segunda-feira, 16 de junho de 2025

 

1964 a 2025: Anistia entre o Autoritarismo e a Democracia

junho 16, 2025

Escrito por Giovanna Melgaço Barbosa [*]; Guilherme Augusto Oliveira Paim [**] e Samuel Leão Marrara [***]

INTRODUÇÃO

O ano de 1985 foi um ano muito importante para a democracia brasileira, visto que foi  o ano que marcou a transição democrática após 21 anos da Ditadura Cívico-Militar, marcada  pelos atos institucionais que ao longo de suas edições foram aumentando os poderes do poder  executivo e restringindo os demais, restringindo sua atuação e suas instituições, a instauração  de órgãos de censura e controle como o Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), a criação de leis como a de Segurança Nacional e Lei da Imprensa, além, claro, da perseguição  política contra aqueles que se manifestam contra o governo. Ao longo da transição de reabertura política, surgiu a Lei de Anistia no ano de 1977, que inicialmente tinha o objetivo  de perdoar os “crimes” cometidos pelas pessoas da sociedade civil contra a ordem pública  vigente no período ditatorial, mas, passou a incluir também os agentes públicos que fizeram  parte das instituições que executavam a vontade dos líderes autoritários. Cerca de dez anos  depois, em 1987, foi criada a Assembleia Nacional Constituinte, responsável pela criação da  nova Constituição Brasileira que daria fim a vigência da Constituição de 1967, promulgada  durante a Ditadura Militar. A Constituição da República Federativa do Brasil do ano de 1988  deu início ao Estado Democrático de Direito que conhecemos hoje.

No dia 8 de janeiro de 2023, o Brasil esteve diante do maior ataque às instituições desde  a redemocratização. Por volta das 13h, manifestantes que estavam acampados no Quartel General do Exército moveram-se até a Praça dos Três Poderes e algumas horas depois  iniciaram ataques aos prédios do Palácio da Justiça, sede do Supremo Tribunal Federal, o  Congresso Nacional, sede do Poder Legislativo Federal e o Palácio do Planalto, sede do  Executivo federal brasileiro. O ato, que ficou conhecido como o ato golpista de 8 janeiro ou  ato antidemocrático, foi organizado contra a posse de Luís Inácio Lula da Silva, candidato à  presidência, vencedor nas eleições de outubro do ano anterior. O ato resultou em 12 milhões  de reais de prejuízo aos cofres públicos1, além da perda imensurável de obras de artes, artefatos  e itens históricos que foram danificados, furtados ou que não podem ser restaurados, além claro,  do que representou esse ataque ao Estado Democrático de Direito e suas instituições. Após o  início do julgamento dos manifestantes do 8 de janeiro pelo Supremo Tribunal Federal,  políticos começaram a discutir a possibilidade de uma anistia.

PARALELO HISTÓRICO

Inicialmente, para a construção do tema, demonstra-se essencial a compreensão histórica de como se deu a Lei da Anistia (1979) e as repercussões que persistem atualmente.

Apesar da existência de casos em que a Anistia foi concedida anteriormente no Brasil2, foi  durante a Ditadura Militar que o assunto ganhou maior proporção, em um contexto de transição  para a democracia. Proposta pelo presidente João Batista Figueiredo em 1979, a Lei da Anistia  concedeu perdão àqueles que cometeram, entre 1961 e 1979, crimes políticos ou conexos3,  tornando-os impunes pelos atos praticados no período. Essa medida foi uma “reação da ditadura  militar à crescente mobilização social pela anistia dos presos políticos, pelo retorno dos  exilados e pela responsabilização dos agentes da repressão” (Reinholz; Marko;  Ferreira, 2020).

Contudo, a defendida proposta de Anistia “ampla, geral e irrestrita”,originalmente  concebida como mecanismo de reparação às vítimas da ditadura, transformou-se em  instrumento de impunidade para os agressores que agiam em nome da ditadura. Ao estabelecer uma falsa equivalência entre perseguidos e perseguidores sob o argumento da “reciprocidade”, a Lei da Anistia (1979) não apenas impediu o julgamento de torturadores e assassinos, mas contribuiu com um processo de apagamento da história daqueles que foram perseguidos pela  ditadura, refletindo tensões entre memória e esquecimento, democracia e autoritarismo. Esse  acordo – aceito pela necessidade urgente dos perseguidos de retornarem aos seus lares e  recuperarem seus direitos – teve uma condição relevante: o perdão conferido aos ofensores,  negando a clara distinção entre violência de Estado e resistência política, criou uma herança  marcante: a naturalização da impunidade, que hoje se reflete na banalização dos ataques à  democracia.

A Anistia, que surge como um acordo político de conciliação entre o regime militar e  setores da sociedade civil, não deve ser tratada apenas como um marco jurídico, mas como uma  memória das desumanidades cometidas durante a Ditadura Militar. Com o propósito de  denunciar os perigos do autoritarismo e servir de barreira contra a repetição de atitudes  antidemocráticas. No entanto, ao equiparar vítimas e agressores sob o argumento de  “pacificação” e “igualdade”, a Anistia normalizou a impunidade de quem atuou violentamente  naquele período, promovendo o esquecimento. Assim, esse legado manifesta-se em tentativas  de estender o mesmo princípio a atos claramente antidemocráticos, como os ocorridos em 8 de janeiro de 2023. Se, por um lado, o processo histórico-jurídico da Anistia pretende atender a  demanda de sujeitos coletivos que lutam por reconhecimento e reparação, por outro, seu atual  esvaziamento expõe a fragilidade política no país, demonstrando a necessidade de confrontar  as narrativas que buscam banalizar a violência de Estado e o apoio à regimes ditatoriais.

ANISTIA EM 1979 X 2023

Após a análise do contexto histórico que permeou a Lei de Anistia em 1979, percebe se que nela há dois tipos de anistia: uma ligada à liberdade daqueles perseguidos politicamente pelo regime de exceção e à reparação pelos crimes cometidos por parte do Estado, e outra que  trata da impunidade dos agentes criminosos e do esquecimento da responsabilidade estatal na  institucionalização da violência5. Ambos os sentidos representam uma escolha – de libertar os perseguidos e rememorar seu sofrimento, ou de premiar os agentes da repressão com a falta de  punição. Apesar do esforço do Exército Brasileiro e dos aliados da ditadura, hoje surgem as consequências materiais da tentativa de conciliação de projetos absolutamente inconciliáveis, que culminaram nos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023.

Dessa forma, cabe destacar que a anistia que se discute atualmente já parte,  explicitamente, do pressuposto de anistiar como forma de conceder impunidade e  esquecimento aos mandantes da tentativa de golpe de estado e assassinato do presidente eleito.  Ao contrário da Anistia de 1979, que partiu de reivindicações populares para um reconhecimento estatal dos direitos dos perseguidos6, o processo de anistia atual é  conduzido inteiramente pelos próprios agentes golpistas, que se utilizam das histórias dos  condenados para mobilizar a sociedade civil, em busca de apoio ao seu projeto impopular.  Quando convocam incessantemente mobilizações esvaziadas e aparecem semanalmente em  entrevistas de tom vitimista e apologista, os organizadores da trama golpista tornam evidente  seu propósito de escapar da justiça a qualquer custo.

