1964 a 2025: Anistia entre o Autoritarismo e a Democracia
Escrito por Giovanna Melgaço Barbosa [*]; Guilherme Augusto Oliveira Paim [**] e Samuel Leão Marrara [***]
INTRODUÇÃO
O ano de 1985 foi um ano muito importante para a democracia brasileira, visto que foi o ano que marcou a transição democrática após 21 anos da Ditadura Cívico-Militar, marcada pelos atos institucionais que ao longo de suas edições foram aumentando os poderes do poder executivo e restringindo os demais, restringindo sua atuação e suas instituições, a instauração de órgãos de censura e controle como o Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), a criação de leis como a de Segurança Nacional e Lei da Imprensa, além, claro, da perseguição política contra aqueles que se manifestam contra o governo. Ao longo da transição de reabertura política, surgiu a Lei de Anistia no ano de 1977, que inicialmente tinha o objetivo de perdoar os “crimes” cometidos pelas pessoas da sociedade civil contra a ordem pública vigente no período ditatorial, mas, passou a incluir também os agentes públicos que fizeram parte das instituições que executavam a vontade dos líderes autoritários. Cerca de dez anos depois, em 1987, foi criada a Assembleia Nacional Constituinte, responsável pela criação da nova Constituição Brasileira que daria fim a vigência da Constituição de 1967, promulgada durante a Ditadura Militar. A Constituição da República Federativa do Brasil do ano de 1988 deu início ao Estado Democrático de Direito que conhecemos hoje.
No dia 8 de janeiro de 2023, o Brasil esteve diante do maior ataque às instituições desde a redemocratização. Por volta das 13h, manifestantes que estavam acampados no Quartel General do Exército moveram-se até a Praça dos Três Poderes e algumas horas depois iniciaram ataques aos prédios do Palácio da Justiça, sede do Supremo Tribunal Federal, o Congresso Nacional, sede do Poder Legislativo Federal e o Palácio do Planalto, sede do Executivo federal brasileiro. O ato, que ficou conhecido como o ato golpista de 8 janeiro ou ato antidemocrático, foi organizado contra a posse de Luís Inácio Lula da Silva, candidato à presidência, vencedor nas eleições de outubro do ano anterior. O ato resultou em 12 milhões de reais de prejuízo aos cofres públicos1, além da perda imensurável de obras de artes, artefatos e itens históricos que foram danificados, furtados ou que não podem ser restaurados, além claro, do que representou esse ataque ao Estado Democrático de Direito e suas instituições. Após o início do julgamento dos manifestantes do 8 de janeiro pelo Supremo Tribunal Federal, políticos começaram a discutir a possibilidade de uma anistia.
PARALELO HISTÓRICO
Inicialmente, para a construção do tema, demonstra-se essencial a compreensão histórica de como se deu a Lei da Anistia (1979) e as repercussões que persistem atualmente.
Apesar da existência de casos em que a Anistia foi concedida anteriormente no Brasil2, foi durante a Ditadura Militar que o assunto ganhou maior proporção, em um contexto de transição para a democracia. Proposta pelo presidente João Batista Figueiredo em 1979, a Lei da Anistia concedeu perdão àqueles que cometeram, entre 1961 e 1979, crimes políticos ou conexos3, tornando-os impunes pelos atos praticados no período. Essa medida foi uma “reação da ditadura militar à crescente mobilização social pela anistia dos presos políticos, pelo retorno dos exilados e pela responsabilização dos agentes da repressão” (Reinholz; Marko; Ferreira, 2020).
Contudo, a defendida proposta de Anistia “ampla, geral e irrestrita”,4 originalmente concebida como mecanismo de reparação às vítimas da ditadura, transformou-se em instrumento de impunidade para os agressores que agiam em nome da ditadura. Ao estabelecer uma falsa equivalência entre perseguidos e perseguidores sob o argumento da “reciprocidade”, a Lei da Anistia (1979) não apenas impediu o julgamento de torturadores e assassinos, mas contribuiu com um processo de apagamento da história daqueles que foram perseguidos pela ditadura, refletindo tensões entre memória e esquecimento, democracia e autoritarismo. Esse acordo – aceito pela necessidade urgente dos perseguidos de retornarem aos seus lares e recuperarem seus direitos – teve uma condição relevante: o perdão conferido aos ofensores, negando a clara distinção entre violência de Estado e resistência política, criou uma herança marcante: a naturalização da impunidade, que hoje se reflete na banalização dos ataques à democracia.
