sexta-feira, 31 de maio de 2013

Um rodapé para o Direito Achado na Rua*

Ronaldo Rebello de Britto Poletti

Estou escrevendo um modesto livro sobre Filosofia do Direito. São anotações de aula no curso de graduação e pós na UnB, quando era professor. Faço críticas às alternatividades jurídicas modernosas. Não cuido do direito alternativo, que considero um “nada” científico. Já o “Direito achado na rua” merece alguma atenção, até em consideração ao Professor José Geraldo de Sousa Júnior e, também, porque verifico naquela direção alguns aspectos favoráveis, mais sociológicos do que jurídicos. Há, todavia, algumas rimas com o Direito Romano, como a ideia dos “novos sujeitos”, os costumes como fonte normativa capaz de derrogar a lei (maneira tácita do povo dar a última palavra). Em razão disso, inseri notas de rodapé, dentre outras uma em que escrevo mais ou menos o seguinte.
Além das publicações da UnB e os três únicos números da revista Direito e Avesso, da década de 80, há o último livro do José Geraldo: Direito como Liberdade. O Direito Achado na Rua (2011). Ele elabora significativa síntese do movimento, suas ações e rimas com autores de um único identificável diapasão, agrupados em torno de ideias que não são, propriamente, novas: direito dos excluídos, reivindicações sociais, utilização do Direito para fins não-jurídicos, a-jurídicos e, até, anti-jurídicos; criação de uma Universidade Popular [?!]; cotas de todo tipo, para negros, índios, membros do Movimento Sem Terra (MST); formação de estudantes para a atuação na luta pelo Direito como expressão e formação da liberdade. Nenhum disfarce de uma posição revolucionária, que imaginávamos tivesse desaparecido. A posição esquerdista dos escribas lembrados e agrupados não é disfarçada. Imagina-se que disso todos se orgulhem. Marx sempre, marxismo, marxiano, marxisisante, a adesão ao materialismo é evidente. O disfarce, porém, está na falsa modernidade e no brilho intelectual de alguns dos agregados, a partir de Lyra Filho, não necessariamente seus discípulos, porém com ele conformes: Warat, Boaventura de Souza Santos, Marilena Chauí, Michel Mialle, Canotilho e tantos outros, irmanados na ação revolucionária proposta por Gramsci. O problema não é tanto de mérito, mas de uma sociologia infiltrada na Ciência Jurídica e na proclamação de um equívoco de sua historicidade. Se tudo está errado, vamos tudo alterar, porque chegaram os novos projetos, não necessariamente das letras jurídicas, mas da rua, onde os grandes intérpretes do povo vão pontificar o novo paradigma, arbitrariamente concebido. Se isso é Direito ou anti-Direito, pouco importa. O certo é que intentam transformar o ordenamento existente, afinal instrumento da classe dominante, sem os instrumentos ortodoxos de sua mutabilidade. Ou os dominadores cedem, ou vão de roldão. As críticas são consideradas irrelevantes, ou de má fé; as nossas – honra-me com sua menção – são de um “fundamentalismo fechado ao diálogo”, “recalcitrante às formas de alteridade que forjam a consciência e a liberdade, como lembra Marilena Chauí.” Quanta honra! Assim, a nossa crítica “é antes uma objeção ideológica, centrada num transcendentalismo fundamentalista, que invocando um homem universal metafísico (o homem como valor em si mesmo e criação original), faz objeção à experiência de humanização que se realiza na história, como emancipação consciente na práxis libertária.” Como se vê a nossa leitura crítica é equivocada, afinal há vários humanismos, logo vale o da “rua” e sua “revolução”, onde se pretende organizar a liberdade pelos companheiros concebida, mas onde o homem, infelizmente, não passa de uma paixão inútil, sartreana, um homem sem essência anterior fundada em um Ser transcendente, mas que se forma na própria vida e na rua. No entanto, não temos assistido esse homem da rua, revolucionário, existencialista, resolver a miséria do mundo ou implantar a paz.
Mais uma ironia: o capitalismo, objeto de desdém e de crítica, vem se organizando de maneira a esvaziar a própria rua. Já as reformas de Paris e de Viena, pelo célebre arquiteto Hausmann, destruindo as ruelas e vias estreitas e substituindo-as por grandes avenidas, inviabilizaram as passeatas e as barricadas, como Marx reclamou. Agora, quase já não há a rua. O comércio criou os Shoppings, onde há corredores com polícia própria, não sendo permitidos nem os comícios, nem as passeatas, nem o acontecimento republicano.