Uma das enormes diferenças entre os dois casos é a postura do Estado brasileiro, na forma do Supremo Tribunal Federal. Onde não agiu no passado, passa a agir no presente, procurando responsabilizar os golpistas, fato inédito na história do país. Contudo, essa  mudança não representa apenas uma transformação social e jurídica, mas também da postura  do próprio STF, que chegou a decidir, no julgamento da ADPF nº 153, pela desnecessidade de  revisar a Lei de Anistia e punir efetivamente os algozes da ditadura e seus aliados. Nesse momento, a Corte escolheu por continuar regando as sementes da impunidade e da volta do fascismo, ao passo em que reconheceu, juridicamente, a legitimidade de uma “autoanistia” em  face de uma Constituição Cidadã que a rechaça explicitamente. Nesse sentido, leia-se o art. 8º  do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias:

“Art. 8º. É concedida anistia aos que, no período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição, foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares, aos que foram abrangidos pelo Decreto Legislativo nº 18, de 15 de dezembro de 1961, e aos atingidos pelo Decreto-Lei nº 864, de 12 de setembro de 1969, (…).(grifo nosso).

Após a leitura do artigo, percebe-se o seguinte: além de serem os militares os próprios  agentes da perseguição política, não sendo possível se colocarem como “vítimas”, não  chegaram a ser punidos de nenhuma forma, seja por atos de exceção ou atos legítimos da  justiça, em contrariedade explícita ao sentido constitucional atribuído à concessão da anistia.  Isso posto, torna-se evidente que o Supremo agiu de forma contrária aos valores e  mandamentos constitucionais na ocasião da ADPF nº 153, e enquanto o fez, decidiu não pelo  “perdão”, como foi declarado pelo Min. Cezar Peluso em seu voto8, mas pelo apagamento da  memória dos oprimidos e pela manutenção do imaginário fascista de volta à ditadura. Não  obstante, admira-se a postura atual da Corte de enfrentar as aspirações golpistas de frente, como  deveria ter feito nas ocasiões anteriores.

CONCLUSÃO

Em suma, são perceptíveis as graves diferenças sociais, históricas e jurídicas entre o  processo de anistia que levou à Lei de Anistia de 1979 e a campanha atual por anistia aos  organizadores e agentes dos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023. Destaca-se, ainda,  o caráter abertamente apologista e autoritário dos líderes da atual trama golpista, que, depois  de formularem planos de assassinato e tomada violenta do poder, clamam pela absolvição de  seus atos criminosos e pelo esquecimento de um golpe que, houvesse funcionado, enviaria o país novamente aos esgotos que caminhou de 1964 a 1985. A perseguição política, o anseio  pela violência contra os indivíduos considerados “indesejáveis” e a apologia aberta à volta da  ditadura militar, propiciados pelo esquecimento e impunidade provenientes da Lei de Anistia,  evidenciam suas marcas no Estado e na sociedade brasileira.

Ao mesmo tempo, passa-se no país, pela primeira vez em sua história, por um processo criminal de julgamento dos políticos e militares envolvidos no planejamento do golpe de estado. Essa é uma oportunidade que o Supremo Tribunal Federal tem de se colocar ao lado da democracia e da memória, de pautar uma discussão pública aprofundada sobre os crimes cometidos em nome do “Brasil” na ditadura militar, e de contribuir efetivamente para a falência ideológica dos apologistas do fascismo. O espectro do autoritarismo e da violência estatal continua a rondar a institucionalidade, e sempre o fará, até que seja derrotado. É, fundamentalmente, com a prisão dos golpistas, com a reparação dos danos e com a perpetuação  da memória dos oprimidos que o país poderá se ver livre, de uma vez por todas, do anseio pela  volta de seu passado sangrento. Sem Anistia!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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CNN Brasil. Depredação do 8 de janeiro no STF gerou prejuízo de R$ 12 milhões; 106  itens são imensuráveis. CNN Brasil, 11 jun. 2025. Disponível em:  https://www.cnnbrasil.com.br/politica/depredacao-do-8-de-janeiro-no-stf-gerou-prejuizo-de r-12-milhoes-106-itens-sao-imensuraveis/. Acesso em: 13 jun. 2025.

ESTADÃO. 8 de janeiro: O que se sabe sobre os ataques golpistas em Brasília após um mês  da invasão. Estadão, São Paulo, 08 fev. 2023. Atualizado em 26 set. 2023. Disponível em:  https://www.estadao.com.br/politica/8-janeiro-mes-ataques-golpistas-invasao-brasilia-o-que se-sabe/. Acesso em: 13 jun. 2025.

MEYER, Emilio. A ADPF nº 153 no Supremo Tribunal Federal: a anistia de 1979 sob a  perspectiva da Constituição de 1988. In: SOUSA JÚNIOR, José Geraldo et. al.. Série O  Direito Achado Na Rua Vol. 7: Introdução crítica à justiça de transição na América Latina.  Brasília: UnB, 2015. p. 452-455.

PAIXÃO, Cristiano. Direito, política, autoritarismo e democracia no Brasil: da Revolução  de 30 à promulgação da Constituição da República de 1988Araucaria. Revista  Iberoamericana de Filosofia, Política y Humanidades, v. 13, n. 26, p. 146-169, 2011.

REINHOLZ, Fabiana; MARKO, Katia; FERREIRA, Marcelo. Especial 40 anos da Lei da  Anistia: Regime militar cedeu sob a condição de ficar impune e desejo de que fosse ampla,  geral e irrestrita não se concretizou. Porto Alegre (RS), 1 fev. 2020. Disponível em:  https://www.brasildefato.com.br/2020/02/01/especial-40-anos-da-lei-da-anistia/. Acesso em:  10 jun. 2025.

RODEGHERO, Carla Simone. A anistia entre a memória e o esquecimento. História  UNISINOS: Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do  Rio dos Sinos, São Leopoldo, RS, v. 13, n. 2, p. 131-139, maio/ago. 2009.

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STF é contra revisão da Lei da Anistia por sete votos a dois. STF, Brasília, 29 abr. 2010.  Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=125515.  Acesso em: 12 jun. 2025.

STUTZ E ALMEIDA, Eneá de. O Sentido da Anistia Política a partir da Constituição  brasileira de 1988. In: SOUSA JÚNIOR, José Geraldo et. al.. Série O Direito Achado Na  Rua Vol. 7: Introdução crítica à justiça de transição na América Latina. Brasília: UnB,  2015. p. 292-295.

[1] CNN Brasil. Depredação do 8 de janeiro no STF gerou prejuízo de R$ 12 milhões; 106 itens são  imensuráveis. CNN Brasil, 11 jun. 2025. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/depredacao-do 8-de-janeiro-no-stf-gerou-prejuizo-de-r-12-milhoes-106-itens-sao-imensuraveis/. Acesso em: 13 jun. 2025.