A Anistia, que surge como um acordo político de conciliação entre o regime militar e setores da sociedade civil, não deve ser tratada apenas como um marco jurídico, mas como uma memória das desumanidades cometidas durante a Ditadura Militar. Com o propósito de denunciar os perigos do autoritarismo e servir de barreira contra a repetição de atitudes antidemocráticas. No entanto, ao equiparar vítimas e agressores sob o argumento de “pacificação” e “igualdade”, a Anistia normalizou a impunidade de quem atuou violentamente naquele período, promovendo o esquecimento. Assim, esse legado manifesta-se em tentativas de estender o mesmo princípio a atos claramente antidemocráticos, como os ocorridos em 8 de janeiro de 2023. Se, por um lado, o processo histórico-jurídico da Anistia pretende atender a demanda de sujeitos coletivos que lutam por reconhecimento e reparação, por outro, seu atual esvaziamento expõe a fragilidade política no país, demonstrando a necessidade de confrontar as narrativas que buscam banalizar a violência de Estado e o apoio à regimes ditatoriais.
ANISTIA EM 1979 X 2023
Após a análise do contexto histórico que permeou a Lei de Anistia em 1979, percebe se que nela há dois tipos de anistia: uma ligada à liberdade daqueles perseguidos politicamente pelo regime de exceção e à reparação pelos crimes cometidos por parte do Estado, e outra que trata da impunidade dos agentes criminosos e do esquecimento da responsabilidade estatal na institucionalização da violência5. Ambos os sentidos representam uma escolha – de libertar os perseguidos e rememorar seu sofrimento, ou de premiar os agentes da repressão com a falta de punição. Apesar do esforço do Exército Brasileiro e dos aliados da ditadura, hoje surgem as consequências materiais da tentativa de conciliação de projetos absolutamente inconciliáveis, que culminaram nos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023.
Dessa forma, cabe destacar que a anistia que se discute atualmente já parte, explicitamente, do pressuposto de anistiar como forma de conceder impunidade e esquecimento aos mandantes da tentativa de golpe de estado e assassinato do presidente eleito. Ao contrário da Anistia de 1979, que partiu de reivindicações populares para um reconhecimento estatal dos direitos dos perseguidos6, o processo de anistia atual é conduzido inteiramente pelos próprios agentes golpistas, que se utilizam das histórias dos condenados para mobilizar a sociedade civil, em busca de apoio ao seu projeto impopular. Quando convocam incessantemente mobilizações esvaziadas e aparecem semanalmente em entrevistas de tom vitimista e apologista, os organizadores da trama golpista tornam evidente seu propósito de escapar da justiça a qualquer custo.
Uma das enormes diferenças entre os dois casos é a postura do Estado brasileiro, na forma do Supremo Tribunal Federal. Onde não agiu no passado, passa a agir no presente, procurando responsabilizar os golpistas, fato inédito na história do país. Contudo, essa mudança não representa apenas uma transformação social e jurídica, mas também da postura do próprio STF, que chegou a decidir, no julgamento da ADPF nº 153, pela desnecessidade de revisar a Lei de Anistia e punir efetivamente os algozes da ditadura e seus aliados. Nesse momento, a Corte escolheu por continuar regando as sementes da impunidade e da volta do fascismo, ao passo em que reconheceu, juridicamente, a legitimidade de uma “autoanistia” em face de uma Constituição Cidadã que a rechaça explicitamente. Nesse sentido, leia-se o art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias:
“Art. 8º. É concedida anistia aos que, no período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição, foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares, aos que foram abrangidos pelo Decreto Legislativo nº 18, de 15 de dezembro de 1961, e aos atingidos pelo Decreto-Lei nº 864, de 12 de setembro de 1969, (…).7 (grifo nosso).
Após a leitura do artigo, percebe-se o seguinte: além de serem os militares os próprios agentes da perseguição política, não sendo possível se colocarem como “vítimas”, não chegaram a ser punidos de nenhuma forma, seja por atos de exceção ou atos legítimos da justiça, em contrariedade explícita ao sentido constitucional atribuído à concessão da anistia. Isso posto, torna-se evidente que o Supremo agiu de forma contrária aos valores e mandamentos constitucionais na ocasião da ADPF nº 153, e enquanto o fez, decidiu não pelo “perdão”, como foi declarado pelo Min. Cezar Peluso em seu voto8, mas pelo apagamento da memória dos oprimidos e pela manutenção do imaginário fascista de volta à ditadura. Não obstante, admira-se a postura atual da Corte de enfrentar as aspirações golpistas de frente, como deveria ter feito nas ocasiões anteriores.
