sábado, 4 de maio de 2013

Discurso de elogio proferido pelo Professor José Geraldo de Sousa Junior, na cerimônia de concessão do título de cidadã honorária de Brasília à juíza Gláucia Falsarella Pereira Foley na Câmara Legislativa do Distrito Federal - CLDF, em 3/5/2013



Discurso de elogio proferido pelo Professor José Geraldo de Sousa Junior, na cerimônia de concessão do título de cidadã honorária de Brasília à juíza Gláucia Falsarella Pereira Foley na Câmara Legislativa do Distrito Federal - CLDF, em 3/5/2013


Senhor Presidente da Câmara Legislativa do Distrito Federal - CLDF, deputado Wasny de Roure,
Senhora Deputada Federal Érika Kokay, proponente da homenagem que aqui e agora nos reúne em celebração,
Senhoras e Senhores magistradas e magistrados presentes,
Senhor Juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA, Advogado Roberto Caldas,
Senhor Ouvidor-Geral da União José Eduardo Elias Romão
Senhoras e Senhores convidadas e convidados,
Senoras e Senhores familiares, muito especialmente Conor e Daniel Foley,
Senhora Juíza Gláucia Falsarella Pereira Foley, cidadã honorária de Brasília, querida amiga,


         Há alguns anos, vivenciei a forte experiência de participar, como painelista, de um encontro de juízes no Rio Grande do Sul, convocados por suas entidades associativas para discutir a crise da conjuntura: da ordem econômica internacional, do sistema judiciário, da lei e da subjetividade dos magistrados. Neste painel, chamava a atenção, a presença majoritária de palestrantes psicanalistas.
         Lembro desse encontro pela afirmação forte do mais reconhecido expoente entre os seus pares, incumbido da fala de clausura, de que “os juízes se encontravam no fundo da lata de lixo da história”. A afirmação feita na confiança de que ali se encontravam alguns poucos convidados não pertencentes à categoria de juízes, mas suficientemente solidários para entenderem que o desabafo não traduzia uma rendição, ou o desalento angustiado mas, ao contrário, um chamado à mobilização por quem dispunha de força e protagonismo bastantes para exercitar a insegurança própria a tempos de crise, sem se deixar sucumbir às suas incertezas.
         Daquele encontro e das constatações que ele permitiu estabelecer, pude extrair referenciais paradigmáticos posteriormente apresentados em livro de cuja organização participei (padre José Ernnanne Pinheiro, José Geraldo de Sousa Junior, Melillo Dinis e Plínio de Arruda Sampaio (orgs). Ética, Justiça e Direito. Reflexões sobre a reforma do Judiciário, Rio de Janeiro, Editora Vozes, 1ª. edição, 1996) mostrando que as profundas alterações que se dão na sociedade e nos valores que estruturam as bases éticas das instituições, afetam igualmente o Judiciário e os Juízes, postos diante da necessidade de compreender essas mudanças. O claro esgotamento do modelo ideológico da cultura legalista da formação dos juristas e dos magistrados e o franco questionamento ao papel e à função social dos juízes, não poucas vezes tem empurrado seus principais órgãos e operadores à inusitada situação identificada pelo sociólogo Boaventura de Sousa Santos, segundo a qual, “faz-se da lei uma promessa vazia”.
         As alternativas abertas para lidar com as aporias derivadas dessas múltiplas crises tem apontado para a necessidade de reconhecer que, da contraposição entre o direito oficialmente instituído e formalmente vigentes e a normatividade emergente das relações sociais, de um lado; e da distinção entre a norma abstrata e fria das regras que regem os comportamentos e a normatividade concreta aplicada pelos juízes de outro; têm-se acentuado a pertinência de compreender novas condições sociais, como a emergência de movimentos sociais, de novos conflitos, de novos sujeitos de direitos, e do pluralismo jurídico que instauram e reclama reconhecimento.
         Um texto célebre de Anatole France, Prêmio Nobel de Literatura de 1921, um dos fundadores da Liga dos Direitos do Homem, notável escritor que tratou frequentemente o tema da justiça e da condição do jurista, traduz bem e com notável antecipação, esse problema. O texto se intitula Os Íntegros Juízes e nele o escritor procura transmitir a impressão retida da observação de um quadro de Mabuse (Jan Gossaert), talvez a mesma que se possa perceber na pintura de van Eyck (o Políptico de Gantes), em que são figurados também os juízes íntegros, tal como são conhecidos.
 De sua observação, diz Anatole, pode-se concluir ter o mestre dado aos dois juízes o mesmo ar grave de doçura e de serenidade. Mas, vistos os detalhes que caracterizam um e outro, pode-se ver que eles, no entanto, são diferentes, na índole e na doutrina. Um traz na mão um papel e aponta o texto com o dedo; o outro ergue a mão com mais benevolência do que autoridade, como que a liberar um pensamento prudente e sutil. São íntegros os dois, conclui o escritor, mas é visível que o primeiro se apega à letra, o segundo ao espírito.
Esta tensão, entre a letra e o espírito, já havia aparecido em outro texto de Anatole France (Crainquebille), buscando encontrar um equilíbrio possível entre a ordem e a regularidade e uma expectativa humana e sensível para representar uma justiça justa.
