas uma cobertura desinformada – no início por obra do Estadão, mas que depois se propagou por veículos como a Veja e a Folha –, acabou dando combustível para disputas políticas de mais grosso calibre. Pouco depois da edição do Decreto, os Deputados Mendonça Filho e Ronaldo Caiado, do DEM, submeteram Projeto de Decreto Legislativo (PDC n. 1.491/2014) buscando sustar a medida tomada por Dilma. Para justificar a iniciativa, disseram os Deputados proponentes que enxergam como “absolutamente clara a intenção da Presidente da República: implodir o regime de democracia representativa (...) mediante a transferência do debate institucional para segmentos eventualmente cooptados pelo próprio Governo”.

No final desta terça-feira, 10, o conflito escalou e integrantes da própria base passaram a ameaçar Dilma a revogar o Decreto n. 8.243/2014, sob pena de que o PDC de Mendonça Filho e Caiado seja colocado em votação e, garantem os autores das ameaças, derrubado pelo Congresso.  “Se até amanhã o governo não atender, nós vamos votar a favor da derrubada”, disse o presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN).

Há motivos, porém, para tamanha controvérsia?

Se houver, ao que parece, eles não se relacionam ao Decreto. Afinal, a leitura atenta desse texto indica que apenas e tão somente:

Art. 5º  Os órgãos e entidades da administração pública federal direta e indireta deverão, respeitadas as especificidades de cada caso, considerar as instâncias e os mecanismos de participação social, previstos neste Decreto, para a formulação, a execução, o monitoramento e a avaliação de seus programas e políticas públicas.

Ou seja:

Art. 6º  (...): I – conselho de políticas públicas; II – comissão de políticas públicas; III – conferência nacional; IV – ouvidoria pública federal; V – mesa de diálogo; VI – fórum interconselhos; VII – audiência pública; VIII–- consulta pública; e IX – ambiente virtual de participação social.

Fica evidente, portanto, que o texto do Decreto não estabelece a obrigatoriedade de criação de quaisquer interfaces em quaisquer órgãos ou entidades: apenas prevê que estes devem considerá-las, conforme “as especificidades de cada caso”.

E nem poderia ser de outro jeito, pois cada política pública pode comportar diferentes formas de interface com a sociedade, as quais devem ser escolhidos e instituídos caso a caso. O Decreto, porém, se limita a relacionar as principais interfaces já existentes e a estimular os gestores a incorporá-las em suas práticas cotidianas.

Além disso, o texto circunscreve bem o âmbito de incidência dessas interfaces: os programas e políticas a cargo dos órgãos e entidades da administração. Programas e políticas que estão sujeitos, como sempre estiveram, a diversos controles do parlamento: desde o do TCU, o qual tem por objeto conformidade dos atos dos gestores com leis ou regulamentos, até o controle mais propriamente político, o qual pode ser exercido pela convocação de responsáveis para dar esclarecimentos ou mesmo pelo restrição de recursos, quando da apreciação da lei orçamentária.

O que o Decreto faz, por outro lado, é criar uma série de balizas para a operação das ditas interfaces, estabelecendo parâmetros iniciais para orientar-lhes o funcionamento, bem como atribuindo à Secretaria-Geral da Presidência a competência para acompanhá-las, orientá-las e avaliá-las frente ao conjunto das experiências de participação em curso na máquina pública.

Mas isso também tem boas razões de ser. Afinal, o Decreto ganha forma em um quadro no qual, mesmo entre os entusiastas das interfaces socioestatais, subsistem motivos para acreditar que elas sempre podem prometer mais do que consegue entregar.

Da parte do governo, não é incomum que elas venham a servir de veículos para a mera de legitimação de opções prévias dos gestores – e não como mecanismo de escuta e construção de arranjos ou soluções inovadores. Da parte da sociedade civil, não é incomum que elas venham a ser capturadas por grupos específicos que, apenas por serem mais organizados, conseguem se sobressair frente aos demais que compõem a totalidade desse segmento.

É digno de nota, assim, que o Decreto preveja requisitos como a “garantia da diversidade” (art. 10, III) e a “rotatividade dos representantes da sociedade civil” (art. 10, V), para os Conselhos, ou a “sistematização das contribuições recebidas” (arts. 16, III e 17, III), a “publicidade, com ampla divulgação de seus resultados e a “disponibilização do conteúdo dos debates” (arts. 16, IV e 17, IV) e o “compromisso de resposta às propostas recebidas (arts. 16, V e 17, V) para as audiências e consultas públicas. Tais previsões mostram que há, na verdade, uma preocupação com que não haja cooptação – ao contrário do que, maldosamente, supõem Mendonça Filho e Caiado.

O Decreto, em suma, apenas cria meios para que a administração pública federal possa gerir melhor as interfaces entre o Estado e a sociedade civil nas políticas públicas. É um ato que disciplina e organiza relações já em curso, sem obrigar nenhum órgão à adoção de nenhum mecanismo de participação e, muito menos, desvalorizar função representativa do Congresso Nacional. Ao ameaçar derrubá-lo, porém, não é apenas um texto que os congressistas colocam em xeque: é a cidadania brasileira, cujo acúmulo e maturidade, como se vê, estão muito à frente do que alguns seus intérpretes ou mandatários parecem capazes de enxergar.


(*) FABIO DE SÁ E SILVA é PhD em Direito, Política e Sociedade pela Northeastern University e professor substituto de Teoria Geral do Direito na Universidade de Brasília (UnB). As opiniões contidas neste artigo são de caráter estritamente pessoal. Fábio participa também do coletivo Diálogos Lyrianos (O Direito Achado na Rua). Este texto foi originalmente publicado no site Carta Maior, na coluna Princípios Fundamentais do qual o autor é o editor.

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