quinta-feira, 3 de abril de 2014

O DIREITO ACHADO NO HOSPÍCIO: UMA EXPERIÊNCIA DE EXTENSÃO JURÍDICA POPULAR EM DIREITOS HUMANOS






Ludmila Cerqueira Correia[1]
Murilo Gomes Franco, Olívia Maria de Almeida[2],
Isadora Silveira Xavier, Raymara Soares da Silva[3]



RESUMO

O Centro de Referência em Direitos Humanos da Universidade Federal da Paraíba (CRDH/UFPB) desenvolve o projeto de pesquisa e extensão “Cidadania e direitos humanos: educação jurídica popular no Complexo Psiquiátrico Juliano Moreira (CPJM)” desde o ano de 2012. Integra esse projeto um grupo interdisciplinar de estudantes composto pelos cursos de graduação em Direito, Psicologia, Serviço Social e Enfermagem. O cerne de atuação do projeto é a realização de atividades de educação jurídica popular, na perspectiva da educação em direitos humanos, direcionadas às pessoas em estado de sofrimento mental internadas no CPJM, assim como seus familiares e profissionais, presentes no cotidiano das relações institucionais. O projeto adotou a metodologia da Educação Popular, teorizada por Paulo Freire, a fim de estimular o processo de empoderamento de um grupo de pessoas que, historicamente, teve uma série de direitos violados, bem como a inacessibilidade a instrumentos e mecanismos de garantias de direitos. A partir desses marcos metodológicos, torna-se possível a socialização e o “desencastelamento” do saber jurídico e, ainda o apoio às pessoas em sofrimento mental a assumirem o protagonismo na construção de seus próprios direitos, auxiliando na mudança da realidade em que vivem. Conclui-se que o projeto tem contribuído para os debates no campo da garantia dos direitos das pessoas em estado de sofrimento mental, da conquista de novos direitos e da ampliação da cidadania desse grupo social, com destaque para as pessoas internadas em hospitais psiquiátricos.

Palavras-chave: Direitos Humanos; Educação Jurídica Popular; pessoas em sofrimento mental; hospital psiquiátrico.

INTRODUÇÃO

O Centro de Referência em Direitos Humanos da Universidade Federal da Paraíba (CRDH/UFPB) desenvolve projetos de pesquisa e extensão desde o ano de 2010, que agregam temáticas como a mediação de conflitos, a assessoria jurídica popular e o apoio psicossocial, funcionando como espaço de promoção e defesa dos direitos humanos e reconhecimento da produção jurídica dos sujeitos coletivos em espaços não estatais. Em abril de 2012 teve início o projeto de extensão “Cidadania e direitos humanos: educação jurídica popular no Complexo Psiquiátrico Juliano Moreira”, composto por um grupo de catorze estudantes de Direito. No ano de 2013, ingressaram estudantes de outros cursos de graduação da UFPB: além de Direito, estudantes de Psicologia, Serviço Social e Enfermagem.
Através da Educação Jurídica Popular em Direitos Humanos, tal grupo realiza oficinas que desenvolvem temas relacionados aos direitos das pessoas internadas no Complexo Psiquiátrico Juliano Moreira (CPJM), bem como dos seus familiares. Esse projeto identifica-se enquanto uma célula do movimento da luta antimanicomial que problematiza a existência das instituições psiquiátricas a partir do enfrentamento à cultura manicomial socialmente disseminada. 
O CPJM, situado na cidade de João Pessoa, no estado da Paraíba, assim como outros manicômios, se caracteriza pela segregação das pessoas em estado de sofrimento mental, contribuindo para a perda de suas identidades e dos vínculos comunitários e sociais, o que consiste, portanto, em violações de direitos humanos constitucionalmente garantidos.
No Brasil, observa-se que existem poucas pesquisas referentes à aplicação da Lei nº 10.216/2001 e dos princípios da Reforma Psiquiátrica, o que demonstra a necessidade de maior conhecimento das práticas realizadas em instituições manicomiais e nos serviços substitutivos, assim como de um debate que insira a comunidade acadêmica e os órgãos envolvidos na temática em diálogo com a realidade social.

