Renata Carolina Corrêa Vieira e José Geraldo de Sousa Junior
Le Monde Diplomatique, 18/07/2019
Compulsando algumas agendas que conformam o tema geral do
direito à terra e à reforma agrária, notadamente desde a conjuntura que
antecede o golpe parlamentar-judicial-midiático, que levou ao afastamento da
presidenta Dilma Rousseff e, com ela, à derrocada do projeto
popular-democrático que abriu ensejo à construção dessas agendas e, logo, à
instalação de uma governança a serviço do modelo capitalista de concentração da
terra e do território, vê-se nitidamente que o tema da função social da
propriedade compõe essa agenda.
Um dos mais recentes ataques tem dupla face. A primeira,
bruta e cruenta na linha do coronelismo que baliza o processo oligárquico, que
caracteriza a nossa formação econômica, social e política: a criminalização da
reivindicação social (com a pretensão de tipificar as formas de luta no elenco
do crime de terrorismo) e a volta legal ao armamentismo que equipa as milícias
urbanas e rurais a serviço a propriedade e do latifúndio.
A outra face, mais sutil, mas não menos instrumental é a
do disfarce legislativo, embutido na estratégia de desconstitucionalização em
curso no país. Nos referimos à Proposta de Emenda à Constituição, subscrita
pelo Senador Flávio Bolsonaro, com assinaturas de apoio de conhecidos membros
da bancada ruralista, que tem por objetivo “alterar os artigos 182 e 186 da
Magna Carta de 1988 para definir de forma mais precisa a função social da
propriedade urbana e rural e os casos de desapropriação pelo seu
descumprimento”.
A justificativa embora tente – não disfarça – o objetivo
de inverter o fundamento constitucional que preserva direitos fundamentais
transsubjetivos porque principiológicos, já que salvaguardam valores
civilizatórios: meio ambiente, autonomia do trabalho, licitude da atividade,
direitos humanos, produção social, para facilitar o ganho privado da
apropriação egoísta, que a Constituição – projeto avançado de sociedade –
procurou superar.
Ainda bem que a Proposta, escondendo o corpo do gato com
uma redação aveludada, deixou-lhe o rabo de fora: “como a relativização do
direito à propriedade privada deve ser feita com cautela
a fim de evitar arbitrariedades, abusos ou erros de avaliação pelo Poder Público nos processos de desapropriação fundamentados na simples justificativa de se estar agindo em atenção ao interesse social, apresentamos essa Proposta de Emenda Constitucional. A intenção é diminuir a discricionariedade do Poder Público na avaliação de desapropriação da propriedade privada, tendo em vista que é um bem sagrado e deve ser protegida de injustiças”.
a fim de evitar arbitrariedades, abusos ou erros de avaliação pelo Poder Público nos processos de desapropriação fundamentados na simples justificativa de se estar agindo em atenção ao interesse social, apresentamos essa Proposta de Emenda Constitucional. A intenção é diminuir a discricionariedade do Poder Público na avaliação de desapropriação da propriedade privada, tendo em vista que é um bem sagrado e deve ser protegida de injustiças”.
A proposta deixa em evidência a sua inviabilidade porque
toca a função social da propriedade (art. 5º), bem preservado como direito
fundamental que é pedra angular da Constituição e não tolera sequer deliberação
sobre emendas tendentes a aboli-lo (art. 60). Somente uma nova constituinte
pode suprimi-lo. O tema da propriedade como um direito sagrado é rechaçada
desde Leon Duguit, em seu Traité de Droit Constitutionel, publicado
em 1911. Hoje, mais de um século depois, volta a ser invocada como um direito
absoluto, num contexto de realidade distópica, em que mentes autoritárias
voltam a invocar a “sacralidade” para retirar do seio da sociedade direitos
conquistados historicamente por lutas sociais.
Este direito consagrado na Constituição Federal perpassa
por um processo histórico de lutas que visa democratizar o uso da propriedade
atendendo o princípio da solidariedade, proibindo arbítrios do proprietário,
como a não observância da proteção ambiental e a exploração de trabalhadores. O
conteúdo da proposta visa de um lado relativizar a função social da propriedade
urbana, enfraquecendo um dos instrumentos mais importantes de democratização do
espaço urbano: o Plano Diretor, quando retira do município a competência de
definir a função social da propriedade urbana; e de outro lado, liquidar as
exigências constitucionais da função social da propriedade rural.
