Uma trajetória acadêmica: do agrarismo aos direitos socioambientais
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
UMA TRAJETÓRIA ACADÊMICA: DO AGRARISMO AOS DIREITOS SOCIOAMBIENTAIS. JOSÉ HEDER BENATTI MEMORIAL ACADÊMICO. Concurso para Professor Titular da UFPA. Instituto de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Pará. Belém, 2021, 127 p.
Perante a BANCA AVALIADORA, formada pelos professores titulares Antonio Gomes Moreira Maués (Presidente da Banca – UFPA); Carlos Frederico Marés Souza Filho (Examinador Externo – PUCPR); Maria Cristina Vidotte Blanco Tárrega, (Examinadora Externa – UFG); Antonio José de Mattos Neto (Suplente Interno – UFPA) Carlos Teodoro José Hugueney Irigaray (Suplente Externo – UFMT), foi apresentado e defendido o Memorial objeto deste Lido para Você. Também integrei a Banca, representando a Universidade de Brasília, na qualidade de Examinador Externo.
Claro que a Banca desde logo e apurados os pontos necessários, excedidos pelo desempenho, confirmou a promoção à classe de Professor Titular, uma vez que o docente demonstrou excelência e distinção em suas atividades e experiência de orientação ou coorientação em programas de pós-graduação stricto sensu, experiência em pesquisa e experiência em gestão acadêmica e/ou científica. O Memorial apresentado pela docente, contendo suas atividades relevantes de ensino, pesquisa e gestão acadêmica e científica, convertido em base para uma verdadeira tese sobre temas, noções e categorias adensadas em seu percurso científico, atesta o pleno atendimento desses requisitos e foi aprovado por unanimidade por essa Comissão.
Tal como eu próprio em meu tempo, aprecio sobremaneira a habilitação à titulação por meio de memoriais. O modelo favorece realizar em primeira pessoa a evocação do percurso acadêmico e carregá-lo de subjetividade, realmando o itinerário, no que Boaventura de Sousa Santos, que abona esse método, denomina de entidade mista, combinando ensaio autobiográfico sobre a história científica pessoal e a análise epistemológica das questões abordadas numa articulação entre memória (reconstrução subjetiva dos elementos que a constituem, memória da memória, diz Santo Agostinho, em Confissões) e a invenção, dimensão explicativa do texto (SANTOS, Boaventura de. Sociologia na Primeira Pessoa: Fazendo Pesquisa nas Favelas do Rio de Janeiro. OAB Revista da Ordem dos Advogados do Brasil. São Paulo: Editora Brasiliense. Nº 49, p. 39-79, Primavera/1988).
Não que a candidatura à titularidade, por meio da tese tradicional, deixe de se revestir de força expletiva, mesclando o estilo literário e o sistemático acadêmico. Aqui mesmo na UFPA, em 1988, Roberto Armando Ramos de Aguiar, concorreu à titulação por provimento livre, para o Cargo de Professor Titular de Departamento de Propedêutica e Direito Comercial, na matéria de Filosofia do Direito.
A tese – Incapacidade: Proteção ou Repressão? Fundamentos das Incapacidades no Direito Positivo: em Busca de uma Reconceituação – carrega, o que é próprio do grande pensador, essa elegância da entidade mista, a que alude Boaventura de Sousa Santos e oferece ineditismo presente na projeção de certos conceitos, para dimensões muito além daquelas pensadas por seus formuladores originários ou dos contextos nos quais foram também originalmente esboçados. Conforme também eu o faço, relativamente ao conceito de anomia prorrogando a sua apropriação até em sentido paradoxal ao encontrado nos autores originários, aliás, muito bem percebido pelo Memorialista ao recuperar em livro meu, esse alcance, de algum modo útil para seus primeiros estudos avançados relativos à hipótese sociológica do pluralismo jurídico.
Mesmo quando, caso de Aguiar, permanece sem qualquer divulgação nos repositórios empoeirados das prateleiras acadêmicas (aquelas produzidas antes da era das digitalizações, que agora, ao menos, se armazenam nas nuvens), acessíveis aos bem aquinhoados que fraternalmente tenham recebido cópias mimeografadas ou obtidas dos originais datilografados. Foi assim que a recebi do próprio Roberto, carinhosamente, quando o encontrei pela primeira vez, em Belém, por isso mesmo, podendo referi-la no ensaio que escrevi – O que é Justiça: Uma abordagem dialética, de Roberto Aguiar – para integrar a recentíssima edição crítica de seu O que é Justiça, publicada em 2020, pelas Edições do Senado Federal, nº 279. E há pouco, em maio, poder extrair do impulso de reconceituação imprimido pelo Autor ao tema de instituto demarcado do Direito Civil, para expandi-lo em fundamento da ação cível originária que com Alfredo Attié Jr, Renato Janine Ribeiro, Roberto Romano da Silva, Pedro Dallari, Alberto Toron e Fábio Gaspar, com o patrocínio dos advogados Roberta Freitas Attié e Mauro Menezes, pedindo ao STF para reconhecer a incapacidade civil do Presidente da República de continuar a exercer o cargo e as funções dele decorrentes.
A intenção do Autor está perfeitamente legitimada, afinada com uma opção metodológica que tem as melhores recomendações. Na sua intenção, com perfeito assento epistemológico, o Memorial é simultaneamente, seguindo Boaventura de Sousa Santos, autobiografia (aquilo que fiz) e auto-retrato (aquilo que sou e como penso), algo que reflete, em preocupação comum, a justificativa oferecida por Descartes, em sua obra mais célebre: “o meu desígnio não é ensinar aqui o método que cada qual deve seguir para bem conduzir sua razão, mas apenas mostrar de que maneira me esforcei por conduzir a minha”. Diz Benatti:
“Para mim, o memorial é mais do que um documento escrito no qual se pleiteia algo, vai além de descrever todas as atividades desenvolvidas na minha carreira acadêmica e intelectual. É uma reflexão consciente e inconsciente, um exercício de memórias afetivas e psicológicas, assim como de análise crítica dos fatos e os pensamentos científicos que marcaram minha trajetória acadêmica. É o momento de reconhecer, agradecer e demonstrar minha gratidão às pessoas que marcaram minha vida – e desde já apresento minhas escusas se não citei todas e todos.