QUESTIONANDO O TRADICIONAL MODELO JURÍDICO

Com o objetivo de romper com a naturalização das diversas violações de direitos relacionadas ao internamento em hospitais psiquiátricos e colaborar para o empoderamento dos sujeitos sociais participantes das oficinas propostas, o projeto de extensão “Cidadania e direitos humanos: educação jurídica popular no Complexo Psiquiátrico Juliano Moreira” adotou como metodologia a Educação em Direitos Humanos e a Educação Popular.
O projeto referido visa a constituição de um espaço horizontal e de uma cultura de cidadania e de participação que pretende dar a voz a todos os envolvidos, concebendo-os enquanto sujeitos políticos construtores de sua própria formação. Para tanto, pressupõe a quebra com a relação autoritária presente no assistencialismo e no tradicional ensino jurídico, e a construção do Direito que reconheça a atuação jurídica dos sujeitos coletivos e suas experiências e conflitos.
Partindo da idéia de que a produção jurídica não esgota a sua fonte unicamente no Estado, centro do poder político, tem-se a perspectiva de construção descentralizada do Direito em espaços não formais e antidogmáticos. Reconhecer essa produção implica em compreender o esgotamento do modelo jurídico vigente, como traz Wolkmer (2001, XVII):
porquanto o modelo de cientificidade que sustenta o aparato de regulamentação estatal liberal-positivista e a cultura normativista lógico-formal já não desempenha a sua função primordial, qual seja a de recuperar institucionalmente os conflitos do sistema, dando-lhes respostas que restaurem a estabilidade da ordem estabelecida.

Esse modelo esbarra nos interesses coletivos e é incompatível com a realidade social na medida em se preocupa com a legalidade do processo em detrimento da justiça. Exemplo disso é evidenciado na escolha de uma linguagem erudita centrada em procedimentos formais, nos quais os juízes “escravos da lei” não assumem a responsabilidade pelos conflitos da sociedade (DALLARI, 2007). O monismo jurídico consagra que “todo Direito é a criação do Estado e, por conseguinte, todo Direito Estatal é Direito Positivo” (WOLKMER, 2001, p. 63,), e por seu caráter abstrato ele acaba se distanciando dos sujeitos sociais e políticos.
Como afirma Aguiar, o Estado “legisla para si para se fortalecer e não perecer e legisla para os outros grupos para exercer um controle eficaz.” (1980, p. 48). A relação que se dá a partir do controle estatal sobre os grupos sociais é ideológica e política, e o direito normativo também, tendo em vista que o ordenamento jurídico se sustenta a partir do interesse de grupos dominantes.
A dinamicidade social e seus conflitos delimitam interesses que posicionam os sujeitos em lugares diversos, ora de dominantes, ora de dominados. Nessa relação, percebe-se a instabilidade social e a insuficiência do modelo de monismo jurídico, no qual o Direito não consegue mais regular as resoluções de conflitos, tornando necessária uma nova forma de lidar com a organização social.
Nesse sentido, tem-se a insurgência de uma produção jurídica não associada com o Direito Positivo, nem tampouco com o Estado, inclusive considerando a possibilidade de existência do Direito sem o aparato estatal (WOLKMER, 2001). Visualiza-se uma soberania múltipla e plural, onde os “destinatários de um ordenamento jurídico poderão ser a fonte de um outro ordenamento jurídico” (AGUIAR, 1980, p. 48), e assim, reconhecer as manifestações normativas informais e não estatais.
Este fenômeno de reconhecimento da multiplicidade de práticas normativas nos espaços sócio-políticos configura o denominado pluralismo jurídico, que se sustenta a partir das necessidades de organização social e cultural. Este novo olhar rompe com a lógica centralizadora de que o Estado seja fonte exclusiva da produção do Direito e admite a existência de
mais de uma realidade, de múltiplas formas de ação prática e da diversidade de campos sociais com particularidade própria, ou seja, envolve o conjunto de fenômenos autônomos e elementos heterogêneos que não se reduzem entre si (WOLKMER, 2001, p. 172).

