Por Marcio Berclaz
Concebido no contexto pré-constituinte de redemocratização do Estado 
brasileiro em meados dos anos 80, decisivamente impulsionado e discutido
 ao longo dos anos 90, seguido de uma gradual despotencialização 
ocorrida nas próximas duas décadas seguintes, a evolução histórica e o 
balanço das atividades do Movimento do Direito Alternativo (MDA) é um 
cartografia de muitos chegadas e partidas.
Inspirado em mobilização inicial iniciada na Itália nos anos 70 pelos
 adeptos do “uso alternativo do direito”, originariamente difundida 
junto aos membros da denominada magistratura democrática italiana, 
atividade que também repercutiu, em maior ou menor grau, na Espanha, 
França, Alemanha e em diversos países da América Latina, inegável 
reconhecer que o Movimento do Direito Alternativo (MDA) não só fez 
história no Brasil como, até hoje, rende o que falar, mais do que isso, 
estimula a pensar o direito a partir de um novo paradigma 
contra-hegemônico que prefere trilhar o caminho da emancipação ao invés 
da regulação.
A busca de um direito livre, insurgente, marcado pelo conflito, 
transformador, de matriz sociológica, ocupado da legitimidade fática, 
integrou o ideário que alimentou uma geração de juristas e estudantes 
(em sua maior parte, sim, assumidamente “de esquerda”), os quais queriam
 ser protagonistas de um direito melhor e mais justo do que aquele que 
está positivamente posto, sentimentos que certamente ainda pairam no ar 
rarefeito do simbólico “ordenamento jurídico” repleto de egoísmo e 
carente de alteridade. Um direito interpretado por uma matriz e um 
sistema adequado, constitucional, político e socialmente orientado, 
autopoiético e sempre focado em novas possibilidades. Essas, em suma, 
algumas das notas e dos indicativos desta corrente de pensamento que 
muito contribuiu para forjar a cultura jurídica brasileira.
Forte “pegada” nos direitos humanos, defesa da bandeira da luta por 
reforma agrária, rejeição da exclusão social, crítica da criminalização 
seletiva, pauta de incremento da cidadania e aprofundamento da 
democracia substancial para obter maior justiça social aos oprimidos, 
essas e outras questões orbitavam a esfera de interesse daqueles 
sujeitos históricos ativistas, juristas orgânicos que, corajosamente, 
apesar de todos os rótulos e pré-conceitos dados por quem ignorava as 
bases epistêmicas do movimento, flertaram com a fileira do direito 
alternativo, diferenciando-se, não raro, pela qualidade e autenticidade 
de seus inovadores e progressistas posicionamentos. Partir do dissenso 
para construir novos consensos, abalar o que está posto como “verdade”, 
essa a árdua missão do “alternativismo” na versão  tupiniquim.
O movimento do Direito Alternativo, essa nova abordagem 
teórico-prática acerca do direito voltada aos menos favorecidos nas 
palavras de Celso Ludwig, tinha adeptos no Poder 
Judiciário(principalmente no Rio Grande do Sul), alguns adeptos no 
Ministério Público e diversos seguidores na advocacia, especialmente a 
advocacia popular voltada à interagir e manter interlocução com os 
movimentos sociais. Não faltaram militantes intelectuais de destaque, 
notadamente: Edmundo Lima de Arruda Junior, Lédio Rosa de Andrade, 
Miguel Pressburger, José Geraldo de Sousa Junior, Agostinho Ramalho 
Marques Neto, Márcio Puggina, Tarso Genro, Roberto Lyra Filho, Antonio 
Alberto Machado, Marcelo Pedroso Goulart, Amilton Bueno de Carvalho, 
Marcus Fabiano Gonçalves, Plauto Faraco, Willis Santiago Guerra, Maria 
Berenice Dias, dentre diversos outros, foram alguns dos importantes 
nomes dos sujeitos mobilizadores deste verdadeiro movimento, na melhor 
expressão físico-dinâmica que isso encerra. Não seria demais incluir 
 Luis Fernando Coelho e o genial e saudoso Luis Alberto Warat como 
importantes figuras “paternas” de um “alternativismo” jurídico recheado 
de base filosófica e voltado à produzir uma teoria crítica do direito. 
Enquanto Coelho define o direito como “arma de libertação”, Warat 
poderia servir para mostrar que, se os conservadores atacam o direito 
alternativo, é sinal de que ele ainda incomoda, inquieta e perturba o 
“senso comum” de quem deseja manter tudo exatamente como está.
Compreender que a lei é menos do que o Direito, defender que a 
justiça material é o fim  e objetivo maior a ser alcançado a partir de 
escolhas construídas de modo fundamentado pelas normas-meio por juristas
 cientes dos impacto não só jurídico, mas também político de seus 
posicionamentos e deixar de lado mitos e fetiches que prometem verdades,
 certezas e uma ilusória “segurança jurídica”, essas algumas premissas 
do Movimento do Direito Alternativo. Não se tratava de colocar o direito
 acima da lei, mas de situar a lei abaixo da justiça, a lei abaixo da 
expressão de um “direito vivo” (Ehrlich) e pulsante. Tudo depende de uma
 questão de perspectiva.