[2] RODRIGUES, Marcella. Anistia: veja momentos da história em que ela foi concedida no Brasil. G1  DF, 13 abr. 2025. Disponível em: https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2025/04/13/anistia veja-momentos-da-historia-em-que-ela-foi-concedida-no-brasil.ghtml Acesso em: 10/06/2025.

[3] BRASIL. Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 28 ago. 1979.  Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6683.htm.

[4]  RODEGHERO, Carla Simone. A anistia entre a memória e o esquecimento. História UNISINOS: Revista do  Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, RS, v. 13,  n. 2, p. 131-139, maio/ago. 2009.

[5] ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo D. Mutações do conceito de anistia na Justiça de Transição brasileira. In: SILVA FILHO, José Carlos Moreira da; ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo D. Justiça de Transição nas  Américas: olhares interdisciplinares, fundamentos e padrões de efetivação. Belo Horizonte: Fórum, 2013.

[6] STUTZ E ALMEIDA, Eneá de. O Sentido da Anistia Política a partir da Constituição brasileira de 1988.  In: SOUSA JÚNIOR, José Geraldo et. al.. Série O Direito Achado Na Rua Vol. 7: Introdução crítica à  justiça de transição na América Latina. Brasília: UnB, 2015. p. 292-295.

[7] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF, 5 out. 1988. Disponível em:  https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm.

[8] STF é contra revisão da Lei da Anistia por sete votos a dois. STF, Brasília, 29 abr. 2010. Disponível em:  https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=125515. Acesso em: 12 jun. 2025.

[*] Graduanda em direito pela Universidade de Brasília (UnB).  Membra do projeto de extensão AJUP Roberto Lyra Filho (Assessoria Jurídica Universitária  Popular) da Faculdade de Direito da UnB.

[**] Graduando em direito pela Universidade de Brasília  (UnB). Membro do projeto de extensão AJUP Roberto Lyra Filho (Assessoria Jurídica  Universitária Popular) da Faculdade de Direito da UnB.

[***] Graduando em direito pela Universidade de Brasília (UnB). Membro  do projeto de extensão AJUP Roberto Lyra Filho (Assessoria Jurídica Universitária Popular)  da Faculdade de Direito da UnB.

sábado, 14 de junho de 2025

 

Mineração em territórios indígenas e de povos tradicionais: litígio estratégico na defesa de direitos

Por: José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF

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Participantes da Roda de Conversa Mineração em territórios indígenas e de povos tradicionais: litígio estratégico na defesa de direitos, com a professora Raquel Z Yrigoyen Fajardo do Instituto Derecho y Sociedad, de Lima (Peru). Foto do dispositivo de Andrea Brasil

Para uma Roda de Conversa esteve na UnB a Professora Raquel Z Yrigoyen Fajardo, do IIDS (Instituto Internacional Derecho y Sociedad) de Lima, Peru. Promovida pelo Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania do CEAM (professora Vanessa Castro), pelo Núcleo de Estudos para a Paz e Direitos Humanos (professora Talita Tatiana Dias Rampin) e pela Faculdade de Direito (professor Alexandre Bernardino Costa), a participação da professora decorreudo convite do Núcleo de Estudos da Amazônicos – CEAM para apresentar conferência no 4° Fórum Internacional Sobre a Amazônia. Também presentes apoiando o giro de conversação as professoras Nair Heloisa Bicalho de Sousa (PPGDH e Rede Brasileira de Educação para os Direitos Humanos) e a professora Elaine Moreira (ELA – Departamento de Estudos Latino-Americanos do Instituto de Ciências Sociais da UnB).

O Fórum se instalou no dia 10 de junho de 2025 no Instituto Central de Ciências (ICC-Sul), anfiteatro 9. O 4º FIA é organizado pelo Núcleo de Estudos Amazônicos (NEAz), do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (CEAM), da Universidade de Brasília e parceiros.

Assim que, com a concordância do professor Manoel Pereira Andrade, coordenador do NEAz, e do 4º FIA, a professora Raquel se dispôs a uma roda de conversa com pesquisadores da UnB, ativistas e assessores jurídicos e políticos, a partir do tema proposto que se insere na linha geral de sua incidência institucional e acadêmica voltada para a assessoria em apoio a “Autodeterminação dos povos originários e tradicionais em face da mineração e de atividades extrativistas sem consulta”.

A roda de conversa foi também uma oportunidade para identificar elementos para a renovação do Convênio-Marco de Cooperação entre a Universidade de Brasília e o Instituto Internacional de Direito e Sociedade, um acordo que foi construído com a mobilização do CEAM – Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares, da UnB e suas unidades de atuação no campo dos direitos humanos (PPGDH – Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania e NEP – Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos) e também da Faculdade de Direito da UnB.

Remeto ao inteiro teor da conversa conforme link para a sua divulgação pelo Canal Youtube do PPGDH: https://www.youtube.com/watch?v=HWewsqZjYh0 (1); https://www.youtube.com/watch?v=6tkG348XMpo&t=5677s (2).

 Mas quero distinguir da exposição clara da professora a localização histórico-política do problema à luz de categorias analíticas que ela elabora, na forma de caracterização dos ciclos históricos de invasão que o colonialismo fez incidir sobre os povos originários. Com efeito, ela caracteriza três grandes ciclos históricos de invasão dos territórios indígenas para a extração de recursos naturais em benefício de terceiros. Esses ciclos de invasão foram contestados pelas respectivas lutas de resistência anticolonial indígena, tanto ativas quanto passivas; bem como pela conquista de direitos. Primeiro ciclo histórico de invasão territorial: século XVI e a instauração colonial. Segundo ciclo histórico de invasão dos territórios: século XIX e a fundação republicana, na forma de estados nacionais. Terceiro ciclo histórico de invasão dos territórios: anos 1980 até o século XXI e as políticas do Consenso de Washington (A fundamentação completa pode ser encontrada em https://abcderechosindigenas.lamula.pe/2014/09/28/abc-en-derechos-indigenas/abcderechosindigenas/ – texto “¿A quiénes se aplica losderechos de pueblos indígenas?).

Sobre litígio estratégico, para além de remeter ao seu livro clássico – https://heyzine.com/flip-book/bfdcd2ca96.html – elaborado a partir das vivências de defesa de direitos, a professora apresentou os casos atuais em discussão no Peru e região, que formam o documento publicado pelo IIDS “Autodeterminación de losPueblos Frente a laMinería y ActividadesExtractivas Inconsultas”, publicação de outubro de 2024, uma espécie de “manual” que organiza casos emblemáticos de violações que permitiram a defesa de direitos no plano nacional com base no artigo 149 da Constituição peruana que legitima a jurisdição tradicional das comunidades indígenas, com o objetivo de garantir a proteção dos seus direitos e o respeito às suas práticas jurídicas, desde que dentro de um quadro de respeito aos direitos humanos e à lei. Também no marco jurídico e jurisprudencial internacional, permitindo medidas protetivas e até nulidade de concessões de mineração, sobretudo quando desconsideradas a participação dos povos e o respeito à consulta e consentimento prévio, livre e informado relativamente a incidências de qualquer tipo sobre seus territórios (Convenção 169, aliás ratificada pelo Brasil).

