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quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Presídios: estado de coisas inconstitucional

Publicado originalmente no Blog Carta Maior, Seção Princípios Fundamentais, editada por Fábio de Sá e Silva

No caso da penitenciária de Pedrinhas, a doutrina do "estado de coisas inconstitucional" pode vir a ser uma alternativa jurídica fundamental.


César Augusto Baldi (*) EBC
Com os fatos acontecidos no Presídio de Pedrinhas, no Estado do Maranhão, que não diferem do que se passou no Espírito Santo, mediante provocação junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, e tampouco dos pedidos relativos ao Presídio Central de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, novamente vem à discussão a questão da intervenção federal. E é justamente tendo em vista estes acontecimentos que está mais que na hora de repensar a ação interventiva.
Ora, é pacífico na doutrina que a intervenção: (a) é medida excepcional, que suprime a autonomia assegurada aos Estados, Distrito Federal e Municípios em consequência de situação de anormalidade definida na Constituição; e (b) busca resgatar a normalidade institucional e a observância do princípio republicano, da soberania popular e da democracia.
Nesse sentido, na Intervenção Federal n. 5179/DF (Rel. Min. Cezar Peluso, julg 30-06-2010), o STF entendeu que “enquanto medida extrema e excepcional, tendente a repor estado de coisas desestruturado por atos atentatórios à ordem definida por princípios constitucionais de extrema relevância, não se decreta intervenção federal quando tal ordem já tenha sido restabelecida por providências eficazes das autoridades competentes.” Na ocasião, tratava-se de medida decorrente dos escândalos de corrupção no Distrito Federal, envolvendo os Poderes Executivo e Legislativo. Mesmo nesse caso, em decorrência das medidas tomadas no âmbito da unidade da Federação, entendeu-se pela não decretação de intervenção. 
Quem mais esteve próximo de questionar o instituto foi o Ministro Gilmar Mendes, enquanto Presidente. Na ocasião, em decorrência de inúmeros pedidos envolvendo o não pagamento de precatórios, o Ministro determinou que as unidades da Federação envolvidas estabelecessem um cronograma de recuperação das finanças e de previsão de calendário de pagamento. 
Vale dizer: procurou dar alguma satisfação aos jurisdicionados e, ao mesmo tempo, não interferir na autonomia do ente federativo. É que a intervenção implica não só a possibilidade de nomeação de um interventor, mas também a impossibilidade de emendas à Constituição: não paralisa, apenas, em parte, a atividade do Estado envolvido, incorrendo em ônus à União, mas também impede uma parte da atividade do próprio Congresso Nacional. 
Uma leitura atenta e comparada entre a Constituição de 1934, fruto da Revolução de 30, e a Constituição de 1988, resultante de um processo de democratização depois de uma ditadura militar revela algo que tem escapado à análise.
Naquela primeira, a intervenção era cabível: (a) para manter integridade nacional; (b) repelir invasão estrangeira ou de um Estado em outro; (c) para por termo à guerra civil; (d) para garantir o livre exercício de qualquer dos Poderes Públicos Estaduais; (e) para assegurar observância dos princípios constitucionais sensíveis, elencados no art. 7º, I, alíneas “a” a “h”; (f) para reorganizar as finanças do Estado que, sem motivo de força maior, suspender, por mais de dois anos, o serviço de sua dívida fundada; e (g) para execução de ordens e decisões de Juízes e Tribunais Federais (CF 1934, art. 12).
Na atual, ficaram mantidas as hipóteses e, aos poucos, incluiu-se a aplicação de mínimo de receitas em ensino e saúde, além da previsão – agora aventada  – de respeito dos “direitos da pessoa humana” (CF 1988, art. 34). Em suma: no período da Constituição cidadã, depois de um longo período de centralismo federal e de ditadura militar, as hipóteses de intervenção federal foram ampliadas. Contraditoriamente, a característica de exceção tem que conviver com a ampliação das possibilidades. Daí, talvez, a dificuldade com que o STF tenha se deparado para determinar a sua aplicação. Tudo indica, pois, que o instituto necessita ser seriamente repensado. Mas por que caminhos se deveria fazê-lo? 
