Sujeitos de Direito. Ensaios Críticos de Introdução ao Direito.
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
NOLETO, Mauro. Sujeitos de Direito. Ensaios Críticos de Introdução ao Direito. São Paulo: Editora Dialética, 2021, 176 p.
Tomando a descrição do próprio Autor na página da Editora, temos que o livro objeto deste Lido para Você, cuida de estudo que examina a categoria teórica fundante que perpassa de forma contraditória e reveladora o movimento de construção da ciência jurídica: o sujeito de direito. Conforme o próprio Autor:
“a pretensão foi de oxigenação crítica do conceito, indevidamente apropriado pela dogmática, que, de maneira nada sutil, vem lhe cobrindo com véus deformantes. Minha hipótese é a do esgotamento da visão moderna de subjetividade jurídica, evidenciada pela crise maior do próprio Direito e de sua ciência dogmática. Parto do humanismo dialético, proposto por Lyra Filho como filosofia da Nova Escola Jurídica Brasileira, mostrando mais de perto o progressivo esvaziamento ético da noção de sujeito de direito, aprisionado pelo falso dilema das ideologias jusnaturalista e positivista: entre ser sujeito de sua própria emancipação ou apenas um objeto opaco da normatividade. Um dilema construído sob o pano de fundo do humanismo idealista inviabilizado pelas contradições da modernidade capitalista. Analiso a temática dos direitos (subjetivos) humanos enquanto bases para uma práxis jurídica emancipatória, na qual a hermenêutica pode assumir um papel de destaque no reenquadramento dos significados jurídicos das práticas sociais, conforme as pautas éticas de realização de uma ordem democrática. Os direitos humanos são encarados aqui sob a luz de sua historicidade e complexidade, afastando-se as interpretações idealistas e naturalizadas”.
Ao me debruçar sobre o livro de Mauro Noleto, para escrever um prefácio a seu convite, não pude deixar de estabelecer uma ligação, quase de continuidade, e um trabalho anterior de Mauro: Subjetividade Jurídica. A Titularidade de Direitos em Perspectiva Emancipatória. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, que também prefaciei. Nesse texto, de 1998, Mauro já sustentava não ser mais possível aceitar que a questão da titularidade de direitos seja respondida abstrata e formalmente. Em outras palavras, dizer que todos são titulares de direitos fundamentais, como declara a letra da Constituição, não quer dizer que todos exercemos efetivamente os mesmos direitos em igualdade de condições, com a mesma intensidade e simultaneamente, ou seja, nos espaços públicos – na “rua” – em que os direitos se originam, realizam ou são violados existe uma rede intrincada e assimétrica de relações; nessa rede há atritos entre valores e interesses, há conflito social, há projetos de vida diversos e às vezes antagônicos, há desigualdades econômicas, e há também identidades sociais em formação, que carregam sentidos jurídicos concretos para os direitos fundamentais.
Mais recentemente tive ensejo de participar, como examinador da banca de tese de Thiago Fernando Cardoso Nalesso. EDUCAÇÃO JURÍDICA BRASILEIRA: entre as Diretrizes Curriculares Nacionais e o Exame de Ordem. Doutorado em Direito. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2021.
A tese, defendida perante a Banca Examinadora formada pelos professores e professoras Dr. Márcio Pugliesi (Orientador) – PUC-SP, Dr.– PUC-SP, Dra. Maria Vital da Rocha – UFC, Dra. Regina Vera Villas Bôas – Álvaro Luiz Travassos de Azevedo Gonzaga PUC-SP, Dr. Caio Gracco Pinheiro Dias (Suplente) – FDRB-USP, Dr. Willis Santiago Guerra Filho (Suplente) – PUC-SP, afinal aprovada, além de seus méritos, serviu para designar a atualidade de um tema, inscrito na reflexão sobre o conhecimento e o ensino do direito, num acumulado problemático disperso, no atual, nas disputas pedagógicas de mais de 1700 cursos instalados no Brasil, hoje.
Tive a honra de integrar a Banca Examinadora, vivenciando o impacto de dupla sensibilização, de um lado como que ser transportado para um tempo de viva interpelação provocada pelo maior movimento de crítica ao jurídico no campo do conhecimento e do ensino do Direito; de outro, na condição de examinador, me surpreender na condição, de certo modo, de integrar o objeto de estudo, já que, em seu âmbito, direta ou indiretamente participei como protagonista de todos os processos, articulações e eventos ativados nessa conjuntura, no MEC (Comissão de Especialistas de Direito, Exame Nacional de Cursos, ENADE, Secretaria de Educação Superior/Diretoria de Educação do Ensino Superior, SINAES), no Conselho Federal da Ordem dos Advogados (Comissão de Ciência e Ensino do Direito, depois Comissão de Ensino Jurídico, logo Comissão de Educação Jurídica, Conferências Nacionais da OAB), no Conselho Nacional de Educação (Sistema de Avaliação de Cursos) e na Universidade, professor, Diretor da Faculdade de Direito, Reitor, da Universidade de Brasília.
