Por Humberto Góes
Neste momento, percorre os corredores
da 22ª Vara da Seção Judiciária do Distrito Federal a Ação de Reintegração de
Posse nº 0049035-89.2013.4.01.3400 movida pela Universidade de Brasília contra
o Centro de Assistência Estudantil, antiga Associação dos Moradores da Casa do
Estudante da UnB (AMCEU).
Se é grave que esse tipo de Ação seja
promovida por uma Instituição de Ensino contra um dos seus segmentos integrantes,
que, tal como todos os outros, têm direito ao espaço acadêmico, é igualmente
grave que o Judiciário, expressão de uma legislação, de uma interpretação e/ou
de uma condescendência proprietarista, admita receba e processe uma Ação como
essa. Igualmente, que negue de pronto o caráter público da instituição e do seu
espaço acadêmico com a emissão de medida de urgência contra estudantes que
querem, segundo a legislação em vigor, organizar seu Centro Acadêmico como meio
de defesa e proteção a direitos; e, após pedido, mais uma vez, ilegal da gestão,
promova nova decisão de urgência, agora contra o direito de manifestação dos
estudantes que, reiteradamente com seu direito violado, ocupam a Reitoria para
obter do gestor postura condizente com o interesse público e com os desígnios
de uma Universidade.
Sobre isso, é importante observar,
por exemplo, que se o reitor cumprisse aquilo que determina o Direito, as
fundações de apoio já não estariam invadindo o espaço público com seus
interesses privados. Embora isso precise ser lembrado a todo momento, porque
caracteriza o modo como são tratados os interesses impróprios distribuídos em
meio à comunidade acadêmica, são as decisões judiciais e a irresponsabilidade
do Judiciário que devem ser abordadas mais diretamente. Afinal, o que se espera
é que, no desrespeito ao interesse público, seja a ação judicial um meio de compelir
o gestor a restabelecê-lo. Ao contrário disso, no caso da reintegração de posse
promovida pela gestão da UnB tentando se confundir com a própria Fundação
Universidade de Brasília, o que se tem da parte do Poder Judiciário são três
decisões que, por um lado, se omitem em cumprir regras e princípios de Direito
Processual Civil e negam a finalidade do processo em realizar direitos
fundamentais, por outro, acatam e chancelam a atuação desrespeitosa promovida
pelo gestor da UnB contra os princípios da Universidade enquanto instituição de
ensino que precisa estar movida pela liberdade, pela organização e pela
participação de toda a sua comunidade na tomada de decisões.
A primeira delas, que determina a
imediata retirada de estudantes integrantes de Programas de Assistência
Estudantil da UnB de sala que ocupam para o desempenho de atividades próprias da
comunidade universitária, mostra-se equivocada por deixar de considerar que a
constituição de Centros Acadêmicos, além de estar legitimada por lei, regulamentada
pelas normas e compromissos assumidos pela Universidade, também faz parte da
dinâmica interna de organização de uma Instituição de Ensino Superior. Ou seja,
sonega à comunidade acadêmica a disposição sobre o espaço da Universidade para atividades
de organização e participação, que integram o processo de formação superior, e
admite que a gestão se esquive de cumprir uma atribuição exclusiva sua, a saber,
a competente distribuição do espaço acadêmico entre seus servidores e
servidoras, técnico-administrativos e professores, bem como estudantes.
A segunda decisão judicial é uma
violação em si. Mesmo com a demonstração cabal de que a ocupação da sala pelo
CASSIS reafirma o interesse público, integra a função social da Universidade, a
magistrada prefere não reconsiderar sua decisão anterior. Prefere dar
seguimento ao processo de negação do caráter público da Universidade. Prefere
fazer-se magistrada ao lado de valores não-condizentes com os princípios,
valores e interesses que, a partir destes, se constituem para uma Instituição
de Ensino Superior.
Como a visão proprietarista contamina
o Direito... mesmo quando se fala em espaço público, em interesse público, em
deveres públicos, ela parece emergir como valor mais alto e como valor em si, sobrepondo-se
a condições que, historicamente, vão constituindo o que se chama de
Universidade. Com ela, a magistrada parece ungir a UnB com a “pureza” da
propriedade e de um direito que não serve a uma instituição que se faz pública
com a presença e o compartilhamento do espaço entre estudantes, servidores e
servidoras, técnico-administrativos e docentes. Resgatam-se valores que só a
ditadura militar conseguiu promover na UnB com a gestão policial do espaço
acadêmico, com o uso de expedientes de exceção para fazer uma Universidade que
não se plenifica enquanto lugar de liberdade política, de criação, de complexidades
para além do que a adequação espacial ao proprietarismo é capaz de permitir.