O Brasil tem assumido a importação, muitas vezes acrítica, de diversos institutos europeus e tem virado as costas para os desenvolvimentos na jurisprudência dos países vizinhos. Um olhar mais atento para a jurisprudência da Corte Colombiana e dentro da mesma lógica que tem pautado o incremento, por parte do STF, das audiências públicas (o sítio eletrônico do STF noticia, em 10/01/2014, que em 2013 foram realizadas sete), poderia indicar a utilização, por aqui, da teoria do “estado de coisas inconstitucional”. É hora, pois, de começar a ser olhar para o Sul Global e não apenas para o Norte. 
Esta teoria vem sendo utilizada pela Corte Constitucional colombiana para os chamados “casos estruturais”, ou seja: (a) situação de fracasso generalizado de políticas públicas, associado a violações reiteradas e massivas de direitos humanos; (b) bloqueio do processo político ou institucional que parece, de certa forma, imune aos mecanismos de ajuste e correções tradicionais; e (c) violações de direitos que não podem ser atribuídas unicamente a uma autoridade estatal, decorrendo de deficiências estruturais.
Nesse sentido, a Corte aplicou a teoria para casos: (a)  de saúde pública (de forma implícita na Sentencia T-760/2008), que é distinto da hipótese do Brasil, em que há legislação específica; (b) para presídios, por violação de direitos dos presos e condições carcerárias (Sentencias T-153/98, T-606/98, T-607/98 e T-412/2009); (c) para deslocamentos internos, em decorrência do processo de lutas entre o governo e FARCs, tornando a Colômbia o segundo país do mundo em termos de “refugiados internos”, depois do Sudão (em que ficou paradigmática a Sentencia T-025/2004). 
O que é importante reter desse processo, em especial da última hipótese? 
Primeiro: naquela hipótese, entendeu-se pela existência de (a) prolongadas omissões das autoridades competentes; (b) práticas estatais inconstitucionais; (c) falta de medidas legislativas, executivas ou orçamentárias para atender o problema; e (d) falta de intervenção e coordenação das entidades relevantes envolvidas. 
Segundo: havia um diagnóstico claro das falhas de desenho, desenvolvimento, implementação, seguimento e avaliação das políticas públicas, apreciadas pela Corte, além da questão orçamentária. Com isso, a própria Corte começou um processo de fortalecimento da capacidade infra-estrutural das autoridades relevantes.  
Terceiro: deu-se uma alteração da discussão sobre o ativismo judicial, porque, no geral, o “ativismo” se refere a decisões com muitos níveis de detalhamento, incorrendo na alegada usurpação de funções de outros Poderes. Neste tipo de “ativismo dialógico” praticado pela Suprema Corte Colombiana, as “ordens” são estabelecidas de forma mais aberta, de forma a existir um processo de acompanhamento posterior, e, assim, os detalhes das políticas tendem a surgir no processo de execução e não no corpo da sentença.
Isto implica, pois, mecanismos de acompanhamento periódicos, regulares e – mais que isso – públicos, envolvendo, dessa forma, um número maior de atores jurídicos. No caso da Sentencia T-025/2004, foram 84 autos de acompanhamento e 14 audiências públicas: um procedimento participativo e gradual de implementação do julgado, bem distinto do “ativismo clássico”, que imagina resolver, com a sentença, todos os problemas discutidos no processo (para uma ótima discussão, no tocante aos direitos sociais, vide: Langford, 2013). 
Nesse sentido, Garavito e Franco (2010, p. 57-59) salientam que: (a) as cortes podem propiciar cenários de deliberação eficazes que complementam, ao invés de se substituir, os espaços deliberativos dos parlamentos; e (b) serão mais úteis quanto mais utilizarem decisões de “meios” e não de “resultados”, determinando ao Governo um desenho de planos para ser atingidas, com prazos peremptórios e “remédios fortes” de resultado final (“garantia eficaz dos direitos mínimos” envolvidos). 
