sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

 

Violação da Autonomia Universitária: Punição ao Abuso de Poder

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(https://www.brasilpopular.com/violacao-da-autonomia-universitaria-punicao-ao-abuso-de-poder/)



Em decisão proferida em Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental, em pedido de tutela provisória de urgência formulado pelo Partido Socialista Brasileiro – PSB, o Ministro Ricardo Lewandowski, no Supremo Tribunal Federal, determinou a imediata suspensão de “medida inconstitucional adotada pelo Ministério da Educação, que, por meio do Despacho de 29 de dezembro de 2021, aprovou o Parecer 01169/2021/CONJURMEC/CGU/AGU e proibiu a exigência de comprovante de vacinação contra a Covid-19 como condicionante ao retorno das atividades presenciais no âmbito das Instituições Federais de Ensino.”

 

 

Salientou o Ministro ser o incidente “a Décima Segunda Tutela Provisória Incidental – TPI apresentada nesta ADPF 756/DF. Observo que o presente pedido incidental, assim como os demais que o antecederam, diz respeito a atos e omissões do Poder Executivo Federal relacionados à preservação do direito à saúde e à vida no contexto do período excepcional da emergência de saúde pública, de importância internacional, decorrente da Covid-19”.

 

 

Polícia reprime estudantes em greve durante a invasão da Universidade de Brasília em junho de 1977
PM reprime estudantes em greve durante invasão da UnB em junho de 1977

 

Ele esclarece que “tanto na inicial deste pleito, quanto nos pedidos incidentais antecedentes, o cerne da questão trazida a juízo sempre foi a necessidade de explicitação e de planejamento das ações estatais no enfrentamento do novo coronavírus, responsável pelo surto iniciado no ano de 2019”.

 

Em 1968, forças policiais e militares cercaram a universidade com viaturas e caminhões de choque. Arquivo Cedoc UnB/Divulgação
Em 1968, forças policiais e militares cercaram a universidade com viaturas e caminhões de choque. Arquivo Cedoc UnB/Divulgação

 

 

Na decisão o Ministro, entre constatar que “o STF evidenciou, dentre outras indicações, que a política pública relativa à vacinação deve tomar por base evidências científicas e análises estratégicas pertinentes”, atualiza o âmbito de atuação protetiva que a Corte vem configurando para inibir o que já se pode configurar um estado de coisas inconstitucional, situação já formulada nesses termos, em pauta de julgamento no tribunal constitucional. A esse respeito, aliás, confira-se meu artigo no Jornal Brasil Popular:

Saúde e vida: descaso que gera um estado de coisas inconstitucional 

 

O relevo que quero dar à decisão, para além desse aspecto vital que envolve a saúde coletiva, a ponto de que também com colegas juristas, tenhamos investido contra a incúria da governança, no próprio Supremo, arguindo a incapacidade e o afastamento do Presidente da República – Juristas pedem ao STF afastamento de Bolsonaro: “incapacidade civil” – é um ponto que se destaca fortemente da decisão: o continuado e deliberado exercício ilegal e abusivo do Poder Público contra a autonomia da Universidade, um desvio que deve ser punido.

 

Invasão Policial - 1977. Fonte: Arquivo Central / UnB Brasília, DF, Brasil 28/04/2017. ICC é palco de exposição fotográfica em homenagem ao aniversário da UnB. Mostra composta por 92 fotos conta a história da Universidade e pode ser conferida na ala central do Minhocão. Confira a matéria completa no portal da Universidade de Brasília: noticias.unb.br/publicacoes/124-esporte-e-cultura/1452-ic...
Invasão Policial – 1977. Fonte: Arquivo Central / Universidade de Brasília (UnB-Brasília, DF)

 

Passo ao largo da extensa e ao mesmo tempo profunda fundamentação que a decisão traz, para justificar a suspensão do despacho, sobre a natureza cogente e fundamental da autonomia universitária. Analiticamente, o ministro coleciona uma série de manifestações da Corte que culminam, segundo o lastro da decisão, no entendimento assentado, segundo o qual “a previsão da autonomia universitária vem consagrada no art. 207 da Carta Política […] revela a impossibilidade de exercício de tutela ou indevida ingerência no âmago próprio das suas funções, assegurando à universidade a discricionariedade de dispor ou propor (legislativamente) sobre sua estrutura e funcionamento administrativo, bem como sobre suas atividades pedagógicas […],  para, no caso, estabelecer que “as instituições de ensino têm, portanto, autoridade para exercer sua autonomia universitária e podem legitimamente exigir a comprovação de vacinação, com fulcro no art. 3º, III, d, da Lei 13.979/2020”.

 

 

Mas o que quero acentuar, notadamente no que diz respeito a autoridades do Ministério da Educação e do Ministério, da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e também de algumas procuradorias, é essa contínua, concertada, deliberada  atividade governamental e de agentes públicos, delirante aos preceitos legais, doutrinários e éticos, contra a autonomia universitária e a liberdade de ensino, com caracterizado desvio dos objetivos constitucionais da administração pública e das normas cogentes do direito internacional, incluindo a violação dos princípios interamericanos de salvaguarda da liberdade de ensinar (Adotados pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos durante o 182º Período Ordinário de Sessões, realizado entre 6 a 17 de dezembro de 2021). Tratei sobre isso, pondo em relevo as várias ações abusivas, aqui mesmo no Jornal Brasil Popular:

 

Uso do Direito Penal para Restringir a Liberdade de Ensinar

Ministério Público: Dois Pesos e Duas Medidas ou Criminalizando Interpretação

Princípios Interamericanos sobre a Liberdade Acadêmica

 

Ora, a atividade pública pressupõe a atribuição de poderes aos agentes administrativos para exercerem suas funções, nos limites constitucionais e legais. O desvio e o abuso de poder, em suas diversas formas, se caracterizam pela vontade, espontânea e deliberada dos agentes públicos, em deturpar as atividades de governo. Praticar atos públicos com objetivos obscuros, visar interesses próprios ou afrontar o sentido ético contido nas normas, é desvio de poder ou desvio de finalidade, e deve ser punido. Como diz o Ministro, só nessa ADPF é o 12º incidente e as contínuas incursões violadoras demonstram que não se trata de episódios canhestros de uma gestão incompetente, mas de um projeto contra as instituições republicanas, contra a democracia e contra a Constituição.

 

 

Bem agiu a Reitora Márcia Abrahão da Universidade de Brasília, logo da publicidade do despacho, em não reconhecer a sua autoridade institucional, prevenindo o abuso e o dano aos direitos fundamentais consequentes (Nota da Reitoria da UnB sobre a pandemia de covid-19 e comprovante de vacinação), com a recusa, em nome da autonomia universitária, a sua indevida intromissão na boa gestão de sua universidade: “a Universidade [UnB] entende que o despacho do Ministro da Educação, de 29 de dezembro, não altera a decisão já tomada pela nossa comunidade”.

 

 

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)

 


José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.

 

Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.

 

Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).

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