O escopo do trabalho, apreendido do bom resumo preparado pelo Autor: “Neste trabalho avaliam-se os efeitos das Diretrizes Curriculares Nacionais do MEC e da atuação da OAB, por meio da Comissão Nacional de Educação Jurídica e do Exame de Ordem, em relação à qualidade da educação jurídica brasileira, com ênfase na questão curricular. Além disso, analisam-se o desenvolvimento histórico e a fundamentação político-ideológica e epistemológica dos cursos de Direito no Brasil, seguidos pela descrição e interpretação do direito regulatório educacional e o surgimento e desenvolvimento das Diretrizes Curriculares Nacionais. Verificou-se que o Exame de Ordem, criado para atestar a capacidade mínima para o exercício da advocacia, se converteu em instrumento de aferição de qualidade da educação jurídica ofertada por instituições de ensino superior no Brasil, além de ser utilizado como insumo principal para a concessão do “selo de qualidade OAB Recomenda”. A utilização do Exame de Ordem como parâmetro de qualidade de serviços educacionais, sem a devida adequação metodológica, influencia um processo de padronização curricular com resultados negativos na inovação, especialização, regionalização e flexibilização dos currículos jurídicos, e, em certa medida, contradiz esforços realizados pela Comissão Nacional de Educação Jurídica da OAB. Por outro lado, no processo de análise e avaliação, ficou evidenciada a importância e a necessidade social do exame, que cumpre função de proteger os direitos e liberdades dos cidadãos, o que levou à conclusão sobre a necessidade de ajustes na metodologia da avaliação do Exame de Ordem e do selo de qualidade da OAB para que se tenha maior eficácia na consecução de suas finalidades”.
Tomo essa referência, não apenas para designar a atualidade de um tema que a tese de Nalesso vem confirmar, mas para, a partir dela e da questão central que nela se desenvolve, se reivindique articular os temas operativos na dinâmica de validação para credenciamento e avaliação dos cursos jurídicos, mas porque nesse processo, com o aprimoramento de bons instrumentais, seja possível um duplo aprimoramento, da qualidade do ensino, mas também o poder construir um universo comum de significados, deduzidos não positivisticamente da diversidade de interpretações sobre categorias fundantes criticamente formuladas sobre o conhecimento do direito e suas formas de difusão.
Essa indicação está em texto de Mauro Noleto, antigo assessor da Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da OAB em texto que ofereceu – A Recomendação da OAB. Uma Nova Perspectiva para a Avaliação dos Cursos Jurídicos – ao livro OAB Recomenda. Um Retrato dos Cursos Jurídicos (Brasília, DF: OAB, Conselho Federal, 2001) – e a ele remeti, na minha arguição da Tese de Nalesso, exatamente para tomar como referência para a busca de construção de um universo comum de significados, a categoria sujeito de direito, tema do trabalho de Mauro, atualizado agora nessa edição da Editora Dialética, à luz das interpelações da conjuntura.
A sua reflexão, em primeira pessoa, expressa o que poderia chamar de pensamento inquieto. Um pensamento que não se subordina a conhecimentos ou categorias óbvias que possam ser considerados insubstituíveis e que procura se conduzir conscientemente em seu modo de conhecer.
Como reflexão sobre as condições de possibilidade da ação humana projetada no mundo, um pensamento inquieto sabe, como diz Boaventura de Sousa Santos, que nenhuma forma de conhecimento é, em si mesma racional; só a configuração de todas elas é racional e é, pois, necessário dialogar com outras formas de conhecimento, deixando-se penetrar por elas.
Mauro desenvolve o seu trabalho tendo muito presentes estas condições, que se traduzem em seu processo de reflexão e em seu estilo. Nem poderia deixar de ser diferente. Pensamentos inquietos são, essencialmente, existenciais. Esta é a base de uma cultura, ela também inquieta, apta, assim, a transformar experiências e vivencias projetando-as em direção ao novo, porque em condições de discernir os sinais de futuro já inscritos nas práticas do próprio cotidiano.
Discernir o sentido e o significado destas experiências e vivências supõe um deslocamento constante do olhar – visão de mundo – cognoscente acerca das imagens de síntese que buscam compreender o mundo ao invés de manipulá-lo.
