Por: Patricia
Fachin | 23 Julho 2019, IHU – Instituto Humanitas
As propostas do programa Future-se, recém lançado pelo Ministério
da Educação – MEC com a justificativa de fortalecer a autonomia
administrativa, financeira e de gestão das Universidades Federais de
Ensino Superior por meio de parcerias com organizações sociais e
captação de recursos, já são implementadas nas universidades públicas
federais, diz o ex-reitor da Universidade de Brasília – UnB, José Geraldo de Sousa Junior, à IHU
On-Line. Entretanto, salienta, “a diferença, no que aqui se chama novidade
da proposta do MEC, é o caráter inteiramente vendido à lógica
privatizante e mercadorizadora do projeto econômico-político que
está por trás, delirante do ethos públicouniversitário que marca o
sentido social e político da universidade como condição estratégica para
o desenvolvimento soberano do país. Daí as críticas”.
Segundo ele, o programa,
que está sob consulta pública até dia 15-08-2019, “traz formulações que se
baseiam em uma série de dispositivos do mercado financeiro, formando uma ‘carteira de
ações’ que inclui fundos patrimoniais imobiliários, microcrédito para startups e
um fundo soberano do conhecimento, tudo isso com abertura para proporcionar
oportunidades de negócios com participação da iniciativa privada”. Trata-se,
pontua, de “uma situação sem precedentes e sem paralelo com modelagens que
valorizem o privado na estruturação de sistemas universitários e que jamais
chegam ao despudor de acenar para o ethos acadêmico”.
Na avaliação dele, embora
o Ministério da Educação afirme que o Future-se visa
a reestruturar o financiamento do ensino superior público, a
proposta “quer levar o governo a escapar da vinculação constitucional que
obriga o Estado a financiar a manutenção e o funcionamento das universidades
públicas, e, enquanto aparentemente amplia a participação de verbas
privadas no orçamento universitário, retira a instituição de sua função
estratégica pública e social e a entrega, com seu patrimônio, seu capital de
conhecimento e seu acervo cultural à ganância de acumulação e
de capitalização”, adverte. E acrescenta: “Por isso o jogo de
palavras: Fature-se ao invés de Future-se”.
Na entrevista a seguir,
concedida por e-mail, o ex-reitor da UnB também critica a falta de consultas e
discussões prévias com reitores das universidades federais e de
estudos para embasar a proposta do MEC. “Tivesse havido um estudo
prévio para construir a proposta, como foi feito com o Reuni, e um
bom catálogo de parcerias, seus tipos, seu alcance na sustentabilidade das
instituições e seus impactos nos programas e projetos acadêmicos teriam
permitido um desenho razoável dessa experiência”, conclui.
José Geraldo de Sousa Junior é graduado
em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito
Federal - AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília -
UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos
humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito
Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.
Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da
Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do
professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino
Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos
Advogados do Brasil - OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos
direitos civis e de mediação de conflitos sociais. Em 2008, foi escolhido
reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e
funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade
de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen
Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os
Direitos Humanos (Editora D'Plácido, 2016).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Qual sua
avaliação sobre o Programa Institutos e Universidades Empreendedoras e
Inovadoras - Future-se, recém lançado pelo MEC?
José Geraldo de Sousa - Enquanto nos últimos anos o Brasil, seguindo
tendência mundial, conheceu uma grande expansão da educação superior com os efeitos dessa
expansão afetando positivamente a qualidade do ensino e da pesquisa nas Universidades
públicas e privadas, essa expansão, compreendida numa ação estratégica de
um programa governamental de base democrático-popular, se inscreveu num projeto
de sociedade e de Estado (do qual a Constituinte de 1987/1988 representou
o seu mais avançado desenho), e que erigiu a educação e
a educação superior à condição de núcleo estruturante desse
projeto.
Esse programa começa como
se define na Constituição que decorreu do processo
constituinte, por conceber a educação e a educação
superior como um bem público, voltado para fins sociais, por isso de
livre acesso, universal, laico, gratuito e, quando disponível ao mercado, com
seu exercício condicionado por esses valores, portanto, preservado em face das
injunções do comércio. Antes de tudo, direito e não mercadoria.
