publicado em 20 de junho de 2014 às 13:28
por Conceição Lemes
Em 23 de maio de 2014, a presidenta Dilma Rousseff assinou o decreto nº 8.243/2014, que institui a Política Nacional de Participação Social.
Uma iniciativa histórica, que regulamenta o que já previa a Constituição Federal desde 1988.
Na prática, o decreto 8.243/2014 cria mecanismos concretos de participação social na administração pública por conselhos consultivos populares. Contribui, assim, para a ampliação da cidadania de todos os atores sociais.
“O resultado foi uma histeria geral da direita nos seus meios de comunicação e no parlamento”, observa João Pedro Stedile, líder MST. “O próprio PMDB e os demais partidos conservadores, mesmo sendo base do governo, ameaçam derrubar o decreto federal e boicotar outras votações. Uma vergonha.”
Os partidos contrários alegam que o conteúdo representaria “uma invasão à esfera de competência do Parlamento brasileiro e uma afronta à ordem constitucional do país”.
Intelectuais e movimentos sociais brasileiros reagiram.
Elaboraram um manifesto (na íntegra, abaixo) de apoio ao decreto de Dilma e de repúdio a posições atrasadas de alguns partidos políticos e de outros setores conservadores da sociedade, incluindo Judiciário e mídia:
...o decreto não viola nem
usurpa as atribuições do Poder Legislativo mas tão somente organiza as
instâncias de participação social já existentes no Governo Federal e
estabelece diretrizes para o seu funcionamento…
…o decreto representa um avanço para a
democracia brasileira por estimular os órgãos e entidades da
administração pública federal direta e indireta…
…o decreto não possui inspiração
antidemocrática, pois não submete as instâncias de participação, os
movimentos sociais ou o cidadão a qualquer forma de controle por parte
do Estado Brasileiro…
A participação popular é uma conquista de
toda a sociedade brasileira, consagrada na Constituição Federal. Quanto
mais participação, mais qualificadas e próximas dos anseios da
população serão as políticas públicas. Não há democracia sem povo.
O manifesto será entregue em 1º de julho aos presidentes do Senado,
Renan Calheiros (PMDB-Alagoas) e da Câmara, deputado
federal Henrique Alves (PMDB-RN).Entre os muitos signatários, os juristas e professores Fábio Konder Comparato, Celso Antônio Bandeira de Mello, Dalmo Dallari e José Geraldo de Sousa Júnior, além do próprio Stedile.
O professor José Geraldo é um dos grandes juristas da atualidade. Em 2008, foi eleito reitor da Universidade de Brasília (UnB) por voto direto paritário de professores, estudantes e funcionários da instituição.
Atualmente, integra a Comissão de Educação Jurídica do Conselho Federal da OAB e é membro da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Brasília.
Segue a entrevista que eu, Conceição Lemes, e Patrick Mariano, da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (Renap), fizemos com o professor José Geraldo sobre o decreto nº 8.243/2014.
Viomundo — O que o decreto de Dilma representa para a democracia do país?
José Geraldo de Sousa– Enquanto diretriz que orienta a administração, ele realiza o que está previsto na Constituição Federal. Traduz a conquista da sociedade, no processo de transição da ditadura para a democracia, de institucionalizar um sistema de participação e de exercício direto da democracia.
Por isso, a Constituição de 1988 foi denominada de “cidadã”. Acrescentou ao modelo liberal-burguês representativo a forma atual de exercício direito do poder popular.
É uma realidade que deriva do amadurecimento protagonista de nosso povo – veja a sua presença reivindicadora nas ruas – e qualifica ainda mais a democracia. Sem essa participação, a democracia é contida e abre espaço a jogos de gabinete, formais e, sobretudo, burocráticos.
A democracia é viva e afluente, sempre se expande. Ela é a possibilidade de criação permanente de direitos.
Viomundo — O que muda em relação ao que temos hoje em dia?
José Geraldo de Sousa — A partir do decreto, uma melhor sistematização, no âmbito do executivo, do que já vem sendo realizado de vários modos. Basta ver que vários desses instrumentos estão previstos na própria Constituição, alguns, inclusive, nomeados.
É importante salientar que as figuras colecionadas no decreto – conselhos, comissões, ouvidorias, mesas de diálogo, fóruns de interconselhos, audiências públicas, consultas públicas, ambiente virtual de participação social — já eram objeto de institucionalização gestora há muito tempo.