Ainda que informalmente os sujeitos coletivos busquem soluções para os conflitos concretos, o aparelho burocrático estatal continua como principal responsável pelo controle social formal. Sendo o direito o operador desse poder controlador e disciplinador através do discurso da violência, ele pode aniquilar a individualidade dos sujeitos a partir da imposição de ações regradas, ligadas às normas jurídicas. É importante notar que não somente o direito exerce técnicas de disciplinamento, mas também outras ciências, como a psiquiatria e a psicologia. A respeito do poder disciplinador:
aqueles que se insurgem contra a disciplina receberão contra si o tapa da mão pesada da sanção, os que não forem aptos a se disciplinarem, pura e simplesmente, sofrerão a sanção da não participação da vida econômico-financeira dos que se encontram sob a égide daquele poder (AGUIAR, 1980, p. 69).

Destaque-se que as tradicionais ciências se configuram enquanto disciplinadoras e podem também exercer sanção, mesmo que implícita, sobre os sujeitos. Muitas vezes, a internação de um “louco” num hospital psiquiátrico a partir de um discurso de tratamento representa a aplicação da “mão pesada da sanção” da psiquiatria e da psicologia sobre o corpo e a liberdade do indivíduo. Esta sanção se disfarça enquanto prática “humana” e “caridosa” de cuidado que mistifica ideologicamente o fato de que a própria sociedade aprisiona e regula todos os comportamentos, estabelecendo o que se considera normal e o que se desvirtua disso (AGUIAR, 1980).

DIREITO NO HOSPÍCIO: CONTRIBUIÇÕES DA EDUCAÇÃO JURÍDICA POPULAR EM DIREITOS HUMANOS

O conceito de “educação bancária” atribuído por Paulo Freire (1987) à forma tradicional de se educar se refere a uma relação de poder que consiste na transferência de conhecimento de uma pessoa detentora do saber para outra que não o possui. Não estando apartada de outras relações interpessoais políticas e econômicas presentes na sociedade, essa “transferência de informação” que tem sido chamada de “educação” não só configura a polarização entre indivíduos opressores e oprimidos, mas também serve de instrumento de manutenção para que essas outras relações de dominação históricas continuem existindo.
A experiência da educação bancária não raramente se faz presente no cotidiano das salas de aula dos cursos de graduação[4] da UFPB em que estão matriculados(as) os(as) estudantes que compõem o projeto “Cidadania e Direitos Humanos: Educação Jurídica Popular no Complexo Psiquiátrico Juliano Moreira”. Para escapar dessa realidade e não repeti-la na atuação enquanto extensionistas, os(as) estudantes apostam na metodologia da educação jurídica popular, que viabiliza a construção coletiva de um conhecimento cujo conteúdo tenha como base os direitos humanos.
Ressalte-se que essa prática se contrapõe radicalmente ao modelo tradicional de educação, não somente porque trabalha com temas ligados aos direitos e às garantias fundamentais, mas, sobretudo, porque está politicamente voltada ao auxílio no processo de empoderamento do grupo historicamente oprimido das pessoas em sofrimento mental, com destaque para aquelas internadas em hospitais psiquiátricos (também chamados de hospícios ou manicômios).
Segundo Zenaide (2013, p.2), “a educação em direitos humanos objetiva, entre outros aspectos, afetar a naturalização das violações aos direitos humanos” e esse é o compromisso dos(as) extensionistas. Desde março de 2012, com o início do projeto, a educação jurídica popular tem se apresentado como uma estratégia para a aproximação do direito a essas pessoas, visando “propiciar o protagonismo dos sujeitos frente ao Direito” (REDE NACIONAL DE EDUCAÇÃO JURÍDICA POPULAR, 2009).
O referido projeto busca realizar suas atividades sempre compreendendo todas as pessoas que, voluntariamente, nelas se envolvem, como sujeitos fundamentais em sua construção e titulares de plena capacidade para serem porta-vozes de si mesmos. Nesse sentido, apostando na possibilidade de interlocução e aprendizado mútuo entre extensionistas e usuários, familiares e profissionais ligados ao CPJM, as oficinas são construídas coletivamente e tratam de questões como: o direito à igualdade e não discriminação, à liberdade, à comunicação, os mecanismos de garantia de direitos, institucionalização, políticas públicas, organização do Estado, atuação do sistema de justiça e de segurança na questão das drogas, além dos serviços substitutivos de saúde mental.
O projeto atua ainda no reconhecimento de mecanismos de acesso à justiça e seu fortalecimento, interna e externamente ao Complexo Psiquiátrico, como Ouvidorias e órgãos dos sistemas de Saúde e de Justiça. A metodologia das atividades, desde o seu planejamento, execução e avaliação, proporciona, através de uma escuta diferenciada, a captação de demandas oriundas do público alvo nas oficinas, que vão orientar as discussões e estudos do grupo relacionados às violações e mecanismos de garantia de direitos das pessoas em sofrimento mental internadas em hospitais psiquiátricos.  
Para além da repercussão que o projeto de extensão tem causado dentro da instituição manicomial, é importante ressaltar a colaboração do mesmo para a formação acadêmica e pessoal dos(as) extensionistas, uma vez que a educação em direitos humanos há de cumprir o importante papel de contribuir para a valorização do ser humano, enquanto ser completo, histórico, político, cultural, afetivo, axiológico, e de promover o despertar da sua consciência enquanto tal (GUIMARÃES, 2012).
O constante trabalho coletivo que envolve a interação entre estudantes de vários cursos e rompe com a lógica de mercado individualista e de concorrência tem promovido a ressignificação da produção do conhecimento científico ao passo que amplia as possibilidades de atuação do projeto dentro e fora do hospital. Quanto a isso, é notável a diferença entre as “duas fases” [5] do projeto. A primeira, em 2012, contou majoritariamente com estudantes do curso de Direito. A segunda, em 2013, está sendo marcada pela interdisciplinaridade entre quatro áreas do conhecimento, sendo possível constatar uma maior possibilidade de atuação, impulsionada pelo fortalecimento do grupo e que tem ligação direta com a recomposição do coletivo. A respeito disso, Costa e Sousa Júnior propõem o “Direito Achado na Rua” como possibilidade de um conhecimento que supere a distância entre a teoria e a prática e que busque a conexão entre os saberes científicos:
A interdisciplinaridade se impõe como forma de compreender e explicar o mundo sem estar presa a “caixas” ou “gavetas”. Embora não negue a importância do aprofundamento e da especialização, a tentativa de construção de um conhecimento específico não pode fazer com que se saiba cada vez mais de muito pouco, o que significa nada saber. Vale observar que a interdisciplinaridade busca uma coesão de saberes diferentes (Direito, Economia, Política, Psicologia, Sociologia, etc.). (COSTA e SOUSA JUNIOR, 2009, p. 24).