Mesa da Roda de Conversa com a professora Raquel ao centro e a estudante Manu (Direito) do Povo Tukano do Rio Negro, da Associação de Estudantes Indígenas da UnB. Foto do dispositivo de Andrea Brasil

Mesa da Roda de Conversa com a professora Raquel ao centro e a estudante Manu (Direito) do Povo Tukano do Rio Negro, da Associação de Estudantes Indígenas da UnB. Foto do dispositivo de Andrea Brasil

Pedi a Victor Hugo Streit Vieira, advogado da APIB – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, presente na roda que fizesse um comentário expandido a partir de sua intervenção na conversa, para apresentar a grandeza das ameaças que incidem sobre os direitos originários dos povos indígenas e o tamanho da dificuldade não só jurídica mas também política que se coloca para a defesa estratégica de direitos dos povos.

Segundo ele, desde a decisão do STF no julgamento do Recurso Extraordinário com repercussão geral (RE Xokleng) e a posterior edição da Lei 14.701/2023, consolida-se no Brasil um movimento regressivo de desconstitucionalização dos direitos territoriais indígenas. Embora o STF tenha declarado a inconstitucionalidade da tese do marco temporal, a nova lei recria, por via infraconstitucional, diversos de seus elementos centrais, inclusive ao impor filtros administrativos, participação de terceiros interessados e condicionantes político-orçamentárias ao reconhecimento de terras tradicionalmente ocupadas. Esse tensionamento normativo se dá, ainda, no contexto da crescente ofensiva legislativa e judicial para viabilizar a mineração em Terras Indígenas, abrindo caminho para práticas de espoliação sob o discurso de regulação e desenvolvimento sustentável.

O pior, ainda para Victor, é que a Câmara de Conciliação instaurada no Supremo Tribunal Federal, sob a relatoria do ministro Gilmar Mendes, agrava o cenário de regressão dos direitos indígenas. Apresentada como uma tentativa de mediação institucional em torno da aplicação da Lei 14.701/2023, a mesa foi denunciada pelo movimento indígena e pela APIB, que se retirou da instância já em sua segunda sessão, como espaço de conciliação forçada, sem paridade e em violação direta à Convenção 169 da OIT. No curso das reuniões, o ministro apresentou uma minuta de projeto de lei com aproximadamente 30 artigos que, entre outras medidas, propunha a regulamentação da mineração em Terras Indígenas, a criminalização das retomadas e a substituição do procedimento constitucional de demarcação por desapropriações por interesse social. Embora os trechos sobre mineração tenham sido momentaneamente retirados da tramitação, o ministro já sinalizou que o tema será retomado em nova rodada de conciliação, no âmbito da Ação de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) nº 86. A proposta segue, portanto, em análise interna na Câmara, que continua a debater aspectos estruturantes da legislação, enquanto os direitos indígenas são tratados como entraves à governabilidade e não como garantias constitucionais inegociáveis.

Victor chamou a atenção para a singularidade atual de que diversas entidades internacionais já se manifestaram com veemência, nos últimos anos, contra essa ofensiva institucional. Mais recentemente, em fevereiro de 2025, três Relatorias Especiais da ONU alertaram para os riscos da Câmara de Conciliação do STF e da Lei 14.701/2023, classificando-os como ameaça aos direitos dos povos indígenas e ao meio ambiente. Em abril, o secretário-geral da ONU, António Guterres, reforçou que os direitos indígenas são inegociáveis. Em maio, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) publicou relatório anual que, reiterando vários posicionamentos anteriores da Comissão, aponta retrocessos alarmantes causados pela aplicação do marco temporal e pela vigência da Lei 14.701/2023. Em junho, o novo Relator da ONU para os Direitos dos Povos Indígenas, Albert K. Barume, declarou publicamente que o Brasil deve abandonar “de uma vez por todas” a tese do marco temporal, denunciando o agravamento da violência e da crise ambiental no país. A sistematicidade dessas manifestações — incluindo também o ACNUDH (Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos ), outras Relatorias Especiais e os Comitês da ONU — revela que o cenário brasileiro não é apenas de conflito interno, mas de violação aberta aos compromissos internacionais assumidos pelo Estado.

E ainda ilustrou a agenda dos principais conflitos localizando o caso do Projeto Potássio do Brasil, empreendimento minerário de grande porte planejado pela empresa canadense Potássio do Brasil S.A., no município de Autazes (AM), às margens do rio Madeira, projeto que visa explorar silvinita para produção de fertilizantes destinados ao agronegócio, sobrepondo-se à Terra Indígena Lago do Soares, território de ocupação tradicional do povo Mura, em processo de demarcação desde 1997. O caso Potássio do Brasil, que não é um ponto fora da curva, mas sim a expressão de uma arquitetura política e institucional que busca abrir caminho à mineração em terras indígenas.

Ele adverte para considerar a inserção de um mesmo modelo que hoje se vê sendo executado no âmbito do judiciário nacional de esvaziamento da consulta, com o apelo ao “interesse público” como escudo para violar direitos fundamentais e decisões contraditórias que fragilizam a proteção constitucional. Modelagem que está presente na Câmara de Conciliação criada pelo ministro Gilmar Mendes no STF para discutir a Lei 14.701/2023, conhecida como a “lei do marco temporal e do genocídio indígena”.

Para Victor,seus colegas da APIB e para as assessorias de outras articulações de apoio aos sujeitos tradicionais que se encontram sob o abrigo da Convenção 169 da OIT, a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), sobre Povos Indígenas e Tribais em Estados Independentes, é um instrumento internacional que estabelece normas para a proteção e promoção dos direitos dos povos indígenas e tribais. O Brasil ratificou a convenção em 2002, e suas regras passaram a valer no território nacional a partir de 2003).

Por isso tudo, a importância da conversa com a Professora Raquel Yrigoyen, muito ativa em litígios nesses fóruns de jurisdição internacional. Uma troca (roda de conversa) muito muito relevante tendo em vista, como se vê da reunião gravada, para abrir a variante da defesa internacional dos direitos, sobretudo indígenas, por meio de litígio estratégico no âmbito das comissões e das cortes internacionais de direitos humanos.

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)

quarta-feira, 11 de junho de 2025

 

Mobilização do Movimento das Trabalhadoras e dos Trabalhadores por Direitos, no Sol Nascente/DF, à luz do Direito Achado na Rua

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

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Michele Andreza Lopes Castro da Costa. O DIREITO QUE NASCE NO SOL: Mobilização do Movimento das Trabalhadoras e dos Trabalhadores por Direitos, no Sol Nascente/DF, à luz do Direito Achado na Rua. Dissertação de Mestrado defendida e aprovada no Programa de Pós-Graduação em Direito. Brasília: UnB/Faculdade de Direito,  2025, 173 fls.