Enquanto participações que ensejam o conhecimento acerca de elementos da realidade, estas sínteses constituem o imaginário que organiza as várias expressões das atitudes humanas e que determinam modos de conhecer: o modo filosófico, o modo científico, a experiência mística, a intuição artística.
O trabalho de Mauro Noleto é pródigo no enlace dessas participações, num esforço de esclarecimento cujo impulso é a rejeição de qualquer forma de monólogo, inclusive o da razão, sobre as formas possíveis de conhecer o mundo.
Não por acaso, a epígrafe que abre o seu trabalho é poética, sendo ele próprio e geneticamente poeta e ensaísta (seu pai, o advogado Agostinho Noleto é autor da ficcão Guerrilheiro sem Rosto e de Antologia, Crônicas, Contos, Poesias). Com Uma Didática da Invenção, de Manoel de Barros (Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios), a sua mensagem é a de que assim como a poesia não é um delírio, mas uma apropriação do real por meio de outro discurso, é também próprio do pensamento científico e da reflexão filosófica, abrir-se à subjetividade em perspectiva emancipatória.
Mauro honra desta maneira, sem perder a altivez de um pensar autônomo, a influência clara e conscientemente assumida que pontuou a sua formação jurídica: Roberto Lyra Filho. Não se trata de uma adesão fascinada. Antes, de uma gemeidade de interesses, não fosse Lyra Filho também, filósofo e poeta.
Portanto, o pensamento de Roberto Lyra Filho não é a matriz da reflexão de Mauro Noleto. Mauro não retoma os temas deste notável pensador para desenvolvê-los até patamares ou para encontrar soluções que este, em seu tempo e em razão de suas circunstâncias, não pudera alcançar ou estabelecer. Ele encontra os seus próprios temas haurindo, aí sim, no diálogo entre o seu pensamento e o pensamento de Roberto Lyra Filho, a excelência de um filosofar sem precedentes na cultura brasileira, preciso, vigoroso, sutil, iconoclasta, fecundo em suas antecipações, receptivo em seu aconchego epistemológico, em que tantos nos abrigamos, como Mauro, como eu também, para novos pontos de partida.
Não era, assim, afinal, que o próprio Lyra Filho imaginava a partilha intelectual do trabalho associado? Ao lançar as bases do movimento que denominou Nova Escola Jurídica Brasileira – Nair (Direito e Avesso – Boletim da Nova Escola Jurídica Brasileira, n. 1, Editora Nair, Brasília, 1982, p. 13), ele indicou: Adotamos o rótulo de Escola, não por arrogância, mas por humildade. Não impomos lições: procuramos juntos a verdade; não somos mestres, mas eternos estudantes, que nunca deixarão de sê-lo, para evitar que as nossas cabeças se tornem museu de ideologias e pantanal de subserviência. Também não adotamos o rótulo de Escola por dogmatismo; as nossas conclusões não formam corpo de doutrina a ser engolida como um catecismo. Reconhecemos, tão-só, que, na pesquisa e reflexão, há menos probabilidade do erro, quando empreendidas em trabalho de companheiros associados, formando um vivo entreposto de trocas intelectuais. Escola, para nós, quer dizer fraternidade, entrosamento e comunhão de esforços, que se escoram reciprocamente e se reajustam à crítica dos consócios….
Em seu trabalho, portanto, Mauro Noleto parte da concepção crítica da Nova Escola Jurídica Brasileira, e dos paradigmas designados por Roberto Lyra Filho, mas procura indicar novas alternativas conceituais para pensar o tema a que se propôs: a subjetividade jurídica e, notadamente, a titularidade de direitos em perspectiva emancipatória. Aprofunda, desse modo, questões que identificara desde seus trabalhos de iniciação científica e de participação universitária no movimento estudantil que lhe valera à época, suas primeiras publicações (Sujeito Coletivo de Direito. Brasília: UnB. Você Pesquisa,,, Então Mostre!. Anais, 1991, prêmio de melhor trabalho, em co-autoria com Inês da Fonseca Porto e Bistra Stefanova Apostolova, trabalho completo p. 145-160); e a assunção à responsabilidade de direção na organização nacional de estudantes de direito, na executiva do ENAJUR (Encontro Nacional de Assessoria Jurídica).
Vem daí, por conseguinte, a percepção que cedo desenvolveu acerca da emergência de novos e plurais formas de identidade individual e coletiva, ou, como ele designa, de novos sujeitos, novos atores, (que) cada vez mais frequentemente, ganham visibilidade no cenário público instituído, demandando o reconhecimento de suas ações como legítimas no exercício da cidadania, bem como o reconhecimento das condições sociais de sua existência como circunstâncias injustas do cotidiano. Fruto da emergência desses novos sujeitos é o processo de instituição de novos direitos.
