Por Antonio Escrivão
Filho[i]
Tenho que recorrer a Cecília Meirelles para começar essa carta, e
justificar porque ela demorou um mês para ser remetida (e talvez 0,02 segundos
para chegar!). A poeta dizia que a liberdade é uma palavra que não há ninguém
que explique, e ninguém que não entenda. Até aqui, tenho me esforçado para
entender os sentidos desta experiência internacional, mas confesso que ainda acho
difícil de explica-la.
Bem, estamos em Setembro de 2015. Há um mês de distância do Brasil. Me
pergunto quem inventou essa história de anos-luz, mas tempo e distância
realmente demonstram uma elasticidade incrível quando se sai da sua terra. Imagino
como o seja, então, com a Terra. De imediato, quer dizer, na chegada, as
experiências brevemente acumuladas em algumas décadas de vida se desintegram
como um quebra-cabeça: as palavras que expressam o seu sentimento de mundo
estão ali, mas leva-se algum tempo para que elas se encaixem. Então, quando se
pensa que possui algum conhecimento ou domínio sobre a realidade, a vida lhe
desafia novamente a se comunicar e nomear as coisas ao seu redor, reconhecer os
costumes sociais e institucionais, e sentir aquela sensação paleolítica de
observar e manusear os mais simples objetos como alguém o fez um dia com um
fêmur nas mãos.
Conhecer a sociedade e a universidade americana tem sido, até aqui, uma
experiência de reconhecimento e descoberta. Reconhecimento de diversos modos de
fazer, organizar e realizar atividades, agendas, cursos e pesquisas.
Reconhecimento das estruturas disponíveis para a universidade, diretamente proporcional
às taxas e mensalidades no ensino público e privado, ambos sistemas pagos,
ainda que muitas vezes sem fins lucrativos. Reconhecimento da cultura
acadêmica, das formas de realizar workshops e debates sobre pesquisas, da forma
como os diversos programas de pesquisa se organizam institucionalmente, com
recursos humanos e estrutura, bolsas e eventos. Eventos, diversos eventos, sempre
acompanhados de muita comida. No mundo das organizações de direitos humanos há
quem diga que o Coffee Break é o momento mais importante e efetivo para se
construir as estratégias, alianças e contatos. Por aqui isso é levado às
últimas consequências.
E descoberta. Descobrimento no melhor sentido da filosofia da libertação,
de desencobrir. Desencobrir o espesso, impressionante e muito bem construído
véu ideológico do progresso neoliberal e financeiro, onde o american way of life se apresenta sem
fissuras, como um modelo universal para o qual todas as sociedades no mundo
devem rumar, mesmo que elas ainda não saibam. Um véu que em terras
hollywoodianas adquire ares de película, um filme muito bem produzido, dirigido
e encenado. Uma história de um indivíduo que assume a figura mítica de herói,
na luta do bem contra o mal. Encerradas as filmagens, entram os montadores do
set, faxineiros e faxineiras, motoristas e todas e todos aqueles que são
cotidianamente invizibilizados neste enredo.
Assim como é facilmente reconhecível no Brasil, por aqui a desigualdade
social não apenas existe em abundância, como possui etnia racial, expressão
cultural e espaços territoriais e sociais próprios. Guardadas as devidas
proporções, ficam as tentativas de compreender dois desenvolvimentos históricos
com traços políticos e culturais tão distintos, e origens modernas que também
se entrecruzam em semelhanças, fundadas sobre as bases do colonialismo,
escravidão e migração.
Em meio a tudo isso, o que vem à mente constantemente é um argumento de
Marx: ao estudar uma sociedade historicamente mais avançada no processo de
desenvolvimento do capitalismo, tomamos contato com diversos elementos que nos
fornecem as chaves para compreender as sociedades que ainda não atingiram
aquele estágio, mas que tendem a reproduzi-los em algum futuro mais ou menos
próximo ou distante. Em outras palavras, em uma era globalizada de fortes
pressões político-econômicas, sociais e culturais hegemônicas, alguns processos
históricos desencadeados nos Estados Unidos podem ou tendem a se reproduzir,
certamente com expressões e contradições bastantes próprias ao território de
destino, em países que se encontram sob influência do modelo globalizado de uma
sociedade produzida e embalada para exportação.