Algumas formas, aliás, experimentadas desde muito antes da Constituição e por diferentes governos. Por exemplo, as práticas de orçamentos participativos e as conferências, convocadas estrategicamente como modo de construir políticas públicas e seus planos diretivos.
É o caso das conferências de saúde, combinando a participação de sociedade, governo e especialistas. A 8ª Conferência desenhou todo o sistema SUS depois incluído na Constituição de 1988.
O Legislativo igualmente contribuiu para a implementação do modelo participativo, mantendo o sistema de audiências públicas e as comissões deliberativas, incluindo as comissões de legislação participativa.
O mesmo acontecendo com o Judiciário, que também instituiu sistemas de audiências públicas, o amicus curiae e, finalmente, a instalação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para controle do sistema com participação da cidadania.
Viomundo – O que lucra a sociedade?
José Geraldo de Sousa — A sociedade ganha porque se corresponsabiliza pela gestão, exerce o controle social e encontra mecanismos para fazer valer suas demandas de modo institucionalizado. Senão o que lhe restará, numa modernidade com muitos recursos de mobilização, é ir para as ruas e agir com espontaneidade e força, não necessariamente de forma organizada e com mediações negociadoras.
Assistimos a isso desde as jornadas de junho de 2013 e nas mobilizações diante da Copa do Mundo. Sem essas mediações, o processo fica caótico e abre ensejo para excessos, que colocam no mesmo plano desde a criminalidade ao fascismo social.
Viomundo — A quem caberá implementar o plano?
José Geraldo de Sousa — Embora o decreto estabeleça várias interfaces, ele não impõe nenhuma obrigatoriedade e procura estimular os gestores a desenvolvê-las a partir de suas especificidades e do grau de intercomunicação que mantém com a sociedade.
No âmbito do Judiciário, por exemplo, todos os anos são publicados catálogos de “boas práticas” da democratização do acesso à Justiça e incentivadas formas de participação acolhidas pela estrutura do sistema, entre elas os modelos de mediação e de Justiça comunitária. Não há mistério nisso.
Viomundo – Por que o PMDB e alguns partidos conservadores, mesmo da base do governo, estão contra o decreto?
José Geraldo de Sousa — Porque representam a resistência oligárquica que está acostumada a subtrair do processo de elaboração legislativa o sentido de realização democrática dos direitos e, assim, preservar uma prática negociada de privilégios e de favores.
Victor Nunes Leal mostrou esse processo muito bem em seu livro “Coronelismo, Enxada e Voto” e Raymundo Faoro em sua obra “Os Donos do Poder”.
Sem a participação popular, nos modos e pelos instrumentos indicados na Constituição, a representação mantém aquele modelo que já Getúlio Vargas denunciava com a sua frase lapidar: “para os amigos tudo, para os inimigos a lei”.
Manter-se resistente aos avanços democráticos, que inspiraram outras democracias no mundo depois da Constituinte brasileira, é preservar os vícios que caracterizam esses grupos: clientelismo, nepotismo, prebentismo, filhotismo, apadrinhamento. Em suma: a política de favor, impedindo a Política de Direitos.
Viomundo — Como desmontar os argumentos contra o decreto nº 8.243/2014?
José Geraldo de Sousa — Em parte abrindo a esfera pública de formação de opinião, como está sendo feito, com inúmeros comentários sobre a correção da proposta.
Requerer do Congresso que use seus instrumentos de participação – audiências públicas com convites para depoimentos que abram o debate sobre as intenções declaradas e subentendidas que estão na base das manifestações pró contra a medida.
Em resumo: informar o quanto já se avançou nesse campo no Brasil e no mundo.
Viomundo — Embora apenas partidos políticos tenham se manifestado contra o decreto nº 8.243/2014, setores conservadores do Judiciário e a própria mídia vão posicionar contra.
José Geraldo de Sousa — Sem dúvida. Mas isso também faz parte do processo democrático e, no fundo, trata-se de uma disputa interpretativa sobre o conhecimento da Constituição e seu modo de realização.
O importante é participar desse debate porque ele permite caracterizar o lugar dos protagonistas quando tomam posição. Certos setores são mais refratários porque acumularam mais privilégios e usam seu discurso “competente” para disfarçar o lado em que se encontram.
É possível um Judiciário conservador numa sociedade democrática que continue atribuindo à lei democrática o caráter de promessa vazia?
