quarta-feira, 23 de setembro de 2015

I Carta de Los Angeles – Do paleolítico a um outro descobrimento da América

Por Antonio Escrivão Filho[i]

Tenho que recorrer a Cecília Meirelles para começar essa carta, e justificar porque ela demorou um mês para ser remetida (e talvez 0,02 segundos para chegar!). A poeta dizia que a liberdade é uma palavra que não há ninguém que explique, e ninguém que não entenda. Até aqui, tenho me esforçado para entender os sentidos desta experiência internacional, mas confesso que ainda acho difícil de explica-la.
Bem, estamos em Setembro de 2015. Há um mês de distância do Brasil. Me pergunto quem inventou essa história de anos-luz, mas tempo e distância realmente demonstram uma elasticidade incrível quando se sai da sua terra. Imagino como o seja, então, com a Terra. De imediato, quer dizer, na chegada, as experiências brevemente acumuladas em algumas décadas de vida se desintegram como um quebra-cabeça: as palavras que expressam o seu sentimento de mundo estão ali, mas leva-se algum tempo para que elas se encaixem. Então, quando se pensa que possui algum conhecimento ou domínio sobre a realidade, a vida lhe desafia novamente a se comunicar e nomear as coisas ao seu redor, reconhecer os costumes sociais e institucionais, e sentir aquela sensação paleolítica de observar e manusear os mais simples objetos como alguém o fez um dia com um fêmur nas mãos.
Conhecer a sociedade e a universidade americana tem sido, até aqui, uma experiência de reconhecimento e descoberta. Reconhecimento de diversos modos de fazer, organizar e realizar atividades, agendas, cursos e pesquisas. Reconhecimento das estruturas disponíveis para a universidade, diretamente proporcional às taxas e mensalidades no ensino público e privado, ambos sistemas pagos, ainda que muitas vezes sem fins lucrativos. Reconhecimento da cultura acadêmica, das formas de realizar workshops e debates sobre pesquisas, da forma como os diversos programas de pesquisa se organizam institucionalmente, com recursos humanos e estrutura, bolsas e eventos. Eventos, diversos eventos, sempre acompanhados de muita comida. No mundo das organizações de direitos humanos há quem diga que o Coffee Break é o momento mais importante e efetivo para se construir as estratégias, alianças e contatos. Por aqui isso é levado às últimas consequências.
E descoberta. Descobrimento no melhor sentido da filosofia da libertação, de desencobrir. Desencobrir o espesso, impressionante e muito bem construído véu ideológico do progresso neoliberal e financeiro, onde o american way of life se apresenta sem fissuras, como um modelo universal para o qual todas as sociedades no mundo devem rumar, mesmo que elas ainda não saibam. Um véu que em terras hollywoodianas adquire ares de película, um filme muito bem produzido, dirigido e encenado. Uma história de um indivíduo que assume a figura mítica de herói, na luta do bem contra o mal. Encerradas as filmagens, entram os montadores do set, faxineiros e faxineiras, motoristas e todas e todos aqueles que são cotidianamente invizibilizados neste enredo.
Assim como é facilmente reconhecível no Brasil, por aqui a desigualdade social não apenas existe em abundância, como possui etnia racial, expressão cultural e espaços territoriais e sociais próprios. Guardadas as devidas proporções, ficam as tentativas de compreender dois desenvolvimentos históricos com traços políticos e culturais tão distintos, e origens modernas que também se entrecruzam em semelhanças, fundadas sobre as bases do colonialismo, escravidão e migração.
Em meio a tudo isso, o que vem à mente constantemente é um argumento de Marx: ao estudar uma sociedade historicamente mais avançada no processo de desenvolvimento do capitalismo, tomamos contato com diversos elementos que nos fornecem as chaves para compreender as sociedades que ainda não atingiram aquele estágio, mas que tendem a reproduzi-los em algum futuro mais ou menos próximo ou distante. Em outras palavras, em uma era globalizada de fortes pressões político-econômicas, sociais e culturais hegemônicas, alguns processos históricos desencadeados nos Estados Unidos podem ou tendem a se reproduzir, certamente com expressões e contradições bastantes próprias ao território de destino, em países que se encontram sob influência do modelo globalizado de uma sociedade produzida e embalada para exportação.
Tomando a devida atenção para não incorrer em determinismos, mas sem ignorar a compreensão dialética dos processos sociais na história, o fato é que em alguma medida a experiência estadunidense tende a antecipar processos que podem vir a ser reproduzidos, a partir de traços, características e contradições próprias, no Brasil e na América Latina, isso sem ignorar que este processo seria intensamente mais agravado se estivéssemos hoje subjugados aos auspícios da ALCA. Assim, a experiência ganha densidade ao antecipar vivências, compreensões e chaves analíticas que em alguma medida podem fornecer ao menos pistas para uma espistemologia do sul que se orienta, em boa medida, pela desconstituição e superação das contradições historicamente forjadas e impostas pelos centros de poder e conhecimento da modernidade ocidental. Talvez não seja por outro motivo que boa parte das pensadoras e pensadores latino-americanos, africanos, asiáticos e do leste-europeu fazem sua passagem por aqui em algum momento das suas vidas, afinal de contas, um dos mais simples e fundamentais axiomas da crítica filosófica é: compreender para criticar.
Neste sentido, desperta interesse conhecer a leitura crítica que a própria sociedade americana faz de si, seja através das organizações sociais ou da academia, reconhecendo o que possa haver aí de antecipação criativa ou meramente resignada. De saída, o que já se apresentou nesta breve experiência foi um intenso debate sobre os processos de segregação sócio-espacial ocorridos há décadas (ainda que não se cogite aqui de um movimento social orgânico de base popular), a questão do encarceramento em massa da população negra (ao passo em que no Brasil este debate vem associado ao genocídio da juventude negra), a migração como tema central da questão social no discurso eleitoral, a recente decisão da Suprema Corte sobre o casamento homoafetivo (sem ignorar retrocessos legislativos impostos pelo fundamentalismo religioso, e o investimento milionário na ação judicial que deu causa ao julgamento). Além disso, foi interessante encontrar um extenso debate sobre advocacia de interesse público, uma espécie de conceito amplo que a grosso modo englobaria o que no Brasil iria desde a Defensoria Pública até a Advocacia Popular, trabalhando de forma bastante difundida na literatura, academia e carreira profissional uma noção de advocacia cuja atuação se caracteriza pelo uso combinado de estratégias e instrumentais jurídicos, políticos e, o que é mais interessante, educação popular.
Aliás, uma das gratas surpresas, daquelas que te esticam o sorriso para compartilhar a alegria com quem esteja por perto, foi me encontrar com Paulo Freire nos artigos científicos e nas prateleiras do curso de Educação, da Universidade da Califórnia. Quem sabe um dia, em tempos de globalização da luta e da esperança, uma Maria ou um José não sejam encontrados também pelas ruas desta Universidade, nas mãos de professoras e estudantes que, aprendendo a renomear o mundo à sua volta, esticam um sorriso para compartilhar o prazer de dizer: “direito means rights, and freedom is called liberdade!”
Universidade da Califórnia – Los Angeles, Setembro de 2015



[i] Correspondente do Coletivo Diálogos Lyrianos, ligado ao Grupo de Estudos O Direito Achado na Rua. É Membro do Conselho Diretor da Terra de Direitos – Organização de Direitos Humanos e da Renap. Doutorando em Direito pela UnB e bolsista CAPES no Programa Doutorado Sanduíche, atualmente cumprindo período como Pesquisador Visitante na Universidade da Califórnia, Los Angeles – UCLA.

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