Um bem, portanto,
estratégico porque necessário ao desenvolvimento econômico, social e
político do país, não só para permitir fortalecer a infraestrutura da
sociedade, por meio da pesquisa, da ciência e da inovação tecnológica, também
para orientar as direções éticas desse desenvolvimento, sobre criar as
condições de distribuição justa e solidariamente compartilhada da riqueza
socialmente produzida, conforme o horizonte de superação de desigualdades e de
participação política definido na Constituição.
Para o MEC, em linguagem de bolsa de investimentos, o Future-se
que já está sendo chamado Fature-se - José Geraldo de Sousa
Assim é que se compreende
a tremenda expansão havida no período, com a criação de universidades e
de escolas federais no plano da educação superior, a implantação
interiorizada de novos campi, a duplicação do número de vagas principalmente
nos turnos vespertino e noturno das escolas, o apoio às políticas de cotas para
ampliar os acessos nas mais diversas modalidades, sociais, econômicas, étnicas,
raciais, e uma inversão orçamentária sem precedentes para financiar a expansão,
a reestruturação, o acesso, a permanência e as políticas de fomento em todos os
níveis, da creche à pós-graduação. Incluindo a contribuição da oferta privada,
fiel a esses princípios aferidos em procedimentos de regulação, credenciamento
e avaliação do sistema, por sua vez com o apoio de financiamento público para
assegurar essa expansão, valendo-se de instrumentos de renúncia fiscal (Reuni, Crédito
Educativo, Fies, Prouni, Ciência sem Fronteiras, todos discutidos
minuciosamente pelo presidente Lula e pela presidenta Dilma,
com os reitores e reitoras, em seguidos encontros com pautas consistentes e com
esses conteúdos, até a sedimentação de entendimento comum convertido empolíticas
públicas).
Não se perca de vista que
a retomada política da tensão entre o público e o privado, que agora se assiste
quando se examinam os fundamentos das reformas em curso, notadamente com a PEC de Teto de Gastos voltada para
assegurar financiamento de desempenho econômico-financeiro às custas de
investimentos sociais – saúde, educação –, recoloca o impasse que em 1988
dividiu os engajamentos sobre serem tais bens, sociais, públicos,
responsabilidade do Estado, ou privados, deixados à dinâmica apropriadora,
acumuladora, movida por interesse do mercado.
Para o MEC,
em linguagem de bolsa de investimentos, o Future-se, que já está
sendo chamado Fature-se, traz formulações que se baseiam em uma
série de dispositivos do mercado financeiro, formando uma “carteira de ações”
que inclui fundos patrimoniais imobiliários, microcrédito para startups e
um fundo soberano do conhecimento, tudo isso com abertura para proporcionar
oportunidades de negócios com participação da iniciativa privada.
Uma situação sem precedentes e sem paralelo com modelagens que valorizem o
privado na estruturação de sistemas universitários e que jamais chegam ao
despudor de acenar para o ethos acadêmico, como fez o secretário
de Ensino Superior do Ministério da Educação - MEC ao afirmar, na
audiência de apresentação da proposta, que "o professor universitário
poderá ser muito rico. Vai ser a melhor profissão do Brasil".
“O professor universitário (que) poderá ser muito rico. Vai ser
a melhor profissão do Brasil” - Arnaldo Barbosa de Lima
Júnior, secretário de Ensino Superior do MEC
IHU On-Line - Segundo o
governo, o Future-se “tem por finalidade o fortalecimento da autonomia
administrativa, financeira e de gestão das instituições federais de ensino
superior, por meio de parceria com organizações sociais e de fomento à captação
de recursos próprios”. Por que e em que contexto surge essa proposta e qual seu
significado?
José Geraldo de Sousa - As universidades públicas federais, sem perderem
de vista seu pressuposto inafastável da autonomia, já vêm implementando
todas essas sugestões, em sua plataforma de aprimoramento gestor, de busca de
ampliação de investimentos e de parcerias com setores institucionais, sociais e
de mercado em projetos de extensão, cooperação e parcerias. Os campi têm
abrigado instalações para suporte desses projetos, com cessão onerosa e
temporalidade limitada ainda que larga de uso, constituindo seus parques
tecnológicos para incubação de projetos, compartilhando royalties de patentes e
de comercialização de produtos, tanto no campo da inovação tecnológica aplicada
para fins industriais, quanto no campo das tecnologias sociais.
A diferença, no que aqui
se chama novidade da proposta do MEC, é o caráter
inteiramente vendido à lógica privatizante e mercadorizadora do projeto
econômico-político que está por trás, delirante do ethos público
universitário que marca o sentido social e político da universidade como
condição estratégica para o desenvolvimento soberano do país. Daí as críticas.