Escrever o memorial é reconhecer que, ao ser uno, também sou “composto” por partes e o resultado de meus pensamentos e ações dependem do meu estado físico, racional, psicológico e espiritual. Para cada uma das “partes”, temos que ter um cuidado especial, uma atenção específica, ao mesmo tempo em que todas “partes” estão interrelacionadas e uma influencia a outra. O nosso envolvimento com o ambiente e as pessoas são marcantes e deixam cicatrizes. Daí o fato de a pandemia atual vir exatamente para nos avisar da complexidade da vida, de como as coisas estão conectadas, de como nossos atos individuais repercutem no outro e no todo, razão por que devemos superar nosso dualismo do racional vs emocional”.
O Memorial repercute todo esse enlace de saber-sentimento tecido por racionalidades sensíveis (Maffesoli) ou poéticas (Martha Nussbaum), que possam animar compromissos de solidariedade, em linguagem inclusive pastoral próprias dos primeiros engajamentos de Benatti com a ação emancipatória, libertadora, agora se reencontrando depois de um purgatório pontifício, com a teologia poética do Papa Francisco, que a mim também me tem tocado, não fosse em membro ativo da Comissão Justiça e Paz de Brasília.
Como disse, me vejo tocado pelas exortações do Papa Francisco não apenas pela incidência pastoral, mas porque em seus discursos e publicações tenho encontrado fonte consistente para estabelecer fundamentos paras as minhas preocupações mais insistentes com os temas da Democracia, da Cidadania, da Justiça e dos Direitos. Aqui, no espaço da Coluna Lido para Você, têm sido frequentes as citações: http://estadodedireito.com.br/direito-sanitario/ .
Em http://estadodedireito.com.br/justicia-poetica-la-imaginacion-literaria-y-la-vida-publica/, de modo muito direto, porque dirigindo-se a juízes e juristas: “Em mais uma de suas proverbiais intervenções, agora aos juízes, em encontro remoto com juristas das Américas e da África – Primeiro Encontro virtual dos Comitês para os Direitos Sociais da África e da América – o Papa Francisco afirmou: “uma sentença justa é uma poesia que repara, redime e nutre” (https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2020-11/papa-francisco-juizes-africa-america-sentencas.html). “Nenhuma sentença pode ser justa, – ele ainda afirmou – se gera mais desigualdade, mais perda de direitos, indignidade ou violência”.
O que considero instigante nessa exortação, é o Papa investir na convocação que faz a uma dimensão poética que imante a crosta asséptica da atuação judicante: “O poeta precisa contemplar, pensar, compreender a música da realidade e moldá-la com palavras. Vocês juízes, em cada decisão, em cada sentença, estão diante da feliz oportunidade de fazer poesia: uma poesia que cure as feridas dos pobres, que integre o planeta, que proteja a Mãe Terra e todos os seus descendentes. Uma poesia que repara, redime e nutre. Não renunciem a esta oportunidade. Assumam a graça a que têm direito, com determinação e coragem. Estejam ciente de que tudo o que contribuírem com sua retidão e compromisso é muito importante”.
Para o Papa, eu disse na Coluna, e também em texto sobre a Encíclica Fratelli Tutti (http://estadodedireito.com.br/papa-francisco-carta-enciclica-fratelli-tutti/), poesia não é apenas declamar, incluir nas sentenças versos que adornem o discurso, se resumindo a “um punhado de palavras mortas”. Francisco quer encorajar, pois, a atitude sensível na prática e na atitude dos juízes e dos operadores do Direito: “façam de sua poesia uma prática e assim vocês serão melhores poetas e melhores juízes. E jamais esqueçam que uma poesia que não transforma é apenas um punhado de palavras mortas”.
Encontro no percurso de Benatti, essa mesma atitude, simultaneamente política e teórica, embaladas em sensibilidade. “O que me encorajou a continuar os estudos jurídicos – mesmo com tantas disciplinas dogmáticas e a visão positivista predominante em aceitar a lei como verdade absoluta e única fonte do direito – foi ter lido, no segundo semestre de 1982, os livros O que é direito, de Roberto Lyra Filho, e O que é ideologia, de Marilena Chauí. A partir daí estabeleci contato, via carta, com o professor Roberto Lyra Filho, comprei todos os seus livros disponíveis, inclusive os de poesia; também assinei Direito e Avesso: Boletim da Nova Escola Jurídica Brasileira, lançada em 1982, que tinha o professor José Geraldo de Souza Júnior como diretor, Marilena Chauí, Raymundo Faoro e Roberto Lyra Filho como conselheiros editoriais; infelizmente a revista parou no terceiro número. Ali se definia a Nova Escola Jurídica Brasileira (NAIR), como aquela que buscava reexaminar o direito, “[…] não como ordem estagnada, mas como a positivação, em luta, dos princípios libertadores, na totalidade social em movimento. O Direito, então, há de ser visto como processo histórico.” (LYRA FILHO, 1982a, p. 13)”.
Curiosamente, a primeira apresentação pública desse livrinho de Roberto Lyra Filho, aconteceu em Belém, durante o I Simpósio Paraense de Filosofia do Direito, organizado pela OAB do Pará, ali onde o professor fundador da Nova Escola Jurídica Brasileira, a NAIR, era tão irradiantemente acolhido por alguns professores influentes na formação da atuação geração acadêmica da UFPA, entre os quais Benatti. Refiro-me sobretudo a Roberto Santos, José Carlos Castro, Paulo de Tarso Klautau e em geração mais nova Paulo de Tarso Ribeiro, e entre eles de modo singular e muito influente, Roberto Aguiar, citados com respeito pelo autor do Memorial.