A utilização da perspectiva do “Direito Achado na Rua”, que diz respeito ao reconhecimento da produção jurídica a partir dos movimentos sociais, bem como a sua ressignificação e adaptação às reivindicações populares aprisionadas no ambiente do hospício, têm sido realizadas nas atividades de extensão propostas pelo referido projeto. O impedimento institucional à possibilidade de reivindicação de direitos no espaço público decorrente do aprisionamento de uma pessoa em uma instituição psiquiátrica fechada afeta diretamente o exercício da cidadania. Uma vez que a liberdade, compreendida enquanto prerrogativa para a luta por direitos (SOUSA JUNIOR, 2008), não está acessível para os(as) usuários(as) do CPJM, essa situação não impede que essas pessoas sejam titulares da capacidade de serem cidadãs, mas dificulta demasiadamente esse processo.
Nesse sentido, o projeto apresenta-se enquanto uma extensão universitária cuja práxis é comunicativa, do modo como explicitado na obra de Freire (GUIMARÃES, 2012) e que possibilita, entre outras coisas, a quebra do monopólio do conhecimento das ciências, com destaque para o Direito. Essa realidade só tem sido possível porque, aliada à extensão, a educação jurídica popular propõe uma reflexão crítica sobre a efetividade do princípio da função social, inerente à educação e, consequentemente, à Universidade.
A extensão universitária configura-se como oportunidade do saber científico desenvolver-se com sua abertura para a sabedoria posta em prática na dinâmica social. Na medida em que se realiza a extensão universitária, sobretudo voltada para a cidadania e para os direitos humanos, a sociedade ganha por desenvolver processos de autonomia na sua luta emancipatória, e a universidade ganha ao aprender com a comunidade formas de realização da justiça social. (COSTA e SOUSA JUNIOR, 2009, p. 23).