Sobre a terceira decisão, se as anteriores
são esdrúxulas, esta última, processual e materialmente é ainda mais difícil de
admitir. A força policial que deveria recair sobre o pedido específico de reintegração
de posse da sala BT 260, agora se estende para a Reitoria e para qualquer
espaço que os estudantes e as estudantes ocupem na UnB, sob pena de multa de R$
5 mil reais por dia. Interessante é saber que a Ação de Reintegração de Posse,
inicialmente, estava motivada por uma ocupação de sala para que se tornasse
sede de um Centro Acadêmico e tinha como pedido específico a retirada imediata
de estudantes desse espaço. No segundo momento, após o despejo forçado e
desrespeitoso do CASSIS, com a ocupação da Reitoria, a motivação era agora,
protestar contra a atitude infundada da atual gestão em realizar efetivamente a
reintegração de posse. Apesar disso, o magistrado que cobre as férias da
julgadora anterior expediu uma nova decisão, que, para além do pedido
específico inicial, transformando-a mesmo numa nova demanda, amplia ilegalmente
o alcance da Ação de Reintegração de Posse para que se faça a retomada do
prédio da Reitoria e de qualquer espaço da UnB. Pior de tudo, sem se ter
exatamente a quem deve se dirigir a demanda.
Levando isso às últimas
consequências, é possível entender que à generalidade, os estudantes e as
estudantes da UnB estão proibidos de se integrar ao fazer da Universidade, de contribuir
para que ela realize o seu objetivo público e, ao sabor da gestão que hoje se
encontra na Reitoria, podem sofrer a qualquer momento despejos dos espaços que
conquistaram para os seus Centros Acadêmicos. Seria a privatização quase total do
espaço acadêmico. Ao menos, seria a vulnerabilidade deste à vontade particular
do gestor. É isso o que afirma o Judiciário nas entrelinhas de uma decisão
completamente alheia ao funcionamento e à dinâmica que se imprime a um espaço
público como a Universidade. É pior em relação à Universidade de Brasília,
criada para pensar o Brasil, seu povo e seus problemas como centro de suas
atividades de pesquisa, de ensino e de extensão, o que, de fato, se reflete no
modo de organização e de produção cognitiva dos integrantes da comunidade
acadêmica.
Sobre a Ação de Reintegração de Posse
e a ocupação de salas para Centros Acadêmicos, pode-se dizer que esta última,
ao contrário da primeira, é parte do cotidiano do ambiente universitário. Dá-se
enquanto este se reafirma como espaço de construção de pensamento e de
liberdade. O Judiciário, no entanto, prefere relevar a falta de argumentos, a
falta de negociação, a falta de diálogo e, mais ainda, a ilegalidade das
alegações utilizadas pela gestão da UnB, para, ao invés de determinar que se
cumpram os deveres inerentes a uma instituição pública de ensino superior, impulsionar
uma reintegração de posse que, pela via transversa, contribui para a
desnaturação do caráter público do espaço físico da Universidade.
Diz-se que esta é uma via transversa
porque coloca como excepcional uma ação corriqueira dentro da dinâmica
acadêmica para negar direitos, para impedir que o espaço universitário seja
compartilhado com liberdade por todas as pessoas que o integram pela formação
superior.
Tecnicamente, esta via transversa se
realiza pelo uso e aceitação do argumento de violação da “propriedade”, ainda
que se queira uma medida de proteção da posse, pois o que importa para a gestão
e para o Judiciário é a “ocupação em si”, abstratamente falando, sem discutir
os objetivos e as funções públicas que esses espaços possuem e o que devem
abrigar, de acordo com a sua atividade. No caso do Judiciário, como lhe é de praxe,
o que se prefere no presente caso para que não se lhe atrapalhe uma decisão
rápida, condescendente com a violência de estado, é se omitir quanto aos equívocos
técnicos do pedido do gestor da UnB. Esta atitude promove sem muitas delongas a
Reintegração de Posse, mesmo que esta nem indique contra quem se pede a medida
de urgência.
É verdade, só o fato de o reitor alegar
a propriedade e requerer uma medida possessória, por si só, já seria suficiente
para que o Judiciário negasse o pedido. Porém, aqui, o que importa é a
propriedade ou a posse ou sei lá o quê! – tendo em vista que a Constituição
Federal de 1988 não fala em momento algum em propriedade pública,
principalmente, quando estabelece os princípios da educação brasileira.
