terça-feira, 1 de julho de 2014

O Direito de Lutar por Direitos: Em tempos de Copa, Sobre a Cidadania negada às Ruas (*)



João Vinicius Marques



Vem saltando às agendas dos movimentos sociais, das pequenas às grandes mídias e às conversas de bar o debate sobre a atuação repressiva e criminalizante do Estado às manifestações sociais que vem eclodindo no País – boa parte delas, insurgentes às intervenções e violações de direitos decorrentes da Copa. Em meio a essa discussão da criminalização dos movimentos sociais e dos direitos de protesto da população, outro lado desse debate vem questionando os impactos positivos e mesmo a pertinência das manifestações contra violações de direitos na Copa e megaeventos sobre o que seria o ambiente festivo, de comemoração nacional que esses grandes acontecimentos, e que os protestos refletiriam um complexo típico (ou melhor, tipificante) que teria o povo brasileiro em denunciar suas mazelas e desigualdades: desperdiçando um momento de grande festa nacional; expiando de forma um tanto conspiratória uma Fifa ou uma Copa do Mundo que se instalou em meio a contradições e problemas sociais que já existiam, que não foram por eles criados; que as autoridades públicas e governantes envolvidos no empreendimento estatal desses megaeventos não tem culpa; que o povo brasileiro não pode se privar de festejar, afinal, há muito o que comemorar etc, etc.
É verdade, os problemas de que falam os protestos contra as intervenções estatais e privadas no Brasil decorrentes da organização da Copa do Mundo e Olimpíadas não são novos, nem inventados por esses megaeventos. Afinal, remoções, falta de moradia, higienização, precarização do trabalho e da garantia integral na proteção e efetivação de direitos sociais e ação policial ostensiva na repressão aos segmentos trabalhadores e marginalizados não são novidades, né? Mas é por isso mesmo que as manifestações por direitos que se espalharam e vem enfrentando o projeto político da festa da Copa não estão falando apenas de Copa. Como trouxe o Comitê Popular da Copa na tal famosa Primavera brasileira de junho do ano passado, o cartão vermelho dos movimentos sociais se dirigia a uma Copa, a um projeto político e social de Copa em específico, e que, infelizmente, veio se consolidar como a alternativa política escolhida pelo Estado brasileiro em realizar: a Copa que viola Direitos. São, acima de tudo, desses Direitos ora violados – e não de Copa – de que esses movimentos estão falando.
Outro ponto também, da mesma forma que estamos falando de modo geral não de lutas socais contra a Copa, e sim por Direitos, é que essas lutas sociais por Direitos não surgiram ou vieram do nada, mas se situam principalmente na própria dinâmica social brasileira, profundamente marcada pela resistência institucional e política à garantia de direitos às populações marginalizadas e ao enfrentamento permanente travado pelos movimentos sociais no Brasil pela efetivação desses mesmos direitos, na figura de grandes conquistas sociais. Conquista social a muito ferro e luta, de sangue e de muita morte para a incorporação pelo sistema de marcos formais que continuam sistematicamente ameaçados por retrocessos no campo político e, o que é ainda mais dramático,  por violações e acontecimentos recorrentes na sociedade que provam, na prática social, o quanto estas conquistas estão não apenas permanentemente em xeque nas ruas e nas relações entre as pessoas, como indicam que as conquistas sociais tão arduamente disputadas precisam ainda serem conquistadas, talvez pelo longo caminho que ainda nos falta para consolidar uma cultura de direitos, seja perante a ampla sociedade, seja mesmo diante do Estado brasileiro, que deveria ser, pelo menos em tese, o grande protetor – e não o contra-agente – dos direitos previstos constitucionalmente e permanentemente reconstituídos na prática cotidiana e na vivência oprimida, mas resistente, das populações subalternizadas no país.