A realização quinzenal de oficinas tem promovido o contato direto dos extensionistas com a realidade manicomial e suas contradições. Não raramente, essa interação oferece mais conteúdo educativo do que aquele que os(as) estudantes têm experienciado em sala de aula. Sobretudo porque a prática da extensão consegue aliar a fundamentação teórica do projeto com a realidade social, enquanto o conhecimento produzido em sala de aula, em geral, encerra-se em teorias sem repercussão prática. Por exemplo, a partir do que foi estudado pelos extensionistas, percebeu-se que as demandas jurídicas oriundas do CPJM estavam ligadas a violações de direitos humanos e, ainda, que tais demandas colocam em cheque a efetividade do direito ao acesso à justiça (CORREIA et al., 2013).
Sendo tuteladas pelo Direito enquanto incapazes, essas pessoas têm o seu cotidiano marcado pela negação de suas existências enquanto sujeitos de direito. O silenciamento forçado de seus conflitos pelas várias formas de violência proporcionadas pela internação, com destaque para a medicalização, insere essas pessoas em um contexto de vitimização e expõe a fragilidade dos sistemas de saúde, justiça e segurança do Estado.
O ponto de partida para a realização das atividades do projeto tem sido provocar as pessoas que participam das oficinas com reflexões oriundas de dispositivos lúdicos e dinâmicos, como filmes, músicas, poesias, dinâmicas de grupo, ilustrações, pinturas, técnicas de Teatro do Oprimido [6], etc. A opção de se trabalhar com a arte viabilizou a realização de uma peça de teatro, um telejornal, a simulação de um processo eleitoral, dentre outros.
O trabalho com a educação em direitos humanos possui uma dimensão relacionada à solidariedade que, segundo Freire (1987), não deve ser confundida com a mera interiorização e racionalização de culpa. A capacidade de efetivação do princípio da alteridade frente às situações de opressão proporciona o impulsionamento da luta pelo respeito aos direitos humanos, posto que a violação ao direito de uma pessoa deixa de ser encarada enquanto uma situação particular para se tornar uma agressão  à coletividade.  A tarefa de educar para o “nunca mais” (ZENAIDE, 2013) exige esse tipo de comprometimento. Portanto, compreende-se que todo o investimento em educação em direitos humanos desenvolvido pelo projeto de extensão almeja contribuir para que o CPJM não mais exista, visto que a plena garantia dos direitos das pessoas ali internadas só será possível em um cuidado extra-hospitalar, tal qual preconiza a luta antimanicomial.
Em se tratando dos direitos das pessoas em sofrimento mental, é importante ressaltar que os mesmos não se encerram na seara da saúde. A maioria das pessoas internadas no CPJM são economicamente marginalizadas, além da vulnerabilidade culturalmente imposta e atrelada ao transtorno mental. Para além da íntima relação entre loucura e pobreza, a análise dessa realidade denuncia que o lugar do hospital psiquiátrico esteja sendo reforçado não só pelo cuidado ofertado em saúde mental e utilitarismo da defesa social, mas porque essa instituição supre a carência daquilo que se entende por “mínimo existencial” de muitas pessoas. Por exemplo, ainda que de forma precarizada, o CPJM proporciona moradia, alimentação, higiene, atenção à saúde, etc. Quanto a isso, cabe trabalhar a acepção de Paulo Freire (1987) sobre o “medo de liberdade” que se contrapõe ao empoderamento que o grupo de extensão estabelece enquanto objetivo. Esse conceito é um desafio para a prática da educação popular em direitos humanos e se expressa de forma recorrente na realidade das pessoas que trabalham ou que estão internadas no hospital psiquiátrico. Ele se traduz, por exemplo, no receio de que a instituição, mesmo sendo opressora, deixe de existir e junto com ela, acabem as provisões que ela oferece.
Mais um desafio à atuação do projeto se expressa em outros dois conceitos também trabalhados por Freire (1987) em seu livro Pedagogia do Oprimido, são eles o enquadramento de indivíduos em “ser mais” e “ser menos”. Ressalte-se que a complexidade dessa relação afasta a possibilidade de reducionismos maniqueístas. O primeiro diz respeito ao polo oprimido da relação de poder ou ainda àquele que luta pela humanização e quebra da relação de opressão. Resta ao segundo conceito o papel da violência e opressão.
A partir desse panorama, o projeto de extensão se enquadra enquanto “ser mais” e a instituição psiquiátrica enquanto “ser menos”. Dessa relação de contraposição emerge o sentimento de inquietação dos(as) extensionistas, oriundos(as) de um Centro de Referência em Direitos Humanos, em testemunhar frequentemente situações de violações aos direitos humanos. Esse sentimento funciona como importante elemento que reforça o comprometimento do projeto em contribuir para o fechamento dos hospitais psiquiátricos a partir de uma atuação que compreenda bem a dinâmica hospitalar para poder, assim, desmantelá-la.