Localiza-se nessa concepção o horizonte do duplo engajamento – político, teórico e metodológico – que demarca o percurso de Mauro Noleto. O que ele indicava em seu texto de 1998 está inteiramente contido nos fundamentos de seu protocolo de pesquisa atual, como visto acima e nas diretrizes que imprime atualmente, na qualidade de Presidente da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Brasília, em sua assimilação genuína do magistério pontifício de Francisco, tanto na alegria de evangelização, quanto no diálogo com os Movimentos Sociais. Confiro, em Mauro o que ele revela nessa disposição, conforme http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/573734-arquidiocese-de-brasilia-abre-as-portas-para-os-movimentos-populares:
Engajados nas lutas por Terra, Teto e Trabalho – os três T’s a que se refere o Santo Padre -, as lideranças dos movimentos compareceram em peso à sede da Cúria Metropolitana para expressar seus “anseios e esperanças”, ao tempo em que sugeriram a D. Sergio e a toda a Igreja de Brasília suas “pistas e apoios para o enfrentamento das graves questões vividas pelas classes trabalhadoras do Distrito Federal”. Organizados em três grupos, de acordo com suas respectivas lutas por terra, trabalho e pelo direito à cidade e à moradia, as lideranças se revezaram na apresentação de suas identidades, conflitos, carências sociais e bandeiras de luta, em tom sempre respeitoso e esperançoso diante da oportunidade oferecida pela Igreja de Brasília ao abrir suas portas e seu coração para o clamor daqueles que mais sofrem e lutam por justiça em nossa sociedade (acesso em 06.01.2019).
É reconfortante constatar, no percurso de Mauro Noleto a fidelidade aos princípios que traçam o mapa desse percurso. Isso transparece dos fundamentos de seu projeto de pesquisa atual e também nas participações e intervenções funcionais ativadas nesse seu caminhar. Certo que seu mapa de navegação está tecnicamente aberto às inflexões operadas em razão das injunções que manifestam no seu trânsito, por isso que a sua salvaguarda de ancoragem é coerentemente fincada nos pressupostos de uma teoria crítica em seus fundamentos. Ainda quando o fluxo do seu agir se faça em terreno estritamente funcional, conforme, por exemplo, ao exercer assessoria junto à Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da OAB, a direção que imprime ao seu movimento reflexivo, segue aquele cânone indicado por Boaventura de Sousa Santos, expressamente, no sentido, diz Mauro, de que a teoria crítica deve partir de uma atitude insatisfeita, mas também autocrítica, pois, para Boaventura, a auto-reflexidade á a atitude de perceber criticamente o caminho da crítica. Mauro sustenta isso enquanto submete a juízo crítico o sistema de avaliação de cursos jurídicos desenvolvido pela OAB (NOLETO, Mauro Almeida. A Recomendação da OAB, Uma Nova Perspectiva para a Avaliação dos Cursos Jurídicos. In Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da OAB. OAB Recomenda. Um Retrato dos Cursos Jurídicos. Brasília: OAB Conselho Federal, 2001, p. 101-112).
Mauro aplica assim, concepção que aprofundou em seu trabalho acadêmico, combinando ensino, pesquisa e extensão universitária, quando em situação de responder a interpelações da realidade, no diálogo entre conhecimento e ação no mundo, quando o agir acadêmico é desafiado a abandonar a contemplação para atuar no sentido da transformação do mundo e a reconhecer a influência da teoria crítica, antes de tudo um filosofar na práxis.
É de Mauro Noleto, o excerto a seguir transcrito:
Por isso, a distinção mencionada acima entre formas de aprendizado prático nos cursos jurídicos (assistência e assessoria) não se limita à questão metodológica, pois tem como pano de fundo os conflitos epistemológicos travados no campo da teoria do direito, em busca de uma compreensão mais alargada desse objeto de estudo…
(…) é possível perceber os elementos inovadores e emancipatórios da teoria jurídica crítica, mais especificamente, os marcos teóricos da Nova Escola Jurídica Brasileira, presentes no curso O Direito Achado na Rua, organizado e coordenado pelo professor José Geraldo de Sousa Jr,, quais sejam: a apreensão dialética do fenômeno jurídico, como enunciação e positivação histórica das conquistas concretas humanas, a partir dos conflitos sociais, pela ampliação e constante reorganização dos espaços de liberdade em sociedade; a compreensão de que este fenômeno, o Direito, é plural, isto é, surge em diversos contextos de produção normativa e, portanto, não se restringe ao contexto jurídico-legal, embora reconheça seja este um espaço privilegiado de produção do Direito na sociedade moderna; a superação do modelo individualista de subjetividade jurídica, de titularidade de direitos, forjado pelo pensamento idealista dos séculos XVII e XVIII, por sua compreensão atualizada da sociedade e de seus conflitos em sua dimensão coletiva, que fazem emergir novas formas de subjetividade em cada contexto em que se apresentam lutas pela superação das condições de opressão e de injustiça social, cultural, étnica, religiosa, classista…(NOLETO, Mauro Almeida. Prática de Direitos. Uma Reflexão sobre Prática Jurídica e Extensão Universitária. In SOUSA Junior, José Geraldo de; COSTA, Alexandre Bernardino (Orgs.). Direito à Memória e à Moradia. Realização de Direitos Humanos pelo Protagonismo Social da Comunidade do Acampamento da Telebrasília. Brasília: UnB/Faculdade de Direito/MJ/Secretaria de Estado de Direitos Humanos, 1996, p. 93-105).