Quarto: estes casos de sentenças estruturais despontam com características importantes: (a) afetam um número amplo de pessoas que alegam violações de direitos (as violações são, pois, massivas); (b) envolvem várias entidades estatais, de distintos níveis de organização e coordenação; e c) implicam ordens de execução complexa (Garavito e Franco, op, cit, p. 16).  
Quinto: pelo próprio espectro de atores jurídicos envolvidos, estas sentenças implicam (idem, p. 24): (a)  efeitos instrumentais diretos (desenho da política pública); (b) efeitos instrumentais indiretos (formação de coalizões ativistas para execução da sentença); (c) efeitos simbólicos diretos (definição e percepção do problema como violação de direitos humanos); e (d) efeitos simbólicos indiretos (transformação da opinião pública sobre a gravidade e urgência do problema).
Mangabeira Unger (1996) vem salientado que, para recuperar sua vocação transformadora, o direito deve servir como fonte de “imaginação institucional”, para que, a partir dele, surjam propostas de arranjos institucionais mais promissoras que as existentes. Da mesma forma que a jurisprudência do STF entendeu pela existência de “norma ainda constitucional” e determinou a eficácia erga omnes da medida cautelar nas ações declaratórias de constitucionalidade, são necessários novos exercícios de “imaginação jurídica” para enfrentar os problemas que o controle de constitucionalidade, por via da intervenção federal, não tem dado conta. 
A doutrina do “estado de coisas inconstitucional” pode vir a ser uma alternativa que interfira menos na autonomia estadual, que não suprima o necessário debate e deliberação da questão pela sociedade e que coloque a responsabilidade para além da clássica atenção ao Poder Executivo. Afinal, no caso dos presídios, como já se disse recentemente, “somos todos cúmplices”. Afinal, 20% dos detentos estão presos irregularmente, há violações massivas de direitos humanos e parcela de culpa deve ser imputada, também, ao Poder Judiciário, que determina prisões, não aplica penas alternativas ou que não fiscaliza o término do cumprimento da pena. Azevedo (2008) salientava, por exemplo, a questão da violência doméstica no regime anterior à Lei Maria da Penha,  em que os juízes aplicavam penalidades de cesta básica, o que foi percebido como indiferença ao problema. 
E também deve se falar do Ministério Público, quando não exerce o controle externo da polícia, adquire uma sanha inquisitória ou não fiscaliza os presídios para verificação do cumprimento dos tratados internacionais de direitos humanos (aí incluída a prática de tortura). E do Poder Legislativo, com um processo de endurecimento da legislação penal, às vezes sem sequer verificar como vem sendo aplicada, na prática, e os resultados (de que a legislação de drogas, questionada internacionalmente, é apenas um exemplo). 
Necessita-se, pois, de renovados exercícios de “imaginação jurídica”, para suprir esse “estado de coisas inconstitucional” e, pois, de deliberada omissão institucional.
(*) Mestre em Direito pela ULBRA/RS e doutorando pela Universidad Pablo Olavide (Espanha), servidor do TRF-4ª Região desde 1989 e organizador do livro “Direitos humanos na sociedade cosmopolita” (Ed. Renovar, 2004).
Baldi é também pesquisador do Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humano da UnB e integra o coletivo Diálogos Lyrianos
Referências
César Rodríguez Garavito e Diana Rodríguez Franco. Cortes y cambio social. Bogotá, DeJusticia, 2010
Roberto Mangabeira Unger. What sould legal analysis become? London: Verso, 1996 
Malcolm Langford (ed.) Teoría y jurisprudencia de los derechos sociales; tendencias emergentes en el derecho internacional e comparado. Bogota: Universidad de los Andes-Siglo del Hombre, 2013
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo. Sistema Penal e Violência de Gênero: análise sociojurídica da Lei 11.340/06. In: Sociedade e Estado, Brasília, v. 23, n. 1, p. 113-135, jan./abr. 2008.

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