Na contracorrente de opiniões competentes e experimentadas, o programa expõe
suas entranhas nutridas no interesse do mercado, servindo conforme pensa o
coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Daniel Cara, que vê com “gravidade” a dinâmica
de estender a responsabilidade da geração de receitas aos institutos e
universidades: “As universidades públicas federais brasileiras precisam
cumprir a missão de expansão da educação superior com qualidade. Todas as estratégias
de financeirização propostas pelo programa, e que conversam com
diversos modelos que ocorreram no mundo, não são capazes de gerar expansão do
ensino superior. Elas até podem ser utilizadas em universidades pequenas, como
a de Harvard [instituição americana privada], que não tem essa premissa colocada”.
'Future-se' tem o objetivo de realizar as teses ultraneoliberais
de abocanhar a fatia substanciosa de capitalização até agora protegida contra a
ganância do mercado - José Geraldo de Sousa
IHU On-Line - Como o
senhor avalia, particularmente, os três eixos do programa: governança, gestão e
empreendedorismo; pesquisa e inovação; e internacionalização? Qual é a
relevância de cada um desses eixos?
José Geraldo de Sousa - Iniciei a resposta a esta pergunta em questão anterior. O
que eu reitero é a conformidade dessas proposições ao desenho entreguista desse
patrimônio social que é a universidade pública brasileira. Desdobrando o
começo da resposta, reafirmo que ela retoma, como tenho mencionado em várias
circunstâncias, inclusive nesse espaço do IHU, o objetivo de
realizar as teses ultraneoliberais de abocanhar a fatia
substanciosa de capitalização até agora protegida contra a ganância do mercado.
Em 2002, na cidade de Porto Alegre, ainda sob o impacto da
resolução adotada naquele ano pela Organização Mundial do Comércio -
OMC, de incluir a educação superior como um serviço
comercial regulado no marco do Acordo Geral de Comércio de Serviços (GATS,
sigla em inglês), reitores de Universidades Públicas Ibero-Americanas,
autoridades governamentais e especialistas se reuniram na III Cumbre de
Reitoresdessas universidades para discutir os perigos postos pelo modelo
neoliberal de mercado. Tratava-se de analisar as ameaças às
universidades públicas e a globalização, num encontro radical que teve
como eixo a educação superior frente a Davos.
A Cúpula vem a registro
para, entre as muitas e agudas reflexões, chamar a atenção para o texto
de Marco Antonio Rodrigues Dias, ex-professor da UnB e quadro da
Unesco, e seu ensaio A OMC e a educação superior para o mercado.
Em seu estudo, para o
qual carreou cifras inimagináveis levantadas entre outras agências pelo banco
de negócios norte-americano Merril Lynch, o professor Marco
Antonio Dias afirma que o mercado mundial de conhecimento, somente
através da Internet, foi calculado, para o ano de 2000, em 9,4 bilhões de dólares,
tendente a alcançar 53 bilhões no ano de 2003. E, de acordo com as mesmas
fontes, o valor da comercialização de produtos vinculados ao ensino
superior nos países da OCDE foi da ordem de 30
bilhões de dólares em 1999. Para o professor, com base nessas informações
pode-se dizer que a importância dos serviços, o que vai muito além da educação,
representa, na economia norte-americana, dois terços de seus resultados e 80%
de seu mercado de emprego.
A capacidade dos países de formar seus cidadãos conscientes e
com capacidade crítica estará efetivamente condenada, se o que rege as ações é
uma concepção que dá prioridade aos aspectos comerciais - José Geraldo de Sousa
Esses dados, diz o
professor, representam números inacreditáveis, e, à medida que novos dados são
analisados, se constata que todos são extraordinários. E, para os que relutam
em aceitar a prioridade do comércio sobre os direitos humanos, a capacidade dos
países de formar seus cidadãos conscientes e com capacidade crítica estará
efetivamente condenada, se o que rege as ações é uma concepção que dá
prioridade aos aspectos comerciais (DIAS, Marco Antonio Rodrigues. A OMC e a
educação superior para o mercado. In BROVETTO, Jorge; ROJAS MIX, Miguel;
PANIZZI, Wrana Maria (orgs). A Educação Superior Frente a Davos; La Educación
Superior Frente a Davos. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003).
