Discurso
de elogio proferido pelo Professor José Geraldo de Sousa Junior, na cerimônia
de concessão do título de cidadã honorária de Brasília à juíza Gláucia
Falsarella Pereira Foley na Câmara Legislativa do Distrito Federal - CLDF, em
3/5/2013
Senhor
Presidente da Câmara Legislativa do Distrito Federal - CLDF, deputado Wasny de
Roure,
Senhora
Deputada Federal Érika Kokay, proponente da homenagem que aqui e agora nos
reúne em celebração,
Senhoras
e Senhores magistradas e magistrados presentes,
Senhor
Juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA, Advogado Roberto
Caldas,
Senhor
Ouvidor-Geral da União José Eduardo Elias Romão
Senhoras
e Senhores convidadas e convidados,
Senoras
e Senhores familiares, muito especialmente Conor e Daniel Foley,
Senhora
Juíza Gláucia Falsarella Pereira Foley, cidadã honorária de Brasília, querida
amiga,
Há alguns anos, vivenciei a forte
experiência de participar, como painelista, de um encontro de juízes no Rio
Grande do Sul, convocados por suas entidades associativas para discutir a crise
da conjuntura: da ordem econômica internacional, do sistema judiciário, da lei
e da subjetividade dos magistrados. Neste painel, chamava a atenção, a presença
majoritária de palestrantes psicanalistas.
Lembro desse encontro pela afirmação
forte do mais reconhecido expoente entre os seus pares, incumbido da fala de
clausura, de que “os juízes se
encontravam no fundo da lata de lixo da história”. A afirmação feita na
confiança de que ali se encontravam alguns poucos convidados não pertencentes à
categoria de juízes, mas suficientemente solidários para entenderem que o
desabafo não traduzia uma rendição, ou o desalento angustiado mas, ao
contrário, um chamado à mobilização por quem dispunha de força e protagonismo
bastantes para exercitar a insegurança própria a tempos de crise, sem se deixar
sucumbir às suas incertezas.
Daquele encontro e das constatações que
ele permitiu estabelecer, pude extrair referenciais paradigmáticos
posteriormente apresentados em livro de cuja organização participei (padre José
Ernnanne Pinheiro, José Geraldo de Sousa Junior, Melillo Dinis e Plínio de
Arruda Sampaio (orgs). Ética, Justiça e
Direito. Reflexões sobre a reforma do Judiciário, Rio de Janeiro, Editora
Vozes, 1ª. edição, 1996) mostrando que as profundas alterações que se dão na
sociedade e nos valores que estruturam as bases éticas das instituições, afetam
igualmente o Judiciário e os Juízes, postos diante da necessidade de
compreender essas mudanças. O claro esgotamento do modelo ideológico da cultura
legalista da formação dos juristas e dos magistrados e o franco questionamento
ao papel e à função social dos juízes, não poucas vezes tem empurrado seus
principais órgãos e operadores à inusitada situação identificada pelo sociólogo
Boaventura de Sousa Santos, segundo a qual, “faz-se da lei uma promessa vazia”.
As alternativas abertas para lidar com
as aporias derivadas dessas múltiplas crises tem apontado para a necessidade de
reconhecer que, da contraposição entre o direito oficialmente instituído e
formalmente vigentes e a normatividade emergente das relações sociais, de um
lado; e da distinção entre a norma abstrata e fria das regras que regem os
comportamentos e a normatividade concreta aplicada pelos juízes de outro;
têm-se acentuado a pertinência de compreender novas condições sociais, como a
emergência de movimentos sociais, de novos conflitos, de novos sujeitos de
direitos, e do pluralismo jurídico que instauram e reclama reconhecimento.