E os meios de comunicação continuarão sem controle social quanto às concessões e ao modo como cumprem a sua função constitucional?
Como se dará a implementação das cláusulas de proteção dos destinatários da comunicação – direito de resposta, cláusula de consciência, ouvidorias, carta de leitor?
Veja que o embate tem também uma agenda oculta. No fundo, é o que se procura proteger por trás de um biombo diversionista e falacioso dos setores conservadores.
Viomundo — Na prática, eles querem manter intacta a força dessas mesmas elites?
José Geraldo de Sousa — É evidente. E tanto mais aguerridamente quanto interesses corporativos e ideológicos são trazidos para a agenda de um debate aberto e com muitas vozes — propriedade fundiária, corporativismos, faccionismos religiosos ou de qualquer tipo.
Até quando assumem discursos reformistas o fazem ao estilo gatopardista (para lembrar Lampedusa e sua obra O Leopardo): se for o caso, entregar anéis para preservar dedos, ou, como posto pelo autor italiano na boca do Princípe Tancredi (que coincidência), “reformar para conservar”.
Viomundo — Por que eles são contra a participação popular?
José Geraldo de Sousa– Porque para eles povo não é realidade, mas, sim, tema.
Só existe no discurso, mas não é reconhecido na política. São chamados de “classe perigosa” (como mostrou Alberto Passos Guimarães em seu livro homônimo), para as quais, como no programa de um antigo presidente da república (Washington Luís, também ex-prefeito de São Paulo), “a questão social é questão de polícia”. Quando a política se apresenta como ação popular o primeiro impulso é criminalizar.
Viomundo — Esse plano poderia diminuir a pressão de lobistas econômicos sobre o Congresso?
José Geraldo de Sousa — Acho que pode qualificar essa pressão, até mesmo modificar o entendimento sobre a função do lobby. E, assim, impor aos congressistas formas mais qualificadas também para o trabalho parlamentar, que considero muito importante e muito mais amplo do que o momento deliberativo em comissões ou no plenário. Aproximará mais os parlamentares da sociedade organizada e ensejará disposição mais republicana à política.
Viomundo — Como nós, enquanto sociedade, podemos contribuir para que esse plano seja aprovado?
José Geraldo de Sousa — Eu acabo de assinar um manifesto bem fundamentado de juristas em defesa do projeto.
Como professor e como membro de organizações da sociedade civil (OAB, Comissão Justiça e Paz), vou levar a discussão para os espaços em que atuo.
Esta entrevista é outra maneira de contribuir para a formação de opinião. Cada um, em seu âmbito de atuação, comunitária, corporativa, social ou política deve procurar também formar opinião e tomar posição.
De minha parte procuro assumir minha atitude de cidadania responsável, política e teoricamente. Nesse duplo aspecto, fortaleço a minha prática acadêmica e social. Por isso, no meu âmbito de atuação, que é o Direito, procuro não perder de vista o entendimento da fonte social que o fundamenta.
Durkheim dizia que o direito é a dimensão visível da solidariedade. Cuida-se de saber, entretanto, qual o direito. E, aqui, relembro Roberto Lyra Filho para acentuar que as normas em si não constituem o direito, mas esse surge da sociedade e é por ela realizado como regra material do agir, traduzindo o que aquele notável professor denominava O Direito Achado na Rua, vale dizer, a enunciação dos princípios de legítima organização social da liberdade.
Não é a esse direito que a lei de introdução às normas do direito brasileiro alude, quando afirma em seu texto que a sua validade decorre da concretização dos fins sociais a que se destina?
E que essa validade é aferível não só nas normas em que o direito procura se manifestar mas também por meio de princípios que os designem?
Por isso que se reivindica, atento à sua questão, às condições de concretização da solidariedade, operando, pelo direito a desconcentração da propriedade, em nome da distribuição equitativa e não da acumulação egoísta, do interesse e da função social que os bens devem realizar, ou do alcance ético do próprio desenvolvimento.
De resto, essa é a lição que nos trouxe o grande constitucionalista português J. J. Gomes Canotilho. Fazendo alusão a O Direito Achado na Rua, ele lembra a necessidade de o jurista se abrir a outros modos de consideração da norma do direito. Por meio do olhar atento às exigências do justo, ele precisa levar em conta as teorias da Justiça, mas também teorias da Sociedade.
(*) Publicada originalmente no Blog Viomundo
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