Posso dizer que essa espacialização epistemológica permitiu a arquitetura em bases muito sólidas, para armar, a meu ver, as duas pilastras mais bem assentadas no atual, dessa escola paraense da crítica jurídica. Aludo exatamente, a Antonio Gomes Moreira Maués que preside esta sessão e a José Heder Benatti. E desde muito jovens, já na graduação. Foram eles que, dirigentes do Centro Acadêmico do Curso de Direito, promoveram minha ida a Belém, nessa época. O Memorial registra esse momento inaugural:
“Por indicação do próprio professor Lyra Filho, entrei em contato com o professor José Geraldo de Sousa Júnior, que me enviou sua dissertação de mestrado, Para uma Crítica da Eficácia do Direito: anomia e outros aspectos fundamentais, de 1981. Publicada pela Sérgio Fabris em 1984 a dissertação apresenta uma crítica sobre a relação existente entre eficácia ou efetividade e validade das normas jurídicas, demonstrando que anomia não é a falta de norma, como comumente a dogmática jurídica fundamenta, mas é o questionamento do direito, uma disputa para a consolidação do novo direito, ou seja, uma relação plural na consolidação dos direitos sociais, realizando uma crítica ao direito positivista.
Posteriormente, em 1983, a convite do Centro Acadêmico de Direito, o professor Sousa Júnior veio a Belém para dar uma palestra sobre a nova concepção do direito, apresentar a discussão sobre um novo direito, introduzindo-nos ao debate sobre as relações entre Direito e Justiça, Direito e ideologia, Direito e conflito social, além de divulgar o Boletim Direito e Avesso.
Um ponto metodológico e teórico importante é que a partir destes e outros autores que citarei a seguir se realizava uma crítica ao direito por “dentro”, questionando sua legitimidade e ampliando a compreensão sobre o que é Direito, pluralismo jurídico, justiça etc. Não era somente uma visão crítica “de fora”, que a Sociologia, Ciência Política, Filosofia e Antropologia já realizavam havia algum tempo, mas uma crítica ao positivismo jurídico, instigando a pesquisar as contradições do Direito, em constante modificação, pois no processo histórico e nas suas contradições sociais e normativas o Direito se transforma e avança. Na superação do dogma jurídico, as críticas realçavam que o Direito nunca é; antes se trata de um vir a ser construído nas lutas sociais e na práxis libertadora. Portanto, a crítica interna realizada ao discurso “científico” positivista dominante demonstrava a necessidade de construir um discurso crítico, coerente, fundamentado e inserido na realidade.
Além do Boletim e o livro da coleção Primeiros Passos da editora Brasiliense (LYRA FILHO, 1982b), dois outros textos do Lyra Filho foram importantes para ampliar minha compreensão sobre o fenômeno jurídico: Por que estudar direito, hoje? e Pesquisa em que Direito? (LYRA FILHO, 1984, 1988). Eram textos voltados aos estudantes e alertavam que estudo do Direito é uma ciência não dogmática, de modo que a falsa neutralidade do Direito era uma forma de disfarçar seu comprometimento de classe. Fazia severa crítica aos “manuais didáticos” que “ensinavam errado” o Direito, apresentando uma pseudociência que, na prática, transformava as leis em dogmas para assegurar o status quo existente. No texto Pesquisa em que Direito?, define o que é a NAIR pelo que não era, apresentando as cinco proposições negativas estruturais da Nova Escola: não era um sistema de dogmas; não se tratava de uma adaptação de qualquer modelo anterior, nacional ou estrangeiro; não é um partido político ou clube jacobino; não é um conjunto de intelectuais narcisistas; não é um grupo de gabinete, mas uma construção teórica que se daria no ir-e-vir com as demandas sociais e a práxis avançada (LYRA FILHO, 1984, p. 8-9)”.
Considero que é desse encontro que vai se instalar na cogitação teórica de Benatti o elemento epistemológico mais radical que vai permitir a cerzidura de sua elaboração hermenêutica: a hipótese teórico-política do pluralismo jurídico. Ela vai ser a chave de articulação da síntese de seu percurso, nas ações de intervenção no campo político da defesa de direitos e no campo teórico de orientação dessas ações, consolidadas mais organizadamente em sua dissertação de mestrado.
Segundo o Memorial e em diálogo com os autores de sua mais estreita interlocução:
“Resumidamente, a dissertação de mestrado que defendi em 1996 é a síntese da discussão teórica e a experiência empírica observada nas comunidades tradicionais que tive oportunidade de conhecer. Houve um avanço na compreensão da diversidade de apossamento, pois no início do mestrado eu tratava a questão no âmbito do pluralismo jurídico e a concepção de posse era a agrária.
A discussão sobre pluralismo jurídico e o diálogo com o Boaventura de Sousa Santos, Roberto Lyra Filho, Roberto Aguiar e José Geraldo de Sousa Júnior, que adotam a concepção de “O Direito Achado na Rua”, possibilitaram uma abertura e diálogo de um campo maior de compreensão na interpretação das normas jurídicas que comumente estavam fundadas em uma visão tradicional e positivista, enquanto os autores acima citados possibilitam uma concepção crítica do Direito. O debate sobre o humanismo emancipatório e o direito como liberdade vão se concretizar no “Direito Achado na Rua” (SOUSA JÚNIOR, 2019).
Do mesmo modo, coloca-se o debate sobre o pluralismo jurídico, definido como sendo “a multiplicidade de práticas existentes num mesmo espaço sócio- político, interagidas por conflitos ou consensos, podendo ser ou não oficiais e tendo sua razão de ser nas necessidades existenciais, materiais e culturais” (WOLKMER, 1995, p. 186)”.
Claro que em Benatti, como de resto, nos mais consistentes formuladores no campo da teoria crítica, a resultante epistemológica é sempre dialeticamente síntese de implicações simultaneamente sociais e teóricas (cf, o meu Sociologia Jurídica: Condições Sociais e Possiblidades Teóricas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002) e, sendo certo que os apelos de novas questões o tenham mobilizado para construir enunciados novos para temas emergentes de contextos paradigmáticos inéditos em sua interpelação, não significa que aqueles temas, noções e categorias agora pressupostos, tenham perdido sua radicalidade.
Assim, a categoria pluralismo jurídico, então assimilada na tensão entre direitos e estruturas de jurisdição, estatais, sociais, interlegais, e portanto figuradas em cartografias temporais-espaciais datadas, não permaneçam mimetizadas na apreensão das novas realidades portadoras de outras atribuições de sentido.