        

A Dissertação foi aprovada pela Banca Examinadora formada pelo Professor Antonio Sergio Escrivão Filho, UnB/FD, Orientador, professoras Sabrina Durigon Marques, Uniceub/Faculdade de Direito, membra externa e Talita Tatiana Dias Rampin, UnB/Faculdade de Direito, membra interna. Completei a banca.

Indo logo ao resumo da Dissertação:

 

A presente dissertação investiga como o Movimento das Trabalhadoras e dos Trabalhadores por Direitos (MTD) mobiliza e adapta suas estratégias de luta no território do Sol Nascente, no Distrito Federal, e de que modo essas práticas contribuem para a construção e a defesa de direitos em contextos marcados por exclusão urbana e desigualdades estruturais. A pesquisa parte do referencial crítico do Direito Achado na Rua, articulando-o à dialética do concreto de Karel Kosík, à pedagogia freireana e às teorias dos movimentos sociais, com o objetivo de compreender o direito como prática social insurgente, forjada nas experiências coletivas das periferias urbanas.

Para compreender essa atuação insurgente, o trabalho parte de uma análise do território do Sol Nascente, cujas contradições evidenciam as formas de segregação espacial, precariedade urbana e violência estrutural que marcam a vida nas margens do Distrito Federal. O território, embora marcado por desigualdades históricas, revela uma práxis cotidiana de resistência, na qual moradores constroem formas coletivas de enfrentamento à exclusão. A partir da observação direta, das entrevistas e da análise documental, foram identificadas iniciativas como mutirões, redes de solidariedade, bioconstruções e mobilizações populares que reconfiguram o sentido de pertencimento e o próprio exercício do direito à cidade.

O campo empírico concentrou-se no Trecho III do Sol Nascente, uma das maiores favelas da América Latina, onde o MTD atua por meio de cozinhas comunitárias, atividades culturais, oficinas e formações políticas. Nessas experiências, o movimento atualiza repertórios históricos de luta popular, disputando sentidos de justiça e construindo vínculos comunitários. As práticas do MTD revelam um processo de reinvenção cotidiana do direito, ancorado no pertencimento, na solidariedade e na autogestão, no qual o direito não apenas é reivindicado, mas produzido como prática viva, coletiva e insurgente.

 

Entretanto, tanto como o resumo que sintetiza o trabalho, descubro no prefácio, uma peça inusitada numa escrita de dissertação, um sub-texto sensível que é também uma chave de compreensão da pesquisa:

Mais do que reunir dados, pesquisar o Sol Nascente e o MTD exigiu um olhar sensível para uma realidade que não se resume aos registros oficiais. A pesquisa tornou-se um encontro humano: cada relato compartilhado, cada resistência vivida, cada experiência narrada me levou a enxergar o direito sob outra perspectiva — não como algo abstrato, mas como prática concreta e presente na luta.

E, por fim, a coragem. Coragem para questionar verdades estabelecidas, buscar conexões entre o pensamento acadêmico e a realidade popular, e compreender que o Direito não está apenas nos tribunais e nos códigos, mas também nas ruas, nos movimentos e nas práticas de solidariedade que sustentam as lutas sociais. Coragem para reconhecer que o conhecimento não se constrói apenas nos livros, mas também nas trocas, nas experiências e na força que se renova a cada dia.

Este trabalho é, sim, uma análise sobre o Movimento das Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos (MTD) e suas estratégias de mobilização. Mas é também — e talvez, sobretudo — um relato de descoberta. Ao longo da pesquisa, fui sendo transformada. Aprendi com o MTD e com o Direito Achado na Rua. Revi concepções sobre a prática jurídica e descobri, de fato, o universo dos movimentos sociais — que até então me era desconhecido. Acompanhar suas práticas, escutar suas histórias e compreender seus modos de organização me levou a enxergar o direito por outros caminhos: aqueles que se constroem nas ruas, nas cozinhas populares, nas assembleias comunitárias, na partilha do que se tem e na invenção do que ainda não existe.

Mais do que estudar o MTD, fui me aproximando, pouco a pouco, do modo como ele cria sentidos, constrói vínculos e transforma territórios. Descobri, com o MTD e com o Direito Achado na Rua, que o direito pode nascer do chão da luta e da experiência coletiva. E encontrei, na escrita, uma forma de dizer o que às vezes cala em mim.

 

André-Jean Arnaud, num repère (referência, destaque, indicação )muito valioso, abrindo desde as “regiões de ultramar” (régions d’outre-mer), a atenção para O Direito Achado na Rua, Cours de l’Université de Brasilia, 1987 [note bibliographique] Droit et Société  Année 1988  9  pp. 328-329, vai considerar que le droit qu’on trouve dans la rue, ce n’est pas mal! Décidément, nous avons, em France, bien du chemin à faire… dans la rue, de préférence, nous qui, aprés tant d’années d’études, connaissons mieux les couloirs du Palais que les dédales des quartiers populares… (“”O direito que se acha na rua, isso não é nada mau! Decididamente, temos, na França, muito caminho a percorrer… de preferência na rua, nós que, depois de tantos anos de estudos, conhecemos melhor os corredores do Palácio do que os labirintos dos bairros populares…”).

São esses labirintos que Michele percorre para achar o direito que o social institui e reivindica com sua luta. E sua dissertação é também um diálogo altivo com os porta-vozes dos sujeitos que instituem direitos, no caso do MTD por isso mesmo, antes mesmo de que haja uma devolutiva do trabalho a ser apresentado na Comunidade, representações do Coletivo se fizessem presentes à sessão de defesa da Dissertação na universidade e que entre eles Egmar Borges e Nilson Alexandre tenham feito intervenções quando o presidente da Banca lhes atribuiu a palavra.

 

Indo logo ao Sumário:

 

 

 

INTRODUÇÃO

 

1             SOL NASCENTE: FORMAÇÃO, EXCLUSÃO E CAMINHOS DE TRANSFORMAÇÃO

1.1          Segregação urbana e a formação do Sol Nascente

1.2          Resistência e solidariedade como potencial de transformação social no Sol Nascente

2             MOVIMENTO POPULAR DAS TRABALHADORAS E DOS TRABALHADORES POR DIREITOS (MTD) NO BRASIL

2.1          Origem, trajetória e identidade política do MTD

2.2          Organicidade e estratégias de luta no MTD

3             3 DIREITO QUE NASCE DA LUTA: O MTD NO SOL NASCENTE E A PRÁXIS POPULAR DO DIREITO ACHADO NA RUA

3.1          Solidariedade ativa como estratégia de mobilização popular

3.2 Cultura, educação popular e produção de direitos: Polo de Cultura como práxis  insurgente

CONSIDERAÇÕES FINAIS

REFERÊNCIAS

APÊNDICES (A: Exemplo de registro de campo;  Apêndice B: Modelo de roteiro de entrevista utilizado na pesquisa; C: Exemplo de transcrição e registro de entrevistas).

