sábado, 14 de junho de 2025

 

Mineração em territórios indígenas e de povos tradicionais: litígio estratégico na defesa de direitos

Por: José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF

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Participantes da Roda de Conversa Mineração em territórios indígenas e de povos tradicionais: litígio estratégico na defesa de direitos, com a professora Raquel Z Yrigoyen Fajardo do Instituto Derecho y Sociedad, de Lima (Peru). Foto do dispositivo de Andrea Brasil

Para uma Roda de Conversa esteve na UnB a Professora Raquel Z Yrigoyen Fajardo, do IIDS (Instituto Internacional Derecho y Sociedad) de Lima, Peru. Promovida pelo Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania do CEAM (professora Vanessa Castro), pelo Núcleo de Estudos para a Paz e Direitos Humanos (professora Talita Tatiana Dias Rampin) e pela Faculdade de Direito (professor Alexandre Bernardino Costa), a participação da professora decorreudo convite do Núcleo de Estudos da Amazônicos – CEAM para apresentar conferência no 4° Fórum Internacional Sobre a Amazônia. Também presentes apoiando o giro de conversação as professoras Nair Heloisa Bicalho de Sousa (PPGDH e Rede Brasileira de Educação para os Direitos Humanos) e a professora Elaine Moreira (ELA – Departamento de Estudos Latino-Americanos do Instituto de Ciências Sociais da UnB).

O Fórum se instalou no dia 10 de junho de 2025 no Instituto Central de Ciências (ICC-Sul), anfiteatro 9. O 4º FIA é organizado pelo Núcleo de Estudos Amazônicos (NEAz), do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (CEAM), da Universidade de Brasília e parceiros.

Assim que, com a concordância do professor Manoel Pereira Andrade, coordenador do NEAz, e do 4º FIA, a professora Raquel se dispôs a uma roda de conversa com pesquisadores da UnB, ativistas e assessores jurídicos e políticos, a partir do tema proposto que se insere na linha geral de sua incidência institucional e acadêmica voltada para a assessoria em apoio a “Autodeterminação dos povos originários e tradicionais em face da mineração e de atividades extrativistas sem consulta”.

A roda de conversa foi também uma oportunidade para identificar elementos para a renovação do Convênio-Marco de Cooperação entre a Universidade de Brasília e o Instituto Internacional de Direito e Sociedade, um acordo que foi construído com a mobilização do CEAM – Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares, da UnB e suas unidades de atuação no campo dos direitos humanos (PPGDH – Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania e NEP – Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos) e também da Faculdade de Direito da UnB.

Remeto ao inteiro teor da conversa conforme link para a sua divulgação pelo Canal Youtube do PPGDH: https://www.youtube.com/watch?v=HWewsqZjYh0 (1); https://www.youtube.com/watch?v=6tkG348XMpo&t=5677s (2).

 Mas quero distinguir da exposição clara da professora a localização histórico-política do problema à luz de categorias analíticas que ela elabora, na forma de caracterização dos ciclos históricos de invasão que o colonialismo fez incidir sobre os povos originários. Com efeito, ela caracteriza três grandes ciclos históricos de invasão dos territórios indígenas para a extração de recursos naturais em benefício de terceiros. Esses ciclos de invasão foram contestados pelas respectivas lutas de resistência anticolonial indígena, tanto ativas quanto passivas; bem como pela conquista de direitos. Primeiro ciclo histórico de invasão territorial: século XVI e a instauração colonial. Segundo ciclo histórico de invasão dos territórios: século XIX e a fundação republicana, na forma de estados nacionais. Terceiro ciclo histórico de invasão dos territórios: anos 1980 até o século XXI e as políticas do Consenso de Washington (A fundamentação completa pode ser encontrada em https://abcderechosindigenas.lamula.pe/2014/09/28/abc-en-derechos-indigenas/abcderechosindigenas/ – texto “¿A quiénes se aplica losderechos de pueblos indígenas?).

Sobre litígio estratégico, para além de remeter ao seu livro clássico – https://heyzine.com/flip-book/bfdcd2ca96.html – elaborado a partir das vivências de defesa de direitos, a professora apresentou os casos atuais em discussão no Peru e região, que formam o documento publicado pelo IIDS “Autodeterminación de losPueblos Frente a laMinería y ActividadesExtractivas Inconsultas”, publicação de outubro de 2024, uma espécie de “manual” que organiza casos emblemáticos de violações que permitiram a defesa de direitos no plano nacional com base no artigo 149 da Constituição peruana que legitima a jurisdição tradicional das comunidades indígenas, com o objetivo de garantir a proteção dos seus direitos e o respeito às suas práticas jurídicas, desde que dentro de um quadro de respeito aos direitos humanos e à lei. Também no marco jurídico e jurisprudencial internacional, permitindo medidas protetivas e até nulidade de concessões de mineração, sobretudo quando desconsideradas a participação dos povos e o respeito à consulta e consentimento prévio, livre e informado relativamente a incidências de qualquer tipo sobre seus territórios (Convenção 169, aliás ratificada pelo Brasil).

Mesa da Roda de Conversa com a professora Raquel ao centro e a estudante Manu (Direito) do Povo Tukano do Rio Negro, da Associação de Estudantes Indígenas da UnB. Foto do dispositivo de Andrea Brasil

Mesa da Roda de Conversa com a professora Raquel ao centro e a estudante Manu (Direito) do Povo Tukano do Rio Negro, da Associação de Estudantes Indígenas da UnB. Foto do dispositivo de Andrea Brasil

Pedi a Victor Hugo Streit Vieira, advogado da APIB – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, presente na roda que fizesse um comentário expandido a partir de sua intervenção na conversa, para apresentar a grandeza das ameaças que incidem sobre os direitos originários dos povos indígenas e o tamanho da dificuldade não só jurídica mas também política que se coloca para a defesa estratégica de direitos dos povos.

