Karoline Martins(*)
O que seria uma caminhada para a Fifa Fan Fest e um ato pacífico e lúdico se converteu em um festival de atrocidades e violência policial - por iniciativa dos próprios militares. Na abertura da copa do mundo, a polícia do DF mostrou a que veio e, claro, não foi para garantir o direito de manifestação, nem o direito de ir e vir dos cidadãos (apenas de alguns).
Centenas de pessoas com faixas, tambores, bandeiras do Brasil e autofalantes saíram hoje da Praça do Relógio, em Taguatinga-DF, em direção à Fifa Fan Fest. Todo o tempo, a faixa da esquerda da pista foi deixada livre, para que os carros pudessem passar livremente. Em nenhum momento, a manifestação impediu o direito de ir e vir dos cidadãos, que, assim como os manifestantes, também queriam assistir o jogo. Em nenhum momento também, houve depredação ao patrimônio público ou qualquer ato de violência por parte dos manifestantes.
Ironicamente, quem “obstruiu a via” (como eles gostam de dizer) e violou o direito constitucional e fundamental de ir e vir dos cidadãos foi a Polícia Militar. Antes do acesso à entrada da Fifa Fan Fest, um cordão policial fechava, de uma lateral à outra, a avenida.
Logo atrás deles, a cavalaria estava a postos, pronta para avançar sobre os” inimigos da Fifa” e, por conseguinte, da polícia e do Estado brasileiro.
Quando a manifestação alcançou o cordão policial, instransponível (pelo menos não sem violência, sangue e arbitrariedades de todo o tipo), trava-se esse diálogo entre um dos integrantes do Comitê Popular da Copa, Tiago, e o coronel Nevilton, da PM:
“Tiago: nossa manifestação é pacífica, nós queremos entrar na Fifa Fan Fest e assistir ao jogo!
Coronel: até aqui, a manifestação de vocês é legal, daqui pra frente não. Aqui é perímetro da Fifa, daqui ninguém passa.
"Tiago: E se nós encerrarmos a manifestação agora, entregamos as faixas e cartazes à PM e seguimos para assistir ao jogo?
Coronel: Também não vão passar.
Tiago: Mas por que?
Coronel: Por que não. Vocês não vão passar. Voltem para a Praça do relógio e encerrem a manifestação lá. Daqui ninguém passa.”
Tiago tentou argumentar que eles estavam violando o direito de manifestação, que quem estava violando o direito de ir e vir eram eles, que eles queriam entrar na Fifa fan Fest e assistir o jogo, mas nada disso adiantou.
“Quer dizer então, que deixamos de ser cidadãos? Não somos mais cidadãos”, concluiu Tiago, ao reportar o diálogo para os demais manifestantes, pelo autofalante, que gritavam : “nós também pagamos impostos!”, “nós também queremos assistir o jogo!”.
Não podemos transitar livremente no espaço público. Veja que a discussão já ultrapassou o direito de manifestação, que já foi enterrado faz tempo, no país. Apenas transitar, sem manifestar, até isso nos tiraram.
Mas os manifestantes permaneceram lá, e a polícia “teve que tomar providências”. Vi policiais avançando contra os manifestantes, quietos e pacíficos, e atingindo-os com spray de pimenta. Eu também fui atingida.
A polícia avançou contra manifestantes que seguravam uma faixa e entraram em confronto com eles, tomaram e rasgaram a faixa. Um novo tipo penal tinha sido criado: porte ilegal de faixas e cartazes no perímetro da FIFA, assim como o porte de vinagre no ano passado.
Ouvi isso da boca do coronel Nevilton, que disse com todas as letras a uma amiga: “aqui você não pode ficar, porque está portando cartazes e faixas, isso é proibido no perímetro da FIFA”.
Um jovem que estava de costas para o cordão de isolamento feito pelos policiais, e não estava cometendo absolutamente nenhum ilícito foi puxado, detido pela polícia e levado para a delegacia. Sob qual alegação? Os policiais não sabiam dizer. Iam “descobrir” os crimes lá. Talvez resistência, perturbação à ordem pública ou até mesmo incitação a crime (!). Outro manifestante também foi preso, jogado no camburão e levado para a delegacia, também sem acusação definida.
Mas não acabou por aqui. Érika Medeiros, advogada da AJUP Roberto Lyra Filho, que viu essa abordagem policial e tentou acompanhar a prisão foi impedida de exercer sua profissão pelo próprio coronel da PM. Foi agredida pela polícia com empurrões, puxões pelo braço e uma chave de pescoço. Até que conseguiu se identificar como advogada, para acompanhar o jovem detido.
Não tinha outro jeito, a manifestação recuou e voltou para a Praça do Relógio. Minutos depois, grupos de pessoas com bandeiras e camisas do Brasil passavam pela barreira policial, tranquilamente.
Qual a diferença entre os manifestantes e eles? São todos cidadãos, pagam impostos, trabalham, querem assistir o jogo pacificamente. Mas os manifestantes discordavam da maneira com a qual o mundial foi organizado, com violações a direitos humanos, remoções forçadas, estádios bilionários e arbitrariedades de todos os tipos.
A FIFA, com a anuência do Estado brasileiro, decide quem é cidadão e quem não é. Quem pode transitar livremente nos espaços públicos e quem não pode. Quem pode comercializar mercadorias e quem não pode. Quem pode manifestar livremente sua opinião e quem não pode. Quem discorda dos métodos da FIFA, não é mais cidadão.
Um Estado que se diz democrático não pode agredir manifestantes, tomar seus cartazes, calar suas vozes, impedir advogados/as de exercer sua profissão, vender seu povo, suas leis e sua soberania a organismos internacionais privados; criar um Estado de Exceção, dentro do Estado de Direito.
Se hoje alguém rasgou a Constituição Federal, violou direitos e cometeu crimes, esse alguém - não tenho dúvida - foi o Estado e seu braço mais repressor, a Polícia Militar.
Esse será o tom da copa do mundo no Brasil: mais violência contra quem ousar denunciar as violências, mais repressão contra quem ousar questionar as arbitrariedades. Não se engane, a democracia e a liberdade precisam ser construídas todos os dias. Por mim, por nós, por você. Por isso, as manifestações não vão parar.
(*) Advogada da Assessoria Jurídica Universitária Popular – AJUP - Roberto Lyra Filho.
Mestranda em Direito pela UnB na linha Direito Achado na Rua e Pluralismo Jurídico.
Nenhum comentário:
Postar um comentário