Publicado originalmente no Blog Carta Maior, Seção Princípios Fundamentais, editada por Fábio de Sá e Silva
No caso da penitenciária de Pedrinhas, a doutrina do "estado de coisas inconstitucional" pode vir a ser uma alternativa jurídica fundamental.
César Augusto Baldi (*)
Com os fatos acontecidos no
Presídio de Pedrinhas, no Estado do Maranhão, que não diferem do que se
passou no Espírito Santo, mediante provocação junto à Comissão
Interamericana de Direitos Humanos, e tampouco dos pedidos relativos ao
Presídio Central de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, novamente vem à
discussão a questão da intervenção federal. E é justamente tendo em
vista estes acontecimentos que está mais que na hora de repensar a ação
interventiva.
Ora,
é pacífico na doutrina que a intervenção: (a) é medida excepcional, que
suprime a autonomia assegurada aos Estados, Distrito Federal e
Municípios em consequência de situação de anormalidade definida na
Constituição; e (b) busca resgatar a normalidade institucional e a
observância do princípio republicano, da soberania popular e da
democracia.
Nesse
sentido, na Intervenção Federal n. 5179/DF (Rel. Min. Cezar Peluso,
julg 30-06-2010), o STF entendeu que “enquanto medida extrema e
excepcional, tendente a repor estado de coisas desestruturado por atos
atentatórios à ordem definida por princípios constitucionais de extrema
relevância, não se decreta intervenção federal quando tal ordem já tenha
sido restabelecida por providências eficazes das autoridades
competentes.” Na ocasião, tratava-se de medida decorrente dos escândalos
de corrupção no Distrito Federal, envolvendo os Poderes Executivo e
Legislativo. Mesmo nesse caso, em decorrência das medidas tomadas no
âmbito da unidade da Federação, entendeu-se pela não decretação de
intervenção.
Quem
mais esteve próximo de questionar o instituto foi o Ministro Gilmar
Mendes, enquanto Presidente. Na ocasião, em decorrência de inúmeros
pedidos envolvendo o não pagamento de precatórios, o Ministro determinou
que as unidades da Federação envolvidas estabelecessem um cronograma de
recuperação das finanças e de previsão de calendário de pagamento.
Vale
dizer: procurou dar alguma satisfação aos jurisdicionados e, ao mesmo
tempo, não interferir na autonomia do ente federativo. É que a
intervenção implica não só a possibilidade de nomeação de um
interventor, mas também a impossibilidade de emendas à Constituição: não
paralisa, apenas, em parte, a atividade do Estado envolvido, incorrendo
em ônus à União, mas também impede uma parte da atividade do próprio
Congresso Nacional.
Uma
leitura atenta e comparada entre a Constituição de 1934, fruto da
Revolução de 30, e a Constituição de 1988, resultante de um processo de
democratização depois de uma ditadura militar revela algo que tem
escapado à análise.
Naquela
primeira, a intervenção era cabível: (a) para manter integridade
nacional; (b) repelir invasão estrangeira ou de um Estado em outro; (c)
para por termo à guerra civil; (d) para garantir o livre exercício de
qualquer dos Poderes Públicos Estaduais; (e) para assegurar observância
dos princípios constitucionais sensíveis, elencados no art. 7º, I,
alíneas “a” a “h”; (f) para reorganizar as finanças do Estado que, sem
motivo de força maior, suspender, por mais de dois anos, o serviço de
sua dívida fundada; e (g) para execução de ordens e decisões de Juízes e
Tribunais Federais (CF 1934, art. 12).
Na
atual, ficaram mantidas as hipóteses e, aos poucos, incluiu-se a
aplicação de mínimo de receitas em ensino e saúde, além da previsão –
agora aventada – de respeito dos “direitos da pessoa humana” (CF 1988,
art. 34). Em suma: no período da Constituição cidadã, depois de um longo
período de centralismo federal e de ditadura militar, as hipóteses de
intervenção federal foram ampliadas. Contraditoriamente, a
característica de exceção tem que conviver com a ampliação das
possibilidades. Daí, talvez, a dificuldade com que o STF tenha se
deparado para determinar a sua aplicação. Tudo indica, pois, que o
instituto necessita ser seriamente repensado. Mas por que caminhos se
deveria fazê-lo?