Tomando a devida atenção para não incorrer em determinismos, mas sem
ignorar a compreensão dialética dos processos sociais na história, o fato é que
em alguma medida a experiência estadunidense tende a antecipar processos que
podem vir a ser reproduzidos, a partir de traços, características e
contradições próprias, no Brasil e na América Latina, isso sem ignorar que este
processo seria intensamente mais agravado se estivéssemos hoje subjugados aos
auspícios da ALCA. Assim, a experiência ganha densidade ao antecipar vivências,
compreensões e chaves analíticas que em alguma medida podem fornecer ao menos pistas
para uma espistemologia do sul que se orienta, em boa medida, pela
desconstituição e superação das contradições historicamente forjadas e impostas
pelos centros de poder e conhecimento da modernidade ocidental. Talvez não seja
por outro motivo que boa parte das pensadoras e pensadores latino-americanos,
africanos, asiáticos e do leste-europeu fazem sua passagem por aqui em algum
momento das suas vidas, afinal de contas, um dos mais simples e fundamentais axiomas
da crítica filosófica é: compreender para criticar.
Neste sentido, desperta interesse conhecer a leitura crítica que a
própria sociedade americana faz de si, seja através das organizações sociais ou
da academia, reconhecendo o que possa haver aí de antecipação criativa ou
meramente resignada. De saída, o que já se apresentou nesta breve experiência
foi um intenso debate sobre os processos de segregação sócio-espacial ocorridos
há décadas (ainda que não se cogite aqui de um movimento social orgânico de
base popular), a questão do encarceramento em massa da população negra (ao
passo em que no Brasil este debate vem associado ao genocídio da juventude
negra), a migração como tema central da questão social no discurso eleitoral, a
recente decisão da Suprema Corte sobre o casamento homoafetivo (sem ignorar
retrocessos legislativos impostos pelo fundamentalismo religioso, e o
investimento milionário na ação judicial que deu causa ao julgamento). Além disso,
foi interessante encontrar um extenso debate sobre advocacia de interesse
público, uma espécie de conceito amplo que a grosso modo englobaria o que no
Brasil iria desde a Defensoria Pública até a Advocacia Popular, trabalhando de
forma bastante difundida na literatura, academia e carreira profissional uma
noção de advocacia cuja atuação se caracteriza pelo uso combinado de
estratégias e instrumentais jurídicos, políticos e, o que é mais interessante,
educação popular.
Aliás, uma das gratas surpresas, daquelas que te esticam o sorriso para
compartilhar a alegria com quem esteja por perto, foi me encontrar com Paulo
Freire nos artigos científicos e nas prateleiras do curso de Educação, da
Universidade da Califórnia. Quem sabe um dia, em tempos de globalização da luta
e da esperança, uma Maria ou um José não sejam encontrados também pelas ruas
desta Universidade, nas mãos de professoras e estudantes que, aprendendo a
renomear o mundo à sua volta, esticam um sorriso para compartilhar o prazer de
dizer: “direito means rights, and
freedom is called liberdade!”
Universidade da Califórnia
– Los Angeles, Setembro de 2015
[i]
Correspondente do Coletivo Diálogos Lyrianos, ligado ao Grupo de Estudos O
Direito Achado na Rua. É Membro do Conselho Diretor da Terra de Direitos – Organização
de Direitos Humanos e da Renap. Doutorando em Direito pela UnB e bolsista CAPES
no Programa Doutorado Sanduíche, atualmente cumprindo período como Pesquisador
Visitante na Universidade da Califórnia, Los Angeles – UCLA.
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