É certo que embora não se decline na caracterização de propriedade, tema atual da reflexão de Benatti, as variantes vocativas ou ablativas do pluralismo jurídico inerente a suas possíveis locuções. Mas ele está aí, agora expandido como agência instituinte de direitos. Se não, como aferir em seu alcance essa assertiva de Benatti (p. 72):
“É dentro deste pressuposto que se deve compreender a discussão sobre a propriedade. Se durante séculos o direito de propriedade privada rural esteve assentado na proteção da propriedade como um bem patrimonial, passando depois à proteção da propriedade como um bem de produção (concepção produtivista), hoje o imóvel rural encontra amparo jurídico no binômio: uso tradicional agrário e proteção dos recursos naturais.
Contudo, a propriedade comum não se limita ao binômio produtivista e proteção ambiental. Pode-se dizer que a propriedade comum é “[…] um arranjo jurídico primário, porque aqui é tida uma comunidade que vive certos valores e os protegem, valores esses peculiares, ciosamente preservados ao longo de gerações, valor que merece nosso respeito e nossa compreensão” (GROSSI, 1992, p. 271). Resumindo, a legitimação da propriedade comum está na capacidade de o grupo social se apropriar de determinados recursos naturais e, com o passar do tempo, construir regras de uso e manejo dos recursos naturais a serem respeitadas pelos membros da comunidade.
A experiência brasileira no reconhecimento das terras tradicionalmente ocupadas (ou territórios tradicionais) levou à criação de diferentes estatutos dominicais e, consequentemente, de diferentes categorias fundiárias. Na prática, temos as terras indígenas – TI; os quilombos; as reservas extrativistas (terrestres e marítimas) – Resex; as reservas de desenvolvimento sustentáveis – RDS; os projetos de assentamentos agroextrativistas – PAE; e os projetos de desenvolvimento sustentáveis – PDS.
Apesar de se tratar de categorias fundiárias de dominialidade pública, na lógica legal do Estado cada categoria estabelece suas próprias regras de utilização (usus), desfrute (usus fructus), disposição material (abusus) e disposição jurídica (alienatio), fortemente marcadas pela concepção civilista do direito de propriedade e que têm repercussões direta na autonomia dos povos e comunidades tradicionais no usufruto de seus territórios tradicionais.
A concepção civilista de direito de propriedade aplicada aos territórios tradicionais acaba criando uma tensão entre os grupos sociais e a estrutura administrativa governamental responsável pela gestão da unidade fundiária (INCRA, Instituto Chico Mendes e SPU), pois cada órgão público tem uma concepção distinta de manejo dos recursos naturais sem levar em consideração a cosmovisão dos povos e comunidades tradicionais”.
E mais nitidamente na cartografia elaborada pelo próprio autor, como se vê, na p. 73, com as interconexões entre grupos sociais, formas jurídicas e enquadramento legislativo em rumo de reconhecimento determinado pelo apossamento tradicional:
No quadro abaixo, diz o Autor, estão “sistematizamos as diferentes formas jurídicas de reconhecimento das terras tradicionalmente ocupadas no Brasil, enumerando as categorias, as formas jurídicas de apropriação da terra e dos recursos naturais renováveis – excluindo o mineral – e a legislação que lhe dá suporte para criação”, incluídos nesse quadro os Povos Indígenas, com posse permanente, usufruto exclusivo dos recursos naturais. Domínio da União. Terra indígena. Comunidades quilombolas, Propriedade Comum. Titulação definitiva para a associação. Quebradeiras de coco babaçu, com uso comum dos babaçuais, assegurado somente a coleta do fruto. Regime de economia familiar e comunitária. Propriedade privada ou terra pública. Comunidades Tradicionais, Resex, RDS (Unidade de Conservação) ou PAE e PDS (assentamentos). Domínio público, com usufruto exclusivo concedido às comunidades tradicionais. Posse permanente. Fundo de pasto, Direito real de concessão de uso. Uso coletivo da terra para pasto de animais de médio e grande porte. Domínio Público (Estadual ou Federal). Faxinalense. Uso coletivo da terra para produção animal e conservação. Domínio Público (Estadual ou Federal)
Para o Autor, ainda que o arcabouço jurídico que ampara os povos e comunidades tradicionais tenha sido elaborado após a Constituição Federal de 1988, o que legitimou o reconhecimento das terras indígenas, dos quilombos, assim como a criação de reservas extrativistas, reserva de desenvolvimento sustentável e assentamentos ambientalmente diferenciados, buscando compatibilizar as reivindicações das comunidades tradicionais, um processo ainda fortemente marcado por uma concepção intervencionista e de certo modo tutelar da gestão.
“As principais conclusões expostas na tese de doutorado – ele esclarece – foram que os pressupostos da propriedade rural brasileira, em dado momento histórico, desenvolveram-se não como uma única forma de acesso à terra – a propriedade sesmarial que precisa ser confirmada pelo rei de Portugal –, mas como distintas propriedades (sesmarial e senhorial), que coexistiram inicialmente em dois “ordenamentos jurídicos” no mesmo espaço geográfico, porém, advindas de fontes distintas. Sob a égide jurídica, foi construído um discurso jurídico que legitimou o apossamento primário da terra, fundamentado tanto na concepção de propriedade de John Locke, na aplicação da regra odia restringi, que admitia a ocupação como um dos modos de aquisição da propriedade, quanto no reconhecimento do costume como uma fonte do direito, prevista na Lei da Boa Razão e nas Ordenações Filipinas. A propriedade senhorial originou-se pelo apossamento primário da terra, ou seja, pela posse e não pela transferência oficial do bem público para o patrimônio particular, como ocorreu no sistema sesmarial. Outra conclusão importante está em como o direito de propriedade é o produto da relação entre a forma de apropriação e exploração do solo e da floresta, das relações sociais estabelecidas e das normas jurídicas que legitimam todo o conjunto. Logo, parte dos problemas ambientais na contemporaneidade está diretamente ligada às regras historicamente construídas de legitimação do direito de propriedade. Como afirma Carlos Frederico Marés de Souza Filho (2003, p. 117), “a propriedade é um direito criado, inventado, construído e constituído””.