 

 

Nos termos da pesquisa, a Autora diz que é a partir pois, das formas de mobilização no Sol Nascente, embora aparentemente fragmentadas e atravessadas por tensões, que podem ser compreendidas como processos ativos de reinvenção da vida, nos quais a produção de direitos se vincula diretamente ao enfrentamento das condições que os negam, que vai poder-se compreender como essas experiências se constroem, como se transformam e o que revelam sobre as disputas em torno do direito.

A pesquisa, assim, se concentra na mobilização do Movimento das Trabalhadoras e dos Trabalhadores por Direitos (MTD) no Sol Nascente/DF. Mais do que descrever suas ações, busca-se compreender como suas estratégias de resistência e organização contribuem para a construção de direitos, especialmente em contextos marcados pela negação institucional e pela desigualdade.

A análise desenvolvida no trabalho segue a concepção crítica do Direito formulada por Roberto Lyra Filho, que o compreende como fenômeno social dinâmico, atravessado por contradições entre forças de dominação e de libertação. Em sua obra, o autor propõe uma leitura dialética do Direito, baseada nas lutas sociais e na transformação contínua das formas jurídicas ao longo do tempo.

Para a Autora, “ao mapear os espaços em que o jurídico se manifesta no interior das estruturas sociais, Lyra Filho (1982) rejeita qualquer essencialismo normativo e propõe uma abordagem plural e crítica do Direito, vinculada às práticas sociais concretas e às condições materiais da vida (p. 74-79). A partir dessa crítica, torna-se possível compreendê-lo não apenas como ordenamento estatal, mas como campo em disputa, que também se realiza nas práticas de resistência, nas instituições insurgentes e nas formas organizadas de luta dos sujeitos coletivos por emancipação”. E “é a partir dessa perspectiva que este trabalho se aproxima do referencial do Direito Achado na Rua, uma proposta que retoma e atualiza a matriz dialética formulada por Lyra Filho para compreender o direito não como algo dado, mas como construção coletiva, viva, enraizada nas lutas sociais e nas experiências dos territórios populares”.

Por isso ela assume que a formulação crítica consolidada no projeto O Direito Achado na Rua, logra perceber – ela afirma comigo – o direito nasce da vivência concreta dos sujeitos coletivos, que se tornam protagonistas da produção de novos direitos nos espaços de reinvenção da vida e da participação democrática .

A dissertação traduz desse modo um movimento que opera no protagonismo de ação política, instituindo formas emancipatórias na perspectiva dos direitos humanos – germinais – para constituir um campo teórico-prático e um catálogo de ricos achados que formam a fortuna crítica de O Direito Achado na Rua: a Aldeia, o Quilombo, a Rede, os Lares, a Noite, o Manicômio, o Cárcere, a Encruzilhada, as Águas, Campos e Florestas Amapaenses,  o Constitucionalismo Achado na Rua (Victor Nunes Leal e JJ Gomes Canotilho), a Rua em seu sentido amplo de espaço de cidadania (Milton Santos, Paulo e Nita Freire, Roberto Lyra Filho),  o sindicalismo achado na rua, a que vem agregar-se, agora, O Direito que Nasce do Sol.

Nas palavras da Autora, seu trabalho se “propõe a explorar como as ferramentas da teoria dos movimentos sociais, em diálogo com o referencial crítico de Lyra Filho e José Geraldo de Sousa Júnior, podem contribuir para interpretar os sentidos de direito construídos nas periferias urbanas como expressões de práticas históricas que desafiam a lógica dominante e abrem espaço para alternativas jurídicas enraizadas nas experiências populares. Essa leitura encontra afinidade com a crítica de Kosík (1969), ao sugerir que as aparências imediatas da realidade social ocultam contradições profundas, que só podem ser desveladas por meio da práxis”:.

É a partir dessa chave de leitura que se compreende o potencial analítico das categorias mobilizadas ao longo deste trabalho, as quais ajudam a evidenciar como o MTD atualiza práticas de luta já presentes na história popular, como as ocupações e as mobilizações comunitárias, e constrói alianças a partir das brechas políticas e das disputas por sentidos. 

Será apresentado um panorama das contradições estruturais que atravessam o Sol Nascente, destacando como as desigualdades históricas e os processos de exclusão moldam o cotidiano dos moradores e criam o terreno sobre o qual se constroem as práticas de resistência. Nesse contexto, a atuação do MTD não se configura como uma resposta isolada, mas como parte de um movimento mais amplo, que afirma a vida e reivindica direitos nas margens urbanas de Brasília. Para compreender essas práticas, é necessário um caminho investigativo atento às contradições do território e aos sentidos que emergem da experiência coletiva. Este estudo busca compreender como essas estratégias são mobilizadas na prática, quais seus desafios e limites, e de que maneira contribuem para o fortalecimento da organização comunitária e para a construção de direitos.

 

Forte na localização do complexo de questões e de temas que o caso conforma e a agência dos sujeitos que fazem a interlocução entre a perspectiva política de seu protagonismo (vivamente traduzido na pesquisa) e a materialização do sentido de seu movimento no real que se transforma (não é ocasional a adesão à leitura dialética do concreto em Kosik), teria sido ainda mais potencializador do aporte teórico-prático de O Direito Achado na Rua, para a análise de Michele, se às leituras do campo que ela tão bem trouxe, tivesse incluído aquelas reunidas no volume 9, da Série O Direito Achado na Rua, constitutivas da Introdução Crítica ao Direito Urbanístico, especialmente sobre o enlace entre as perspectivas epistemológicas que balizaram a obra e o amplo painel de experiências, algumas muito próximas as do empírico destacado na Dissertação, que ganham intensidade quando o pensamento sobre a ação permite configurar a própria agência como práxis.

De fato, eu o disse em recensão sobre a edição dessa obra, que ss textos que nela se inscrevem, procedentes de pesquisadores e pesquisadoras dos dois coletivos que a conceberam (IBDU – Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico e Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua) e foram convocados por chamada geral para a edição, abordam o Direito Urbanístico a partir de uma perspectiva crítica, como um campo do pensamento e da prática jurídica vocacionado às transformações sociais e urbanas necessárias para a efetivação dos direitos reivindicados pelo povo e pelos movimentos sociais, sejam eles reconhecidos pelo Estado e pelos organismos internacionais, sejam eles direitos formulados na vida social e ainda em processo de legitimação e de reconhecimento pelas diferentes institucionalidades.

Nesse sentido, é notória a presença nos mais diversos trabalhos da referência ao direito à cidade, ora no sentido intrinsecamente político a que fazia referência Henri Lefebvre, ora em acepções essencialmente normativas, cujo âmbito de definição será ainda objeto de muita polêmica entre nós.

Há importantes contribuições nesta Introdução Crítica ao Direito Urbanístico, em que o direito à cidade é referência político-jurídica constante e fundamento do compromisso radical com a democracia e com a justiça social (https://estadodedireito.com.br/introducao-critica-ao-direito-urbanistico/).