Um texto célebre de Anatole France,
Prêmio Nobel de Literatura de 1921, um dos fundadores da Liga dos Direitos do
Homem, notável escritor que tratou frequentemente o tema da justiça e da
condição do jurista, traduz bem e com notável antecipação, esse problema. O
texto se intitula Os Íntegros Juízes e
nele o escritor procura transmitir a impressão retida da observação de um
quadro de Mabuse (Jan Gossaert), talvez a mesma que se possa perceber na
pintura de van Eyck (o Políptico de
Gantes), em que são figurados também os juízes íntegros, tal como são
conhecidos.
De sua
observação, diz Anatole, pode-se concluir ter o mestre dado aos dois juízes o
mesmo ar grave de doçura e de serenidade. Mas, vistos os detalhes que
caracterizam um e outro, pode-se ver que eles, no entanto, são diferentes, na
índole e na doutrina. Um traz na mão um papel e aponta o texto com o dedo; o
outro ergue a mão com mais benevolência do que autoridade, como que a liberar
um pensamento prudente e sutil. São íntegros os dois, conclui o escritor, mas é
visível que o primeiro se apega à letra, o segundo ao espírito.
Esta tensão, entre a letra e o espírito, já havia
aparecido em outro texto de Anatole France (Crainquebille),
buscando encontrar um equilíbrio possível entre a ordem e a regularidade e uma
expectativa humana e sensível para representar uma justiça justa.
Em outro texto sobre este tema (A Lei é Morta o Juiz é Vivo), alinha parêmias do célebre magistrado
Magnaud erigido, na doutrina e na literatura (Victor Hugo, em Os
Miseráveis), em expressão de aplicação equitativa do
Direito, com a fórmula, ensina Carlos Maximiliano, “decidir como o bom juiz Magnaud”.
Seu ponto de partida é trazer a Justiça para o social,
de modo a permitir um processo de aplicação que leve a ultrapassar as condições
limitadoras de seu momento de produção: “Enquanto
a sociedade for fundada na injustiça, as leis terão por função defender e
sustentar a injustiça”.
No texto mencionado, o sentido de sua crítica é, pois,
convocar a integridade do juiz para a necessidade de vencer e de ultrapassar
pelo inconformismo transformador, a reprodução, nas leis, da iniquidade social,
hierarquizante e excludente. Do contrário, nestas condições, diz ele num texto
que depois seria recuperado por João Mangabeira (A oração do paraninfo) em mensagem a estudantes de Direito, só
restará ao magistrado “a missão augusta
de assegurar a cada um o que lhe toca: ao rico a sua riqueza e ao pobre a sua
pobreza”.
Por isso o chamamento que faz Anatole France ao juiz
vivo para se posicionar ativamente em face da lei morta: “A bem dizer, eu não teria muito receio das más leis, se elas fossem
aplicadas por bons juízes. Dizem que a lei é inflexível. Não creio. Não há
texto que não se deixe solicitar. A lei é morta. O magistrado é vivo; é uma
grande vantagem que leva sobre ela. Infelizmente não faz uso disso com
freqüência. Via de regra, faz-se mais morto, mais frio, mais insensível do que
o próprio texto que aplica. Não é humano: é implacável. O espírito de casta
sufoca nele toda simpatia humana. E vejam que só estou falando dos magistrados
honestos”.
Para este chamamento, no entanto, adverte Jean Cruet
no livrinho paradigmático publicado em 1908 (A
Vida do Direito e a Inutilidade da Lei), é preciso que os magistrados ousem
“sair fora dos textos, para compreender o
mundo social em toda a sua extensão, em toda a sua complexidade e em todo o seu
movimento”. Não se trata de desconsiderar os textos legislativos, mas de
compreender que a rigidez das fórmulas em que se expressam, não dispensa uma
mediação que recupere “o aspecto
verdadeiro das coisas” de modo a desvendar o direito que se revela “na sociedade organizando-se por si própria”.