É a essa circuição a que alude Roberto Lyra Filho e que nas condições sociais glocalizadas, abriu horizontes para desvendar num real opaco, o enunciado expletivo o seu movimento de exteriorização de si, por impulso do existencial humano que lhe provoca o movimento. Na afirmação de Marés, sobre a invenção, construção e constituição de um modo de apropriação, foi preciso a dialética material de um Marx para divisar esse movimento, antes imperceptível, ainda que saltando aos olhos com a descrição de Moisés no Gênesis, cinco mil anos antes, sobre a passagem do dom, da dádiva, para a apropriação possessiva e para a escravidão (47: 20-21) “Então José comprou para o Faraó todos os terrenos do Egito, pois os egípcios, forçados pela fome, venderam seus terrenos. Desse modo, todo o país tornou-se propriedade do Faraó. Quanto aos homens, o Faraó os tornou escravos de uma extremidade à outra do território do Egito”.
Nem Leão XIII, proclamando a rerum novarum e a remissão do humano alienado pelo capital, se deu conta de que a propriedade privada não é um direito natural, é uma coisificação, uma alienação, e no extremo, como divisa Francisco, seu sucessor atual, o esterco do diabo, enquanto promove a idolatria do dinheiro. Por isso que ele convoca os movimentos sociais a se rebelarem: “Vós, os mais humildes, os explorados, os pobres e os excluídos, podeis e fazeis muito. Atrevo-me a dizer que o futuro da humanidade está, em grande medida, nas vossas mãos, na vossa capacidade de vos organizar e promover alternativas, criativas na busca diária dos ‘3 T’ (terra, teto e trabalho), e também na vossa participação como protagonistas nos grandes processos de mudança nacionais, regionais e mundiais. Não se acanhem! Vós sois semeadores de mudanças” (Discurso do Papa Francisco no II Encontro Mundial dos Movimentos Populares. Brasília: Edições CNBB. Coleção Sendas vol. 4, 2015, p. 9-10).
Daí a necessidade de superar os problemas causados pelo confronto entre o direito de propriedade e a proteção dos recursos naturais, como se fossem dois aspectos separados e independentes.
A estrutura tradicional do direito de propriedade está fundamentada na concepção produtivista que exclui os aspectos sociais e ambientais. A propriedade rural não foi utilizada como um instrumento de inclusão social; pelo contrário, excluíram todos aqueles que não estavam “próximos” ao poder governamental. A meu ver, é preciso entender que a concepção do direito de propriedade pode ser um importante instrumento para assegurar a proteção ambiental. Por conseguinte, será necessário rever as premissas advindas dos séculos XIX e XX. É indispensável superar a visão conservadora do direito de propriedade, que privilegiou os poderes absolutos e exclusivos em detrimento das novas bases de legitimidade e funcionalidade da propriedade, previstas nos mandamentos constitucionais.
Os poderes dominiais que estamos buscando não se fundamentam no conceito individualista, mas no conteúdo do direito que comunga com a função socioambiental da propriedade. A função social e ecológica da propriedade é efetivada quando os serviços ambientais do ecossistema estão assegurados e o desenvolvimento das atividades agrárias mantém em um grau satisfatório as funções ecológicas”.
Estou certo de encontrar nessa ordem de problematização, o arranque interrogante de um pensamento potente, que se expresse num percurso simultaneamente avalizador de um percurso que soube designar as interpelações do real filosofante (Karel Kosik) e captar o salto que se dá do empírico para o categorial. Naquela “circuição entre fatos e ideias”, mostra Roberto Lyra Filho num dos livros estudados pelo Autor (Pesquisa em QUE Direito? Brasília: Edições Nair Ltda, 1984) os quais, “dialeticamente abordados, configura-sde, na epistemologia científica, de acordo com o trânsito constante entre as partes e o Todo, entre os fenômenos e a teoria global, entre as estruturas significativas e o Ser, que nela se realiza, em movimento e enlace totalizador. Sem a totalização, os fatos permanecem desarrumados; com a arrumação cerebrina, os fatos desparecem e o esquema teórico se torna falsificador e inútil” (p. 7).
O Memorial dá conta da contínua interpelação do real impulsionando o curriculum vitae do candidato à titulação. “A realidade se fazendo conhecer” ele diz, no diálogo com os sujeitos, seus protagonismos, suas lutas por reconhecimento e suas reivindicações instituintes.
É no seu encontro com Chico Mendes, em Brasília (eu assisti, então Chefe de Gabinete do Reitor Cristovam Buarque, de destacado para dar apoio à realização, no espaço da Universidade de Brasília, em 1985, o 1º Encontro Nacional dos Seringueiros, que se dará o aprendizado do salto do real para se armar em conceito, conforme ele designa em nota (nota 22):
“A proposta de criação da reserva extrativista vai ser oficializada na realização do 1o Encontro Nacional dos Seringueiros, em 1985, em Brasília. Os seringueiros buscavam assegurar suas colocações, ameaçados pela expansão da pecuária, pela especulação fundiária e pelo desmatamento no estado do Acre. O Artigo 9º, Inciso VI, da Lei 6939/1981 (Política Nacional de Meio Ambiente) foi alterado para incluir a reserva extrativista como um dos instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiente ao estabelecer que “[…] a criação de espaços territoriais especialmente protegidos pelo Poder Público federal, estadual e municipal, tais como áreas de proteção ambiental, de relevante interesse ecológico e reservas extrativistas”. O Executivo Federal incorporou a proposta com a edição do Decreto 98897, de 30 de janeiro de 1990, definindo as Reservas Extrativistas como “espaços territoriais destinados à exploração autossustentável e conservação dos recursos naturais renováveis por população extrativista” (art. 1º)”.
Até então o conceito não existia, assim como não existia o vocábulo estado até a modernidade, ao menos até Maquiavel semantizar o processo de centralização de poder político num mundo ainda feudal ou fragmentado em reinos e principados até se estabilizar como descritor da realidade funcional-burocrático-legal que se realiza em meados do Século XIX na Europa, estudada nas universidades sob a categoria de estado nacional, histórica, social, política e juridicamente datada.
