Violação da Autonomia Universitária: Punição ao Abuso de Poder
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Em decisão proferida em Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental, em pedido de tutela provisória de urgência formulado pelo Partido Socialista Brasileiro – PSB, o Ministro Ricardo Lewandowski, no Supremo Tribunal Federal, determinou a imediata suspensão de “medida inconstitucional adotada pelo Ministério da Educação, que, por meio do Despacho de 29 de dezembro de 2021, aprovou o Parecer 01169/2021/CONJURMEC/CGU/AGU e proibiu a exigência de comprovante de vacinação contra a Covid-19 como condicionante ao retorno das atividades presenciais no âmbito das Instituições Federais de Ensino.”
Salientou o Ministro ser o incidente “a Décima Segunda Tutela Provisória Incidental – TPI apresentada nesta ADPF 756/DF. Observo que o presente pedido incidental, assim como os demais que o antecederam, diz respeito a atos e omissões do Poder Executivo Federal relacionados à preservação do direito à saúde e à vida no contexto do período excepcional da emergência de saúde pública, de importância internacional, decorrente da Covid-19”.
Ele esclarece que “tanto na inicial deste pleito, quanto nos pedidos incidentais antecedentes, o cerne da questão trazida a juízo sempre foi a necessidade de explicitação e de planejamento das ações estatais no enfrentamento do novo coronavírus, responsável pelo surto iniciado no ano de 2019”.
Na decisão o Ministro, entre constatar que “o STF evidenciou, dentre outras indicações, que a política pública relativa à vacinação deve tomar por base evidências científicas e análises estratégicas pertinentes”, atualiza o âmbito de atuação protetiva que a Corte vem configurando para inibir o que já se pode configurar um estado de coisas inconstitucional, situação já formulada nesses termos, em pauta de julgamento no tribunal constitucional. A esse respeito, aliás, confira-se meu artigo no Jornal Brasil Popular:
Saúde e vida: descaso que gera um estado de coisas inconstitucional
O relevo que quero dar à decisão, para além desse aspecto vital que envolve a saúde coletiva, a ponto de que também com colegas juristas, tenhamos investido contra a incúria da governança, no próprio Supremo, arguindo a incapacidade e o afastamento do Presidente da República – Juristas pedem ao STF afastamento de Bolsonaro: “incapacidade civil” – é um ponto que se destaca fortemente da decisão: o continuado e deliberado exercício ilegal e abusivo do Poder Público contra a autonomia da Universidade, um desvio que deve ser punido.
Passo ao largo da extensa e ao mesmo tempo profunda fundamentação que a decisão traz, para justificar a suspensão do despacho, sobre a natureza cogente e fundamental da autonomia universitária. Analiticamente, o ministro coleciona uma série de manifestações da Corte que culminam, segundo o lastro da decisão, no entendimento assentado, segundo o qual “a previsão da autonomia universitária vem consagrada no art. 207 da Carta Política […] revela a impossibilidade de exercício de tutela ou indevida ingerência no âmago próprio das suas funções, assegurando à universidade a discricionariedade de dispor ou propor (legislativamente) sobre sua estrutura e funcionamento administrativo, bem como sobre suas atividades pedagógicas […], para, no caso, estabelecer que “as instituições de ensino têm, portanto, autoridade para exercer sua autonomia universitária e podem legitimamente exigir a comprovação de vacinação, com fulcro no art. 3º, III, d, da Lei 13.979/2020”.
Mas o que quero acentuar, notadamente no que diz respeito a autoridades do Ministério da Educação e do Ministério, da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e também de algumas procuradorias, é essa contínua, concertada, deliberada atividade governamental e de agentes públicos, delirante aos preceitos legais, doutrinários e éticos, contra a autonomia universitária e a liberdade de ensino, com caracterizado desvio dos objetivos constitucionais da administração pública e das normas cogentes do direito internacional, incluindo a violação dos princípios interamericanos de salvaguarda da liberdade de ensinar (Adotados pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos durante o 182º Período Ordinário de Sessões, realizado entre 6 a 17 de dezembro de 2021). Tratei sobre isso, pondo em relevo as várias ações abusivas, aqui mesmo no Jornal Brasil Popular:
Uso do Direito Penal para Restringir a Liberdade de Ensinar
Ministério Público: Dois Pesos e Duas Medidas ou Criminalizando Interpretação
Princípios Interamericanos sobre a Liberdade Acadêmica
Ora, a atividade pública pressupõe a atribuição de poderes aos agentes administrativos para exercerem suas funções, nos limites constitucionais e legais. O desvio e o abuso de poder, em suas diversas formas, se caracterizam pela vontade, espontânea e deliberada dos agentes públicos, em deturpar as atividades de governo. Praticar atos públicos com objetivos obscuros, visar interesses próprios ou afrontar o sentido ético contido nas normas, é desvio de poder ou desvio de finalidade, e deve ser punido. Como diz o Ministro, só nessa ADPF é o 12º incidente e as contínuas incursões violadoras demonstram que não se trata de episódios canhestros de uma gestão incompetente, mas de um projeto contra as instituições republicanas, contra a democracia e contra a Constituição.
Bem agiu a Reitora Márcia Abrahão da Universidade de Brasília, logo da publicidade do despacho, em não reconhecer a sua autoridade institucional, prevenindo o abuso e o dano aos direitos fundamentais consequentes (Nota da Reitoria da UnB sobre a pandemia de covid-19 e comprovante de vacinação), com a recusa, em nome da autonomia universitária, a sua indevida intromissão na boa gestão de sua universidade: “a Universidade [UnB] entende que o despacho do Ministro da Educação, de 29 de dezembro, não altera a decisão já tomada pela nossa comunidade”.
(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)
José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.
Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.
Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).
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