Daí a necessidade de os juízes se darem conta, como
mostra Bistra Apostolova (Perfil e
habilidades do jurista: razão e sensibilidade, Notícia do Direito
Brasileiro, nº 5, Faculdade de Direito da UnB, Brasília), de que prefigurar o
sentido dos conflitos é a tarefa que lhes cabe e que mediá-los requer
compreender o significado que eles alcançam em seu próprio tempo. Como
disposição e como atitude, sem o desespero aniquilador que Tolstoi impõe ao
juiz de sua narrativa (A morte de Ivan
Ilich), para abrir-lhe a consciência que desnuda a sua trajetória
profissional, social e familiar como “monstruosa
mentira camuflando vida e morte”.
No plano das habilidades, que é o que remete mais
imediatamente à constituição de perfis profissionais, a alusão a uma justiça
poética quer mais designar a categoria subjetividade, como própria ao afazer do
jurista para interpretar criativamente e com imaginação as relações do homem
com o mundo e com o outro. É com este sentido que Martha Nussbaun fala em
poesia e imaginação (Justicia Poética. La Imaginación Literaria
y La Vida Publica,
Editorial Andrés Bello, Barcelona/Buenos Aires/México D.F./Santiago do Chile),
ou seja, para caracterizá-las como “ingrediente indispensável ao pensamento
público, com condição de criar hábitos mentais que contribuam para a efetivação
da igualdade social”.
Não se trata, nessa referência a uma justiça poética,
o que poderia parecer à primeira vista, a uma busca de relação entre a justiça
e a literatura, para por em relevo a inclinação de magistrados para o uso da
linguagem artística. Não que isso deixe de ocorrer ou que se rejeite o pendor
estético quando se trata de desenvolver o discurso jurídico. E, em se tratando
da homenageada desta sessão, plenamente realizável, sendo ela, como sabemos e
já tivemos ensejo de testemunhar, uma festejada artista, compositora e cantora,
com performances aplaudidas pela crítica e pelo público.
Aplicadas aos juízes e à juíza Gláucia Foley, essas
categorias traduzem as expectativas de mediação humanística entre visão de
mundo e consciência social, de modo a traduzir aquela exigência funcional já
destacada por Bistra Apostolova (Perfil e
Habilidades do Jurista: razão e sensibilidade): como “a habilidade de ver o outro como diferente e saber colocar-se no lugar
dele, e desse modo, desenvolver a capacidade de imaginar e de compreender,
essencial na formação do bacharel”.
Ela vem se juntar àquela estirpe de juízes que, no
Supremo Tribunal Federal - Victor Nunes Leal e Evandro Lins e Silva - souberam
exercitar a compreensão plena do ato de julgar, rejeitando a falsa oposição
entre o político e o jurídico, ao entendimento de que, para se realizar, “a justiça não deve encontrar o empecilho da
lei”. Provedores de uma justiça poética é esta estirpe de juízes que,
lembra Josaphat Marinho em discurso de homenagem a Víctor Nunes Leal na UnB,
citando Aliomar Baleeiro, leva a jurisprudência do Supremo a andar pelas ruas
porque, “quando anda pelas ruas, colhe
melhor a vida nos seus contrastes e se prolonga pela clarividência da
observação reduzida a aresto”.
Há algumas semanas Senhor Presidente, Senhora
Deputada, assistimos aqui neste Plenário cerimônia igual, com a concessão ao
Professor José Carlos Córdova Coutinho da mesma honraria honorária. Na
apresentação de seu perfil, deu-se ênfase a uma disposição própria de
contribuir para acrescentar à representação simbólica de Brasília, a partir dos
fundamentos de seu projeto original, a dimensão de polis que completaria a sua vocação planejada para ser uma civitas e uma urbs, simultaneamente, bela e funcional. A polis, lembrou Coutinho, não se realiza como autoria do projetista,
só pode ser concretizada pelo povo, em seu protagonismo de sujeito de direitos,
capaz de os inscrever na História, para lembrar a definição de cidadania ativa
formulada por Marilena Chauí.