* A publicação deste artigo, de Ronaldo Poletti, se justifica no diálogo carregado de antagonismo político/teórico/ideológico, mas cercado do respeito e da cortesia intelectual que presidem a convivência plural no ambiente acadêmico, permitindo inclusive, que a amizade se estabeleça neste ambiente saudável. Parte desse estado de recíproca consideração se revela na troca de mensagens transcrita a seguir:



Prezado José Geraldo.
Obrigado por ter lido o meu modesto artigo.
Não tive a oportunidade de na UnB, no lançamento da revista Notícia, ao qual você não pode comparecer, de falar na sua presença, como havia planejado, sobre os aspectos que concordo com a sua teoria, sem prejuízo das divergências críticas. Para você ter uma ideia de como o considero e valorizo o seu esforço teórico e prático, bem como o direito achado na rua, saiba que na 4ª ed. de meu livro de Introdução ao Direito, São Paulo, Saraiva, 2010, inseri um item sobre o “direito alternativo” e sobre “o direito achado na rua”, elaborando uma crítica a respeito deste último e deixando de lado maiores observações cabíveis no tocante ao primeiro, para não nos afastarmos muito do campo jurídico propriamente dito.
Gostei da sua resposta. Vamos continuar discutindo. Vou visitar o site.
O texto “Um rodapé...” foi publicado na Revista Consulex, ano XVI, n. 380, de 15 de novembro de 2012.
Um abraço
Ronaldo Poletti


Caro Poletti,
 Li o texto e vejo que nas objeções continuamos a manter um antagonismo saudável sempre que temos oportunidade. No texto vi que reage à crítica que fiz a sua crítica, nessa continuidade de críticas críticas (para lembrar Marx e sua metáfora da sagrada família constituída no idealismo alemão, à direita e à esquerda de Hegel). Aludi a metáfora para lembrar que a rua no sentido apropriado pelo humanismo dialético de Roberto Lyra Filho é também uma metáfora da esfera pública, requerendo a boa-fé de não assumi-la, nem teórica, nem epistemologicamente, em sua literalidade. Por isso que, na perspectiva de O Direito Achado na Rua, em qualquer dessas dimensões, o jurídico emergente requer necessariamente, o reconhecimento de sua legitimidade organizada (“o direito é a enunciação dos princípios de legítima organização social da liberdade”), em qualquer dialética aliás, que não se infra-esgote numa polaridade que promova, subentendidamente e de modo fundamentalista, uma rendição à normatividade que desconheça as potencialidades jurídicas de fatos e de valores.
Peço licença para reproduzir o texto no blog diálogos lyrianos www.odireitoachadonarua.blogspot.com.br citando, naturalmente, a publicação original se me indicar a fonte completa.
Um abraço,
José Geraldo

Prezado José Geraldo,
Publiquei na Consulex de 15 de novembro de 2012 o artigo em anexo, onde faço algumas referências críticas e até elogios a sua teoria. Há convergências e divergências. Continuamos o diálogo. É possível que na publicação tenha havido algumas correções do copydesk, mas aí vai.
Um abraço
Ronaldo Poletti

Um comentário:

  1. Memorável diálogo, de inspiração verdadeiramente acadêmica e universitária, como raramente se vê entre nós. Meus cumprimentos ao Prof. Poletti e ao Prof. José Geraldo, de ambos os quais guardo as melhores recordações de minha passagem pela UnB.

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