domingo, 20 de setembro de 2015

I - Cartas de Bolonha: primeiros escritos de uma estrangeira

Por Patricia Vilanova Becker*

Nostra patria è il mondo intero,
Nostra legge è la libertà
Ed un pensiero ribelle in cor ci stà **

Carxs amigxs,
Escrevo para dizer que sou finalmente "straniera", agora registrada, oficialmente não-parte. Cartas, carimbos, assinaturas, códigos, mais carimbos, polícia, explicações. E ao que tudo indica, ser estrangeira é hoje o principal assunto nos jornais europeus. Na Rai 2, canal da TV aberta italiana, a programação da noite coloca a ministra de defesa e outros políticos em confronto. A pergunta de hoje é: a Itália pode acolher os refugiados sírios? O debate traz os supostos custos do que o repórter diz ser o preço "di fare lo statista". Segundo ele, Merkel, quando semanas antes da chamada "crise dos refugiados" afirmou que Alemanha tinha condições de abrigar mais de 200 mil pessoas, queria apenas parecer uma boa estadista. Hoje, o discurso mudou. 

O debate em torno da imigração e pessoas refugiadas toma conta dos meios de comunicação e assume formas seletivas: há quem defenda a acolhida das refugiadas de guerra, já que elas não têm culpa do efeito gerado pelas bombas que são produzidas na Itália e vendidas à Arábia Saudita. Já as refugiadas econômicas, imigrantes "comuns" que continuam a chegar no país diariamente, estas não possuem nenhuma indulgência. No debate, a ministra italiana de defesa intervém: - ‘as bombas não são produzidas na Itália! Fazemos apenas algumas peças.' E assim, enquanto as bombas são construídas de forma compartilhada, a responsabilidade continua sem dono. 

Europa está em crise econômica, afirmam especialistas e comentaristas de plantão. Roma, Milano, Bologna, com suas avenidas de comércio milionário, parecem dizer o contrário. Mas o jornalista traz dados incontestes. O chamado "Costo dell'accoglienza" entre o ano de 2014-2015 seria de 3.308.295.188 euros, e o custo de 2016 estimado em 2.492.293.200 euros, segundo o Centro Studi Impresa Lavoro. E estes números todos, pouco precisos e compreensíveis, são atirados na tela do jornal da noite em clima de estado de calamidade.

O debate me faz lembrar da aula de direitos humanos que tive na Universidade de Granada em 2012 - época em que pela primeira vez me descobria estrangeira em solo europeu. Estudávamos ‘O estrangeiro', de Albert Camus. O professor defendia em aula que a cidadania deveria ser um ato de vontade no qual uma pessoa manifesta estar disposta a submeter-se ao acordo feito na Magna Carta. Bastaria esta vontade manifesta, e nada mais, para ser cidadã, uma vez que cidadania não deveria ser o "privilégio de nascer sobre um território". Concordei na época, e hoje penso que como cidadã decidi que "la mia patria è il mondo intero".

Hoje fui acolhida na casa de Giuditta, amiga italiana que mesmo sem me conhecer generosamente me hospeda nos primeiros dias. Ao entrar, sobre a escrivaninha de Giuditta, me deparo com o livro "Il pensiero dell'altro", trazendo uma compilação com a obra de Emmanuel Levinas. Imediatamente lembro de Enrique Dussel, da "Outra" que foi encoberta, do giro descolonial de que nos fala Alejandra Pascual, do Direito Achado na Rua de José Geraldo de Sousa, do novo neo-constitucionalismo latino-americano de que nos fala Rosane Lacerda e outros amigos.

Por um segundo, me recordo que hoje "a Outra" sou eu, que entra em território europeu de forma privilegiada, mas segue sendo uma entre tantas "Outras". Mas extremamente feliz pelas milhas percorridas e ansiosa pelas que virão - sempre gostei de desafiar fronteiras!

Com carinho,
Patrícia.
Bolonha-Itália, 17 de setembro de 2015.

*Patrícia Vilanova Becker, integra o Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua; mestranda em Direito pela UnB, participa atualmente do Programa Erasmus Mundus Master´s Degree in Women's and Gender Studies na Universidade de Bolonha e Universidade de Oviedo.



**Stonelli d'esilio: canto anárquico italiano que diz ‘nossa pátria é o mundo inteiro, nossa lei é a liberdade, e um pensamento rebelde no coração está'. 

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