A Constituição de
1988 tem sido a expressão de uma formidável mobilização da
comunidade acadêmica e da sociedade civil, que se orientou pelo conceito do
papel social que a universidade realiza e de que a educação é um bem público e
mesmo quando se realiza de modo privado, por impulso de mercado, não pode
delirar dos valores que o Constituinte levou para o seu texto. Esses princípios
são corolários de duas institucionalidades fundamentais, que a Constituição
de 1988 sufragou e que reclamam a sua defesa intransigente já por
lealdade à soberania popular que se manifestou de modo
constituinte, já por compromisso histórico conforme acima acentuado: a autonomia universitária e a liberdade
de ensinar.
IHU On-Line - Como o
Future-se será operacionalizado?
José Geraldo de Sousa - Na proposta, apenas anunciada e de modo unilateral, pois
não houve, diferentemente de todos os grandes projetos anteriores — Reuni, Prouni, Enem, Fies, Ciência
sem Fronteiras — nenhuma discussão prévia ou grupos de trabalho com
reitores e reitoras para sua construção, nem como ocorreu nesses anos, a
formulação de agendas entre a Presidência da República e o conjunto de reitores
e reitoras — há a previsão de abertura para consulta
pública geral, nos próximos 30 dias, pela internet, sem espaço
entretanto para debate ou diálogo, limitada a consulta à sua leitura “na
íntegra na página da consulta pública. Em seguida, é possível acessar,
separadamente, os nove trechos do texto e, para cada um deixar, um comentário e
dizer se acha que o tópico está totalmente claro, claro com ressalvas ou se não
está claro. Ao final, é possível deixar ainda um comentário geral sobre a
proposta”.
Pela especificidade dos
itens anunciados, nota-se um conjunto complexo de medidas que guardam
vinculação contraditória com a Constituição, leis orgânicas,
estandares [padrões] de supervisão fiscalizadora (TCU, CGU, AGU, MPU). Cito um
exemplo pontual: enquanto na proposta se abre a possibilidade de acúmulo de
encargos decorrentes de obrigações contratadas para atuação de pessoal em
dedicação exclusiva, professores desse regime são diuturnamente interpelados
pelo TCU e pelo MPU com a tipificação de
violação do regime, em situações que, a rigor, sequer deveriam ser
questionadas. Há, portanto, uma agenda presumida de caráter legislativo e
procedimental que antecipa muitas dificuldades para implantar a proposta.
IHU On-Line - Em que
consiste a proposta de criação de Fundos de Investimento, segundo o programa?
José Geraldo de Sousa - Esse é um dos eixos destacados da proposta, o Eixo
1: Gestão, governança e empreendedorismo. Segundo matéria publicada
no site
do IHU, esse eixo é a principal ancoragem para o capital
privado nas instituições. O programa defende que institutos e
universidades se aliem a diversos modelos de fundos de investimento para
ampliar suas receitas e criar ambientes favoráveis aos negócios. Isso combinado
com Fundos de Investimentos Imobiliários que permitiriam às
universidades celebrar contratos de gestão compartilhada acerca do seu próprio
patrimônio imobiliário e da União e às reitorias estabelecer parcerias
público-privadas, comodato ou cessão de prédios e lotes. Além disso, Fundos
Patrimoniais (endowment) para captar doações de empresas ou de
ex-alunos para financiar pesquisas ou investimentos de longo prazo.
Conforme já mencionei em
outras oportunidades, dá-se agora a investida mais sutil porque disfarçada em ilusão
de reforma aperfeiçoadora do sistema. O ministro da Educação com
o programa ‘Future-se’ diz querer reestruturar o
financiamento do ensino superior público. A proposta, todavia, quer levar o
governo a escapar da vinculação constitucional que obriga o Estado a financiar
a manutenção e o funcionamento das universidades públicas e,
enquanto aparentemente amplia a participação de verbas privadas no orçamento
universitário, retira a instituição de sua função estratégica pública e social
e a entrega, com seu patrimônio, seu capital de conhecimento e seu acervo
cultural à ganância de acumulação e de capitalização.
Por isso o jogo de palavras: Fature-se ao invés
de Future-se.
IHU On-Line - Qual tende a ser o impacto do Future-se na pesquisa, no fazer científico das universidades federais?
IHU On-Line - Qual tende a ser o impacto do Future-se na pesquisa, no fazer científico das universidades federais?
