sábado, 5 de julho de 2014

Oxalá, os baderneiros mudem o mundo! (*)



                                                      José Ricardo Alves



            Após manifestações contra a Copa das Confederações na região do Estádio Nacional na manhã do dia 14/06/2013, o secretário de Segurança Pública do DF, diante de jornalistas e curiosos, pronuncia: "É uma manifestação disfarçada de cunho social, mas na verdade é baderna. Prometemos medidas duras se houver protestos amanhã. O intuito não é coibir a democracia, mas a desordem".
            Segundo o jornal Correio Braziliense, por volta das 10h daquele dia, durante um protesto do Movimento dos Trabalhadores sem Teto (MTST) contra o dinheiro que foi gasto na reforma do estádio, cerca de 250 manifestantes bloquearam a passagem de carros, com pneus queimados, nos dois sentidos do Eixo Monumental, provocando congestionamentos e “causando o caos”.
            A declaração incisiva por parte do secretário do DF desperta questionamentos, e para podermos analisar sua fala, primeiramente, gostaria de apresentar a síntese feita pelo jurista Roberto Lyra Filho entre duas ideologias polarizadas do direito, o positivismo e iurisnaturalismo, resultando em uma visão dialética social do direito.
            A primeira é vista como a ordem estabelecida, e conforme o autor, é aquela “que se garante diretamente com normas sociais não-legisladas (o costume da classe dominante, por exemplo) ou se articula no Estado, como órgão centralizador do poder, através do qual aquela ordem e classe dominante passam a exprimir-se (neste caso, ao Estado é deferido o monopólio de produzir ou controlar a produção de normas jurídicas, mediante leis, que só reconhecem os limites por elas mesmas estabelecidos)”. Portanto, verifica-se que o direito se resume às leis já escritas produzidas pelo Estado, ou às normas sociais já engessadas dos grupos “donos do poder”.
            Enquanto isso, o iurisnaturalismo apela à existência, ainda com Lyra Filho, de “certos princípios fixos, inalteráveis, anteriores e superiores às leis e que nenhum legislador pode modificar validamente”. Essa ideologia é profundamente ligada a um ideal de Justiça superior, um conceito habitante de algum plano metafísico. E que, no entanto, frouxamente atrelada ao processo histórico e movimentos sociais, pode, quando materializada as leis, se render ao positivismo em nome de “particularização” de “preceitos naturais”; ou ainda, “ser pouco prática diante da oposição irresolúvel entre o ‘direito natural’ e o ‘direito positivo’, como se fossem duas coisas separadas”.
            Como define Roberto Lyra Filho, com vistas a superar esta antítese entre as ideologias elencadas, a síntese de que seria “a ‘essência’ do Direito, sem partir de nuvens metafísicas” ou de alguma ordem petrificada (e caduca), é resultante da dialética social e do processo histórico. E dentro deste, “o aspecto jurídico representa a articulação dos princípios básicos da Justiça Social atualizada, segundo padrões de reorganização da liberdade que se desenvolvem nas lutas sociais do homem”. Portanto, o direito “se apresenta como a positivação da liberdade conscientizada e conquistada nas lutas sociais e formula os princípios supremos da Justiça Social que nelas se desvenda”.
            E em articulação com o exposto, cabe aqui frisar o ambiente sócio-político característico da tensão inerente às lutas sociais, força motriz do direito, que é o regime democrático. Segundo a filósofa Marilena Chauí, a democracia é entendida como o “regime da soberania popular (do governo da maioria), porém com pleno respeito aos direitos das minorias, com pleno respeito aos direitos humanos”. E ainda, ela se desenvolve com a cidadania, que se define “pelos princípios da democracia, significando necessariamente conquista e consolidação social e política”, e que “exige instituições, mediações e comportamentos próprios, constituindo-se na criação de espaços sociais de lutas (movimentos sociais, sindicais e populares) e na definição de instituições permanentes para a expressão política, como partidos, legislação e órgãos do poder público”.
            Logo, em consideração à fala do secretário de Segurança Pública, percebe-se o embate ordem versus desordem, tão característica da democracia, em que as manifestações sociais (“baderna” para os positivistas) são expressões legítimas da luta social fundada na realidade cotidiana dos cidadãos, e que faz com que se alargue a fronteira do direito na busca da realização da Justiça Social. A repressão levada a cabo pelo Estado e pela ordem engessada inibe a constituição de maiores liberdade e igualdade. É preciso que elas avancem e que também sejam institucionalizadas no seio do Estado em um movimento dialético. Oxalá, os baderneiros mudem o mundo!

(*) O texto foi apresentado na Disciplina Sociologia Jurídica, do 2º semestre do Curso de Direito da UnB (julho 2014)

2 comentários:

  1. "... O intuito não é coibir a democracia, mas a desordem"...O intuito não é promover a desordem, mas exercer a democracia. Excelente reflexão, parabéns.

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