Essa a razão principal, certamente, que
terá levado a Deputada Érika Kokay, de firme trajetória na defesa dos direitos
humanos e cidadania, a identificar na Juíza Gláucia Falsarella Pereira Foley, a
intérprete sensível capaz de reconhecer e assegurar as condições de mediação
institucional para o acolhimento do protagonismo social coletivo que se move para
realizar direitos.
Por meio do Projeto Justiça Comunitária,
inicialmente Justiça Itinerante, ela desencadeou os procedimentos
institucionais para instalar, na organicidade do Tribunal de Justiça do DF, uma
proposta, diz ela, em livro no qual relata a experiência, de uma justiça
emancipatória. Prática reconhecida e premiada (Prêmio Innovare de 2005 (Escola
de Direito da FGV-Rio, Associação dos Magistrados Brasileiros, Secretaria de
Redorma do Judiciário, do MJ e Associação do Ministério Público), o modelo
traduz, nas suas próprias palavras em artigo elaborado em co-autoria com o
Secretário de Reforma do Judiciário Flávio Crocce Caetano (http://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/artigos/2013/justica-para-todos-2013-juiza-glaucia-falsarella-foley,
acesso em 02/05/2013), a proposta de “democratizar
radicalmente o acesso à Justiça, mitigando a sua clássica associação com acesso
ao Judiciário. Afinal, se os conflitos emergem onde a vida acontece, as
possibilidades de sua resolução não podem se limitar aos rígidos pilares da
liturgia forense. E é somente por meio das múltiplas vozes que ecoam nos
diálogos plurais e, sobretudo acessíveis, que a justiça e a paz estarão ao
alcance de todos”.
Com força para se internacionalizar,
dado o apoio das Nações Unidas (PNUD) e da Agência Brasileira de Cooperação, o
trabalho da Juíza Gláucia Foley ganhou nota de referência assinada por
Boaventura de Sousa Santos em seu livro Para
uma Revolução Democrática da Justiça (São Paulo: Cortez Editora, 3ª. edição,
2010), que o qualificou de “extraordinário”.
Dedicando-lhe toda uma seção, este excerto dá a medida da importância que
lhe confere: “A experiência de justiça
comunitária no Brasil está relacionada com o impulso dos tribunais de justiça
estaduais em capacitar os membros das localidades mais pobres a prestar
orientação jurídica e dar solução a problemas que não poderiam ser solucionados
devidamente no judiciário por não se adequarem às exigências formais/probatórias
do juízo ou porque não obteriam uma pronta resposta na justiça oficial. A
mediação é o meio de solução de conflitos do qual o projeto lança mão. A
formação do agente comunitário é contínua, conjugando um período de formação
teórica inicial com a prática nos casos que aparecem no quotidiano”.
Inscrito na institucionalidade, como
programa organizado pelo Tribunal de Justiça, a Justiça Comunitária, tão bem
fundamentada na prática do acesso democrático e na teoria, basta ver a
dissertação brilhantemente apresentada e defendida pela Juíza em seu Mestrado na
Faculdade de Direito da UnB, carrega a marca que tive o cuidado de assinalar em
texto que publiquei (Mediação Popular de
Conflitos, in José Geraldo de Sousa Junior, Idéias para a Cidadania e Para a Justiça, Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris Editor, 2008), escolhendo uma afirmação da Juíza Gláucia que a
meu ver, é a sua melhor síntese: ”A Justiça
Comunitária representa um conjunto de movimentos necessários para impulsionar a
universalização do acesso à Justiça, por meio de um modelo sem jurisdição,
efetivamente operada na comunidade, para a comunidade e, sobretudo, pela
comunidade”.
Em tempos de difícil legitimação de investiduras,
podemos dizer, serenamente, com a distinção que lhe é aqui e agora conferida,
Senhora Juíza Gláucia Pereira Foley, que a senhora nos representa!
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