terça-feira, 3 de junho de 2025

 

Seminário Nacional sobre os Direitos das Camponesas e dos Camponeses

Por: José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF

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Realizou-se em Brasília, neste fim de semana – 30/05 a 01/06/2025, importante seminário com o objetivo de estabelecer estratégias de incidência política a respeito da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos das Camponesas e dos Camponeses.

O Seminário, neste aspecto, além de seus protagonistas mais organizados, preocupou-se em construir interlocução junto a parlamentares, autoridades, e órgãos governamentais – Ministério da Justiça, Ministério dos Direitos Humanos, Conselho Nacional de Direitos Humanos, Secretaria Geral da Presidência da República, Ministério das Relações Exteriores, Ministério do Desenvolvimento Agrário.

Daí a programação com temas e animadores para descortinar uma agenda forte para essa incidência. Temas como desafios para garantia dos DHs dos camponeses/as: realidades e possibilidades, que me foi confiado para propor um debate de conhecimento e de ação; análise da conjuntura e desafios para os Movimentos Populares, conduzido pelo advogado, membro da coordenação nacional de direitos humanos do MST Diego Vedovatto; incorporação da Declaração dos Direitos dos Camponeses/as no Sistema Normativo Nacional, Camila Gomes, articulação Terra de Direitos, também advogada especializada em litígio internacional estratégico em direitos humanos; Direito Campesino à Alimentação e a Soberania Alimentar como Direito Humano, debate conduzido por Claudeilton Luiz, do MPA – Movimento dos Pequenos Agricultores; questão ambiental e os direitos humanos, a cargo de Jaqueline Alves, do MAB – Movimento dos Atingidos por Barragens; direitos das mulheres camponesas; a luta pela Terra, direito e o território; Violação dos direitos humanos em comunidades indígenas; com participações de militantes do MMC – Movimento de Mulheres Camponesas, MST – Movimento dos Trabalhadores sem Terra, CIMI – Conselho Indigenista Missionário; incidência na COP 30 e Cúpula dos Povos; conduzida por Letícia Souza (MST) e Vercilene Dias, da CONAQ – Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas. Claro, a partir de uma apresentação feita por Marciano Toledo, do MPA, a título de Introdução à Declaração dos Direitos das Camponesas e dos Camponeses.

As indicações programáticas contudo, não completamente arroladas, dão a medida das representações e da qualidade da discussão que se travou durante o Seminário, ainda mais contundente quando se tem em conta a metodologia dos Coletivos (preponderando os ativistas do setor de direitos humanos e das assessorias jurídicas dos movimentos e da Via Camponesa), que anima os debates internos. Incluindo nas atividades a mística do MST, hoje não só do MST, o ritual coletivo que combina símbolos, músicas, poesias e encenações para expressar e reforçar valores de solidariedade, identidade camponesa e resistência, criando um senso de comunidade e propósito compartilhado em suas atividades.

A importância do Seminário se faz ainda mais exponencial quando se considera a relevância mobilizadora da Via Campesina Brasil. Não só pela densidade das diversas organizações e movimentos sociais do campo que reúne, com o objetivo comum de lutar por justiça social, reforma agrária, soberania alimentar, direitos camponeses e ambientais. Alguns dos principais movimentos que a compõem são: MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra); MPA (Movimento dos Pequenos Agricultores); MMC (Movimento de Mulheres Camponesas); MIQCB (Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu); CPT (Comissão Pastoral da Terra); CIMI (Conselho Indigenista Missionário); CONAQ (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas); PJR (Pastoral da Juventude Rural); FEAB (Federação dos Estudantes de Agronomia do Brasil); Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), quase todos presentes no Seminário.

Esses movimentos atuam de maneira articulada para fortalecer a luta do campesinato e dos povos do campo no Brasil, buscando ampliar os direitos e resistir aos impactos do agronegócio e do capital sobre os territórios rurais.

Mas a Via Campesina é um movimento internacional de articulação de organizações camponesas, de trabalhadores rurais, povos indígenas e comunidades tradicionais. Ela surgiu como resposta ao avanço do neoliberalismo e do agronegócio, buscando fortalecer a luta dos camponeses e camponesas em todo o mundo.

Como tal, é uma rede global de organizações camponesas, fundada oficialmente em 1993, em Mons, na Bélgica, reunindo movimentos de diferentes países para dar voz aos camponeses e enfrentar o poder das transnacionais e do agronegócio, tendo se consolidado como um ator fundamental na denúncia das desigualdades impostas pelo modelo agroindustrial e em propor alternativas baseadas na agricultura familiar, agroecologia e na defesa dos bens comuns.

Em 1993, durante a Primeira Conferência Internacional da Via Campesina, foram definidos os princípios básicos: solidariedade internacional, autonomia dos movimentos e a prioridade à agricultura camponesa como base para a segurança alimentar. Desde então, a Via Campesina tem articulado organizações de mais de 80 países e foi responsável pela construção do conceito de soberania alimentar (lançado em 1996) como alternativa ao agronegócio e à globalização alimentar.

Inclui-se entre as mobilizações da Via Campesina, a publicação de Comentários à Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos das Camponesas e dos Camponeses/ organizado por Maria Cristina Vidotte Blanco Tárrega, Girolamo Domenico Treccani, Thaisa Mara Held, Tiago Resende Botelho. – São Paulo, SP : Liber Ars, 2022. 240 p. E-book. Acesso: https://www.academia.edu/126478691/Comentários_à_Declaração_das_Nações_Unidas_sobre_os_Direitos_das_Camponesas_e_dos_Camponeses.