A proposta de emenda, ainda, estimula o descumprimento da
função social da propriedade quando prevê a indenização por desapropriação no
valor do mercado para ambos os tipos de propriedade por motivo de não
cumprimento da função social; trocando em miúdos: tanto faz se a propriedade
cumpre ou não a função social, em caso de desapropriação, o valor a ser indenizado
será o do mercado.
Um dos aspectos que salta aos olhos da proposta de emenda
é a relativização da proteção ambiental da propriedade. Considerada como uma
das exigências tanto da propriedade urbana, como da propriedade rural, a
proposta de emenda faculta ao proprietário o atendimento de apenas um dos
requisitos propostos, nos seguintes termos: “§ 2° A propriedade urbana cumpre
sua função social quando é utilizada sem ofensa a direitos de terceiros e
atende ao menos uma das seguintes exigências fundamentais de ordenação da
cidade expressas no plano diretor: I- parcelamento ou edificação adequados; II
– aproveitamento compatível com a sua finalidade; III- preservação do meio
ambiente ou do patrimônio histórico, artístico, cultural ou paisagístico”.
Assim, basta que uma edificação seja adequada para que
ela não precise respeitar o meio ambiente ou mesmo que tenha aproveitamento
compatível com a sua finalidade.
No plano da propriedade rural, o absurdo é ainda maior. A proposta faculta que o proprietário rural cumpra apenas um dos seguintes requisitos: “I – aproveitamento racional e adequado; II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores” (artigo 186). Assim, para os senadores que assinam a referida proposta é suficiente que a propriedade seja aproveitada de forma racional e adequada, sendo desnecessária a utilização adequada dos recursos naturais e a preservação do meio ambiente.
No plano da propriedade rural, o absurdo é ainda maior. A proposta faculta que o proprietário rural cumpra apenas um dos seguintes requisitos: “I – aproveitamento racional e adequado; II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores” (artigo 186). Assim, para os senadores que assinam a referida proposta é suficiente que a propriedade seja aproveitada de forma racional e adequada, sendo desnecessária a utilização adequada dos recursos naturais e a preservação do meio ambiente.
Da mesma forma não é necessário observar as leis que
regulam as relações de trabalho, o que vale dizer, em última instância, o mesmo
que a aceitação escancarada de práticas que submetem trabalhadores e
trabalhadoras às condições análogas à de escravo – prática comum nos grandes
latifúndios no Brasil, cujas políticas públicas de enfrentamento vêm sofrendo
duros desmontes desde a interrupção democrática.
Na proposta de emenda dos parlamentares vê-se nitidamente
um projeto de assoreamento da função socioambiental da propriedade, que inclui
a proteção dos recursos naturais renováveis existentes, manutenção dos serviços
ecológicos, preservação do meio ambiente para a presente e futuras gerações,
preservação da vida e de condições dignas de trabalho à serviço do modelo
capitalista de concentração da terra e do território.
Por isso que sustentamos com Plínio de Arruda Sampaio
(Constituinte em 1988), que “o desenvolvimento de um país está travado por uma
questão agrária quando a trama das relações econômicas, sociais, culturais e
políticas no meio rural produz uma dinâmica perversa que bloqueia tanto o
esforço para aumentar a produtividade, como as tentativas de melhorar o nível
de vida da população rural e sua participação ativa no processo político
democrático” (vol 3, da Série O Direito Achado na Rua “Introdução Crítica ao
Direito Agrário”, Brasília/UnB/São Paulo/Imprensa Oficial de São Paulo, 2002,
pág. 317).
Em sentido contrário a essa iniciativa concentradora e
programática da governança ultra-neoliberal que aliena o País, nos mantemos
concordes com o qualificado coletivo de participantes do Seminário Terra,
Território, Diversidade e Lutas – movimentos populares e sindicais do campo,
águas e florestas, trabalhadores e trabalhadoras rurais, pesquisadores e
pesquisadoras, organizações não governamentais, ambientalistas, representantes
de governos progressistas, lideranças partidárias e parlamentares, reunidos
entre os dias 06 e 08 de junho de 2019, na Escola Nacional Florestan Fernandes
(Guararema, São Paulo) – uníssonos na reafirmação de “defesa das políticas
agrárias de Estado, cumprindo à Constituição Federal: a desapropriação para
fins de reforma agrária das terras que não cumpram função socioambiental, a
demarcação de territórios indígenas, a titulação de territórios quilombolas e o
reconhecimento de terras tradicionalmente ocupadas”.
Renata Carolina Corrêa Vieira e José Geraldo de Sousa Junior são
pesquisadores do Grupo “O Direito Achado na Rua” e do Programa de Pós-Graduação
em Direitos Humanos e Cidadania da Universidade de Brasília
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