O Movimento do Direito Alternativo tinha textos, congressos, eventos 
e, inclusive, uma Editora bem definida (a Acadêmica). Em 1990 
realizou-se o Primeiro Encontro Internacional do Direito Alternativo em 
Florianópolis-SC, sendo que, no mesmo período, surgiu o IDA – Instituto 
do Movimento do Direito Alternativo. Os lugares e os espaços eram bem 
definidos.
Mas, afinal, qual era e qual é o horizonte epistêmico, ideológico e 
científico do direito alternativo? Marxismo, positivismo fático, 
jusnaturalismo de combate, essas ainda são algumas expressões do 
Movimento do Direito Alternativo. Atualmente seria o debate voltado na 
supremacia e hierarquia da Constituição? Quais os elementos relevantes 
para sua definição?
Mais do que defini-lo por afirmações, é necessário saber o que o 
direito alternativo efetivamente não é. Não é julgar sistematicamente 
contra a lei, não é jusnaturalismo desvairado ou puro voluntarismo 
jurídico, mas sim analisar e interpretar a lei de modo crítico, 
reflexivo, axiológico e transformador de modo a ampliar possibilidades e
 reduzir desigualdades, especialmente das classes sociais desfavorecidas
 pelo próprio modelo e sistema econômico.
Não se ignore que entendimentos minoritários lançados na prática do 
direito de família, os quais há alguns poucos anos atrás eram tidos como
 atitude de “rasgar a lei”, hoje consolidaram-se como realidade no 
ordenamento jurídico atual: divórcio sem tempo mínimo necessário e 
interpretação adequada e admissão de união estável entre pessoas do 
mesmo sexo, são apenas dois pequenos exemplos do quanto se evoluiu. De 
outro lado, no âmbito criminal, para quem já pensava criticamente o 
direito penal, realmente não era preciso que o Supremo Tribunal Federal 
declarasse inconstitucional a vedação da progressão de regime em delitos
 hediondos em nome da individualização para que se tivesse essa 
consciência, o mesmo podendo ser dito para a desnecessidade de abertura 
de todos os votos dos jurados no Tribunal do Júri para fim de preservar o
 sigilo da votação, entre outras respostas diferenciadas possíveis a 
outros campos do saber jurídico, até mesmo porque o direito alternativo 
tem como uma de suas notas a interdisciplinaridade.
Uma questão ainda aberto consiste no debate e discussão sobre o 
caminho trilhado pelo movimento do direito alternativo nas últimas duas 
décadas. Há quem diga que o movimento resiste, menos entrincheirado, 
enfraquecido e um tanto quanto desidratado, tanto de recursos humanos 
como de aportes teórico-práticos; outros acreditam que ele foi esvaziado
 pela hermenêutica jurídico-constitucional; diferente disso, há que 
aposte na continuidade e atualidade de se manter a ideia válida e 
presente, com maiores ou menores adaptações.
Como espaço da divulgação das ideias deste importante universo, atualmente, merece destaque a Revista de Direito Alternativo, de
 responsabilidade do NEDA (Núcleo de Estudos de Direito Alternativo) da 
UNESP (Universidade do Estado de São Paulo), bem com os seminários 
realizados em Franca-SP, espaços onde o direito alternativo ainda segue 
bem vivo, sempre angariando novos estudiosos e militantes.
Concordar como direito alternativo, era e ainda é, sem dúvida, adotar
 uma postura hermenêutica contra-hegemônica, distante do senso comum 
teórico e dos precedentes dominantes. Reconhecer no direito alternativo 
uma possibilidade, afinal, é afastar a defasagem jurídica dos juristas 
tradicionais-conservadores, que, claro, querem deixar tudo exatamente 
como está.
O caminho, todavia, também apresenta percalços e dificuldades. Como 
proceder de modo alternativo sem uma elevada e aí sim preocupante dose 
de discricionariedade  do jurista, especialmente quando este tiver lugar
 de fala no próprio Poder Judiciário? O risco do solipsismo, denunciado 
contínua e precisamente por Lenio Streck, é sempre um elemento 
complicador dentro de um modelo de pensamento que estimula a “criação” e
 a “inventividade” à pasteurização de decisões.
A propósito disso, teria o direito alternativo realmente se metido 
numa  “sinuca de bico histórica” ao ter ideologizado o debate jurídico 
sem demarcar uma devida e técnica guerra de posição (Gramsci), sem as 
necessárias mediações conceituais e metodológicas, tendo se 
caracterizado numa “vanguarda” sem a devida “retaguarda”, inclusive 
filosófica? Será que, como também afirma Lenio Streck, antes de um 
“direito achado na rua” (Roberto Lyra Filho), ser crítico hoje é lutar 
apenas e tão-somente pela efetivação da Constituição como melhor 
“alternativa”? Seria, de fato, o direito alternativo simplesmente um 
“movimento” e não propriamente uma expressão de teoria crítica do 
direito? Uma hermenêutica jurídica crítica, diz-se, faria o mesmo que o 
direito alternativo, será mesmo? Ainda no âmbito dessa problematização, 
importante saber qual o real lugar e a importância do pluralismo 
jurídico para a consolidação da ideia. Há de haver um direito fora e 
para além do Estado, axiologicamente válido e igualmente legítimo capaz 
de permitir a resistência como uma possibilidade, não?