Nesse Encontro, lembro da jovem antropóloga Mary Alegretti insistindo em interessar os acadêmicos do Departamento de Antropologia que estudar seringueiros e o processo extrativista de seu modo de produção, era de interesse das ciências sociais e não da arqueologia. Que o objeto de estudo era factível no presente e não localizado no passado das relações sociais de produção. O que houve de dificuldade para ela fazer tal demonstração, afinal, validada por sua bela tese, compensou o reconhecimento internacional por seus estudos, desenvolvidos à luz da realidade movida pelos extrativistas, o que lhe valeu em 1990 o Prêmio Global 500, da ONU, uma espécie de Nobel na área do meio ambiente.
Disso se deu conta o Reitor Buarque que logo convidou Osmarino Rodrigues e outras lideranças sindicais do Sindicato Rural de Xapuri que haviam participado do 1º Encontro para se investirem na função de docentes residentes não acadêmicos exatamente para exibirem, com sua presença, narrativas e representações, romper com a invisibilidade de sua existência, modos de apropriação, usos e vivência de valores.
Exatamente aí reside o ponto de inflexão que o Autor imprime à sua leitura da realidade, efetuando no salto doutoral que realizou a base de sua reconhecida contribuição para o conhecimento dos temas sobre os quais afirma a sua titularidade acadêmica. Vale dizer, reorientar seus estudos que “estavam preocupados na consolidação do direito ao território, e aos poucos também ir direcionando as pesquisas na discussão da autonomia no uso dos recursos naturais nos territórios tradicionais reconhecidos pelo Estado brasileiro” (p. 61).
Anoto duas ordens de elaboração muito relevantes para assentar os pontos dessa clivagem.
A primeira diz respeito ao reconhecimento da categoria comunidade tradicional (ou populações tradicionais). Para o Autor,
“Reconhecemos que a categoria comunidade tradicional (ou populações tradicionais) seja controversa nas Ciências Sociais. Por isso trabalhamos como um conceito aberto, que possui os seguintes elementos caracterizadores: a ligação com um território determinado; a existência de uma organização social e política; o estabelecimento de relação com a natureza e o uso dos recursos naturais renováveis; existência de um pequeno grau de envolvimento com o mercado e a sociedade envolvente (ALMEIDA, 2004; ARRUTI, 2006; DIEGUES, 1994).
A escolha pela denominação de posse agroecológica e não posse agrária diferenciada, agroextrativista, agroambiental ou comum, ocorreu porque entendemos que a posse das comunidades tradicionais vai além das atividades agrárias desenvolvidas ou das práticas agroextrativistas. Os elementos natural, cultural e social são importantes para entender como ocorre a posse da terra e a utilização dos recursos naturais e suas relações sociais. Outro aspecto importante nesse arranjo social é o território natural, o espaço ecológico no seu conjunto de ambientes naturais (solo, cobertura vegetal e recursos hídricos – terra firme, floresta, várzea, lago, mar etc.).
Com o avanço da discussão teórica sobre a posse agroecológica e a análise jurídica de como a categoria se expressa na criação da reserva extrativista, assentamento agroextrativista e reconhecimento do quilombo, outras preocupações vão surgir, agora relacionadas à autonomia no uso e manejo dos recursos naturais nos territórios tradicionais.
O primeiro ponto a chamar atenção é que, por uma questão didática, o processo de consolidação dos territórios tradicionais dos povos e comunidades tradicionais sob a responsabilidade do Poder Público (órgãos fundiários ambientais e agrários) pode ser dividido em dois momentos distintos: o direito ao território e direito territorial.
O direito ao território trata dos mecanismos de acesso ao território tradicional, materializado no reconhecimento de direito à terra indígena, na demarcação do quilombo, na criação do assentamento ou da reserva extrativista para assegurar as garantias formais ao território, ou seja, relacionada ao domínio e suas limitações – plena ou parcial, conforme disposto no art. 14 da Convenção 169 da OIT, no art. 231, § 1º da Constituição Federal, no art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), leis e decretos infraconstitucionais. Trata-se da transferência total ou parcial dos poderes dominicais do Estado para os povos e comunidades tradicionais.”.
É dessa clivagem que o Autor vai trazer para a centralidade de sua reflexão e para inferências estratégicas de reconhecimento das reivindicações operadas pelos movimentos sociais, a noção de propriedade coletiva, pedra angular dessa reflexão.
Pois, como ele afirma (p. 62), “ao analisar a diversidade de institutos fundiários que asseguram os direitos territoriais dos povos e comunidades tradicionais, as diferentes normas administrativas que foram elaboradas para definir os procedimentos de reconhecimento do direito ao território tradicionais, os diferentes órgãos responsáveis para responder às demandas surge o questionamento se: se tratava de distintos institutos jurídicos que possuíam a mesma legitimação para o reconhecimento dos direitos territoriais? O que é a propriedade coletiva ou comum que está sendo reconhecida no Brasil?”.
A segunda ordem de elaboração se refere redesignar, para efeitos de reconhecimento das reivindicações, o conceito de dominial. A partir de estudos para fornecer subsídios à formulação de políticas públicas para a regularização fundiária e manejo dos recursos naturais na várzea a questão da dominialidade da terra de várzea, as possibilidades de regularização fundiária e o manejo dos recursos naturais realizados pelas comunidades tradicionais ribeirinhas, o Autor constata que a dominialidade está intrinsecamente ligada à questão de quem é titular da terra que de cada quatro a seis meses fica submersa na água. Portanto, para verificar se a várzea pode ser enquadrada como um bem público ou privado e se pode ser apropriada privadamente. Ligada a essa discussão está a definição de sua natureza jurídica e seu conceito.