Para compreender os fatos
complexamente, é preciso saber que a ocupação do espaço é motivada pela falta
de local para sediar a entidade responsável pela representação dos estudantes que
dependem dos Programas de Assistência Estudantil no âmbito da UnB.
A Associação dos Moradores da Casa do
Estudante – AMCEU –, entidade reconhecida pela Administração da UnB, com
representação nos espaços institucionais, possuía sede localizada na Casa do Estudante
Universitário – CEU – até o ano de 2011, quando o espaço necessitou ser
desocupado para entrar em um longo período de reformas. Desde então, a
entidade, que atualmente passa por um processo de reestruturação a fim de
ampliar sua área de atuação acadêmica, inclusive mudando sua nomenclatura para
“Centro de Assistência Estudantil – CASSIS”, tem sido prejudicada pela falta de
um local próprio. A gestão da UnB sempre acenava com promessas de solução para o
problema, mas não cumpria os seus compromissos. Talvez, fosse interessante
eliminar a demanda por Assistência Estudantil juntamente com os demandantes
dela. Afinal, aniquila-se uma demanda quando se faz desaparecer junto com ela
quem a promove. Juntos se vão como se nunca tivessem existido para fazer reinar
a “paz social”.
Foi com o intuito de reestabelecer o
espaço de sua organização, bem assim, garantir o seu direito à educação nos
termos previstos na Constituição Federal de 1988, no PNAES, nas Leis 7.395/1985
e 12.852/2013, nas normas internas da UnB, mas sobretudo para reivindicar
direitos que vêm sendo sistematicamente violados pela gestão atual da
Universidade de Brasília, que os estudantes da Assistência Estudantil ocuparam
a sala BT-260. Ou seja, foi por interesse público e para reafirmar o caráter
público da universidade. Foi para realizar os princípios ínsitos aos bens
públicos, principalmente aqueles que estão à disposição das Universidades de
modo que estas realizem o seu caráter de público lugar de produção de
conhecimento, outrossim, de realização das liberdades, incluindo-se as
liberdades políticas e de organização para a defesa de ideias e da democracia,
sendo incabível pensar-se em posse de bem público ou afronta à propriedade de
bem público.
Até porque, se não há confusão com o
uso privado próprio da posse e da propriedade, não se pode igualmente lançar
mão de expedientes ínsitos ao direito privado para defesa dos bens públicos,
muito menos dos espaços acadêmicos de uma universidade, que cumprem sua razão
de ser ao serem ocupados, utilizados e vivenciados pela comunidade
acadêmica.
É por isso que, quando se discute a
legitimidade da “posse” de um imóvel público, é preciso perguntar ao que ele
serve, quais são os princípios que regem as atividades que nele se realizam,
quais os seus propósitos e quais os propósitos de quem o ocupa.
Com a Ação de Reintegração de Posse,
a gestão da UnB, além de, efetivamente, negar os princípios que regem a
universidade, o modo de construção do conhecimento e a dinâmica democrática
interna de uma instituição de ensino superior, dá demonstração de que quer
desnaturar o espaço acadêmico em uma lógica plena de interesses que não
necessariamente são públicos. Pior é que, de igual modo, o Judiciário admite os
seus argumentos para assimilar a negação do interesse da coletividade e os
princípios regentes da Universidade enquanto instituição que serve à sociedade;
uma instituição que tem caráter público.
Por meio do espaço, o que o CASSIS pretende
é dar visibilidades aos problemas da Política de Assistência Estudantil,
apontar as principais necessidades de estudantes que dela dependem para
seguirem seus estudos. Enquanto isso, a atual gestão da UnB que, com a Ação de
Reintegração de Posse, falta com respeito a direitos de estudantes e de demais
integrantes da comunidade acadêmica ao dar demonstrações de que não tolera ter
que realizar uma Política de Assistência Estudantil; de que não tolera ter que
desempenhar recursos, mesmo que estes tenham origem direta do orçamento da
União, para que seja assegurado o direito à educação a estudantes com situação
financeira menos favorecida.
Seria, talvez, mais importante para a
gestão da UnB direcionar estes recursos para atividades mais próximas de uma
universidade voltada ao favorecimento de certos interesses econômicos privados.
Um dos indícios de que isso pode ser verdade é que, neste momento, também está
acontecendo uma recente ocupação de sala por estudantes de Medicina que querem
instalar a nova sede de seu Centro Acadêmico. Em nenhum momento, a Universidade
falou em reintegração de posse.