José Geraldo de Sousa - Concordo com Boaventura de Sousa Santos, desde escritos
anteriores e mais recentemente (Exposição na Conferência Regional de Educação
Superior da América Latina e o Caribe. Córdoba: CRES, 2018), quando caracterizou o assédio neoliberal às universidades,
para fazer uma séria advertência: “A ideia de que o único valor do
conhecimento é o valor de mercado é o que irá matar a universidade. Uma
universidade que é ‘sustentável’ porque financia a si mesma é uma universidade
insustentável como bem comum, porque se transformou em uma empresa”.
A ideia de que o único valor do conhecimento é o valor de
mercado é o que irá matar a universidade - Boaventura de Sousa Santos
IHU On-Line - Quais são
os tipos de parcerias público-privadas que já existem nas universidades
federais hoje e qual tem sido o impacto dessas parcerias?
José Geraldo de Sousa - Mencionei algumas delas atrás. Tivesse havido um estudo
prévio para construir a proposta, como foi feito com o Reuni, e um
bom catálogo de parcerias, seus tipos, seu alcance na sustentabilidade das
instituições e seus impactos nos programas e projetos acadêmicos teriam
permitido um desenho razoável dessa experiência. Tudo depende de cada modelagem
de cooperação, mas em geral, além dos pagamentos diretos — aluguéis, de
imóveis e de equipamentos, de prestação de serviços (aqui não cabe o exemplo,
por causa da natureza pública da prestação de serviços, mas
tenha-se em mente as universidades que mantêm hospitais e
que os integram cem por cento no sistema SUS, o quanto reverte para
elas, para aplicação nos próprios hospitais, o valor dos contratos de prestação
de serviços, ainda mais sabendo-se que em geral esses hospitais conservam sua
dupla função de serviços e de ensino e pesquisa) —, as negociações têm
permitido atividades cooperadas de ensino, extensão e pesquisa (caso da UnB e
da Fiocruz instalada no campus universitário), com financiamento
de bolsas, estágios, tudo sem perder a dimensão pública, social, republicana
dessas parcerias. Assim, cada projeto revela o alcance de seu objetivo
cooperado e o impacto que proporciona à relação acadêmica a que ele visa em
última razão.
IHU On-Line - Nos
governos passados foram feitas parcerias público-privadas para a gestão dos
hospitais públicos universitários. Qual foi o impacto dessa parceria na gestão
dos hospitais?
José Geraldo de Sousa - Eu próprio, como reitor, vivenciei todo o processo de
constituição da empresa pública de gestão hospitalar. Somente no
formato a criação da empresa remeteu ao formato de uma entidade modelada pelo
sistema privado. Em seus estatutos, em seu funcionamento e em seus objetivos,
a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares - EBSERH manteve-se
como uma iniciativa de interesse público de modo que seus impactos alcançaram
mais a eficiência da gestão, aquisições em escala, planejamento global. Mas
contribuiu para a regularização dos serviços; por exemplo, vincular como celetistas
servidores precarizados tidos como admissão irregular pelos órgãos de controle.
IHU On-Line - É possível
estabelecer algum tipo de aproximação ou semelhança entre a parceria
público-privada realizada para fazer a gestão dos hospitais e a proposta do
Future-se?
José Geraldo de Sousa - Somente quanto aos requisitos operacionais e de funcionamento.
Diferentemente da visão de empreendedorismo e de transferência do
público para o privado que o Future-se propõe, na gestão hospitalar a
empresa criada EBSERH permaneceu pública no programa e na
realização de seus objetivos.
IHU On-Line - Alguns
críticos ao Future-se argumentam que o programa pode pôr em xeque a autonomia
de pesquisa das universidades. O senhor concorda com esse tipo de crítica? Sim,
não, por quê?
José Geraldo de Sousa - Concordo inteiramente e retomo aqui a crítica feita
por Boaventura de Sousa Santossintetizada acima para compartilhá-la
por inteiro, a exemplo de como o fiz em exposição na Associação
Nacional dos Reitores das Instituições Federais de Ensino Superior - Andifes.