Vou as considerações finais da Dissertação, extraída do texto com as palavras da Autora:

 

Esta dissertação não se propõe a encerrar debates nem a oferecer respostas definitivas. Pelo contrário, ela assume o inacabamento como traço constitutivo de toda investigação comprometida com a realidade viva e complexa dos territórios populares. Ao acompanhar a trajetória do MTD no Sol Nascente, o que se buscou não foi concluir, mas compreender em processo, lançar perguntas e abrir caminhos.

O direito que nasce no Sol Nascente não é instituído por decreto, tampouco embalado por promessas institucionais. Ele brota do chão — das mãos que constroem, das vozes que denunciam, dos corpos que resistem. Vai se tecendo nas relações, nas práticas e nos vínculos que sustentam a vida onde o Estado muitas vezes se ausenta.

Ao acompanhar a trajetória do MTD no território, observa-se que o direito não se limita à sua forma escrita: ele se reinventa na prática cotidiana, na escuta, na solidariedade ativa e na cultura que educa, denuncia e convoca. Essa compreensão, em diálogo à proposta do Direito Achado na Rua, permitiu que a pesquisa se abrisse ao inacabado — às potências em disputa, às práticas insurgentes que emergem do território.

Como revelou esta pesquisa, as práticas do MTD no Sol Nascente não apenas resistem à exclusão, mas reconfiguram os limites do próprio direito, ampliando seus sentidos a partir da experiência coletiva vivida nas margens.

A centralidade dessa concepção reside no reconhecimento da legitimidade das experiências populares que reivindicam direitos a partir da luta — não apenas como destinatárias da ordem jurídica, mas como agentes ativos de sua transformação. Como afirma Sousa Júnior (2021), “as carências vivenciadas coletivamente se transformam em exigência de direitos e, a partir daí, possibilitam a construção de um sujeito coletivo de direito” (p. 93).

Nesse horizonte, o MTD não atua apenas por meio da contestação formal das normas jurídicas. Ele constrói sentidos próprios para o direito, enraizados na experiência de resistência e nas transformações concretas do território. Suas estratégias — continuamente adaptadas às condições locais — enfrentam desigualdades históricas, reinventam formas de organização e produzem pertencimento. Como afirmou Nilson Alexandre da Silva, militante do MTD no DF: “não há transformação social sem o envolvimento das mãos, dos corações e das almas do povo que constrói essa realidade todos os dias” (Nilson, 2024).

Ao longo do percurso, foi possível perceber que essas práticas não apenas operam como resistência, mas como parte de um processo mais profundo de reinvenção jurídica. Ao articular os repertórios comunitários e culturais às disputas normativas, o MTD afirma sua capacidade de produzir um direito insurgente — aquele que não se esgota na forma, mas que se afirma como conteúdo concreto de justiça enraizado na vida popular. Essas formas de mobilização desafiam a lógica dominante ao propor alternativas jurídicas nascidas da escuta, da partilha e da práxis coletiva.

Nesse sentido, a perspectiva do Direito Achado na Rua revela-se fundamental para interpretar a dimensão jurídica dessas práticas coletivas. O direito, nesse contexto, não se limita a um conjunto estático de normas, mas emerge da vida vivida — como prática social insurgente, construída nas experiências de resistência e reinvenção popular. Em vez de apenas reivindicar direitos previamente instituídos, o movimento os constrói no cotidiano, disputando sentidos, reconfigurando normatividades e firmando sua legitimidade nos vínculos comunitários. Como alerta Lyra Filho (1984), confundir o Direito com a norma jurídica é o mesmo que “confundir a embalagem com o produto”, pois nem toda norma veicula um Direito legítimo — algumas podem ser, na verdade, “pacotes de veneno ditatorial” (p. 12).

Foi a partir dessas lentes teóricas — e da escuta atenta às práticas do MTD no Sol Nascente — que esta pesquisa buscou compreender a mobilização popular como um processo dinâmico, no qual o direito não é apenas reivindicado, mas produzido nos espaços deixados pelas ausências institucionais. Para isso, adotou-se uma abordagem qualitativa e dialética, combinando observação direta, entrevistas e análise documental, o que possibilitou acompanhar de perto as estratégias de atuação do movimento no Trecho III do Sol Nascente.

Essa trajetória demonstrou que compreender o MTD requer mais do que observar suas ações isoladas: exige olhar com atenção para o território em que essa luta se desenrola. O Sol Nascente, nesse processo, não é apenas cenário — é sujeito. Um espaço vivo, marcado por disputas históricas, ausências institucionais e reinvenções cotidianas, que influencia as formas de organização popular e, ao mesmo tempo, é transformado por elas. A práxis coletiva que ali se manifesta enfrenta o abandono com solidariedade e recria o direito a partir da experiência vivida nas periferias.

Por isso, este trabalho não analisou o direito apenas como norma posta, mas como expressão concreta de resistência: um fazer jurídico insurgente, que emerge das brechas da institucionalidade e se firma nas práticas compartilhadas de solidariedade, cultura e organização popular. O MTD, nesse contexto, não apenas reivindica direitos; ele os encarna e os transforma na experiência coletiva que sustenta a vida nas margens.

Trata-se de uma práxis que, nascida das margens, não apenas desafia a normatividade instituída, mas também inaugura outras linguagens de justiça — que nascem da partilha, da escuta e do compromisso coletivo com a transformação concreta.

Ao propor a pergunta sobre como o MTD mobiliza e adapta suas estratégias de luta por direitos no Sol Nascente, esta pesquisa partiu da hipótese de que as práticas do movimento não apenas reivindicam direitos formalmente reconhecidos, mas também criam normatividades próprias, enraizadas na realidade vivida da periferia.

Ao longo do percurso, essa hipótese foi tensionada, ampliada e vivida em campo. No Capítulo 1, a análise do Sol Nascente à luz da dialética do concreto revelou como a realidade imediata, marcada por desigualdades e invisibilidades, esconde potencialidades organizativas que só se tornam visíveis quando observadas a partir da práxis. No Capítulo 2, ao abordar o MTD em sua dimensão nacional, identificaram-se repertórios de ação e princípios estruturantes que orientam a atuação do movimento, com destaque para a pedagogia popular, a autogestão e a resistência ao neoliberalismo. Já no Capítulo 3, essas estratégias ganharam corpo e território: a atuação no Sol Nascente mostrou que, por meio da solidariedade ativa, da cultura popular e da escuta, o MTD constrói com a comunidade novas formas de produzir e dizer o direito.

Esse percurso não responde definitivamente à pergunta inicial, e talvez nem devesse. Mas indica que, sim, é possível reconhecer na práxis do MTD uma forma viva de mobilização que transforma a carência em vínculo, a exclusão em enraizamento, e o cotidiano em território de produção jurídica insurgente.

Em vez de tratar o Sol Nascente como objeto, este trabalho o reconheceu como sujeito: espaço de contradições, mas também de criação. Ao longo dos capítulos, foi possível acompanhar a atuação do MTD não como um projeto externo, mas como uma presença que se constrói com o território, reorganizando saberes, afetos e práticas políticas.