Para além do que foi produzido nas oficinas, no que se refere aos resultados que o projeto tem alcançado, é importante ressaltar o papel estratégico da educação em direitos humanos na captação de demandas do CPJM, as quais vêm sendo supridas em atuações extra-hospitalares. Por exemplo, a provocação à Defensoria Pública para que atue assessorando juridicamente os casos de cumprimento de medida de segurança, articulações que mobilizaram o Ministério Público e a Vara de Execuções Penais a autorizarem a saída temporária de pessoas internadas no hospital, contatos com o Desembargador Ouvidor do Tribunal de Justiça da Paraíba.
O segundo ano de atuação do projeto tem sido marcado por uma maior inserção no hospital, evidenciada pela aproximação com algumas categorias de profissionais, de modo a, inclusive, ser pensado um cronograma de formação em direitos humanos junto aos trabalhadores que será posto em prática ainda em 2013. O estabelecimento de vínculos com alguns usuários(as) do hospital tornou-se fortalecido em virtude das recorrentes atividades do projeto na instituição e essa afinidade tem repercutido diretamente na qualidade das oficinas. Outra conquista importante do projeto se deu pela aproximação estratégica com a direção do CPJM, que passou a reconhecer o papel político do Centro de Referência em Direitos Humanos em diligenciar casos emblemáticos de graves violações a direitos. A diretoria do hospital passou a detectar esses casos e a encaminhá-los para análise dos(as) extensionistas como uma forma de não se omitir em razão dos conflitos existentes na instituição. 
Compreender o hospital psiquiátrico enquanto dispositivo que operacionaliza e responde à necessidade de defesa social se faz necessário para que se possa fechá-lo. Entendimentos como esse consideram a amplitude do fenômeno cultural da manicomialização e denotam que ele não se limita à instituição psiquiátrica e está disseminado socialmente. O propósito do projeto em execução naquele Complexo Psiquiátrico vai além de reconhecer o Direito achado no hospício, pois pretende que ele sirva de instrumento para a desconstrução da realidade manicomial.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A compreensão da multiplicidade de práticas do Direito e o reconhecimento da construção do Direito em um hospital psiquiátrico são premissas da atuação do projeto de extensão “Cidadania e Direitos Humanos: Educação Jurídica Popular no Complexo Psiquiátrico Juliano Moreira”, que integra o CRDH/UFPB.
A partir da crítica ao academicismo, cabe à extensão universitária uma atuação que não se limite ao estudo do panorama teórico e esteja vinculada ao diálogo com a sociedade. Assumindo esse desafio, o referido projeto se utiliza da educação jurídica popular em direitos humanos como estratégia de aproximação à realidade manicomial, o que tem repercutido em uma série de críticas ao conservadorismo científico e às instituições estatais. A inserção dos(as) extensionistas nesse contexto está pautada na compreensão de que a loucura interpretada enquanto doença mental nem sempre existiu. Portanto, o processo histórico e cultural de construção desse e de outros conceitos violadores de direitos, como o da periculosidade, são levados em consideração nas atividades do projeto.  
A educação jurídica popular em direitos humanos tem se revelado enquanto metodologia que auxilia no processo de empoderamento dos sujeitos, propondo a possibilidade de uma ressignificação crítica das ciências e de suas repercussões no cotidiano das pessoas internadas no CPJM. A partir da negação à cultura manicomial que emerge de movimentos como a reforma psiquiátrica, os(as) extensionistas têm colaborado na afirmação e construção dos direitos das pessoas em sofrimento mental e compreendem que a participação dessas pessoas é indispensável nos processos que almejam a transformação da realidade em que vivem. Do ponto de vista da comunicação, as atividades do projeto objetivam a dialogicidade e inclusão de todas as pessoas que, voluntariamente, estejam dispostas a participar.
Assim como a luta antimanicomial, o referido projeto compreende que os direitos das pessoas em estado de sofrimento mental não se encerram na seara da saúde. Nesse sentido, o compromisso político com o fim das instituições psiquiátricas tem possibilitado articulações extra-hospitalares que repercutem diretamente nos resultados alcançados pelo projeto e afetam diretamente a cultura manicomial.
Por fim, vale destacar que os desafios contemporâneos à luta antimanicomial estão sendo estudados e problematizados pelos(as) extensionistas integrantes do mencionado projeto de extensão, que vêm buscando impulsionar a afirmação e a construção dos direitos das pessoas em sofrimento mental internadas no Complexo Psiquiátrico Juliano Moreira através da educação jurídica popular em direitos humanos.