CONCLUSÃO
Em suma, são perceptíveis as graves diferenças sociais, históricas e jurídicas entre o processo de anistia que levou à Lei de Anistia de 1979 e a campanha atual por anistia aos organizadores e agentes dos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023. Destaca-se, ainda, o caráter abertamente apologista e autoritário dos líderes da atual trama golpista, que, depois de formularem planos de assassinato e tomada violenta do poder, clamam pela absolvição de seus atos criminosos e pelo esquecimento de um golpe que, houvesse funcionado, enviaria o país novamente aos esgotos que caminhou de 1964 a 1985. A perseguição política, o anseio pela violência contra os indivíduos considerados “indesejáveis” e a apologia aberta à volta da ditadura militar, propiciados pelo esquecimento e impunidade provenientes da Lei de Anistia, evidenciam suas marcas no Estado e na sociedade brasileira.
Ao mesmo tempo, passa-se no país, pela primeira vez em sua história, por um processo criminal de julgamento dos políticos e militares envolvidos no planejamento do golpe de estado. Essa é uma oportunidade que o Supremo Tribunal Federal tem de se colocar ao lado da democracia e da memória, de pautar uma discussão pública aprofundada sobre os crimes cometidos em nome do “Brasil” na ditadura militar, e de contribuir efetivamente para a falência ideológica dos apologistas do fascismo. O espectro do autoritarismo e da violência estatal continua a rondar a institucionalidade, e sempre o fará, até que seja derrotado. É, fundamentalmente, com a prisão dos golpistas, com a reparação dos danos e com a perpetuação da memória dos oprimidos que o país poderá se ver livre, de uma vez por todas, do anseio pela volta de seu passado sangrento. Sem Anistia!
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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[1] CNN Brasil. Depredação do 8 de janeiro no STF gerou prejuízo de R$ 12 milhões; 106 itens são imensuráveis. CNN Brasil, 11 jun. 2025. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/depredacao-do 8-de-janeiro-no-stf-gerou-prejuizo-de-r-12-milhoes-106-itens-sao-imensuraveis/. Acesso em: 13 jun. 2025.
[2] RODRIGUES, Marcella. Anistia: veja momentos da história em que ela foi concedida no Brasil. G1 DF, 13 abr. 2025. Disponível em: https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2025/04/13/anistia veja-momentos-da-historia-em-que-ela-foi-concedida-no-brasil.ghtml Acesso em: 10/06/2025.
[3] BRASIL. Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 28 ago. 1979. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6683.htm.
[4] RODEGHERO, Carla Simone. A anistia entre a memória e o esquecimento. História UNISINOS: Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, RS, v. 13, n. 2, p. 131-139, maio/ago. 2009.
[5] ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo D. Mutações do conceito de anistia na Justiça de Transição brasileira. In: SILVA FILHO, José Carlos Moreira da; ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo D. Justiça de Transição nas Américas: olhares interdisciplinares, fundamentos e padrões de efetivação. Belo Horizonte: Fórum, 2013.
[6] STUTZ E ALMEIDA, Eneá de. O Sentido da Anistia Política a partir da Constituição brasileira de 1988. In: SOUSA JÚNIOR, José Geraldo et. al.. Série O Direito Achado Na Rua Vol. 7: Introdução crítica à justiça de transição na América Latina. Brasília: UnB, 2015. p. 292-295.
[7] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF, 5 out. 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm.
[8] STF é contra revisão da Lei da Anistia por sete votos a dois. STF, Brasília, 29 abr. 2010. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=125515. Acesso em: 12 jun. 2025.
[*] Graduanda em direito pela Universidade de Brasília (UnB). Membra do projeto de extensão AJUP Roberto Lyra Filho (Assessoria Jurídica Universitária Popular) da Faculdade de Direito da UnB.
[**] Graduando em direito pela Universidade de Brasília (UnB). Membro do projeto de extensão AJUP Roberto Lyra Filho (Assessoria Jurídica Universitária Popular) da Faculdade de Direito da UnB.
[***] Graduando em direito pela Universidade de Brasília (UnB). Membro do projeto de extensão AJUP Roberto Lyra Filho (Assessoria Jurídica Universitária Popular) da Faculdade de Direito da UnB.
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