Também me senti convocado pelos organizadores e pelas organizadoras e também pela causa para contribuir para o livro. Um pouco para externar o sentido dessa convocação e um tanto como amostra, remeto à publicação para disponibilizar o teor de meu comentário dirigido ao artigo 8º da Declaração – Liberdade de Pensamento, Opinião e Expressão.

No livro e em meu texto, que procurei resenhar em https://estadodedireito.com.br/comentarios-a-declaracao-das-nacoes-unidas-sobre-os-direitos-das-camponesas-e-dos-camponeses/, parto do pressuposto, tal como também sugeri em minha participação no Seminário, de que os direitos não são dados, são construídos, resultam de lutas por reconhecimento, na sua síntese mais ampla, por acesso ao resultado da riqueza socialmente produzida; e por participação política no processo de decisão sobre a distribuição justa dos bens da vida.

Daí resultam duas tensões com impactos históricos, sociais, políticos, éticos e jurídicos: a disputa pelo modo de exercitar e de abrir acessos aos meios articulados de realizar justiça; e de estabelecimento de procedimentos válidos para administrar os critérios deliberativos que balizem a relação problemática entre a produção e a reprodução da existência e a satisfação das necessidades sociais.

A dialética que se inscreve no movimento dessas tensões, evidentemente configuradas numa indeterminação de efeitos, pode ser aferida em três dimensões discerníveis: o constituir da subjetividade ativa que desencadeia as interações sociais, o humanizar-se e fazer-se sujeito; o designar os espaços e os modos de interação para o exercício da inteligibilidade cognitiva acerca dos modos de manifestar o pensamento, exercitar posicionamentos formando opiniões e os de os expressar de modo comunicativo e avaliativo; e os juízos valorativos para estabelecer a materialidade ordenadora da convivência e do agir.

Penso que esse processo pode ser aferido num salto que a conscientização opera da história para a política por mediação da justiça e do direito. A conscientização enquanto afirmação de inter-subjetividades, vale dizer, o sentido que estrutura identidade e pensamento, como passagem da existência para a consciência, é um processo que permite constituir continuamente o humano e sua expressão como sujeito. A dialética e o pensamento filosófico de práxis, em qualquer de suas vertentes, idealista ou materialista, não se conforma com o humano como derivação única da biologia, senão como experiência na história, o que significa dizer, que não nascemos humanos, nos tornamos humanos, sujeitos.

É dessa seiva que se deve nutrir uma interpretação dos enunciados da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos das Camponesas e dos Camponeses. Ainda que o texto que abre o documento, na publicação da Via Campesina, se conforme a uma auto-contenção, atribuindo às declarações um caráter instrumental “soft law”, isto é, sem força vinculava ou mecanismos formais de monitoramento ou execução, sabe-se hoje que não é bem assim. Sabe-se, desde Viena e o conjunto de declarações que a década dos 1990 proporcionou, por impulso globalizado da força política dos movimentos sociais, em temas como habitação, mulheres, populações, racismo, xenofobia, tolerância, que elas se tornaram, reconhece o texto, importante elemento do sistema internacional de direitos humanos e tem uma potencialidade para transformar práticas em todo mundo.

Conforme dizem Carol Proner, Juvelino José Ney Strozake, Tiago Resende Botelho e Thaisa Held, em texto de Introdução ao livro, aprovada em 17 de dezembro de 2018 pela Assembleia Geral das Nações Unidas, com expressiva adesão de 121 votos a favor, 8 contra e 54 abstenções, a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Camponeses e Outras Pessoas que trabalham nas Áreas Rurais, conhecida pelo acrônimo em inglês UNDROP, é considerado um documento único pela forma de engajamento para que fosse alcançado. É uma declaração estratégica para um novo modelo de agricultura, respeitando a ecologia e os que vivem e trabalham no cultivo da terra. No entanto, o Brasil foi o único na América Latina a não votar a favor da aprovação da Declaração (absteve-se), alegando que o texto não estava pronto e que novas negociações deveriam ser realizadas, postura que revela a trágica etapa da história brasileira que na conjuntura atual está sendo superada com esforço combinado de um novo projeto político e governamental de sociedade, ao tempo em que os movimentos e defensores da agroecologia preparam as mentes e consciência para a chegada de alternativas sustentáveis e humanitárias.

Por isso acentuei no livro, em meu artigo e também no Seminário, instalado numa outra conjuntura de luta redemocratizante, esse potencial de realização, que se faz hermeneuticamente e na própria aplicação das disposições de direitos humanos pelos tribunais internacionais, ao operar-se um salto formidável do simplesmente prometido para o cogente, inscrito nas resoluções dessas Cortes. Por meio de novos paradigmas, novos conceitos ou alargamento de categorias antigas, de que é referência tomada aqui a título de homenagem, a judicatura de Antonio Augusto Cançado Trindade, duas vezes presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos e juiz na Corte Internacional de Haia, em exercício de mandato, quando a morte o colheu, prematuramente, no dia 27 de maio de 2022.

De Cançado Trindade são os conceitos de projeto de vida que se deve preservar na aplicação das normas internacionais de direitos humanos; de reparação da dignidade ofendida, não apenas indenizatória das violações mas restauradoras da dignidade e do projeto de vida; de uma hermenêutica expandida, apta a vencer no plano da internacionalização dos direitos das declarações, tratados e convenções, as promessas dos direitos humanos que não fiquem aprisionadas, confinadas, estioladas, no enquadramento formal de um positivismo exacerbado e atrasado que impede a sua realização.

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)

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