Assim, ele considera que “definindo a dominialidade, pode-se discutir o aspecto da regularização fundiária e os instrumentos jurídicos mais adequados para superar a indefinição da situação jurídica de quem se apossou dos recursos naturais da várzea, ou seja, quais são os direitos de quem ocupa a terra de várzea e dos lagos. Por ser pública e de uso comum, não ocorre a transferência da dominialidade da várzea, que somente translada a cessão de uso do solo com permissão de utilização dos recursos naturais. O acesso jurídico ao solo e aos recursos naturais da várzea se dará por meio de institutos publicísticos, tais como concessão de uso ou concessão de direito real de uso. Outra forma de transferência é a afetação da área em unidade de conservação ou assentamento”. Daí a conclusão de que “o processo de regularização fundiária deve levar em conta duas premissas básicas para minimizar os impactos ambientais: a) considerar a integridade ecológica do conjunto de ambientes da várzea (solo, cobertura vegetal e recursos hídricos); e b) os diferentes padrões de agricultura e manejo da floresta empregados pelos ribeirinhos, ou seja, a forma de apossamento e uso dos recursos naturais”.
Com o apoio em Marés, já citado, o Autor vê “a necessidade de superar os problemas causados pelo confronto entre o direito de propriedade e a proteção dos recursos naturais, como se fossem dois aspectos separados e independentes”. Para ele, “a estrutura tradicional do direito de propriedade está fundamentada na concepção produtivista que exclui os aspectos sociais e ambientais. A propriedade rural não foi utilizada como um instrumento de inclusão social; pelo contrário, excluíram todos aqueles que não estavam “próximos” ao poder governamental”.
Radica aí a novidade que se coloca como uma virada constituinte para a reposição de todos os fundamentos teórico-políticos que devem ser considerados no enquadramento dominial observado sob o ângulo da função socioambiental. Para o Autor, “é preciso entender que a concepção do direito de propriedade pode ser um importante instrumento para assegurar a proteção ambiental. Por conseguinte, será necessário rever as premissas advindas dos séculos XIX e XX. É indispensável superar a visão conservadora do direito de propriedade, que privilegiou os poderes absolutos e exclusivos em detrimento das novas bases de legitimidade e funcionalidade da propriedade, previstas nos mandamentos constitucionais. Os poderes dominicais que estamos buscando não se fundamentam no conceito individualista, mas no conteúdo do direito que comunga com a função socioambiental da propriedade. A função social e ecológica da propriedade é efetivada quando os serviços ambientais do ecossistema estão assegurados e o desenvolvimento das atividades agrárias mantém em um grau satisfatório as funções ecológicas”.
Trata-se de encontrar rastros de democracia, justiça e juridicidade que imprimam no chão pisado por povos e comunidades que buscam reconhecimento de seus usos e tradições para aí inscreverem, com essa demarcação viva, territórios hermenêuticos para a validação desses usos e tradições. Trata-se de elaborar o que estamos chamando de Constitucionalismo Achado na Rua conformem sustentam Marconi Moura de Lima Burum, Mauro Almeida Noleto, Priscila Kavamura Guimarães de Moura e Renan Sales de Meira em seu texto O Constitucionalismo Achado na Rua, os Sujeitos Coletivos Instituintes de Direito e o Caso da APIB na ADPF nº 709 (in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al (orgs). O Direito Achado na Rua: Questões Emergentes, Revisitações e Travessias. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris. Coleção Direito Vivo. Vol. 5, 2021,p. 153:
“Como elaborar um Constitucionalismo Achado na Rua sem que pensemos também na demolição de uma rede patriarcal, colonial e capitalista que sustenta toda uma rede ontoepistemológica? Esses são entraves muito sérios que demandam aquilo que Boaventura denomina ‘alternativas de alternativas’. Um CANR deve, pois, ser mais uma força de defesa da própria Rua como espaço democrático e plural, em que a liberdade possa ser buscada concretamente, seja por meios informais, seja pelos canais institucionais já construídos nesse processo”.
Somente como “prática de encantamento epistemológico no campo do Direito e do constitucionalismo tornando viáveis iniciativas desenvolvidas junto às comunidades que continuam resistindo e reinventando permanentemente suas práticas de luta e de encantamento da vida como forma de vencer a morte, firmando uma justiça cognitiva e, portanto, de justiça social, oportunidade de tensionar os limites lineares dos discursos colonializados levando-os a repensar e reconstruir seus paradigmas”, conforme sugerem Andréa Brasil, Célia Bernardes e Jonas Tavares, no mesmo livro, p. 45, no texto Povos Indígenas, Quilombolas e Demais Povos e Comunidades Tradicionais. Direitos dos povos indígenas, educação judicial e ODANR. E de modo ainda mais convocatório para as travessias paradigmáticas que o tema reclama, toda a Seção VII – O Direito Achado nos Rios e Florestas: Conflitos Socioambienatais. Direitos Indígenas e de Povos e Comunidades Tradicionais, que foram discutidos no Seminário Direito como Liberdade 30 Anos de O Direito Achado na Rua, constante do vol. 10 da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al orgs. Brasília: Editora da OAB/Editora da UnB, 2021), especialmente os artigos que integram a Seção, a começar por Carlos Marés – O Direito Impuro: achado na floresta, na terra e no mar; Sérgio Sauer, Acácio Zuniga Leite, Luís Felipe Perdigão de Castro – Disputas por terra e direitos no campo; Luiz Henrique Eloy Amado – O direito que nasce da aldeia; Adelar Cupsinski, Alessandra Farias Pereira, Cleber Cezar Buzatto, Íris Pereira Guedes, Rafael Modesto dos Santos, Roberto Antônio Liebgott – Terra tradicionalmente ocupada, direito originário e a inconstitucionalidade do marco temporal anre a proeminência do art. 231 e 232 da constituição de 1988; e Clarissa Machado de Azevedo Vaz e Renata Carolina Corrêa Vieira – Sujeito coletivo de direito e os novos movimentos sociais: a luta por direitos de acesso à terra e território.
Assim é que devolvo ao Autor do Memorial o dilema que ele próprio armou para si, no fecho de seu Memorial:
“Para fazer um contraponto a todas as ações nefastas contra a Natureza e o ser humano, um dos caminhos é apoiar e fortalecer a luta dos povos e comunidades tradicionais em defesa de seus territórios e cultura, pois a proteção das terras tradicionalmente ocupadas constitui condição para a consolidação de um modelo democrático e participativo de distribuição e gestão sustentável do meio ambiente.
No território tradicional, insere-se a vida do planeta e da humanidade; envolvem-se os fundamentos da vida coletiva, construídos com uma nova relação com a Natureza e a vida, implementados com formas de organização que respeitem a coletividade e estejam fundamentadas na cultura.