O
Brasil tem assumido a importação, muitas vezes acrítica, de diversos
institutos europeus e tem virado as costas para os desenvolvimentos na
jurisprudência dos países vizinhos. Um olhar mais atento para a
jurisprudência da Corte Colombiana e dentro da mesma lógica que tem
pautado o incremento, por parte do STF, das audiências públicas (o sítio
eletrônico do STF noticia, em 10/01/2014, que em 2013 foram realizadas
sete), poderia indicar a utilização, por aqui, da teoria do “estado de
coisas inconstitucional”. É hora, pois, de começar a ser olhar para o
Sul Global e não apenas para o Norte.
Esta
teoria vem sendo utilizada pela Corte Constitucional colombiana para os
chamados “casos estruturais”, ou seja: (a) situação de fracasso
generalizado de políticas públicas, associado a violações reiteradas e
massivas de direitos humanos; (b) bloqueio do processo político ou
institucional que parece, de certa forma, imune aos mecanismos de ajuste
e correções tradicionais; e (c) violações de direitos que não podem ser
atribuídas unicamente a uma autoridade estatal, decorrendo de
deficiências estruturais.
Nesse
sentido, a Corte aplicou a teoria para casos: (a) de saúde pública (de
forma implícita na Sentencia T-760/2008), que é distinto da hipótese do
Brasil, em que há legislação específica; (b) para presídios, por
violação de direitos dos presos e condições carcerárias (Sentencias
T-153/98, T-606/98, T-607/98 e T-412/2009); (c) para deslocamentos
internos, em decorrência do processo de lutas entre o governo e FARCs,
tornando a Colômbia o segundo país do mundo em termos de “refugiados
internos”, depois do Sudão (em que ficou paradigmática a Sentencia
T-025/2004).
O que é importante reter desse processo, em especial da última hipótese?
Primeiro:
naquela hipótese, entendeu-se pela existência de (a) prolongadas
omissões das autoridades competentes; (b) práticas estatais
inconstitucionais; (c) falta de medidas legislativas, executivas ou
orçamentárias para atender o problema; e (d) falta de intervenção e
coordenação das entidades relevantes envolvidas.
Segundo:
havia um diagnóstico claro das falhas de desenho, desenvolvimento,
implementação, seguimento e avaliação das políticas públicas, apreciadas
pela Corte, além da questão orçamentária. Com isso, a própria Corte
começou um processo de fortalecimento da capacidade infra-estrutural das
autoridades relevantes.
Terceiro:
deu-se uma alteração da discussão sobre o ativismo judicial, porque, no
geral, o “ativismo” se refere a decisões com muitos níveis de
detalhamento, incorrendo na alegada usurpação de funções de outros
Poderes. Neste tipo de “ativismo dialógico” praticado pela Suprema Corte
Colombiana, as “ordens” são estabelecidas de forma mais aberta, de
forma a existir um processo de acompanhamento posterior, e, assim, os
detalhes das políticas tendem a surgir no processo de execução e não no
corpo da sentença.
Isto
implica, pois, mecanismos de acompanhamento periódicos, regulares e –
mais que isso – públicos, envolvendo, dessa forma, um número maior de
atores jurídicos. No caso da Sentencia T-025/2004, foram 84 autos de
acompanhamento e 14 audiências públicas: um procedimento participativo e
gradual de implementação do julgado, bem distinto do “ativismo
clássico”, que imagina resolver, com a sentença, todos os problemas
discutidos no processo (para uma ótima discussão, no tocante aos
direitos sociais, vide: Langford, 2013).
Nesse
sentido, Garavito e Franco (2010, p. 57-59) salientam que: (a) as
cortes podem propiciar cenários de deliberação eficazes que
complementam, ao invés de se substituir, os espaços deliberativos dos
parlamentos; e (b) serão mais úteis quanto mais utilizarem decisões de
“meios” e não de “resultados”, determinando ao Governo um desenho de
planos para ser atingidas, com prazos peremptórios e “remédios fortes”
de resultado final (“garantia eficaz dos direitos mínimos” envolvidos).