Tem razão Mauro. Uma das mais importantes constatações derivadas dos estudos acerca dos chamados novos movimentos sociais foi a percepção, primeiramente elaborada pela exegese teológica da libertação e simultaneamente pela literatura sociológica, de que o conjunto das formas de mobilização e organização das classes populares e de suas configurações estruturadas nesses movimentos, instauravam, efetivamente, práticas políticas novas, em condições de abrir espaços sociais inéditos e de revelar novos atores na cena política capazes de criar direitos.
Chamei a atenção, no âmbito jurídico, para essa percepção, lembrando (Movimentos Sociais – A Emergência de Novos Sujeitos: o Sujeito Coletivo de Direitos. Belo Horizonte: XIII Conferência Nacional da OAB. Anais, 1990) que a questão que se coloca, a partir da experiência da ação coletiva dos novos sujeitos sociais, é a da designação jurídica destas práticas sociais e dos direitos novos que elas enunciam. Cuida-se de valorizar, adequadamente, as formas de sociabilidade constituídas nas relações de reciprocidade num cotidiano que adestra a convivência e legitima padrões sociais livremente aceitos.
Na mesma XIII Conferência da OAB, Marilena Chauí referiu-se a esta realidade para pensar a cidadania como possibilidade de operar o salto dos interesses aos direitos. Em suas palavras (XIII Conferência Nacional da OAB, 1990, Anais), ela afirma: cidadania ativa é a que é capaz de fazer o salto do interesse ao direito, que é capaz portanto de colocar no social a existência de um sujeito novo, de um sujeito que se caracteriza pela sua auto-posição como sujeito de direitos, que cria esses direitos e no movimento da criação desses direitos exige que eles sejam declarados, cuja declaração abra o reconhecimento recíproco. O espaço da cidadania ativa portanto, é o da criação dos direitos, da garantia desses direitos e da intervenção, da participação direta no espaço da decisão política.
Trata-se. Evidentemente, de uma experiência emancipatória. Lyra Filho a havia compreendido neste sentido e, por esta razão, para ele, o direito não pode ser compreendido como mera restrição, senão, tal como ele o entendia, enquanto enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade.
E o que será, pois, neste processo, entender o Direito como modelo de legítima organização social da liberdade? É perceber, conforme indica Roberto Lyra Filho, que o Direito se faz no processo histórico de libertação enquanto desvenda precisamente os impedimentos da liberdade não-lesiva aos demais. Nasce na rua, no clamor dos espoliados e oprimidos e sua filtragem nas normas costumeiras e legais tanto pode gerar produtos autênticos (isto é, atendendo ao ponto atual mais avançado de conscientização dos melhores padrões de liberdade em convivência) quanto produtos falsificados (isto é, a negação do Direito do próprio veículo de sua efetivação, que assim se torna um organismo canceroso, como as leis que ainda por aí representam a chancela da iniquidade, a pretexto de consagração do Direito) [ARAUJO, Doreodó (Org). Desordem e Processo – Estudos Jurídicos em Homenagem a Roberto Lyra Filho. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1986].
Nesse eixo teórico insere-se o trabalho de Mauro Noleto, nessa primorosa edição da Editora Dialética. Sociologicamente sensível ao reconhecimento das novas identidades que se formam no processo jurídico-histórico de luta pela superação dos entraves à emancipação social e à construção de novas sociabilidades, ele está também filosoficamente apto a não só definir a natureza jurídica do sujeito coletivo emergente deste processo, como também, enquadrar os dados derivados de suas práticas sociais criadoras de direitos nomeando as novas categorias jurídicas que as representam.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua. |
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