A discussão sobre o reconhecimento dos direitos da Natureza, ou o reconhecimento da Natureza como sujeito de direito, necessariamente perpassa pelo entendimento sobre antropocentrismo (valoração extrínseca e utilitarista dos recursos naturais) e ecocentrismo/biocentrismo (valoração intrínseca da Natureza). Será necessário questionar a relação formal entre ser humano e Natureza, a valoração jurídica existente entre sujeito e objeto, direito de propriedade e valor econômico.
O debate sobre Natureza e territórios tradicionais não se limita ao espaço rural, mas inclui os espaços periurbanos, com a análise do processo de planejamento e gestão democrática na Amazônia93. Nesta mesma linha, sobre o vínculo existente entre meio ambiente e direitos humanos, pretendemos continuar investigando as diferentes formas de participação de segmentos sociais que se dão sob a égide do desenvolvimento sustentável, buscando avaliar as combinações diversas de democracia formal e democracia participativa através de estudos de casos.
Do mesmo modo, vamos dar continuidade à análise crítica das categorias terra e território. Apesar de comumente não se fazer a distinção entre elas, a discussão que desenvolveremos parte da compreensão de que existe uma equivalência entre terra e território, mas se trata de categorias distintas.
Outro elemento importante para análise dos sistemas socioecológicos é a teoria do pluralismo jurídico (SOUZA FILHO, 2003; SANTILLI, 2005; WOLKMER, 2006), que não aceita a visão do Direito como um monismo jurídico, ou seja, considera como jurídico somente o conjunto de normas emanadas pelo Estado.
As constituições latino-americanas reconhecem explicitamente a perspectiva pluralista e multiculturais (Bolívia e Equador), outras apresentam comandos normativos de reconhecimento (Brasil, Colômbia e Venezuela). Com diferentes graus, as constituições revelam uma nova concepção sobre o Direito, que demarca o fenômeno do pluralismo jurídico na América Latina. Assim, surgem novos sujeitos de direitos – a exemplo da constituição equatoriana, que reconhece o conceito de direitos da natureza, ampliando a categoria não humana como sujeita de direito (GUDYNAS, 2019). Verificaremos também até que ponto o constitucionalismo latino-americano está confirmando seu caráter anticolonial (SOUZA FILHO, 2021) e como os tratados internacionais de direitos humanos estão sendo interpretados pelos tribunais superiores (MAUÉS & MAGALHÃES, 2016; MAUÉS, 2013), repercutindo nos direitos territoriais.
O pluralismo jurídico se trata do reconhecimento dos valores coletivos, materializados na dimensão cultural de cada grupo social. É uma perspectiva sobre o Direito, a qual tem proximidades com as concepções multiculturalistas (WOLKMER, 2006).
Partindo do pressuposto de que nenhuma cultura é absoluta ou superior, estudaremos a distinção conceitual existente entre a interculturalidade (devido à inevitável interação entre as culturas sugerir o diálogo e a interrelação entre elas) e multiculturalidade (convivência num mesmo espaço social de culturas diferentes sob o princípio da tolerância e do respeito à diferença). Assim, será analisado o multiculturalismo intercultural (SANTOS; MENESES, 2010), o multiculturalismo crítico (HERRERA FLORES, 2009) ou emancipatório (WOLKMER, 2006).
Na análise do pluralismo jurídico, verificaremos o que significa incluir na discussão os direitos da Natureza, ou seja, o reconhecimento de que um sujeito não humano também possui direitos. Resumindo, a intenção é de desenvolver a discussão sobre a questão teórico-metodológica da interface e interindependência entre Sociedade e Natureza, e o vínculo existente entre os direitos humanos e não humanos, pois as violações dos direitos humanos têm como consequência a violação dos direitos da Natureza.
Enquanto experiência acadêmica, no envolvimento de pesquisadores, docentes, discentes e a sociedade civil, trata-se do que José Geraldo de Sousa Junior denomina de “Direito Achado na Rua”, um direito emancipatório, fundamentado no diálogo com os movimentos sociais, ou seja, com a realidade, a partir de uma compreensão interdisciplinar e interinstitucional, uma epistemologia da práxis (SOUSA JUNIOR, 2019).
Este é momento que estamos presenciando, no qual o Estado não defende a vida, não aceita que tudo está interligado e é interdependente. Não sei qual seria a palavra que poderia representar a diversidade de viventes, mas tudo pode estar contido no amor, amor à vida e aos seres vivos e às diferentes representações da vida. Na música “Toda Forma de Amar” Milton Nascimento nos diz que “(…) Qualquer maneira de amor vale amar; Qualquer maneira de amor vale a pena; Qualquer maneira de amor valerá…”, se todas as formas de vida forem amadas”.
Todavia, embora essas proposições reluzam como expressão de encantamento não só epistemológico mas também político, que evocam a carta magna de seus estudos iniciais a lei de Anilzinho Baião o Autor um pouco antes armou uma linha de obstáculos que se apresentam como bloqueio à concretização dos objetivos das lutas sociais por reconhecimento e emancipação, comprimidos pela lógica administrativo-burocrática que dificulta e marginaliza a pequena propriedade e os territórios tradicionais, e favorece a grande propriedade privada rural.
Enquanto o “conceito tradicional de propriedade já não consegue responder às demandas sociais e ambientais de nossos dias e, cada vez mais, buscam-se outros qualificativos para “adaptá-la” às novas exigências. Não foi suficiente a criação de diversos instrumentos jurídicos para a proteção e manejo dos recursos naturais nos imóveis rurais (zoneamento ecológico econômico, reserva particular do patrimônio natural, reserva legal ou área de preservação permanente), pois, ainda assim, a especulação e os interesses voltados para o mercado internacional se sobrepõem e ignoram as outras possibilidades de relacionar-se com a terra e a natureza” (p.88).
Afinal, pensando os “próximos passos” há alternativas? Temos em sua tese um designadas pelas subjetividades coletivas protagonistas paras as alternativas e para as alternativas de alternativas como pede Boaventura de Sousa Santos?
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua |
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