Secom UnB 01/04/2014
Cristiano Paixão*
Meio século após a quebra da legalidade, por meio de um golpe que desencadeou diferentes ondas de repressão política nas universidades em geral – e na Universidade de Brasília em particular –, cabe perguntar: como a nossa Constituição permite ampliar o espaço de luta dos estudantes no presente?
O art. 8º das Disposições Transitórias estabelece que a reparação destinada aos atingidos por atos de exceção compreende o período que vai de 18 de setembro de 1946 a 5 de outubro de 1988. É um programa que ultrapassa os marcos temporais aceitos para o início e fim do regime ditatorial que se instalou no Brasil de 1964 a 1985.
Podemos ler – e, por consequência, aplicar – esse dispositivo numa perspectiva geracional. Ou melhor: intergeracional. Ao prever esse período expandido de reparação, o Constituinte fez uma opção pelo diálogo entre gerações. Permitiu a anistia de militantes comunistas perseguidos pela repressão do governo Dutra, ao mesmo tempo em que líderes sindicais envolvidos em greves da segunda metade da década de 1980 também foram contemplados. São camadas geracionais diferentes, formadas por grupos e pessoas com trajetórias díspares, afastadas no tempo, que só podem se encontrar por meio de práticas comunicativas intergeracionais.
Em muitas situações, as violências atingem mais de uma geração da mesma família. Foi o caso de Paulo Fonteles Filho, cujos pais foram aprisionados e torturados por forças do Exército no PIC (Pelotão de Investigações Criminais). Quando foi vitimada pela ação da repressão, sua mãe, Hecilda Fonteles, estava grávida, e a Comissão de Anistia (Ministério da Justiça) reconheceu que o filho fora torturado ainda no útero da mãe. Hoje Paulo Fonteles Filho é um altivo e atuante militante em prol das populações que sofreram, no Araguaia, os efeitos do aparato de repressão da ditadura.
A família Fonteles tem sua história ligada à Universidade. Os pais de Paulo Fonteles Filho, Hecilda e Paulo Fonteles, eram alunos de graduação da UnB (de Sociologia e Direito, respectivamente), onde militavam no movimento estudantil na década de 1970.
O que essa trajetória comunica ao nosso tempo? Ela impulsiona um diálogo intergeracional. Nossa Constituição estabelece as condições desse diálogo, ao expandir o período de reparação aos atingidos por atos de exceção. E assume uma perspectiva transgeracional, ao eleger a proteção dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana como núcleos normativos dos quais emanam outros dispositivos constitucionais e legais.
Um dos maiores desafios que foram lançados no campo da justiça de transição é o das reformas institucionais. Nossas forças armadas e policiais continuam estruturadas de modo muito similar aos tempos autoritários. Abusos como violência estatal e tortura continuam a ser praticados. Estudantes que protestam permanecem sofrendo todo tipo de tratamento violento – como demonstram os episódios recentes vividos por alunos e professores da Universidade Federal de Santa Catarina e como experimentado, de modo dramático, pelos estudantes da Universidade de Brasília que organizaram o movimento “Fora Arruda” em 2009-2010.
Após muita repressão, muitos cadáveres, muita tortura e muitas ações disciplinares como expulsões e punições, o movimento estudantil resistiu, se reergueu e se reconstruiu. Esse processo não termina nunca. Ele segue como tributo e realização dos sonhos e projetos de gerações de estudantes que, comprometidos com a liberdade e com a universalização da educação, foram parte fundamental para a consolidação da democracia que vivemos hoje. A mensagem que lançaram para o futuro permanece entre nós, 50 anos após o golpe de estado.
* Professor da Faculdade de Direito da UnB e do Programa de Mestrado em Direitos Humanos e Cidadania; membro coordenador da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB;membro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça.
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