Segundo ele, desde a decisão do STF no julgamento do Recurso Extraordinário com repercussão geral (RE Xokleng) e a posterior edição da Lei 14.701/2023, consolida-se no Brasil um movimento regressivo de desconstitucionalização dos direitos territoriais indígenas. Embora o STF tenha declarado a inconstitucionalidade da tese do marco temporal, a nova lei recria, por via infraconstitucional, diversos de seus elementos centrais, inclusive ao impor filtros administrativos, participação de terceiros interessados e condicionantes político-orçamentárias ao reconhecimento de terras tradicionalmente ocupadas. Esse tensionamento normativo se dá, ainda, no contexto da crescente ofensiva legislativa e judicial para viabilizar a mineração em Terras Indígenas, abrindo caminho para práticas de espoliação sob o discurso de regulação e desenvolvimento sustentável.

O pior, ainda para Victor, é que a Câmara de Conciliação instaurada no Supremo Tribunal Federal, sob a relatoria do ministro Gilmar Mendes, agrava o cenário de regressão dos direitos indígenas. Apresentada como uma tentativa de mediação institucional em torno da aplicação da Lei 14.701/2023, a mesa foi denunciada pelo movimento indígena e pela APIB, que se retirou da instância já em sua segunda sessão, como espaço de conciliação forçada, sem paridade e em violação direta à Convenção 169 da OIT. No curso das reuniões, o ministro apresentou uma minuta de projeto de lei com aproximadamente 30 artigos que, entre outras medidas, propunha a regulamentação da mineração em Terras Indígenas, a criminalização das retomadas e a substituição do procedimento constitucional de demarcação por desapropriações por interesse social. Embora os trechos sobre mineração tenham sido momentaneamente retirados da tramitação, o ministro já sinalizou que o tema será retomado em nova rodada de conciliação, no âmbito da Ação de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) nº 86. A proposta segue, portanto, em análise interna na Câmara, que continua a debater aspectos estruturantes da legislação, enquanto os direitos indígenas são tratados como entraves à governabilidade e não como garantias constitucionais inegociáveis.

Victor chamou a atenção para a singularidade atual de que diversas entidades internacionais já se manifestaram com veemência, nos últimos anos, contra essa ofensiva institucional. Mais recentemente, em fevereiro de 2025, três Relatorias Especiais da ONU alertaram para os riscos da Câmara de Conciliação do STF e da Lei 14.701/2023, classificando-os como ameaça aos direitos dos povos indígenas e ao meio ambiente. Em abril, o secretário-geral da ONU, António Guterres, reforçou que os direitos indígenas são inegociáveis. Em maio, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) publicou relatório anual que, reiterando vários posicionamentos anteriores da Comissão, aponta retrocessos alarmantes causados pela aplicação do marco temporal e pela vigência da Lei 14.701/2023. Em junho, o novo Relator da ONU para os Direitos dos Povos Indígenas, Albert K. Barume, declarou publicamente que o Brasil deve abandonar “de uma vez por todas” a tese do marco temporal, denunciando o agravamento da violência e da crise ambiental no país. A sistematicidade dessas manifestações — incluindo também o ACNUDH (Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos ), outras Relatorias Especiais e os Comitês da ONU — revela que o cenário brasileiro não é apenas de conflito interno, mas de violação aberta aos compromissos internacionais assumidos pelo Estado.

E ainda ilustrou a agenda dos principais conflitos localizando o caso do Projeto Potássio do Brasil, empreendimento minerário de grande porte planejado pela empresa canadense Potássio do Brasil S.A., no município de Autazes (AM), às margens do rio Madeira, projeto que visa explorar silvinita para produção de fertilizantes destinados ao agronegócio, sobrepondo-se à Terra Indígena Lago do Soares, território de ocupação tradicional do povo Mura, em processo de demarcação desde 1997. O caso Potássio do Brasil, que não é um ponto fora da curva, mas sim a expressão de uma arquitetura política e institucional que busca abrir caminho à mineração em terras indígenas.

Ele adverte para considerar a inserção de um mesmo modelo que hoje se vê sendo executado no âmbito do judiciário nacional de esvaziamento da consulta, com o apelo ao “interesse público” como escudo para violar direitos fundamentais e decisões contraditórias que fragilizam a proteção constitucional. Modelagem que está presente na Câmara de Conciliação criada pelo ministro Gilmar Mendes no STF para discutir a Lei 14.701/2023, conhecida como a “lei do marco temporal e do genocídio indígena”.

Para Victor,seus colegas da APIB e para as assessorias de outras articulações de apoio aos sujeitos tradicionais que se encontram sob o abrigo da Convenção 169 da OIT, a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), sobre Povos Indígenas e Tribais em Estados Independentes, é um instrumento internacional que estabelece normas para a proteção e promoção dos direitos dos povos indígenas e tribais. O Brasil ratificou a convenção em 2002, e suas regras passaram a valer no território nacional a partir de 2003).

Por isso tudo, a importância da conversa com a Professora Raquel Yrigoyen, muito ativa em litígios nesses fóruns de jurisdição internacional. Uma troca (roda de conversa) muito muito relevante tendo em vista, como se vê da reunião gravada, para abrir a variante da defesa internacional dos direitos, sobretudo indígenas, por meio de litígio estratégico no âmbito das comissões e das cortes internacionais de direitos humanos.

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)

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