Ao final do ano passado (2018), a Andifesorganizou um importante
seminário para marcar 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos e 30
anos da Constituição de 1988. Um dos temas em exposição foi o que
proferi, “A Universidade Pública, Autonomia e Liberdade de Ensinar: Valores
que a Constituição de 1988 Consagrou”. Na conclusão de minha exposição,
aludindo aos desafios e às tarefas que se colocam na conjuntura, em face dos
impasses que põem a Constituição numa encruzilhada, implicam em tomar
consciência e posição, ao que Boaventura de Sousa Santos, desde
escritos anteriores e mais recentemente (Exposição na Conferência Regional de
Educação Superior da América Latina e o Caribe. Córdoba: CRES, 2018),
caracterizou como assédio neoliberal às universidades: “A ideia
de que o único valor do conhecimento é o valor de mercado é o que irá matar a
universidade. Uma universidade que é ‘sustentável’ porque financia a si mesma é
uma universidade insustentável como bem comum, porque se transformou em uma
empresa”.
A ideologia neoliberal colide assim com a ideia de “universidade
como um bem comum”, uma das conquistas obtidas a partir da Reforma de Córdoba
(1918) - José Geraldo de Sousa
Para ele o presente,
controlado pelo neoliberalismo, é uma época plena de perigos
para a universidade pública: em face dociclo global conservador e
reacionário, isto é, “o domínio total do capital financeiro”. O projeto
neoliberal, segundo ele, busca a construção de um “capitalismo
universitário”: “Começou com a ideia de que a universidade deveria ser
relevante para criar as competências que o mercado exige”, seguiu com as
propostas de tributação e privatização. “A fase final é a ideia de que a
universidade deve ser ela mesma um mercado, a universidade como empresa”.
Se a universidade é uma mercadoria a mais,
precisa ser medida: daí os rankings globais. Por isso, a ideologia neoliberal
colide assim com a ideia de “universidade como um bem comum”, uma das
conquistas obtidas a partir da Reforma de Córdoba (1918). “É
um momento difícil por várias razões, e uma delas é que não há um ataque
político, mas, sim, um ataque despolitizado. É um ataque que tem duas
dimensões: cortes orçamentários e a luta contra a suposta ineficiência ou
corrupção, uma luta muito seletiva, porque se sabe que as universidades
públicas são em geral muito bem gerenciadas em comparação com outras instituições".
Conforme Boaventura,
há três razões pelas quais a universidade é um alvo desejado
pelo regime neoliberal:
1. Sua produção
de conhecimento independente e crítico questiona “a ausência de
alternativas que o neoliberalismo tenta produzir em nossas cabeças todos os
dias. Se não há alternativas, não há política, porque a política é só
alternativas. É por isso que muitas das medidas contra a universidade não
parecem políticas, mas, sim, econômicas, os cortes financeiros, ou jurídicos, a
luta contra a corrupção. O que está por trás é a ideia de que a universidade
pode ser um fermento de alternativas e resistência”;
2. "O pensamento
neoliberal busca um presente eterno, quer evitar toda tensão entre passado,
presente e futuro. E a universidade sempre foi, com todas as limitações, a
possibilidade de criticar o presente em relação ao passado e com vistas a um
futuro diferente”;
3. “A universidade
ajudou a criar projetos nacionais (obviamente, excludentes dos
povos originários) e o neoliberalismo não quer projetos nacionais. Por sua vez,
a universidade sempre foi internacionalmente solidária, com base na ideia de um
bem comum. Mas o capitalismo universitário quer outro tipo de
internacionalismo: a franquia, que as universidades possam comprar produtos
acadêmicos em todo o mundo”.
Finaliza, repito,
convocando o espírito de Córdoba e da Reforma de 1918,
para pensar política e epistemologicamente modos de romper as limitações impostas
pelo neoliberalismo e radicalizar a utopia democratizadora:
a universidade, concluiu, deve se restituir, fazer um uso
contra-hegemônico de sua autonomia e “transformar-se em uma pluriversidade”,
teórica e politicamente.
IHU On-Line - Como a
proposta do Future-se já vem sendo desenvolvida, em alguma medida, nas
universidades privadas e quais as consequências disso?
José Geraldo de Sousa - Essa questão tem que ser aferida na avaliação de cada
situação que possa ser carreada para um quadro de modelagem. Não existe esse
estudo e a preparação da proposta, feita desde cima, desprezou qualquer
discussão ou argumentação. É uma aposta cega. No plano opinativo, remeto
à matéria do IHU acima citada e retomo o
posicionamento de Daniel Cara, aliás bastante consistente. Ainda
que possa haver experiências valiosas no âmbito das experiências em
instituições privadas, esse eventual "sucesso" não tem correlação com
o âmbito público do modelo constitucional universitário brasileiro.