Em outro texto sobre este tema (A Lei é Morta o Juiz é Vivo), alinha parêmias do célebre magistrado Magnaud erigido, na doutrina e na literatura (Victor Hugo, em Os Miseráveis), em expressão de aplicação equitativa do Direito, com a fórmula, ensina Carlos Maximiliano, “decidir como o bom juiz Magnaud”.
Seu ponto de partida é trazer a Justiça para o social, de modo a permitir um processo de aplicação que leve a ultrapassar as condições limitadoras de seu momento de produção: “Enquanto a sociedade for fundada na injustiça, as leis terão por função defender e sustentar a injustiça”.
No texto mencionado, o sentido de sua crítica é, pois, convocar a integridade do juiz para a necessidade de vencer e de ultrapassar pelo inconformismo transformador, a reprodução, nas leis, da iniquidade social, hierarquizante e excludente. Do contrário, nestas condições, diz ele num texto que depois seria recuperado por João Mangabeira (A oração do paraninfo) em mensagem a estudantes de Direito, só restará ao magistrado “a missão augusta de assegurar a cada um o que lhe toca: ao rico a sua riqueza e ao pobre a sua pobreza”.
Por isso o chamamento que faz Anatole France ao juiz vivo para se posicionar ativamente em face da lei morta: “A bem dizer, eu não teria muito receio das más leis, se elas fossem aplicadas por bons juízes. Dizem que a lei é inflexível. Não creio. Não há texto que não se deixe solicitar. A lei é morta. O magistrado é vivo; é uma grande vantagem que leva sobre ela. Infelizmente não faz uso disso com freqüência. Via de regra, faz-se mais morto, mais frio, mais insensível do que o próprio texto que aplica. Não é humano: é implacável. O espírito de casta sufoca nele toda simpatia humana. E vejam que só estou falando dos magistrados honestos”.
Para este chamamento, no entanto, adverte Jean Cruet no livrinho paradigmático publicado em 1908 (A Vida do Direito e a Inutilidade da Lei), é preciso que os magistrados ousem “sair fora dos textos, para compreender o mundo social em toda a sua extensão, em toda a sua complexidade e em todo o seu movimento”. Não se trata de desconsiderar os textos legislativos, mas de compreender que a rigidez das fórmulas em que se expressam, não dispensa uma mediação que recupere “o aspecto verdadeiro das coisas” de modo a desvendar o direito que se revela “na sociedade organizando-se por si própria”.
Daí a necessidade de os juízes se darem conta, como mostra Bistra Apostolova (Perfil e habilidades do jurista: razão e sensibilidade, Notícia do Direito Brasileiro, nº 5, Faculdade de Direito da UnB, Brasília), de que prefigurar o sentido dos conflitos é a tarefa que lhes cabe e que mediá-los requer compreender o significado que eles alcançam em seu próprio tempo. Como disposição e como atitude, sem o desespero aniquilador que Tolstoi impõe ao juiz de sua narrativa (A morte de Ivan Ilich), para abrir-lhe a consciência que desnuda a sua trajetória profissional, social e familiar como “monstruosa mentira camuflando vida e morte”.
No plano das habilidades, que é o que remete mais imediatamente à constituição de perfis profissionais, a alusão a uma justiça poética quer mais designar a categoria subjetividade, como própria ao afazer do jurista para interpretar criativamente e com imaginação as relações do homem com o mundo e com o outro. É com este sentido que Martha Nussbaun fala em poesia e imaginação (Justicia Poética. La Imaginación Literaria y La Vida Publica, Editorial Andrés Bello, Barcelona/Buenos Aires/México D.F./Santiago do Chile), ou seja, para caracterizá-las como “ingrediente indispensável ao pensamento público, com condição de criar hábitos mentais que contribuam para a efetivação da igualdade social”.
Não se trata, nessa referência a uma justiça poética, o que poderia parecer à primeira vista, a uma busca de relação entre a justiça e a literatura, para por em relevo a inclinação de magistrados para o uso da linguagem artística. Não que isso deixe de ocorrer ou que se rejeite o pendor estético quando se trata de desenvolver o discurso jurídico. E, em se tratando da homenageada desta sessão, plenamente realizável, sendo ela, como sabemos e já tivemos ensejo de testemunhar, uma festejada artista, compositora e cantora, com performances aplaudidas pela crítica e pelo público.
Aplicadas aos juízes e à juíza Gláucia Foley, essas categorias traduzem as expectativas de mediação humanística entre visão de mundo e consciência social, de modo a traduzir aquela exigência funcional já destacada por Bistra Apostolova (Perfil e Habilidades do Jurista: razão e sensibilidade): como “a habilidade de ver o outro como diferente e saber colocar-se no lugar dele, e desse modo, desenvolver a capacidade de imaginar e de compreender, essencial na formação do bacharel”.