A lente e o prisma pela qual os adeptos do uso do direito alternativo
 tocam o fenômeno jurídico não pode ser esquecidas, nem ignoradas, ao 
contrário, precisam ter sua histórica bem contada e retransmitida às 
novas e atuais gerações de estudantes, profissionais e acadêmicos. 
Defender o uso alternativo do direito, mais do que mirar uma razão 
utópica atravessada de alguma factibilidade (Hinkelammert),  também é, 
como ensina David Sánchez Rubio, abrir possibilidades de ação e não 
conformar-se com o empiramente dado. E isso não é pouca coisa.
Tudo indica que há um rico espólio nos escombros, ruínas e 
edificações teóricas e acadêmicas do movimento. Diversas são as pistas, 
múltiplos são os sinais. Não se duvida de que a escavação arqueológica 
do direito alternativo bem assimilada, (re) lida e atualizada, contribui
 para construção de um novo presente, contanto que haja a devida 
depuração e decantação de identificar o essencial e promover as devidas 
mediações e transformações, respeitando-se a complexidade do tema.
O direito alternativo continua sendo um paradigma, um giro no 
pensamento do direito que merece ser conhecido, considerado e, 
sobretudo, atualizado. Antes de apostar numa ilusória neutralidade, o 
direito alternativo ainda é, acima de tudo, uma importante “tomada de 
posição”.
Pensar e projetar as perspectivas atuais do alternativismo jurídico 
ou das alternativas ao direito e as possibilidades de uma reconstrução, 
em novas bases, da dogmática jurídica crítica, mais do que nunca, esse é
 o ponto, quando não uma das “tábuas de salvação” de quem não quer ser 
afogado pelo reprodução  e “unidimensional” (Marcuse) do direito 
enquanto norma, ou seja, mais do mesmo. A norma, também precisa ser 
questionada, não se resumindo a uma leitura técnico-formal pautada pela 
tradicional subsunção da premissa menor na maior. Como ensina Roberto 
Lyra Filho, afinal, “não se pode afirmar ingênua ou manhosamente que 
toda a legislação seja Direito autêntico, legítimo e indiscutível”.
Como bem expõe Edmundo Lima de Arruda Junior, um dos expoentes do Movimento do Direito Alternativo (MDA), “há tempos e espaços cruzados, justapostos e mesmo em colisão no MDA. Decantá-los é condição para o avanço do movimento”.
 Mais do que nunca, é tempo de se repensar na sistematização e 
atualização factível dos postulados do direito alternativo, certo de 
que, conforme ensina Karl Engisch, aquilo que é “vivo” nunca se deixa 
racionalizar completamente, sempre há um direito específico e singular 
de cada caso concreto que potencializa uma “práxis transformadora”, 
enfim, um melhor e mais oxigenado “mundo jurídico”.
Márcio Berclaz é Promotor de Justiça no Estado
 do Paraná. Doutorando em Direito das Relações Sociais pela UFPR 
(2013/2017), Mestre em Direito do Estado também pela UFPR (2011/2013). 
Integrante do Grupo Nacional de Membros do Ministério Público 
(www.gnmp.com.br) e do Movimento do Ministério Público Democrático 
(www.mpd.org.br). Membro do Núcleo de Estudos Filosóficos (NEFIL) da 
UFPR. Autor dos livros “Ministério Público em Ação (4a edição – Editora 
Jusvpodium, 2014) e “A dimensão político-jurídica dos conselhos sociais 
no Brasil: uma leitura a partir da Política da Libertação e do 
Pluralismo Jurídico (Editora Lumen Juris, 2013).
Referências bibliográficas
ANDRADE, Lédio Rosa de. O que é o direito alternativo? Florianópolis: Conceito, 2008.
CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito Alternativo em Movimento. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005.
COELHO, Luiz Fernando. Teoría Crítica del Derecho. Curitiba: Editora Juruá, 2013.
FILHO, Roberto Lyra. O que é Direito? São Paulo: Brasiliense, 2006.
JUNIOR, Edmundo Lima de Arruda. Direito alternativo e contingência: história e ciência. Florianópolis: Editora IDA/Cesusc, 2007.
GOULART, Marcelo Pedroso; MACHADO, Antônio Alberto. Ministério 
Público e Direito Alternativo. São Paulo: Editora Acadêmica, 1992.
LUDWIG, Celso. Para uma filosofia jurídica da libertação: 
paradigmas da filosofia, Filosofia da Libertação e Direito Alternativo. 
Florianópolis: Conceito, 2006.
STRECK, Lenio. Entrevista na Revista do Instituto Humanitadas da 
Unisinos na versão online.Disponível em: 
http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2758&secao=305
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