Quarto:
estes casos de sentenças estruturais despontam com características
importantes: (a) afetam um número amplo de pessoas que alegam violações
de direitos (as violações são, pois, massivas); (b) envolvem várias
entidades estatais, de distintos níveis de organização e coordenação; e
c) implicam ordens de execução complexa (Garavito e Franco, op, cit, p.
16).
Quinto:
pelo próprio espectro de atores jurídicos envolvidos, estas sentenças
implicam (idem, p. 24): (a) efeitos instrumentais diretos (desenho da
política pública); (b) efeitos instrumentais indiretos (formação de
coalizões ativistas para execução da sentença); (c) efeitos simbólicos
diretos (definição e percepção do problema como violação de direitos
humanos); e (d) efeitos simbólicos indiretos (transformação da opinião
pública sobre a gravidade e urgência do problema).
Mangabeira
Unger (1996) vem salientado que, para recuperar sua vocação
transformadora, o direito deve servir como fonte de “imaginação
institucional”, para que, a partir dele, surjam propostas de arranjos
institucionais mais promissoras que as existentes. Da mesma forma que a
jurisprudência do STF entendeu pela existência de “norma ainda
constitucional” e determinou a eficácia erga omnes da medida cautelar
nas ações declaratórias de constitucionalidade, são necessários novos
exercícios de “imaginação jurídica” para enfrentar os problemas que o
controle de constitucionalidade, por via da intervenção federal, não tem
dado conta.
A
doutrina do “estado de coisas inconstitucional” pode vir a ser uma
alternativa que interfira menos na autonomia estadual, que não suprima o
necessário debate e deliberação da questão pela sociedade e que coloque
a responsabilidade para além da clássica atenção ao Poder Executivo.
Afinal, no caso dos presídios, como já se disse recentemente, “somos
todos cúmplices”. Afinal, 20% dos detentos estão presos irregularmente,
há violações massivas de direitos humanos e parcela de culpa deve ser
imputada, também, ao Poder Judiciário, que determina prisões, não aplica
penas alternativas ou que não fiscaliza o término do cumprimento da
pena. Azevedo (2008) salientava, por exemplo, a questão da violência
doméstica no regime anterior à Lei Maria da Penha, em que os juízes
aplicavam penalidades de cesta básica, o que foi percebido como
indiferença ao problema.
E
também deve se falar do Ministério Público, quando não exerce o
controle externo da polícia, adquire uma sanha inquisitória ou não
fiscaliza os presídios para verificação do cumprimento dos tratados
internacionais de direitos humanos (aí incluída a prática de tortura). E
do Poder Legislativo, com um processo de endurecimento da legislação
penal, às vezes sem sequer verificar como vem sendo aplicada, na
prática, e os resultados (de que a legislação de drogas, questionada
internacionalmente, é apenas um exemplo).
Necessita-se,
pois, de renovados exercícios de “imaginação jurídica”, para suprir
esse “estado de coisas inconstitucional” e, pois, de deliberada omissão
institucional.
(*)
Mestre em Direito pela ULBRA/RS e doutorando pela Universidad Pablo
Olavide (Espanha), servidor do TRF-4ª Região desde 1989 e organizador do
livro “Direitos humanos na sociedade cosmopolita” (Ed. Renovar, 2004).
Baldi é também pesquisador do Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humano da UnB e integra o coletivo Diálogos Lyrianos
Referências
César Rodríguez Garavito e Diana Rodríguez Franco. Cortes y cambio social. Bogotá, DeJusticia, 2010
Roberto Mangabeira Unger. What sould legal analysis become? London: Verso, 1996
Malcolm
Langford (ed.) Teoría y jurisprudencia de los derechos sociales;
tendencias emergentes en el derecho internacional e comparado. Bogota:
Universidad de los Andes-Siglo del Hombre, 2013
Rodrigo
Ghiringhelli de Azevedo. Sistema Penal e Violência de Gênero: análise
sociojurídica da Lei 11.340/06. In: Sociedade e Estado, Brasília, v. 23,
n. 1, p. 113-135, jan./abr. 2008.
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