Por isso que ponto considerado “perverso” pelo educador (Cara) é “o
de utilizar o patrimônio acumulado pelas universidades públicas como
moeda de troca para estratégias de comercialização e financeirização.
Isso é um crime de lesa-pátria, ataca a Ciência e precisamos
ter clareza disso. As universidades hoje funcionam como um anteparo à política
de Jair Bolsonaro, com a sua capacidade crítica. Justamente por
isso a ideia de enfraquecê-las a partir de um modelo de gestão que incorpora
elementos privatistas e provoca a demolição da autonomia universitária e da
capacidade de democratizar o Ensino Superior com qualidade”,
atesta.
“Atacar a universidade pública brasileira é atacar
a soberania do país e precisamos atuar de maneira muito
inteligente e conjunta para barrar esse projeto no Congresso. Não é a educação
que vai fazer com que a economia tenha dinamismo, tampouco a economia vai fazer
com que a educação se realize. O que precisamos no Brasil é de um projeto de
desenvolvimento que articule todas as áreas: educação, saúde, economia,
assistência social, acesso à moradia. Um projeto que garanta um País com
qualidade de vida, mas esse não é o objetivo do governo Bolsonaro”,
finaliza.
IHU On-Line - O modelo de
gestão sugerido pelo Future-se é uma tendência nas universidades públicas e
privadas mundiais? Quais são as semelhanças e diferenças dessa proposta em
relação ao modelo de gestão de universidades de outros países?
José Geraldo de Sousa - Não creio que seja uma tendência. Ao contrário, o que
temos assistido é a uma volta estratégica ao modelo público na
organização e no financiamento a partir dos países de maior PIB no Norte
Global.
O que temos assistido é a uma volta estratégica ao modelo
público na organização e no financiamento a partir dos países de maior PIB no
Norte Global - José Geraldo de Sousa
IHU On-Line - Como a
proposta do Future-se está repercutindo entre os profissionais que atuam nas
universidades federais? Que comentários e análises o senhor tem visto neste
sentido?
José Geraldo de Sousa - As universidades, como as igrejas, as
corporações, o país inteiro tem refletido essa polarização de visões de
mundo que acontece hoje no Brasil e no mundo. Nas
universidades, especificamente, grupos leais ao modelo neoliberal também se
formaram e tive a notícia recente de formação de uma associação de professores
de direita e que pontificam a crença neoliberal. Já há muito tempo, o
capitalismo universitário de que fala Boaventura se instala no
ambiente acadêmico para uma ação de erosão privatizante que mina a estrutura do
interesse social que a universidade pública insiste em preservar. Esses setores
estão certamente eufóricos em face da possibilidade de fortalecer seus grupos
de pesquisa, sua carteira de serviços, de se tornarem, como disse o Secretário
na apresentação da proposta, “o professor universitário (que) poderá ser
muito rico. Vai ser a melhor profissão do Brasil”.
De um modo geral, porém,
a recepção mais nítida da proposta é crítica, no sentido de que ela representa
uma tragédiapara a concepção constitucional de uma universidade pública, de
qualidade, com compromisso social, laica. Para o princípio de que educação,
incluindo a educação superior, é um bem social, não é uma
mercadoria.
Future-se representa uma tragédia para a concepção
constitucional de uma universidade pública, de qualidade, com compromisso
social, laica - José Geraldo de Sousa
IHU On-Line - Deseja
acrescentar algo?
José Geraldo de Sousa - Apenas o que venho sustentando, junto com meus colegas de
pesquisa do Coletivo O Direito Achado na Rua, em face das
exigências da conjuntura. Contra tudo isso opõe-se a história milenar da universidade
ocidental que soube manter-se leal aos seus fundamentos civilizatórios
e sempre soergueu-se aos assaltos da barbárie, de inquisidores, dos múltiplos
fascismos, de todas as formas de autoritarismo e contra a ganância do mercado.
A educaçãoainda é valor social, bem público, não
é negócio. O que se espera é que os movimentos sociais e a institucionalidade
estruturada no sistema legislativo e judicial compreendam o alcance e toda a
dimensão e significado desses valores inscritos nos princípios constitucionais,
para protegê-los e para defender a própria Constituição.
Leia mais sobre o programa Future-se
o Programa ‘Future-se’ cria instabilidade financeira nas
universidades, alerta Renato Janine Ribeiro
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