Também estão presentes no espaço
público entidades que promovem atividades eminentemente privadas com fins de
lucro e estas, além de não ressarcirem a Instituição pelo uso, tratam o espaço
ocupado como se fosse exclusivo (alugam a terceiros, promovem eventos pagos,
etc.). Nem por isso a gestão da Universidade, que viola normas de direito
público e decisões reiteradas do Tribunal de Contas, especialmente o Acórdão
TCU 2.731, falou em Reintegrar a Posse ou em retomada desses espaços para que
eles cumprissem um interesse eminentemente público.
Embora, frise-se, seja legítima a
ocupação de estudantes de Medicina, por que o trato é diferenciado com
estudantes que dependem da Assistência Estudantil e querem reorganizar a sua
associação com vistas a terem seus direitos assegurados e uma Universidade
cumprindo a sua função pública de garantir o direito de acesso e permanência a
estudantes de baixa renda? Por que a gestão da UnB desrespeita um acordo de
distribuição de sala no Instituto Central de Ciências (“Minhocão”) previsto na
Circular n.º 7, de 07 de abril de 2011, para o CASSIS? Será que estes
estudantes estão sendo vítimas de preconceito e, sendo grande parte deles de
negros, de racismo?
É possível que sim, principalmente
porque quase todos, senão todos dos mais de 50 (cinquenta) Centros Acadêmicos
existentes na universidade obtiveram suas salas para o desempenho de suas
atividades por ocupação. Nunca, com exceção dos tempos da ditadura militar,
houve pedido de reintegração de posse para evitar que estas organizações
estudantis ocupassem o espaço acadêmico. Porque este deve estar livre!
Em uma Universidade, essa liberdade
se exerce ou precisa se exercer em toda a sua plenitude. A produção de ideias
depende de organização, de irreverência, de contato com a realidade, por
conseguinte, com a política, interna e externa ao campus. Se a democracia
depende de liberdade de associação, de manifestação, de pensamento e de
expressão do pensamento, na universidade, esses princípios que também estão
positivados na Constituição Federal vigente no País, não são menos importantes.
Uma formação democrática e cidadã
depende da capacidade e da possibilidade de organização de estudantes,
professores, professoras, servidores e servidoras técnico-administrativos.
Depende dos processos de reivindicação, da participação nas instâncias de
deliberação e, isso, está intimamente relacionado com as condições de reunião e
de diálogo sobre os rumos da Universidade. Está intimamente ligado à ocupação
dos espaços acadêmicos com ideias que se expressam por meio de organizações
estudantis, que, por sua vez, se enraízam no espaço físico da Universidade,
podendo ter dentro desta, o seu próprio espaço de referência. Depende, por
isso, da presença de Centros Acadêmicos fortes e atuantes ocupando o espaço
universitário.
Portanto, o que a gestão atual da UnB
e o Judiciário, este alheio à dinâmica interna de uma Universidade, fazem é uma
violação aos integrantes da comunidade universitária e ao espaço acadêmico. É
uma afronta a princípios que reafirmam o caráter público da Universidade e de
suas instalações. Pior, a decisão judicial abre um precedente grave porque
indica como possível a intervenção judicial em um tema, qual seja, a
distribuição do espaço acadêmico, que compete exclusivamente à Universidade e à
comunidade acadêmica administrar.
Se a gestão não se sente capaz de
fazer isso, ainda assim, não é o Judiciário que deve fazê-lo, porque existem
normas, compromissos e expressões normativas da escolha administrativa que
devem servir de base para a decisão que o reitor está obrigado a tomar. Não
pode é, por interesses não propriamente públicos, esquivar-se de cumprir essas
normas e valer-se de uma ação de Reintegração de Posse para tanto.
É
evidente que a presença da AMCEU/CASSIS na sala BT-260 ou em qualquer outra não
provoca prejuízos à UnB. Pelo contrário, reafirma a Universidade enquanto tal. Portanto,
as decisões judiciais são equivocadas,
principalmente, por deixarem de considerar que a ocupação de salas por
estudantes para a constituição de seus Centros Acadêmicos independe do
interesse pessoal do administrador. Está amparada nos princípios da educação e
realiza disposições normativas previstas nas Leis 7.395/1985 e 12.852/2013 e em
normas internas da Universidade (circular n.º 07/2011 e outras conforme se pode
observar nas matérias publicadas no portal da Universidade), em que o interesse
público se expressa.
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