No primeiro capítulo, a análise da formação social do Sol Nascente permitiu vislumbrar que, por trás da precariedade aparente, há histórias de luta, formas silenciosas de organização e dinâmicas complexas que produzem sentido e pertencimento. Com o auxílio da dialética do concreto, foi possível enxergar o território como campo de conflitos e possibilidades.

No segundo capítulo, a atenção voltou-se para o MTD em sua dimensão nacional. Ao explorar sua origem, estrutura e estratégias, evidenciou-se uma práxis que recusa a homogeneização e se constrói a partir da escuta dos territórios. Sua pedagogia popular e seu enfrentamento ao neoliberalismo revelam uma concepção de direito em constante disputa, gestado nas margens e movido pelo compromisso com a transformação concreta. O terceiro capítulo foi o espaço de síntese entre teoria e empiria. A atuação do MTD no Sol Nascente mostrou que a solidariedade é, ao mesmo tempo, tática e linguagem política. A cozinha comunitária, os mutirões, os encontros formativos e o Polo de Cultura não apenas mobilizam, eles produzem um direito que nasce da escuta e se realiza na coletividade. O hip hop, os mamulengos, os saraus e as oficinas não são ornamentos, mas práticas jurídicas insurgentes. Como afirmou Nilson, liderança do movimento, “lá na Ceilândia, o menino se sente mais inteligente quando vê alguém rimando”. Porque a rima também é código, saber, reconhecimento. Porque a rua também é escola — e é nela que muitos aprendem a dizer o mundo.

Nesse contexto, a consagração do hip hop como patrimônio cultural e o reconhecimento das cozinhas como tecnologias sociais não inauguram direitos: apenas formalizam práticas já consolidadas. O MTD, ao fazer dessas experiências um eixo de sua atuação, inscreve-se em uma tradição de produção jurídica que não depende da legalidade para existir, porque encontra sua legitimidade na vida partilhada e na luta coletiva.

A pesquisa, mais do que concluir, convida a olhar o direito não como imposição estatal, mas como linguagem em disputa. Convida a perceber que o saber não está restrito aos gabinetes — ele também mora nas cozinhas, nos versos, nas assembleias de rua, nas mãos calejadas de quem organiza o cotidiano da resistência.

Talvez o maior aprendizado deste percurso tenha sido esse: o direito também se forma no chão — chão de escuta, de partilha, de invenção. Ao ouvir o professor José Geraldo falar sobre o Direito Achado na Rua, as palavras encantam. Mas foi no encontro com o MTD, no Sol Nascente, que esse encantamento ganhou corpo — e me ensinou que, mais do que ouvir, é preciso ver e caminhar junto. Reler O que é Direito, de Lyra Filho, depois de tanto tempo, com os olhos abertos pelas práticas vividas, mostrou o quanto a leitura se transforma quando se encontra com a rua.

Ao acompanhar de perto as práticas do MTD no Sol Nascente, este trabalho evidencia que o direito não se restringe às instituições formais; ele também se constrói nas vivências diárias de resistência e solidariedade, consolidando o que esta dissertação compreendeu como um campo político-jurídico popular — em que o direito se refaz nas margens, entre vínculos, práticas e invenções compartilhadas. Reconhecer essas práticas como legítimas formas de produção jurídica é essencial para a construção de uma sociedade mais justa e inclusiva, onde o direito seja, de fato, expressão da vida e das lutas do povo.

 

Penso que em Michele Andreza encontro aquela mesma exaltação que divisei em outro trabalho que pude acompanhar, dessa feita no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, da UnB. O de Ingrid Gomes Martins. Direito à Alimentação em Pretuguês: a Práxis das Coordenadoras do MTST nas Cozinhas Solidárias do Distrito Federal. Dissertação apresentada para fins de exame de defesa, do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares, da Universidade de Brasília. Brasília, 2023. Defendida em 2023 (Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, CEAM/UnB). Escolhida por comissão do PPGDH como melhor dissertação área interdisciplinar de Direitos Humanos, 2024.

O encontro dessas duas pesquisadoras e uma ponte de diálogo entre suas pesquisas teria sido um fator de intensificação de uma pauta de investigação originada da mobilização social da Comunidade do Sol Nascente. Em As Cozinhas Solidárias de Planaltina e do Sol Nascente, como se vê no estudo de Ingrid, têm-se uma das tecnologias sociais comunitárias que as mulheres sem teto lançaram mão durante a pandemia de covid-19 e que persistem em funcionamento, por meio da distribuição de refeições diárias prontas e da promoção de atividades relacionadas à saúde, à educação, à agroecologia e à qualificação profissional. Revelam-se verdadeiros centros do bairro ou centros da vida coletiva, que reconstituem vínculos de solidariedade social em meio ao avanço do hiperindividualismo neoliberal.

No trabalho de Ingrid, assim como no de Michele referido ao MTD, o MTST emerge como sujeito coletivo de direitos e é representado pela maioria social que se organiza no movimento: mulheres negras, mães, avós, trabalhadoras do cuidado, trabalhadoras desempregadas ou informais. A partir da negação dos pressupostos materiais e imateriais para a fruição de vida digna pelas mulheres negras periféricas, sua organização e a luta social para conquistá-los são dotadas de capacidade instituinte de direitos (https://estadodedireito.com.br/direito-a-alimentacao-em-pretugues-a-praxis-das-coordenadoras-do-mtst-nas-cozinhas-solidarias-do-distrito-federal/).

A dissertação de Michele Andreza Lopes Castro da Costa – O DIREITO QUE NASCE NO SOL: Mobilização do Movimento das Trabalhadoras e dos Trabalhadores por Direitos, no Sol Nascente/DF, à luz do Direito Achado na Rua – se completa nutrida na dupla substância que qualifica um pensamento crítico consistente: a elegância narrativa que forma aquela cortesia do pensador mencionada por Ortega y Gasset. Aliás, o estilo me cativou e não só pela epígrafe que abre essas considerações retirada de minha tese: “O Direito que se acha na rua é o que emerge do conflito, da resistência, da práxis dos sujeitos que lutam para fazer valer seus próprios sentidos de justiça.”

Aliás, não foi surpresa para mim, tendo participado com ela, e com colegas, co-autores que somos na edição do volume 11 (em processo gráfico), da Coleção Direito Vivo (Editora Lumen Juris) do livro “O Que se Perde Quando se Lucra: O Neoliberalismo e os Direitos Humanos no Olhar de O Direito Achado na Rua“, Michele contribuindo com o artigo “Dinâmicas de transformação e resistência: Direitos Humanos, neoliberalismo e o Direito do Trabalho – Uma perspectiva do ‘Constitucionalismo Achado na Rua’”.

Também por isso, mas porque aqui a ética do pensador segundo Ortega y Gasset, o sistema, se mostra pleno no seu trabalho. Por isso que as considerações finais abrem com mais um entretítulo forte entre todos que demarcam o conjunto capitulado da Dissertação, de fato, um outro modo de a intitular: “Entre solidariedade, cultura e luta: O Direito Achado no Sol Nascente”.