É assim que é necessário pontuar também que, na medida em que os direitos violados e as ameaças postas na atual conjuntura política às conquistas sociais dizem respeito a segmentos e populações específicas no país – aquelas marginalizadas, minoritárias, ou histórica e circunstancialmente oprimidas pela nossa tradição social e política autoritária, racista e elitista –, não é possível pensar as lutas sociais em torno dos Direitos violados no contexto da Copa como movimentações nacionais, ou de um uno e unívoco povo brasileiro, mas como movimentos populares estritamente identificados com uma parcela substancial, mas específica da grande população brasileira, que o conceito de nação brasileira recorrentemente tenta sufocar: a da imensa aglutinação de minorias subalternizadas no país e afetadas pela falta de reconhecimento político de sua cidadania, as minorias sofridas e violadas cotidianamente e das mais diferentes formas que, juntas, contadas e reunidas, constituem a grande maioria da população brasileira e que se vê recorrentemente amordaçada dentro dos valores nacionais que permite dizer a essa maioria de minorias que o momento de dar evidência ao seu sofrimento não é esse; que não há motivo para revolta contra uma nação; que, em uma unidade, não há ninguém contra ninguém, nem contra direitos, nem contra liberdades, não há porque levantar-se contra uma Copa, contra um país melhor. É uma outra perspectiva de organização política da população oprimida, outra perspectiva de construção de identidade que permite levantar-se e questionar: pra quem? Copa pra quem? País e nação para quem? São estas as questões e disputas que permitem questionar o discurso homogeneizante de nação e de país que está posto e que problematizam também, e do ponto de vista prático, social, que direitos são esses que estão previamente garantidos a todos, se permanece a pergunta, diante da heterogeneidade da população brasileira, a quem esses direitos estão garantidos e a quem a violação desses mesmos direitos favorece. Direito para quem.
Estas perguntas podem ser irrelevantes para quem virá sustentar a unidade do povo brasileiro, ou para quem virá dizer que isso não tem nada a ver nem com direitos, nem com Copa, ou para quem virá argumentar que a democracia já efetivou e garantiu o que essas manifestações insistem em dizer que ainda não chegou. A essas pessoas ou visões, é necessário dizer que essas manifestações talvez não se dirijam a elas, mas reivindiquem um espaço de reconhecimento e cidadania para pessoas e, acima de tudo, para condições de existência diferentes demais daqueles que reivindicam tão somente comemorar a Copa ou seu sentimento tacanho de nação. Para estes, a comemoração nacional à Copa, ou a manifestação contrária ao que se passa em torno dela será uma escolha, protegida dentro de seu lugar confortável e justo de seus direitos garantidos, suas condições de sobrevivência resguardadas, suas ostentadas liberdades individuais e cordialmente associativas também protegidas. Tudo certo. Para o outro lado e às margens desse grande sentimento de nação, outros tantos terão em relação à Copa e aos seus direitos o que historicamente tiveram, tem – e, atualmente, parece que continuarão tendo por suas vidas inteiras: a necessidade de resistir, construir e de lutar por seus direitos não garantidos como única opção.
Se há um lugar para as margens dentro do Direito, é imprescindível reconhecer como um direito fundamental o que, para as populações revoltadas com a imposição exploratória a suas próprias condições de vida, torna-se uma necessidade. Onde nem todo mundo dispõe do direito a ter direitos, é o mínimo do mínimo em um Estado pretensamente democrático garantir a todas e todos o direito de lutar. Para muitos ainda no Brasil esse será um direito compulsório, frente à impossibilidade de sobreviverem sem a necessidade de resistirem e de lutarem permanentemente pela proteção de sua própria dignidade, mas é em respeito e apoio a esses sujeitos políticos obrigados à luta pela sobrevivência que o direito e proteção às manifestações sociais devem ser garantidos, sempre, no Brasil.
 (*) O texto foi apresentado como atividade da disciplina Sociologia Jurídica, do 1º semestre, do Curso de Direito da Faculdade de Direito da UnB

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