REFERÊNCIAS

AGUIAR, R. A. R. de. Direito, poder e opressão. São Paulo: Alfa-Omega, 1980.

CORREIA, L. C. (et al.). Direitos humanos no manicômio: problematizações em torno do acesso à justiça. Revista Responsabilidades. Minas Gerais, v. 2, n.2 Setembro de 2012 a Fevereiro de 2013. Disponível em: <http://www8.tjmg.jus.br/presidencia/programanovosrumos/pai_pj/revista/volume-2-n2.html>. Acesso em: 27 abr. 2013.

COSTA, A. B.; SOUSA JUNIOR, J. G. de. O Direito Achado na Rua: uma ideia em movimento. In: COSTA, A. B. (et al.) (Org.). O Direito achado na rua: Introdução crítica ao direito à saúde. Brasília: CEAD/UnB, 2009.

DALLARI, D. de A. O Poder dos Juízes. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 17 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

GUIMARÃES, L. M. M. Um diálogo de renovação: Extensão Jurídica Popular e Educação em direitos humanos. Feira de Santana, 2012. Monografia (Graduação em Direito). Universidade Estadual de Feira de Santana.

REDE NACIONAL DE EDUCAÇÃO JURÍDICA POPULAR. Carta de Princípios. João Pessoa, 2009. Disponível em: <http://rnejp.wordpress.com/carta-de-principios-da-rnejp/>. Acesso em: 01 mar. 2013.

SOUSA JÚNIOR, J. G. de. Direito como liberdade: o Direito achado na rua: experiências populares emancipatórias de criação do Direito. Brasília, 2008. Tese (Doutorado em Direito). Universidade de Brasília. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/dados/teses/a_pdf/tese_jose_geraldo_direito_achado_rua.pdf>. Acesso em: 01 mar. 2013.

WOLKMER, A. C. Pluralismo Jurídico: Fundamentos de uma nova Cultura no Direito. 3. ed. São Paulo: Alfa Ômega, 2001.

ZENAIDE, M. N. T. Educação em Direitos Humanos e Educação – Experiências da Universidade Federal da Paraíba. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/educar/1congresso/016_congresso_nazare_zenaide.pdf> Acesso em: 26 mai. 2013.



[1] Advogada popular. Doutoranda em Direito pela Universidade de Brasília. Mestra em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Professora Assistente do Departamento de Ciências Jurídicas da UFPB, do qual é assessora para assuntos de extensão. Coordenadora do Centro de Referência em Direitos Humanos da UFPB e do Grupo de Pesquisa e Extensão Loucura e Cidadania. ludcorreia@gmail.com
[2] Estudantes do curso de graduação em Direito da UFPB e integrantes do Grupo de Pesquisa e Extensão Loucura e Cidadania.
[3] Estudantes dos cursos de graduação em Enfermagem e Serviço Social da UFPB e integrantes do Grupo de Pesquisa e Extensão Loucura e Cidadania.
[4] Direito, Serviço Social, Psicologia e Enfermagem.
[5] O projeto de extensão foi aprovado nos editais do Programa de Extensão da Universidade Federal da Paraíba (PROBEX/UFPB) nos anos de 2012 e 2013.
[6]  As técnicas do Teatro Oprimido abrangem a prática de jogos, exercícios e técnicas teatrais, com o objetivo de estimular a discussão e a problematização de questões do cotidiano, para uma maior reflexão sobre as relações de poder. Augusto Boal sistematizou o Teatro do Oprimido, que tinha como maior objetivo a transformação da realidade.

Nenhum comentário:

Postar um comentário