Ela vem se juntar àquela estirpe de juízes que, no Supremo Tribunal Federal - Victor Nunes Leal e Evandro Lins e Silva - souberam exercitar a compreensão plena do ato de julgar, rejeitando a falsa oposição entre o político e o jurídico, ao entendimento de que, para se realizar, “a justiça não deve encontrar o empecilho da lei”. Provedores de uma justiça poética é esta estirpe de juízes que, lembra Josaphat Marinho em discurso de homenagem a Víctor Nunes Leal na UnB, citando Aliomar Baleeiro, leva a jurisprudência do Supremo a andar pelas ruas porque, “quando anda pelas ruas, colhe melhor a vida nos seus contrastes e se prolonga pela clarividência da observação reduzida a aresto”.
         Há algumas semanas Senhor Presidente, Senhora Deputada, assistimos aqui neste Plenário cerimônia igual, com a concessão ao Professor José Carlos Córdova Coutinho da mesma honraria honorária. Na apresentação de seu perfil, deu-se ênfase a uma disposição própria de contribuir para acrescentar à representação simbólica de Brasília, a partir dos fundamentos de seu projeto original, a dimensão de polis que completaria a sua vocação planejada para ser uma civitas e uma urbs, simultaneamente, bela e funcional. A polis, lembrou Coutinho, não se realiza como autoria do projetista, só pode ser concretizada pelo povo, em seu protagonismo de sujeito de direitos, capaz de os inscrever na História, para lembrar a definição de cidadania ativa formulada por Marilena Chauí.
         Essa a razão principal, certamente, que terá levado a Deputada Érika Kokay, de firme trajetória na defesa dos direitos humanos e cidadania, a identificar na Juíza Gláucia Falsarella Pereira Foley, a intérprete sensível capaz de reconhecer e assegurar as condições de mediação institucional para o acolhimento do protagonismo social coletivo que se move para realizar direitos.
         Por meio do Projeto Justiça Comunitária, inicialmente Justiça Itinerante, ela desencadeou os procedimentos institucionais para instalar, na organicidade do Tribunal de Justiça do DF, uma proposta, diz ela, em livro no qual relata a experiência, de uma justiça emancipatória. Prática reconhecida e premiada (Prêmio Innovare de 2005 (Escola de Direito da FGV-Rio, Associação dos Magistrados Brasileiros, Secretaria de Redorma do Judiciário, do MJ e Associação do Ministério Público), o modelo traduz, nas suas próprias palavras em artigo elaborado em co-autoria com o Secretário de Reforma do Judiciário Flávio Crocce Caetano (http://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/artigos/2013/justica-para-todos-2013-juiza-glaucia-falsarella-foley, acesso em 02/05/2013), a proposta de “democratizar radicalmente o acesso à Justiça, mitigando a sua clássica associação com acesso ao Judiciário. Afinal, se os conflitos emergem onde a vida acontece, as possibilidades de sua resolução não podem se limitar aos rígidos pilares da liturgia forense. E é somente por meio das múltiplas vozes que ecoam nos diálogos plurais e, sobretudo acessíveis, que a justiça e a paz estarão ao alcance de todos”.
         Com força para se internacionalizar, dado o apoio das Nações Unidas (PNUD) e da Agência Brasileira de Cooperação, o trabalho da Juíza Gláucia Foley ganhou nota de referência assinada por Boaventura de Sousa Santos em seu livro Para uma Revolução Democrática da Justiça (São Paulo: Cortez Editora, 3ª. edição, 2010), que o qualificou de “extraordinário”. Dedicando-lhe toda uma seção, este excerto dá a medida da importância que lhe confere: “A experiência de justiça comunitária no Brasil está relacionada com o impulso dos tribunais de justiça estaduais em capacitar os membros das localidades mais pobres a prestar orientação jurídica e dar solução a problemas que não poderiam ser solucionados devidamente no judiciário por não se adequarem às exigências formais/probatórias do juízo ou porque não obteriam uma pronta resposta na justiça oficial. A mediação é o meio de solução de conflitos do qual o projeto lança mão. A formação do agente comunitário é contínua, conjugando um período de formação teórica inicial com a prática nos casos que aparecem no quotidiano”.
         Inscrito na institucionalidade, como programa organizado pelo Tribunal de Justiça, a Justiça Comunitária, tão bem fundamentada na prática do acesso democrático e na teoria, basta ver a dissertação brilhantemente apresentada e defendida pela Juíza em seu Mestrado na Faculdade de Direito da UnB, carrega a marca que tive o cuidado de assinalar em texto que publiquei (Mediação Popular de Conflitos, in José Geraldo de Sousa Junior, Idéias para a Cidadania e Para a Justiça, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008), escolhendo uma afirmação da Juíza Gláucia que a meu ver, é a sua melhor síntese: ”A Justiça Comunitária representa um conjunto de movimentos necessários para impulsionar a universalização do acesso à Justiça, por meio de um modelo sem jurisdição, efetivamente operada na comunidade, para a comunidade e, sobretudo, pela comunidade”.
         Em tempos de difícil legitimação de investiduras, podemos dizer, serenamente, com a distinção que lhe é aqui e agora conferida, Senhora Juíza Gláucia Pereira Foley, que a senhora nos representa!

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